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Letícia Rocha**
Resumo: este texto objetiva apresentar a vida e a trajetória de Luiza Mahin, mulher
negra, mãe, ex-escrava e ativista, nome ainda desconhecido do grande público, embora
constem pesquisas em vários campos do conhecimento que enfatizam suas ações. Este
nome está intimamente ligado ao de Luiz Gama (1830-1882), seu filho, aos levantes de
escravos e rebeliões libertárias ocorridas no século XIX, na cidade de Salvador-BA.
O caminho metodológico foi a consulta a escritos historiográficos e fontes literárias e
acadêmicas que tratam de temas relacionados à vida e atuação revolucionária de Luiza
Mahin e a análise da carta autobiográfica de Luiz Gama e do seu poema Minha Mãe.
Esses documentos embasaram a construção da figura de Luiza Mahin – mítica ou não,
pois não se pode atestar a veracidade de sua existência. Destacamos nesse texto aspectos
de sua personalidade, suas origens africanas, sua audaciosa trajetória enquanto ex-es-
crava e exímia ativista defensora da causa do povo negro, e os processos de mitificação
a partir da literatura concernente ao fato. E, por fim, a sua representação no feminismo
negro brasileiro.
Abstract: this text aims to present the life and the trajectory of Luiza Mahin, black
woman, mother, former slave and activist, a name still unknown to the general public,
although there is research in various fields of knowledge that emphasize her actions. This
name is closely linked to that of Luiz Gama (1830-1882), her son, to the slave uprisings
O
s textos que buscam enunciar as experiências de mulheres negras provocam relevantes in-
tervenções históricas e, ainda, fissuras no tecido colonial, para que seja reconhecida a voz de
personagens que foram frequentemente silenciadas e/ou marginalizadas, especialmente em
culturas e sociedades como as latino-americanas e caribenhas, que carregam em seu bojo a colonia-
lidade, ou seja, as sequelas dos processos de colonialismo. Ao evidenciar tais personagens, é preciso
ter presente as estruturas que as oprimiram e as relegaram à inexistência.
Em relação à Luiza Mahin, a ausência de documentos que confirmem sua vida e existência revela
ambiguidades. Tal ausência permitiu a alguns estudiosos, que se debruçaram para compreendê-la,
considerá-la uma figura mítica, e posteriormente discorreremos sobre este aspecto. Assim como Mahin,
inúmeras mulheres com trajetórias inspiradoras e com legado de lutas e resistência foram omitidas
dos cânones da historiografia oficial devido à carência de registros documentais, mas também se deve
considerar o desinteresse e o descaso para com as mulheres, especialmente as negras.
No entanto, atualmente é perceptível o movimento de resgate de personalidades negras brasi-
leiras que impactaram o seu tempo e deixaram um legado que ainda ressoa na sociedade. Cada vez
mais encontramos textos e publicações que têm como objetivo apresentar o pensamento de mulheres
e homens negros que contribuíram para interpretar a realidade brasileira. Evocar estes nomes e seus
feitos torna-se tarefa alvissareira e urgente em tempos de degradação e genocídio do povo negro.
O que é apresentado como dado histórico e real da existência de Luiza Mahin são dois
documentos (uma carta e um poema – Minha Mãe), ambos escritos por seu filho Luiz Gama.
Antes de dar sequência à trajetória de nossa personagem, vamos fazer uma breve digressão
necessária, para falarmos sobre este homem – as histórias de ambos se coadunam e dialogam
numa busca comum.
Luiz Gonzaga Pinto da Gama era conhecido simplesmente como Luiz Gama (BENEDITO, 2011).
Homem de seu tempo, poeta, escritor, advogado, libertador de escravos, teve um papel importante no
processo de abolição escravagista na cidade de São Paulo e consequentemente no Brasil. Como abo-
licionista, pouco ou nada consta dos materiais oficiais sobre a sua participação, há um esquecimento
de suas lutas em defesa dos povos escravizados. Os livros de história não enunciam os feitos desse
homem – o que consta é uma versão que oculta os fatos e eleva a figura, por exemplo, da princesa
Isabel e sua “bondade” no processo abolicionista no Brasil.
Nascido na Bahia em 21 de julho de 1830, filho da heroína e rebelde Luiza Mahin e de um
português, foi levado para o Rio de Janeiro, e depois São Paulo, onde construiu sua vida e carreira,
constituiu família e militou pela libertação do povo negro até o seu falecimento (AZEVEDO, 1999).
Sobre seu pai, não há informações precisas – na literatura concernente é mencionado que foi um
homem de muitos bens que, ao perdê-los em jogos, vendeu seu filho Luiz Gama, com apenas 10 anos.
Sou filho natural de uma negra africana livre, da Costa Mina (Nagô) de nome Luíza Mahin, pagã,
que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era de baixa estatura, magra, boni-
ta, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinhas os dentes alvíssimos com a neve, era muito
altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e
mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de
escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr.
Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e
em 1861, sem que a pudesse encontrar. Nada mais pude alcançar a respeito dela. (GAMA apud
BENEDITO 2011, p. 67)
Pelas características físicas apresentadas na carta, a negra Luiza Mahin era provida de muitos
atributos, certamente uma bela e atraente mulher. Das características que compõem a sua persona-
lidade destacadas por Gama, algumas determinaram o seu lugar no imaginário popular de mulher
livre, corajosa e intrépida. Deste excerto ainda apreendemos que Mahin, na condição de escrava livre,
ou seja, alforriada, desenvolveu seu trabalho de quitandeira pelas ruas de Salvador na Bahia.
As andanças que realizava em função do seu labor possibilitavam realizar articulações que
culminaram nos dois principais levantes de negros escravizados ocorridos na história do país, a Re-
volta dos Malês e a Sabinada. Ambos serão discutidos posteriormente. Esses acontecimentos a tem
como principal protagonista. Dada a sua luta, ousadia e inteligência possivelmente esteve envolvida
em outros atos insurgentes, no entanto, não há documentos que comprovem sua participação.
Seu instinto de justiça e sede de liberdade para seus irmãos de raça escravizados foram motivos
que a conduziram à prisão algumas vezes, suspeita de planejar revoltas, porém, sem êxito. Após a
insurreição da Sabinada, partiu para o Rio de Janeiro, de acordo com Gama, essa foi a última notícia
que teve da sua mãe. Nunca se soube o que ocorreu com ela após esse período. Como filho em busca
de sua referência materna, saiu a procurá-la e o relato revela o insucesso das suas sucessivas buscas
por notícias (BENEDITO, 2011).
Nos aprece ainda importante destacar dois aspectos relevantes apresentados nesta carta.
O primeiro diz respeito à sua inteligência, era possuidora de conhecimentos, sabia ler e escrever,
o que denuncia sua facilidade de articular as insurreições pela liberdade dos negros. Não encon-
tramos nenhum documento que afirme sobre a sua formação acadêmica, temos uma possível
hipótese que nos permite afirmar que, pelo seu histórico de mulher escravizada, o conhecimento
formal lhe foi negado, usufruindo assim dos conhecimentos que a vida propunha. Destacamos
que o feminismo negro tem seus inícios no ativismo de mulheres que como Mahin, que ousaram
falar e denunciar as opressões vividas.
O segundo aspecto a evidenciar era a sua convicta adesão religiosa ao Islã, que a fez refutar o
batismo cristão católico, que era imposto a todos os homens e mulheres advindos de África e escra-
vizados ao chegar ao país. Os colonizadores estabeleciam o batismo como conversão ao único Deus
cristão católico para fazer valer a ortodoxia católica como única fonte válida de crença. Tal fato era
Na língua ioruba, muçulmano é “imalé”, e uma alteração na pronúncia gerou o termo “malês”
para caracterizar os negros muçulmanos da Bahia, de origem hauçá e nagô.
Uma negra falou sobre ela com um juiz de paz. Na noite de 24 de janeiro, véspera da revolta, a
polícia invadiu a residência de um dos líderes, Manuel Calafate, local de reunião de muçulmanos
e da preparação da revolta.
Os planos de Luiza Mahin e seu grupo de libertação dos escravos não se efetivaram. O confron-
to ocorreu de forma desorganizada e não obteve sucesso, foram derrotados pela Polícia e a Guarda
Nacional, instituições que possuíam mais armamentos e um contingente muito maior de combaten-
Seguindo outra condução teórica, contudo, que em alguma medida dialoga com o exposto acima
por Gonçalves, a dissertação de mestrado de Dulcilei Conceição Lima enfatiza que os
elementos geradores do mito Luiza Mahin, a carta e o poema de Luiz Gama lançaram as bases
para as interpretações e apropriações no campo da história e da literatura. (LIMA, 2011)
A partir do exposto pelas autoras acima, depreendemos que permeia, no campo da historio-
grafia, como também da literatura, certa ambiguidade quando o assunto é Luiza Mahin. Não se sabe
com exatidão da sua existência, ronda uma certa incerteza ou até mistério sobre a sua vida. Os textos
de Luiz Gama apresentados no início desse artigo, que estão no livro de Benedito (2011), como textos
Ao constituir-se enquanto mito, Luiza Mahin ressignifica a história da mulher negra no Brasil e
torna-se sinônimo de mobilização, resistência, capacidade de superação e inteligência, atributos
fundamentais na configuração de uma identidade positiva.
Na visão dessa autora, o processo de mitificação da referida mulher possibilitou a sua ma-
nutenção no cenário brasileiro. A nosso ver, tal processo se configurou como ação necessária para
a perpetuação da história e dos feitos de Mahin, do contrário teria sido relegada ao esquecimento,
assim como tantas outras mulheres e negras. Ao se tornar figura mítica, sua imagem é responsável
por transformar de forma positiva a história da mulher negra brasileira, histórias que até então foram
apagadas e relegadas à marginalidade.
A mitificação dessa personagem possui uma importância ímpar para as mulheres negras da
sociedade brasileira, ao colocar-se como modelo para as mulheres pode ser entendida como a emergên-
cia da mulher negra ocupar o centro. A mulher racializada numa sociedade classista, racista, sexista,
generificada, como é a cultura brasileira, é sempre a preterida em diversas situações. É a que tem sua
trajetória apagada e relegada aos ambientes de menor importância social. Portanto, ao trazer à luz
uma figura – mítica ou não – como Mahin, é o escopo necessário para o deslocamento de mulheres
negras que estão nas margens para o centro (hooks, 2019). Essa é uma dinâmica que consiste no em-
poderamento das mulheres negras, um dos pilares do feminismo negro estadunidense.
A construção e o desenvolvimento do mito Luiza Mahin se devem, em grande medida, ao femi-
nismo negro constituído em solo brasileiro. No cerne desse movimento voltado a atender as demandas
advindas do universo das mulheres negras, ignoradas pelo feminismo branco, burguês, classista, que
emergem no tecido internacional como também nacional (LIMA, 2009, p. 3), faz-se importante men-
cionar que o feminismo em sua versão negra desde as suas origens busca exaltar, dentre outras questões,
a cultura afro-brasileira, assim como, as/os personagens que compuseram o substrato cultural.
Nessa perspectiva, Mahin torna-se o símbolo identitário nessa vertente do feminismo brasileiro,
contribuindo extensamente para fazer a leitura da realidade da mulher negra periférica. Recorremos
uma vez mais a Lima, que oferece elementos para o entendimento dessa identidade. E adverte que,
(...) a produção literária das feministas negras “realizam’” Luiza Mahin, garantindo a ela uma
existência sólida e real, a partir da rememoração de seus feitos, que por si só forneceriam um
modelo de conduta para essas mulheres. (LIMA, 2011, p.74)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escrever sobre mulheres negras que tiveram suas trajetórias ocultadas ou apagadas pelo epis-
temicídio, nesse caso, Luiza Mahin, torna-se tarefa alvissareira para o momento atual. Primeiro por-
que provoca uma imersão história pessoal daquelas e daqueles que se dedicam a tal tarefa, segundo
porque, numa sociedade como a brasileira, evocar essas figuras para o centro é denunciar o racismo
que permeia as instituições. São ainda os negros que podemos chamar de descartáveis da sociedade,
seguem sendo o maior número de desempregados e subempregados, as maiores vítimas de assassinatos
e feminicídios, baixa escolaridade, alocados nas periferias dos grandes centros urbanos. Todas essas
questões acentuadas e agravadas pela pandemia da Covid 19.
Ao chegarmos ao final desse texto, que buscou descrever a trajetória de Luiza Mahin, mulher
negra, ex-escrava, mãe e libertária, carregamos a certeza de que seu legado segue vivo, e mais do que
nunca necessário diante de tudo o que elencamos no início dessa conclusão. Mahin é um dos nomes
que se figuram na literatura brasileira como fonte inspiradora para coletivos e movimento de mulheres,
ONGs, pesquisas acadêmicas, feminismo negro brasileiro, dentre outros.
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019. (Coleção Feminismos Plurais).
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Pau-
lo. São Paulo: Ed. da Unicamp, 1999.