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Na perspectiva dos escravos

LARA, S. H.. Na perspectiva dos escravos. Teoria e Debate, São Paulo, v. 45, n.jul/ago, p. 68-71, 2000

Procurando caminhos alternativos, alguns historiadores começam a insistir na necessidade de


incluir a experiência escrava na história da escravidão no Brasil. Toda uma nova safra de estudos
mostra o quanto este redirecionamento tem permitido avançar no resgate de aspectos mais
próximos da experiência histórica de homens de carne e osso.

Se aceitarmos (apenas por um momento!) a idéia de que o Brasil fez 500 anos, não podemos
deixar de pensar que durante mais de 75% de "existência" da Nação foi o braço escravo que
produziu e movimentou riquezas, trabalhando para senhores e proprietários coloniais e
metropolitanos, nacionais e estrangeiros. Sem qualquer dúvida, se há alguma característica de
"longa duração" na história do Brasil, trata-se da escravidão. Ela foi o instrumento de destruição
física de milhões de homens e mulheres que já habitavam estas terras antes da chegada dos
europeus e de outros tantos trazidos à força da África para viverem aqui como escravos. Além
disso, de todo o continente americano, o Brasil foi a região que mais importou escravos africanos,
durante os mais de trezentos anos de vigência do tráfico atlântico.

Não por acaso, portanto, a escravidão constitui um tema central nos estudos históricos no Brasil.
Ela esteve no centro dos mais importantes debates que envolveram as ciências humanas neste
século, nos quais questões morais, éticas, políticas e ideológicas estiveram freqüentemente
associadas. Ao longo dos anos 60 e 70, privilegiando uma perspectiva macroestrutural, os
estudiosos se perguntaram se o processo colonizador português teria instalado aqui um modo
de produção historicamente novo, ou não. Entre os elementos fundamentais capazes de
caracterizar a sociedade brasileira, a escravidão teve sempre um papel de destaque: ela teria
sido a responsável pela permanência de elementos "coloniais" e "arcaicos" na sociedade
brasileira, dificultando a passagem para um sistema verdadeiramente "capitalista" e "moderno".
Tais identidades, historicamente construídas, tornaram-se praticamente parte do senso comum
e constituem um paradigma interpretativo que somente há pouco menos de duas décadas vem
sendo questionado.

Desde meados dos anos 80, diversos historiadores observaram que tais oposições estavam
associadas a uma análise que privilegiava um enfoque estritamente econômico da história e
enfatizava o caráter violento e inexorável da escravidão, resultando numa história que, mesmo
sem o desejar, apoiava-se numa ótica senhorial e era, inevitavelmente, excludente. Nela o
escravo não passava de um "figurante mudo" e "incapaz de qualquer ação autonômica", como
afirmou o então jovem sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Destruído pela violência da
escravidão e marcado pelo racismo, ele teria se tornado incapaz de integrar o mercado de
trabalho capitalista, vegetando na marginalidade. A experiência dos escravos ficava então
excluída da história dos trabalhadores no Brasil: entre o mundo da escravidão (aquele no qual o
trabalho teria sido realizado por seres coisificados, destituídos de tradições pelo mecanismo do
tráfico, aniquilados pela compulsão violenta da escravidão, para os quais só restava a fuga ou a
morte) e o universo do trabalho livre, assalariado (no qual, finalmente, poderíamos encontrar
sujeitos históricos), havia um abismo intransponível, com o negro escravo desaparecendo da
história, sendo "substituído" pelo imigrante europeu.

Procurando caminhos alternativos, alguns historiadores começaram a insistir na necessidade de


incluir a experiência escrava na história da escravidão no Brasil. Não se tratava apenas e
simplesmente de passar a estudar o modo de vida destes trabalhadores ou a sua visão da
escravidão. A "inclusão dos excluídos" vinha acompanhada pela busca de novas fontes e de uma
nova concepção na abordagem da análise da relação senhor-escravo: mais que um "sistema" ou
um abstrato "modo de produção", isso que, no final das contas, chamamos de "escravidão", de
"escravismo", passou a ser entendido como um conjunto de relações de dominação e exploração
que, de modo contraditório, por meio de suas práticas cotidianas, costumes, lutas, resistências,
acomodações e solidariedades, de seus modos de ver, viver, pensar e agir, unia horizontalmente
e separava verticalmente homens e mulheres como senhores e escravos – o que significa dizer
que a política de domínio senhorial operava, portanto, no interior de relações que não podem
ser entendidas sem o conceito de luta de classes.

Seguindo por estas trilhas, os trabalhos mais recentes têm se debruçado sobre temas
específicos, realizando pesquisas fundadas em forte documentação primária, e iluminando
dimensões importantes do universo das relações escravistas. Toda uma nova safra de estudos
sobre a escravidão mostra o quanto este redirecionamento das pesquisas históricas tem
permitido avançar no resgate de aspectos mais próximos da experiência histórica de homens de
carne e osso, propondo uma outra escala de interpretação, que permite capturar escolhas, não
apenas determinações. Politizando a análise histórica, estes estudos fazem emergir do passado
valores, estratégias e projetos que pretendiam outros futuros, outras possibilidades de vida. Não
por acaso, vários livros que têm sido publicados sobre o tema tratam também, e
necessariamente, da liberdade. Não da liberdade tal como a concebemos hoje em dia, mas de
noções de liberdade diversas que se digladiaram intensamente ao longo do tempo.

Examino aqui seis trabalhos publicados nos últimos dois anos, que permitem mapear com
clareza a dinâmica deste movimento historiográfico e seus desdobramentos políticos. Quatro
deles foram escritos inicialmente como teses acadêmicas no final dos anos 80 e na segunda
metade dos anos 90; outros dois constituem trabalhos de pesquisadores já graduados há
bastante tempo e foram pensados como livros desde o início. Todos tratam de aspectos
específicos da experiência escrava no Brasil durante o século XIX, recortando temas ou questões
de modos diversos mas convergentes em seus pressupostos e objetivos.

Investigando a experiência escrava na Curitiba da segunda metade do século XIX, por meio de
diversas pequenas situações de conflito e luta social entre senhores e escravos, Eduardo Spiller
Pena desvenda o jogo sutil de enfrentamentos e negociações entre visões de mundo
radicalmente opostas. Nestes embates, medindo possibilidades e escolhendo oportunidades,
ressaltando antagonismos ou se adequando a imposições senhoriais, os cativos usavam de toda
a astúcia para fazer valer seus objetivos e projetos individuais. Lutavam de muitas maneiras: nas
relações cotidianas com seus senhores, apelando para os tribunais e manipulando brechas
legais, armando alianças com terceiros, aproveitando momentos em que o poder senhorial
ficava mais permeável, como nas ocasiões em que eram negociados ou estavam entre os bens
em processo de inventário. Percorrendo caminhos semelhantes na São Paulo do mesmo período,
Maria Cristina Wiessenbach recupera a vida cotidiana de escravos e libertos entre 1850 e 1880,
analisando crimes, situações de trabalho, arranjos de sobrevivência, modos de morar, casar e
cultuar santos e ancestrais. Aqui, para além do enfrentamento das vontades senhoriais,
podemos flagrar a formação de uma comunidade negra, com suas hierarquias internas, laços de
solidariedade e modos de vida que caracterizaram espaços (sociais e territoriais) importantes da
cidade: um mundo em construção, fundado na experiência vivida sob o domínio dos senhores,
mas que o ultrapassa e o supera em muitas dimensões.

Da leitura destes dois livros saímos com a certeza de que os senhores, por exemplo, até poderiam
considerar os escravos como "coisas", seres destituídos de vontade própria, incapazes de
atitudes políticas, que deveriam comportar-se como uma extensão da vontade senhorial,
concebida como absoluta e universal. Eram homens e mulheres comprados para serem
dominados e expropriados pelos senhores; como escravos, no entanto, impunham limites à
vontade senhorial, possuíam projetos e idéias próprios, pelos quais lutavam e conquistavam
pequenas e grandes vitórias. Os senhores, evidentemente, não reconheciam estas conquistas;
para eles tratavam-se de concessões, generosas e paternais concessões. Os escravos, no entanto,
traduziam o paternalismo numa doutrina diferente da imaginada pelos senhores e as
"concessões" senhoriais transformavam-se em conquistas – a serem arduamente defendidas e
que, muitas vezes, passavam a ser costumes, "tradições", quase "direitos".

Conflitantes também eram os significados da escravidão e da liberdade, vividos de modos


diversos por senhores, escravos e libertos. Ao recuperar o ponto de vista dos dominados,
incorporando-o na análise, podemos perceber como havia, ao mesmo tempo, enormes
diferenças entre ser livre ou cativo e muitas proximidades entre as duas condições. Mais que
dois universos antagônicos e sucessivos, escravidão e liberdade definiam-se mutuamente ao
longo do período escravista, num movimento constante entre desiguais e diferentes.

Mergulhando num desses acalorados embates entre escravidão e liberdade, Joseli Mendonça
examina os debates parlamentares e as contendas judiciais que envolveram a elaboração e a
aplicação da lei que aprendemos chamar "dos sexagenários". Invertendo a corrente que
considera esta e outras medidas legais como parte do processo gradual e seguro a caminho da
emancipação, a análise investiga o conflituoso processo de fabricação da lei e sua relação com
os conflitos entre senhores, escravos e libertos, mostrando como os debates do parlamento
mantinham um estreito diálogo com o que se passava nos tribunais, e como as questões legais
também estavam em jogo nas ruas e fazendas de Campinas, região escolhida pela autora para a
investigação empírica. Diferentes noções de liberdade, do que era justo ou legítimo, misturavam-
se a cálculos políticos e econômicos que tentavam avaliar o quanto o processo abolicionista
inaugurado em 1871 iria se prolongar ou poderia ser controlado. Diante da contestação escrava
e abolicionista, os senhores tentavam lidar da maneira que podiam para preservar uma
autoridade cada vez mais enfraquecida. Assim, inverte-se a interpretação histórica até agora
geralmente aceita e a história deixa de ser lida apenas num sentido único para integrar situações
em que relampejam perigos e incertezas.

Na mesma direção trabalha Marcus Carvalho, investigando o cotidiano dos escravos no Recife da
primeira metade do século XIX. Ao mesmo tempo em que procura examinar as rotinas de
sobrevivência dos cativos e suas lutas cotidianas em busca de uma ampliação dos espaços
econômicos e sociais sob a escravidão, fugindo, trabalhando como forro, comprando a liberdade
ou impondo sua venda por meio de inúmeras estratégias, este livro traz uma importante
contribuição no sentido de desvendar o quanto a escravidão e a movimentação escrava em
Pernambuco esteve associada à política provincial e aos movimentos rebeldes que agitaram a
província durante todo o período. Num contexto em que havia um contingente significativo de
pessoas "livres" que trabalhavam ao lado dos escravos e davam apoio político aos proprietários
em troca de um pedaço de chão para suas hortas ou pasto para uns poucos animais, nem sempre
havia interesse em empatar dinheiro comprando escravos. Este "cálculo", entretanto, não era
apenas econômico: a continuidade e a repressão ao tráfico atlântico e interno foram objeto de
disputas entre conservadores e liberais e parte importante de vários outros conflitos entre as
elites locais. Estava ligado também a outras práticas políticas, que visavam o controle cada vez
maior sobre a população escrava e liberta que se concentrava na cidade do Recife. Tentava lidar
com a agitação dos negros e "pardos", que aproveitava as crises políticas de 1817, 1821-22, 1824,
1831, 1832-35, 1848, e toda uma rede de quilombos cercava o Recife ao longo das estradas que
ligavam a cidade à Zona da Mata.

De modos diversos e referidos a conjunturas históricas específicas, estes dois livros trazem novas
dimensões para os estudos da escravidão, associando o tema à história política e institucional,
fazendo com que elas sejam revitalizadas pela presença das reivindicações populares. Assim, ao
mesmo tempo em que somos levados a ver com outro olhos as quarteladas e insurreições
provinciais do período regencial, ganhamos a possibilidade de aprender como escravos, libertos
e livres pobres se juntaram para impor algumas regras, diferentes daquelas desejadas pelos
senhores, ajudando a moldar o conflituoso processo de extinção da escravidão no Nordeste
brasileiro. Somos levados a olhar de outro modo o funcionamento da justiça e a relação entre o
Judiciário e o Legislativo, descobrindo ali canais pelos quais os despossuídos conseguiram fazer
valer algumas de suas vontades e projetos sociais.

Este é também o cenário no qual se desenvolve uma outra história, centrada agora numa
trajetória individual, de um personagem singular e extraordinário. Trata-se de Luiz Gama, que
aparece no livro de Elciene Azevedo como protagonista de uma experiência partilhada por
muitos outros homens que viveram num mundo marcado por relações de dependência e fortes
hierarquias e conseguiram preservar a liberdade conquistada. Diferentemente da maioria dos
libertos, entretanto, este homem participou do mundo dos brancos, publicou livros, editou
jornais, atuou nos tribunais e participou ativamente da vida partidária de meados do século XIX.
Escapando aos apelos do mito e à força da legenda, o livro recupera o sentido profundamente
histórico de uma experiência individual. E novamente estamos diante de outras dimensões da
análise e interpretação do passado – possíveis quando se incorpora a elas a perspectiva dos
escravos.

Deixei por último o trabalho que me parece mais instigante e que, talvez por ter sido publicado
depois de todos os outros, encarna o que há de melhor nesta reviravolta historiográfica.
Estudando um tema aparentemente banal – o da família escrava – o livro de Robert Slenes faz
emergir todas as nuances políticas das lutas cotidianas entre escravos e senhores. Indo além da
simples constatação da existência de laços e experiências familiares nas senzalas do sudeste
escravista de meados dos oitocentos, o livro mostra como a família cativa conseguiu sobreviver
aos limites impostos pela escravidão (que permitia a venda separada de pais e filhos, por
exemplo) e contribuiu decisivamente para a criação de uma comunidade escrava. Foi, muitas
vezes, um instrumento na mão dos senhores para prender os cativos às fazendas, pacificar
rebeldes ou dar estabilidade ao contingente de cativos que possuíam. Mas foi também meio de
obter e preservar um espaço físico diferenciado – do cubículo na senzala a uma casa separada
dela – em que os parentes podiam construir uma vida doméstica (com uma roça, costumes
alimentares, rituais específicos) longe do domínio senhorial. Mais que isso: através da história
das famílias escravas podemos reencontrar memórias e características centro-africanas que
inspiravam e orientavam as ações e as lutas no novo mundo. Num mundo em que cerca de 80%
dos escravos acima de 15 anos provinha da região Congo-Angola, não há como desconsiderar o
peso das heranças culturais que os desterrados da África traziam consigo. Assim, do modo de
construir as casas à mania de manter um foguinho aceso dentro delas, podemos reencontrar um
universo até agora praticamente desconhecido pelos historiadores, mas que iluminava
constantemente as ações daqueles homens e mulheres.

Ultrapassando os limites ideológicos das fontes produzidas por observadores brancos do século
XIX, ou pelas ações repressivas da polícia e da justiça, estes historiadores buscam ir além da
perspectiva que enfatiza o esforço dos fazendeiros de solapar "todas as formas de união ou de
solidariedade dos escravos". Sem descartar os ganhos trazidos por estas análises, mas
apontando os traços conservadores que as marcavam, procuram incorporar uma visão
diametralmente antagônica, resgatando os esforços dos cativos para superar os grilhões e as
agruras a que estavam submetidos. Trabalhando sobre questões aparentemente "miúdas", estes
livros nos mostram que as escolhas individuais são históricas, e que podemos aprender muito
com estas lutas que fizeram parte do cotidiano de cativos e libertos de pouco mais de cem anos
atrás. Longe de seres totalmente submetidos e triturados pelo cativeiro, possuíam heranças
culturais próprias e criaram instituições e mecanismos defensivos que orientavam suas lutas e
esforços durante dias e noites de cativeiro e de conquista da liberdade. Podemos aprender,
principalmente, que a história é um processo indefinido, com desfechos imprevistos: a cada
momento, para além dos sistemas e suas determinações, somos nós, homens e mulheres que a
fazemos, a cada passo, a cada escolha. Uma lição cada vez mais presente também nos livros de
história produzidos nas universidades brasileiras – já não era sem tempo!

Silvia Hunold Lara é professora do Departamento de História da Unicamp, autora de Campos da


violência (Paz e Terra, 1988)

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