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1. Considerações acerca do conceito de interseccionalidade.

A interseccionalidade é um conceito criado por Kimberlé Crenshaw,


professora e defensora dos direitos civis norte-americanos. Ao perceber que os
movimentos sociais pela busca de igualdade excluíam determinados grupos sociais,
ela viu a necessidade de pensar em uma teoria que abarcasse os diferentes níveis
de desigualdade.
Dessa forma, Crenshaw define a interseccionalidade como a interação entre
dois ou mais fatores sociais que definem uma pessoa, que se sobrepõem e
acentuam acentuam os níveis de desigualdade. Essa teoria carrega uma grande
importância, pois dá visibilidade para alguns grupos sociais que tinham suas causas
invisibilizadas.
Um exemplo dessa invisibilização é citado pela professora Karla Akotirene,
quando afirma que, durante muito tempo, a luta antirracista tinha como figura
principal o homem negro, e o feminismo tinha como protagonista a mulher branca,
inviabilizando as lutas e particularidades da mulher negra.
Dessa forma, surgiu o feminismo negro, como forma de especificar as
singularidades das vivências da mulher negra, destacar o seu lugar na sociedade e
mostrar os níveis de desigualdade que essa mulher enfrenta. A partir disso, o
conceito de interseccionalidade foi ganhando mais espaço e incluindo a análise de
outros fatores que causam desigualdade social.

2. Interseccionalidade: recortes de gênero, raça e classe.

Ao falar sobre interseccionalidade, diversos fatores são incluídos para análise:


raça, gênero, sexualidade, classe, profissão, idade, capacidades, entre outros.
Porém, neste trabalho, optamos por destacar os fatores de gêneros, raça e classe,
os quais ganham destaque nas obras de Conceição Evaristo e Cristiane Sobral.
Esses fatores são importantes marcadores de identidade social, e revelam sistemas
relacionados de opressão, dominação ou discriminação.
De acordo com Akotirene (2022, p. 19), “a interseccionalidade visa dar
instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo,
capitalismo e cisheteropatriarcado - produtores de avenidas identitárias em que
mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de
gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.” Dessa forma, a
interseccionalidade reconhece que a opressão não é causada por uma única
dimensão de identidade, como raça, gênero ou classe, mas sim pela intersecção
delas. Por exemplo, uma mulher negra pode enfrentar formas únicas de opressão
diferentes daquelas enfrentadas por uma mulher branca ou por um homem negro.
Sendo assim, o feminismo negro busca a equidade de gênero e o combate ao
racismo , combatendo os estereótipos de gênero, ou seja, o que é esperado de
homem e mulheres, o que reforça, muitas vezes, a desigualdade de gênero. Além
disso, busca destacar os privilégios de classe, isto é, as vantagens e benefícios que
determinados grupos sociais possuem em relação a outros devido a sua posição
econômica ou social, conforme aponta Akotirene (2022, p. 22): “o projeto feminista
negro, desde sua fundação, trabalha o marcador racial para superar estereótipos de
gênero, privilégios de classe e cisheteronormatividades articuladas em nível global.”
Para as irmãs Barbara Smith e Beverly Smith, “Acreditamos que a política
sexual sob o patriarcado é tão onipresente nas vidas das mulheres negras, quanto
às políticas de classe e raça. Também achamos, muitas vezes, difícil separar
opressões de raça, classe e sexo porque, nas nossas vidas, elas são quase sempre
experimentadas simultaneamente.”
Ainda segundo Akotirene existem “equívocos analíticos da sociedade civil e
Estado toda vez que a mulher é tomada de modo universal.” Essa frase sugere que a
sociedade civil, ao tratar a mulher como um grupo homogêneo e universal, pode
cometer equívocos e generalizações que ignoram as realidades complexas e
diversas das mulheres. Cada mulher tem suas próprias vivências e identidades
interseccionais que são moldadas por fatores como raça, classe social, orientação
sexual, cultura e outros aspectos. Ao ignorar essas diferenças e reduzir as mulheres
a um único estereótipo, corremos o risco de perpetuar estereótipos prejudiciais e
não reconhecer as desigualdades e discriminações específicas que algumas
mulheres enfrentam em suas vidas.
Como exemplo, temos as mulheres negras, as quais foram vítimas de
“estupros coloniais, que a transformaram em produtoras e reprodutoras de vidas
expropriadas no trabalho de parto, e seus filhos em mercadorias as quais, elas, em
tese, mães, não tinham direito à propriedade.” O exemplo dado refere-se às mulheres
negras que foram vítimas de estupros durante o período colonial. Esses estupros
foram uma forma de violência brutal que resultou na expropriação de suas vidas e no
uso forçado de seus corpos para reprodução. Durante a escravidão e o colonialismo,
as mulheres negras eram tratadas como objetos e suas capacidades reprodutivas
eram exploradas para aumentar a força de trabalho escravo. Elas eram consideradas
produtoras e reprodutoras de vidas que, no contexto da escravidão, eram tratadas
como mercadorias.
A frase também destaca a injustiça que essas mulheres enfrentavam, uma
vez que, apesar de serem mães biológicas dessas crianças, não tinham direito à
propriedade sobre elas. Nesse contexto, as crianças nascidas de mulheres
escravizadas eram tratadas como mercadorias e propriedades de seus donos, e
suas mães não tinham poder de decisão ou controle sobre o destino de seus
próprios filhos.
Essa interpretação chama a atenção para as profundas injustiças e opressões
que as mulheres negras enfrentaram no passado, tendo suas vidas, corpos e
famílias subjugados e controlados pelo sistema colonial e escravocrata. É uma
reflexão sobre como a história de exploração e violência impactou profundamente a
vida dessas mulheres e suas comunidades, resultando em cicatrizes que podem ser
sentidas até os dias de hoje, através de questões como o racismo estrutural e a
desigualdade social. A análise busca reconhecer a importância de entender o
passado para enfrentar as consequências atuais e trabalhar em direção a uma
sociedade mais justa e igualitária para todos.
Ainda segundo Akotirene, “Sem dúvida, mulheres negras foram marinheiras
das primeiras viagens transatlânticas, trafegando identidades políticas reclamantes
da diversidade, sem distinção entre naufrágio e sufrágio pela liberdade dos negros
escravizados e contra opressões globais.” Com essa afirmação, a autora
"Indubitavelmente, mulheres negras participaram como marinheiras das primeiras
viagens transatlânticas, carregando consigo identidades políticas que buscavam a
diversidade e a liberdade dos negros escravizados. Elas estavam unidas na luta
contra opressões globais, onde a busca por libertação não distinguia entre naufrágio
- referindo-se à adversidade enfrentada durante as viagens - e sufrágio - o direito ao
voto ou participação política. Essas mulheres negras desempenharam um papel
fundamental em movimentos de resistência e reivindicação de direitos humanos."
A interpretação destaca o papel das mulheres negras em importantes
momentos históricos, como as primeiras viagens transatlânticas, que foram
marcadas pelo tráfico de escravos e a exploração de povos africanos. A afirmação
aponta para a diversidade de identidades políticas dessas mulheres, que lutavam
pela liberdade dos negros escravizados e contra opressões que afetavam as
comunidades negras globalmente.
O termo "naufrágio e sufrágio" é usado de forma simbólica para representar
as dificuldades e lutas enfrentadas pelas mulheres negras na busca por liberdade e
igualdade. Enquanto o naufrágio pode se referir aos desafios e perigos que
enfrentavam durante as viagens transatlânticas, o sufrágio representa o direito ao
voto e a participação política que também buscavam alcançar a liberdade e a justiça.
Essa interpretação reconhece a importância histórica das mulheres negras na
luta contra a opressão e destaca sua resiliência, resistência e contribuições
significativas para os movimentos de emancipação e direitos civis ao longo da
história.

3. A “escrevivência” de mulheres negras: a literatura de Conceição


Evaristo e Cristiane Sobral.

Conceição Evaristo e Cristiane Sobral são dois nomes muito importantes na


literatura brasileira contemporânea, pois suas obras são escritas a partir do conceito
criado por Conceição Evaristo, denominado “escrevivência”. Para Evaristo, a
escrevivência parte de uma escrita baseada nas vivências individuais da escritora, o
que abrange suas experiências coletivas e sociais, sendo transferidas para sua
escrita literária.

4. A interseccionalidade nos contos de Conceição Evaristo e Cristiane


Sobral.
Para nossa pesquisa, fizemos um recorte dos contos “Maria”, de Conceição
Evaristo, e “Tapete voador”, de Cristiane Sobral.

4.1. Maria, de Conceição Evaristo.

No conto “Maria”, de Conceição Evaristo, a personagem principal vivencia o


dilema de muitas mulheres brasileiras: uma mulher negra, mãe solteira, que trabalha
como empregada doméstica. O conto inicia com Maria terminando seus afazeres do
trabalho e vai para casa, feliz, pois consegue levar sobras de comidas para seus
filhos, como uma pera, que segundo ela, seus filhos nunca haviam comido.
Ao entrar no transporte público, Maria é surpreendida por um assalto, no qual
um dos assaltantes era o seu ex-marido. Durante o diálogo rápido entre os dois, é
nítido o abandono desse homem para com a mulher e seus filhos. Após esse
abandono, o homem realiza uma única ação significativa: poupar a mulher do
assalto. Porém, essa ação tem consequências negativas para Maria: as pessoas
presentes naquele transporte público acreditam que Maria era cúmplice, pois foi a
única poupada. Com isso, Maria é vítima de violência e insultos racistas. Apenas por
estar naquele lugar, a culpa recai sobre ela, que é agredida até a morte.
Nesse conto, vemos a interseccionalidade presente nas relações de opressão
que essa mulher enfrenta, pois o fato de ser uma mulher, negra e pobre a faz ficar
vulnerável à violência.

4.2. Tapete voador, de Cristiane Sobral.

No conto “Tapete voador”, de Cristiane Sobral, vemos mais uma vez a


representação da mulher negra. Mas aqui, a violência se dá quando ela precisa
deixar sua identidade de lado para conseguir subir de cargo na empresa em que
trabalha, mesmo sendo competente no que faz. Aqui vemos mais uma vez os fatores
de gênero, raça e classe interligados.

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