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Wlamyra Albuquerque

MOVIMENTOS SOCIAIS
ABOLICIONISTAS
A AGITAÇÃO NEGRA MARCOU A LUTA CONTRA A ESCRAVIDÃO NA sociedade
brasileira. A revolta escrava, individual ou coletiva, foi o primeiro e
principal instrumento de instabilidade da ordem vigente. Rebeliões,
crimes contra senhores, fugas e tantas outras formas de ação escrava
vivenciadas no Brasil, até quando não explicitavam esse propósito,
construíram os caminhos para a falência do mundo governado por
proprietários de pessoas. Ao mesmo tempo, ao fazerem circular nas
senzalas notícias sobre fugas, revoltas e ideias de liberdade, aqueles que
estavam no cativeiro desestabilizavam a lógica escravista. Não por
acaso, planos e argumentos para a extinção do escravismo sempre
entravam na pauta política quando a rebeldia escrava ganhava maiores
dimensões e intensificava-se o medo de convulsões sociais. Foi o que se
pôde notar depois da Revolta dos Malês na Bahia, em 1835, e da Revolta
de Manuel Congo em Vassouras, em 1838. Movidos pelo temor de que a
rebeldia negra se ampliasse, políticos, jornalistas e até autoridades
passaram a considerar que a escravidão, como instituição legal e
legítima, deveria ser combatida para garantir a segurança dos brancos.
A partir dos meados da década de 1860, o movimento abolicionista se
configurou contando com a liderança de homens negros como Luís
Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, Ferreira de Meneses, Manuel
Quirino, entre tantos outros.
Luís Gama (1830-82), nascido livre na Bahia, era o filho de um fidalgo
português e da africana Luísa Mahin. Foi vendido como escravo pelo
próprio pai e assim caiu na rota do tráfico interprovincial, tendo sido
embarcado primeiro para o Rio de Janeiro, em seguida para São Paulo.
Depois de ter conseguido se alfabetizar, Gama reconquistou sua
liberdade e, além de se tornar literato e jornalista brilhante, se fez
rábula para defender judicialmente escravizados que a ele recorriam
com as mais diferentes contendas, inclusive aqueles interessados em
reivindicar carta de alforria para si ou para os seus. Ficaram famosos os
anúncios desses serviços que Luís Gama fazia questão de publicar logo
abaixo de anúncios de fugas e recompensa por captura de escravos nos
jornais da corte. Ele sustentava publicamente que a escravidão era um
roubo, por estar assentada numa transação ilegal, já que o tráfico
atlântico havia sido proibido em 1831. Sua ousada atuação nos tribunais
e na imprensa, bem como a participação em sociedades abolicionistas,
interferiu nos encaminhamentos da chamada "questão servil". Gama
foi incisivo, como poucos, na exposição do quanto escravidão e racismo
se entrelaçavam na cultura do Brasil oitocentista. Como já disse Elciene
Azevedo, ele não abria mão de se reconhecer como homem negro em
meios brancos, e ironizava, em seus versos, os dilemas raciais da
sociedade brasileira. A habilidade de Luís Gama para agir em diferentes
arenas políticas e mobilizar sujeitos distintos na luta contra a
escravidão ficou evidente no seu enterro em 1882, quando o cortejo
fúnebre foi saudado com discursos realizados por bacharéis e políticos,
mas também por operários e vendedores de rua; prontamente
definidos pela imprensa como "gente do povo". Nessa "arraia-miúda"
estavam alguns dos seus parceiros e interlocutores na luta pela causa
da liberdade.
Àquela altura, a adesão popular à campanha abolicionista era
crescente. Marcelo Badaró analisou associações de trabalhadores,
mostrando como uma das categorias engajadas nessa luta era a dos
padeiros que, com cerca de cem profissionais afiliados e tendo por lema
"pelo pão e pela liberdade", se propunha a lutar contra a exploração do
trabalhador e contra a escravidão. Para tanto, organizou levantes de
escravizados empregados em padarias que, liderados por um certo João
de Matos, forjavam cartas de alforria e tramavam rotas de fuga para
quem quisesse escapar dos seus senhores e patrões. Já as associações de
ofício, que reuniam homens de cor, e as sociedades de auxílio mútuo se
encarregaram de criar fundos para compra de cartas de alforria, de
fundar escolas noturnas, e tentaram garantir trabalho para quem se
livrasse do cativeiro.
A historiografia tem nos apresentado a grupos associativos que
assumiram a abolição como algo intrínseco à luta dos trabalhadores
oitocentistas. É o que nos informa Beatriz Loner, ao mapear entidades
de beneficência negras ou operárias, como a Feliz Esperança,
Fraternidade Artística e Harmonia dos Artistas, que angariavam
doações para alforriar escravos no Rio Grande do Sul, onde havia cerca
de 35 entidades com o mesmo propósito e perfil social. Longe de serem
uma especificidade local, tais associações foram formadas em diversas
províncias. Na Bahia, Ismael Silva e Manuel Quirino, no Rio de Janeiro,
França e Silva, são exemplos de figuras públicas que estabeleceram
uma continuidade entre a militância abolicionista e o movimento
operário, contribuindo assim para a organização dos trabalhadores no
tempo de escravidão e no pós-abolição. A ação de tais militantes deixa
evidente a perspectiva desse abolicionismo negro que se popularizava
por estabelecer a conexão estreita entre o fim do escravismo e as
demandas dos trabalhadores por melhores condições de vida. Nesse
sentido, eles ultrapassavam o argumento muito utilizado na campanha
abolicionista da mera afirmação do quanto o escravismo impedia o
desenvolvimento nacional, atrasava o progresso do país. Para os
militantes negros e operários, as luzes da abolição libertariam os
escravos e a nação, mas também deveriam garantir a igualdade de
direitos e amplo exercício da cidadania para os egressos do cativeiro.
As tipografias onde havia escravos, a exemplo do Jornal do
Commercio no Rio de Janeiro, foram outros espaços de ebulição. Ainda
na década de 1860, lia-se nas páginas do jornal O Typographo a
convocação aos trabalhadores para erguerem a bandeira abolicionista.
Nos anos 1880, esses profissionais criticavam a falta de empenho do
governo imperial para garantir a instrução dos "ingênuos", prevista na
lei de 1871. As notícias e a literatura que circulavam nos jornais, como
bem sabia Luís Gama, tornavam as tipografias um campo fértil para a
ampliação dos partidários da luta pela liberdade. Na cena literária da
segunda metade do século x1x, escritores negros retrataram em
folhetins, poemas e sátiras as regras de uma sociedade formatada pela
escravidão, e atribuíam aos seus personagens vozes, atitudes e
aspirações de escravos e libertos. Machado de Assis, Ferreira de
Meneses, Maria Firmina dos Reis e Luís Gama confrontaram em suas
obras, cada qual ao seu modo, a condenável lógica escravista que
organizava a sociedade oitocentista. Vale ressaltar aqui a produção
literária de Maria Firmina dos Reis (1822-1917), escritora maranhense
que em duas obras - o romance úrsula, de 1859, e o conto "A escrava",
de 1887 - expôs a brutalidade do cativeiro. Mulher negra e letrada
numa sociedade regida por valores patriarcais, é de sua autoria,
segundo Régia Agostinho da Silva, a letra do hino de libertação dos
escravos do Maranhão.
Mobilizada pela atuação das sociedades abolicionistas, das
associações de auxílio mútuo e dessa imprensa engajada, a campanha
abolicionista ganhava dimensão nacional e popular. Entre as décadas de
1860 e 1880, surgiram dezenas de associações abolicionistas em todo o
país, a exemplo da Sociedade Patriótica Dois de Julho, em Pernambuco;
da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, na Bahia; da Sociedade
Promotora da Emancipação dos Escravos da Província do Rio Grande do
Sul; e da Sociedade Manumissora Sobralense, no Ceará. Tais associações
reuniam estudantes, advogados, engenheiros, médicos, alunas da
Escola Normal, farmacêuticos, pequenos comerciantes, caixeiros,
mulheres que participavam de instituições de caridade, muitos
jornalistas, e também artesãos, professores de primeiras letras e das
faculdades, sapateiros e vários outras pessoas que ocuparam lugares
diversos na hierárquica sociedade imperial.
No decisivo ano de 1880 foi criada, na corte, a Sociedade Brasileira
contra a Escravidão, inspirada na British and Foreign Society for the
Abolition of Slavery. Ali estiveram reunidos dois importantes
abolicionistas negros: José Carlos do Patrocínio (1854-1905) e André
Rebouças (1838-98). Mais conhecido como Zé do Pato, Patrocínio, filho
da quitandeira Justina Maria do Espírito Santo e do padre João Carlos
Monteiro, foi jornalista. Formado em farmácia pela Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, ele conquistou popularidade por conta de
seus discursos inflamados tanto nas tribunas quanto nas praças. Por
considerar a abolição imediata e sem pagamento de indenização a
principal questão nacional, defendia que a população deveria deixar de
se comportar como "cordeiro submisso" da classe política e realizar tais
intentos a qualquer custo. Na opinião dele, para extinguir a escravidão,
todos os meios seriam "lícitos e bons", mesmo que escapassem dos
limites da legalidade. Por isso julgava imprescindível que escravos,
libertandos e libertos também atuassem firmemente no movimento
abolicionista. Patrocínio publicou com regularidade na Gazeta de
Noticias (1878), na Gazeta da Tarde (1881) e no Cidade do Rio (1887), este
último, seu próprio jornal e o órgão mais combativo da imprensa.
Segundo Conrad, era no Cidade do Rio que se obtinham as informações
mais confiáveis sobre os obstáculos aos planos de liberdade e
igualmente acerca do "progresso da libertação".
Por meio dessa imprensa engajada era possível conhecer mais sobre
debates parlamentares, negociações palacianas, meetings, saraus,
espetáculos teatrais, entregas de cartas de alforria e demais ações da
agenda em prol da liberdade. A mobilização de tais periódicos
contribuía, como assinala Celso Castilho, para a formação da opinião
pública favorável à causa dos escravos e permitia que agitadores como
José do Patrocínio ganhassem visibilidade na cena política. Durante o
tempo em que trabalharam na Gazeta da Tarde, Ferreira de Meneses e
José do Patrocínio pressionaram o proprietário do periódico para que
não publicasse os anúncios de fugas de cativos, a despeito de estes nem
sempre terem sucesso. Mas foi na redação da Gazeta da Tarde, em 1883,
que representantes de catorze sociedades libertadoras de várias
províncias, com destaque para o Clube dos Libertos de Niterói,
fundaram a Confederação Abolicionista. O manifesto da Confederação,
endereçado aos deputados brasileiros, mostrava os prejuízos
econômicos do uso da mão de obra escrava, e explicitava o quanto o
sistema escravista era insustentável em termos jurídicos e, por isso,
comprometia o futuro nacional. Juntamente com José do Patrocínio e
Aristides Lobo, André Rebouças foi um dos autores do manifesto. Ele
era filho de Antônio Pereira Rebouças, homem negro que se tornou
conselheiro do Império, e de Carolina Pinto Rebouças. Formado em
engenharia, André defendia que a abolição deveria ser parte de uma
grande reforma nacional capaz de assegurar melhores condições de
vida para os libertos, o que incluiria a concessão de terras e educação
para crianças e adultos. Na perspectiva dele, as feridas abertas pelo
crime que era a escravidão só poderiam cicatrizar com a garantia de
certos direitos aos egressos do cativeiro.
No entanto, enquanto corria a década de 1880, o que se viu foi o
acirramento cotidiano das tensões entre os partidários da abolição e
seus adversários. Os caifases que, como já escreveu Maria Helena
Machado, compunham o grupo menos visível da rede abolicionista,
cumpriram um papel importante e arriscado nesse desmonte diário e
voraz da estrutura escravista: eles recrutavam rebeldes nas próprias
senzalas lotadas das fazendas de café da província de São Paulo.
Vasculhando a documentação policial do período, a autora localizou
caixeiros-viajantes, barbeiros e escravos fugidos que estabeleceram
como estratégia de luta disseminar ideias de liberdade sob o teto dos
grandes proprietários de escravos.
Se nas senzalas o clima era de afronta ao poder dos senhores, não era
diferente nos centros urbanos. As correspondências entre as
autoridades das principais cidades do país relatam como negros
armados de paus, dispostos a libertar à força suspeitos de serem
fugidos, faziam tentativas de invasão das delegacias. Mascarados,
cobertos pela fantasia carnavalesca, gritavam agora pelo fim do
cativeiro. Libertos divulgavam a realização de reuniões abolicionistas
em frente às igrejas, tendas de sapateiros e lojas de alfaiates. Em cidades
onde o tráfico interprovincial se intensificava, como as zonas
portuárias de Santos, Porto Alegre, Salvador e Rio de Janeiro, foram
planejados, e por vezes empreendidos com sucesso, resgates de
escravizados prestes a serem embarcados para fora da província e para
longe dos seus parentes e parceiros. Eduardo Carigé, incansável
abolicionista atuante no Recôncavo baiano, liderou diversas dessas
ações e, em algumas ocasiões, contou com a ajuda de gente comum,
pobre e negra, que, contestando de tal modo a autoridade senhorial,
também esperava fazer valer os seus objetivos de liberdade e cidadania.
Depois do 13 de maio de 1888, a princesa Isabel foi içada ao papel de
Redentora e, portanto, de promotora da principal reforma política e
social do século x1x. O panteão nacional foi preenchido pelas figuras
mais proeminentes do front abolicionista na grande imprensa, no
Parlamento e nos tribunais, deixando de fora da memória do
abolicionismo os coiteiros, caifases, saveiristas, tipógrafos, capoeiras e
músicos, em geral, escravos, libertos e livres pobres. No entanto, vários
desses sujeitos interpretaram a assinatura da Lei Áurea como apenas
mais um passo em direção aos propósitos da campanha abolicionista.
Como disse um grupo de libertos de Paty do Alferes, no Rio de Janeiro,
em carta enviada a Rui Barbosa em 1889: "nossos filhos jazem imersos
em profundas trevas. É preciso esclarecê-los e guiá-los por meio da
instrução. [... ] Compreendemos perfeitamente que a liberdade partiu do
povo que forçou a Coroa e o Parlamento a decretá-la". Pensada nesses
termos, a luta pela liberdade não foi concluída em 1888; resta a
construção da igualdade.

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