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O MOVIMENTO NEGRO E OS MEIOS DE

COMUNICAÇÃO: UMA ABORDAGEM


DO MOVIMENTO ABOLICIONISTA E A
IMPRENSA NEGRA NO BRASIL
Paulo Cesar Alves da Silva1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como finalidade trazer alguns apontamentos sobre o movimento negro
RESUMO:
O principal objetivo deste artigo é e os meios de comunicação, desde as ações abolicionistas da escravização dos negros
trazer à tona alguns apontamentos no Brasil. O movimento abolicionista contou com vários intelectuais que atuavam nos
sobre a ação do movimento negro e meios de comunicação tradicionais da época, como jornais, obras literárias, comícios.
os meios de comunicação, principal-
Nos anos finais da Monarquia e durante a fase republicana, observam-se as contribui-
mente da imprensa tradicional como
o jornal, desde o movimento abolicio- ções dos meios de comunicação para o movimento negro, especialmente na luta contra
nista no final do século XIX, durante a discriminação e a possibilidade de ascensão social, política e econômica e cultural dos
o regime monárquico (1870-1889) e o negros africanos na sociedade brasileira. Assim, alguns setores da imprensa carioca se
período Republicano (1915-1963). Bus-
ca-se examinar as contribuições desse mobilizaram na luta pela abolição, como afirma Humberto Fernandes Machado:
instrumento de comunicação para Em 1880, foi criada por um grupo de propagandistas, entre os quais Joaquim
sensibilizar a população contra o re- Nabuco, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, semelhante à sua con-
gime escravocrata e, após a abolição
gênere inglesa - AntiSlavery Society. Suas reuniões e conferências atraíam um
deste, para denunciar a discriminação
racial e a situação econômica, social grande número de pessoas. Em 1883, a Confederação Abolicionista do Rio de
e de exclusão que afligia a população Janeiro, liderada por João Clapp e José do Patrocínio, incorporou várias asso-
negra no Brasil. ciações, como o Centro Abolicionista Ferreira de Menezes e o Clube de 2.
PALAVRAS-CHAVE: abolicionismo; Libertos de Niterói. Paralelamente à mobilização desses intelectuais e das en-
imprensa negra; meios de comunica- tidades antiescravistas, ocorriam debates cada vez mais intensos na Câmara
ção. sobre a questão servil, transcritos nos jornais, aumentando a repercussão junto
ABSTRACT:
à opinião pública, apesar das dificuldades decorrentes do alto grau de analfabe-
The purpose of this article is to make tismo (MACHADO, 2007, p. 1-2).
some notes about the action of the
black movement and the media, espe- Neste caminho iremos refletir sobre algumas mensagens que eram transmitidas pelos
cially the mainstream media the news-
paper, from the abolitionist movement jornais da denominada Imprensa Negra no início do século XX, tais como: Jornal Al-
at the end of the century. Century, du- vorada (1946), Tribuna Negra (1936), O alfinete (1919), O Patrocínio (1932), A Voz da
ring the monarchy and the Republican Raça (1935), que tinham como centro a cidade de São Paulo. Ressalte-se que surgiram
period (1915-1963), analyzing the con-
tributions of this communication tool
também jornais semelhantes em outras partes do país, como a Raça (1935), em Uberlân-
to raise awareness against the regime dia/MG, o União (1918), em Curitiba/PR, O Exemplo (1892), em Porto Alegre/RS, e o
of slavery and later after the aboli- Alvorada, em Pelotas/RS. É importante salientar que essa imprensa era marginalizada e
tion denounce racial discrimination, setorizada, sendo mal vista pela elite branca, como afirma Clovis Moura:
and economic and social situation of
misery and neglect that afflicted the A imprensa negra ficou na penumbra, como se fosse pouco significativa. A pró-
black population in Brazil. pria História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, não a registra.
A sua importância foi subestimada e desgastada por uma visão branca da
KEYWORDS: abolitionism; black press;
media. imprensa, que marginalizou os jornais negros impressos na época. Assim como
o negro foi marginalizado social, econômica e psicologicamente, também foi
____________________________ marginalizado culturalmente, sendo, por isso, toda a sua produção cultural
considerada subproduto de uma etnia inferior e inferiorizada (MOURA, 1988,
1 - Mestrando do Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Lin- p. 204-206).
guagem de Cultura de Universidade
da Amazônia – UNAMA, Campus Be- Durante o período em que ficaram em circulação, mais precisamente de 1915 até 1963,
lém-Pará. Correio Eletrônico: pc-xl@
hotmail.com esses jornais tinham poucas tiragens e ficavam restritos apenas a pequenos grupos da
comunidade negra, fornecendo elementos que possibilitavam entender um pouco des-
se universo ideológico do negro no município paulistano que se tornou uma referência
nacional, bem como compreender os estilos e comportamentos, anseios, reivindicações/
protestos, esperanças e frustrações (MOURA, 1998).

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-Bretanha já pressionava para a extinção um papel fundamental na veicu-
No entanto, observa-se que essa iniciati- da escravidão no país, em função do de- lação das ideias abolicionistas.
va vai ganhando proporções significati- senvolvimento industrial e tecnológico Os assuntos políticos e o aboli-
vas e pode ser entendida como uma plan- que necessitava de mercados consumi- cionismo ganharam as ruas junto
ta que foi se ramificando e dando frutos dores e, nesse contexto, o regime escra- com os periódicos e os segmentos
para o engajamento político de luta con- vagista era incompatível com o mundo urbanos tiveram maior facilidade
tra as mazelas que afetavam a comunida- “civilizado” idealizado pelo Ocidente. de externar as suas reivindica-
de negra (SILVA, 2008). ções (MACHADO, 2007, p. 01).
Desde o início do Segundo Reinado, os
A partir das reflexões de Petrônio Domin- ingleses, que exerciam um grande po- Assim, com a ação de intelectuais e jor-
guez (2006, p. 101), o Movimento Negro derio nos mares, aprovaram a lei deno- nalistas, a campanha abolicionista vai
pode ser definido como “[...] a luta dos minada “Bill Aberdeen”, determinando ganhando terreno e passa a ter um cunho
negros na perspectiva de resolver seus a apreensão de navios negreiros em al- popular, mobilizando membros das di-
problemas na sociedade abrangente em to-mar, de qualquer nacionalidade pelos versas classes sociais em prol de “civili-
particular dos provenientes de precon- navios britânicos. Em vista disso, houve zar” a nação. Naquele momento de tantos
ceitos e das discriminações raciais, que uma grande redução dos cativos e, con- embates políticos e econômicos, os peri-
os marginalizam no mercado de trabalho, sequentemente, aumentou de forma ver- ódicos se tornam um meio de divulgação
no sistema educacional, político, social e tiginosa o preço dos escravos no mercado ou de contestação do movimento aboli-
cultural [...]”, e que ao longo de sua his- interno, desenvolvendo-se o tráfico inter- cionista, uma vez que todo o país estava
tória mobilizou várias estratégias de lu- provincial. A pressão externa levou o Mi- discutindo a situação de escravização,
tas, que vão desde o enfrentamento direto nistério de Eusébio de Queiroz a aprovar sendo esta o principal assunto dos jornais
através do conflito, a imprensa paralela e a lei que leva seu nome, extinguindo o e revistas escritos no Brasil. Após muito
o engajamento político. tráfico negreiro da África para o Brasil tempo de silenciamento, não fazia mais
(SILVA, 2008). sentido ficar de fora dos debates acerca
MOVIMENTO ABOLICIONISTA E da liberdade dos negros (FERREIRA,
A AÇAO DE INTELECTUAIS NOS Nesse contexto, surgiram muitas vozes 2011).
MEIOS DE COMUNICAÇÃO NO contra a escravidão no Brasil: escritores,
FINAL DO SEGUNDO REINADO jornalistas, advogados, comerciantes e Nesse processo, alguns pensadores se
(1870-1888) diplomatas, passaram a utilizar os meios destacaram e utilizaram com habilidade
de comunicação para divulgar suas posi- a imprensa da época para ganhar o apoio
No final do século XIX, o regime monár- ções políticas, principalmente na capital de toda a sociedade para a causa. Entre
quico entrou numa fase de decadência do Império, como Machado: estes personagens, José do Patrocínio e
política e econômica, pois o país vivia O Rio de Janeiro era um espaço Luis Gama foram militantes atuantes a
muitas contradições, principalmente com repleto de contrastes, caracteri- favor dessa questão, sendo considerados
a manutenção de um regime considerado zado pela incorporação das no- como “abolicionistas radicais”, visto que
atrasado. Todos os países da América do vidades européias e das idéias reivindicavam cidadania para os negros
Sul haviam adotado o regime republica- de progresso e civilização que recentemente libertos do regime escravo-
no quando se tornaram independentes, e se opunham ao escravismo. Essa crata, associando “[...] comportamentos
o Brasil era uma Monarquia cercada por peculiaridade da cidade favore- e ideias na busca por um ideal comum
repúblicas, fato esse que era condizente ceu o envolvimento da população – romper com o sistema de exploração,
com os interesses da elite nacional que na campanha abolicionista. Li- violência e exclusão montado em torno
desejava manter a escravidão e o conser- bertos, mulatos e brancos pobres da escravidão” (LEAL, 2008 p. 20). Am-
vadorismo no poder e que afastava qual- se juntavam aos propagandistas bos tinham sido escravos e conheciam de
quer tipo de ameaça dos grupos menos nas ruas contra o cativeiro. O perto o sofrimento dos cativos: Patrocí-
abastados. crescimento urbano e a existên- nio fundou o jornal satírico “Ferrões” e
cia de um contingente expressivo descobriu sua verdadeira vocação, Gama
Assim, mantinha-se um governo forte e de escravos ou de seus descen- tornou-se jornalista de renome na década
centralizado que podia manter a ordem dentes facilitaram essa mobili- de 1860, trabalhando nos periódicos Dia-
vigente, porém as nações europeias es- zação de caráter popular que bo Coxo e Cabriãos.
tavam passando por grandes transforma- marcou o abolicionismo no Rio
ções tecnológicas e econômicas, princi- de Janeiro. Deve-se acrescentar Dessa forma, um grupo de propagandis-
palmente após a Revolução Industrial, ainda a circulação mais rápida tas se formou, reunindo além dos dois já
a partir de 1780, na Inglaterra (SILVA, das notícias devido ao aumento mencionados, Joaquim Nabuco, Castro
2008). da publicação de jornais. Espe- Alves, André Rebouças e outros, os quais
cialmente na década de 1880, formaram a Sociedade Brasileira contra
Desde a independência do Brasil, a Grã- a imprensa começou a adquirir a escravidão. As reuniões e conferências

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atraíam um volume cada vez maior de rador D. Pedro II, foi sancionada por sua de suas várias práticas pelos meios de
pessoas, em que era intensamente deba- filha Princesa Isabel, em 13 de maio de comunicação, nas passeadas, nas mobi-
tida a questão servil. 1888, abolindo a escravidão no Brasil, lizações, nas campanhas junto às igrejas
atingindo cerca de 7000.000 negros es- e nos eventos para arrecadar fundos para
A Câmara se tornou um lugar de debates cravizados (SILVA, 2008). comprar a alforria de escravos e na forte
acalorados, as notícias eram divulgadas pressão sobre o parlamento para aprovar
pelos jornais e conseguiam aos poucos Analisando esse contexto à luz de Michel a lei de abolição (LOURO, 2008).
sensibilizar a opinião pública, apesar do Foucault (1993), podem ser percebidas
grande número de analfabetos, sendo que muitas relações de poder envolvidas nes- As referências a Foucault (2012, p.15),
essa luta foi ocupando os vários espaços se processo; verifica-se um campo de ne- em que afirma que o poder é exercido
sociais: o clube, a igreja, as praças, as gociação muito intensa, pois o poder não em “níveis variados e em pontos diferen-
ruas, as senzalas e a casa grande. Eram estava somente concentrado nas mãos tes da rede social, e nesse complexo os
realizadas festas beneficentes para an- da monarquia e dos escravocratas, mes- micropoderes existem integrados ou não
gariar fundos para comprar a alforria de mo durante o período áureo do cativeiro, ao Estado (...)”, contribuem para que se
escravos (MACHADO, 2007). havendo vários mecanismos de resistên- possa entender as forças que se opõem no
cias, tais como o boicote à produção, a contexto das lutas abolicionistas, assim
Outra estratégia utilizada pelos grupos quebra de ferramenta, as fugas, os assas- como as táticas, as manobras utilizadas
era a chamada “limpeza das ruas”, que sinatos de capatazes, as práticas das reli- principalmente pelos intelectuais e os es-
tinha o objetivo de pressionar os pro- giões africanas. Havia, ainda, o espaço da cravos que estavam à frente do movimen-
prietários de escravos das ruas do centro negociação por uma melhor alimentação, to, o uso dos meios de comunicações da
da capital a libertarem seus cativos sob abrandamento dos castigos físicos e a época, principalmente o jornal. Este meio
a ameaça de ter seu nome divulgado nos liberdade de praticarem seus rituais reli- exerceu um poder de grande repercussão
jornais, sendo que cada propagandista giosos. Nos últimos anos da escravidão, nos meios sociais, pois tinha o poder de
ficava responsável por uma rua. Perce- ficam bem evidente as manobras do po- trabalhar os fatos com uma grande cober-
be-se que essa ação constrangia muitos der, como mostra Guacira Lopes Louro tura, acrescentando ingredientes à notícia
escravocratas que não queriam ver seus (2008, p. 38), citando Foucault: para moldar as informações, como ocor-
nomes aparecendo nas páginas jornalísti- (...) Foucault desorganiza as reu na Revolução Francesa. Tendo como
cas. Assim, começava-se a perceber uma concepções convencionais – que grande exemplo o papel da imprensa nes-
mudança de paradigma, pois antes ter usualmente remetem à centrali- sa revolução, o movimento abolicionista
muitos escravos era motivo de orgulho e dade e à posse do poder – e pro- no Brasil, no final do século XIX, intro-
status social dos coronéis, mas, a partir põe que observemos o poder sen- duziu novos valores por meio dos jornais,
do final do século XIX com as intensas do exercido em muitas e variadas baseados na ideia de progresso, de fim da
propagandas e embates em torno da abo- direções, como se fosse uma rede escravidão e de povo civilizado. Com es-
lição, passa-se a estabelecer uma imagem que, “capilarmente” se constitui sas forças atuando em sintonia, a aboli-
negativa dessa prática no país (MACHA- por toda a sociedade. Para ele, ção foi conquistada, e os negros no Brasil
DO, 2007). o poder deveria ser concebido passaram a conviver com outros desafios
mais como “uma estratégia”; (MACHADO, 2007), que serão adiante
Seguindo esse embate, ainda nesse pe- ele não seria, portanto, um pri- aventados.
ríodo, outro movimento se destaca com vilégio que alguém possui (e
muita força em São Paulo, o chamado transmite) ou do qual alguém se A AÇAO DA IMPRENSA NEGRA
movimento dos Caifazes, em que, se- “apropria”. Mais preocupado DURANTE A REPÚBLICA BRASI-
gundo Silva (2008, p. 136), eram orga- com os efeitos do poder, Foucault LEIRA (1915-1963)
nizadas “fugas coletivas ou roubavam-se diz que seria importante que se A campanha abolicionista trouxe uma
os negros escravizados de seus senhores percebesse esses efeitos como es- grande agitação para a sociedade brasi-
para enviá-los ao Quilombo do Jabaqua- tando vinculados “a disposições, leira, principalmente na capital, sendo
ra, na cidade de Santos, e de lá para a pro- a manobras, a táticas, a técnica, que, aos poucos, foi espalhando-se pelo
víncia do Ceará, que já havia decretado a a funcionamentos. restante do país. Entretanto, junto com
igualdade racial”. esse movimento, articulava-se silencio-
No contexto brasileiro do final samente uma campanha republicana,
A eficiência desse movimento influen- do século XIX, essas características po- que aos poucos foi ganhando contornos
ciou a maioria das cidades paulistas a dem ser observadas no movimento aboli- mais abertos e diretos, pois o esteio de
seguir o exemplo cearense e a decretar a cionista, pois o poder não está concentra- sustentação do regime Monárquico era a
libertação dos cativos antes da Lei parla- do somente em um dos lados, como, por elite agrícola representada pelos grandes
mentar. Diante desse quadro de pressão exemplo, concentrado nas mãos do rei e latifundiários, defensores da manutenção
interna e externa, o gabinete conservador na aristocracia. Ele também é exercido da escravidão como mão de obra neces-
elaborou a lei, que na ausência do Impe- pelos intelectuais abolicionistas, através sária para o desenvolvimento econômico

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do país. Todavia, com desfecho favorável a proibição de atividades e eventos cultu-
da abolição, o governo perdeu essa força rais. A mão de obra negra passou a servir Dessa forma, era preciso, na visão da
de sustentação, e doença que acometia o como assalariada, mas sem “qualificação elite, substituir o trabalho do negro pelo
imperador dava o sentimento de país des- exigida”, o que gerou a sua exclusão do do imigrante que traria uma grande trans-
governado; situação essa acentuada pe- mercado. Com isso, optou-se por incen- formação, principalmente na cor do país,
los problemas econômicos e pela vitória tivar as migrações europeias com objeti- pois naturalmente o contato entre esses
do golpe republicano em 1889 (LEAL, vo de trazer trabalhadores qualificados e dois povos, segundo o darwinismo so-
2008). culturalmente superiores, ou seja, “civili- cial, a etnia “superior” naturalmente se
zados” (SILVA, 2008). sobreporia a “inferior”, livrando a nação
O novo regime foi implantado de uma da carga exótica, passiva, perigosa repre-
forma controversa, pois a participação do A estratégia da discriminação trabalhista sentada pelo negro. Desse modo, a ide-
povo foi praticamente nula e, como afir- era uma prática já instaurada na socie- ologia do branqueamento passa a fazer
ma José Murilo de Carvalho (1987, p. 9), dade brasileira mesmo antes da chegada parte do pensamento das classes domi-
“o povo teria assistido ‘bestializado’ à dos imigrantes, pois na estrutura traba- nantes (MOURA, 1998).
proclamação da República, sem entender lhista havia a exclusão que favorecia o
o que se passava”. Havia sido, portanto, homem livre, em detrimento do alforria- Nesse contexto de exclusão social e do
uma ação de cima para baixo, sempre do. Assim, na estrutura do trabalho dessa forte racismo que imperava no período
controlada pelas elites que moldaram o época, produziam-se vários conflitos em republicano, os negros retomaram um
novo regime de acordo com seus interes- seus diversos setores, mas a situação dos instrumento de luta, que foi muito utili-
ses. Isso fica evidente na constituição de negros permanecia difícil, pois a maioria zado durante a campanha abolicionista:
1891, que eliminou o voto censitário, que deles não possuía ofícios e não queria os meios de comunicação tradicional.
excluía a maior parte da população pela se entregar ao trabalho agrícola, o qual Assim, surgiu uma imprensa paralela a
renda, mas manteve outro mecanismo de haviam deixado; já na cidade, a ocupa- oficial e os jornais passaram a ser edita-
exclusão, que era a proibição do voto de ção de carregadores era a mais praticada, dos com um conteúdo voltado para a po-
analfabetos e das mulheres. como afirma Clóvis Moura (1998, p. 71), pulação negra.
citando Manuel Querino:
Dessa forma 80% da população, que na Em diversas partes da cidade A denominada Imprensa Negra teve
sua maioria eram negros que tinham con- reuniam-se à espera que fossem como centro das primeiras manifestações
quistado a liberdade recentemente foram chamados para a condução de a cidade de São Paulo, no entanto é im-
afastados do direito de exercer a cidada- volumes pesados ou leves, como portante salientar que também surgiram
nia. Assim, resumidamente, pode-se afir- fossem: cadeirinhas de arruar, jornais com a mesma natureza no Rio de
mar que durante a Monarquia a exclusão pipas de vinho ou aguardente, Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernam-
era pela renda e na primeira República, planos etc. Esses pontos tinham buco e Rio Grande do Sul, dentre estes
isso se dava pelo analfabetismo. nome de canto e por isso era co- os que mais se destacaram foram: O Me-
mum ouvir a cada momento: cha- nelick (1915); O Bandeirante (1918); O
Dentro desse novo contexto como ficou a ma ali um ganhador no canto. Fi- Alfinete (1918); A Liberdade (1918); O
situação do negro na sociedade brasilei- cavam eles sentados em tripeças Getulino (1923); e O Baluarte (1903).
ra? Embora tenha conquistado a alforria, a conversar até serem chamados Com objetivos bem definidos, a Impren-
não houve por parte das autoridades go- para o desempenho de quaisquer sa Negra conseguiu reunir um grupo
vernamentais nenhuma política de inclu- misteres [...] (MOURA, 1998, p. bem representativo de pessoas para lutar
são para essa população que era escrava 71). contra o “preconceito de cor”, como era
e que tinha conquistado a liberdade. A denominado na época, e, além disso, lu-
partir de 1888, percebe-se que nenhum taram também contra outras dificuldades
projeto no âmbito econômico, social e Nessa abordagem, percebe-se a restrição que afligiam a população negra, como
político foi implementado por parte do de opções de trabalho para o negro, além afirma Petrônio Domingues:
governo. Dessa forma, a marginalização disso, havia uma forte campanha pelo
e o subemprego foi o que se observou na branqueamento do Brasil, que surge no Esses jornais enfocavam as mais
prática, além disso, cresceu o sentimento mesmo contexto da abolição da escra- diversas mazelas que afetavam a
de insegurança da elite, pois com a li- vidão, surgindo assim um novo discur- população negra no âmbito do
bertação acabou o controle dos senhores so colocando em evidência o passado trabalho, da habitação, da edu-
sobre os escravos, agora o Estado tinha e o futuro. O primeiro representando o cação e da saúde, tornando-se
esse papel. atraso, a animalidade, o obscurantismo, uma tribuna privilegiada para
enquanto o segundo, pautado no branco se pensar em soluções concretas
Várias medidas foram lançadas para re- (europeu), era simbolizado pelo trabalho para o problema do racismo na
primir as manifestações da cultura dos organizado, representando o progresso, o sociedade brasileira. Além dis-
negros libertos, como leis higiênicas e até desenvolvimento e “civilização”. so, as páginas desses periódicos

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constituíam veículos de denúncia o servillismo particular; se der- perto soffreu essas influencias e
do regime de “segregação ra- rubou o regimento de escravas as ainda conservam ainda, devi-
cial” que incidia em várias cida- obrigatórios impoz o de servos do aos injustos preconceitos que
des do país, impedindo o negro voluntários. Quem são os culpa- infelizmente ainda existem, mas
de ingressar ou frequentar deter- dos dessa negra mancha que ma- que elles, com muita dignidade
minados hotéis, clubes, cinemas, cula eternamente a nossa fronte? sabem desprezar.
teatros, restaurantes, orfanatos, Nós, unicamente nos que vivemos O homem preto traz, estampado
estabelecimentos comerciais e na mais vergonhosa ignorancia em si, a sua natureza num verda-
religiosos, além de algumas es- no mais profundo absecamento deiro contraste com os seus bons
colas ruas e praças públicas. moral, que não comprehendemos sentimentos e as suas emoções,
Nesta etapa, o movimento negro finalmente a angustiosa situação que vão se accumulando para,
organizado era desprovido de em que vivemos. Cultivemos, ex- um dia ou outro, se espandir. O
caráter explicitamente político, tirpemos o nosso analphabetismo negro é, geralmente, um resigna-
com um programa definido e pro- e veremos se podemos ou não do; vive na sua quietude porem
jeto ideológico mais amplo (DO- imitar os norte-americanos (OLI- nunca é um fraco; raras vezes
MINGUES, 2007, p. 105). VEIRA. O Alfinete, número 2, São sorri, e isso mesmo, quando o
Paulo, 03/12/1918). faz, é tão somente para comple-
Havia a imprensa oficial voltada para mento de uma delicadeza [...].
atender às necessidades dos grupos abas- Como se vê, havia uma exortação bem Hoje dentro da nossa classe
tados. Já a Imprensa Negra tinha uma direcionada para que a população negra contamos com uma infinidade
circulação paralela, restrita e com um pudesse alcançar melhores posições na de homens letrados (...) com ex-
efeito limitado, as tiragens eram peque- sociedade brasileira, mas para isso era cepção dessa grande avalanche
nas, pois os seus consumidores eram em preciso estudar, deixar os vícios do alco- – muito desunida [...] a maioria
sua maioria analfabeta, subempregada e olismo a vida boemia e não praticar arru- dos negros que vivem espalha-
sem renda. Assim, nesses periódicos re- aças, mantendo uma postura “correta” de dos pelo nosso paiz encontra-se
fletia-se, por meio de intelectuais e escri- acordo com a moral e os bons costumes ainda moralmente escraviza-
tores negros, um painel do universo do do branco. Nesse período, muitas pesso- da [...] A classe preta relegada
negro, os anseios, as reivindicações e os as negras acabavam se envolvendo em para a ultima posição na escala
protestos dessa população. Ressalte-se desordens e crimes, o que aos olhos dos social, sempre viveu asphixiada,
que o tempo de duração dessa imprensa brancos era altamente reprovável e vin- sem estimulo, sem apoio para as
foi longa e dolorosa, pois os jornais não culado à procedência africana, à condi- suas mais modestas iniciativas
tinham recursos para se manterem por ção de ex-escravo. [...]. (Benedicto A. Conceição,
muito tempo. Por esse meio, havia a ex- São Paulo).
pressão de uma parte do universo da co- Desse modo, tal postura devia ser trans-
munidade negra, como os casamentos, as formada para “melhorar” a imagem do O texto comenta a situação do negro na
festas, os aniversários, as poesias, além negro na sociedade, o que dependia de sociedade brasileira naquele período, que
das inquietações do seu povo. Conforme uma ação da família em relação aos fi- convive com o racismo e jogado na últi-
destaca Moura (1988), havia conselhos lhos. Assim, o negro deveria se destacar ma escala da classe social, mas ressalta
para que os negros ascendessem ao meio pela cultura e pelo exemplo de figuras que a classe já conta com certo número
social e cultural, para então igualarem-se ilustres que se tornaram símbolos, como de homens letrados; critica, porém, a fal-
aos brancos. os intelectuais e jornalistas Luiz Gama e ta de união dos seus pares, sendo esta a
José do Patrocínio. condição primordial para elevar a moral
A preocupação com a educação era um da “raça”.
dos principais assuntos e estava no centro O jornal “O Patrocínio”, de 19/10/1930,
dos debates, pois o negro deveria almejar publica uma matéria que traz como título A partir de 1930, a luta do movimento
conquistar postos mais elevados no meio “O Negro”. negro tem um desenvolvimento qualita-
social, através de um aprimoramento A nostalgia e a languidez do afri- tivo, pois começam as primeiras reivin-
educacional, como é observado na se- cano com certeza influíram muito dicações políticas com a fundação do jor-
guinte matéria: na formação moral dos homens nal “A Voz da Raça”, pela Frente Negra
pretos do Brasil. O brasileiro Brasileira (FNB), sendo que, no início
Mas de que serviu finalmente a como producto distincto de tres do século XX, se torna a mais importan-
lei do abolicionismo no Brazil? raças: a portugueza, a africana te entidade negra do país com ramifica-
Unicamente para mostrar ao e a indígena, que traziam em si ções por diversas estados, chegando a
extrangeiro a nossa apparente a estima da resignação, é tris- contar pelas estimativas de seus líderes
civilisação, porque se ella aboliu te. Portanto, o negro é, dentre com mais de 20 mil associados e man-
a escravatura official, implantou os brasileiros, o que se mais de tendo uma organização bem detalhada e

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eficiente. Essa entidade oferecia, para os Vargas – O Estado Novo. Nesse quadro, há 41 jornais que foram
seus membros, escola, teatro, time de fu- identificados durante o período que
tebol, departamento jurídico, assistência Com o objetivo de destacar alguns pe- abrange o regime Monárquico e parte do
hospitalar com médicos, além de cursos riódicos que circularam durante o perí- período Republicano da História brasilei-
de formação que visavam ao preparo do odo monárquico (1808-1889) e também ra, sendo que somente algumas notícias
negro para o mercado de trabalho. Nela, os principais jornais da Imprensa Negra de alguns periódicos foram analisadas
as mulheres exerciam um papel efeti- veiculados durante o período Republica- neste trabalho. Pode-se concluir que as
vo realizando trabalhos assistencialistas no (1915-1963), foi elaborado o seguin- informações veiculadas pelos jornalistas
junto à comunidade e organizando bailes te com o nome e o ano de fundação em e intelectuais alargavam o poder de pres-
e festas artísticos. Segundo Domingues ordem cronológica, com base em Clóvis são sobre as instâncias de poder. Durante
(2007), a entidade foi fechada em 1937 Moura (1998, p. 208) e Maria Clara Cor- a República, esses jornais marginaliza-
devido ao início da ditadura de Getúlio sino Ferreira (2011, p. 01-12): dos e paralelos representavam o pensa-
mento da comunidade negra, de acordo
com as várias experiências dos seus pro-
QUADRO: Jornais do regime Monárquico e do regime Republicano
tagonistas.
Nome do Jornal Ano de Fundação
Gazeta do Rio de Janeiro 1808 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Correio Brasiliense 1808 O movimento Negro no Brasil tem um
O Libertador (Ceará) desconhecido caminho árduo ao longo de sua História,
desde o movimento abolicionista duran-
Diário de Belém desconhecido
te o final do Segundo Reinado, passando
O Baependiano desconhecido pela Primeira República, que foi objeto
O Fluminense Desconhecido desta reflexão. Nesse percurso de vida e
A República 1870 de história, várias estratégias foram utili-
Os Ferrões 1875 zadas pelos defensores dessa causa para
dialogar com a sociedade brasileira e o
O Allioht 1888
Estado.
Diabo Coxo e Cabrião desconhecido
O Menelick 1916 Um dos recursos acionados por intelec-
A rua e O Xauter 1918 tuais, escritores e jornalistas que lutaram
O Alfinete e O Bandeirante 1919 pela condição de igualdade dos negros
libertos em relação aos brancos brasi-
A Liberdade 1920
leiros foram os meios de comunicação,
A Sentinela 1922
principalmente os jornais. Estes desem-
O Kosmos 1923 penharam um papel importante social,
O Getulino 1924 ao possibilitar a divulgação e difusão
O Clarim da Alvorada e Elite 1928 de conhecimentos e informações valio-
Auriverde, O Patrocinio e O Progresso 1932 sas à comunidade negra, promovendo o
acirramento da campanha abolicionista,
Chibata 1933
pressionando o governo, denunciando as
A Evolução e A Voz da Raça 1935 mazelas, tanto no âmbito interno quanto
O Clarim, O Estímulo, A Raça e Tribuna Negra 1936 externo.
A Alvorada 1946
Senzala 1950 Pode-se dizer que a invisibilidade da po-
pulação negra no Brasil começa a mudar
Mundo Novo 1954
através da construção de outros signifi-
O Novo Horizonte 1957 cados do que era ser negro por meio das
Noticias do Ébano 1958 matérias e notícias veiculadas pelos jor-
O Mutirão 1960 nais que compunham a Imprensa Negra,
Hífer e Níger 1961 quebrando a visão monolítica e negativa
sempre ligada à negritude. Nesse con-
Nosso Jornal e Correio d’Ébano 1963
texto, foi possível questionar o mito da
Fonte: Produção própria (2014) democracia racial e das relações sociais
de subordinação, observado nas relações
trabalhistas e excludentes que envolviam
as pessoas negras recentemente liberta-

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REFERÊNCIAS das dos grilhões da escravatura. Nesse caminho de busca por maior igualdade e cida-
dania, os meios de comunicação foram utilizados como um grande aliado e ferramenta
CARVALHO, José Murilo de. Os Bes-
tializados: Rio de Janeiro e a Repúbli- para incitar o debate público sobre o racismo e a discriminação no nosso país.
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