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Uma história de lutas:

Do movimento negro às organizações de mulheres negras


Por Douglas Xavier
Graduando em Jornalismo
Universidade Federal da Paraíba

Resumo:
Trazemos, neste artigo, um apanhado histórico das primeiras manifestações do povo negro,
datadas pelo surgimento das associações voltadas para a causa racial. Passamos pela construção
do Movimento Negro Unificado, importante marco para os negros no Brasil, significando diversas
conquistas. E, na seqüência, destacamos a questão atual da mulher negra no país, também
descrevendo o percurso de suas primeiras organizações, segundo indícios encontrados em
pesquisas. Nesse último ponto, tratamos, em especial, do Grupo de Mulheres Negras da Paraíba –
Bamidelê, ONG localizada na cidade de João Pessoa, atuante desde 2001 no Estado.

Palavras-chaves:
Associações de Negros, Movimento Negro Unificado, Mulheres Negras, Bamidelê.

Introdução

A trajetória do movimento negro no Brasil, ou pelo menos o que inicialmente


podemos identificar como posição de protesto dos homens e mulheres de cor1,
não teve, como se pensa, sua gênese na década de 1970, durante a reabertura
democrática; período em que eclodiram diversas “revoluções” na sociedade
brasileira. Muito antes de existir um movimento negro de base sólida, que surgiu
concomitantemente à aparição dos movimentos sociais e organizações sindicais,
a questão racial já na década de 20 ganhava porte de luta social das classes
subalternas2.
A rigor, não se tratava de um movimento, mas de incitações da parte de
grupos formados por negros insatisfeitos com a “liberdade” que lhes havia sido
concedida, com a exclusão social enfrentada pela população de cor, e as normas

1
Termo preferível a negro/negra nas primeiras décadas do século XX. Ver em Fernandes (1978).
2
Ribeiro (2006, p. 191-193) diferencia a sociedade em quatro grupos: classes dominantes, setores
intermediários, classes subalternas e classes oprimidas. Nestas últimas estariam enquadrados os
negros, mendigos, moradores das favelas, analfabetos e, segundo Ribeiro, aqueles incapazes de
se organizarem e reivindicarem. Logo, consideramos que a organização do povo negro partiu
daqueles que se achavam nas classes subalternas, entre assalariados rurais e o operariado.

1
sociais impostas brandamente pelas classes dominantes. O fim do escravismo
significou para eles, de um lado a quebra das correntes de ferro, mas de outro o
impedimento de exercer sua plena liberdade. Uns, foram absorvidos pela
sociedade de classes3. Porém, grande parte ficou à míngua, compondo as classes
oprimidas; sem emprego, sem sustento.
Os negros e negras que, de imediato à libertação ou mais tarde,
conseguiram se integrar à sociedade do trabalho, novamente tiveram como função
o servir. Trocaram os senhores feudais pelos senhores das cidades. Isso em
conseqüência da migração acarretada após a promulgação da Lei Áurea. A
mulher, na maioria das vezes, acabava trabalhando como empregada doméstica
em casas de famílias abastadas, assumindo condição de submissa.
Em protesto a esse tipo de situação pela qual os negros passavam,
submetendo-se ao empregador de maneira a repetir a relação existente entre
senhor feudal e escravo, que surgiram as primeiras aspirações de organizações
no meio dessa população. A motivação residia no anseio de experimentar a
verdadeira liberdade, ou seja, de poder ter, poder ser, de igual para igual. Em
outras palavras, de estar integrado no quebra-cabeça da sociedade – fazer parte
dela.
Tal era a realidade da época, que se falava numa “segunda abolição”, a fim
de eliminar a discriminação racial da sociedade, dissipando as diferenças sociais.
Mas a idéia de discriminação ou segregação era ignorada pela ampla maioria das
pessoas das classes privilegiadas, e até mesmo entre alguns negros. Como se o
fim da escravidão fosse suficiente para se afirmar que o Brasil era um país
ajustado, onde os negros gozavam de liberdade.
Florestan Fernandes (1978) revela as mobilizações de grupos negros
durante a primeira metade do século XX em São Paulo, organizados em prol da
“tomada da consciência, de crítica e de repulsa à situação do negro”. Essas
associações existiram no período compreendido entre 1927 e 1945, porém muitas
tiveram curta duração; foram poucas as que deram continuidade às suas
atividades.

3
Fernandes (1978)

2
Esses primeiros “movimentos” são descritos pelo sociólogo (1978, pág. 27),
a partir de determinados requisitos:

requisitos psicosociais e sócio-culturais dos movimentos sociais do


‘meio negro’ em termos: 1) da ressocialização do negro e do mulato;
2) da compreensão alcançada de que o preconceito e a
discriminação raciais são ‘problemas sociais’ e devem ser tratados
como tal; 3) do aparecimento de formações societárias que serviriam
de base à organização e à expansão dos movimentos; 4) de
polarizações sócio-dinâmicas, como o chamado “preconceito do
negro”; 5) da radicalização do ‘mulato’; 6) da influência construtiva
dos movimentos sociais com agências de diferenciação de papéis
sociais e de controle social.

Uma das entidades criadas, de acordo com o levantamento impetrado por


Florestan Fernandes em seu estudo, foi o Centro Cívico Beneficente Senhoras
Mães Pretas. Esse registro nos leva ao pressuposto de que havia, ante aquele
contexto, a auto-percepção das mulheres negras quanto a suas especificidades na
luta social. Eis um indício que nos esclarece outro ponto: as mobilizações da
mulher na perspectiva étnica não é um fenômeno recente, das últimas décadas.
Como no caso do movimento negro, cuja semente germinava na primeira metade
do século, assim aconteceu também à causa da mulher negra.
Entretanto, as associações de negros centravam suas discussões e
reivindicações, não na mudança das estruturas sociais4, mas no anseio de tornar
o negro paritário ao branco, ou seja, de integrá-lo às classes. Os grupos negros
daquela época não lutavam contra a estrutura social, e sim com o objetivo de
alcançá-la. Reside nisso, de acordo com as palavras de Fernandes, uma das
razões pela qual esses “movimentos” foram enfraquecidos e não resistiram, tendo
muitos deles desaparecido.
Os adventos da crise de 1929 e da Revolução de 30 causaram mudanças
na sociedade, provocando uma atualização de concepção do protesto negro. Os
“movimentos” que até aquele momento andavam em conformidade com as
estruturas sociais estabelecidas pela existência das classes dominantes, e que

4
Termo muito utilizado por Fernandes (1978) e Ribeiro (2006); refere-se à hierarquia das classes
de uma sociedade, que Darcy Ribeiro representa como um losango.

3
lidavam pacificamente com as dissensões sociais, imprimiram um novo teor
político às suas reivindicações.
Inicialmente, os negros viam, naquele cenário de alterações políticas e
econômicas do país, uma esperança. Como se o momento histórico fosse capaz
de abrir portas para a subversão das diferenças sociais entre brancos e negros.
Porém, logo a esperança se desfez, pois o quadro permanecia imutável.
Entre as entidades reivindicativas mais expressivas desse segundo
momento esteve a Frente Negra Brasileira, criada em 1931; com uma atuação
mais política e engajada. Através dessa nova organização, florescia a consciência
da luta política particular da negritude. A Frente propunha a união entre todas as
associações e grupos de formação negra, convocando-os a intervir no cenário
político nacional, como vemos em seu manifesto, citado por Florestan Fernandes
(1978, p. 30):

Unamo-nos, então, Patrícios! Unamo-nos, Associações Negras, para


sermos força social, força moral, força econômica. FORÇA POLÍTICA, que
possa ajudar os Poderes Nacionais a serem nacionais e a resolver o nosso
problema no que compete à esfera deles e para virmos a ser nós mesmos
também uma parcela do Poder Público num sentido radicalmente
nacionalista, defendendo todas as reivindicações que favoreçam ao Negro
e ao Brasil (...)

Em outro trecho da obra de Fernandes, identificamos a voz de esperança


da FNB com o momento político do país, na década de 30, em que frisa também a
percepção da causa da mulher negra (p. 35):

“Uni-vos, pela elevação moral, intelectual e econômica da Raça! Pela


Dignidade da Mulher Negra! Pela dignidade e progresso do trabalhador
negro! Pela afirmação política da Gente Brasileira na Constituinte quando
vier e depois da Constituinte que vier. Pelo Brasil de nossos avós!”

Apesar do novo caráter mais incisivo, o embate pela questão negra nunca
chegou a se caracterizar em forma de onda de violência, como ocorreu nos
Estados Unidos5. A diferença se deu talvez pela própria distinção entre as
estruturas sociais brasileiras e as daquele país.

5
Franklin & Moss, Jr., 1989 traçam toda a história de lutas e conquistas dos negros americanos.

4
Para Florestan Fernandes as organizações de negros não configuravam
uma revolução, e sim um ensaio. Ele adjetiva a manifestação das associações de
negritude ora como “surda e insufocável” ora como um “movimento apático”. E por
esse último termo não consideramos essa insurgência do negro como a
formulação de um movimento. Seria, pois, contraditório um movimento apático,
sem ação.
No período do pós-guerra, as associações negras parecem não ter sido
muito expressivas. Essa inferência resulta das poucas referências ou registros a
respeito. Entretanto, Clóvis Moura (1992) aponta o ano de 1954 como um
momento de renascimento do negro, quando surgia, em São Paulo, a Associação
Cultural do Negro. De fato, ocorreram diversos eventos do segmento nos anos
seguintes.

Movimento Negro Unificado (MNU)

Reencontramos, no final da década de 1970, a manifestação do povo


negro, com a eclosão de uma forte organização – o Movimento Negro Unificado
(MNU), fundado em 1978, em meio ao contexto da Ditadura Militar que estava em
declínio no país. O MNU é resultado da efusão dos ânimos diante do assassinato
de Robson Silveira da Luz, trabalhador negro que foi agredido até a morte por
policiais, em São Paulo. O fato gerou fortes protestos dos movimentos negros, que
naquele momento iniciavam uma articulação ampla entre si.
Além do crime citado, diversas manifestações de preconceito e
discriminação racial, também em São Paulo, motivaram a mobilização dos negros
em direção à unificação de um movimento contra o racismo que se aplacava no
Brasil de maneira mais exacerbada naquele período de repressão militar. Um
exemplo disso, também marco do surgimento do MNU, é o caso ocorrido no Clube
de Regatas do Tietê, na capital paulistana, onde atletas negros foram impedidos
de utilizar a piscina do clube. A diretoria promoveu a segregação entre brancos e
negros no local.

5
Esses foram momentos críticos e bastante significativos para a luta dos
negros e negras brasileiros. Foi quando existiu claramente a opressão,
manifestada de forma violenta, como ocorreu nos Estados Unidos no início do
século XX, em que os negros americanos sofreram intensa rejeição e segregação
por parte da população branca.
Naquele país, podemos dizer que a discriminação assumiu caráter oficial.
Pois, vinha por parte dos próprios governos, que estabeleciam normas, como a
bem conhecida – da divisão dos lugares nos transportes públicos; estopim de uma
onda de violência nos Estados Unidos.
No Brasil, as manifestações negras não tomaram tão grande porte. Na
verdade, houve momentos violentos sim, mas por parte da repressão militar. A
resposta dos movimentos negros, ante aos casos aqui citados, foi de mobilização
e levantamento da voz de protesto, com a intenção de “mostrar a cara” e a força
do movimento negro, doravante unificado, desde aquele instante firmando suas
reivindicações.
Algo que importa ressaltar é a diferença entre os dois paises – EUA e
Brasil, em relação à questão racial e ao surgimento dos movimentos negros e
suas respectivas formas de atuação. O primeiro país apresentava uma sociedade
claramente racista e segregacionista. Os negros americanos bem sabiam da sua
condição, dos limites que lhes eram impostos, da existência da discriminação
racial. Já no Brasil, havia o silêncio, o preconceito velado. Assim como hoje,
quando ainda vivemos o mito da democracia racial6.
Talvez, estejam ai as razões que expliquem o porquê de lá ter havido
manifestações de caráter – em vezes – violentas, já que os negros americanos
eram verdadeiramente agredidos, e aqui termos tido um processo de protestos e
reivindicações mais brandas.
Porém, incitados pelos casos de racismo e pela repressão do Regime
Militar, os movimentos negros brasileiros elevaram a voz de protesto e imprimiram
mais força às lutas, sem, entretanto, agir de igual para igual, com violência
responsiva. O assassinato do trabalhador negro tornou-se um marco da unificação

6
Schwarcz. In: Negras Imagens (1996, p.153-157)

6
desses movimentos por um “combate” massiço contra o preconceito e a
discriminação racial.
Schwarcz (1996) identifica no Movimento Negro Unificado a postura que
não se encontrava nos grupos e associações de antes, na primeira metade do
século XX, pois o MNU “via na luta de classes a questão fundamental”. A autora o
descreve como aquele que

pela primeira vez, representava a existência de uma organização


negra, política e reivindicatória no país. (...) O que difere é o caráter
político e contestador do MNU, que surgia com propostas de
ressarcimento e de congregação da população negra

Dali por diante, o Movimento Negro Unificado mostrou-se bastante presente


na política no estado de São Paulo e brasileira, sendo, inclusive, uma das
entidades responsáveis pela criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
em 1983, que possui, hoje, uma comissão específica de Combate à Discriminação
Racial.
O MNU foi quem lutou incessantemente pela implantação da lei contra
discriminação racial no Brasil, que veio a ser promulgada em 19897, um grande
conquista para os negros e negras do/no Brasil. Essa lei passou a considerar
qualquer ato de discriminação contra homens, mulheres, crianças, adolescentes
ou jovens negros como um ato criminoso.
O MNU impulsionou o surgimento de outras organizações pelo Brasil. Na
Paraíba, já em 1979 surgia o Movimento Negro de João Pessoa (MNJP), que veio
a se consolidar no final dos anos 90, daí por diante denominado Movimento Negro
da Paraíba. O MNP abriu espaço para que diversos outros grupos surgissem com
o propósito de valorizar e defender o povo negro, hoje congregados dentro do
movimento maior.

7
Lei n.° 7.716, de 5 de Janeiro de 1989 – “Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou
de cor”.

7
A mulher negra

Uma causa bem específica é a questão da mulher negra - causa feminista,


mas não só; e a da negritude, mas não só. Numa sociedade machista e racista
como a brasileira, ser mulher negra é receber dupla carga de preconceito. Mesmo
que pareça reles a afirmação, a mulher negra é vitimada socialmente pelo
somatório da cor e do sexo, sendo, pois, duplamente discriminadas.
Se a condição do negro no Brasil é desfavorável, muito mais complicada é
a situação da mulher negra. Diversas estatísticas condensadas nos últimos anos
expõem o absurdo grau de exclusão das mulheres declaradas pardas e negras,
que estão quase sempre atrás, nas pesquisas de emprego e renda, assistência à
saúde etc., dos homens e mulheres brancos e dos homens negros, nessa ordem8.
Tal fato explica o porquê da tendência da (re)segmentação ou especificação em
direção aos movimentos feministas de recorte étnico-racial, ou o contrário,
movimentos étnico-raciais na perspectiva feminista.

A mulher negra está exposta à miséria, à pobreza, à violência, ao


analfabetismo, à precariedade de atendimento nos serviços
assistenciais, educacionais e de saúde. Trata-se de uma maioria
sem acesso aos bens e serviços existentes em nossa sociedade e,
em muito, exposta à violência. Entre as conseqüências extremas
desta situação está o seu aniquilamento físico, político e social que
chegam a atingir profundamente as novas gerações. A situação de
máxima exclusão pode ser percebida quando analisamos a
inserção da população feminina negra em diferentes campos:
9
social, político e econômico.

Como apresentado anteriormente, já na década de 1930, surgia uma


associação de mulheres negras, o Centro Cívico Beneficente Senhoras Mães
Pretas, sobre cujo trabalho não encontramos maiores referências, mas que tratava
provavelmente da temática da mulher negra. Em 1975, evidencia-se outra
mobilização, durante um encontro promovido pela Associação Brasileira de

8
Ver, em anexos, tabelas e gráficos.
9
Trecho de documento elaborado, no ano 2000, por organizações de mulheres negras em favor da III
Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância. Disponível
em: www.antroposmoderno.com. Consultado em 21 abr. 2008.

8
Imprensa (ABI), no qual um grupo de mulheres negras formulou um documento
contestando a condição desse segmento da sociedade.
Mas é, entre a década de 80 e 90, que os movimentos de mulheres negras
começaram a se formar e se consolidar no Brasil. Eventos em âmbito
internacional, já em 90 - Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento (Cairo,1994), Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing,
1995) , promovidos pela ONU, possibilitaram a mobilização das mulheres negras
de várias partes do mundo.
Em 1992, durante o I Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-
Caribenhas, realizado em Santo Domingos, instituiu-se a data de 25 de julho como
o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, comemorado com eventos
especiais pelas organizações de mulheres negras em todo o mundo. No Brasil, um
importante passo para o segmento foi a criação da Articulação de Mulheres
Negras do Brasil (AMNB), no ano 2000, rede composta por ONGs de todo o país,
que fortaleceu movimentos por todo o território brasileiro e influenciou novas
organizações.

Grupo de Mulheres Negras da Paraíba

Desde 2001, existe, em nosso estado, o Bamidelê – Grupo de Mulheres


Negras da Paraíba, que desempenha importante trabalho educativo em
comunidades da grande João Pessoa e outras localidades onde há concentração
da população negra carente. Seus principais eixos de atuação são a saúde e a
educação, principalmente no que concerne à questão da sexualidade e
reprodução, orientando jovens e adolescentes negras à prevenção de doenças
transmissíveis pela prática sexual (DSTs/AIDS), e disseminando diversos outros
conhecimentos, os quais encontram identificação na realidade das jovens e
adolescentes das referentes comunidades de atuação.

9
No site da entidade, no item quem somos, encontramos um resumo
explicativo do papel da Bamidelê e dos seus objetivos, em que se define como
uma ONG que
tem uma missão que se funde com o seu projeto político de
contribuir para a eliminação do racismo e do sexismo, assim como
promover debates e ações que fortaleçam a identidade e auto-
estima, sobretudo de mulheres afrodescendentes, culminando na
luta pela defesa e efetiva implantação dos Direitos Humanos em
nosso país.

Essa ONG voltada para a questão das mulheres negras surgiu dentro do
movimento negro local, como aconteceu à maioria das organizações desse
segmento. O motivo é notório: lutar por uma causa que é específica, e, portanto,
não encontra(ria) espaço adequado em qualquer outra entidade ou movimento de
discussões mais amplas. Uma organização feminista não compreende, em igual
grau, as necessidades e lutas de uma mulher que, além de ser vitimada pelo
sexismo, é também por sua cor. Assim como é também inconcebível que um
movimento negro, em geral, majoritariamente formado por homens, consiga
atentar, com precisão, para as questões das militantes na sua perspectiva
feminista.
A Bamidelê atua, então, pelos dois horizontes, pois como expõe, a sua
missão é “Contribuir para a superação do racismo e do sexismo buscando a
eqüidade de gênero numa perspectiva étnica”. A escolha do nome
(bah/mih/deh/leh) dessa organização é coerente com o seu objetivo; bamidelê
significa “esperança” num dos dialetos africanos. Esse conceito imbuído na
denominação se reproduz nos projetos desenvolvidos pela entidade; de
conscientização, disseminação do conhecimento e promoção de auto-estima.
Segundo duas das coordenadoras executivas da ONG, Solange Rocha e
Tertúlia Silva, que foram entrevistadas para efeito de estudo da ONG, a Bamidelê
não tem caráter assistencialista. Não obstante a ONGs de outros segmentos que
se acomodaram a esse papel, o Grupo de Mulheres Negras da Paraíba investe na
capacitação da população negra feminina, mas sem ser restritiva. Nada impede
que a ONG trabalhe com homens e pessoas declaradas brancas, pardas,
amarelas ou qualquer cor que seja.

10
A entidade se insere nas comunidades-alvo levando a assistência que é
necessária, como certa vez ofereceu, num dos eventos promovidos, sessão de
testes de diabetes para a população. Porém, sua intenção é estimular a ação
dentro das próprias comunidade, chamando-a à participação, à conquista da
cidadania, fomentando os conhecimentos e a multiplicação dos mesmos. O
destaque desse ponto é interessante, pois como afirma Cicília Peruzzo10 em seu
artigo “a cidadania é sempre uma conquista do povo. A ampliação dos direitos de
cidadania depende da “capacidade política” dos cidadãos, da qualidade
participativa desenvolvida”.
O trabalho educativo se dá, principalmente, por meio dos projetos alçados
pela Bamidelê nas comunidades Marcos Moura, Cruz da Armas, Conjunto dos
Motoristas – Alto do Mateus, Eucaliptos – Bancários, e Caiana dos Crioulos,
comunidade quilombola da cidade de Alagoa Grande. Na perspectiva da
comunicação comunitária, a ONG realiza oficinas nessas localidades, com o
objetivo de formar jovens lideranças para exercerem o papel de multiplicadoras de
conhecimento in locus. Dessa maneira, os projetos implementados pelo Bamidelê
têm amplo alcance às populações, sobretudo negras, das comunidades-alvo.
Além desse trabalho direto com as comunidades, a preocupação com a
saúde se estende aos projetos de pesquisa e acompanhamento da assistência
médico-hospitalar no sistema público de saúde, observando o tratamento dado às
gestantes negras e à mulher negra em casos clínicos, inclusive relacionados a
doenças raras ou de maior incidência em pessoas negras, tais como hipertensão
arterial, diabetes melitos (mellitus), doença falciforme, glaucoma, miomas uterinos,
etc.
Entretanto, a linha de atuação do Grupo de Mulheres Negras da Paraíba
não se restringe ao campo da saúde. A educação é outro eixo importante, em
cujas discussões a Bamidelê tem se inserido, propondo cotas raciais, o ensino da
história e cultura africana e afro-brasileira etc.
Duas atividades anuais importantes para o Bamidelê são o Dia da Mulher
Negra Latino-Americana e Caribenha (25 de julho) e o Dia da Consciência Negra

10
Artigo Comunicação comunitária e educação para a cidadania, 2002.

11
(20 de novembro), que reúne toda a comunidade negra para celebrar a beleza da
negritude, as vitórias dos movimentos e manter acesas as reivindicações.

Considerações finais

A ausência da abordagem histórica dos protestos de grupos negros no


início do século XX tende a nos fazer acreditar que desde a abolição da
escravidão, em 1888, até o aparente nascimento do primeiro movimento negro no
Brasil, no final de 70, os negros viveram em acomodação com sua condição; com
a segregação racial silenciosa e camuflada, e crentes na inexistência da
discriminação, idéia muito assimilada pela sociedade atual.
Ao contrário, todas as organizações negras de hoje são resultantes de um
longo movimento nesse sentido. Desde as primeiras mobilizações, ainda que
politicamente fracas, passando pelos diversos congressos, seminários entre
outros eventos importantes para a discussão da questão étnico-racial, até a
formulação dos movimentos e, conseguintemente, das ONGs.
Foi a articulação desses movimentos que abriram espaço para que as
mulheres negras pudessem se reunir em função de seus anseios peculiares e
impulsionar o surgimento das primeiras organizações feministas negras. Hoje, é
uma tendência essa (re)segmentação, que favorece às lutas específicas. No
entanto, é tendência também dos movimentos contemporâneos o diálogo com os
movimentos maiores, assim como a articulação em organizações de âmbito
municipal, estadual, regional ou nacional.

Referências bibliográficas

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contemporâneo. In: Negras Imagens (1996, p.211-216)

12
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Negro Americans. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989.

MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1992.

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13
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Questão racial no Brasil. In: Negras Imagens (1996. p.
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WANDERLEY, Mariangela Belfioro. Metamorfoses do desenvolvimento de


comunidade. São Paulo: Cortez, 1998.

Sites consultados:

Associação das Mulheres Negras Brasileira: www.amnb.org.br

Blog do Movimento Negro da Paraíba: movimentonegropb.vilabol.uol.com.br

Blog do Movimento Negro Unificado: mnu.blogspot.com

Coletivo de Mulheres Negras: coletivodemulheresnegras.blogspot.com

Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos:


www.dieese.org.br

Grupo de Mulheres Negras da Paraíba – Bamidelê: www.bamidele.org.br

Mulheres Negras – do Umbigo para o Mundo: www.mulheresnegras.org

Organização Internacional do Trabalho – Brasil: www.oitbrasil.org.br

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: www.pnud.org.br

14
ANEXOS

15
Taxas de desemprego total das populações negra e não-negra, segundo sexo
Regiões Metropolitanas e Distrito Federal - 2001/2002

(em %)
Negra Não-negra
Mulheres Homens Mulheres Homens
Belo Horizonte 22,2 17,9 18,6 12,9
Distrito Federal 25,6 20,1 20,4 13,7
Porto Alegre 24,5 20,5 17,1 11,8
Recife 25,7 18,8 22,1 15,4
Salvador 31,3 26,2 22,2 16
São Paulo 26,2 19,9 18,8 13,3

Fonte dos dados: DIEESE/SEAD e entidades regionais. PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego
Elaboração:
DIEESE
Obs.: Cor negra = pretos + pardos. Cor não negra = brancos + amarelos

35
30
Negra Mulheres
25
Negra Homens
20
Não-negra Mulheres
15
10 Não-negra Homens
5
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16
Distribuição dos ocupados no setor "Emprego doméstico", segundo cor e sexo
Regiões Metropolitanas e Distrito Federal - 2001/2002

(em %)
Negra Não-negra
Mulheres Homens Mulheres Homens
Belo Horizonte 25,7 1 13,1 -
Distrito Federal 25,5 1,1 13,5 0,7
Porto Alegre 33,6 - 13,7 0,5
Recife 23,4 1,4 12 0,8
Salvador 23,5 1,4 6,7 -
São Paulo 30 0,9 13 0,6

Fonte dos dados: DIEESE/SEAD e entidades regionais. PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego
Elaboração: DIEESE
Obs.: Cor negra = pretos + pardos. Cor não negra = brancos + amarelos

40
35 Negra Mulheres
30
25 Negra Homens
20 Não-negra Mulheres
15
10 Não-negra Homens
5
0
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