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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

FLUMINENSE

ISABELA PESSANHA CARDOSO PAULAGAMA

MACAÉ

2023
João José Reis, um dos principais nomes não apenas na historiografia
brasileira como também nos estudos sobre a escravidão do século XIX, inicia o
primeiro capítulo de sua obra com uma reflexão sobre o papel ativo das pessoas
escravizadas nas negociações com os senhores. Para o autor, essas pessoas
não chegaram ao Brasil apenas como força de trabalho, mas exerceram sua
posição como agentes históricos nesse período imperial. Considerando que a
população da época era em boa parte composta por pessoas escravizadas – e
libertos –, esse volume e presença amedrontavam os senhores e demais
população. Dessa forma, com esse poder de negociação e, em certos episódios,
mediação de conflitos, era raro um escravizado assassinar seu senhor ou
fomentar rebeliões, justamente pela possibilidade de levar a vida de forma mais
tranquila, nas melhores condições possíveis. Assim, João José Reis busca, com
estes capítulos abordados, posicionar as pessoas escravizadas enquanto partes
ativas da sociedade, e não apenas explorados.

O poder de negociação dos escravizados ainda englobava sua alforria:


segundo Ligia Bellini, a alforria poderia vir como resultado de uma negociação
entre a pessoa escravizada e seu senhor, que chegavam à solução que
agradava ambas as partes. Isso implica, além da possibilidade da negociação,
que o escravizado tinha a condição de atuar dentro da economia de mercado da
época, acumulando o suficiente para comprar sua liberdade. Dessa forma, os
senhores se encontravam, em muitos casos, sendo políticos para evitar o pior.
Os interesses deles não eram sempre acatados e nem mesmo prioridade, já que
agradar a pessoa escravizada servia, acima de tudo, como uma forma de
manutenção da paz e da segurança.

A sociedade compreendia que os escravizados necessitavam de seu


espaço e autonomia. Suas manifestações de cultura, socializações e costumes
eram, até certo ponto, preservados, principalmente pelas suas lutas e
reivindicações perante seus senhores e a sociedade escravista. Importante
pontuar que, mesmo que escravizados fossem “respeitados”, eram uma parcela
da sociedade bastante plural, o que refletia na forma como eram tratados
enquanto indivíduos. Existiam rivalidades entre africanos e crioulos, por
exemplo, tópico a ser abordado por João José Reis, o que impossibilita pensar
nesse grupo como um bloco homogêneo.
Para o autor, o principal instrumento de resistência no sistema escravista
foram as fugas. Feitas, em boa parte, de forma reivindicatória ou de rompimento,
não eram de fato comuns ou corriqueiras, mas tinham grande chance de ter
efeitos positivos e mesmo previsíveis para o fugitivo. As fugas reivindicatórias
não ocorriam como forma de negação ao sistema ou com real intenção de fugir,
mas sim como greves, demandando melhores condições de trabalho ou de vida.
Mesmo a ameaça de fuga era parte da negociação, considerando o prejuízo que
um ou dois dias (tempo que essas fugas normalmente duravam) sem o
escravizado causaria o senhor e sua fazenda. Essas fugas poderiam ocorrer
também por conta de abusos físicos ou psicológicos.

Mais radicais, existiam as fugas-rompimento e as insurreições, que não


eram tão “flexíveis” quanto as fugas reivindicatórias. Segundo João José Reis, a
fuga para a liberdade nunca foi uma tarefa fácil, considerando que toda a
sociedade prezava pelas leis de propriedade envolvendo senhores e
escravizados. O autor, de forma pontual, denomina a sociedade como “gaiola”
para esses indivíduos. Essas fugas poderiam ocorrer por pedidos de alforria
negados ou quebra de acordos e costumes anteriormente estabelecidos e,
menos que as insurreições, eram atos extremos. Em ambos os casos, a
sociedade era vigilante, exercendo seu papel em preservar o sistema escravista.

No século XVIII, quando a escravidão passou a ser algo condenado pela


sociedade brasileira, essa dinâmica mudou. A partir de 1870, com o crescimento
urbano e a mudança das mentalidades coletivas em relação ao trabalho forçado,
é consolidada a possibilidade das fugas para fora. Nessa sociedade corrompida
pelas ideias liberais e na brecha do rompimento dos padrões do pensamento
escravista, os fugitivos poderiam contar com o apoio de certos membros da
sociedade, o que definitivamente facilitava a fuga, que nem sempre era para fora:
em alguns casos, o fugitivo buscava se abrigar dentro, na própria sociedade
escravista, onde encontrariam a luta contra o sistema. Assim, a partir da década
de 70, muitos abolicionistas passaram a incentivar essas fugas e as insurreições
por parte dos escravizados. Além das ideias abolicionistas que percorriam a
sociedade, fatores como a imigração europeia também colaboraram para o
levante escravo, que se aproveitaria das então expostas falhas e injustiças do
sistema de trabalho forçado, que contrastava terrivelmente com o trabalho livre,
agora presente na sociedade imperial brasileira.

No sexto capítulo, sobre o levante dos malês, João José Reis interpreta o
escravo como um agente político na sociedade. Com o tráfico de africanos para
a Bahia no século XVIII, partindo principalmente na região sudoeste da Nigéria,
foram importados com estes conflitos étnicos e religiosos, muitos deles vítimas
de revoltas políticas em sua origem. A concentração de indivíduos de origens
étnicas comuns colaborou, além do levante aqui abordado, na formação de uma
cultura escrava unificada e mais independente. Os cantos, as juntas de alforria
e as práticas culturais e religiosas existiam como formas de resistência e
sobrevivência para esses povos escravizados, que viviam em um espaço social
bastante limitado.

Em seguida, o autor aborda a rivalidade existente entre os africanos e os


crioulos, em uma sociedade que nutria fortes preconceitos contra os advindos
do tráfico africano. A alforria favorecia os brasileiros, que viviam sob as
expectativas da sociedade: para que seguissem costumes brasileiros, práticas
religiosas, enfim. Assim, era real a divisão entre os africanos e os crioulos de
forma que, para os brasileiros, ainda existia uma possibilidade de se encaixar
nessa sociedade. Os africanos pensavam em si enquanto um grupo distinto dos
crioulos, e por isso João José Reis afirma que os brasileiros temiam que, com
uma vitória dos africanos em uma possível insurreição, eles não seriam
favorecidos ou mesmo reconhecidos enquanto iguais, escravizados também.

Essas distinções entre os escravizados de diferentes origens tardou as


rebeliões, que encarava o problema dos dois grupos rivais dentro desse recorte.
Na Bahia, as condições só preservavam essa rivalidade: mesmo que ocupassem
as mesmas posições, os crioulos eram favorecidos. Mesmo alforriados os
escravizados enfrentavam um regime de semiescravidão, como define Reis, e
nesse cenário os africanos ainda eram tratados como escravos, trabalhando ao
lado de escravizados mesmo enquanto libertos. Não é à toa que, no levante de
1835, escravizados e libertos juntaram forças para se rebelarem.

Nessa rebelião, o autor reflete sobre a importância do islã na maneira que


este cooperou para a união desses indivíduos, mas nega que o levante dos
malês tenha sido puramente uma revolta religiosa, como defende Nina
Rodrigues. Os malês não hesitavam em buscar aliados fora do campo
muçulmano, o que advém, por parte, de seu costume em lidar com outras
religiões na África. João José Reis afirma que o islã foi uma forte base para
organizar e mobilizar todos os escravizados e libertos, que lutavam, de forma
articulada, contra a exploração e a opressão que sofriam. Portanto, o autor define
o projeto político deles como religioso e vice-versa e, mesmo que o islã não seja
uma religião escrava em sua origem, pode ter se tornado na Bahia de 1835.

Essa rebelião foi facilitada pelo contexto baiano na época, onde os


escravizados e libertos encontraram as condições ideais para seu levante. Os
agentes do levante em si já carregavam total capacidade de guiar uma revolta:
eram capacitados para o trabalho (muitos eram carpinteiros, ferreiros e armeiros)
e havia também especialistas em religião, que ofereciam conforto e liderança
para os rebeldes. Isso, juntamente com a dependência da sociedade em seu
trabalho, a desigualdade escancarada e o grande número de libertos, colaborou
para o que a Bahia enfrentou em 1835.

A obra de João José Reis é de suma importância para a discussão


historiográfica sobre a escravidão brasileira. Suas reflexões sobre o papel ativo
dos escravizados no Brasil Império são essenciais para a compreensão do
período e dessa parcela da sociedade imperial, que muitas vezes é perpetuada
em trabalhos historiográficos como alheia à sua própria situação. Mesmo Caio
Prado Júnior (1981) definiu os escravizados como passivos no período que
precedeu a recusa popular perante a escravidão e o trabalho forçado, ideia que
Reis combate de forma pontual em sua obra. Dessa forma, é de extrema
relevância a consciência de que os escravizados não estavam abatidos ou
derrotados, mas negociavam e lutavam, da forma que lhes era possível, pelos
seus direitos e por condições justas de vida e de trabalho.
REFERÊNCIAS

PRADO JR., Caio. A era do liberalismo, In: História Econômica do Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1981.

REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no


Brasil escravista. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

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