Você está na página 1de 8

Henrique Cunha [uníor '

Movimento de consciência
EDUCAÇÃO
EM DEBATE
negra na década de 1970

[ BCH-UFC]
Resumo

Este artigo explora as raízes do movimento negro da década de 1970, aqui denominado ciclo do Movimen-
to de Consciência Negra. Advoga que precisamos de uma compreensão mais profunda das sobrevivências das asso-
ciações existentes no passado para compreensão de como são gestados os períodos e os grupos mais conhecidos na
atualidade. Chama atenção para a continuidade entre os anos de 1937, período da Frente Negra Brasileira, e os
anos de 1970, onde o movimento mais conhecido, mas não o maior, e nem mais importante, foi o Movimento Negro
Unificado Contra o Racismo, MNU, de 1979. A artigo é baseado no conceito de etnia afrodescendente, em
contraposição a idéia de raça social. Considera que a identidade étnica é baseada na história social e na cultura.
Define o movimento negro como um movimento complexo e multifacetado, indo além das definições correntes de
movimentos sociais.

Palavras-chave: Movimento negro, movimento de consciência negra, história do negro no Brasil.

Abstract

The Movement for Black Consciousness during the 1970s

This article analyses the roots of the black movement during the 1970s. The movement is called in
this article the Movement of Black Consciousness. It suggests that we need to understand in a more profound
manner the efforts to survive of past associations to understand how contemporary groups are governed. One's
attentions is called to the continuity between the years 1937 - the Brazilian Black Front - and the 1970s, when
the best known, but not the biggest or most important movement was the Unified Black Movement Against Rac-
ism - MNU. The article is based on the concept of Afrodescendent ethnicity against the idea of social race. It
considers the ethnic identity based on social and cultural history. It defines the Black Movement as a complex
and multifaceted one that goes well beyond the current definitions of social movements.

Key-words: Black movement, the movement for black consciousness, the black movement history in Brazil

1 Professor Titular da Universidade Federal do Ceará e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.

EDUCAÇÃO EM DEBATE. Ano 25. V 2 - W 46 - 2003 47


Falar de movimento negro no Brasil é falar histórico de alguns setores dominantes da socie-
do mais antigo movimento político do país. As dade sobre a história do Brasil e, principalmente,
suas primeiras expressões datam do século XVII, sobre a história do negro na sociedade brasileira
caso da Irmandade do Rosário do Rio de Janeiro os leva a dizer verdadeiros absurdos, tais como
e de outras irmandades existentes na Bahia, Per- que os movimentos negros seriam cópias impor-
nambuco, Sergipe, Minas Gerais, Piauí, Maranhão, tadas de idéias e de movimentos americanos ou
São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. africanos (FELINTO, 2001; GIL, 2003). Diferen-
Essas entidades foram a principal e mais im- temente do que sustentam essas afirmações, te-
portante forma de organização negra no país mos, no Brasil, forte e sólida tradição de pensa-
(SILVA, 2003). No mundo colonial, dominado mento negro que alicerça organizações políticas
pela Igreja Católica, não havia espaço para orga- e culturais diversas que, no conjunto, denomi-
nizações que não fossem aquelas vinculadas a namos de movimentos negros. Ao longo do
essa instituição. Assim, pelo país afora, funda- tempo, estas organizações passaram por crises,
ram-se irmandades e foram nelas que muitos ne- modificações e renovações, umas desaparece-
gros aprenderam a ler, escrever, realizar traba- ram, outras foram criadas, mas o fato é que nunca
lhos artísticos, promover a luta pela libertação e deixou de existir movimento negro no Brasil.
preservar a identidade cultural. Essas organizações são muito diversas e englo-
Nas irmandades exercia-se um "catolicismo bam muitas finalidades, sendo poucas as que se
de preto", que já vinha do cristianismo vivenciado concentram apenas na luta política do combate
anteriormente em algumas partes da Áfríca.? Esse ao racismo. Aquelas que fazem apenas o dis-
catolicismo também deu espaço à realização das curso político de combate ao racismo são mais
diversas religiões africanas de Candomblés e fáceis de ser identificadas pelo grande público
Umbandas, semelhantes às existentes aqui. Nas como parte do movimento negro. Por meio de
irmandades, libertos e escravizados tinham idên- um conjunto complexo e amplo de entidades,
tico tratamento: eram todos tratados apenas como onde a identidade afrodescendente é o princi-
membros. Elas representavam política e social- pal fator de concentração dos membros, temos
mente africanos e afrodescendentes. Ofereciam o ciclo de pensamento do pós-abolição, que dis-
proteção na velhice e um enterro digno para todos cute a inserção da população negra no mundo
os membros. Eram sepultados em suntuosas tum- do trabalho capitalista (CUNHA Jr. 1992). Neste
bas, dentro da igreja ou no seu quintal, acompa- ciclo de organizações criadas no pós-abolição, o
nhados do longo ritual da morte, em estilo africa- Rio Grande do Sul é pioneiro e sediou, em Pelotas,
no.' Política e administrativamente, as irmanda- importante organização do movimento negro,
des sempre foram independentes da Igreja Católi- constituída pelos membros do jornal Alvorada,
ca, constituindo administração e patrimônio pró- entre 1907 e 1957 (Santos, 2000). Este grupo
prio. Daí a excessiva pressão, no período republi- teve forte base operária e grande consciência
cano, exercida por essa Igreja para o fechamento coletiva, criou um eixo de pensamento socialista
ou incorporação dessas organizações. que teve reflexo em várias partes do país.
Na atualidade, com a sua aparição na mídia, Movimentos semelhantes tiveram origens
os movimentos negros passaram a ter mais visi- em diversas partes do Brasil, sendo os mais co-
bilidade e a população em geral se deu conta da nhecidos os que surgiram em São Paulo, Rio de
sua existência. Diversas formas de expressão e Janeiro, Pernambuco e Bahia. O jornal negro de
atuação atingiam diversos públicos. Tais movi- São Paulo, Clarim da Alvorada, que circulou en-
mentos nem sempre tiveram como principal fi- tre 1924 e 1937, teve grande importância, pois
nalidade o combate ao racismo, em muitos casos daí saíram pessoas e idéias que marcaram todo
a preocupação foi a cultura e a manutenção de restante do século. Vicente Ferreira, por exem-
formas de identidade negras. O desconhecimento plo, foi um dos principais oradores da causa

2 Devemos lembrar que o cristianismo é mais antigo na África que na Europa. Depois ele sofreu modificações fortíssirnas e se
europeizou, criou uma ideologia de dominação européia, que veio a tornar-se, a partir dos séculos XVIII e XIX, branco e racista
(TREVER-RUPER, 1965; Blyden, 1967; Gates, 1999).
3 Na África a morte é urna festa, na qual se contempla a dignidade em ter vivido neste mundo e se terem plantado as sementes da
continuidade (SANTOS, 1976).

48 EDUCAÇÃO EM DEBATE. Ano 25. V 2 - N". 46 - 2003


negra em praça pública, em São Paulo, entre as A transição de 1937 a 1970
décadas de 1920 e 1930. Originário do Rio de
Janeiro, onde era ativista do Partido Comunista, Entre o fechamento da Frente Negra Brasi-
rompeu com este partido por nele não encontrar leira, em 1937, e a abertura de um novo ciclo, o
espaço para discutir a especificidade da situação dos movimentos de consciência negra, em torno
do negro. Transferiu-se para São Paulo e militou do ano de 1970, existiu uma seqüência de mui-
ativamente no movimento negro até sua morte. tos movimentos espalhados por vários estados,
Foi personagem importante na formulação de um gerando perto de uma centena de grupos com fi-
pensamento negro independente e direcionado nalidades diversas. A literatura sobre movimen-
para a realidade dos negros brasileiros, mas den- tos negros não tem investigado esses grupos e,
tro de uma vertente socialista seguida pelos de- de modo geral, deixa a impressão de que houve
mais companheiros de imprensa negra. uma interrupção dos movimentos negros entre
O grande conhecedor da história do negro, 1937 e 1978 (FELIX, 1996; SILVA, 2000).
José Correia Leite, um dos maiores líderes do Os anos de 1920 e 1930 se caracterizaram,
movimento negro ao longo do século, também também, pela consolidação destes grupos cultu-
ez parte deste jornal. E também dele participou rais negros, como foi o caso das escolas de samba
o meu pai, Henrique Cunha, o militante negro e outros grupos carnavalescos. A nomeação de
mais velho do Brasil. O jornal Clarim da Alvorada tais grupos como carnavalescos não define em si
e as demais entidades existentes no meio negro os objetivos das agremiações. Elas reúnem prin-
os anos 20 estiveram intimamente ligadas à cipalmente negros, têm atividades contínuas du-
Fundaçâo da Frente Negra Brasileira. Esta última rante o ano todo, fazem festas e reuniões diver-
- i o principal movimento de massa da comuni- sas, mas têm evidência social ampla somente
de negra neste século. Teve sede em vários es- durante o carnaval. Mas a imprensa somente dá
os, conseguiu empolgar e unir um grande con- nota da existência delas durante o período pré-
- gente de pessoas e tornou-se tão forte que se carnavesco. O fato é que apesar da "invisibilidade"
registrou, em 1936, como um partido político de histórica, a rede de atividades de grupos negros
resentação da classe negra. na cultura ou na ação política associativa con-
A Frente Negra Brasileira nasce da existên- tinua muito intensa entre 1937 e 1970. Ocorre,
de um sem-número de pequenos clubes e or- porém, como procurei mostrar, que este período
ganizações espalhados pelo país, que já haviam foi pouco noticiado e pesquisado pelos historia-
- rmulado um discurso reivindicatório de respeito dores dos movimentos negros. Devemos, por-
melhoria da condição de vida da população ne- tanto, notar que muitos dos clubes e associações
Também reúne expressões da comunidade negras anteriores à Frente egra Brasileira con-
egra de pensamento de direita, grupos ligados tinuaram existindo, realizando as suas atividades,
pensamento católico conservador e grupos li- várias delas no campo da cultura e do lazer, da
dos à maçonaria. Lembre-se, por exemplo, que educação e mesmo do protesto negro. Um dos
continuadores do grupo de abolicionistas de problemas para a análise cientifica destes grupos
ís Gama eram maçons. Alguns negros ricos e é que falta um instrumental teórico adequado à
classe média alta, no início do século XX, eram especificidade do tema. Parece-me, portanto, in-
dos a grupos do pensamento católico conser- dispensável a produção desse instrumental para
ar e a setores militares também conservado- a compreensão do cotidiano político-cultural das
_A organização existiu entre 1931 e 1937 e populações negras no Brasil. As teorias dos mo-
bém teve opositores dentro da própria cornu- vimentos sociais e políticos têm se mostrado ina-
- de negra, além de divisões internas devido dequadas para a compreensão dos movimentos
divergências quanto à linha política da negros, dada a informalidade das organizações e
- emiação, mas com ela conviveram outras ins- a pluralidade de objetivos. Outro fato é que as
ições e grupos do movimento negro. Acabou populações negras, em função de serem reprimi-
ada por um decreto político da ditadura das, cultural e intelectualmente, têm sido leva-
as que extinguiu todos os partidos políticos. das a não valorizar devidamente os seus feitos.
é uma parte da história do movimento ne- Assim, as intensas manifestações políticas e cul-
que tem sido pouco difundida e sobre a qual turais por nós realizadas não têm sido suficien-
o se tem refletido. temente valorizadas e passadas para as páginas

EDUCAÇAO EM DEBATE. Ano 25. V 2 - W 46 - 2003 49


da História do país. Aprendeu-se com o escra- Mendes Pereira em sua dissertação de mestrado
vismo e com o racismo a se desvalorizar as coisas (PEREIRA, 2000). Trata-se de um tempo onde
de negros. Por exemplo, a expressão "trabalho de o traço distintivo dos movimentos negros com
negro" é ainda popularmente usada para se refe- relação aos dos períodos anteriores é o da ênfase
rir a trabalho mal-feito. É provavelmente por es- na aquisição de uma consciência negra e a pauta
ses motivos que a imensa produção de poesia e política e cultural dos grupos era despertar a cons-
teatro dos movimentos negros das décadas de ciência da importância do negro na sociedade
1940 e 1950 não figuram na história da cultura brasileira.
brasileira. Personalidades como a poetisa Ma- O movimento tinha como principal carac-
dalena de Souza, que figurava entre os diversos terística assumir o ser negro e valorizar a cultura
poetas da Associação Cultural do Negro de São negra, como também, reivindicar a melhoria da
Paulo (1954 -1965), permanecem desconhecidas situação socioeconômica dessa população. Um
do grande público. Autores de Teatro como Dalmo dos propósitos principais do período era a reali-
Ferreira, também do mesmo período, tiveram o zação de um movimento popular de expressão
mesmo destino da obscuridade. Mesmo intelec- negra. Como em todo movimento social, é im-
tuais negros reconhecidos no exterior, como Guer- portante reconhecer os seus antecedentes. De
reiro, que deveria ser considerado um dos pais da fato, a origem deste ciclo está nos movimentos
Sociologia moderna no Brasil, também ficam no anteriores, naqueles que continuaram depois da
desconhecimento (RAMOS, 1996). Frente Negra Brasileira. A este se somaram pe-
São diversos os marcos históricos da tran- quenos grupos de estudantes negros universitá-
sição entre os movimentos de 1937 e os de 1970. rios, operários e funcionários públicos que dis-
Os historiadores guardaram apenas a existência cutiam a relação entre os movimentos políticos
do teatro experimental do negro do Rio de Ja- de esquerda e o movimento negro. Foi um pe-
neiro, dirigido pelo professor Abdias do Nasci- ríodo em que também tínhamos muita informa-
mento. Mas deixaram de registrar o teatro de ção das lutas de libertação africanas e isto produ-
Solano Trindade, o teatro também experimental ziu uma consciência no.va de pertencimento ao
do negro de São Paulo e a realização do Congresso ciclo de lutas do povo africano. A consciência
da Juventude Negra, de 1949, em que, pela pri- negra levou a uma forte valorização de todos os
meira vez, se discute o acesso do negro à univer- elementos negros presentes na cultura nacional,
sidade. Não é de admirar a preocupação com o principalmente a filosofia e a religião africanas.
ensino universitário, uma vez que a universida- Candomblé e Socialismo eram discutidos em pra-
de no Brasil já nasce com participação de negros ças públicas, em pequenos grupos, em muitas
ilustres, como é o caso de Teodoro Sampaio, fi- cidades brasileiras (ARAÚJO, 1996). Eu mesmo
lho de escrava, engenheiro e geógrafo, fundador participei de vários desses grupos informais. As-
da Escola Politécnica da USp, ou Iuliano Moreira, sim chamados, sobretudo, porque era a época da
médico psiquiatra e um dos símbolos importan- repressão da ditadura militar e a formalização
tes desta área no Brasil. Todas estas palavras para levava a uma vigilância maior do Estado. Mas
explicar que o período de transição, entre 1937 e informais também porque esta era uma das ca-
1970, está registrado de forma precária nos tex- racterísticas dos movimentos negros. Um destes
tos sobre história dos movimentos negros. Vá- grupos políticos, por exemplo, se reunia todos
rios autores (DANTAS, 2001; FELIX, 1996; os domingos na Praça da República, em São Paulo,
CORREA, 1999; SILVA, 1991), saltam do pe- onde havia um grande movimento das artes plás-
ríodo do fechamento da Frente Negra Brasileira, ticas, que durou de 1968 a início da década de
em 1937, para o ato público do Viaduto do Chá, 1980, liderado por artistas negros ligados ao mo-
em 1978, sem se perguntar sobre as origens desse vimento popular, com laços com Solano Trindade,
ato político. e que iam aos domingos vender suas obras.
Ao período da história do movimento ne- Junto com artistas plásticos, em sua maio-
gro que vai de 1970 a 1990, vamos denominar ria negros, apareceram os escritores e músicos,
de "período da luta pela consciência negra". É também negros, e, com estes, o movimento polí-
nesse período que é elaborada uma "cultura de tico informal de consciência negra. Este imenso
consciência negra". A definição de "cultura de cons- movimento artístico de maioria negra, talvez pu-
ciência negra" foi proposta pelo professor Amauri desse ser considerado como um dos principais

50 EDUCAÇÃO EM DEBATE, Ano 25, V 2 - N°, 46 - 2003


movimentos artísticos do país no século passado. pos de teatro e dança (Cunha Jr.,1992), como
No início da década de 1980, o movimento vai também a procura da afirmação de uma literatu-
se descaracterizando, e vai crescendo a venda de ra autônoma e de expressão estética negra. O tea-
artesanato, doces e produtos semi-industriali- tro alimentou muitas das ações dos movimentos
zados. Um outro grupo informal se reunia às sex- negros nos diversos estados. Uma personalidade
tas-feiras no Viaduto do Chá, no centro de São significativa desse teatro de consciência negra é
Paulo, onde, entre 1953 e 1987, concentrava de a teatróloga, diretora de teatro e professora, Te-
dois a três mil negros para troca de informações resa Santos. Sua contribuição se estendeu a An-
sobre bailes, festas e passeios de fim de semana. gola, onde no início do governo do Movimento
Era um movimento de identidade negra espontâ- Popular de Libertação de Angola, dirigiu o Teatro
neo, sem lideranças e sem propósitos definidos. Nacional daquele país. A imprensa negra do pe-
Grupos com este teor informal existiram em todo ríodo fez várias tentativas de estabelecimento nos
o país. Lembro-me da existência deles no Rio de diferentes estados. O jornal clandestino A Árvore
Janeiro, em Salvador e em Porto Alegre, na Rua das Palavras circulou em São Paulo e Rio de Ja-
da Praia, às quintas-feiras. Por último, entre 1974 neiro. O jornegro, em São Paulo, ao lado do Simba,
e 1978, participei de um grupo que se reunia na do Rio de Janeiro, devem ter sido as principais
USp, na frente da ECA, de funcionários e estu- realizações desta década de 1970. Também de
dantes da universidade (CUNHA [r., 2002). grande importância foi o Afro-Latino-América as-
No início deste ciclo de movimento de sociado ao jornal Versus, sob a direção do jorna-
consciência negra, um grupo de grande impor- lista Hamilton Cardoso.
tância e determinante para formação das propos- A comunicação entre os grupos nos diver-
tas do período foi o grupo Palmares, de Porto sos estados foi bastante intensa durante toda a
Alegre, RS. Em 1971, este grupo já propunha a década de 1970. A idéia de dar maior unidade ao
comemoração do 20 de novembro como data de movimento negro se iniciou em 1974, entre São
importância para a comunidade negra em substi- Paulo e Rio e Janeiro, com visitas à Bahia e ao
tuição às comemorações do 13 de Maio. No Rio Rio Grande do Sul. Com o objetivo de criar mais
de Janeiro formou-se, em 1975, o IPCN, Insti- unidade, teórica e prática, entre os movimentos
tuto das Culturas Negras, que, dada a posição negros, foram organizados, em 19 4 e 19 6, dois
cultural da cidade, serviu de ponte para vários encontros entre os diversos grupos dos estados
movimentos no resto do Brasil. Em Niterói, o do Rio de Janeiro e de São Paulo. A idéia de uni-
grupo André Rebouças criou um pioneirismo de dade dos movimentos era uma nece sidade polí-
trabalho junto às instituições universitárias. Em tica da época, sobretudo, para fazer frente à di-
São Paulo, um grupo fundado em 1968, o CECAN, tadura militar. Todos os movimentos, operário,
Centro de e Arte e Cultura Negra, foi quem co- sindical e estudantil, discutiam a po ibilidade
mandou as ações e contagiou todos os grupos da unidade e isto se refletiu também DO movi-
políticos e de cultura negra do estado de São Paulo mento negro. Por outro lado, também o países
durante toda a década de 1970. Mas o grupo mais africanos discutiam a sua unidade em face das
importante desse ciclo de consciência negra nas- independências. Como vemos, estava na pauta
ceu em Salvador, em 1974, o Ilê Aye (CARDOSO política a unidade dos movimentos libertários de
DA SILVA, 2001). Este grupo tornou-se impor- diferentes gêneros e dimensões políticas. o es-
tante pela expressão estética criada e pela disse- tado de São Paulo, esta unidade dos movimen-
minação de informações sobre a África e a cultu- tos negros é dada pela criação, em 1976, de uma
ra negra, pelo combate ao racismo e também pela Federação das Entidades Afro-Brasileiras do Es-
ampla atuação na educação. É um dos grupos que tado de São Paulo - FEABESP. Esta reunia esco-
têm o maior número de membros atuantes. las de samba, clubes recreativos, grupos de tea-
Uma das principais propostas do ciclo de tro e grupos do movimento negro. Mas a princi-
consciência negra era atingir a grande popula- pal tentativa de unidade nacional dos movimen-
ção e construir um movimento negro popular. O tos negros só surge dois anos depois, em 1978,
Ilê Aiye foi um dos poucos grupos em todo o depois do ato público de protesto no Viaduto do
país a realizá-Ia. Chá. Esta manifestação foi articulada em virtude
Outra importante característica desse ciclo do assassinato do operário negro Robson Silveira
foi a formação de um número significativo de gru- da Luz pela policia e pela discriminação pratica-

EDUCAÇÃO EM DEBATE. Ano 25. V 2· W 46·2003 51


da pelo clube Tietê, de São Paulo, contra atletas duto do Chá, em 1978, representa uma síntese
negros. O ato foi realizado em 7 de julho de importante dos movimentos da década de 1970.
1978. A proposta, em caráter amplo, de um mo- Reuniu-se, na oportunidade, representações dos
vimento unificado contra a discriminação racial movimentos e entidades negras tidos como de
surge nas reuniões que se seguiram à realização direita e de esquerda, além de vários outros gru-
do ato e redunda na formação do Movimento pos externos ao movimento negro.
Unificado Contra a Discriminação Racial. Mas a Dentre os diversos grupos participantes do
unidade pretendida fracassa. De um lado os gru- movimento negro, alguns eram denominados de
pos negros conservadores, denominados grupos direita por dois motivos. Em algumas entidades
de direita, que participaram do ato público de as suas lideranças eram filiadas à ARENA, parti-
protesto, não aderem ao movimento em função do político da ditadura militar. Noutros casos,
da sua linguagem marxista popular. De outro, os membros desses grupos haviam cursado a Escola
grupos negros de esquerda mais radicais também Superior de Guerra, o que também era entendido
não aderem ao nascente movimento unificado em como designação de direita. Havia ainda outros
virtude da ausência da palavra "negro" na sigla e grupos sem apelo popular, como era o caso do
também da participação da Convergência Socia- GTPLUN, Grupo de Trabalho de Profissionais
lista. Os grupos artístico-culturais tiveram difi- Liberais e Universitários Negros. Além de con-
culdade em se inserir neste novo movimento de- gregar universitários negros em São Paulo, esta
vido às criticas a eles feitas durante o processo entidade produzia anualmente um concorrido
de discussão. Havia, então, uma dicotomia de baile de universitários calouros negros, denomi-
compreensão do cultural e do político, o que pro- nado baile do Burro Negro, e introduziu, com
vocou a saída parcial dos grupos de teatro negro. grande pioneirismo para a discussão e ações do
Como dissemos, o emergente movimento movimento negro, alguns temas como os do es-
unificado de 1978 não continha na sua sigla a tudo da história africana e da anemia faIciforme.
palavra "negro", porque o seu propósito era o Outro grupo desta ala dos núcleos de pouco
combate ao racismo por intermédio de uma frente apelo popular era o Clube Aristocrata de São
política ampla que reunia grupos de esquerda Paulo, que reunia negros da classe média alta.
externos aos movimentos negros, dentre eles a No Rio de Janeiro, nesta mesma década de 1970,
Convergência Socialista. Na visão dos grupos ra- formou-se o Clube Renascença, com propósitos
dicais, a Convergência Socialista era um grupo semelhantes aos do Aristocrata de São Paulo.
de universitários brancos, de classe média, preo- Citar a presença destes grupos é importante para
cupados com a teoria marxista e sem uma real mostrar a complexidade do movimento negro e
conexão com os ideais dos movimentos negros. da organização do ato público. Numa das reu-
Mesmo sem a unidade pretendida, o mo- niões de organização do ato de protesto, nós,
vimento formado recebeu a designação de unifi- estudantes negros universitários, acostumados a
cado, e tornou-se importante por ter - com gran- passeatas do movimento estudantil, temíamos
de habilidade - sintetizado os marcos teóricos pela repressão. Nesta reunião, um dos membros,
das propostas da década de 1970 com relação ao de um dos grupos de direita, disse textualmente
combate ao racismo. Embora nunca tenha con- que não nos preocupássemos com a repressão,
seguido aglutinar um número significativo de par- pois com o delegado do DOPS, a polícia política,
ticipantes, este movimento se reproduziu em ele conversava.
vários estados e realizou uma ação política ex- No espaço universitário, os negros, reuni-
pressiva na área dos sindicatos e dos partidos dos na PUC-Sp, também tiveram um papel signi-
políticos de esquerda. Deste movimento inicial ficativo. Eles dialogavam com intelectuais de es-
de 1978 é que surge, no ano seguinte, 1979, o querda e traziam alguns diálogos importantes
Movimento Negro Unificado Contra o Racismo, para a formação política dos movimentos negros.
MNU. Mesmo com a alteração da sigla e o afasta- A existência do CECAN e da Federação das Enti-
mento da Convergência Socialista, o movimento dades Afro-Brasileiras do Estado de São Paulo -
não conseguiu a unidade entre o conjunto dos FEABESp, foi de extrema importância, pois atra-
principais grupos políticos negros do país. vés desta se fez um arco de conversas rápidas e
A história do ato de protesto em frente ao divulgação das idéias do ato de protesto. A es-
Teatro Municipal de São Paulo, ao lado do Via- colha da sexta-feira no Viaduto do Chá, em São

52 EDUCAÇAO EM DEBATE. Ano 25. V 2 . W 46·2003


Paulo, garantiu parte do público, já acostumado Grupo Decisão, que passou a organizar a come-
à distribuição de jornais, anúncio de palestras, moração do 20 de Novembro também em São
apresentação de grupos de teatro e de grupos de Paulo. O Palmares também se comunicou com o
discussão sobre racismo e cultura negra. Rio de janeiro, que imediatamente também ade-
A convocação da concentração na frente do riu à realização da comemoração. Foi uma tarefa
Teatro Municipal foi facilitada pelos motivos muito difícil a de instituir o 20 de Novembro como
apresentados. Na hora do ato, parte do público Dia Nacional da Consciência Negra.
foi garantida também pela propaganda que nós, Até o inicio da década de 1970, a grande
estudantes, fizemos ao longo dos dois quilôme- comemoração cívica, em todas as associações e
tros da rua Direita e viaduto do Chá, onde cos- grupos das comunidades negras, era a do 13 de
tumavam se reunir de dois a três mil negros to- Maio. Principalmente as Irmandades e grupos
das as sextas-feiras. "católicos de preto" tinham fortíssima convicção
O ano de 1978 foi muito profícuo para todo na comemoração do 13 de Maio e realizavam
movimento negro sintetizando muitos dos es- missas e procissões nesta data.
forços e conquistas de toda a década. Nesse ano, Criticar a comemoração do 13 de Maio no
temos o primeiro número dos Cadernos Negros interior da comunidade negra parecia, à época,
consolidando a existência de uma literatura de uma tarefa inglória. Propor uma alternativa seria
expressão negra. Essa publicação sobrevive até ainda mais iconoclasta. Os meios oficiais, princi-
hoje e o seu lançamento é sempre ocasião para palmente os conservadores, faziam apologia à
grandes manifestações. princesa Isabel, encobrindo a amplitude da luta
Também tivemos, em novembro de 1978, travada pela população negra pela Abolição da
em Araraquara, interior paulista, a realização do escravidão criminosa. A midia fazia matérias que
primeiro FECONEZUN, Festival Comunitário reforçavam as visões conservadoras sobre o 13
Negro Zumbi, organizado pela FEABESp, que reu- de Maio. Embora seja importante destacar que
niu mais de mil pessoas, oito grupos de teatro e nem todas as comemorações tinham o mesmo
outros tantos de dança, por três dias. O festival sentido e ênfase. Os clubes de nome José do Patro-
foi uma grande síntese dos grupos de arte negra cinio tinham diferenças em relação aos Luiz Gama.
da década. Este evento continua se repetindo As alas católicas também apresentavam enorme
nestes anos todos, sendo eleita a cada ano uma diversidade. Entretanto, algumas das comemo-
cidade do estado de São Paulo como sede. rações eram de exaltação à luta travada pela po-
Dentre as diversas propostas, amparadas pulação negra para a abolição da escravidão. Mas
em todos os setores do movimento negro, uma a maioria não, a maioria ainda homenageava a
merece destaque em virtude da sua aceitação pe- princesa Isabel, denominada de a "Redentora".
los diversos setores da sociedade, a criação do Até hoje, os textos escolares tratam o 13 de Maio
Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de No- de maneira acrítica e destacam a princesa Isabel
vembro (BOULOS, 1997). Antes da década de "como a libertadora dos escravos".
1970, Palmares e Zumbi eram pouco divulgados. Em São Paulo, numa das primeiras come-
Os movimentos da década de 1920, em São morações do 20 de Novembro, havia no Teatro
Paulo, começaram a despertar para a questão. O do Bairro da Lapa, apenas seis pessoas na pla-
mesmo ocorreu em 1935, em Pernambuco, e na téia, um verdadeiro fracasso. A divulgação havia
década de 1940, na Bahia. Mas essas iniciativas sido feita apenas por meio de pequenos impres-
tiveram pouca repercussão no conjunto da po- sos porque malograram todas as tentativas de
pulação. O ressurgimento de trabalhos sobre divulgação pelas rádios e jornais da grande im-
Palmares e a idéia do 20 de Novembro vêm de prensa. Até meados da década de 1980, os meios
um grupo de militantes de Porto Alegre, do qual de comunicação - rádio, jornal e televisão - evi-
participou o poeta e escritor Oliveira Silveira, nos tavam a divulgação sobre peças de teatro e pa-
anos de 1970 e 1971. O grupo se chamava Pai- lestras de grupos negros. As informações e ma-
mares e, entre outras atividades, era bastante térias sobre relações étnicas eram muito censu-
envolvido com teatro. Em 1972, em visita a Porto radas na mídia nacional pelos próprios jornalis-
Alegre, me apresentaram a idéia do 20 de no- tas. Dentro dos movimentos negros sempre foi
vembro. Achei uma excelente idéia e, logo em motivo de ironia dizer que a imprensa no Brasil
seguida, passei para um pequeno grupo paulista, é livre de censura, visto as manifestações dos mo-

EDUCAÇÃO EM DEBATE. Ano 25. V 2 - W. 46 - 2003 S3


vimentos terem sido sempre censuradas. O su- Cunha Jr, Henrique. Etnia Afrodescendente,
cesso político dos movimentos negros manifesta- Pluralismo e Educação. Porto Alegre: Revista Pá-
se no fato de que, mesmo diante de um terreno tio. Editora Artes Médicas. 1998.
inóspito conseguiram transformar o 20 de No- Cunha jr., Henrique. Textos para o Movimento
vembro no Dia Nacional de Consciência Negra, Negro. São Paulo: Edicon. 1992.
com acolhida relativa em todo o país.
O sucesso político deste ciclo de Consci- Cunha Ir, Henrique. Contexto, antecedente e pre-
ência Negra pode ser constatado pelo número cedente: O curso pré-vestibular do Núcleo de
considerável de organizações negras que são cria- Consciência Negra na USP. In: Aprovados. Cur-
das na primeira metade da década de 1980, em sinho pré-vestibular e população negra. (org.
todo o país (MATOS, 1999). Dois tipos de orga- Andrade, Rosa Maria; Fonseca, Eduardo). São
nizações, entre outros, predominam: os blocos Paulo: Selo Negro Edições, 2002.
afros e os grupos de capoeira angola. Correia, Tânia Maria da Silva. Lemba Odu: Prá-
ticas Informacionais no Contexto do Movimen-
Conclusão to Negro de João Pessoa - PB. Dissertação de
Mestrado. João Pessoa, 1999. CDU02:681.3
Este ensaio de fundo histórico faz um pe- Dantas, Paulo Santos. A organização do movi-
queno vôo sobre o movimento negro da década mento negro sergipano nas décadas de 1980 e
de 1970, aqui denominado ciclo do Movimento 90: a construção de uma identidade negra como
de Consciência Negra, e procura explorar as raizes elemento consensual. São Cristóvão: Monografia
deste período, mostrando que precisamos de de Conclusão de Curso. UFS. 2001.
maior compreensão das associações existentes,
das redes de informação e dos pequenos fragmen- Felix, João Batista. Pequeno histórico do movimento
tos que gestam os grandes momentos. Assim, faz negro contemporâneo. In: Schwarcz, Lilia Moritz e
um esforço de chamar atenção para as sedimen- Reis, Letícia Vidor de Sousa. (Org.). Negras Ima-
tações de posturas realizadas pelos grupos passa- gens. São Paulo: Editora da Universidade de São
dos. Destaca que cada ciclo do movimento negro Paulo. Pp. 211-216. 1996.
tem raiz na continuidade de conquistas e traba- Matos, Maria Aparecida. GRUCON: Ação peda-
lhos militantes anteriores. Chama a atenção para gógica Valandi ou Chilingu? Cuiabá: Dissertação
as características dos movimentos negros: plurali- de Mestrado - UFMT. 1999.
dade de objetivos, informalidade e ausência de Pereira, Amauri Mendes. Cultura de consciência
registro histórico escrito, carecendo de métodos
negra. Pensando a Construção da identidade na-
outros para estudos deste movimentos. cional da democracia no Brasil. Rio de Janeiro:
Dissertação de Mestrado. UER]. 2000.
Referências bibliográficas
Ramos, Guerreiro. A redução sociológica. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1996.
Araújo, Maria do Carmo. Festa e Resistência Negra.
Campina Grande: Dissertação de Mestrado - Santos, José Antonio dos. Raiou 'í1 Alvorada" :
UFPB,1996. Intelectuais Negros e Imprensa. Pelotas 1997-1957.
Niterói: Dissertação de Mestrado - UFF, 2000.
Boulos jr, Alfredo. 20 de novembro, dia nacional
da consciência negra: Injustiça e discriminação Silva, Salloma Salomão jovino. A polifonia do Pro-
até quando? São Paulo: FID, 1997. testo Negro. São Paulo: Mestrado em História.
PUC- SP. 2000.
Cardoso da Silva, Francisco Carlos. Construção e
Desconstrução de Identidade Racial em Salvador: Silva, Selma da. Imagens de Africanidade: uma leitura
MNU e Ile Ayê no combate ao Racismo. Campina de mundo anti-racista. Rio de Janeiro: Dissertação
Grande: Dissertação de mestrado, 2001. de Mestrado em Educação - UERJ, 2003.

54 EDUCAÇÃO EM DEBATE. Ano 25. V 2 - N°, 46 - 2003

Você também pode gostar