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PARA ALÉM DOS TRIBUNAIS

ADVOGADOS E ESCRAVOS NO MOVIMENTO ABOLICIONISTA EM SÃO PAULO *

Elciene Azevedo

Nas últimas duas décadas, alguns estudos sobre a escravidão no Brasil


têm apontado para a participação de advogados e juízes simpáticos
à causa da liberdade no processo de abolição. Ao atuarem em ações
cíveis de liberdade impetradas pelos escravos contra seus senhores,
esses profissionais ajudaram a desestruturar a política de domínio
senhorial, minando as bases da ideologia que sustentava o cativeiro.
Se escravos buscavam alcançar na justiça a efetivação de seus direitos,
encontravam muitas vezes nos tribunais o respaldo de homens le-
trados dispostos a utilizar criativamente seu saber em favor do prin-
cípio da liberdade.1
Não é mero acaso, portanto, que um dos mais lembrados lí-
deres do movimento abolicionista em São Paulo, Luiz Gonzaga
Pinto da Gama, encerre em sua trajetória de vida experiências
que são, em muitos aspectos, semelhantes às de outros tantos sujei-
tos históricos presentes nesses estudos. Esse abolicionista foi es-
cravo durante boa parte de sua vida e conseguiu sua carta de liber-
dade acionando os dispositivos legais disponíveis, a exemplo do
que muitos outros escravos fizeram ao longo de todo o século XIX.
Por outro lado, Luiz Gama foi também advogado, ou melhor, um

* Agradeço aos colegas do Seminário Direitos e Justiça, realizado na UNICAMP


em maio de 2003, que discutiram a primeira versão deste texto — especial-
mente os comentários de Silvia Hunold Lara, Joseli Mendonça e Eduardo
Spiller Pena. Este artigo é parte da pesquisa realizada para a tese de doutorado
O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São
Paulo na segunda metade do século XIX, defendida na UNICAMP em 2003.

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rábula, que, mesmo sem ter tido a oportunidade de freqüentar os


bancos acadêmicos, fez do direito sua principal arma de luta contra
a escravidão.2
A importância de sua militância na justiça, advogando causas de
liberdade, pode ser atestada pela importância que ela tem como
definidora de uma determinada periodização do movimento abo-
licionista paulista. Sua morte, em 1882, foi freqüentemente tomada
como marco de uma profunda transformação ocorrida na luta abo-
licionista: a partir dela, o movimento teria deixado o tom moderado
daqueles que, como Gama, teriam sua luta definida pelos limites
do arsenal jurídico que utilizavam, para buscar alternativas menos
brandas de intervenção. Assim, a historiografia do processo da abo-
lição tem ressaltado, de forma quase unânime, a agência de advoga-
dos como Luiz Gama, mas esses profissionais têm sido vistos muitas
vezes sob o prisma da moderação, avaliando-se que suas lutas não
levavam a um questionamento efetivo das bases legais sobre as quais
se sustentava o regime escravista, configurando um tipo de “mili-
tância bem-comportada”.3
Na historiografia sobre São Paulo, essa oposição entre as ge-
rações de 1870 e 1880 aparece de forma bastante marcante, infor-
mada por uma certa memória paulista sobre o movimento. Refor-
çando uma versão que se sobrepôs a outras e transformando-a em
interpretação histórica, o conflituoso processo de construção dessa
memória acaba ficando oculto. Ao investigar a transformação da
figura de Luiz Gama em legenda do abolicionismo em São Paulo,
pode-se perceber como essa construção começou a ser forjada no
calor de seu engajamento político pela abolição imediata da escra-
vidão. Por intermédio de seus versos, artigos nos jornais e, prin-
cipalmente, de sua carta autobiográfica, contribuiu para a criação
de uma determinada imagem de si próprio, que, no entanto, seria
apropriada mais tarde com significados bastante diversos. Essa me-
mória se foi consolidando após sua morte, fazendo dele, naquele
momento, um dos símbolos principais da luta abolicionista — em
um movimento conflituoso, que pode ser acompanhado nas páginas
dos jornais paulistanos, nas quais aparecem as mais diversas e dís-
pares interpretações sobre sua atuação, elaboradas por seus con-

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temporâneos. Em 1888, entretanto, os vários projetos abolicio-


nistas elegeram personagens bastante distintos para o pedestal de
“verdadeiros heróis” da abolição. Um dos embates mais explícitos
foi o expresso no jornal A Liberdade, editado por Antônio Bento,
líder dos caifases:

Enquanto o abolicionismo limitou-se a reconhecer a lei, reque-


rendo o arbitramento dos libertandos; enquanto Luiz Gama e
Américo de Campos trabalharam no recinto das Lojas Maçônicas,
[...] o escravagismo respondeu-lhes com a lei, dizendo-lhes que
defendiam uma propriedade legitimamente adquirida.
Eles, bem como Ferreira de Menezes e José do Patrocínio assim
pareciam acreditar, porque, em vez de recorrerem aos meios deci-
sivos de que lançou mão Antonio Bento, contentavam-se em pro-
mover quermesses e passeatas, com o fim de estimular o senti-
mento nacional.4

Luiz Gama aparecia então, nesse jornal, como um dos repre-


sentantes de um abolicionismo essencialmente legalista, ao qual
faziam questão de se opor os que se achavam vitoriosos em 1888.
O tom pejorativo conferido a sua atuação, entendida por esses
homens como legitimadora da propriedade escrava, ressaltava va-
lorativamente a praticidade e a eficiência dos meios ilegais empre-
gados por Antônio Bento e o grupo dos corajosos caifases — que,
entrando nas fazendas, promoviam a fuga em massa dos cativos.
Um outro jornal chegou mesmo a afirmar que a propaganda abo-
licionista em São Paulo se teria iniciado a partir de Antônio Bento,
“porque só então apareceram os resultados práticos”. Foi quando
os caifases, “que não eram graduados em direito, arrogaram-se
outro ‘direito’, não de entrar nos tribunais e lançar nas conchas
da balança da justiça os trinta dinheiros, [...] mas o ‘direito’ de
escalar os quadrados”, libertando os escravos.5
Através das folhas do jornal A Redenção e A Liberdade, ór-
gãos dos caifases, Antônio Bento e seu grupo encarregaram-se de
estabelecer marcos para a história do abolicionismo paulista —
definindo duas etapas distintas, às quais esse grupo atribuiu signi-
ficados e valores próprios, que atendiam às suas intenções em 1888.

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Em parte informada por essa memória, estabeleceu-se assim um


consenso geral sobre o tema: São Paulo teria sido, na década de
1870, o palco do surgimento de atuações em favor da libertação
de escravos estritamente legalistas, de tom moderado, restritas
aos debates legislativos imigrantistas e à atuação forense de Luiz
Gama; só depois da morte de Gama, em 1882, se teria iniciado
um movimento abolicionista radical, de forte adesão popular, sim-
bolizado pela figura de Antônio Bento e seus caifases, que, deses-
tabilizando a propriedade escrava e desrespeitando sua legalidade,
se havia dirigido diretamente aos cativos.6
Carregada de significações, tal marcação temporal acaba,
porém, por atribuir valores externos aos acontecimentos que ca-
racterizariam esses dois momentos, como se o que viesse depois
fosse mais importante, ou melhor, mais legitimamente popular
ou espontaneamente revolucionário do que o que aconteceu antes.
Em última instância, pode-se dizer que essa oposição opera com o
antagonismo entre despolitização e politização, definindo o que é
ou não político a partir de idéias que são exteriores ao período ana-
lisado. Tais pressupostos acabam excluindo a possibilidade de per-
ceber como políticas as diversas formas de engajamento e envol-
vimento, tanto de escravos como de advogados e autoridades pú-
blicas, na atuação organizada em favor da liberdade, ainda nas
décadas anteriores à de 1880.
É claro que tal oposição também carrega em si uma inter-
pretação a respeito da participação dos escravos. Na fase definida
como “legalista”, os cativos estariam excluídos da ação aboli-
cionista, por incapazes de uma atuação na arena judicial. Lidera-
dos por Antônio Bento, num segundo momento, teriam partici-
pado mais ativamente das lutas em prol da abolição. Alguns estudos,
no entanto, como mencionado anteriormente, têm apontado o
quanto as lutas jurídicas pela liberdade contaram com a participa-
ção direta dos escravos. Sidney Chalhoub, por exemplo, mostrou
como o volume de ações de liberdade iniciadas ao longo da déca-
da de 1860, pelos escravos da Corte, e os debates jurídicos que
elas provocaram estiveram diretamente relacionados a aspectos
importantes do texto final da lei de 28 de setembro de 1871.7

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O fato de os escravos efetivamente buscarem, nesses bacha-


réis e rábulas, o apoio de que precisavam em suas lutas pela liber-
dade indica, portanto, outras possibilidades de leitura do papel
que esses profissionais desempenharam. Sem dúvida, a presença e
as pressões dos escravos nos tribunais são fundamentais para se
entender o processo da constituição do movimento abolicionista
em São Paulo. No entanto, seria impossível contar essa história
sem atentar para a atuação das pessoas que, nos tribunais, se asso-
ciaram a eles na busca pela alforria. A trajetória de Luiz Gama e
de alguns outros advogados de seu grupo pode ser um meio de
entender de forma mais densa essa relação, possibilitando, assim,
chegar aos significados que os contemporâneos atribuíram a suas
atuações dentro dos tribunais, bem como o que elas podem ter
representado fora deles. O objetivo deste artigo será, assim, o de
perseguir esses “militantes” e suas experiências — através de uma
análise que enfoque primordialmente suas ações, em diálogo com
a própria experiência e a expectativa dos escravos em relação às
instituições e autoridades públicas nesses anos.

A política da lei

No final da década de 1860, Luiz Gama era um funcionário públi-


co empregado na delegacia de polícia da capital de São Paulo.
Escravizado aos 8 anos de idade, havia sido libertado por volta de
1848, quando, a exemplo de muitos outros cativos, procurou as
autoridades públicas reclamando sua liberdade. Assim, tornou-se
um homem livre após provar judicialmente, em circunstâncias até
hoje pouco conhecidas, ter sido mantido em cativeiro ilegal.8 Vinte
anos depois, como amigo íntimo e amanuense do conselheiro
Furtado de Mendonça, delegado de polícia, exercia uma gama varia-
da de tarefas. Aparecendo nos processos policiais desde fins da dé-
cada de 1840, seu nome figura aqui e ali, primeiro como copista do
escrivão da delegacia, mais tarde como testemunha de apreensões,
autos de corpo de delito ou mandados de busca, ou ainda, com bas-
tante freqüência, como escrivão nos inquéritos da polícia.9

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Em janeiro de 1868, quando cumpria suas obrigações na dele-


gacia, por lá apareceu Vitor Augusto Monteiro Salgado, apresentando
três escravos e uma procuração. O proprietário, residente em Mogi
das Cruzes, havia confiado a ele plenos poderes para negociar seus
cativos, ou mesmo passar-lhes carta de liberdade, desde que houvesse
quem por eles pagasse o preço exigido. Salgado pretendia vender
os escravos na Corte e, para tanto, foi até a delegacia requerer pas-
saporte para que pudesse conduzi-los ao Rio de Janeiro sem pro-
blemas. Ao invés disso, entretanto, o que obteve do funcionário dessa
repartição foi resposta bem diversa. No lugar do passaporte, recebeu
o aviso de que um dos escravos que conduzia seria apresentado ao
chefe de polícia:

Apresento a v.s. o preto José, escravo do tenente-coronel Antonio


Mendes da Costa, africano, de 22 a 25 anos de idade, seguramente
importado depois da proibição legal do tráfico, o qual apreendi,
como livre, a fim de v.s. o leve à presença do exmo. sr. dr. chefe de
polícia.
Chamo a atenção de v.s. para a procuração inclusa, do próprio pu-
nho daquele tenente-coronel, na qual é assinada a idade de 28 anos
ao dito preto.
O amanuense da polícia Luiz Gonzaga Pinto da Gama.10

O raciocínio do amanuense foi simples e baseava-se em uma


conta aritmética. Se José tinha 28 anos, como declarava seu se-
nhor na procuração apresentada por Salgado, havia nascido em 1840
e, se era africano, como ele mesmo podia ver, só poderia ter en-
trado no Brasil depois da lei de proibição do tráfico negreiro,
promulgada em 7 de novembro de 1831. Assim, encaminhou José
a outro funcionário público, o secretário de polícia Antonio Lou-
zada Antunes, que, no mesmo dia, informou a apreensão do es-
cravo ao chefe de polícia interino, Tito Augusto Pereira de Mattos.
Este, por sua vez, mandou que José fosse imediatamente recolhido
à Casa de Correção e expediu um ofício ao delegado Furtado de
Mendonça, comunicando que o africano se achava a sua disposi-
ção — “como importado posteriormente à promulgação da lei
proibitiva do tráfico” — para que fossem tomados todos os pro-

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cedimentos de direito. Deu-se então início às investigações sobre


a legalidade ou não da condição escrava em que se encontrava José.
No vaivém das comunicações, ofícios e petições que com-
põem esse processo, salta aos olhos o fato de muitos dos despa-
chos serem assinados pelo secretário Louzada, seguidos da assi-
natura do chefe de polícia Tito Mattos, mas com uma caligrafia
que mostra terem sido, na verdade, escritos de próprio punho por
Luiz Gama — sugerindo o livre acesso e certa cumplicidade do
amanuense com pessoas do alto escalão da polícia.11 Louzada fazia
parte de um outro grupo do qual participava Luiz Gama: era ma-
çom. E a maçonaria, como veremos adiante, começava, por esses
anos, a aderir publicamente à causa da emancipação. Nesse caso,
tal proximidade provavelmente facilitou o rápido andamento dos
trâmites para a instauração de um processo cujas bases legais, como
também veremos, não eram assim tão simples como queria fazer
crer o amanuense.
De qualquer forma, a denúncia foi acatada pelo chefe de po-
lícia interino e o delegado Furtado deu início ao inquérito inter-
rogando José. Convencido de que havia indícios de que ele poderia
estar em cativeiro ilegal, essa autoridade expediu uma série de
mandados nomeando peritos para avaliar sua idade e identificar
sua “nação”; mandou depositar o suposto escravo e citar o senhor
para que este apresentasse provas que legitimassem sua proprie-
dade. Embora o processo, por estar incompleto, não permita saber
se José conseguiu ou não provar ser ilegalmente escravizado, ele
revela um pequeno fragmento do cotidiano da delegacia na capi-
tal, indicando a possibilidade de que funcionários como Luiz Gama
estivessem agindo politicamente no exercício rotineiro de suas
funções.
Assim como esse, vários outros processos semelhantes podem
ser encontrados em fins da década de 1860 — quando Luiz Gama
ainda não era o grande rábula das causas da liberdade, mas sim-
plesmente um funcionário que, em função do cargo que exercia,
lidava diretamente com os conflitos particulares entre senhores e
escravos que acabavam na delegacia, ainda que não tivesse para
isso nenhuma formação jurídica.12 Em 19 de junho do mesmo ano,

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por exemplo, encaminhou ao juiz municipal uma denúncia afir-


mando que a liberta Geralda de Oliveira, que vivia havia dois anos
no gozo de sua liberdade, havia sido, na noite anterior, “agarrada
extra-judicialmente pelo dr. Francisco de Paula Ferreira Rezende”.
Conduzida à força como se escrava fosse, se nenhuma providência
fosse tomada pelas autoridades competentes, alertava Luiz Gama
ao delegado, naquele mesmo dia ela seria obrigada a seguir de
trem para fora da província. Fornecia até mesmo detalhes de sua
localização: “acha-se em um rancho, no bairro das Palmeiras, nas
imediações do Arouche [...]”. A julgar pela urgência da situação, é
possível imaginar que alguém muito próximo de Geralda tenha corri-
do até a delegacia para pedir ajuda logo depois do acontecido. Fa-
miliarizado com os procedimentos legais, o papel do amanuense,
nesse caso, foi o de viabilizar o cumprimento de um direito de Ge-
ralda, fazendo a denúncia e requerendo, logo em seguida, que fosse
concedido mandado de manutenção de liberdade, “nos termos de
direito, a fim de que, em tempo oportuno, e na forma da lei”, ela
pudesse provar em juízo sua completa liberdade.13
Por essas e outras, pelo menos desde o início da década de
1860, Luiz Gama era freqüentemente “aconselhado” por seus supe-
riores a deixar de se envolver em questões dessa natureza, atitude
considerada inapropriada para um empregado da polícia, sob pena
de ser exonerado do cargo que exercia. O próprio Furtado de
Mendonça, delegado de polícia da capital, chegou a declarar que,
“como amigo” do amanuense, o aconselhara nesse sentido “des-
de 1864 ”. 14 Tais ameaças, por fim, se concretizaram em novem-
bro de 1869 , em um episódio de grande repercussão pública,
largamente comentado pela imprensa paulistana, que teve como
estopim um caso parecido com o do africano José. Por seu teor,
altamente polêmico, o fato é especialmente revelador do surgi-
mento, na capital, de uma das províncias mais escravistas do Im-
pério, de um forte engajamento político que, apoiando as reivin-
dicações escravas na justiça, tentava usar a lei como aliada na luta
pela abolição. O que argumento aqui é que esse movimento surgiu
antes mesmo da promulgação da lei de 28 de setembro de 1871 —
que, ao legalizar o pecúlio e a alforria forçada, tornou as ações de

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liberdade processos sumários — e teve dimensões significativas


para a análise da participação escrava no processo da abolição.15
Em outubro de 1869, Luiz Gama enviou uma petição ao juiz
municipal suplente da capital, Antônio Pinto do Rego Freitas,
contando a história do africano Jacinto, “Congo de nação”, que se
dizia importado no Rio de Janeiro em 1848 e levado para Jaguari,
Minas Gerais, por Antonio da Cunha. Tendo este falecido em 1849,
Jacinto, que ainda era “visivelmente boçal”, foi arrematado em
praça por Antonio Gonçalves Pereira.16 Em poder de Pereira, ca-
sou-se com sua escrava de nome Ana, de nação Cabinda, importa-
da para o Brasil em 1850 e comprada em Jaguari no mesmo ano.
Como prova da ilegalidade da condição escrava do casal, Luiz Gama
mencionava o fato de ambos terem sido batizados em Jaguari “pelo
finado padre Joaquim José de Melo” e, apesar de poderem contar
com o testemunho de seus padrinhos, nada constava nos livros de
assentamento, “seguramente para evitar-se conhecimento da fraude
[a] que procedeu o referido padre, batizando[-os] como escravos
africanos livres”.17
Gonçalves Pereira, sabendo que “a propriedade que tinha
sobre tais indivíduos era ilegal, e corria riscos de perdê-la”, le-
vou-os para a cidade de Amparo, província de São Paulo, e os ven-
deu a Inácio Preto. Em meio a uma lista enorme de nomes de
testemunhas que poderiam atestar a importação “ilegal e crimi-
nosa” de Jacinto e Ana, Luiz Gama terminava a petição requerendo
o que considerava ser de direito desses africanos:

Em vista do que exposto fica vem o abaixo assinado requerer à


v.s. que se digne mandar por incontinente em depósito o africano
Jacinto; requisitar, com urgência, a apresentação e remessa da
mulher do mesmo, de nome Ana, do Amparo para esta cidade,
para ser igualmente depositada; e, por precatória, mandar ouvir
as testemunhas indicadas; e afinal declarando livres os ditos afri-
canos — nos termos da lei de 7 de novembro de 183 1, regula-
mento de 12 de abril de 1832, e mais disposições em vigor —
oficiar ao juízo municipal de Jaguari para que reconheça e mante-
nha em liberdade, pelos meios judiciais, os filhos dos mencionados
africanos, de nomes — Joana, Catarina, Inácia, Benedita, Agosti-

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nho, Rita, João, Sabino, Eva e Sebastião, e os seus netos, Mariana


e Marcelino.
O abaixo-assinado jura a boa-fé com que dá a presente denúncia e
compromete-se a acompanhar o seu andamento em juízo, pres-
tando os esclarecimentos que forem necessários”.18

A resposta do juiz Rego Freitas foi tão simples quanto Luiz


Gama fez parecer ser, à primeira vista, o direito à liberdade de
Jacinto, sua mulher, seus dez filhos e dois netos, baseado em uma
lei que, mesmo logo após ter sido promulgada, gerou inúmeros
debates sobre sua aplicação e credibilidade. 19 Sem atender ao
pedido de depósito judicial de Jacinto e seus familiares, limi-
tou-se a declarar laconicamente a incompetência de seu juízo,
pois, sendo o senhor do escravo residente em Amparo, o caso
não competia à sua jurisdição. Depois de pedir que o juiz recon-
siderasse o seu despacho sem, no entanto, ser atendido, Luiz
Gama voltou pela terceira vez em juízo protestando contra a
“crassa ignorância” do magistrado em matéria que, na sua opi-
nião, era “muito clara e positiva”. Advertia, portanto, que tama-
nho despropósito o obrigaria a tornar a sua presença tantas ve-
zes quantas fossem necessárias para “coagi-lo a cumprir sincera-
mente o seu rigoroso dever”.

Convença-se v.s. de que o suplicante tem moralidade e coragem


para manter esse juízo na condição legal a que o há de elevar, a
despeito do estúpido emperramento com que luta. E disto bem
seguro, pede a v.s. que se digne reconsiderar o seu fútil despacho
hoje proferido.
São Paulo, 5 de novembro de 1869.20

Foram exatamente essas palavras que levaram Gama a per-


der o emprego de amanuense da delegacia de polícia, além de ser
indiciado como réu em um processo crime por injúria e calúnia,
pelo “descomedimento descabido” e pelos qualificativos nada li-
sonjeiros com que se havia oposto ao despacho do magistrado.21 À
parte a virulência formal da petição do rábula, cujo tom desafiava
os conhecimentos jurídicos do juiz municipal, ressalte-se a radi-

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calidade da apropriação que Luiz Gama fazia, naquele momento,


de uma lei que produzira poucos resultados desde que fora pro-
mulgada. Ainda que muitos se esforçassem por fazer dela letra
morta, ele — ao contrário —, via nela “matéria clara e positiva”,
tentando com isso forçar a justiça a decidir por sua aplicação. O
juiz, talvez subestimando o cabedal jurídico do amanuense, ou
ainda prudente devido à complexidade da questão, tentava ganhar
tempo, como que a esperar que o vulcão que ameaçava o seu juízo
desistisse de entrar em erupção. Mas tal atitude não fazia o estilo
de Luiz Gama e dos que com ele levavam adiante empreitadas como
estas. O conflito saiu então do cartório e tomou as páginas dos
jornais, ainda com mais vigor. Ali, o requerimento de Jacinto foi
tratado igualmente como matéria jurídica muito óbvia, “toda fir-
mada em lei”, sem nenhuma “controvérsia”.22
Na arena judicial, Luiz Gama foi sumariamente impedido de
levar adiante a pretensão de liberdade dos 14 cativos, pelo indefe-
rimento do juiz municipal. Entretanto, nas páginas do jornal Ra-
dical Paulistano, do qual era um dos redatores, o caso veio a públi-
co, e mais uma estratégia podia ser acionada: a de exercer pressão
sobre a decisão da justiça, por meio da divulgação detalhada do
que acontecia dentro dos tribunais. Prática rotineira nesse período
entre esses profissionais, os jornais eram espaços privilegiados de
debates sobre questões variadas do universo jurídico. Discutiam-se
em suas páginas desde interpretações de jurisprudência e questio-
namento de sentenças até escândalos e denúncias de procedimentos
antiéticos por parte de juízes, delegados, advogados e promotores.
No Radical Paulistano, Luiz Gama era responsável por uma coluna
chamada “Foro da capital”, espécie de crônica de bastidores dos tri-
bunais que, a despeito do nome, também tratava de litígios de outras
localidades da província. Por meio desse veículo, pôde dar continui-
dade à contenda jurídica iniciada com Rego Freitas, protestando contra
sua decisão:

REQUEIRA AO JUÍZO COMPETENTE?!


Consinta o impotente juiz, sem ofensa do seu amor próprio, que
muito respeito, [...]que eu lhe dê uma proveitosa lição de direito,

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para que não continue a enxovalhar em público o pergaminho de


bacharel [...].
Esta lição está contida e escrita com a maior clareza na seguinte
disposição da lei, que o meritíssimo juiz parece ou finge ignorar:
“Em qualquer tempo que o preto requerer A QUALQUER JUIZ DE
PAZ , ou criminal, que veio para o Brasil depois da extinção do
tráfico, o juiz o interrogará sobre todas as circunstâncias que pos-
sam esclarecer o fato, e OFICIALMENTE PROCEDERÁ TODAS AS DILI-
GÊNCIAS NECESSÁRIAS PARA CERTIFICAR - SE D’ELE , obrigando o senhor
a desfazerem as dúvidas que suscitarem a tal respeito.
HAVENDO PRESUNÇÕES VEEMENTES DE SER O PRETO LIVRE , O MANDA-
RÁ DEPOSITAR e proceder nos mais termos da lei.”
Nestas disposições é que deverá o sr. dr. Rego Freitas estribar o
seu despacho, como juiz íntegro, e não em sofismas fúteis, que
bem revelam a intenção de frustar o direito de um miserável afri-
cano, que não possui brasões nem títulos honoríficos para desper-
tar as simpatias e a veia jurídica do eminente e amestrado juris-
consulto.23

A disposição da lei citada nessas provocadoras linhas dizia


respeito ao artigo 10o do decreto de 12 de abril de 1832, que vi-
sava regulamentar a lei de 7 de novembro de 1831 no aspecto
administrativo. O argumento de Luiz Gama buscava ressaltar que
esse decreto tratava de um princípio geral e indubitavelmente
pensado para favorecer todos os escravos que, introduzidos atra-
vés do tráfico ilegal em território brasileiro, requeressem seu di-
reito à liberdade em qualquer foro comum. A lei reconhecia essa
competência, portanto, ao juiz municipal de São Paulo: a ele ca-
bia assim considerá-la, interrogando Jacinto e colocando-o em
depósito judicial. Dessa forma, Luiz Gama chamava publicamente
Rego Freitas a assumir a responsabilidade de seu papel de magis-
trado, que deveria ser imparcial, sem envolver-se em questões
particulares ou políticas, geradas por outros interesses que não o
de direito, expresso na letra da lei. Ao mesmo tempo, ao dar ao
juiz uma “proveitosa lição de direito”, desenvolvia para o público,
formado por leigos, mas também por profissionais da área, a inter-
pretação que vinha fazendo daqueles dispositivos legais quase

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esquecidos no foro da capital. Usando desse espaço, Gama não só


informava os leitores sobre as questões debatidas no foro, procu-
rando conquistar a opinião deles em favor da sua causa, como tam-
bém esmiuçava a instrumentalização de mais uma lei que poderia
ser acionada por outros escravos africanos e seus advogados. De certa
forma, criava, por meio do jornal, uma espécie de jurisprudência.
Ao longo de toda a polêmica gerada pela demissão de Luiz
Gama — transformada em escândalo político pelos jornais da ca-
pital —, aos poucos se iam revelando as intenções e motivações
de Rego Freitas que haviam resultado no “fútil” despacho. Como
bem ironizou Gama, difícil seria acreditar que esse juiz ignorasse
as disposições da lei. Contudo, de todos os argumentos de que os
escravos, até então, poderiam lançar mão para conseguir sua liber-
dade na arena judiciária, este, sem sombra de dúvida, era o mais
explosivo. Um verdadeiro “vulcão”, nas palavras do conselheiro
delegado de polícia Furtado de Mendonça. Nesse período, a ma-
téria era pouco discutida nos foros e, até então, eram bastante
incomuns ações de liberdade que se apoiassem na lei de 1831.
Keila Grinberg, ao estudar as ações de liberdade que foram
julgadas na Corte de Apelação no Rio de Janeiro durante todo o
século XIX, observou que esse argumento aparece pela primeira
vez nessa instância superior em meados da década de 1860. Para o
período que vai de 1865 a 1870, ela localizou apenas sete dessas
ações, todas vindas do extremo sul do país, mas apresentando um
argumento bastante peculiar. Com base nessa lei, os advogados
requeriam que fossem considerados livres alguns escravos que,
acompanhando seus senhores ou conduzindo gado, haviam passado
para as terras do Uruguai — país que, desde 1840, abolira a escra-
vidão. Ao voltarem ao território brasileiro, argumentava-se que, do
ponto de vista jurídico, deveriam ser considerados como se tives-
sem sido reescravizados ilegalmente, por meio do tráfico.24
A questão de Jacinto, no entanto, era bem diferente. Sua com-
plexidade estava no fato de que ele era um dos milhares de africanos
que, durante os 20 anos que separaram essa lei do efetivo término
do tráfico em 1850, haviam sido trazidos ilegalmente como escra-
vos para o Brasil, sob as vistas grossas do governo. Estima-se que,

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nesse período, cerca de 760 mil africanos tenham entrado no país


nessas condições.25 Os que foram efetivamente apreendidos na re-
pressão ao tráfico acabaram constituindo uma categoria diferenciada
na sociedade escravista. Embora o parágrafo primeiro da lei determi-
nasse que os africanos encontrados nos navios apreendidos deveriam
ser imediatamente declarados livres, eles permaneceram sob a custó-
dia do governo e passaram a ter seus serviços arrematados por parti-
culares, ou alocados nas instituições públicas, pelo período de 14 anos.
Beatriz Gallotti Mamigonian demonstrou que, apesar das
cláusulas e condições que pretendiam assegurar a liberdade a es-
ses africanos, na prática os arranjos de trabalho a que foram sub-
metidos privilegiavam o controle social e os interesses senhoriais,
em detrimento do reconhecimento de suas autonomias. Muitas
vezes, a locação dos serviços desses trabalhadores, que não eram
escravos pela lei, tampouco livres na prática, resultou em experiên-
cias de trabalho compulsório muito próximas da escravidão; princi-
palmente quando se passou a permitir que sua distribuição se desse
também para outras províncias do país, não se limitando apenas
ao município neutro, onde a fiscalização poderia ser mais efetiva.
Em 1853, um decreto ordenou que africanos livres que já tivessem
cumprido os 14 anos de trabalho fossem emancipados. Mas a me-
dida valia unicamente para os que assim o requeressem, e eles
ainda eram obrigados a se empregar em ocupação assalariada e
residir em lugares determinados pelo Estado.26 Foi somente em
1864 que o governo imperial, sob intensa pressão do governo in-
glês, expediu finalmente um decreto-lei ordenando a emancipação
imediata de todos os africanos livres apreendidos que estivessem
a serviço do Estado ou de particulares.27
Embora seja difícil definir a partir de quando se passou a usar
a lei de 1831 com o significado em que aparece na ação de Jacinto, a
primeira referência encontrada — na cidade de São Paulo — data
de 1868, exatamente nos documentos, elaborados por Luiz Gama,
referentes à apreensão do africano José — apenas quatro anos de-
pois que um número enorme de africanos livres, mantidos nas con-
dições descritas acima, haviam recebido do governo a carta de li-
berdade. Essa referência, contudo, não elimina a possibilidade de

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que casos semelhantes tenham ocorrido antes dessa data, em cir-


cunstâncias parecidas. A história de José revela que Luiz Gama
estava muito bem informado e, sobretudo, atento, no que dizia res-
peito às questões jurídicas que envolviam o tráfico ilegal de africa-
nos — e, de certo modo, contava com apoio de colegas da reparti-
ção. Beatriz Mamigonian levanta também a hipótese de que Gama,
por ser amanuense da Secretaria de Polícia, em 1864, poderia ter
trabalhado em questões administrativas referentes ao cumprimento
do decreto que emancipava os africanos livres — já que cabia aos
chefes de polícia das províncias registrar e entregar as cartas de
liberdade.28 A disposição desse funcionário em levar à justiça casos
como os de José e Jacinto — que permaneciam em cativeiro por
terem passado “desapercebidos” pela fiscalização, ou por terem
sido comercializados pelos senhores que os receberam do gover-
no — evidencia como a questão, que se pretendia dar por encerra-
da através do decreto-lei de 1864, estava longe de ser resolvida.29
Na verdade, o problema proveniente da obtenção de “pro-
priedade servil” por meio do tráfico ilegal era premente desde
que a primeira tentativa de proibir o tráfico, em 1831, fora promul-
gada, e continuou a abalar os nervos dos proprietários de escravos
até a promulgação da lei de 1850. Não havia consenso a respeito
da extinção do tráfico, e diversas propostas passaram a ser apre-
sentadas e discutidas no Parlamento durante toda a década de 1840.
De um lado, procurava-se preservar os interesses dos senhores,
que pressionavam por modificações na lei de 1831; de outro, ha-
via a crescente pressão inglesa, exigindo o fim do comércio atlân-
tico de escravos. Em 1837, o próprio autor da lei de 1831, Caldeira
Brant — o marquês de Barbacena —, elaborou um novo projeto
que incluía o seguinte dispositivo: “Nenhuma ação poderá ser ten-
tada contra os que tiverem comprado escravos, depois de desem-
barcados, e fica revogada a lei de 7 de novembro de 1831, e todas
as outras em contrário”.30 Se a nova proposta de Brant fosse aprova-
da, os compradores de escravos provenientes do tráfico clandestino
ficariam protegidos contra qualquer ação penal. Do mesmo modo,
os africanos livres vendidos ilegalmente como escravos ficariam
proibidos de reivindicar judicialmente seu direito à liberdade.

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Todavia, depois de muitos debates, o projeto que finalmente


foi aprovado na Câmara e resultou na lei de 1850, apesar de não
incluir nenhum dispositivo revogando a lei de 1831, foi, do ponto
de vista penal, mais brando em relação à punição dos senhores
que adquirissem escravos introduzidos no Brasil pelo comércio
ilegal. Os senhores já não se sentiam tão ameaçados.31
O “perigo” da interpretação que Luiz Gama estava fazendo
da lei de 1831, portanto, já estava presente nas discussões parla-
mentares que precederam a extinção definitiva do tráfico em 1850.
Luiz Gama conferia uma nova dimensão ao problema, ao considerar
que esses 760 mil africanos ilegalmente introduzidos no Brasil ti-
nham direito igual aos que foram emancipados como africanos li-
vres em 1864, e que, ainda mais, esse direito se estendia a todos os
seus descendentes. Embora sustentasse sua argumentação no dever,
atribuído ao magistrado, de reconhecer um direito que pretendia
ser positivo, ao utilizar-se da lei de 1831 como forma de lutar pela
liberdade de escravos como José e Jacinto, fazia da aplicação da
norma legal uma questão claramente política. O reconhecimento
desse direito nada tinha, porém, de positivo aos olhos da adminis-
tração pública — comprometida com os interesses de muitos senho-
res que tinham sob seu domínio africanos que, aos olhos de Gama,
tinham sido criminosamente reduzidos à escravidão ilegal.
É o que fica evidente na reconstituição da conjuntura em que
esse significado explosivo, conferido à lei de 1831, começava a sur-
gir em São Paulo. No jornal Dezesseis de Julho, folha publicada na
Corte e fundada pelo então ministro da Justiça José de Alencar, na
seção “Correspondência de São Paulo”, lia-se o tópico seguinte:

O chefe de polícia interino acaba de demitir um amanuense da


repartição de polícia, Luiz Gama, que, além de orar há tempos no
clube Radical contra tudo, fazia garbo de perturbar a propriedade
servil. [...]
ERA SEU DIREITO CERTAMENTE; [...] mas não podia continuar a ser
funcionário público!...32

O chefe de polícia interino, a quem coube a tarefa inglória


de demitir o amanuense, era o juiz de direito de Campinas Vicente

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Ferreira da Silva Bueno. Como amigo que era de Luiz Gama, deu
declarações particulares (tornadas públicas pelos jornais) afirmando
que o fazia contra a vontade, obedecendo a ordens do presidente da
província, Antônio Cândido da Rocha.33 Mais que isso, dizia-se ainda
que o juiz municipal Rego Freitas havia sido assessorado por esse
último antes de emitir seu “estúpido” despacho.34 Ao governo da
província não interessava que a “propriedade servil” fosse tão pe-
rigosamente “perturbada” nos tribunais de primeira instância. De
fato, o vulcão abalava muitas áreas. Grande parte da polêmica em
torno da exoneração de Gama, tratada de forma muito natural pelo
jornal da Corte, foi gerada justamente porque explicitou a intro-
missão direta do poder Executivo em uma questão judicial de li-
berdade — apesar de a constituição brasileira garantir a indepen-
dência entre esses dois poderes. Observação nesse sentido fazia o
jornalista Américo de Campos, em artigo em defesa do amigo, pu-
blicado no Correio Paulistano: “[...] magistratura independente, diz
a lei; sim, mas com a condição de que há de ser muda e dócil ao
menor aceno da política”.35
Os sobressaltos das autoridades provinciais, portanto, não
eram motivados somente pela conduta individual e voluntarista
de um amanuense que, após viver a experiência da escravidão, em-
penhava-se para libertar outros cativos. As autoridades pareciam
preocupar-se com uma conjunção de fatores que envolviam algo
mais que a determinação pessoal de um rábula que incomodava
os que zelavam pela ordem e defendiam a propriedade servil.
Como a mesma nota do Dezesseis de Julho observava, havia o “in-
conveniente”, por assim dizer, de Gama estar ligado ao Clube
Radical — grupo político nascido de uma profunda dissidência
no Partido Liberal.
Órgão fundado em São Paulo em 1868, a exemplo do que
ocorria em várias outras cidades do país, o clube nascera das tur-
bulências políticas geradas pela volta dos conservadores ao poder,
depois da queda do gabinete liberal de Zacarias de Góes.36 A ver-
tente mais radical do Partido Liberal organizara-se então nesses
clubes, que, alguns anos depois, se transformaram em clubes repu-
blicanos. Em São Paulo, suas bases deram origem ao Partido Re-

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publicano Paulista, em 1873. Entre seus sócios fundadores na ca-


pital, os quais também se encarregavam da redação do seu órgão
de propaganda (o já citado jornal Radical Paulistano), encontramos,
juntamente com Luiz Gama, Rui Barbosa e Ferreira de Menezes,
que cursavam a Academia de Direito em São Paulo; o jornalista e
advogado Américo de Campos, Bernardino Pamplona de Menezes
e Freitas Coutinho. Uma das diversas reformas que propunham,
fosse através do jornal ou das conferências públicas que promoviam
no Teatro São José, era justamente a “separação da judicatura da
política”, a “substituição do trabalho servil pelo trabalho livre” e a
“extinção do Poder Moderador”.37 Esse último tópico foi o tema
abordado pelo orador Luiz Gama na primeira conferência pública
realizada pelo clube — dirigida a uma platéia que havia comprado
ingressos para ouvi-lo.38
Além da filiação política partidária do amanuense, que não o
ajudava muito a manter seu emprego na repartição pública, Gama
estava ainda envolvido com uma organização de outra ordem, mas
que igualmente fazia questão de tornar público seu vivo interesse
pelas questões de liberdade. Assim como quase a maioria dos outros
sócios do Clube Radical, era maçom. Não se sabe bem ao certo
desde quando teria sido aceito na maçonaria; contudo, em 23 de
abril de 1868, foi condecorado com o grau 18 — soberano prín-
cipe da Rosa Cruz —, um dos mais importantes do rito escocês.
Em novembro desse mesmo ano participou da fundação da Loja
América, ao lado de Rui Barbosa, Salvador de Mendonça, o secre-
tário de polícia Antonio Louzada Antunes, Ferreira de Menezes,
Américo Braziliense, Américo de Campos e seu irmão Bernardino,
Olympio da Paixão, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e Azevedo
Marques, esse último proprietário do jornal de maior circulação
da capital na época, o Correio Paulistano. Embora o caráter se-
creto dessa organização dificulte o trabalho do historiador quanto
à avaliação do alcance de seu envolvimento no movimento eman-
cipador, é sintomático, contudo, que, em 1867, a Junta Francesa
para Emancipação dos Negros, formada por intelectuais maçons,
tenha enviado uma representação ao governo brasileiro exortan-
do-o a abolir a escravidão.39

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Durante todo o ano de 1869 até inícios da década de 1870,


era também bastante comum encontrar, em meio aos inúmeros
anúncios dos jornais Radical Paulistano, Correio Paulistano e
Ypiranga (todos comprometidos com as idéias liberais), alguns dos
membros bacharéis dessa loja maçônica, oferecendo aos escravos
seus préstimos de advogado. Colocavam-se à disposição para sus-
tentar gratuitamente, perante os tribunais, “questões de liberdade”.
Os que se incumbiam dessa tarefa eram Luiz Gama, Américo de
Campos, Olympio da Paixão e Antonio José Ferreira Braga Jú-
nior.40 Durante esses seus primeiros anos de existência, o engaja-
mento da Loja América na luta dos escravos que buscavam suas
alforrias judicialmente era amplamente divulgado pela imprensa.
Passados apenas três anos de sua fundação, participavam ao públi-
co que “o número de libertandos por via de ações no foro desta
capital, e em outros por determinação da loja, sobem a mais de
trezentos”. 41
A curta passagem de Jacinto pelo foro da capital acabou por
ligar-se, portanto, a conflitos decorrentes da atuação de um grupo
de homens letrados que fazia política partidária de oposição ao
governo imperial — no qual foi gestado o Partido Republicano
Paulista — e, por intermédio da maçonaria, colocava alguns de
seus princípios “democráticos” em prática. Tendo sócios e proje-
tos políticos em comum, a Loja América e o Clube Radical Pau-
listano agitavam publicamente questões como a defendida na 5a
Conferência Pública promovida pelos liberais radicais a 12 de se-
tembro de 1869 — um mês antes da ação proposta pelo africano
Jacinto —, na qual o jovem Rui Barbosa versava sobre a substitui-
ção do trabalho servil. Nesse discurso, defendia que a emancipação
deveria ser antes “um princípio de interesse universal e não uma
reforma política”. Fosse pela pressão do “espírito do século”, fos-
se para evitar que os seus vícios penetrassem ainda mais nas insti-
tuições e costumes pátrios, apontava para a “necessidade urgente,
imediata, absoluta”, de acabar com a escravidão. Argumentava ainda
a favor do reconhecimento da superioridade do trabalho livre so-
bre o trabalho servil, mostrando que a “sede de imigração euro-
péia” seria incompatível com a escravidão.42

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É possível perceber nesse seu texto, ou em outros artigos


publicados no Radical Paulistano, muitos dos argumentos conser-
vadores que norteavam as discussões sobre a emancipação escrava
e precederam a aprovação da lei de 1871. O artigo-programa do
Radical Paulistano, publicado a 17 de maio, é exemplar nesse sen-
tido. Seu quinto item era dedicado a apresentar aos leitores o modo
como se deveria dar a “emancipação dos escravos: consistindo na
liberdade de todos os filhos de escravos, que nascerem desde a
data da lei, e na alforria gradual dos escravos existentes, pelo modo
que oportunamente será declarado”.43 Essa postura, no entanto,
era uma resposta e, ao mesmo tempo, uma provocação desse grupo
político contra o conservadorismo do Gabinete Itaboraí — do qual
José de Alencar fazia parte como ministro da Justiça. Esse gabinete
não se havia pronunciado sobre a escravidão, recuando em relação
às falas do trono de 1867 e 1868, quando essa questão fora colocada
oficialmente na pauta das reformas por gabinetes liberais. Isso fica
claro ao final do artigo, quando afirmavam ser “um dever inerente
à missão do Partido Liberal, e uma grande glória para ele, a reivin-
dicação da liberdade de tantos milhares de homens, que vivem na
opressão e na humilhação”.44
A Conferência Pública proferida por Rui Barbosa, contudo,
defendia uma outra proposta de encaminhamento prático para o
problema, que ia muito além da libertação do ventre e da conserva-
dora idéia da emancipação “lenta, gradual e segura” a que ficou
restrito o artigo-programa:

A emancipação — diz[ia] o orador — é muito mais fácil em nosso


país do que em todos aqueles onde se tem efetuado até hoje: 1o
porque uma porção imensa de propriedade servil existente entre
nós, além de ilegítima como toda a escravidão, É TAMBÉM ILEGAL,
EM VIRTUDE DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831 , E DO REGULAMENTO
RESPECTIVO QUE DECLARARAM EXPRESSAMENTE “ QUE SÃO LIVRES TO-
DOS OS AFRICANOS IMPORTADOS DAQUELA DATA EM DIANTE ” — don-
de se conclui que o governo tem a obrigação de verificar escrupu-
losamente os títulos dos senhores, e proceder na forma do decreto
sobre a escravatura introduzida pelo contrabando [...].45

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Bastava, assim, empenho do governo no cumprimento de uma


lei que já existia havia tempos, e grande parte do problema estaria
solucionado. A simples análise da nacionalidade e idade dos cativos,
declaradas nos títulos de propriedade dos senhores, seria suficiente
para esclarecer se sua propriedade provinha ou não do tráfico ile-
gal. Mais do que afirmar o respaldo jurídico da causa de escravos
como Jacinto, ao devolver a liberdade a quem havia sido crimino-
samente escravizado, tal visão amparava legalmente o poder pú-
blico quanto a sua desobrigação de indenizar os senhores por suas
propriedades — já que estas seriam de procedência ilegal.
Além de tocar em uma questão juridicamente polêmica e de
representar um abalo significativo na estrutura de produção es-
cravista, esse discurso ia ao encontro de muitos outros receios
senhoriais. Com tais argumentos, Rui Barbosa, em nome do Clu-
be Radical — assim como Luiz Gama no foro e nos jornais, em
nome do escravo Jacinto —, apontava para uma via de ação que,
levada às últimas conseqüências, questionava um dos principais
pilares que sustentavam a escravidão: o “sagrado” direito legal e
positivo à “propriedade servil”. Este era um ponto bastante deli-
cado no contexto das discussões sobre o encaminhamento do pro-
blema do elemento servil. É bom lembrar que, dois anos depois
desse episódio, a lei de 28 de setembro de 1871, que legalizou a
chamada “alforria forçada” e estancou a escravidão libertando o
ventre — não sem a devida indenização aos senhores46 — foi apro-
vada sem que nenhuma palavra a respeito da propriedade escrava
proveniente do tráfico ilegal fosse dita. Mais que isso, o artigo 8o
dessa lei dispunha sobre a obrigatoriedade da matrícula de todos
os escravos existentes no Império,47 “com declaração do nome,
sexo, estado, aptidão para o trabalho e a filiação de cada um, se
for conhecida”, porém era omisso quanto a sua nacionalidade.48
Era como se o governo desse a questão por encerrada; ou, ainda,
como analisaria anos mais tarde um conselheiro de Estado, esse
dispositivo genérico da lei teria criado a possibilidade da seguinte
interpretação: ele simplesmente “legaliza[va] a escravidão, exis-
tente no Brasil, dos africanos importados depois de 1831”.49 De
fato, o conselheiro tinha razão. O mais importante é que a ma-

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trícula dos escravos estava nas mãos dos senhores, pois era feita a
partir de suas declarações. Sendo assim, o governo criava um docu-
mento legal que possibilitava que os senhores regularizassem a situa-
ção dos africanos que mantinham ilegalmente como escravos, omi-
tindo sua naturalidade ou simplesmente modificando sua idade.
Assim, bacharéis como os do Clube Radical defendiam que
parte da população escrava (na verdade a maioria dela, como bem
observou Rui Barbosa) e seus descendentes tinham o direito,
expresso em lei, à libertação imediata. Enquanto isso, “libertar
aos poucos”, sem nenhuma exceção, respeitando o direito à pro-
priedade, à indenização e à ordem do Estado, era a palavra de or-
dem que direcionava as discussões no Parlamento que resultaram
na lei de 1871. Tendo sido essa lei a primeira medida legal que
permitia que o Estado interviesse diretamente nas relações escra-
vistas, imprimia um significado muito claro, portanto, ao processo
de emancipação que, do ponto de vista da elite senhorial, se pre-
tendia fazer: uma transição lenta e gradual, preparando o escravo
para viver em liberdade, preservando acima de tudo a tranqüili-
dade e a estabilidade social do processo.50 Uma ruptura de tal
ordem na manutenção do domínio senhorial, como a sugerida pelos
liberais radicais de São Paulo, não só trataria muitos proprietários
como réus, como também colocaria de chofre centenas de libertos
nas ruas. Ambas as situações eram vistas como extremamente perigo-
sas para a preservação da ordem política e social.51 Ficava patente,
dessa forma, o conteúdo político explosivo da interpretação dada
por Luiz Gama e outros advogados abolicionistas à lei de 1831, capaz
de colocar em xeque a autoridade dos senhores sobre seus escravos.
Não há, como observado anteriormente, maneira de saber
com precisão desde quando tal lei estava sendo utilizada com esses
significados nos foros. Entretanto a tentativa dos dirigentes em
obstruir sua utilização já vinha de outros tempos. É o que Eduardo
Spiller Pena deixa muito claro, em seu trabalho sobre os debates
a respeito da escravidão entre os membros do Instituto dos Advo-
gados do Brasil. Ao analisar a postura jurídico-política de Perdigão
Malheiro, um de seus presidentes, quanto ao fim da escravidão,
esse autor observa que, desde o começo da década de 1860, em

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consonância com a política dos dirigentes imperiais, vinha ocor-


rendo no Instituto um esvaziamento das discussões em torno da
lei de 1831. Levado a público em 1863, o discurso oficial do Insti-
tuto, encampado por Perdigão Malheiro, pretendia a libertação
dos filhos das escravas como medida ideal de uma reforma contro-
lada da escravidão no país. Resultando na elaboração de um dis-
curso favorável à emancipação gradual e completamente omisso
em relação à polêmica sobre a liberdade dos africanos, essa postura
pública teria sido, em parte, uma resposta à crise diplomática que
o governo enfrentava com a Inglaterra, a qual se agravava no início
da década, gerada pelas acirradas discussões em relação ao tráfico,
ao destino dos africanos livres e, mesmo, à existência da escravidão
no Brasil. O projeto reformista do IAB teria vindo, assim, nas
palavras do autor, “preencher e guiar o espaço público para um
caminho previamente orientado — pelo próprio governo impe-
rial — para o fim da escravidão no país”. Embora fosse em “dire-
ção oposta às exigências britânicas de libertação em massa e ime-
diata” e às pressões decorrentes dos distúrbios e revoltas escravas
tão freqüentes nesse período, tal caminho acenava para uma so-
lução. Sendo desse modo encampado pelo governo imperial, esse
projeto seria finalmente coroado e transformado em lei pelo Parla-
mento em 1871.52
Em meio a todo esse contexto, era de se esperar, portanto,
que o argumento de Luiz Gama não tivesse sido bem vindo no foro
de São Paulo. A obstinada negativa que a ação de liberdade inten-
tada pelo africano Jacinto encontrou era perfeitamente coerente
com a solução que, havia tempos, se pretendia dar ao problema:
silenciar a respeito. Tanto que o juiz Rego Freitas não se deu sequer
ao trabalho de contestar juridicamente a petição de Gama; optando
pela forma econômica, em seus despachos, apenas declarou “in-
competência” e anotou dois lacônicos “indeferido”, nos três reque-
rimentos a ele dirigidos. Enquanto isso, as autoridades provinciais
encarregavam-se de dar outro desfecho às pretensões do escravo,
fora da arena judicial. Segundo o relato de Luiz Gama, enquanto
a ação corria no foro, o chefe de polícia, “por misterioso acordo
com o presidente, expedia ordem secreta ao exmo. conselheiro

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delegado da capital, para mandar apreender clandestinamente


o desgraçado africano e entregá-lo manietado ao reclamante, su-
posto senhor, a fim de conduzi-lo para a província de Minas, por
dois expressos postos à espera nas cercanias desta cidade!”. 53 Apa-
rentemente o perigo estava controlado, e tudo voltaria aos devi-
dos lugares...

O direito nas ruas

Para decepção do juiz Rego Freitas e das autoridades públicas de


São Paulo, essa era, porém, uma história que estava ainda longe
de ter um fim. Contrariando as expectativas daqueles que tentavam
obstruir a luta de Jacinto para ser reconhecido como africano livre,
ele voltou a deixar registros de sua ação em 1873. Dessa vez, vamos
encontrá-lo em São José dos Campos, nas páginas de uma consulta
feita pelo juiz de direito Francisco Ribeiro de Escobar ao então
presidente da província de São Paulo, João Teodoro Xavier. O juiz
levava ao conhecimento do presidente que o preto Jacinto, de Ja-
guari, Minas Gerais, havia sido capturado como fugido na fregue-
sia de Capivari, município de Caçapava; em seu juízo, no entanto,
reclamava sua liberdade, “sob fundamento de ser africano, e de
ter sido importado para o Brasil depois de 1831”. A autoridade
havia então realizado o necessário interrogatório e enviava toda a
documentação ao presidente da província, à espera de uma solução
para o impasse.54
A petição inicial dessa ação de liberdade era assinada por João
Rodrigues de Oliveira Silva e requeria as diligências legais para
manumitir Jacinto, “nos termos da lei de 7 de novembro de 1831,
artigo 1o, mantida pela lei de 4 de setembro de 1850”. Dessa vez
e, para nossa sorte, Jacinto foi ouvido em juízo. Seu relato nos
fornece detalhes surpreendentes sobre os caminhos que o leva-
ram, em 1869, ao encontro de Luiz Gama. O africano revelava
ainda como havia conseguido livrar-se da emboscada armada pe-
las autoridades paulistanas para devolvê-lo a seu senhor, e como
pudera permanecer fugido até 1873.

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Pa r a a l é m d o s t r i b u n a i s | 223

Nascido no reino do Congo, havia sido embarcado em Luan-


da aos 10 anos de idade, chegando ao Rio de Janeiro “no ano da
revolução liderada por Caxias” — referência à liderança do duque
de Caxias na chamada “regressão” de 1842. Na Corte, permane-
ceu fechado em uma casa até ser comprado, com mais 23 compa-
nheiros, por Inácio da Cunha, residente em Jaguari, Minas Gerais
(atualmente município de Camanducaia), para onde foi levado.
Após a morte desse senhor, seus bens foram postos em praça pú-
blica e Jacinto foi arrematado por Antonio Gonçalves Pereira, em
poder do qual permaneceu até “a época em que saindo, foi a São
Paulo”. Jacinto explicava que “logo que saiu do poder de Antonio
Gonçalves, este o vendera com sua mulher a Inácio Preto da cidade
de Amparo”. “Nesse tempo”, continuou o depoente, “tendo Bento
Gomes de Escobar mandado anunciar por um jornal de Santos
que ele interrogado era livre em qualidade de africano, ele inter-
rogado ouviu ler semelhante anúncio quando ainda estava em
Jaguari, donde o mesmo Bento Gomes de Escobar o guiou para
São Paulo, aonde trabalhou nas ruas da cidade a serviço da Câma-
ra Municipal”.55
O relato de Jacinto é nebuloso quando se trata de fornecer
detalhes de sua chegada a São Paulo, ou explicar como, mesmo
sendo considerado fugitivo, conseguiu trabalhar na Câmara Mu-
nicipal dessa cidade. Por outro lado, não deixa dúvidas sobre o
fato de que, quando fugiu do domínio de seu senhor, trouxe con-
sigo a convicção de ter direito à liberdade, por ser um africano
introduzido no Brasil depois de 1831. Mais que isso, seu depoi-
mento mostra que os embates jurídicos em torno da liberdade, a
princípio restritos aos tribunais, ecoavam na sociedade através da
imprensa, atingindo não somente uma elite letrada potencialmente,
apta a se converter ao abolicionismo, mas também os maiores in-
teressados no assunto, os escravizados.
Os pontos obscuros da história de Jacinto, contudo, podem
ser em parte esclarecidos se voltarmos às informações contidas
na ação intentada por Luiz Gama em 1869. Na petição inicial da-
queles autos, Gama afirmava que Jacinto e sua mulher, depois de
vendidos a Inácio Preto, haviam sido trazidos “cautelosamente” para

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Amparo, “amarrados e escoltados por José de Lima de Oliveira e


Pedro, filho deste” — fato que dizia poder provar pelo depoimento
de três testemunhas.56 Além disso, quando requereu o depósito
judicial de Ana, ela se encontrava em Amparo, não em Minas
Gerais. O confronto entre essas informações pode esclarecer as
declarações de Jacinto. Seria lícito concluir que, quando diz ter
sido “guiado” de Jaguari a São Paulo por Bento Gomes de Escobar,
Jacinto, na verdade, se estivesse referindo ao fato de ter sido
orientado por ele a procurar Luiz Gama na capital. Assim, é pro-
vável que, sabendo ter direito à liberdade, ao mudar de senhor,
Jacinto tenha aproveitado a oportunidade para sair em busca da
pessoa indicada para defender judicialmente sua alforria — talvez
tendo a fuga facilitada pela maior proximidade entre Amparo e
São Paulo.
Quanto a Bento Gomes de Escobar, certamente ele e Luiz
Gama se conheciam pessoalmente e mantinham estreitas ligações.
Escobar era tenente-coronel da Guarda Nacional e um importan-
te e influente comerciante em Jaguari. Suas relações comerciais
abasteciam o mercado consumidor de quase todo o sul de Minas.57
Além disso, foi um homem de intensa vida pública, ocupando os
mais diversos cargos nessa vila. Em 1850, por exemplo, foi secre-
tário da Câmara Municipal e, em seguida, nomeado curador-geral
de órfãos do Termo; em 1857, foi eleito juiz de paz e também
vereador, cargo que exerceu até 1858 e para o qual foi reeleito em
1861; em 1865, começou a atuar no foro, primeiro como promotor
público interino do Termo e depois como primeiro-substituto do
juiz municipal. Nesse mesmo ano, ingressou na maçonaria e, a
exemplo do que acontecera com Luiz Gama, recebeu a distinção
de príncipe da Rosa Cruz, conferida pela Grande Oriente do Brasil.
A proximidade entre essas figuras que cruzaram a vida de Jacinto,
contudo, vai muito além das coincidências. A 13 de janeiro de 1869,
ano em que Jacinto chegou a São Paulo, Escobar foi nomeado
membro honorário da Augusta Loja América.58 Naquele mesmo
ano de 1869, Escobar havia sido citado em um processo crime no
foro de São Paulo, acusado de ter caluniado e injuriado José Levi
de Mello, vigário de Capivari.59 O motivo era um artigo publicado

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no jornal Correio Paulistano, folha paulistana de propriedade de


um outro membro da Loja América, na qual Luiz Gama publicava
muitos artigos referentes às causas de liberdade que pleiteava no
foro. Para terminar, Bento Gomes de Escobar também assinou,
juntamente com alguns dos participantes do Clube Radical Pau-
listano, o Manifesto Republicano de 1870.
Não resta dúvida de que Escobar compartilhava dos preceitos
políticos desse grupo que estava por trás da ação intentada no foro
de São Paulo por Luiz Gama. Levando em conta a rede de relações
em que Escobar estava inserido, deixa de ser nebuloso e se torna
sintomático o fato de Jacinto ter tomado ciência da ilegalidade de
sua condição escrava, através de um “anúncio” publicado nos jornais
de Santos. Quando mencionou esse episódio, é bem provável que
Jacinto se estivesse referindo ao artigo em que Escobar denun-
ciava e tornava pública a escravização ilegal de 23 africanos (entre
os quais se incluía Jacinto), que haviam sido levados para Jaguari
e batizados irregularmente como escravos pelo vigário. A exemplo
da estratégia usada em São Paulo por Luiz Gama e Rui Barbosa,
Escobar imprimia também um significado político à aplicação da
lei de 1831, pressionando as autoridades de Jaguari com a publi-
cidade dada à questão.
Jacinto prosseguiu seu depoimento sem mencionar, no en-
tanto, o episódio de sua ação judicial na capital de São Paulo, mas,
ao refazer o caminho inverso de sua jornada, acabou por revelar
uma outra dimensão da participação de Luiz Gama em sua história.
Contou, assim, que, da cidade de São Paulo, “veio guiado por Luiz
Gama a Cavalinho, filho de Antonio Vicente das Chagas Pereira,
residente a este tempo nesta vila, com destino a Capivari, para ser
entregue a Joaquim Gomes de Almeida como camarada, onde foi
preso há perto de 3 meses”.60
O interrogatório de Jacinto surpreende ao revelar uma ver-
dadeira rede de contatos acionados por Gama para garantir sua
saída de São Paulo, antes de ser apreendido como escravo fugido
e devolvido a Antonio Gonçalves Pereira — o que sugere que Ja-
cinto fugiu do poder de seu senhor antes que a transação de com-
pra e venda com Inácio Preto tivesse sido, de fato, concretizada.

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226 | E l c i e n e A z e v e d o

Um dos motivos alegados pelo chefe de polícia, na portaria que


demitiu Luiz Gama de seu cargo de amanuense, havia sido, justa-
mente, a inconveniência de manter na repartição de polícia um fun-
cionário que requeria “não verificados direitos dos escravos, que,
subtraindo-se ao poder de seus senhores”, encontravam seu apoio.61
A essa acusação, Gama reagiu energicamente, alegando que, no prazo
de um ano, tinha conseguido a alforria de mais de 30 pessoas que
viviam em “cativeiro indébito”. Nenhuma delas, contudo, havia fu-
gido da casa de seus senhores: “Foram todas por mim arrancadas,
por meios legais, do poder da usurpação imoral”.62
O que surge do relato de Jacinto, porém, são indícios da con-
cepção alargada do abolicionista do que considerava serem os “meios
legais” para se buscar a alforria de um cativo. Não é preciso grande
esforço de imaginação histórica para concluir que o plano das autori-
dades para apreender Jacinto em São Paulo fracassou, porque as
informações “vazaram” através de funcionários da própria Secreta-
ria de Polícia, colegas do amanuense. Por outro lado, no entanto, a
rede de contatos acionada por Gama para livrar Jacinto do domínio
de seu senhor obteve grande sucesso, permitindo que este perma-
necesse trabalhando como camarada durante quatro anos. O desdo-
bramento da história de Jacinto revela que o significado político
atribuído à questão dos escravos provenientes do tráfico clandesti-
no estava sendo construído nesse período, não apenas dentro dos
tribunais, mas também em outros espaços sociais — como as folhas
dos jornais que davam publicidade a casos como esse, noticiado nas
cidades de Santos, Jaguari, São Paulo e Rio de Janeiro. Tal agitação,
ao mesmo tempo em que gerava a reação dos que defendiam os
interesses senhoriais e se sentiam ameaçados, contava também com
a solidariedade de outras pessoas que se dispunham não só a denun-
ciar propriedades escravas consideradas ilegais, mas também a validar
juridicamente a lei de 1831.
Se aplicada de forma coletiva, conforme essa interpretação,
a lei certamente desestruturaria profundamente a escravidão. Por
isso mesmo, continuava causando temor às autoridades judiciais o
fato de um escravo, ao ser capturado como fugido, alegar ser livre
por ter “qualidade de africano”.63 Foi essa afir mação de Jacinto

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Pa r a a l é m d o s t r i b u n a i s | 227

que motivou a consulta do juiz de direito de São José dos Campos


ao presidente da província em 1873, que, por sua vez, “comuni-
cou ao Ministério da Justiça” — de acordo com o que vem anotado
a lápis em um canto do documento. O juiz de direito informava
ainda que, depois de ter interrogado o peticionário, ouvido seu
senhor — que havia exibido em juízo o competente título de pro-
priedade — e inquirido as testemunhas, havia indeferido a preten-
são do escravo. Assim tinha procedido “por entender que não resul-
taram dos autos argumento algum que pudesse sufragá-la”. Dessa
forma, mandou que fosse levantado o depósito judicial e que Jacinto
voltasse ao poder de Gonçalves Pereira, depois de passar quatro anos
“vivendo sobre si”.64 Apenas dois dias depois de ser restituído a seu
senhor, contudo, o juiz municipal, novamente, consultava o juiz de
direito a seu respeito. Jacinto encontrava-se mais uma vez preso,
dessa vez “à ordem do senhor”, e, nessa situação, havia apresentado
outra petição, “requerendo-me o arbitramento sobre o valor, que o
mesmo deve ter, em bem de sua liberdade; por isso que consulto à
V. Excia. a fim deste juízo deliberar a respeito, visto como foi le-
vantado o mesmo preto do depósito”.65
Era comum que senhores mandassem as autoridades policiais
prenderem seus escravos e, mesmo, açoitassem-nos, como forma
de punição por uma fuga ou, até mesmo, por manifestarem “preten-
sões” de liberdade. A situação ambígua de estar preso a mando do
senhor logo após ter sido levantado o depósito judicial e o fato de
aproveitar-se disso para requerer em juízo sua liberdade deixaram
o juiz municipal um tanto confuso. Jacinto, no entanto, estava bem
assessorado, e o contexto era outro. Ele tinha um novo trunfo legal,
bem menos polêmico, para conseguir alforriar-se: agora podia con-
tar com a lei de 1871. Como se sabe, essa lei sancionava o direito
de alforria para os escravos que, por meio de seu pecúlio, tives-
sem possibilidade de indenizar seu valor aos senhores. A resposta
do juiz de direito ao juiz municipal foi categórica nesse sentido:
“[...] tenho a ponderar que o peticionário está no direito de assim
proceder fundado no artigo 4o, parágrafo 20 da lei n. 2040 de 28 de
setembro de 1871 [...], mas para tal é indispensável que exiba di-
nheiro ou títulos de pecúlio, cuja soma equivalha ao seu preço ra-

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228 | E l c i e n e A z e v e d o

zoável [...]”. Sendo observados esses princípios, continuou, deve-


ria “convidar o referido senhor para um acordo” e, se não obtivesse
resultado, dar curador ao escravo e proceder ao arbitramento.66
Então começou uma outra história, quero crer que, dessa vez, com
final feliz para Jacinto, que deve ter conseguido acumular algum
dinheiro com a remuneração obtida ao longo dos anos de trabalho
como camarada...
Casos como esse, ao retirar as discussões sobre a lei de 1831
do recinto fechado dos tribunais para levá-las para as ruas e para
as senzalas, apontam para questões pouco exploradas na análise
desse tipo de disputas jurídicas. O desdobramento público dos
debates travados nos tribunais ou na tribuna partidária, atestado
pelos depoimentos do próprio Jacinto, revela dimensões mais
abrangentes da leitura carregada de forte conteúdo político que
pessoas como Bento Gomes de Escobar, Luiz Gama ou Rui Bar-
bosa estavam fazendo da lei de proibição do comércio transatlân-
tico de escravos, promulgada em 1831. O que era, nos tribunais,
a conflituosa construção de uma argumentação jurídica para sus-
tentar mais uma possibilidade na busca pela liberdade, nas ruas
aparecia como um direito a ser reivindicado.67
Se a intenção dos juízes, em consonância com as altas auto-
ridades da província, era barrar os advogados militantes mais
afoitos na arena judiciária, indeferindo ações dessa natureza, a
intensidade e freqüência com que estes continuariam a aliar-se
aos escravos na luta pela liberdade apontava, porém, os limites
dessas tentativas. Por mais fortes que fossem seus opositores, o
movimento que unia escravos e advogados não cessaria, nos anos
seguintes, de se espraiar pelos tribunais e pelas ruas.
Por meio da publicidade e da politização efetuadas nos foros
por esses profissionais, respondendo e intensificando as aspirações
e demandas apresentadas pelos próprios cativos em relação à al-
forria, não apenas mais homens letrados juntavam-se a sua luta,
como também mais escravos tomavam ciência de seus direitos —
passando a adotar atitudes que corroíam a legitimidade do poder
senhorial, ao mesmo tempo em que contestavam a legalidade de
suas condições. Assim, ao instrumentalizar, apoiar e reelaborar as

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aspirações e lutas dos próprios escravos, esses advogados mos-


travam, com sua atuação, o papel fundamental que desempenha-
ram na construção social da idéia do direito à liberdade, contri-
buindo para que a legalidade da propriedade escrava fosse sendo
aos poucos minada dentro da arena jurídica, mas, principalmente,
além dela.
O movimento contra a escravidão foi ganhando espaços e
obtendo vitórias importantes ao longo das décadas de 1870 e 1880,
tecendo novos instrumentos legais e estratégias diferenciadas de
ação, à medida que ganhava a opinião pública e se espraiava por
outros setores da sociedade. Quando Luiz Gama morreu, em 1882,
a legalidade da propriedade escrava já era tão profundamente ques-
tionada por alguns setores sociais, e a contestação dos escravizados
impunha-se tão fortemente através de levantes e conflitos violen-
tos que alguns ousavam defender, nas páginas dos jornais, a idéia
de que o escravo que assassinasse seu senhor agia em legítima de-
fesa, preservando seu direito natural à liberdade — assim como o
próprio Gama havia feito poucos anos antes.
Como se vê, o abolicionismo foi um movimento de grande
repercussão social, multifacetado e, acima de tudo, dinâmico. As
experiências dos homens que nele se engajaram não podem, por-
tanto, ser resumidas ou explicadas através de estereótipos clas-
sificatórios que opõem “legalistas” e “radicais”. A história do en-
contro do africano Jacinto com o advogado Luiz Gama — e tudo
o que foi possível compreender do que ele significou naquela so-
ciedade — atesta que a lógica que movia suas ações extrapola os
limites impostos por interpretações que, direcionadas pela me-
mória que Antônio Bento e os caifazes criaram para si mesmos,
insistem em apagar a força política e transformadora desses sujei-
tos. Recuperando sua historicidade, sua ação aparece como parte
de um processo em constante mudança, em que algumas atuações
foram consolidadas, outras deixadas de lado, ou reelaboradas na
relação que estabeleceram com uma intrincada rede social — cujos
resultados se fizeram notar em muitas das estratégias adotadas por
seus sucessores.

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NOTAS

1 Cf., entre outros, Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras,
1990; Joseli Mendonça, Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os
caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP , CECULT,
1999 ; Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escra-
vidão e a lei de 1871 . Campinas: Editora da UNICAMP , CECULT , 2001 ; e
Keila Grinberg, O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito
civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002. Ver ainda Hebe Maria de Mattos Castro, Das cores do si-
lêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1995 .
2 Para uma análise da trajetória de Luiz Gama, ver Elciene Azevedo, Orfeu
de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo.
Campinas: Editora da UNICAMP, CECULT, 1999.
3 Cf. Chalhoub, op. cit., pp. 170-74 ; e Maria Helena P. T. Machado, Crime e
escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. 1830-1888 .
São Paulo: Brasiliense, 1987 .
4 J. Vieira de Almeida, “Antonio Bento”, A Liberdade, 17 maio, 1888.
5 Diário Mercantil, 25 maio, 1888 . O jornalista, ao falar dos “trinta dinhei-
ros”, fazia uma alusão direta a uma famosa polêmica iniciada por Luiz Gama
quando ofereceu como pecúlio de uma jovem escrava a ínfima quantia de
30 mil réis, alegando que: “se é verdade, como a história o atesta, que a
liberdade de Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendida, perante o juiz hebreu,
por trinta dinheiros, não é estranhável que a suplicante se avaliasse por
trinta mil réis”. Cf. Elciene Azevedo, op. cit., especialmente o cap. 4.
6 Esses pressupostos podem ser observados em trabalhos de diferentes abor-
dagens, como, por exemplo, Maria Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos
africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880) .
São Paulo: HUCITEC, 1998 ; Maria Helena P. T. Machado, O plano e o pânico:
os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: Editora da
UFRJ; São Paulo: EDUSP, 1994; Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra,
medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1987 ; Alice Aguiar de Barros Fontes, A prática aboli-
cionista em São Paulo: os caifases (1882 -1888 ). Dissertação de mestrado,
Departamento de História–FFLCH . São Paulo, USP, 1976 .
7 Sidney Chalhoub, op. cit. Abordagem semelhante em relação à lei de 28 de
setembro de 1885 pode ser conferida no estudo de Mendonça, op. cit.
8 Filho da africana Luiza Mahin, que vivia em liberdade, e de um português
do qual nada se sabe, Luiz Gama nasceu em 1832 , em Salvador, Bahia.
Aos 8 anos, teve a mãe presa por envolver-se nas revoltas escravas baianas

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e foi vendido pelo pai como escravo — sendo levado para São Paulo. Aos
18 anos, Luiz Gama saiu do cativeiro provando, misteriosamente, sua condição
de homem livre. Entrou para o corpo policial, exercendo por vezes o cargo
de copista da delegacia. Desistiu da carreira militar após ser preso por
indisciplina e, ao sair da prisão, conseguiu o emprego de amanuense da
polícia graças à sua íntima relação de amizade com o delegado conselheiro
Maria Furtado de Mendonça. Lente da Academia de Direito e diretor de
sua biblioteca. Foi também por intermédio de Furtado que Luiz Gama,
autodidata, teve acesso aos conhecimentos de direito e jurisprudência. Cf.
Elciene Azevedo, op. cit.
9 Essa fase da vida de Luiz Gama pode ser acompanhada através da docu-
mentação policial encontrada no Arquivo do Estado de São Paulo.
10 Auto de apreensão do escravo José, 1868. Arquivo do Estado de São Paulo
(AESP), Processos policiais, CO 3.215, 1868.
11 Auto de apreensão do escravo José, 1868, op. cit. Cf. por exemplo, o ofício
do chefe de polícia ao delegado, ou seu mandado de apreensão endere-
çado ao diretor da Casa de Correção — ambos datados de 27 de janeiro
de 1868 .
12 Esses documentos são encontrados no 1o e 2o Ofícios Cíveis da Capital, nos
quais Luiz Gama aparece como solicitador de causas de manutenção de li-
berdade.
13 Autos de Intimação, Geralda de Oliveira contra Francisco de Paula Ferreira
Rezende, 1868. Arquivo Geral do Tribunal Judiciário de São Paulo (AGTJSP),
2o Ofício Cível, cx. 66 .
14 Diário de São Paulo, 1o dez., 1869. Furtado de Mendonça publicou uma
nota sobre a polêmica que travou nos jornais da capital com seu amigo
Luiz Gama. O primeiro havia sido acusado de manter colóquios secretos
com o presidente da província sobre as ações de Luiz Gama na delegacia e
de ter sido por ele incumbido de conter Gama. O delegado, ao contrário,
afirmava que, ao dar conselhos ao amanuense, não tivera a intenção de satis-
fazer os desejos de “quem quer que fosse”, mas o aconselhara simplesmente
“como amigo”. Cf. Elciene Azevedo, op. cit., pp. 111-24 .
15 Keila Grinberg defende que uma “militância da liberdade” entre bacharéis
que atuaram na primeira instância em questões de liberdade só se tenha con-
figurado depois da promulgação dessa lei — embora reconheça algumas ex-
ceções à regra. Grinberg, op. cit., pp. 255-56.
16 “Boçal” era a terminologia usada para caracterizar africanos recém-chega-
dos no Brasil que ainda não dominavam a língua portuguesa. Portanto, afir-
mar que Jacinto foi arrematado como escravo ainda “visivelmente boçal”
constitui prova de sua importação ilegal.
17 Autos crimes de injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872.
AGTJSP, 2o Ofício Cível, cx. 72 .

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18 Autos crimes de injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872.
19 Durante o período de 1831 a 1837 , não havia unanimidade em torno da
questão da cessação do tráfico internacional de escravos, e os debates
parlamentares continuavam a discutir a questão: “o tráfico reassumiu a
constância anterior e até aumentou seu volume, apesar das duras penas
previstas na legislação”. Cf. Jaime Rodrigues, O infame comércio: pro-
postas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-
1850) . Campinas: Editora da UNICAMP , CECULT , 2000 , p. 108 . A esse res-
peito, ver também o artigo de Beatriz Gallotti Mamigonian nesta coletâ-
nea, “O direito de ser africano livre: os escravos e as interpretações da
lei de 1831 ”.
20 Autos crimes de injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872.
Utilizei antes esse processo, em Orfeu de carapinha, op. cit., cap. 2. Naquela
ocasião, a análise priorizou a repercussão política e social da demissão de
Luiz Gama, bem como sua experiência na construção tensa e conflituosa
de identidades e redes de solidariedade em que se apoiava para lutar por
seus ideais de republicano e abolicionista.
21 Assim foi qualificada pelo promotor, em audiência perante o juiz, a atitude
de Luiz Gama. Este, por sua vez, após ouvir essas acusações, se defendeu
com as seguintes palavras: “[...] as expressões de que fez cabedal a ilustrada
promotoria pública para fundamentar a petição inicial não constituem in-
júrias, porquanto sendo como de fato é, em face da lei de 1831 e respectivo
regulamento, fútil o despacho aludido, e provando crassa ignorância da parte
de quem o proferiu, a qualificação de estúpido em sentido restrito não é
uma ofensa, a menos que se pretenda injuriar o juiz ofendido cometendo-se
o absurdo de atribuir-se-lhe ilustração [...].” Cf. Autos cíveis de injúria. A
justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872. Apesar da ousadia, Luiz
Gama foi absolvido pelo júri popular em 1870, tendo ele mesmo sustentado
sua defesa oral no tribunal — embora a Loja Maçônica América tivesse in-
cumbido um de seus sócios, o bacharel Ferreira de Menezes, para acom-
panhá-lo. Correio Paulistano, 29 dez., 1870.
22 “Foro da capital”, Radical Paulistano, 13 nov., 1869.
23 “Foro da capital”, Radical Paulistano, 13 nov., 1869.
24 Keila Grinberg, Liberata, a lei da ambigüidade: ações de liberdade da Corte
de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994, p. 88. Das sete ações, quatro são resolvidas a favor da liberdade e três
a negam.
25 Cf. Beatriz Mamigonian, To be a liberated African in Brazil: labor and
citizenship in the nineteenth century. Tese de doutorado. Waterloo (Cana-
dá), University of Waterloo, 2002 , p. 259. Para outras estimativas sobre a
entrada ilegal de africanos no Brasil, ver Robert Edgar Conrad, Tumbeiros:
o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 42 -43 ;

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Leslie Bethell, The abolitions of the Brazilian slave trade: Britain, Brazil
and the slave trade question. 1807-1869. Cambridge: Cambridge University
Press, 1970; e Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do trá-
fico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
26 Em artigo que discute a trajetória de um grupo de africanos livres durante
a década de 1850 e 1860, Beatriz G. Mamigonian baseia-se na documentação
produzida pelas petições de emancipação junto ao governo imperial, moti-
vadas pelo decreto de 28 de dezembro de 1853, que ordenava a emancipação
dos africanos livres que tivessem servido a particulares pelo período de 14
anos. Cf. Mamigonian, “Do que o ‘preto mina’ é capaz: etnia e resistência
entre africanos livres”, Afro-Ásia, no 24 , 2000 , pp. 71-95 .
27 Mamigonian, To be a liberated African in Brazil, op. cit. Nesse estudo, a au-
tora analisa as experiências de trabalho, a distribuição de serviços e as alterna-
tivas de liberdade de mais de 11 mil africanos apreendidos pelo governo entre
1826 e 1856.
28 O “Decreto no 3.310 — Emancipação de africanos livres”, promulgado em
1864 , mandava que as cartas de emancipação fossem expedidas pelo Juízo
de Órfãos da Corte e capitais das províncias — segundo o controle feito
por meio das listagens que o governo tinha dos africanos distribuídos. Pas-
sadas as cartas, estas deveriam ser remetidas aos respectivos chefes de polí-
cia, para serem registradas e entregues aos emancipados. Os que estivessem
a serviço de particulares seriam recolhidos em estabelecimentos públicos
e levados à presença dos chefes de polícia. Quanto aos fugidos, a lei determi-
nava que a polícia publicasse editais pela imprensa, convocando-os a vir
receber suas cartas de liberdade. Idem, To be a liberated African in Brazil,
op. cit., “Anexos”, pp. 307-8. Quanto à hipótese de que Luiz Gama teria
recebido ordens para executar algumas dessas tarefas, cf. p. 264.
29 Idem, op. cit., pp. 259-78 .
30 Apud Rodrigues, op. cit., p. 111 .
31 Na lei aprovada em 1850, o tráfico foi juridicamente equiparado à pirataria
e os traficantes passaram a ficar sob a jurisdição da Auditoria da Marinha,
sujeitos à pena de prisão e despesas pela reexportação dos africanos. Já os
senhores que comprassem africanos entravam em outra categoria penal e
passariam a ser julgados na alçada comum da justiça, certamente mais
branda. Embora continuassem com o ônus da culpa, os compradores de
africanos ilegalmente importados eram excluídos da categoria de “donos
do negócio.” Baseio-me aqui na interpretação de Jaime Rodrigues (op. cit.,
esp. pp. 107 - 19), ao analisar os debates parlamentares sobre o fim do trá-
fico ocorridos entre 1831 e 1850 .
32 Dezesseis de Julho, 23 dez., 1869. Os destaques são de Luiz Gama. A nota
é reproduzida por ele em artigo publicado no Radical Paulistano de 8 de

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janeiro de 1870 , e traz a seguinte observação, ao final: “E muito convém


saber-se que esta folha é dirigida pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça”.
33 Luiz Gama, “O novo Alexandre”, Correio Paulistano, 21 nov., 1869. “S. exc.
declarou-me, que foi compelido pelo governo a demitir-me, e que o fizera
contra a sua vontade! [...] e podia acrescentar — contra o seu dever.”
34 Luiz Gama, “Um novo Alexandre”, Correio Paulistano, 20 nov., 1869 .
35 Américo de Campos, “A demissão do senhor Luiz Gama”, Correio Paulis-
tano, 21 nov., 1869 .
36 O jornal Dezesseis de Julho , citado acima, havia sido criado pelo então
ministro da Justiça, José de Alencar, justamente para fortalecer-se politica-
mente e, principalmente, defender-se dos ataques de Zacarias de Góes,
que, no Senado, não poupava os que haviam promovido sua queda. Dezesseis
de julho, sintomaticamente, era a data da ascensão do novo gabinete con-
servador Itaboraí, do qual Alencar fazia parte. Cf. R. Magalhães Júnior,
José de Alencar e sua época. São Paulo: L ISA, 1971, pp. 200-3.
37 Radical Paulistano, 17 jun., 1869.
38 Ypiranga, 20 jul., 1869 . O jornal anunciava que a entrada seria franca para
os membros da Loja Maçônica América.
39 Luiz Gama, Primeiras trovas burlescas e outros poemas . Ed. preparada e
comentada por Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000 ,
p. lxxix.
40 Cf., por exemplo, Radical Paulistano, 31 maio e 13 nov., 1869 .
41 Correio Paulistano, 10 nov., 1871 . Esse artigo é assinado por Américo de
Campos (primeiro vigilante), Luiz Gama (segundo vigilante), J. Ferreira
de Menezes, Vicente R. da Silva, Carlos Ferreira, Fernando Luiz Osório e
Olympio da Paixão. Para uma análise mais aprofundada da relação de Luiz
Gama com a maçonaria e os envolvimentos da Loja América em questões
de liberdade em São Paulo, ver Elciene Azevedo, op. cit., especialmente o
cap. 2. Essa loja maçônica existe ainda hoje com o nome de Loja Luiz Gama,
em homenagem a um dos seus mais ilustres fundadores.
42 Radical Paulistano, 23 set., 1869 .
43 Radical Paulistano, 17 maio, 1869.
44 Radical Paulistano, 17 maio, 1869 .
45 Radical Paulistano , 23 set., 1869 . O segundo argumento que sustentava
sua tese da facilidade da emancipação no Brasil era o de que a população
escrava brasileira era incomparavelmente inferior àquelas encontradas nas
colônias inglesas e francesas, portanto não havia, no Brasil, circunstâncias
comparáveis às de guerra civil existentes nos Estados Unidos, quando foi
decretada a emancipação.
46 Os debates mais acirrados em torno desse projeto diziam respeito à inde-
nização dos senhores que se veriam privados dos “frutos” gerados por ventres
escravos. O projeto foi aprovado com a prerrogativa aos senhores de esco-

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Pa r a a l é m d o s t r i b u n a i s | 235

lher entregar as crianças com 8 anos de idade a uma instituição pública e


receber 600 mil réis como indenização, ou manter o nascituro sob seu
domínio até os 21 anos de idade, usufruindo de seus serviços. Cf. Chalhoub,
op. cit.; e Mendonça, op. cit.
47 “Matrículas eram registros dos escravos feitos em órgão público (a Cole-
toria) pelos senhores. [...] Nessas matrículas eram feitas anotações (as
chamadas averbações) quando ocorriam mudança de residência para outro
município, transferência de domínio de um senhor para outro, depósito de
pecúlio.” Joseli Nunes Mendonça, Cenas da Abolição. Escravos e senhores
no Parlamento e na Justiça . São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001,
p. 60 . Sobre as matrículas dos escravos, ver, ainda, Robert Slenes, “O que
Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século
XIX”, Estudos Econômicos, no 13, 1, jan.-abr., 1983 , pp. 117-49 .
48 Cf. A Abolição no Parlamento: 65 anos de luta ( 1823-1888 ) . Brasília:
Editora do Senado Federal, 1988 , vol. I, em especial pp. 486 - 91 , que tra-
zem a transcrição da Lei n o 2 . 040 , de 28 de setembro de 1871 . O Decreto
no 4.835, de 1o de dezembro de 1871 — que aprovava o regulamento para a
matrícula especial dos escravos e dos filhos livres de mulher escrava, pa-
ra a execução do art. 8o da lei de 28 de setembro —, apresentava, porém,
alguns modelos de matrícula para situações diferentes. O “modelo A”, des-
crito no art. 1o do regulamento, correspondia à matrícula de “todos os escra-
vos existentes” no Brasil, e seguia as disposições acima mencionadas. O
“modelo B”, contido no art. 2o, determinava que “a matrícula será feita no
município em que eles residem, à vista de relações, em duplicata, contendo
as declarações exigidas no artigo 1o, pela forma do modelo B”. Nesse mo-
delo preenchido no município constava: nome, cor, idade, estado, natura-
lidade, filiação, profissão e observações. Entretanto, esse “modelo B” servia
apenas para que fosse elaborado o “resumo geral dos escravos matriculados”,
que deveriam ser remetidos à Diretoria Geral de Estatística na Corte, “com
especificações relativas ao número de cada sexo, idade, estado, profissão e
residência urbana ou rural, conforme o modelo G” — preceitos estabele-
cidos pelo art. 20 . Portanto, a naturalidade do escravo não aparecia na
matrícula geral enviada pelas províncias ao poder central. Ver op. cit.,
pp. 503 - 20 , referentes ao Decreto n o 4 . 835 , de 1 o de dezembro de 1871 .
49 Falando na seção do Senado de 26 de junho de 1883, sobre o artigo 8o da lei
de 28 de setembro de 1871 e os respectivos regulamentos, o conselheiro
Ribeiro da Luz afirmava: “Do exposto se deve concluir que esta lei não só
lançou um véu sobre o passado; mas legalizou a escravidão, existente no Brasil,
dos africanos importados depois de 1831 ”. Apud Lenine Nequete, Escravos
& magistrados no segundo reinado: aplicação da Lei no 2.040, de 28 de se-
tembro de 1871. Brasília: Fundação Petrônio Portella, 1988, p. 187.
50 Cf. Chalhoub, op. cit.; e Mendonça, Entre a mão e os anéis, op. cit.

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51 A postura de Rui Barbosa nesses anos em que era estudante de direito e


colega de Luiz Gama na redação do Radical Paulistano parece ter sido muito
diferente da que assumiu, como deputado, em 1884. Nas discussões que
precederam a Lei dos Sexagenários, ele manifestou a necessidade de “pro-
teção” ao liberto. Mendonça, op. cit., pp. 76 -77 . Por outro lado, nesses
anos ele também criticou a postura emancipacionista do governo imperial,
denunciando o descaso do mesmo durante décadas em relação ao cumpri-
mento da lei de 1831 — incorporando em seus discursos muitos dos argu-
mentos que Luiz Gama já havia desenvolvido nesse sentido e publicado, em
1880, em artigo n’ A Província de São Paulo.
52 Eduardo Spiller Pena, op. cit., p. 290. Beatriz Mamigonian levanta hipótese
que vai na mesma direção. Essa autora afirma que o decreto de 1864, que
emancipou todos os africanos livres, foi, em parte, também uma estratégia
do governo na tentativa de desviar a atenção do abolicionismo britânico so-
bre os escravos que permaneciam em condições ilegais. Cf. To be a liberated
african in Brazil, op. cit. pp. 261 -62. Sobre Perdigão Malheiro e a repercussão
de seu livro Escravidão no Brasil, ver ainda Sidney Chalhoub, op. cit.
53 Correio Paulistano, 21 nov., 1869.
54 Juiz de direito — São José dos Campos, 1873. AESP, CO 4. 812.
55 Juiz de direito — São José dos Campos, 1873. Grifo nosso.
56 Autos de recurso crime: a justiça contra Luiz Gama, apud Autos crimes de
injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872 .
57 Em 1865, foi diplomado comerciante na vila pelo Tribunal de Comércio da
Corte. Dessa atividade resultou uma intensa e volumosa correspondência
com diversas sociedades e firmas particulares, mantida com grandes centros
comerciais como Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Ubatuba. Essa documen-
tação abrange um período de quase 60 anos (1836 a 1895 ) e se encontra no
setor de Documentação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo. Conferir a listagem organizada por Ana
Maria de Almeida Camargo, “Correspondência comercial de Bento Gomes
de Escobar”, in Eurípedes Simões de Paula (org.), Revista de História, XLV.
São Paulo, 1973 , pp. 57 -95 .
58 Idem, op. cit. Os dados biográficos apresentados pela autora foram forne-
cidos pela neta de Escobar, Rosaura de Escobar Ribeiro da Silva.
59 Autos de recurso crime: a Justiça contra Luiz Gama. Infelizmente, não tive
acesso ao processo. Contudo ele é citado, sintomaticamente, na conclusão
do juiz municipal que julgava o caso de Luiz Gama, como exemplo seme-
lhante de crime de calúnia e injúria que havia sido levado a júri. Ver Autos
crimes de injúria: a justiça contra Luiz Gonzaga Pinto da Gama, 1872.
60 Juiz de direito — São José dos Campos, 1873. AESP, CO 4.812.
61 Correio Paulistano, 20 nov., 1869.
62 Correio Paulistano , 20 nov., 1869 .

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63 Juiz de Direito — São José dos Campos, 1873 . AESP, CO 4. 812.


64 Juiz de Direito — São José dos Campos, 1873 .
65 Juiz de Direito — São José dos Campos, 1873 .
66 Juiz de Direito — São José dos Campos, 1873 .
67 A análise que Mamigonian faz da influência que a experiência dos africanos
livres libertados pelo governo teve sobre essa discussão é muito instigante
nesse sentido: “Os escravos apreendidos pelo governo imperial durante as
atividades de supressão do tráfico lembraram aos senhores, legisladores,
autoridades e abolicionistas, mas especialmente aos próprios africanos ile-
galmente escravizados, sobre sua escravidão ilegal, armando-os para ques-
tioná-la”. Mamigonian, To be a liberated African in Brazil, op. cit., p. 259 .

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BETH BRAIT

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