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Harriet E.

Wilson

OUR NIG, OU
ESBOÇOS DA VIDA DE UMA NEGRA
LIVRE, RESIDENTE EM UM SOBRADO
DE BRANCOS NO NORTE
1859

Tradução Gabriela C. Miani

1ª edição | Aetia Editorial


São Paulo | 2019
Apêndice

Harriet E. Wilson
Sua presença indesejada no
abolicionismo ianque e seu legado

Por Felipe Vale da Silva

H
arriet E. Wilson merece um lugar de destaque na
história literária não somente por ser a primeira
afro-americana a escrever um romance. A forma
como o escreveu, — como manejou cenas de sua infância em
Massachusetts de forma a quebrar o mito da democracia racial
do norte dos eua, atualizando assim a escrita autobiográfica,
— essa, sim, é digna de atenção.

O ano é 1859. Harriet, já bastante doente, escreve seu


romance a fim de angariar fundos que a permitissem provar
oficialmente ter condições de sustentar seu filho George,
tirando-o da espécie de Lar dos Pobres aonde crianças em
sua situação eram enviadas. Harriet contava então apenas
com o próprio talento, já que não havia qualquer garantia
de que editores se interessariam por sua obra. No estado de
Massachusetts, onde vivia, entendia-se por expressão literária
negra os relatos de fugitivos do Sul escravista; Frederick
Douglass, William Wells Brown e Henry Walton Bibb eram as
celebridades literárias e exemplos de homens que, com a ajuda
de seus irmãos do Norte, conseguiram superar a degradação e
traumas decorrentes da escravidão, educaram-se e escreveram
documentos que lemos e celebramos até hoje. Aqui temos o
início da prosa afro-americana propriamente dita. Parte do
orgulho do público-leitor da época ao ler tais textos era o de
encontrar em si a confirmação de que os estados ianques (isto

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Harriet E. Wilson . Our Nig

é do Norte) eram a terra prometida para as pobres criaturas


torturadas nas lavouras do Sul. Em tempos de crescente tensão
política entre as duas metades do país — a Guerra Civil estou-
raria já em 1861 —, as narrativas de escravos valiam como
atestados de que os nortistas estavam do lado certo da História.

Todavia, Harriet E. Wilson não foi uma escrava; o que teve


para escrever sobre sua vida não se dissociava de uma série de
conclusões negativas sobre a cultura supostamente humani-
tária do Norte. No romance, encontramos manifestações de
crueldade indizível por parte de uma professora de religião
— recatada e do lar — em pleno Massachusetts; a estranha
condescendência de uma família respeitável que, por força das
circunstâncias, não hesita em manter uma criança abandonada
na condição de serva, praticamente de escrava, por mais de
uma década. O racismo é a grande mácula na história ameri-
cana, e a cultura ianque, não apenas a sulista, também seria
culpada por sua sobrevida no mundo civilizado. Daí o título
provocativo do livro: Our Nig, derivado de nigger, termo de
tons derrogatórios do qual racistas da pior categoria se valem
até hoje para se referir a não-brancos. É como se aquela jovem
autora apresentasse sua protagonista, desde a capa do livro,
como “a negrinha de alguém”, não como um indivíduo identi-
ficável por uma identidade pessoal. Não obstante, Nig é escrito
em letra maiúscula, como se a identificação singular da pessoa
fosse subsumida por força de sua condição social desfavorável:
cá e lá nas cidades do Norte havia um negro ou uma negra;
a mestiça Frado, assim, serva de uma família Bellmont, se
reduzia a uma mera negrinha local.

Harriet E. Wilson demonstra ter um controle exemplar da


arte narrativa. O jogo intricado que opera já nas duas palavras

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que dão título ao romance é apenas um dos muitos indícios


de sua habilidade literária. Dialogando com a tradição do
Bildungsroman [romance de formação], ela apresenta a traje-
tória de Frado desde seu nascimento; esta é filha da branca
destituída Mag Smith e do negro livre Jim, e, portanto, uma
habitante de dois universos sociais inconciliáveis.[18] Ao ser
trazida para dentro da casa de uma família tradicional, os
Bellmonts, substitui criadas brancas que não conseguem
permanecer ali por mais de um mês, como conta o início do
livro; todos esses dados antecipam os inúmeros fatores exte-
riores que impossibilitam o desenvolvimento pleno daquela
criança, Frado Smith. Esta atinge a maioridade já doente, de
forças exauridas como se fosse uma idosa. Our Nig é um curioso
Bildungsroman oitocentista que descreve uma formação impos-
sível de uma menina inteligente e vivaz, e identifica na cultura
americana fatores responsáveis pela destruição das forças dessa
protagonista.

Em grande medida, Wilson antecipa dispositivos próprios


de narrativas realistas posteriores — muito das descrições em
Our Nig dos abusos laborais, das punições físicas reservada para
quem não se subordina a um sistema desumano de exploração,
soam como as descrições de Charles Dickens ou Paul Laurence
Dunbar. Diferente desses grandes expoentes do realismo,
porém, a autora não descreve os males da urbanização e novas
18  Ver ensaio de Santos (2013, p. 188) para uma leitura de Frado como
precursora da “mulata trágica”, tipo tão explorado na literatura do postbellum;
trata-se da personagem mestiça que traz em si tensões próprias do choque
entre culturas branca e negra. Na literatura, essa personagem foi apropriada
por diversos autores — de Frances Ellen Harper a James Baldwin — para
tematizar a crise no cerne do nacionalismo estadunidense: quem de fato é o
cidadão dos EUA? Em que medida negros, indígenas e imigrantes têm sua
participação barrada na Commonwealth em função do racismo endêmico
àquele país? Wilson é relevante, em partes, pois tais questões permanecem
sendo alvo de debate no século XXI.

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relações de trabalho inauguradas com a Revolução Industrial.


Seu cenário é o mesmo Estados Unidos idílico, pintado pela
paleta dos românticos e transcendentalistas daquela época,
ainda que inusitadamente revelado pela perspectiva de uma
outsider. E a versão que esta outsider tinha para oferecer foi a
grande inovação da época.

Mark Twain descreveu o final do século XIX como o “fim


da inocência americana”; o alastramento do comercialismo,
materialismo e vulgaridade da sociedade moderna pedia uma
literatura crítica, desenganada da imagem fantasiosa que até
então determinara o imaginário literário estadunidense.[19]
Quando voltamos a Our Nig, constatamos que a miséria faz
alguns perderem a inocência prematuramente. Isso é a reali-
dade tanto para indivíduos como Frado, como para setores
inteiros de uma sociedade. A historiografia literária parece ter
redescoberto esse fato elementar da vida humana nas últimas
décadas quando passou a se interessar pelo resgate de vozes
minoritárias; a própria Harriet E. Wilson teve de ser resga-
tada do esquecimento em 1981, apenas, num sebo obscuro de
Manhattan, pelo professor Henry Louis Gates Jr.[20] Diferente
do que se lia de literatura oitocentista até então, o retrato de
Frado, na zona rural da Nova Inglaterra, mostra que não foi
preciso esperar pela urbanização para que os Estados Unidos
se tornassem uma sociedade afundada em uma profunda crise
moral. Meio século antes, “as sombras da Escravidão inci-
19  Como formulam Ruland; Bradbury (1992, p. 220) ao tratarem do realismo
tardio no país. Nossa sugestão é de que a literatura afro-americana já trazia
marcas profundas da ‘estética desvendadora’ do realismo na década de
1850 (com Douglass, Wells Brown, Wilson e Frank Webb), muito antes da
divulgação oficial do movimento no país, em meados de 1880.
20  A história do resgate do livro está bem detalhada em Gates Jr. (1987,
p. 125-126) e no programa de rádio Wired for Books da WOUB de 1983
(disponível em: https://web.archive.org/web/20110519234839/http://www.
wiredforbooks.org/mp3/HenryLouisGates1983.mp3).

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diam mesmo ali”, na vida pacata e rural da Nova Inglaterra.


Essa é uma história muito diferente daquele país, narrada em
uma modalidade magistralmente formulada pelo historiador
Howard Zinn (1999, p. 10) nos seguintes termos:
Minha perspectiva ao contar a história dos Estados Unidos
é diversa: não devemos aceitar a memória dos Estados como
a nossa própria memória. Nações não são e nunca foram
[sinônimo de] comunidades. A história de qualquer país, apre-
sentada como a história de uma família, esconde conflitos de
interesse acirrados (às vezes explosivos, com maior frequência
reprimidos) entre conquistadores e conquistados, mestres e
escravos, capitalistas e trabalhadores, dominadores e domi-
nados (seja racial ou sexualmente). Ademais, em tal universo
de conflitos, em tal universo de vítimas e carrascos, é o dever
das pessoas pensantes não tomar o lado dos carrascos — como
sugeriu Albert Camus.

Aqui reside um dos interesses em lermos Our Nig mesmo


depois da abolição oficial da escravatura: ela retrata a incidência
do racismo na vida de uma cidade ‘livre’ do Norte (embora
obnubilada pelas sombras da escravidão) como o próximo
passo para um país à véspera da abolição. Como sugere José
de Paiva dos Santos (2003, p. 187), a casa pode ser tomada por
uma grande metáfora daquela nação — embora se encontrasse
dividida tal qual o lar dos Bellmonts (dividido entre a mãe e
filha cruéis, um marido indiferente e os filhos benevolentes
perante Frado), o mais importante era lembrar quem era a
grande afetada pelo sistema.

Pouco se discute de fato sobre aspectos textuais e temáticos


explorados por Wilson; sobre sua ampla gama de referências
literárias (como se vê nas epígrafes que abrem cada capítulo do
romance) e possíveis influências culturais. Esses todos conti-
nuam sendo temas abertos para exploração de pesquisadoras
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Harriet E. Wilson . Our Nig

e pesquisadores do futuro. Como no caso de demais autoras


há pouco redescobertas (Maria Firmina dos Reis, Harriet
A. Jacobs), mais comum é encontrarmos pesquisas de cunho
biográfico, interessadas nas condições de produção de seu
romance do que propriamente em questões estéticas. Dentre os
aspectos que mais intrigam estudiosos de Wilson hoje enqua-
dram-se: por que ela não recebeu suporte de abolicionistas para
publicar e, por isso, teve de ser redescoberta um século depois de
sua morte? Como a pioneira do romance afro-americano —
nessa cultura que tanto louva seus pioneiros — chegou a correr
o risco de desaparecer por completo dos anais da história cultura
daquele país, não fosse por um acidente? Lidaremos com essas
questões no tópico seguinte.

Sobre a publicação e o desaparecimento de Our Nig

F alta-nos informações exatas sobre como Wilson conseguiu


concretizar o projeto de Our Nig. O que podemos asse-
gurar é que, ao publicar o livro na cidade de Boston, em 5 de
setembro de 1859, Wilson se encontrava no coração do movi-
mento abolicionista. George C. Rand & Avery, a companhia
responsável pela edição e impressão da obra, não era especia-
lizada em divulgação de material abolicionista; em seu catá-
logo encontramos livros de religião, manuais técnicos e ficção
sentimental ao gosto da época. Naquela altura, a companhia
tinha sede na rua Cornhill no 3, no coração de Boston. Ali se
encontravam também importantes sociedades ligadas a causas
reformistas: no no 9 tínhamos a American Sunday School
Union; mais acima, no no 11, New England Temperance
Depositories. Poucos quarteirões dali, no no 21, estava a sede
da American Anti-Slavery Society, presidida por William

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Lloyd Garrison, a mesma que publicava as grandes narrativas


de escravos no país. A American Anti-Slavery Society foi
precursora na história do movimento conseguir articular uma
rede de comunicação e divulgação de estratégias abolicionistas
em todo o território nacional; havia filiais suas até mesmo em
estados sulistas como a Geórgia, escondidas atrás de alguma
loja ou nos porões de seus correligionários. Além disso, muitos
escravizados fugidos, recém-chegados em Nova Iorque ou
Boston, eram acolhidos e amparados por membros da asso-
ciação. Sem dúvida, a abolição da escravatura naquele país teria
sido inconcebível sem esse nível de engajamento.

Como então — questionemos mais uma vez — Harriet


E. Wilson foi ignorada pelos abolicionistas? Eric Gardner,
em uma pesquisa nos arquivos pessoais de abolicionistas e
editores da época, encontrou algumas respostas para a nossa
perplexidade: sabemos que William Lloyd Garrison, líder da
American Anti-Slavery Society, conhecia o editor de
Wilson pessoalmente. Em carta à esposa datada a 15/05/1867,
escreve: “o Sr. Rand, o impressor, junto de sua esposa e irmão,
é [também] parte de nosso grupo”.[21] Na véspera da Guerra
Civil, abolicionistas eram perseguidos, boicotados por clientes,
muitas vezes alvos de violência física; tinham seus cargos
cassados e famílias ameaçadas. Ao contrário do que a narrativa
oficial parece implicar, ser abolicionista antes da manumissão
era uma tarefa parece pessoas de sangue frio; daí a surpresa de
Lloyd Garisson ao descobrir o impressor George Rand como
“um dos nossos”. Nada, porém, atesta uma participação ativa
de Rand no movimento — sua grande contribuição foi ter
publicado uma tiragem de Our Nig em 1859.

Das trinta e quatro cópias ainda existentes dessa tiragem


21  Trecho citado a partir de Gardner (1993, p. 230).

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Harriet E. Wilson . Our Nig

— Eric Gardner mostra —, onze continham assinaturas de


seus proprietários ou dedicatórias. Uma delas, doado ao Smith
College em junho de 1951, traz os nomes de Eleanor e Frank
Garisson, parentes diretos do grande abolicionista de Boston
(ver detalhes em Gardner, 1993, p. 234). Há uma grande
possibilidade, portanto, de o livro ter sido adquirido e lido
pelo próprio líder da American Anti-Slavery Society. Em
todo caso, embora não haja uma única resenha do romance nos
jornais da época,[22] é fato que ele alcançou o círculo interno do
movimento em Boston.

Ter chegado ao centro não implica que ter agradado seus


líderes. Como vimos, Our Nig complica a discussão da questão
racial nos eua negando ao Norte livre o papel de liberador, de
cultura modelar, apta a substituir o Sul retrógrado e aristo-
crático: na realidade, segundo Wilson, a cultura estadunidense
teria de se reinventar radicalmente caso o país quisesse fazer
jus à alcunha de ‘democracia’. De fato, o movimento aboli-
cionista vivia uma crise; havia a ameaça de divisões internas
sobretudo entre abolicionistas pacifistas e uma ala que acre-
ditava na abolição mediante a tomada de armas. Quando
John Brown e um grupo de escravos revoltados iniciam uma
rebelião em Harpers Ferry, resultando em dezenas de mortos
(dentre eles mulheres e crianças), surge o alerta: a partir de
agora um abolicionista deveria escolher um lado.[23] Um mês
mais tarde, para piorar a situação, a desconhecida Harriet E.
22  A equipe de The Liberator, também administrado por Garisson, se
propunha a resenhar todos os livros escritos por escravos, abolicionistas
ou que tratassem de temas relativos à sua temática. O jornal iniciou suas
atividades em 1831 e só fechou as portas em 1865, quando Lincoln assinou a
abolição. Não consta nele, contudo, uma única palavra sobre Wilson (Gates
Jr., 1987, p. 133).
23  John Stauffer descreve o processo de divisão dentro da American Anti-
Slavery Society em seu livro The Black Hearts of Men: Radical Abolitionists
and the Transformation of Race (Cambridge: Harvard University Press, 2004).

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Wilson publicava um romance em que uma cristã respeitável


do Norte é retratada como o próprio demônio; todos os
homens são omissos, viciosos ou incompetentes; e ainda por
cima traz como desfecho a declaração de que a protagonista
foi perseguida por sequestradores e maltratada por abolicio-
nistas professos que não queriam escravos no Sul, nem pretos
em casa, no Norte. Ugh! abrigar um deles; comer ao lado deles;
admiti-los por sua porta da frente; sentar-se ao lado de um
deles; terrível!” (cap. 12; meu grifo).

De modo geral, a maioria dos abolicionistas do Norte


não estava pronta para engolir nem o próprio orgulho nem o
sarcasmo de Wilson, reconhecendo as “sombras da escravidão”
dentro da própria casa. Preocupando-se, afinal de contas, com
a escravidão no Sul mas ignorando-a em seu próprio quintal,
como formulam Foreman e Flynn (2009). A reação geral foi
ignorar a jovem autora por completo e negar-lhe a presença
no legado do pensamento antirracista. Para nossa sorte, essa
tentativa malogrou.

Revelações recentes sobre a vida de Harriet Wilson

E m 2009, P. Gabrielle Foreman e Katherine Flynn pesqui-


saram periódicos do século XIX após atentarem para um
curioso detalhe da vida adulta de Frado — em um trecho do
capítulo 12, a protagonista diz ter conseguido aumentar sua
renda por meio de uma “receita valorosa” conferida por um
amigo gentil. Nenhuma explicação adicional é dada, de forma
que o trecho permaneceu ignorado por dezoito anos após a
redescoberta do romance. Em um jornal de New Hampshire,
porém, as pesquisadoras encontram anúncios de um Mrs.

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Wilson’s Hair Regenerator ou “Restaurador Capilar da Sra.


Wilson”. Uma carta no final de Our Nig reitera a informação
mencionando o sucesso de Wilson nas vendas de produtos
para “restaurar a cor original de cabelos grisalhos”.

Nesse e em trechos esparsos, a biografia de Wilson e a narra-


tiva de vida de Frado se misturam. O último capítulo de Our
Nig é deveras abrupto — supõem-se que a autora, vendo-se
doente e no dever de resgatar o filho pequeno da Casa dos
Pobres, teve de abreviar o empreendimento e publicar o livro
para angariar fundos. Temos notícias de que Wilson continuou
a prosperar com seus produtos capilares (entre 1860 e 1861,
foram encontrados 1500 anúncios das criações de Wilson em
jornais que iam da Nova Inglaterra a Nova Jérsei), o que a torna
não só a primeira romancista, mas a primeira empresária negra
dos EUA escravista. Sobre o pequeno George, encontrou-se
uma notícia no Farmer’s Cabinet de Amherst, NH: “Faleceu
em Milford, dia 13 deste mês [de fevereiro de 1860], George
Mason [Wilson], filho único de H. E. Wilson, aos 7 anos de
idade e 8 meses”.[24] O experimento de Harriet E. Wilson,
portanto, malogra parcialmente: ele fracassa como tentativa
de salvar o filho da miséria e morte, embora renda à poste-
rioridade o próximo passo para a prosa artística afro-ameri-
cana, inovador o suficiente para transcender os paradigmas da
narrativa de escravos.

Da vida posterior de Wilson conhecemos apenas dados


esparsos. Com a Guerra Civil e consequente recessão econô-
mica, a empresária se vê obrigada a vender seu pequeno negócio,
associa-se a círculos espíritas (uma religião recém-surgida nos
EUA) e torna-se Hattie Wilson, uma médium de certa cele-
bridade em Boston. De 1867 à década de 1880, vive de pales-
24  Ver detalhes em Gates Jr., 1987, p. 127-128.

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Apêndice

tras e sessões espíritas por toda a Nova Inglaterra. No Banner


of Light, um semanário espírita de escala nacional, Wilson é
consagrada como “a mais solene e eloquente médium de cor”.
Seu nome volta a aparecer em uma nota de falecimento num
jornal de Boston em 1900.

Como explicar a curta carreira literária de Harriet E.


Wilson? Our Nig, até 1983, teve apenas uma tiragem modesta,
e foi escrito para fins declaradamente práticos: servir de fonte
de renda para uma família na penúria. A própria trajetória de
sua idealizadora mostra que a carreira literária foi abreviada
por força da necessidade de uma mãe solteira do pós-Guerra
de se reinventar a todo momento caso quisesse sobreviver.
Harriet E. Wilson incorpora em si, assim, muito da condição
de sua classe, e merece o estatuto de símbolo de persistência
criativa, de maleabilidade, que lhe vem sendo conferido nos
últimos anos.

Referências bibliográficas

Foreman, P. Gabrielle; Flynn, Katherine. Mrs. H. E. Wilson,


mogul? The curious new history of an American literary
original. Boston Globe, February 15, 2009.

Gardner, Eric. “This attempt of their sister”: Harriet Wilson’s


Our Nig from printer to readers. The New England
Quarterly, vol. 66, no. 2, p. 226-246, jun. 1993.

Gates Jr., Henry Louis. Parallel discursive universes: fictions


of the self in Harriet E.Wilson’s Our Nig. In: Figures in
black: words, signs, and the “racial” self. New York/Oxford:
Oxford University Press, 1987, p. 125-163.

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Harriet E. Wilson . Our Nig

Ruland, Richard; Bradbury, Malcolm. From puritanism to


postmodernism: a history of American literature. New York:
Penguin Books, 1991.

Santos, José de Paiva dos. Espaço, lugar, identidade. Geografias


raciais em Our Nig, de Harriet E. Wilson. Aletria, vol. 23,
no. 3, p. 187-198, set./dez. 2013.

Stauffer, John. The Black Hearts of Men: Radical Abolitionists


and the Transformation of Race. Cambridge: Harvard
University Press, 2004.

Zinn, Howard. A people’s history of the United States:


1492-present. New York: HarperCollins Publishers, 1999.

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