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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
TH522 – HISTÓRIA DO BRASIL I – T26 (2020.2)
DOCENE MARGARETH GONÇALVES DE ALMEIDA
DISCENTE SULAMITA F. R. LOPES 2016265548

Relatório

John Manuel Monteiro

Capítulo 4: “A administração particular”

Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo.

São Paulo, 1994.

MONTEIRO, John Manuel. A administração particular. In: _______. Negros da terra:


índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
129-153.

Documentário: “Guerras do Brasil”, episódio 1.

GUERRAS do Brasil. Direção de Luiz Bolognesi, 2019. 1 vídeo (26 min). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=VeMlSgnVDZ4. Acesso em: 17 jun. 2021.

No quarto capítulo de seu livro, Monteiro trata de interpretar e analisar a sociedade


paulista no contexto colonial do Brasil, tendo como ideia central o fato de sua economia ser
exclusivamente baseada na exploração e escravização das populações indígenas. Ele defende
que o empenho dos colonos em manter articulada sua prática econômica alheia ás implicações
legais e morais vigentes do século XVII, consistia na elaboração diplomática de justificativas
para legitimar o domínio dos indígenas. Essas racionalizações seriam a correspondência, nos
campos teórico e jurídico, do que já ocorria na esfera prática da sociedade paulista. Contudo,
o autor ressalta que os colonos deviam empreender um esforço ambivalente para a
preservação de seu sistema particular: vencer os oponentes jesuítas e romper os obstáculos
concernentes ao acesso à mão de obra indígena, impostos pela Coroa. Nesse sentido,
Monteiro desenvolve seu argumento principal em torno do paradoxo que é o desenvolvimento
da sociedade paulista, cuja participação no complexo do tráfico negreiro era quase inexistente,
ao mesmo tempo em que sua economia era norteada pelos mesmos princípios das capitanias
litorâneas inseridas nele.

Os conflitos aos quais o autor se refere, se davam em torno do destino e administração


dos indígenas trazidos do interior. Ele conta que a divergência de interesses entre colonos e
jesuítas sempre figurou o cenário da sociedade paulista e culminou em fortes tensões,
principalmente no final dos anos quinhentos, quando o fluxo de cativos se intensificou. Os
jesuítas tinham interesse em direcionar todos eles aos aldeamentos, para serem
disponibilizados posteriormente às partilhas de colonos para fins de serviços periódicos. Os
colonos, por sua vez, se opunham completamente à essa mediação e empreendiam esforços
para reivindicar o direito sobre os indígenas, principalmente os que haviam sido trazidos por
eles. Entretanto, apenas na última década do século XVI que estes últimos conseguiram apoio
da Câmara Municipal, quando esta aderiu à causa dos colonos, opondo-se aos aldeamentos
indígenas. No entanto, os conflitos ganharam maior ênfase, quando Jorge Correia chegou para
ocupar o posto de capitão-mor da capitania em 1592, impondo a exclusividade da Companhia
de Jesus na administração dos indígenas recém-chegados, o que certamente ocasionou em
revoltas por parte dos colonos. Um atenuador desse conflito, segundo Monteiro, foi o alvará
régio de 1596, que definia a função dos jesuítas em relação aos indígenas e regulamentava os
direitos destes últimos no que concerne à remuneração e tempo de trabalho periódico prestado
aos colonos. De modo geral, seu objetivo era formalizar o monopólio dos jesuítas sobre os
cativos. Diante disso, os colonos recorreram ao aparelho legal e representativo ideal para
burlar tais legislações: a Câmara Municipal. Valendo-se de sua autonomia, ela ganhou grande
destaque na atuação da disputa pela mão de obra indígena, o que pode ser verificado na
restrição feita ao juiz do índio, em 1600, que limitava sua jurisdição a somente indígenas
trazidos pelos próprios jesuítas.

Interessante observar que o conselho buscava restaurar os privilégios previstos em


cartas precedentes, como a de Martin Afonso de Sousa em 1534, além de se apoiar em
brechas nas próprias cartas de restrições, fazendo releituras alternativas destas a fim de
legitimar o uso do cativeiro, sendo este o fator que viabilizava a economia paulista. A
inclusão da sociedade paulista na economia colonial demandava certo potencial econômico
oriundo do extrativismo e excedentes comerciais. A partir disso, assentar de maneira legal seu
método de exploração, exigia dos colonos não somente a capacidade de transpor os limites
impostos pela defesa da liberdade indígena por parte dos jesuítas, mas também de manipular
as diretrizes da própria Coroa, cujo posicionamento era demasiado inconstante, como
esclarece o autor. A exploração massiva de populações indígenas era indispensável ao
desenvolvimento econômico de São Paulo.

Embora fosse incontestável o triunfo dos colonos no sentido prático da execução de


seu sistema escravista, estes estavam suscetíveis às oposições legais da própria Coroa e, por
conseguinte, dos jesuítas. Nesse sentido, era necessário que houvesse, no campo ideológico,
um aporte argumentativo constante por parte dos colonos. O instrumento legal utilizado como
mantenedor e justificativo dos direitos dos paulistas sobre os indígenas era o testamento. A
partir dos testamentos, podia-se observar o desenvolvimento dos principais argumentos
utilizados pelos colonos, como a necessidade da mão de obra indígena para o próprio
desenvolvimento da colônia, o uso da força bruta nos casos dos gentios rebeldes que resistiam
à suposta “ajuda” dos colonos, cuja política era considerada mais racional que a dos
primeiros, e assim por diante. Essa ideia foi muito bem reforçada pelo relatório de
Bartolomeu Lopes de Carvalho, na última década dos seiscentos, no qual ele defende que os
paulistas em muito contribuíram para a Coroa e para Deus nas conquistas dos indígenas.
Além disso, reforçava a argumentação dos colonos no que diz respeito á recorrência do
cativeiro como alternativa indispensável nos casos de rompimento da pacificidade, alegando
que o método só se tornou viável mediante ataques dos próprios indígenas aos colonos. Desse
modo, a principal justificativa era a doutrinação dos povos infiéis, apoiada nos princípios da
guerra justa, criada e disseminada pelos papas e reis. De modo geral, o principal argumento de
Carvalho era a convergência entre a mentalidade colonial, que depreciava o trabalho manual e
demandava, assim, escravos para tal serviço, e o objetivo principal da Colônia, a
prosperidade. Essas argumentações configuravam o caminho da flexibilidade da Coroa diante
da questão indígena em São Paulo.

Se por um lado o amparo legal da guerra justa servia como aliado dos colonos, por
outro, o número desproporcional de cativos ilegais contribuía para um dilema jurídico. Para
resolver tal problema, os colonos logo trataram de institucionalizar seu aporte ideológico que
dava contorno à escravidão indígena na capitania paulista, resultando numa administração
particular que mantinha e regulamentava as relações de escravidão vigentes. Essa
administração tinha um caráter tutelar que lhes garantia o direito de exercer total domínio
sobre os indígenas, considerados incapazes de administrar a si mesmos, sem que isso fosse
compreendido como escravidão em termos jurídicos. Outro fator contribuinte na manutenção
dessas relações de escravidão era a tradição histórica do “uso e costume”, muito utilizada nos
testamentos para justificar a posse e herança dos cativos. Isto configurava um paradoxo diante
das leis régias que determinavam a alforria de todos os indígenas, e era muitas vezes
reconhecido em testamentos do século XVII. A manutenção desta ordem paralela à legislação
da Coroa se dava principalmente a partir da justificativa de que os paulistas prestavam um
grande serviço a Deus e aos reis, até mesmo aos próprios indígenas. Ao longo do século, a
predominância do apelo ao “uso e costume” se tornou tradicional.

Embasados no discurso paternalista que em muito se assemelhava às diretrizes


religiosas da Coroa, os colonos adquiriram total controle sobre os indígenas, fato que se
consolidou na vitória contra os jesuítas, em 1640, quando estes últimos foram expulsos da
capitania. O autor esclarece que as perspectivas dos colonos e da Coroa sobre o trabalho no
Brasil colonial não divergiam substancialmente, porém, o cativeiro ilegal dos indígenas
conferiu aos colonos forte oposição dos padres inacianos no campo político, uma vez que o
poder destes últimos era obtido majoritariamente através da defesa da liberdade indígena.
Liberdade essa, que pode ser compreendida em termos das limitações dos aldeamentos
dirigidos pelos jesuítas. Os colonos, por sua vez, se opunham ao controle exclusivo dos
jesuítas nos quatro aldeamentos de São Paulo, gerando grandes conflitos e o uso da força
bruta dos colonos contra os padres jesuítas, resultando na expulsão destes últimos da primeira
vila brasileira, São Vicente.

Monteiro observa que as razões dos conflitos entre colonos e jesuítas transcendiam a
questão da liberdade indígena, baseando-se essencialmente na disputa política entre essas
potências poderosas. Mais do que acesso à mão de obra indígena, os colonos almejavam
dissipar a organização jesuítica que adquiria cada vez mais poder, expandindo seu domínio
sobre os aldeamentos, como grandes proprietários de terras. Os aldeamentos, por sua vez,
eram passíveis de contestação que fomentavam as investidas dos colonos contra os jesuítas.
Mais precisamente o caso de Barueri, cuja condição jurídica não se mostrava absolutamente
clara. Visto que os conflitos entre essas duas forças eram norteados pelo interesse nos
crescimentos político e econômico, as fortes tensões são devidamente justificadas. A começar
por Barueri, cuja administração foi tomada pela Câmara após forte pressão por parte dos
colonos em 1632, servindo como o que o autor considerou, junto à disseminação do breve de
1639, um dos precedentes do ocorrido em 1640. Nove anos após a expulsão dos jesuítas, a
justiça colonial recebeu uma relação que enumerava as causas pelas quais eles haviam sido
expulsos. Apesar disso, os jesuítas foram readmitidos treze anos mais tarde, mediante acordo
que consistia na abdicação do litígio sobre o ocorrido em 1640 e, também, do breve de 1639,
dissolvendo assim a ferramenta jurídica sobre a qual os jesuítas se amparavam contra os
colonos. Em troca, estes últimos restituíram o Colégio de São Paulo. Embora tivessem seu
acesso restringido pelas condições impostas para seu restabelecimento na capitania, os
jesuítas seguiram como grandes proprietários de terra, contando ainda com os aldeamentos de
Embu e Carapicuíba, acrescentando-se as doações da Fazenda Santana e de Araçariguana.

A administração particular dos colonos seguia enfrentando o paradoxo de sua


jurisprudência: a venda de cativos, ainda que isso fosse expressamente proibido; e a alforria
indígena já prevista na legislação colonial. Nesse sentido, a recorrência ao “uso e costume” se
fazia presente em quase todos os testamentos, a fim de justificar tais práticas comerciais. Já no
que diz respeito á segunda questão, os colonos enfrentavam diversos problemas diante das
reivindicações exigidas por nativos que reconheciam seus direitos amparados nas diretivas da
Coroa. Além disso, os paulistas continuavam subordinados ao poder eclesiástico advindo do
Rio de Janeiro, que ora tentou impor uma taxa de 160 réis por nativo retirado do sertão
(1670), ora determinou a liberdade incondicional destes últimos. Embora houvesse murmúrios
acerca da possiblidade de uma nova expulsão em 1685, os colonos foram em busca de
negociações com as autoridades, estas foram mediadas por Alexandre de Gusmão, provincial
dos jesuítas. Contudo, o resultado das tentativas de conciliação foi nada menos que a
acentuação do famigerado conflito que continuou a polarizar as partes, segundo seus
respectivos interesses. Após elaboração de uma lista de dúvidas a respeito dos direitos sobre
os indígenas feita pelos colonos, o padre Antonio Vieira se posicionou de forma
absolutamente contrária às condições às quais os primeiros consideravam necessárias aos
cativos, principalmente no que diz respeito à remuneração destes. Esta articulação de Vieira,
segundo Monteiro, “foi talvez a sua última grande invectiva contra a escravidão indígena”.
(p. 150) Apesar disso, os paulistas levaram a vantagem no firmamento da concordata de 1694.
Isso gerou grande fúria em Vieira, que direcionou seu descontentamento aos próprios jesuítas
que concordaram com a negociação, referindo-se a muitos deles como inexperientes nas
questões indígenas e que “nem dominavam a língua geral”. (p. 151) Monteiro salienta que
Vieira se referia a dois padres específicos: Jacob Roland e Jorge Benci. O que mais irritou
padre Vieira foi o fato de suas próprias palavras terem sido manipuladas no livro escrito por
Roland que, segundo ele, defendia os interesses dos colonos.

O arremate final da ideia defendida por Monteiro, na qual se reconhece a semelhança


entre as explorações dos povos nativos e dos africanos escravizados, encontra-se no relatório
do padre visitador Luiz Mamiani sobre as questões econômicas do Colégio, disposto com tal
reconhecimento pelo autor nas últimas páginas do capítulo aqui referido. Ele conta que
Mamiani constatou que a maneira como os jesuítas tratavam os nativos não diferia da forma
como os colonos faziam. Um das questões fundamentais analisadas por Mamiani, é o fato de
o desenvolvimento econômico do Colégio de São Paulo ter-se dado a partir das produções
agrícola e artesanal, provenientes da mão de obra indígena. Além disso, nas próprias fazendas,
as divisões dos trabalhos entre os indígenas e africanos não eram distintas, muito pelo
contrário, colocavam ambos numa posição horizontal em termos de aplicações de regras
trabalhistas. A única coisa que os diferenciava era o fato de os primeiros serem compensados
por seu trabalho. Contudo, ele verifica a controvérsia existente no âmago desse próprio
sistema: o trabalho forçado não era permitido, no entanto, o serviço não remunerado era
tolerado em certa medida, constituindo assim o que ele considerou o aspecto imoral dessa
organização. Tais contradições existentes no campo de atuação das administrações
particulares foram contornadas e legalmente amparadas pela carta régia de 1696, que
reconhecia os direitos dos colonos na administração particular dos indígenas.

Em suma, o que o autor esclareceu no texto foi o esforço imensurável que colonos e
jesuítas, cada qual no seu viés ideológico, empreenderam para institucionalizar a escravidão
dos indígenas, de modo a contemplar as práticas já assentadas na sociedade paulista. Com
isso, a carta régia foi nada menos que uma mera distinção formal do que até então era
entendido como escravidão e expressamente proibido por lei, tornando-se, assim, um aparelho
institucional legítimo.

É possível reiterar a análise de Monteiro sobre a sociedade paulista e seu argumento de


que a exploração indígena era a base da economia desta capitania através da apreensão de
constatações feitas no primeiro capítulo do documentário “Guerras do Brasil”. Mais que isso,
é possível estender esse sistema escravista para além do universo particular paulista, seguindo
a explicação do historiador Pedro Puntoni, que faz análise da sociedade colonial brasileira,
cujas primeiras atividades de produção eram realizadas pelos indígenas antes mesmo da
chegada massiva de povos africanos escravizados. Nesse sentido, Puntoni alega que os
engenhos de açúcar foram trabalhados primeiramente pelos povos nativos, escravizados e
muitas vezes dizimados segundo o pressuposto da guerra justa. Esse conceito se estendeu por
todo o sertão, dando força às investidas coloniais. Além de analisar e expor os precedentes do
estabelecimento do sistema escravista colonial, o historiador também explica as interações
entre os povos nativos e os colonizadores recém chegados. Antecedido pelo escritor e
ambientalista Ailton Krenak, que esclareceu as questões de interações culturais, organização e
estrutura das sociedades indígenas do passado, que viviam em trânsito e contato com povos
diversos, estabelecendo muitas vezes uma relação de respeito e tolerância, Puntoni dá
continuidade à essa ideia baseando-se nos estudos antropológicos de Lévi-Strauss, que
apresentava o contraste entre a concepção de cultura por parte dos europeus e a abrangência
das diversidades pelos povos originários. Nesse sentido, explica como a perspectiva
eurocêntrica somada aos princípios do colonialismo português contribuíram para a
sublimação de grande parte da população que já habitava a américa e, também, da subjugação
dos povos nativos escravizados. Dessa forma, o sistema necessitava dessa mão de obra para
que se tornasse economicamente viável e expansivo. O legado dessas invasões e
expropriações de terras nativas perdura até os dias atuais, nas lutas dos povos indígenas pela
demarcação de terras e reivindicação de seus direitos. Mesmo após cinco séculos, as lutas dos
povos indígenas pela preservação de seus direitos e suas vidas continuam figurando grande
parte do cenário político dessa terra que há tempos é banhada pelo sangue de nativo, em
decorrência do colonialismo europeu.

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