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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Ciências Humanas e Sociais

Departº História e Relações Internacionais

Docente Drª. Adriana Barreto de Souza

Discente Sulamita F. Rangel Lopes

TH554 – História do Brasil II – T26 (2022.1)

Trabalho sobre o livro “O Plano e O Pânico: Os Movimentos Sociais na década da


Abolição.”, de Maria Helena P. T. Machado.

O Plano e o pânico: Movimentos Sociais na Década da Abolição foi editado a


partir da tese de Doutorado em História defendida por Maria Helena Machado na FFLCH-
USP, em 1991, sob a orientação de Maria Odila da Silva Dias, por meio da bolsa
concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Pertencente à historiografia que refundou a temática da escravidão a partir da década de
1980, esta obra é a expressão da investigação pautada na apreensão da materialidade
histórica presente nas descrições das fontes da época. A obra fornece direções mais amplas
para se apreender a heterogeneidade da sociedade colonial do Sudeste no século XIX e das
diversas faces dos movimentos que deram contorno à década.

A autora analisa e desvenda aspectos que encobriram projetos de movimentos


sociais nas províncias de São Paulo e Rio de Janeiro na década de 1880. Por meio de
relatos policiais locais, ela expõe a forma como a censura intentou desqualificar estes
movimentos no contexto do declínio do sistema escravista, retirando sua atuação enquanto
determinante nos novos rumos da luta pela liberdade. Ela esclarece que, se na cidade o
movimento abolicionista ganhava mais adeptos e empenhava seus esforços nas disputas
políticas, nos plantéis as lutas configuravam as experiências dos escravos que, enquanto
sujeitos históricos, davam o movimento necessário por meio do qual as mudanças foram
possíveis. A despeito dos discursos oficiais sobre a abolição, que deram a esses
movimentos um sentido vazio de meras revoltas ilógicas, o livro lança luz sobre os agentes
organizadores de um plano de liberdade que não se encerra em seus episódios de conflito,
analisando suas articulações após libertos na nova ordem do trabalho livre a qual a
sociedade se encaminhava. Nesse sentido, um dos objetivos propostos pela obra consiste
em discutir e compreender o papel do negro liberto nas disseminações da historiografia
tradicional. Para tanto, ela recorre às fontes provinciais e municipais das instituições de
polícia e a outros autores cujas pesquisas são pertinentes ao tema.

A partir do levantamento e análise de fontes policiais – tanto nas correspondências


trocadas quanto nos depoimentos de inquéritos registrados nas instituições – a autora
consegue evidenciar a presença de movimentos escravos que, embora diversas vezes
descritos como situações de rebeldia isoladas, indicam um modo de organização cuja
lógica se fazia presente, representando uma força que se alastrava para além dos limites
dos plantéis. Tal organização pode ser percebida nas articulações políticas no trabalho,
configurando uma dinamização das relações sociais, como ilustram os inúmeros episódios
de resistência ao trabalho coletivo e supervisionado nos eitos, em torno do qual se deram
os conflitos, em que os escravos reivindicavam uma condição mais flexível de trabalho e
tempo livre para se dedicarem às suas roças e organização de suas vidas. Os primeiros anos
da década de 1880 são ilustrativos da força e expansão que esses movimentos obtiveram,
conferindo à sua luta por liberdade contornos mais claros e expressivos. A Província de
São Paulo é a mais recorrente nos relatos sobre o “descontrole” escravo e reflete o
problema da manutenção da ordem pública, expressando não só a impotência senhorial
diante das insubordinações, como também a insuficiência, o despreparo e a falta de
recursos policiais nesse cenário. As trocas de correspondências entre os chefes de polícia
explanam a inoperância do aparelho repressivo, além de destacar péssimas condições
estruturais das cadeias, quando estas existiam. Tanto as requisições de aumento no corpo
policial quanto as solicitações de aumento de recursos – armas, munições etc – foram
reivindicações recorrentes, como pode ser verificado nos relatos de Ribeirão Preto,
Caçapava e Itatiba nos períodos entre 1882 e 1884, por exemplo.
Além dos conflitos em torno do trabalho nos eitos, a autora investiga as disputas
relacionadas às questões de terra, elucidando as tentativas de libertos em se assenhorar de
fazendas produtivas, por meio de reivindicação das doações de seus finados senhores.
Exemplo disto foi o episódio em que cerca de oitenta escravos do finado major Francisco
Alves Moreira, fazendo do Jambeiro, recorreram à justiça para tomar posse de seus ganhos.
Em disputa com a única herdeira legítima, mãe do de Alves Moreira, eles alegavam não
sofrer maus tratos, a fim de não serem subordinados à continuação do trabalho por parte
dessa primeira e outros interessados. Os relatos indicam o paradoxo vivido pela sociedade
no que concerne à definição de escravo e liberto. A fim de delinear com mais exatidão as
características constitutivas do próprio sistema escravista, a autora se detém aos elementos
exploração do trabalho e o arcabouço disciplinar. Estes seriam, segundo os apontamentos
que ela faz, definidores do sistema e sua ausência no tratamento senhorial, como
exemplificado pelo caso do major, poderia indicar certa ambivalência nessa conduta, além
de significar expressiva ameaça aos poderes senhoriais locais, sob os quais estavam
mantidas diversas mãos de obra escrava. A amenização dos castigos e a preocupação com
a saúde e alimentação dos cativos poderiam ser frutos de uma preocupação com a
produtividade visando à manutenção e garantia dos plantéis e também à inserção nos novos
circuitos comerciais que se propagavam nas cidades. Nesse sentido, os escravos libertos
ganhariam nova função social de tutelados, perpetuando o sistema paternalista do antigo
regime escravocrata. A implementação da nova lógica econômica deu lugar à dissolução
da distinção entre as classes de escravos, forros e livres, integrados agora numa nova
configuração dos lugares na sociedade, representando sempre a camada inferior desta.

Embora não disponha de estudos mais profundos sobre como as ideias estrangeiras
de progresso foram importadas e incorporadas pela sociedade urbana, bem como estudos
do processo de urbanização do Sudeste, a autora consegue se aproximar da realidade da
sociedade dentro dos moldes do mercado livre, assentando-se nos estudos de Célia Maria
Marinho de Azevedo em “Onda negra, medo branco”, de Maria Odila da Silva Dias em
“Novas Fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de ganho” e, também, de
Maria Sylvia de Carvalho Franco em “Homens livres na ordem escravocrata”. Essas três
fontes foram cruciais para a articulação dos argumentos da autora sobre como as
organizações de escravos nas últimas décadas do século XIX puderam modelar seus papéis
enquanto homens e mulheres livres na transição do sistema que declinava para uma nova
economia, que englobava tanto a produção cafeeira quanto os pequenos comércios. Em
Novas Fímbrias da Escravidão, Dias mostra como a camada dos escravos urbanos, embora
representasse cerca de dez por cento do conjunto da população servil, exerceu papel
fundamental no contexto das tensões urbanas e de transição para o mercado livre. A alusão
ao artigo no livro de Machado provoca reflexões acerca das relações entre os libertos e os
pequenos negociantes, bem como promove leituras bem apuradas sobre os
posicionamentos de resistência das novas figuras sociais, que se negavam a cumprir os
preceitos de submissão, como no caso das negras de tabuleiro descritas por Dias.

De Onda Negra, Medo Branco, a autora extrai as informações que permitem a


reconstituição histórica das formas como as elites tiveram que tecer novos projetos frente à
mobilização de libertos, cuja insubmissão e insatisfação com o novo sistema se
desdobravam em múltiplas tensões. É a partir desta obra que ela imprime o elemento
principal que caracterizava as atitudes das elites senhoriais; o medo. O temor do
descontrole social sempre esteve presente, mas na década da abolição, na qual os
movimentos se intensificam mostrando posições e objetivos bem definidos, ele se reflete
de maneira recorrente em todas as investidas de contenção por parte dos senhores. A
escolha da obra como um dos pontos de partida representa o compromisso integral em
realizar uma pesquisa que não conceba o esquecimento de tais participações como um
processo natural, em que o negro – escravizado e livre – representa apenas uma mão de
obra invisível no contexto da urbanização. A focalização do imigrante europeu como
objeto de estudo principal na historiografia tradicional é um dos principais
questionamentos levantados por Célia Maria Marinho na obra aqui referida. Seus
argumentos serviram como aporte teórico essencial nas elaborações de Machado acerca da
omissão do papel do homem livre na constituição da sociedade que ali emergia.

O amparo nos estudos de Maria Sylvia de Carvalho Franco deu à autora


ferramentas necessárias para discutir o papel do escravo na definição do destino dos
proprietários, assim como dos homens livres e pobres. Por meio desses estudos, Machado
analisa as relações sociais que se expandiam dos cafezais às províncias e os novos
contornos dados à mão de obra livre, que buscava reivindicar seu espaço e condições
próprias de autonomia, ainda que a historiografia não lhes tenha contemplado da mesma
maneira, embaçando sua participação no circuito das relações comerciais vigentes.
Em linhas gerais, Maria Helena Machado chama a atenção para a participação ativa
dos negros, cativos e libertos, e desclassificados em geral no processo de abolição. Década
caracterizada pelos movimentações políticas e discursos em torno de reformas estruturais
da sociedade, 1880 foi fortemente marcada por movimentos de resistência representaram a
articulação das camadas subjugadas da sociedade. Apesar de seu reconhecimento quanto à
forte influência dos movimentos sociais abolicionistas nas fazendas, bem como o nexo que
eles podiam fazer entre cativos rurais e urbanos, a autora atribui aos movimentos dos
homens livres, pretos e pardos grande importância devido à agitação causada pelas suas
reivindicações frente ás condições precárias de vida e moradia a que estavam submetidos.
Nesse sentido, ela desvenda as feições radicais dos movimentos abolicionistas e
desmistifica o conceito de promovedor de liberdade ao qual são associados. Afinal de
contas, no contexto da transição para o trabalho livre, as resistências e tensões se
mantinham intensas, visto que os libertos não se identificavam com o novo modo de vida
cujos preceitos infligiam suas próprias concepções de liberdade. Em outras palavras,
elucida a oscilação da atuação de abolicionistas nas disputas parlamentares como
insuficientes para a abolição e restritas às atuações meramente teóricas, enquanto as ações
dos movimentos escravos circunscreviam as modificações concretas nas relações sociais e
de poder, embora esse mérito lhes fosse propositalmente roubado pelas políticas
imigrantistas.

Bibliografia:

MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. O Plano e O Pânico: Os Movimentos Sociais na


Década da Abolição. – 2ª ed. rev. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. 248
p.

AZEVEDO, Célia Maria Marinha de. Onda Negra, Medo Branco: o Negro no Imaginário das
Elites – Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 267 p.
DIAS, Maria Odila da Silva. Nas Fímbrias da Escravidão Urbana: negras de tabuleiro e de
ganho. Estudos Econômicos. São Paulo: Revista da USP, 1985. Vol. 15 – Nº especial – p. 89 –
109.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. – 4ª ed. – São
Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

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