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Elciene Azevedo
A política da lei
Ferreira da Silva Bueno. Como amigo que era de Luiz Gama, deu
declarações particulares (tornadas públicas pelos jornais) afirmando
que o fazia contra a vontade, obedecendo a ordens do presidente da
província, Antônio Cândido da Rocha.33 Mais que isso, dizia-se ainda
que o juiz municipal Rego Freitas havia sido assessorado por esse
último antes de emitir seu “estúpido” despacho.34 Ao governo da
província não interessava que a “propriedade servil” fosse tão pe-
rigosamente “perturbada” nos tribunais de primeira instância. De
fato, o vulcão abalava muitas áreas. Grande parte da polêmica em
torno da exoneração de Gama, tratada de forma muito natural pelo
jornal da Corte, foi gerada justamente porque explicitou a intro-
missão direta do poder Executivo em uma questão judicial de li-
berdade — apesar de a constituição brasileira garantir a indepen-
dência entre esses dois poderes. Observação nesse sentido fazia o
jornalista Américo de Campos, em artigo em defesa do amigo, pu-
blicado no Correio Paulistano: “[...] magistratura independente, diz
a lei; sim, mas com a condição de que há de ser muda e dócil ao
menor aceno da política”.35
Os sobressaltos das autoridades provinciais, portanto, não
eram motivados somente pela conduta individual e voluntarista
de um amanuense que, após viver a experiência da escravidão, em-
penhava-se para libertar outros cativos. As autoridades pareciam
preocupar-se com uma conjunção de fatores que envolviam algo
mais que a determinação pessoal de um rábula que incomodava
os que zelavam pela ordem e defendiam a propriedade servil.
Como a mesma nota do Dezesseis de Julho observava, havia o “in-
conveniente”, por assim dizer, de Gama estar ligado ao Clube
Radical — grupo político nascido de uma profunda dissidência
no Partido Liberal.
Órgão fundado em São Paulo em 1868, a exemplo do que
ocorria em várias outras cidades do país, o clube nascera das tur-
bulências políticas geradas pela volta dos conservadores ao poder,
depois da queda do gabinete liberal de Zacarias de Góes.36 A ver-
tente mais radical do Partido Liberal organizara-se então nesses
clubes, que, alguns anos depois, se transformaram em clubes repu-
blicanos. Em São Paulo, suas bases deram origem ao Partido Re-
trícula dos escravos estava nas mãos dos senhores, pois era feita a
partir de suas declarações. Sendo assim, o governo criava um docu-
mento legal que possibilitava que os senhores regularizassem a situa-
ção dos africanos que mantinham ilegalmente como escravos, omi-
tindo sua naturalidade ou simplesmente modificando sua idade.
Assim, bacharéis como os do Clube Radical defendiam que
parte da população escrava (na verdade a maioria dela, como bem
observou Rui Barbosa) e seus descendentes tinham o direito,
expresso em lei, à libertação imediata. Enquanto isso, “libertar
aos poucos”, sem nenhuma exceção, respeitando o direito à pro-
priedade, à indenização e à ordem do Estado, era a palavra de or-
dem que direcionava as discussões no Parlamento que resultaram
na lei de 1871. Tendo sido essa lei a primeira medida legal que
permitia que o Estado interviesse diretamente nas relações escra-
vistas, imprimia um significado muito claro, portanto, ao processo
de emancipação que, do ponto de vista da elite senhorial, se pre-
tendia fazer: uma transição lenta e gradual, preparando o escravo
para viver em liberdade, preservando acima de tudo a tranqüili-
dade e a estabilidade social do processo.50 Uma ruptura de tal
ordem na manutenção do domínio senhorial, como a sugerida pelos
liberais radicais de São Paulo, não só trataria muitos proprietários
como réus, como também colocaria de chofre centenas de libertos
nas ruas. Ambas as situações eram vistas como extremamente perigo-
sas para a preservação da ordem política e social.51 Ficava patente,
dessa forma, o conteúdo político explosivo da interpretação dada
por Luiz Gama e outros advogados abolicionistas à lei de 1831, capaz
de colocar em xeque a autoridade dos senhores sobre seus escravos.
Não há, como observado anteriormente, maneira de saber
com precisão desde quando tal lei estava sendo utilizada com esses
significados nos foros. Entretanto a tentativa dos dirigentes em
obstruir sua utilização já vinha de outros tempos. É o que Eduardo
Spiller Pena deixa muito claro, em seu trabalho sobre os debates
a respeito da escravidão entre os membros do Instituto dos Advo-
gados do Brasil. Ao analisar a postura jurídico-política de Perdigão
Malheiro, um de seus presidentes, quanto ao fim da escravidão,
esse autor observa que, desde o começo da década de 1860, em
NOTAS
1 Cf., entre outros, Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras,
1990; Joseli Mendonça, Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os
caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP , CECULT,
1999 ; Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escra-
vidão e a lei de 1871 . Campinas: Editora da UNICAMP , CECULT , 2001 ; e
Keila Grinberg, O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito
civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002. Ver ainda Hebe Maria de Mattos Castro, Das cores do si-
lêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1995 .
2 Para uma análise da trajetória de Luiz Gama, ver Elciene Azevedo, Orfeu
de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo.
Campinas: Editora da UNICAMP, CECULT, 1999.
3 Cf. Chalhoub, op. cit., pp. 170-74 ; e Maria Helena P. T. Machado, Crime e
escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. 1830-1888 .
São Paulo: Brasiliense, 1987 .
4 J. Vieira de Almeida, “Antonio Bento”, A Liberdade, 17 maio, 1888.
5 Diário Mercantil, 25 maio, 1888 . O jornalista, ao falar dos “trinta dinhei-
ros”, fazia uma alusão direta a uma famosa polêmica iniciada por Luiz Gama
quando ofereceu como pecúlio de uma jovem escrava a ínfima quantia de
30 mil réis, alegando que: “se é verdade, como a história o atesta, que a
liberdade de Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendida, perante o juiz hebreu,
por trinta dinheiros, não é estranhável que a suplicante se avaliasse por
trinta mil réis”. Cf. Elciene Azevedo, op. cit., especialmente o cap. 4.
6 Esses pressupostos podem ser observados em trabalhos de diferentes abor-
dagens, como, por exemplo, Maria Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos
africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880) .
São Paulo: HUCITEC, 1998 ; Maria Helena P. T. Machado, O plano e o pânico:
os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Editora da
UFRJ; São Paulo: EDUSP, 1994; Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra,
medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1987 ; Alice Aguiar de Barros Fontes, A prática aboli-
cionista em São Paulo: os caifases (1882 -1888 ). Dissertação de mestrado,
Departamento de História–FFLCH . São Paulo, USP, 1976 .
7 Sidney Chalhoub, op. cit. Abordagem semelhante em relação à lei de 28 de
setembro de 1885 pode ser conferida no estudo de Mendonça, op. cit.
8 Filho da africana Luiza Mahin, que vivia em liberdade, e de um português
do qual nada se sabe, Luiz Gama nasceu em 1832 , em Salvador, Bahia.
Aos 8 anos, teve a mãe presa por envolver-se nas revoltas escravas baianas
e foi vendido pelo pai como escravo — sendo levado para São Paulo. Aos
18 anos, Luiz Gama saiu do cativeiro provando, misteriosamente, sua condição
de homem livre. Entrou para o corpo policial, exercendo por vezes o cargo
de copista da delegacia. Desistiu da carreira militar após ser preso por
indisciplina e, ao sair da prisão, conseguiu o emprego de amanuense da
polícia graças à sua íntima relação de amizade com o delegado conselheiro
Maria Furtado de Mendonça. Lente da Academia de Direito e diretor de
sua biblioteca. Foi também por intermédio de Furtado que Luiz Gama,
autodidata, teve acesso aos conhecimentos de direito e jurisprudência. Cf.
Elciene Azevedo, op. cit.
9 Essa fase da vida de Luiz Gama pode ser acompanhada através da docu-
mentação policial encontrada no Arquivo do Estado de São Paulo.
10 Auto de apreensão do escravo José, 1868. Arquivo do Estado de São Paulo
(AESP), Processos policiais, CO 3.215, 1868.
11 Auto de apreensão do escravo José, 1868, op. cit. Cf. por exemplo, o ofício
do chefe de polícia ao delegado, ou seu mandado de apreensão endere-
çado ao diretor da Casa de Correção — ambos datados de 27 de janeiro
de 1868 .
12 Esses documentos são encontrados no 1o e 2o Ofícios Cíveis da Capital, nos
quais Luiz Gama aparece como solicitador de causas de manutenção de li-
berdade.
13 Autos de Intimação, Geralda de Oliveira contra Francisco de Paula Ferreira
Rezende, 1868. Arquivo Geral do Tribunal Judiciário de São Paulo (AGTJSP),
2o Ofício Cível, cx. 66 .
14 Diário de São Paulo, 1o dez., 1869. Furtado de Mendonça publicou uma
nota sobre a polêmica que travou nos jornais da capital com seu amigo
Luiz Gama. O primeiro havia sido acusado de manter colóquios secretos
com o presidente da província sobre as ações de Luiz Gama na delegacia e
de ter sido por ele incumbido de conter Gama. O delegado, ao contrário,
afirmava que, ao dar conselhos ao amanuense, não tivera a intenção de satis-
fazer os desejos de “quem quer que fosse”, mas o aconselhara simplesmente
“como amigo”. Cf. Elciene Azevedo, op. cit., pp. 111-24 .
15 Keila Grinberg defende que uma “militância da liberdade” entre bacharéis
que atuaram na primeira instância em questões de liberdade só se tenha con-
figurado depois da promulgação dessa lei — embora reconheça algumas ex-
ceções à regra. Grinberg, op. cit., pp. 255-56.
16 “Boçal” era a terminologia usada para caracterizar africanos recém-chega-
dos no Brasil que ainda não dominavam a língua portuguesa. Portanto, afir-
mar que Jacinto foi arrematado como escravo ainda “visivelmente boçal”
constitui prova de sua importação ilegal.
17 Autos crimes de injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872.
AGTJSP, 2o Ofício Cível, cx. 72 .
18 Autos crimes de injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872.
19 Durante o período de 1831 a 1837 , não havia unanimidade em torno da
questão da cessação do tráfico internacional de escravos, e os debates
parlamentares continuavam a discutir a questão: “o tráfico reassumiu a
constância anterior e até aumentou seu volume, apesar das duras penas
previstas na legislação”. Cf. Jaime Rodrigues, O infame comércio: pro-
postas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-
1850) . Campinas: Editora da UNICAMP , CECULT , 2000 , p. 108 . A esse res-
peito, ver também o artigo de Beatriz Gallotti Mamigonian nesta coletâ-
nea, “O direito de ser africano livre: os escravos e as interpretações da
lei de 1831 ”.
20 Autos crimes de injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872.
Utilizei antes esse processo, em Orfeu de carapinha, op. cit., cap. 2. Naquela
ocasião, a análise priorizou a repercussão política e social da demissão de
Luiz Gama, bem como sua experiência na construção tensa e conflituosa
de identidades e redes de solidariedade em que se apoiava para lutar por
seus ideais de republicano e abolicionista.
21 Assim foi qualificada pelo promotor, em audiência perante o juiz, a atitude
de Luiz Gama. Este, por sua vez, após ouvir essas acusações, se defendeu
com as seguintes palavras: “[...] as expressões de que fez cabedal a ilustrada
promotoria pública para fundamentar a petição inicial não constituem in-
júrias, porquanto sendo como de fato é, em face da lei de 1831 e respectivo
regulamento, fútil o despacho aludido, e provando crassa ignorância da parte
de quem o proferiu, a qualificação de estúpido em sentido restrito não é
uma ofensa, a menos que se pretenda injuriar o juiz ofendido cometendo-se
o absurdo de atribuir-se-lhe ilustração [...].” Cf. Autos cíveis de injúria. A
justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872. Apesar da ousadia, Luiz
Gama foi absolvido pelo júri popular em 1870, tendo ele mesmo sustentado
sua defesa oral no tribunal — embora a Loja Maçônica América tivesse in-
cumbido um de seus sócios, o bacharel Ferreira de Menezes, para acom-
panhá-lo. Correio Paulistano, 29 dez., 1870.
22 “Foro da capital”, Radical Paulistano, 13 nov., 1869.
23 “Foro da capital”, Radical Paulistano, 13 nov., 1869.
24 Keila Grinberg, Liberata, a lei da ambigüidade: ações de liberdade da Corte
de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994, p. 88. Das sete ações, quatro são resolvidas a favor da liberdade e três
a negam.
25 Cf. Beatriz Mamigonian, To be a liberated African in Brazil: labor and
citizenship in the nineteenth century. Tese de doutorado. Waterloo (Cana-
dá), University of Waterloo, 2002 , p. 259. Para outras estimativas sobre a
entrada ilegal de africanos no Brasil, ver Robert Edgar Conrad, Tumbeiros:
o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 42 -43 ;
Leslie Bethell, The abolitions of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil
and the slave trade question. 1807-1869. Cambridge: Cambridge University
Press, 1970; e Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do trá-
fico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
26 Em artigo que discute a trajetória de um grupo de africanos livres durante
a década de 1850 e 1860, Beatriz G. Mamigonian baseia-se na documentação
produzida pelas petições de emancipação junto ao governo imperial, moti-
vadas pelo decreto de 28 de dezembro de 1853, que ordenava a emancipação
dos africanos livres que tivessem servido a particulares pelo período de 14
anos. Cf. Mamigonian, “Do que o ‘preto mina’ é capaz: etnia e resistência
entre africanos livres”, Afro-Ásia, no 24 , 2000 , pp. 71-95 .
27 Mamigonian, To be a liberated African in Brazil, op. cit. Nesse estudo, a au-
tora analisa as experiências de trabalho, a distribuição de serviços e as alterna-
tivas de liberdade de mais de 11 mil africanos apreendidos pelo governo entre
1826 e 1856.
28 O “Decreto no 3.310 — Emancipação de africanos livres”, promulgado em
1864 , mandava que as cartas de emancipação fossem expedidas pelo Juízo
de Órfãos da Corte e capitais das províncias — segundo o controle feito
por meio das listagens que o governo tinha dos africanos distribuídos. Pas-
sadas as cartas, estas deveriam ser remetidas aos respectivos chefes de polí-
cia, para serem registradas e entregues aos emancipados. Os que estivessem
a serviço de particulares seriam recolhidos em estabelecimentos públicos
e levados à presença dos chefes de polícia. Quanto aos fugidos, a lei determi-
nava que a polícia publicasse editais pela imprensa, convocando-os a vir
receber suas cartas de liberdade. Idem, To be a liberated African in Brazil,
op. cit., “Anexos”, pp. 307-8. Quanto à hipótese de que Luiz Gama teria
recebido ordens para executar algumas dessas tarefas, cf. p. 264.
29 Idem, op. cit., pp. 259-78 .
30 Apud Rodrigues, op. cit., p. 111 .
31 Na lei aprovada em 1850, o tráfico foi juridicamente equiparado à pirataria
e os traficantes passaram a ficar sob a jurisdição da Auditoria da Marinha,
sujeitos à pena de prisão e despesas pela reexportação dos africanos. Já os
senhores que comprassem africanos entravam em outra categoria penal e
passariam a ser julgados na alçada comum da justiça, certamente mais
branda. Embora continuassem com o ônus da culpa, os compradores de
africanos ilegalmente importados eram excluídos da categoria de “donos
do negócio.” Baseio-me aqui na interpretação de Jaime Rodrigues (op. cit.,
esp. pp. 107 - 19), ao analisar os debates parlamentares sobre o fim do trá-
fico ocorridos entre 1831 e 1850 .
32 Dezesseis de Julho, 23 dez., 1869. Os destaques são de Luiz Gama. A nota
é reproduzida por ele em artigo publicado no Radical Paulistano de 8 de
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