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MULHERES NA INDEPENDÊNCIA?

Ausentes da historiografia, os lugares das mulheres brasileiras do século XIX continuam


desconhecidos
 
Ana Maria Veiga

Falar sobre mulheres no período que ficou conhecido como Independência do Brasil (em torno
do marco de 1822) é abordar ausências e como elas foram sendo construídas. Não que as
mulheres inexistissem ou não tivessem papel social relevante, mas a elas não era dado o
privilégio do protagonismo, social, econômico ou político. Se dizemos isso a respeito de
mulheres brancas, o que pensar das mulheres negras, indígenas, sertanejas? Que
“independência” era destinada a elas?
As mulheres rememoradas ao longo do século XIX vêm de uma pertença de classe definida.
Além de brancas, são membras de famílias privilegiadas, que começam a ganhar o espaço
urbano na transformação gradual de um Brasil em grande parte rural. No entanto, um amplo
leque se abre entre a imperatriz Leopoldina (1797-1826) e as mulheres indígenas localizadas
em seus territórios.
O protagonismo da existência sempre esteve nas mãos das excluídas da história – pobres,
sertanejas, negras, indígenas, escravizadas. Raras vezes a bolha da historiografia foi rompida
a ponto de chegar a elas, mulheres de vida comum, nos interiores e nas cidades incipientes.
A urbanização nas principais cidades, como Rio de Janeiro e Recife, marca a transição dos
moldes da família senhorial para os da família burguesa, quando as mulheres ganham
centralidade como reprodutoras/educadoras dos filhos e mantenedoras do sucesso dos
maridos. Tornam-se visíveis como função social, não como sujeitos/as.
A Independência e seu entorno constituem uma história masculina. É o momento dos novos
hábitos, do consumo de espetáculos e livros, que em pouco tempo alcançariam as famílias
abastadas de municípios menores, por exemplo, do Rio Grande do Norte, onde nasceu
Dionísia de Faria Rocha (1810-1885), que adotou o pseudônimo Nísia Floresta Brasileira
Augusta, mais conhecida como Nísia Floresta. Aos treze anos, ela se casava pela primeira vez,
para logo depois se separar do marido – um escândalo. Em 1832, publicou o texto “Direito das
mulheres e injustiça dos homens”. Além de escritora, Nísia se destacou como jornalista,
republicana e abolicionista, influenciando outras mulheres.
No ano que marca o Brasil independente, nascia em São Luís, no Maranhão, uma mulher
“parda”, que seria tida como a primeira autora de um romance brasileiro – Úrsula (1859). Na
atualidade, Maria Firmina dos Reis (1822-1917) é reivindicada pelo feminismo negro brasileiro
como marco do abolicionismo a partir da sua escrita literária.
Para além das linhas centrais, a literatura de cordel e os livros de memórias trazem à tona
figuras de mulheres sertanejas. Quando pertencentes às poucas famílias abastadas de suas
regiões, elas se casavam muito jovens, pela reprodução de sua camada social, na maioria das
vezes sem amor. As mais pobres não passavam por tantas exigências; de todo modo,
mulheres solteiras nunca foram bem vistas, sendo consideradas um perigo social.
Existiam também escravizadas que formaram vínculos afetivo-sexuais não formalizados pela
Igreja. Não tinham nomes de família, adotando sobrenomes ligados a santos, referências
religiosas ou dos seus antigos senhores, quando alforriadas. Logo as que mais precisavam de
liberdade ficaram fora da historiografia tradicional sobre a Independência. Havia uma
contradição flagrante entre a monarquia “civilizada” e a vigência da escravidão no Brasil. Desse
contexto, emergem personagens interessantes.
Eva Maria do Bonsucesso, por exemplo, foi uma escravizada que vendia quitutes nas ruas do
Rio de Janeiro e conseguiu a prisão de um homem branco de prestígio. Ao reivindicar seus
direitos pelo prejuízo causado por uma “cabra”, foi surrada pelo dono do animal, no meio da
rua; isso foi em 1811 e o processado era um amigo, depois funcionário da família real. As
escravizadas também reivindicavam direitos legais.
Gertrudes Maria, ex-escravizada sob condição, conseguiu um feito inédito na Parahyba do
Norte, tendo entrado com recurso judicial nos anos 1820 contra tentativas de reescravização.
Comprou metade da sua liberdade com o dinheiro do trabalho como quitandeira, mas teve que
provar nos tribunais que sua história era verdadeira: para o pagamento da segunda metade,
trabalharia para os senhores até o final das suas vidas. Mas ela ainda constava da lista de
bens do casal e foi cobrada como propriedade a ser confiscada pelos credores. A querela
judicial durou uma década e meia e Gertrudes virou símbolo da resistência negra.
Outra escravizada de destaque é Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luís Gama (1830-1882).
Embora a documentação não comprove isso, Luiza é reivindicada pelo movimento negro como
uma das lideranças na revolta dos Malês, ocorrida em 1835 em Salvador. Nesse caso, a
oralidade traz seu valor histórico.
Por fim, chegamos à mulher cuja história se confunde com o mito e que virou símbolo do
silenciamento das mulheres negras no Brasil. Anastácia viveu na primeira metade do século
XIX, tendo passado pela Bahia e por Minas Gerais até chegar no Rio de Janeiro. As imagens
produzidas dessa mulher destacam os olhos verdes e a máscara de ferro cobrindo a boca. O
motivo pode ter sido a rejeição ao senhor, o ciúme gerado pela beleza ou mesmo a punição
pela ousadia. Com Anastácia, interrogamos a continuidade da herança escravista no Brasil
independente e o racismo, estruturante, que ainda habita o cerne da sociedade brasileira. Junto
a isso, os fatores gênero e classe intensificam a opressão sobre as mulheres, nesse e em
outros períodos históricos.
Uma historiografia que considere a multiplicidade de opressões sobre as mulheres na
Independência do Brasil ainda está por ser escrita, embora esforços já tenham sido feitos por
autoras/es que expandem seus olhares para além das linhas centrais, que evidenciam
mulheres destacadas em outras pesquisas. As ausências podem ser resolvidas com a
simplicidade de um ajuste de lentes e interesses, além da (re)descoberta de nova
documentação.
 

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