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As trocas entre moralidades nas moralidades da dádiva

Resumo
Introdução
Este ensaio investigará a hipótese1 de trocas entre moralidades, para além da dádiva,
observadas no sistema de “trocas agonísticas”, segundo análises realizadas por Marcel Mauss, as
quais compõem um estudo sobre trocas e circulação de bens na obra Ensaio Sobre a Dádiva:
Forma e Razão das Trocas nas Sociedades Arcaicas2 (2003), publicado em 1924 no Anne
Sociologique. O objetivo não é tensionar o fato teorizado, e sim contribuir com o debate da
reciprocidade e obrigatoriedade entre as prestações agonísticas identificadas no Noroeste
americano, na Polinésia e Melanésica. Neste sentido, investigarei a hipótese da existência de trocas
entre moralidades, estabelecendo relações entre os coletivos que foge à moral da dádiva, mas que
não a anula: funcionaria paralelamente, não no sentido das dádivas, e sim no sentido das relações
que se estabelecem a partir das dádivas.
A forma como fiz esta discussão dividiu-se da seguinte maneira: em primeiro lugar, procurei
discutir em que termos estão a reciprocidade e a obrigatoriedade no Ensaio; situados estes termos,
em segundo lugar investiguei a hipótese das trocas entre moralidades no sistema agonístico e os
hipotéticos desdobramentos se, em um campo teórico de afirmações, for possível ir adiante com
esta hipótese. Isto à luz da proposta de teórica de Mauss da totalidade e generalização
(LAPLANTINE, 2008, pp.90-2).
Contribuir com tal discussão requer uma cautela para além do que imaginava. Me refiro às
multiplicidades interpretativas da teoria maussiana e a possibilidade de uma análise distante da
proposta metodológica para análise destes sistemas (SIGAUD, 1999). Portanto, me esforçarei em
em apresentar um debate inicial sobre observações em torno da reciprocidade e a obrigatoriedade
envolta deste sistema, pois se há neste sistema de prestações uma relação de obrigação na
retribuição dos presentes trocados, em que medida aquele que exerce o ato de doar não estabeleceria
uma relação de dominação sobre aquele que recebe? Se o ato é voluntário e obrigatório, em que
medida esse sistema não configuraria relações hegemônicas? Se as trocas são também responsáveis
pela circulação de outros bens, em que medida as prestações agonísticas não são uma forma de
dominação de sistemas sociais não capitalistas?

Observações sobre a obra de Marcel Mauss


O Ensaio foi elaborado e publicado em meio uma efervescência científica acadêmica entre
os anos 1910 e 1920, ao qual Mauss, segundo Lygia Sigaud (1999, pp.93-8) teve acesso e dedicação

1 Surgida em discussão realizada em sala de aula do curso de Teorias Antropológicas I, no Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Unicamp, no dia de maio de 2019.
2 Abreviarei ao longo do trabalho como Ensaio, fazendo sempre referência a esta bibliografia.
para extrair dos relatos colhidos e textos oriundos desta produção etnográfica, como os trabalhos de
Bronislaw Malinowski (1922), Franz Boas (1905), Seligman, Nehuhauss e Williamson (1910, 1911,
1912). Nesta fase, o destaque para a obra de Mauss está em consolidar um campo teórico sobre os
estudos empíricos dos elementos da cultura das civilizações.
Não aprofundarei nesta discussão pela distância que há do escopo deste ensaio, mas cabe
comentar da relação, da influência e da contribuição dado o debate entre as escolas Francesa,
Americana e Britânica. É sobre os trabalhos destas três escolas que Mauss formula e trilha os
caminhos que culminariam no Ensaio. Partiu da proposta teórica da escola Francesa de distanciar-se
dos campos da fisiologia, psicologia, economia, etc., para a explicação do social a partir da
observação deste e da formulação de categorias sociais para a explicação sobre os fenômenos
observados (LAPLANTINE, 2008 pp.87-8). Neste sentido, propôs-se a trabalhar com a totalidade
dos fenômenos, conceituado enquanto fato social total (MAUSS, 2003 p. 187), constituída a partir
de uma generalidade de ações de instituições sociais ligadas ao direito, economia, religião, língua,
psicofisiológica, observando o comportamento social como um todo resultante da interação e ação
destas instituições na sociedade, “devendo as condutas humanas ser aprendidas em todas as suas
dimensões (...)” (LAPLANTINE, 2008 pp.90-1). Investigou os trabalhos etnográficos vindos dos
Estados Unidos (Franz Boas, 1905) e da Inglaterra (B. Malinowski, 1922), os quais tiveram peso no
fazer metodológico das pesquisas antropológicas. Ao começar por Boas que investigou as relações
entre tribos indígenas no noroeste americano e estabeleceu o que se pode chamar de etnografia
profissional, pois as análises, observações, relatos e coletas de dados sobre as práticas e costumes
não mais vinham de um terceiro conhecedor, missionário ou viajante, e sim a partir da presença e
ação do antropólogo em campo, atento as mais diversas minúcias e detalhes para a compreensão do
efeito social resultante das práticas simbólicas providas do comportamento dos indivíduos; tal como
Malinowski, pois ao tomar o caminho inverso de Boas – que buscou à exaustão inúmeros elementos
de representação simbólicas do social nos indivíduos –, buscou em um objeto (material ou
imaterial) a expressão de um comportamento coletivo (LAPLANTINE, pp. 80-4).
Mauss entra em contato com as observações sobre o potlatch e sobre o kula, o primeiro
observado entre nativos americanos no noroeste dos Estados Unidos por Franz Boas, e o segundo
estudo por B. Malinowski na Melanésia (PEIRANO 2003, pp.10-2). Para além destes dois
fenômenos, encontrou-se ainda incidência dessa forma de troca na Polinésia, entre as notas nos
trabalhos de R. Hertz (1922), cuja manutenção é centralizada no espírito doador hau, orientada pela
prática do direito maori, imputando assim como no kula e no potlatch, uma obrigatoriedade na
dádiva (SIGAUD, 1999 p.96). A dádiva, por sua vez, não é uma troca em si, mas “uma dialética
social e econômica polarizada pelo prestígio reduzir o sistema dádiva/contradádiva a uma troca e
reduzir o efeito de redobramento da dádiva ao interesse do primeiro doador” (SABOURIN, 2008 p.
133). Ambas as etnografias apresentaram um “sistema de reciprocidades” entre partes que não
atribui Valor no sentido econômico aos presentes trocados. Não trocavam, portanto, mercadorias
entre si, mas elementos simbólicos – materiais ou não – que carregavam sentido somente a partir do
ato da troca. As investigações que tiveram início com o potlatch avançam de modo a identificar este
modelo de sistema na Polinésia e Melanésia. A elaboração do Ensaio partiu, portanto, da
observação do “caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto
obrigatório e interessado nessas prestações” (MAUSS, 2003 p. 188)
Comparou as três formas de prestações semelhantes umas as outras na Polinésia, no
Noroeste americano e na Melanésia a partir da perspectiva totalizante dos elementos sociais
constituintes destes atos, partindo da investigação da existência do potlatch, na introdução da obra
como forma de prestação total do tipo agonística nas trocas realizadas entre coletividades, que são,
resumidamente, relações de trocas estabelecidas não na cooperação e participação dupla – entre dois
clãs, sujeitos ou famílias –, mas em uma rivalidade expressada na troca de presentes materiais ou
imateriais, cuja premissa é a realização não entre sujeitos, mas entre coletivos que se obrigam
mutuamente na prática da troca (MAUSS, 2003 pp. 191-2).
Nos capítulos I e II do Ensaio, discutiu propriamente sobre os dados recolhidos das
etnografias e neste ‘caminho’ etnológico é que Mauss elucida uma prática em comum para o
funcionamento destes sistemas, que consiste na tríplice relação entre dar, receber e retribuir,
(MAUSS, 2003 pp.243-5). Um sistema de prestação cuja circulação, segundo Mauss (2003 p.191),
se estende a
“(…) amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças,
danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a
circulação de riquezas não é senão um dos termos de um contrato bem mais geral e bem
mais permanente (…) [em] forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes,
embora elas sejam no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou
pública”.

Sobre a reciprocidade e obrigatoriedade da dádiva


A observação do potlatch em suas diversidades e repetitividades em diferentes regiões do
globo é possível dada a sustentação deste sistema na obrigatoriedade tripla: a de dar, a de receber e
a de ser recíproco. No sistema de dádivas, a reciprocidade destaca-se em relação às obrigações de
dar e de receber, por ser ela todo o potlatch (MAUSS, 2003 p. 210, p.248). É a reciprocidade,
portanto, que implica nas obrigações de dar e de receber repetidas vezes, em um sistema agonístico
e, por princípio, não cooperativo e sim competitivo e, por isso, a reciprocidade exerce centralidade:
movimenta o potlatch, as dádivas e a circulação de bens que extrapolam a materialidade.
Sendo assim, o funcionamento do sistema de dádivas a partir do potlatch depende
interinamente do ato de retribuir. Mauss não busca na obra uma função para a retribuição, mas
destaca a sua importância frente o comportamento desse sistema. O fato é que se tratando de um
sistema onde a centralidade da troca não está no Valor comercial ou econômico, com único fim de
posse material a partir de trocas monetárias, é a reciprocidade a “moeda” de troca e é realizada
através da dádiva, e que gerará “créditos” a uma parte e outra, exercendo, na prática, a manutenção
financeira desse sistema sem finanças (MAUSS, 2003 p. 237)
Como não há também uma premissa de concentração e acumulação de bens e outras riquezas
de caráter econômico, Mauss (idem) formula que as trocas de caráter econômico, inclusive as de
configuração moderna no nosso sistema, tem princípios nessa reciprocidade, pois
“A evolução não fez o direito passar da economia do escambo à venda, e do
pagamento à vista ao pagamento a prazo. Foi sobre um sistema de presentes dados e
retribuídos a prazo que se edificaram, de um lado, o escambo (…) e de outro lado, a compra
e a venda, esta a prazo e à vista, e também o empréstimo. Pois nada prova que nenhum dos
direitos que foram além da fase que descrevemos (direito babilônio, em particular) não
tenha conhecido o crédito que conhecem todas as sociedades que vivem em torno de nós.”
Portanto, a reciprocidade é a ferramenta de manutenção desse sistema de dádivas. Ela que
regulariza as ordens de dar e de receber, garantido, principalmente, a circulação das dádivas e os
múltiplos significados que elas possam ter.
Se considerarmos, porém, a reciprocidade como valor único e regulador das trocas de
dádivas entre duas partes, consideraremos apenas uma parte do sistema, que desconsidera a base de
sustentação desse sistema: a obrigatoriedade. Como dito, tanto o ato de dar, quanto o de receber e
de retribuir são obrigatórios.
A obrigatoriedade é decorrente do valor embutido nas dádivas: valores simbólicos, que não
distinguem o doador de sua alma e, por seguinte, do objeto que materializa a dádiva. A dívida a ser
paga através da retribuição às dádivas, portanto, não tem valor de ordem econômica, mas também
valor simbólico. Isso se estende para as dádivas em formas de solenidades e outras festividades e
independentemente da dádiva ser material, móvel ou imóvel, há a obrigação de reproduzir os três
atos.
É, portanto, a obrigatoriedade embutida neste sistema que sustenta seu funcionamento. É ela
o combustível que mantém ativo o movimento de circulação de bens. É dela a ordem do direito
geral que operará sobre todos os indivíduos que encontram-se neste sistema. Mauss chama a
atenção para a obrigatoriedade como algo decorrente de uma “virtude especial” (MAUSS, 2003,
p.242), que se reproduz em vários costumes (o de dar, receber, retribuir, hospedar, ajudar,
compartilhar, etc), também orientada pela natureza das dádivas.
Entre os polinésios estudados, a obrigação em retribuir estava orientado pela ordem do
mana, cujo não cumprimento da retribuição acarretaria na perda daquilo que seria um valo
simbólico atribuído ao exercício da reciprocidade e regulado pelo hau, instituição do direito maori
que traduz a “alma do doador”, que acompanha o objeto em sua materialdade e implica na
retribuição desta dádiva dada a predominância do valor simbólico (alma doadora) em relação ao
valor material ou econômico (que justificaria o apego a posse do objeto pelo donatário)
Bibliografia
CAILLÉ, Alain. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o
paradigma da dádiva. Revista brasileira de ciências sociais, v. 13, n. 38, p. 5-38, 1998.
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 20ª edição. São Paulo, Editora
Brasiliense, v. 176, 2008. Trad Marie-Agnés Chauvel
MARCEL, MAUSS. Ensaio sobre a dádiva: formas e razão da troca nas sociedades
arcaicas. Sociologia e antropologia, São Paulo, Cosac e Naify, 2003.
MARTINS, Paulo Henrique. A sociologia de Marcel Mauss: Dádiva, simbolismo e
associação. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 73, p. 45-66, 2005.
PEIRANO, Mariza. O potlatch e o kula: à parte da historiografia dos rituais (pp. 10-2).
Rituais ontem e hoje. Zahar, 2003.
SABOURIN, Eric. Marcel Mauss: da dádiva à questão da reciprocidade. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, p. 131-138, 2008.
SIGAUD, Lygia. As vicissitudes do" ensaio sobre o dom". Mana, v. 5, n. 2, p. 89-123,
1999.

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