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HISTÓRIA DO

BRASIL
COLÔNIA

Caroline Silveira Bauer


A escravidão indígena
e os jesuítas
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Relacionar o conceito da escravidão com o contexto do Brasil colonial.


 Analisar os aspectos de confronto cultural entre indígenas e portu-
gueses no processo de escravidão da população indígena.
 Definir a missão jesuítica com os reflexos do movimento de Reforma
na Europa.

Introdução
Europeus e indígenas estabeleceram no Brasil Colônia diferentes formas de
relação, que afetaram mutuamente suas culturas. Certamente, essa influência
mútua não foi proporcional, em função de uma visão de mundo etnocêntrica
dos conquistadores e de seus objetivos de exploração do território americano.
Assim, não demorou muito para que os portugueses passassem das relações por
escambo para a escravização indígena, e utilizassem da religião para dominá-los.
Neste capítulo, você vai estudar a especificidade da escravidão in-
dígena e suas diferenças em comparação com a escravidão africana.
Além disso, vai examinar as diferenças existentes nas visões de mundo
de portugueses e dos indígenas e de que forma elas afetaram as relações
de trabalho. Por fim, conhecerá o papel da Companhia de Jesus e dos
jesuítas no contexto colonial português na América.

1 A escravidão indígena na América portuguesa


Até pouco tempo, a escravização de indígenas na América portuguesa era
relatada de modo quase hegemônico, tendo como foco o início do processo de
colonização e expansão dos europeus na América e assentando seu término
na incapacidade do indígena em se adaptar aos modos de trabalho exigidos
2 A escravidão indígena e os jesuítas

pelos colonizadores, quando sua mão-de-obra foi substituída pelos africanos


escravizados. Contudo, novas abordagens historiográficas vêm procurando
desconstruir essa narrativa demasiado simplista, que não abarca toda a com-
plexidade do contato, da expansão e das relações estabelecidas entre europeus
e as populações nativas da América.
A primeira forma de exploração do trabalho indígena se deu pelo escambo.
Em troca de sua mão-de-obra na extração e transporte do pau-brasil, os indígenas
recebiam dos portugueses uma série de quinquilharias europeias, pelas quais
tinham apreço em função de seu desconhecimento. Além disso: os índios supriam
igualmente em alimentos a pequena população europeia residente, com a qual tra-
tavam de estabelecer laços cerimoniais e alianças envolvendo não só trocas de bens
como, também, a concessão de esposas indígenas aos brancos (CARDOSO, 1990).
Contudo, com o início do processo de colonização e expansão dos europeus
na América e a complexificação das atividades econômicas, foi necessário
estabelecer novas formas de exploração do trabalho, e a escravidão foi uma
delas. “A partir de 1532, com o início da colonização efetiva e da economia do
açúcar, as exigências de alimentos para a produção europeia crescente, e de
mão-de-obra para os engenhos, mudaram com rapidez o caráter das relações
com os autóctones” (CARDOSO, 1990, p. 102)
Assim, foi aprovada uma série de medidas para o tratamento dos indígenas,
que podemos chamar de “legislação indigenista”. Segundo Ramos (2004, p.
244), essas medidas se referem “[...] ao conjunto de leis, alvarás, cartas régias,
avisos que regularam a atuação colonial em relação às populações indígenas,
sabendo que estas compunham, na maioria das vezes, um projeto de ocupação
e administração do Estado”.
As primeiras regulamentações sobre a utilização da mão-de-obra indígena
datam de março de 1570 (RAMOS, 2004) e abordam diferentes métodos para
a obtenção de indígenas escravizados. Uma das formas de aprisionamento foi
a utilização, em proveito dos colonos, dos conflitos intertribais,

[...] com a finalidade de se obter escravos originalmente prisioneiros de guerra,


inicialmente com amparo legal, sob o argumento das expedições de resgate
de tornar o preso livre das ameaças da antropofagia, desenvolvendo-se pos-
teriormente para troca ou compra (RAMOS, 2004, p. 244).

As táticas utilizadas pelos europeus, portanto, aproveitavam-se de práticas


culturais dos indígenas, revestindo-as de um ideal salvacionista.
Os indígenas também eram capturados em expedições realizadas pelos
bandeirantes no sertão (interior) da colônia. Essas expedições de apresamento
A escravidão indígena e os jesuítas 3

começaram a ser realizadas no século XVI e seguiram ocorrendo até o século


XVIII (MONTEIRO, 2013).
É importante ressaltar que a legislação indigenista estabelecia uma dis-
tinção entre os nativos, que permitia uma diferenciação e uma legitimidade
em relação às práticas coloniais:

[...] um, direcionado para as sociedades indígenas consideradas aliadas, favo-


recendo a incorporação como mão-de-obra através dos aldeamentos formados
a partir dos descimentos liderados pelos missionários. O segundo, dirigido
aos ‘índios bravos’, os quais se combatia numa estratégia de guerra colonial,
permitindo-se a escravização (RAMOS, 2004, p. 246).

Em certo momento do processo colonizador e de expansão europeia, a


legislação indigenista passou a evidenciar as contradições e oscilações da
coroa portuguesa, que procurava atender os interesses conflitantes dos colonos
escravocratas, bem como as reivindicações dos jesuítas.

Chocaram-se os missionários, apoiados pelo Estado português, que pretendiam


converter os índios ao catolicismo, ‘pacificá-los’ e torná-los disponíveis como
trabalhadores eventuais assalariados, e os colonos, cuja urgente necessidade
de braços levava a expedições de escravização — diretas, ou lançando uns
grupos indígenas contra outros e em seguida negociando com os vencedores
os cativos de guerra (CARDOSO, 1990, p. 102).

Além disso, em certo momento, a escravidão dos indígenas se tornou


um problema moral. Nos séculos XVI e XVII, a mentalidade ibérica era
totalmente norteada pela tradição cristã, e, nesse contexto, os diferentes
pesos e medidas usados para julgar a escravização de negros e indígenas
não eram interpretados como um questionamento da escravidão em si. “Esse
era primordialmente um problema de ordem jurídica e política, na medida
em que os índios eram considerados súditos das monarquias europeias”
(FREITAS, 2011, p. 2652).
A escravidão indígena foi extinta com as reformas pombalinas na se-
gunda metade do século XVIII, estabelecendo que as relações entre colonos
e indígenas em termos de mão-de-obra se daria mediante o trabalho livre. O
historiador Ciro Flamarion Cardoso chama a atenção para a longa duração do
processo de extinção da escravidão indígena: “[...] embora a escravização dos
índios tenha sido banida por numerosas leis desde 1570, não cessou jamais
de todo no período colonial, só perdendo importância, nas regiões coloniais
periféricas, em meados do século XVIII” (CARDOSO, 1990, p. 103).
4 A escravidão indígena e os jesuítas

Como mencionado anteriormente, o término da escravidão indígena foi


atribuído ao “caráter” do indígena e a substituição de sua mão-de-obra pela
dos africanos escravizados. Entretanto, esse processo foi muito mais complexo,
havendo coexistência na utilização do trabalho compulsório africano e indígena,
além de envolver outras questões que extrapolavam os julgamentos de caráter.
Segundo Freitas (2011, p. 2652),

[...] dentro do arrazoado da época, a diferença de opinião sobre a legitimidade


da escravização de africanos e índios não estava relacionada com a cor da pele,
com o desenvolvimento cultural ou com o fato de eles serem ou não idólatras.
A questão residia na condição político-jurídica que era bem diferente entre os
índios e os africanos. Os últimos provinham de terras que a coroa portuguesa
não tinha nenhum compromisso político. Não era responsabilidade dos reis
averiguar se os escravos eram bárbaros ou prisioneiros de guerra justa. A
coroa não requeria o dominium sobre as terras africanas e apenas feitorizava
a costa do continente. Já os americanos eram vassalos das coroas ibéricas e,
portanto, sua escravização não era simples de ser justificada.

Segundo John Monteiro, um dos principais empecilhos para que houvesse


um florescimento pleno de um sistema escravista baseado na mão-de-obra
indígena foram os jesuítas, que foram vistos como competidores pelos ban-
deirantes, porque levavam os indígenas para os aldeamentos:

[...] eles pressionaram a Coroa para proibir o cativeiro injusto dos índios. A
“Lei sobre a Liberdade dos Gentios”, de 1570, estabeleceu um dos funda-
mentos da política indigenista portuguesa, declarando livres todos os índios,
salvo aqueles sujeitos à “Guerra Justa” — grupos inimigos que apresentavam
alguma resistência armada (MONTEIRO, 2013, p. 29).

As “guerras justas” eram uma justificativa ideológica e religiosa para legitimar as


expedições de aprisionamento de indígenas considerados hostis. Se esses grupos
não aceitassem a catequização, atacassem os colonos ou praticassem a antropofagia,
estava autorizado o extermínio. Era uma prática com um viés jurídico e teológico
baseado no direito de guerra medieval. A guerra propagaria a fé cristã aos povos
“bárbaros” (AMANTINO, 2006).
A escravidão indígena e os jesuítas 5

2 Os confrontos culturais entre indígenas


e portugueses
O escritor uruguaio Eduardo Galeano (2012), em seu livro Os filhos dos dias,
afirma que no ano de 1492 os nativos descobriram que eram índios, descobri-
ram que viviam na América, descobriram que estavam nus, descobriram que
existia o pecado, descobriam que deviam obediência a um rei e a uma rainha
de outro mundo, além de um deus de outro céu. Essa irônica observação do
autor é bastante ilustrativa dos confrontos culturais existentes entre os euro-
peus e as populações autóctones. No momento do contato, houve o confronto
entre dois mundos distintos, implicando diferentes culturas, práticas sociais,
religiosidades, etc.
É importante ressaltar que, diferentemente daquilo que foi afirmado por
uma historiografia que pretendeu denunciar as mazelas da colonização, não
houve somente um processo de aculturação ou extermínio dos indígenas, mas
também processos de negociação e apropriação de referentes europeus por parte
dos grupos nativos em proveito próprio (MONTEIRO, 2001). Nesse sentido,
seria importante abandonar o binarismo “pureza originária” e “contaminação
pós-contato”, ressaltando-se um processo contínuo de inovação cultural a
partir da expansão europeia.
Um dos primeiros confrontos culturais entre os portugueses e as populações
nativas foi a redução promovida pelos primeiros à diversidade cultural indígena
em apenas dois grupos: os tupis, que representavam os grupos localizados no
litoral, que possuíam contato com os europeus, e os tapuias, os “desconheci-
dos”, que não eram conhecidos pelos portugueses. É importante destacar que
os próprios portugueses tinham noção dessa heterogeneidade e, ainda assim,
realizaram essa classificação simplificadora (DEL PRIORE, 2016).
Temos informações sobre a cultura e os hábitos dos povos originários do
território da América portuguesa através dos relatos de missionários e viajantes,
que os descreviam a partir do estabelecimento de contatos. Muitas práticas
indígenas chocavam os europeus, como a antropofagia e a poligamia (DEL
PRIORE, 2016). Por isso, não demorou muito tempo para que os portugueses
resolvessem “instruir” os indígenas. De acordo com Mary Del Priore, “ins-
truir” significava “a substituição de suas tradições por aquelas dos brancos:
batizar os filhos, casar-se na igreja, evitar a bigamia, andar vestido, aprender
a ler, escrever, contar e mesmo cantar” (DEL PRIORE, 2016, p. 64). Esse foi
o principal papel dos jesuítas na América, como veremos na próxima seção.
6 A escravidão indígena e os jesuítas

De que forma o contato com os europeus afetou a vida dos indígenas?


O historiador Ciro Flamarion Cardoso nos ajuda a compreender os efeitos
adversos do choque cultural:

Desde aproximadamente 1560, os jesuítas trataram de reunir os índios da


costa e proximidades em aldeias, rompendo com os seus padrões culturais de
forma radical. Além disso, a concentração em povoados facilitou a expansão
de ondas epidêmicas, algumas das quais historicamente comprovadas em sua
terrível mortandade. Nas regiões costeiras ou próximas à costa, a luta dos
religiosos foi vã: os próprios catecúmenos das aldeias tornaram-se escravos
com frequência, enquanto expedições (“entradas”) iam ao interior negociar
índios que, pelo menos teoricamente, “resgatavam” da morte em mãos de
tribos inimigas — o que configurava um dos casos de escravização que a lei
continuava permitindo (CARDOSO, 1990, p. 103).

Assim, podemos afirmar que as epidemias, a mortalidade ligada ao trabalho


forçado, a ruptura da economia de subsistência indígena tradicional ou da
vida seminômade e o abandono de práticas culturais (antropofagia, poligamia)
afetaram diretamente os indígenas. Entretanto, o historiador John Monteiro,
especialista em história indígena, chama a atenção para outra possibilidade
de compreendermos a interação entre europeus e indígenas:

Mas há outras leituras possíveis. Cresce, na bibliografia etno-histórica das


Américas, a ideia de que o impacto do contato, da conquista e da história da
expansão europeia não se resume apenas na dizimação de populações e na
destruição de sociedades indígenas. Esse conjunto de choques também produ-
ziu novas sociedades e novos tipos de sociedade (MONTEIRO, 2001, p. 55).

No que diz respeito especificamente ao trabalho indígena, havia diferenças


significativas entre as concepções indígenas e portuguesas sobre o tema.
Enquanto os indígenas preocupavam-se com o cultivo para a subsistência, os
portugueses interessavam-se no cultivo e na produção para fins comerciais,
o que implicava em uma rotina de trabalho estranha à cultura indígena. Por
isso, a utilização do trabalho forçado foi algo a que resistiram e se rebelaram
muitas vezes, ou utilizaram as regras de produção a seu favor.
De acordo com Paraíso (1994, p. 185):

A escravidão passa a ser massiva e os aprisionados começam a ser destinados,


na sua quase totalidade, à implantação da efetiva ocupação e colonização
do Brasil, baseadas, preferencialmente, na produção agrário-exportadora
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açucareira. E para que tal ocorresse, havia a necessidade de ajustar a mão-


-de-obra a um novo ritmo de trabalho e sua inserção compulsória no novo
sistema produtivo, gerando os primeiros grandes conflitos.

A autora afirma que as novas relações de trabalho desestruturaram o


sistema organizacional de diferentes grupos étnicos ao violar a divisão do
trabalho das sociedades indígenas. Assim, enquanto os colonos fomentavam
a mão-de-obra masculina para as atividades agrícolas, os homens aceitavam
realizar apenas tarefas de derrubadas e queimadas. “As demais atividades, por
serem atribuídas às mulheres, eram rejeitadas, o que não era compreensível
ou aceitável pelos colonos” (PARAÍSO, 1994, p. 186).
Além disso, houve uma progressiva tomada de consciência quanto à uni-
lateralidade dos direitos, somente garantido aos portugueses, o que fez com
que os indígenas questionassem as vantagens dos acordos estabelecidos com
os europeus. A proibição do ritual antropofágico, por exemplo, com a entrega
dos indígenas capturados à escravidão, era questionada tanto pelos indígenas
vencedores quanto pelos perdedores, porque aquele ato era considerado de
extrema importância em suas culturas (PARAÍSO, 1994).
Por fim, outro aspecto que deve ser assinalado no choque cultural dos
sistemas de trabalho indígena e europeu diz respeito à lógica comunitária
dos nativos americanos. Para que não houvesse um total rompimento nesse
aspecto, foram criados os aldeamentos, em que era possível reproduzir parte
de sua vida em comunidade.

3 As missões jesuíticas na América


Antes de falarmos sobre as missões jesuíticas na América, é importante conhe-
cermos quem era os jesuítas. Eram membros da ordem religiosa Companhia
de Jesus, de Inácio de Loyola, aprovada em 1540 pelo papa Paulo III. Era uma
ordem “[...] de caráter reformista e militante (soldados de cristo), cuja ética
loyolana baseava-se no ‘salvar a alma’” (TORRES, 2007, p. 217).
A Companhia de Jesus foi fundada na conjuntura da Reforma Protestante e do
Renascimento, com a renovação da vida espiritual da Europa Ocidental nas pri-
meiras décadas do século XVI. De acordo com Sousa e Ferreira Júnior (2012, p. 4):

O pano de fundo das ações dos missionários era a contrarreforma e a neces-


sidade de combater os protestantes na Europa e na América, tendo em vista
que os huguenotes já travaram combates com os jesuítas no Rio de Janeiro e
8 A escravidão indígena e os jesuítas

Maranhão, e seu princípio de livre exame das escrituras, que transformou a


escola em instrumento da catequese dos reformadores e, consequentemente,
era alvo das preocupações dos jesuítas, o Concílio de Trento, que reafirmava
as tradicionais doutrinas católicas e o intento de triunfo do catolicismo sob a
autoridade papal. Daí o caráter marcial dos inacianos.

O historiador Ronaldo Vainfas (2000), no entanto, reforça outro aspecto


que vincula os jesuítas ao movimento da reforma da Igreja Católica, ou Con-
trarreforma. Estavam eles imbuídos de um “espírito cruzadista medieval”, e
se propuseram a difundir a fé através do conhecimento e do ensino. Por isso,
também atuaram instalando colégios em suas áreas de atuação.

Além da América, os jesuítas também estiveram na África e na Ásia. No continente


africano, instalaram-se no Congo, em 1548, favorecidos pela conversão do Manicongo,
o governante do Reino do Congo, ao cristianismo. Posteriormente, instalaram-se em
Angola, fundando o colégio de Luanda. Seu objetivo era disseminar o cristianismo para
o povo banto (VAINFAS, 2013).

No território português na América, o primeiro grupo de jesuítas, liderado


por Manuel da Nóbrega, chegou em 1549, junto com a comitiva de Tomé de
Souza, o primeiro governador-geral. Aos jesuítas, foi garantido o monopólio
das atividades de conversão dos indígenas, chamados de “gentios”, o que
demonstra a confiança conquistada com a coroa (VAINFAS, 2000).

A tarefa de conversão dos gentios à fé católica colocava desafios inéditos para os


religiosos. Desconhecendo as sociedades nativas, os europeus tinham a impressão
de que os índios viviam “sem Deus, sem lei, sem rei, sem pátria, sem república,
sem razão”. O grande mérito dos jesuítas consistiu na percepção da humanidade
dos nativos da América. Foi ela que os incentivou a desenvolver procedimentos
capazes de atingir a sensibilidade dos nativos, aproximando-os da cultura cristã,
como aliás, fariam logo depois em seus colégios. Essa estratégia assentava sobre
três convicções básicas: a de que os índios eram tão capazes dos sacramentos
quanto os europeus; a de que eram “livres por natureza”; e a de que tinham um
caráter de um “papel branco”, em que poderia ser impressa a palavra de Deus. Com
essas diretrizes, os jesuítas buscaram na catequese, antes de tudo, a mudança de
alguns costumes ameríndios, incompatíveis com a fé católica — como a poligamia
e a antropofagia — e, para isso, fizeram largo uso da música, da dança, dos autos
religiosos e das procissões (VAINFAS, 2000, p. 327).
A escravidão indígena e os jesuítas 9

Foram duas as formas de atuação dos jesuítas na América: pelo aldeamento


dos indígenas e pela fundação de colégios.

Os colégios inacianos se espalharam por todos os continentes, atravessando os


sete mares. Formavam professores, intelectuais e missionários. Dominaram o
ensino em várias universidades, como a de Coimbra, consolidando a neoesco-
lástica, com ênfase no estudo filosófico e teológico (VAINFAS, 2013, p. 90).

Os jesuítas também enfrentaram dificuldades para desenvolver seu trabalho em


função dos conflitos com os colonos, que utilizavam os indígenas como mão-de-
-obra, na maior parte das vezes escravizada. Esse conflito, em função do crescente
poder temporal dos jesuítas, que, além do controle dos índios possuíam, muitas
vezes, o controle do crédito e a propriedade da terra, iria perdurar por muito tempo:

o contencioso arrasta-se até os anos 1750, quando a Companhia é expulsa do


Reino e das conquistas. De certa forma, esse conflito demonstra a inviabilidade
política dos enclaves americanos baseados no trabalho compulsório indígena
e situados fora do controle metropolitano (ALENCASTRO, 2000, p. 37).

Por isso, os jesuítas criaram as aldeias ou aldeamentos, centros localizados


longe dos núcleos urbanos, para não serem incomodados em sua atividade
evangelizadora. Nessas aldeias, os indígenas realizavam trabalhos agrícolas
e artesanais, com momentos de lazer e de oração.

Não obstante o apoio da Coroa à organização desses aldeamentos — cuja


expressão final foi o Regimento das Missões (1686), que somava à jurisdi-
ção espiritual o privilégio de administrá-los temporalmente — essa política
converteu-se, de um lado, em motivo de tensão permanente com os colonos,
sempre ávidos da mão-de-obra indígena. De outro lado, ao fixar populações
seminômades e alterar radicalmente seu modo de vista, os aldeamentos de-
sarticulavam as culturas indígenas, o que foi objeto, posteriormente, de forte
crítica historiográfica (VAINFAS, 2000, p. 327).

Aproveitando-se dos monopólios obtidos com a coroa portuguesa, além


da isenção de impostos e outras vantagens fiscais, a Companhia de Jesus
tornou-se uma das instituições com mais opulência. Recebia doações e admi-
nistrava seu patrimônio, que consistia em sesmarias, propriedades urbanas,
fazendas de gado, engenhos e africanos escravizados. Isso transformou-a
em um tema conflituoso não somente para a coroa portuguesa, mas também
a espanhola:
10 A escravidão indígena e os jesuítas

Tais tensões chegaram ao paroxismo na década de 1750, devido à resistência


dos jesuítas espanhóis em dar cumprimento ao estipulado no Tratado de Madri,
que previa a devolução a Portugal do território a ocidente do atual estado do
Rio Grande do Sul, e aos crescentes desentendimentos, no vale amazônico,
com a política do governador do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, de converter os nativos em vassalos livres da Coroa
e reassumir o controle temporal sobre as aldeias indígenas, política definida
por seu irmão, o poderoso Marquês de Pombal (VAINFAS, 2000a, p. 328).

Os conflitos originários da atuação da Companhia de Jesus na América foram


sanados com a expulsão dos jesuítas, em 1759, de todos os territórios portugueses e
o confisco de seus bens. Posteriormente, França (1764) e Espanha (1767) tomaram
semelhante decisão, até que o papa Clemente XIV, em 1773, extinguiu a ordem.

As missões jesuíticas
As missões ou reduções jesuíticas espalharam-se por diferentes pontos do
território português na América, mas houve duas principais regiões de con-
centração: foram duas as principais regiões de estabelecimento das missões ou
reduções jesuíticas: ao sul da colônia, em uma região de constante disputa entre
espanhóis e portugueses, que hoje compreenderia parte do território pertencente
a Argentina, Brasil e Paraguai; e na região amazônica, no território do Pará e
do Maranhão, que foram responsáveis por diversos núcleos de povoamento.

Atualmente, no sul do país, encontramos as ruínas de sete reduções jesuíticas, que


formam os Sete Povos das Missões. São elas, por ordem de fundação: redução de São
Francisco de Borja (1682), São Nicolau (fundada em 1626, abandonada e repovoada
em 1687), São Miguel Arcanjo (atacada por bandeirantes, abandonada e novamente
povoada e reconstruída em 1687), São Lourenço Mártir (1687), São João Batista (1697),
São Luiz Gonzaga (1687) e Santo Ângelo Custódio (1707) (GARBOSSA; SCHIER, 2018).

O surgimento das missões ou reduções no sul da América possibilitou o


surgimento de uma nova sociedade, com:

[...] uma organização social de caráter comunitário e católico, político-admi-


nistrativamente vinculada aos órgãos metropolitanos (Casa de Contratação
A escravidão indígena e os jesuítas 11

e Conselho das Índias), coloniais (Audiências, Vice-Reis, governadores,


autoridades), clericais (superiores da Companhia de Jesus e Igreja de Roma)
e locais (Cabildo); prestando serviços militares, pois os guaranis eram súditos
do Rei (pagando impostos sobre a produção agropecuária e a exportação);
promovendo a produção artística, artesanal e técnica, segundo o imaginário
da sociedade europeia católica (diabo × conversão) (TORRES, 2007, p. 2018).

As cartas que os jesuítas escreviam a seus superiores na Europa nos permitem com-
preender como era o cotidiano nas missões e o convívio entre indígenas e padres:

“Se ouvem tanger missa”, conta um inaciano, “já acodem e tudo que nos
veem fazer, tudo fazem. Assentam-se de joelhos, batem nos peitos, levantam
as mãos para o céu”. A clientela era feita de filhos de índios e mestiços,
acrescida, de tempos em tempos, de um principal, ou seja, um chefe. As
primeiras atividades religiosas consistiam em recitar, nas igrejas, ladainhas
ou a Salve-Rainha. Nas sextas-feiras, disciplinavam-se em cerimônias de
autoflagelação e, com o corpo coberto de sangue, saíam em procissão. [...]
Confessavam-se de oito em oito dias e saíam para caçar e pescar todas as
tardes, pois não havia qualquer forma regular de aprovisionamento. A ali-
mentação baseava-se na farinha de pau, nome dado à farinha de mandioca,
e caça, “como sejam os macacos, as corças, certos animais semelhantes a
lagartos, pardais e outras feras”, explicava o padre Anchieta. As meninas
indígenas eram ensinadas a tecer e a fiar algodão, capaz de vestir os jovens
nus. O tempo livre das crianças ficava por conta do banho de rio ou no “ver
correr as argolinhas”, brinquedo, segundo Nóbrega, importado de Portugal
[...] As atividades físicas mais simples impregnavam-se de cantos e danças
nos quais a cultura indígena se impunha. Em festas nos aldeamentos, os
meninos levantavam-se à noite para a seu modo cantar e dançar [...] A
sensibilidade musical do indígena fazia crer aos jesuítas que, “tocando
e cantando entre eles, os ganharíamos” e que “se cá viesse um gaiteiro”,
anotava Nóbrega, não haveria cacique que recusasse seus filhos à escola
jesuítica. Nos batismos em grupo, os meninos índios eram vestidos com
“roupas brancas, flores na cabeça e palmas na mão”, sinal da vitória que
teriam alcançado contra o Demônio (DEL PRIORE, 2010, p. 27).

As missões foram, dessa forma, um exemplo de como a interação entre


os indígenas e os europeus não ocorreu somente mediante a aculturação ou
o extermínio, possibilitando espaços de negociação que originaram novas
formações sociais e possibilitaram a sobrevivência de diversas etnias em um
contexto nada favorável para sua existência.
12 A escravidão indígena e os jesuítas

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TORRES, L. H. Missões jesuítico-guaranis: entre o tempo medieval e o moderno. Biblos,
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Leituras recomendadas
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ALMEIDA, M. R. C. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
COUTO, J. A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos, do início do
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CUNHA, M. C. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
DEL PRIORE, M. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Ática, 1994.
GADELHA, R. M. A. F. As missões jesuíticas do Itatim: estruturas sócio-econômicas do
Paraguai colonial, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
MONTEIRO, J. M. Negros da terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
PUNTONI, P. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste
do Brasil, 1650–1720. São Paulo: Hucitec, 2002.

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