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1.

3 O feminismo negro, as pautas raciais e a interseccionalidade

Embora a civilização não tenha iniciado nos Estados Unidos, tomamos ele
como referência para o início dos movimentos feministas e os movimentos do
feminismo negro, eles são distintos enquanto consituição e limites, que são
definidos a partir das mulheres que fazem parte desse movimento.
Em 1960 o movimento pelos direitos civis chega ao auge nos Estados
Unidos, ano que é marcado como crucial na luta dos cidadãos negros e negras por
igualdade e direitos civis no país. Mesmo com os avanços e conquistas (Lei dos
Direitos Civis - 1964), dentro do movimento foi percebida a necessidade de se
discutir as questões de discriminação e gênero que eram inerentes ao movimento,
lembrando que a história americana trazia em seu DNA ainda os resquícios da
escravidão de homens e mulheres negras.
Este foi o contexto necessário para que o feminismo negro começasse a
tomar forma e partisse para um percurso distinto, isto porque, o preconceito racial e
o sexismo não estava somente na sociedade como um todo, as mulheres negras
enfrentavam tais práticas no núclo das próprias organizações de direitos civis. O
confronto estava na falta de reconhecimento das experiências que elas já haviam
passado, as ideias e propostas refutadas e como uma prática colonialista, eram
invisibilizadas.
O movimento feminista da segunda onda ganhava força nesta época,
concentrando sua atenção na busca pela igualdade de gênero e nos direitos das
mulheres, porém, na maioria das vezes atuava de forma excludente e negligente
com as questões que eram específicas para as mulheres negras.
Audre Lorde, bell hooks e Angela Davis são as vozes e as palavras que
emergem dentro do feminismo negro. Em seus trabalhos elas articulam de forma
categórica as intersecções que surgem quando pensamos em raça, gênero e
classe. "A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação", um ensaio de Audre
Lorde onde ela apresenta a diferença e a diversidade de experiências dentro do
feminismo e o quanto isso é importante para as mulheres negras, enquanto
representatividade de presença e das vozes que até então estavam silenciadas.
"Mulheres, Raça e Classe - 1981" foi a contribuição de Angela Davis. Sua
imagem sempre esteve associada ao ativismo político, à luta pelos direitos civis e

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pelo fim das opressões de raça e gênero. Nesta obra ela intersecciona essas três
dimensões dando destaque ao papel fundamental que as mulheres negras tiveram
no percurso da luta pelos direitos civis.
bell hooks, em seu turno, enfatizou a necessidade de um feminismo que
fosse inclusivo e que reconhecesse as experiências únicas de mulheres de
diferentes origens raciais e culturais. As ideias convencionais sobre feminismo
foram desafiadas pelo seu trabalho e promoveu a compreensão das intersecções de
raça e gênero.
A historicidade brasileira é marcada por inúmeras contradições, entre
aquilo que é narrado e o que foi de fato. Neste sentido, tivemos capítulos que
foram escritos levando em consideração a lente colonizadora que de forma
reiterada atua para que os apagamentos aconteçam e prevaleçam apenas os
bons exemplos que eles deixaram para nosso país. Entre os apagamentos, estão
as histórias das mulheres negras, que aqui já aportaram, sobre os efeitos do
processo de doutrinação que sofriam nos navios negreiros.
Desde então as mulheres assim como os homens passam pelo processo
de assujeitamento, deixavam de ser quem eram para se tornarem “aquilo” que
determinasse, mas sobretudo, um produto de comercialização inicialmente, mas
que com o passar dos tempos transfigurou para outras condições não
humanizadas.
Com base nos registros históricos, a Escravidão no Brasil começou após a
descoberta, quando os colocanizadores perceberam que os povos originários não
eram mão de obra suficente, evidente que nesse momento nem se quer falavam
em direitos das mulheres e dos homens negros.
O movimento feminista negro no Brasil tem raízes históricas profundas que
remontam ao período da escravidão e à luta das mulheres negras por liberdade e
direitos. No entanto, o movimento feminista negro contemporâneo começou a
ganhar visibilidade e força significativa a partir da década de 1970.
Entre os momentos mais marcantes está o I Encontro Nacional de Mulheres
Negras realizado em 1988 deste ato surgiu o Grupo de Trabalho da Mulher Negra,
que foi responsável pela articulação das demandas das mulheres negras, tal como
nos EUA, as necessidades das mulheres negras eram colocadas à margem pelo
movimento feminista que atuava de forma mais ampla.

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Importa apontar que neste período (1988) surgiu o Geledés - Instituto da
Mulher Negra, uma organização composta por mulheres negras e fundada por
Aparecida Sueli Carneiro, filósofa, escritora e ativista social.

https://www.geledes.org.br/nao-da-para-falar-de-feminismo-sem-a-mulher-negra-diz-sueli-carneiro/ acesso em 29/09/2023 às 20:41.

A trajetória de Sueli Carneiro (1950-) e do feminismo negro brasileiro estão


entrelaçadas, a sua abordagem teórica permitiu que uma maior compreensão das
questões raciais e de gênero no país. Além do discurso militante ativo, têm a sua
contribuição para a academia denunciando o racismo e o sexismo na sociedade
brasileira, seus discursos e frequentemente seus escritos destacam as opressões
enfrentadas pelas mulheres, desafiando os estereótipos e preconceitos enraizados.
Uma das características de vanguarda de Sueli Carneiro é o incentivo ao
empoderamento feminino negro, inspirando mulheres a promoverem mudanças em
suas comunidades.
O movimento feminista negro começa a ganhar mais adeptos e com isso se
fortalecendo na luta contra o racismo e o sexismo, defendem ainda a igualdade de
gênero e que se reconheça a contribuição das mulheres negras para a contrução da
sociedade brasileira.
Quanto ao percurso histórico propomos nesta tese uma linha do tempo com
nomes que trouxeram suas contribuições para o feminisno negro de diferentes
formas, seja pelo ativismo ou por outras artes, vários foram os nomes que atuaram
e atuam em um movimento forte e com traços de resistência.

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Carolina Maria de Jesus (1914 - 1977), em seus escritos apresentou as
dificuldades que afetam as mulheres negras e pobres nas favelas. Em 1960
publicou Quarto de Despejo: Diário de uma favelada.
A contribuição masculina para o feminismo negro veio através de Abdias do
Nascimento (1914 - 2011) que com o Teatro Experimental Negro fez a promoção da
cultura afro-brasileira destaque para a luta contra o racismo. Um dos desafios que o
grupo apresentou ao Brasil foi a quebra dos estereótipos raciais e passou a dar
visibilidade para as atrizes negras da época.
Suas manifestações eram artísticas e militantes promovendo a valorização
da identidade negra, seu trabalho contribuiu para a promoção da autoestima,
contribuindo para que as mulheres negras se reconhecessem como parte essencial
da luta contra o racismo e sexismo.
O legado de Lélia Gonzalez (1935 - 1994), é inspirador para várias
gerações de feministas no Brasil e no mundo, é uma fonte de inspiração para
aqueles que lutam por igualdade de gênero e racial. Entre suas contribuições está a
análise crítica entre a intersecção de raça, gênero e classe social, argumentando
que estes três aspectos estão interligados de forma intrínseca afetando a vida das
mulheres negras que devido a essa condição enfrentam opressões e violências.
Co-fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU), desempenhou papel
significativo na articulação do movimento e na promoção da consciência política
entre os afrodescendentes no país. Lugar de Negro foi publicado pela primeira vez
em 1982, com uma coletânea de textos que abordam as condições sociais que
negras e negros enfrentam no Brasil.
O legado de Benedita da Silva (1942) é o resultado de anos de luta das
mulheres negras no Brasil, sendo ela a única mulher negra a ser eleita como
governadora de um estado no Brasil. Entre suas pautas estavam a luta contra à
desigualdade racial, discriminação e a ausência de políticas públicas para combater
esses problemas. A luta por justiça social para as pessoas negras em situação de
vulnerabilidade sempre foi uma das suas “bandeiras”. O discurso da
interseccionalidade foi reconhecido por ela compreendendo a interação entre as
diferentes formas de opressão.
Elizete Lopes da Silva (1953-1994): Elizete Lopes da Silva, também
conhecida como Liliam Negra, foi uma ativista que desempenhou um papel ativo no

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Movimento Negro Unificado e na promoção dos direitos das mulheres negras. Ela
foi uma das primeiras a articular a necessidade de um feminismo negro no Brasil.

1.3.1 Porque o movimento feminista negro é relevante?

O movimento feminista não incluiu as causas raciais em sua formação, ou


seja, as mulheres brancas mantinham as práticas de racialização das mulheres
negras, mesmo em um movimento que buscava por igualdade e oportunidades,
porém não para todas.
Tanto nos EUA como no Brasil o movimento feminista negro surge para que
as mulheres negras tenham suas questões apresentadas e não mais silenciadas e
exluídas das pautas sociais e políticas.
O processo discriminatório e excludente não encerrou com a escravidão, da
mesma forma que as práticas de racismo que ainda são constantes em nossa
sociedade. Quando o feminismo negro passa a clamar por espaço ele enfrenta
vários tipos de resistência, dos homens que não queriam perder seus privilégios
masculinos de abusar, açoitar e matar as mulheres negras, das outras mulheres,
que não queriam disputar espaços e assim perpetuar suas posições sociais e
profissionais e do próprio movimento negro como um todo que em sua concepção já
contemplava todas as pautas em suas discussões.
A busca por igualdade de gênero e raça ainda é um tabu que não deixa de
ser pautado nos trabalhos acadêmicos, na sociedade, dentro dos espaços de
trabalho, nos grupos de pesquisas e tantos outros espaços. Enquanto não se
alcançar o devido equilíbrio, esta ainda será a bandeira do movimento feminista
negro, dos pesquisadores que se interessam pela causa da mulher negra e por
outras entidades que buscam por uma sociedade mais justa.
As mulheres negras estão em busca de visibilidade e reconhecimento, as
experiências que passaram e passam não podem ser apagadas do contexto social
como se fosse uma forma de esconder o passado sombrio que constitui nosso país
e pior, eliminar a presença delas como se não fizessem parte da construção do
mesmo. A tentativa de eliminar a história das mulheres negras está no fato de que
elas eram tratadas de formas diferentes das demais mulheres.
Eram escravas, esse é o primeiro aspecto a se considerar. Chegaram nos
navios de tráfico humano, nas piores condições que se pode considerar para um ser

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humano. No percurso já sofriam tantos abusos físicos que ao descer destas
embarcações suas identidades já não existiam mais. Foi realizado um trabalho
massivo por parte do escravizador no intuito de tornar homens negros e mulheres
negras dóceis para o processo que já estava preparado (HOOKS, 2020).
Dentro do processo escravagista, as mulheres negras eram percebidas com
interesses diferentes pelos homens brancos, em determinado momento eram
tratadas como mão de obra para o processo produtivo, em outros momentos como
objetificação sexual, mas nunca com tratamento humano adequado, sempre com a
manutenção da condição de subjugação e das diversas violências que eram
praticadas contra elas.
Mesmo após o período de escravidão, elas ainda são vitimas dos mesmos
esteriótipos daquela época e se ainda acontece, demonstra que socialmente ainda
não evoluímos ao considerar coletivamente que a mulher negra serve apenas para
o ato sexual, para atender em trabalhos marginais, que pode ser morta ao encerrar
um relacionamento ou que pode ser presa e violada por ser favelada ou periférica.
Não incluir as pautas raciais relativas às mulheres negras dentro do
feminismo dominado por mulheres brancas é invisibilizar as experiências das outras
mulheres e pensar em desenvolver um modelo colonialista de sociedade.
Contudo, o processo não foi tão brando assim, as mulheres negras desde o
período de escravidão se mostravam resistentes aos ímpetos escravagistas, haviam
revoltas, fugas e até mesmo suícidios para que seus corpos não fossem mais
tratados de forma brutalizada. Como exemplo destas manifestações de resistências
surgiram os quilombos, que eram redutos de negras e negros fugitivos das fazendas
onde o processo de escravização aconteciam.
O portal da Fundação Geledés, traz uma lista de 17 mulheres1 que foram
imprescindíveis para o processo de resistência durante a escravidão no Brasil e o
feminismo negro vem para dar continuidade à essa luta, porém, a revolta hoje se faz
através da presença nos espaços que antes não se podiam alcançar.
Além da busca por respeito e visibilidade, a vida das mulheres negras está
profundamente marcada pela luta constante contra o preconceito racial e o sexismo,
duas formas interligadas de opressão que se entrelaçam e se manifestam de

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Disponível em
https://www.geledes.org.br/17-mulheres-negras-brasileiras-que-lutaram-contra-escravidao/?gclid=Cj0KCQjwjt-oB
hDKARIsABVRB0zFkM1N8WK0h5LZHHTPvXDenTqiS8CyszNAeLDr4NQ8DNZV8B6jsPgaAnoREALw_wcB.
Acesso em 30/09/2023

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maneira simultânea e complexa. Essas mulheres enfrentam o desafio de navegar
por um cenário social que, muitas vezes, as coloca em desvantagem tanto por
causa de sua raça quanto por causa de seu gênero.
O preconceito racial impõe às mulheres negras estereótipos negativos,
discriminando-as com base em sua origem étnica, limitando suas oportunidades e
frequentemente expondo-as a injustiças sistemáticas. Por outro lado, o sexismo
perpetua a desigualdade de gênero, subjuga-as a normas e expectativas de
comportamento restritivas e, por vezes, as vitimiza em situações de violência de
gênero.
A interseção dessas duas formas de opressão cria um panorama desafiador
que exige abordagens igualmente complexas para enfrentá-lo. O feminismo negro
surge como uma resposta vital a essa realidade, promovendo uma abordagem mais
completa e eficaz na luta contra esses desafios interligados.
O feminismo negro reconhece que a opressão racial e de gênero não podem
ser tratadas separadamente, pois se entrelaçam nas experiências de vida das
mulheres negras. Ele se esforça para ampliar a conscientização sobre as
intersecções, desafiando não apenas o racismo e o sexismo, mas também o
racismo dentro do movimento feminista e o sexismo dentro do movimento negro.
Essa abordagem inclusiva e interseccional não apenas dá voz às mulheres
negras, mas também busca criar espaços e oportunidades que promovam sua
emancipação, reconhecimento e igualdade em todos os aspectos da sociedade. Em
última análise, o feminismo negro representa um compromisso com a justiça social,
a diversidade e a equidade, que não só beneficia as mulheres negras, mas
enriquece a luta por um mundo mais justo e igualitário para todas as pessoas."
O movimento feminista negro, com sua perspectiva e seu compromisso com
a justiça social, abraça a importância de construir pontes com outras comunidades e
movimentos que compartilham objetivos e desafios similares.
Essa abordagem visa a promoção da solidariedade entre mulheres de
diferentes raças, origens étnicas, culturas e histórias de vida, reconhecendo que a
opressão e a desigualdade podem se manifestar de maneiras diversas, mas muitas
vezes entrelaçadas.
Ao construir essas pontes, o movimento feminista negro não apenas se
fortalece internamente, mas também enriquece o movimento feminista como um
todo. A colaboração e a solidariedade entre diferentes grupos de mulheres ampliam

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a capacidade coletiva de criar mudanças significativas em questões que afetam
mulheres em todo o mundo.
Essa solidariedade transcende barreiras e se manifesta em várias formas de
cooperação, como alianças em campanhas, coalizões em causas comuns e o
compartilhamento de conhecimentos e experiências. Isso não apenas agrega força
política, mas também enriquece a compreensão mútua e promove um diálogo
intercultural valioso.
Além disso, essa abordagem inclusiva e colaborativa não se limita apenas a
questões de gênero. O movimento feminista negro também busca se conectar com
movimentos que lutam contra outras formas de opressão, como o movimento
LGBTQ+, movimentos indígenas, movimentos pelos direitos das pessoas com
deficiência, entre outros.
Essa convergência de esforços não apenas reforça a causa da justiça social,
mas também destaca a interconexão de todas as lutas por igualdade e direitos
humanos.
Enquanto as mulheres brancas lutavam por igualdade, as mulheres negras
estavam lutando pelo direito de viver. As condições sociais são distintas, algumas
mulheres negras são rejeitadas pelas empresas por terem filhos, são negligenciadas
pela justiça quando perdem seus filhos para a violência urbana, abandonadas pelos
companheiros quando engravidam, porém esse é um ponto em comum com as
mulheres brancas, o abandono conjugal, porém em maior número com as mulheres
negras, estão nos maiores índices de violência doméstica quando se pesquisa pelos
dados e pesquisas realizadas seja pelo IBGE, IPEA e outros institutos.

1.3.1 A interseccionalidade e o efeito na vida das mulheres negras.

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