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Paul Laurence Dunbar

O Joguete dos Deuses


(The Sport of the Gods, 1902)

1ª edição
São Paulo /Londrina . Aetia Editorial
2 0 2 0
Posfácio

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O romance como um acerto de contas


Um retrato de Paul Laurence Dunbar no final de sua carreira
por Felipe Vale da Silva

Eu sou um escritor, e escritores odeiam quando críticos


começam a bancar os psicanalistas. Especialmente quando
eles começam a insinuar que um pobre de um artista fale-
cido tinha algum problema que, por sua vez, acabou inter-
ferindo em sua obra. Quer dizer, às vezes isso é verdade,
mas também é verdade que alguns críticos têm seus
problemas que afetam sua obra. – David Bradley 1

P ara adolescentes em idade escolar nos EUA, Paul Laurence


Dunbar é o nome de um poeta. É a única leitura obrigatória
de poesia afro-americana do currículo da High school, além
de ter sido o primeiro autor a ganhar a vida com literatura
em uma época em que descendentes de escravos encontravam
espaço nas artes mais como animadores de palco, musicistas,
dançarinos ou comediantes. Raramente como grandes literatos.
Admira-se em seus poemas o retrato impactante da vida simples
dos negros do campo, de seus dramas e paixões, amores e pesares,
muitas vezes escritos em um dialeto que simula o linguajar da
lavoura, da gente sem educação formal. Esse foi um mercado
1  Trecho da fala de título “Factoring Out Race: The Cultural Context of
Dunbar” (apresentada no congresso The Paul Laurence Dunbar Centennial
Conference, 11 de março 2006. Stanford/CA: Stanford University). Os
manuscritos da fala foram publicados posteriormente na African American
Review, Vol. 41, No. 2, (Summer, 2007), p. 357-366; o trecho em questão
se encontra na página 361.

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outrora exclusivo de autores brancos saudosos dos tempos da


escravidão, mas que encontrou um expoente promissor em um
jovem do interior do Ohio, Paul Laurence – seus primeiros
poemas publicados datam de quando tinha apenas 16 anos.

O primeiro volume em formato de livro veio quatro


anos mais tarde. Dunbar trabalhava então como operador de
elevadores em um prédio de Dayton, uma cidade de 38.678
habitantes segundo o censo de 1880, mas que se modernizava
vertiginosamente. Sua população praticamente dobrou em
uma década (61.220 habitantes em 1890), e Paul Laurence foi
parte da mão-de-obra urbana que ajudou a construir a cidade
em expansão. Seguindo a vocação declarada desde criança
de ser poeta, custeou a impressão do seu primeiro livro Oak
and Ivy. Conta-se que, em duas semanas, pôde pagar todas
as dívidas com a gráfica somente através das vendas que fez
para os passageiros do elevador onde trabalhava.2 Esse jovem
carismático e batalhador trazia em si, além de talento, todas
as características louvadas pela América do pós-Guerra Civil.
Logo ganhou favores de escritores consagrados e um nome
para si nas letras estadunidenses.

O que pouco se sabe é que na última década de sua curta


vida, Dunbar passou a escrever prosa, relegando-nos obras que
o torna o maior expoente do realismo afro-americano ao lado
de Charles W. Chesnutt. Para os realistas, escrever literatura
foi um compromisso: a estética realista assumiu para si tal
missão decifradora da vida comum como quem assume uma
profissão de fé. Entusiastas da nova tendência se divulgaram
como membros de uma vanguarda organicamente ligada às
necessidades do mundo moderno, como lemos num editorial
de Richard Watson Gilder:

Realismo é, de fato, algo que corre pelo ar [...] o


Espírito dos Tempos, [...] o estado anímico do século
dezenove que, neste momento, está vitalizando a
2  Wagner, Jean. Black Poets of the United States: From Paul Laurence
Dunbar to Langston Hughes. University of Illinois Press, 1973, p. 78.

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literatura americana e atraindo para ela a atenção do


resto do mundo (editorial da Century Magazine). 3

O realismo, portanto, era um fato que acompanhava a


modernização do mundo; ele era um ponto de culminância de
desenvolvimentos científicos e intelectuais que, supostamente,
levariam os novos artistas a uma época de expressão transparente
da realidade. Sobretudo em sua prosa, como veremos, Dunbar
mostra não sair ileso dessas influências – isso explica, inclusive,
sua atuação como poeta interessado em retratar a vida de gente
de carne e osso de forma fiel, destituída de idealizações. Essa
tendência começou antes, já em sua lírica de juventude. Foi
o que, nela, chamou a atenção de William Dean Howells, o
mais ávido divulgador do realismo daquele país, ele próprio
um romancista de peso, quando comentou o segundo livro de
poemas de Dunbar, Majors and Minors.

Na resenha publicada na edição de 27 de junho de 1896


da Harper’s Weekly, Howells chamou atenção para aquele
completo desconhecido de apenas vinte e quatro anos de idade,
declarando que seus poemas em inglês “literário” mostram
“honestidade no pensamento e sentimento verdadeiro”,
embora não sejam “particularmente notáveis”, exceto pelo fato
de vir de um filho de escravos. Porém,

quando chegamos nos [versos em dialeto negro] do Sr.


Dunbar, sentimo-nos na presença de um homem com
autoridade direta e inédita para fazer o tipo de coisa
que faz. Eu gostaria de reproduzir [aqui] o mais extenso
desses poemas... mas devo me contentar com uma ou
duas passagens. Eles partilharão um certo sentido
do júbilo em seu movimento, de seu caráter vívido
e pitoresco, de sua ampla caracterização; talvez seja
suficiente para mostrar que a perspectiva o Sr. Dunbar é

3  Citado em Louis J. Budd. The American Background. In: PIZER,


Donald. The Cambridge Companion to American Realism and Naturalism:
from Howells to London. Cambridge: Cambridge University Press, 1995,
p. 40

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capaz de revelar um quadro da natureza simples, sensual


e alegre de sua raça. 4

O paternalismo de Howells causa desconforto em quem


o lê no século XXI, mas buscarei salientar como seus juízos,
assim como alguns mal-entendidos, são constitutivos daquilo
que o próprio século XXI atribui a Dunbar.

O interesse pela parcela de poemas em “dialeto negro”


(na verdade, dialeto sulista) é o que menos deveria nos causar
estranhamento; ela atendia ao projeto da Reconstrução
Cultural dos EUA pós-Guerra Civil, promulgado amplamente
em periódicos do realismo literário como a revista editada por
Howells, a Harper’s Weekly, além da Century Magazine. Havia
até um nome para tal tendência literária: Local color school,
Escola da cor local, na qual nomes importantes das letras
surgiram (entre eles, o de Sarah Orne Jewett e Mark Twain).5
Em um editorial, a revista Century chegou a declarar interesse
em publicar “autores capazes de escrever sobre uma região
do país [específica], tendo nascido e sido criado nela”, além
de terem “pisado em suas mais vivas essências”. Para aquela
geração, portanto, o uso de dialeto se provava como marca de

4  Harper’s Weekly, vol. 60 (1896), p. 630. No original: “It is when we


come to Mr. Dunbar’s [verses in Negro dialect] that we feel ourselves in
the presence of a man with a direct and fresh authority to do the kind
of thing he is doing. I wish I could give the whole of the longest of these
pieces . . . but I must content myself with a passage or two. They will impart
some sense of the jolly rush of its movement, its vivid picturesqueness,
its broad characterization; and will perhaps suffice to show what vistas
into the simple, sensuous, joyous nature of his race, Mr. Dunbar opens”.
5  Nos EUA, a questão da cor local não veio do romantismo, portanto,
muito diferente do caso brasileiro, onde ela já começa nos ensaios de
Gonçalves de Magalhães antes de haver uma poesia romântica, de fato. A
esse respeito, ver o volume de Roger Lathbury (Realism and Regionalism
(1860-1910). New York: DWJ Books, 2006), além do artigo de Louis J.
Budd (The American Background. In: PIZER, Donald. The Cambridge
Companion to American Realism and Naturalism: from Howells to London.
Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 21- 46).

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autenticidade com a qual a nova literatura devia ser renovada


e singularizada.6

O argumento de Howells se complica quando revela que o


mesmo homem, tão interessado pela verdade objetiva, esquece
ele mesmo de averiguar os fatos. Em primeiro lugar, assume
que Dunbar compactua com sua hierarquização das culturas
dos Estados Unidos entre uma cultura refinada dos brancos
versus cultura primitiva dos negros (e Dunbar, em momento
algum, atribui uma inocência primitiva ao eu-lírico de seus
poemas ou a personagens como Berry e Fannie Hamilton).
Não só nunca houve um “dialeto negro” unificado, como se
a linguajar do afrodescendente fosse uma emanação genética;
Dunbar era natural do Ohio, na região noroeste do país. Ele
cresceu ouvindo dialeto Hoosier, uma subdivisão do que
linguistas chamam hoje de Appalachian English. Em outras
palavras, em seus poemas sobre os escravos das lavouras, o
poeta não reproduziu o tal “dialeto negro americano” que
aprendera como quem aprende uma língua materna, mas tal
qual um etnógrafo o faz.7

Em segundo lugar, Howells não notou que, apesar de o


livro que resenhava se chamar Majors and Minors – os poemas
mais “elevados” e “menores” – não existe uma divisão clara
entre essas duas categorias.8 Antes, o livro foi originalmente
subdividido em uma seção homônima, Majors and Minors,
e outra chamada Humor and Dialect. É nessa segunda onde

6  Scott-Childress, Reynolds J. Paul Laurence Dunbar and the Project


of Cultural Reconstruction. African American Review, Vol. 41, No. 2
(Summer, 2007), p. 368.
7  Scott-Childress (citado acima) traz fontes de conhecidos da mãe de
Dunbar, que o criou sozinha e foi escravizada no Sul do país. Um colega
do poeta, Conover, ressalta que “nem ela, nem qualquer um de seus amigos
falavam dialeto”; na parte mais urbanizada Ohio, foi uma característica
da migração negra a obliteração de fala dialetal como marcas de status
social inferior e rural.
8  Bradley, Factoring out race, 360.

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se encontram os experimentos com dialeto. Contudo,


reimpressões posteriores da obra alteraram o título dessas
divisões para se adequar aos juízos de Howells: aqueles
poemas compostos no “inglês dos anglo-saxões” seriam
Majors, aqueles poemas simulando a fala dos negros, Minors.
A repercussão desse equívoco foi desastrosa: uma coleção de
poesia estadunidense de 2003 e amplamente consultada na
educação universitária, The New Anthology of American Poetry,
asserta: “Howells deixou clara sua preferência pelos poemas de
entretenimento em dialeto (Dunbar os chamou de “Minors”)
[...]”.9

Em 1897, o poeta escreve a um amigo em Londres:

Um crítico diz certa coisa e o resto se apressa para dizer o


mesmo, em diversos casos usando palavras idênticas. Posso ver
claramente que o senhor Howells me fez um mal irremediável
com a máxima escrita a respeito de meus versos em dialeto.
Temo que ela influencie até mesmo a crítica inglesa.10

Aquele era um preço a se pagar pelo status de escritor bem


estabelecido. O aval de Howells, então o maior escritor realista
dos EUA, de qualquer forma ajudou Dunbar a se estabelecer
como escritor profissional. O que mencionei como um “preço
a ser pago” consumiu as energias de Dunbar pelos próximos
anos, seja em suas leituras públicas de poesia ou na composição
de seus livros. Em diversos relatos pessoais, observamo-lo
desviar de expectativas e estereótipos que o racismo da Era Jim
Crow associava a si – desviar, sobretudo, do papel atribuído de
negro abobalhado, grato pelo apadrinhamento dos brancos,
imitador dos temas poéticos de seus mestres. Se, na prática
profissional, houve o embate com a questão dialetal, na vida das
personagens de O Joguete dos Deuses, a dança e o minstrel show
9  The New Anthology of American Poetry: Volume I: Traditions and
Revolutions, Beginnings to 1900. Editada por Steven Gould Axelrod,
Camille Roman, Thomas Travisano. Rutgers University Press, 2003, p. 715.
10  Carta citada em Elsa Nettels. Language, Race, and Social Class in
Howell’s America. Lexington, The University Press of Kentucky 1988, p. 82.

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foram retratados como as únicas portas de entrada oferecidas


a negros para o mundo da arte. Tanto o poeta Dunbar,
quanto suas personagens Hattie Sterling e Kitty Hamilton,
são assombrados pelo imperativo do entretenimento, de
mesmerizar seu público com sua beleza, maestria física e
irreverência perante a vida. A ligação entre os dois universos é
declarada na fala de uma personagem no capítulo XIV: “dançar
ragtime [o ritmo musical de sucesso da época, precursor do
Jazz] é como fazer poesia em dialeto”. Aqui, eu argumento,
temos a chave que liga vida e ficção, uma das prestações de
contas do Paul Laurence com a literatura da época. Tanto
o ragtime quanto a poesia dialetal, como manifestações
artísticas, eram limitadas pelo fato de que, do lado da plateia,
havia um público pagante ávido por entretenimento barato,
inconsequente, sem grande profundidade.

Em O Joguete dos Deuses, portanto, Dunbar reverte o


dilema de sua vida artística em temática literária. Antes de
se tratar de uma obra de reconciliação, estamos falando de
um acerto de contas com a realidade de um dos primeiros
artistas negros do pós-escravidão a achar um espaço na cena
artística de seu país natal – e, consequentemente, uma crítica
da vida cultural dos Estados Unidos do pós-escravidão. Na
obra poética posterior a Major and minors, uma solução foi
alterar as formas de usar linguagem dialetal: há um esforço
para afastar o dialeto da tradição racista dos minstrel shows e
das plantation novels e dotá-lo de dignidade.11 Em um poema
encontrado recentemente nos papéis do autor,12 observa-se
11  Para uma crítica dos estereótipos negativos associados a uso dialetal
nesse período, ver Elsa Nettels (Language, Race, and Social Class in Howell’s
America. Lexington, The University Press of Kentucky 1988, p. 76) e Joanne
M. Braxton (Introduction, in: Dunbar, Paul Laurence. The Collected Poetry
of Paul Laurence Dunbar. Charlottesville: University Press of Virginia,
1993, p. xxiv).
12  Ele passou a figurar volumes de poemas do autor a partir de The
Collected Poetry of Paul Laurence Dunbar, fruto de um trabalho filológico
exemplar de Joanne M. Braxton (Charlottesville: University Press of
Virginia, 1993).

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uma amplificação do uso de dialeto. Aqui ele deixa de ser


exclusivo do negro sem educação formal: quem fala dialeto é
um alemão bêbado nas ruas do Ohio.

Lager Beer

I lafs und sings, und shumps aroundt.


Und somedimes acd so gueer.
You ask me vot der matter ish?
I’m filled mit lager peer.

O poema foi originalmente publicado no periódico Tattler,


edição de 13 de dezembro de 1890, sob o pseudônimo em
alemão macarrônico “Pffenberger Deutzelheim”. Levou um
século para ser atribuído ao seu autor verdadeiro. Transcrita
para a norma culta do inglês, a estrofe seria:

I laugh and sing and jump around


and sometimes act so queer.
you ask me what the matter is?
I’m filled with Lager beer.

E essa não foi a única experimentação do tipo. Dunbar


escreveu uma porção de versos em inglês Appalachian (falado
na região de Indiana e Ohio), tudo dentro de um projeto
de experimentação com formas de falar a língua inglesa. Tal
projeto parte de uma constatação óbvia: toda língua oficial é
uma abstração constituída por inúmeros socioletos, dialetos
e variantes regionais faladas pelas pessoas no dia-a-dia. A
inversão dos preconceitos linguísticos dos anglo-saxões é a
marca registrada da literatura afro-americana já na época
da escravidão, aliás, quando, em Incidentes na vida de uma
garota escrava (1861), Harriet Ann Jacobs provocou seus
leitores históricos atribuindo aos brancos ignorantes um
inglês quebrado, repleto de erros gramaticais.13 Os negros da
narrativa, por sua vez, falam o inglês altamente estilizado do
Romantismo.
13  Ver, sobretudo, capítulo XII (São Paulo: Aetia Editorial, 2017, p. 77-82).

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Na obra poética madura, Dunbar desenvolveu o conceito


da máscara social, dialogando com o conceito de dupla
consciência de seu contemporâneo e amigo pessoal W. E. B.
du Bois. A ideia está posta desde seu mais célebre poema “We
wear the mask”, e permeia toda a sua poética final. Trata-se
da “[...] noção de um indivíduo ter de mascarar sua verdadeira
natureza”, aliada “ao dilema proto-althusseriano que Du Bois
identifica como o fato de a pessoa só se ver através dos olhos
dos outros que, por sua vez, só enxergam uma máscara”.14
Entender esse elemento conceitual por detrás da performance
artística permite-nos apreciar o retrato das duas gerações
de afro-americanos presente em O Joguete dos Deuses, um
romance em que Dunbar, já diagnosticado com tuberculose
– uma doença sem cura na época –, faz um acerto de contas
com a cultura do supremacismo branco nos EUA. Nele,
encontramos a explicação de como a geração do negro dócil
e descontraído das plantation novels (representado por Berry
Hamilton) transforma-se, no período do pós-escravidão,
em alguém muito diferente. Após anos encarcerado por um
crime que não cometeu, Berry perde todos os valores que o
ligavam, em vínculo paternalista, ao antigo patrão, Maurice
Oakley. Uma vez que o mesmo patrão o joga na cadeia sem
provas substanciais, o narrador relata como a fé cristã de
Berry tornou-se nula; a expectativa pela bondade humana
desapareceu; mesmo a empatia com seus iguais mostra ter
arrefecido na ocasião em que decide matar o homem que
desposou sua antiga esposa, Fannie. Mas Berry, o escravizado
liberto e jogado em um mundo de desamparo social da Era
Jim Crow, é um joguete nas mãos do destino, como insinua
o título do romance: na ocasião em que, no capítulo XVIII,
descobre que seu inimigo morreu pelas mãos de outro, em
uma briga casual, lemos:

Ali ficou [Berry] de mãos juntas, sem emitir uma só palavra.

Apesar disso, o coração clamava: “Graças a Deus! Graças a


Deus! Não trago o sangue deste homem nas mãos.” [No original:
14  Citado a partir de Scott-Childress, Paul Laurence Dunbar…, p. 378.

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Paul Laurence Dunbar
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“Thank God! thank God! this man’s blood is not on my hands.”]

Ou seja: o preto velho, ex-escravo, não fala dialeto em seu


coração. Este é o único momento em que ele deixa de vestir a
máscara, digamos, em que se desarma de sua performance de
bom negro para se entregar ao solilóquio. Aí, a marca dialetal
deixa de fazer parte de seu discurso. O linguajar da lavoura, na
poética de Paul Laurence Dunbar, assume configurações de um
socioleto, funcionalmente atrelado à estrutura social profunda
que emoldura dada comunidade de falantes. Esta é uma
perspectiva surpreendentemente inovadora em 1902, meio
século antes de avanços significativos da sociolinguística com
William Labov e Noam Chomsky. Dentro da fatura da obra
de Dunbar, tal inovação não só transfere desenvolvimentos da
questão de sua experiência poética com o dialeto para o formato
de prosa literária, mas também refuta, de uma vez por todas,
os pressupostos de que a linguagem dos negros espelharia uma
suposta diferença essencial de sua humanidade. Em outras
palavras, ela refuta a prerrogativa veladamente racista que se
escondia por trás das boas intenções dos realistas americanos,
interessados em cor local somente enquanto ela repercutisse o
estereótipo do africano semi-selvagem e servil.

A Nova York da Era Jim Crow


Um outro mal-entendido que se cristalizou na fortuna
crítica de Dunbar foi sobre a suposta existência de um dilema
entre cidade versus campo, e sobre o papel de Nova York na
fatura do texto. Desde 1968 assumiu-se que esse é um romance
sobre o Harlem, e que as personagens de Dunbar se moviam
sobre as mesmas ruas que Malcolm X e James Baldwin se
moveram. Esse é um erro curioso, repetido ad nauseam na
fortuna crítica do autor a partir dos anos 1950.15
15  Aparentemente, o erro iniciou-se como o livro de Margaret Just Butcher
(The Negro in American Culture. New York, 1957, p. 130), repercutindo
no importante ensaio de Charles R. Larson (The Novels of Paul Laurence

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Em 1900, na realidade, o Harlem era habitado por


imigrantes judeus, italianos e porto-riquenhos.16 A narrativa é
categórica no sétimo capítulo: Fannie Hamilton mora com os
filhos na 27th Street, uma rua estreita no sul de Manhattan,
mas com via rápida para a Broadway e para o Bowery, dois
locais igualmente mencionados. Na época, ambas as regiões
foram o coração de uma cena de musicais e do ragtime, um
ritmo precursor do jazz que Joe ouve já na primeira vez em
que vai ao clube Banner. Os espetáculos teatrais em que
Hattie Sterling trabalha, igualmente, altamente coreografados
e descrito na cena brilhante do capítulo XII. “O mundo todo
é um palco”, tornaram-se parte do colorido da vida noturna
nova-iorquina, em uma época em que letreiros de neon e
grandes placares de espetáculos começavam a ornamentar a
urbe.

Dunbar teve um breve contato com a cena teatral da


Broadway quando terminava os manuscritos de O Joguete dos
Deuses; é possível que o retrato que faz do Sr. Martin – um
diretor teatral de energia inesgotável, que não mede palavras
ao abordar seus dançarinos até que a coreografia esteja perfeita
– tenha sido tirado de sua experiência pessoal. In Dahomey:
A Negro Musical Comedy (1903), dirigido por Jesse A.
Shipp, foi o primeiro musical da Broadway com um elenco
exclusivamente afro-americano, e conta com Paul Laurence
Dunbar como libretista. A peça conta a história de dois
vigaristas de Boston que encontram um pote de ouro e bolam
um plano para colonizar uma região da África (Dahomey,
atual República do Benim) com um grupo de americanos
Dunbar. Phylon, Vol. 29, No. 3 3rd Qtr., 1968, p. 263) e de Myles Hurd
(Blackness and Borrowed Obscurity: Another Look at Dunbar’s The Sport
of Gods. Callaloo, No. 11/13, Feb-Oct., 1981, p. 94).
16  De fato, vinte anos mais tarde, mais de 70% do Harlem é habitado por
afro-americanos. Na época em que Dunbar estava vivo, essa porcentagem
não atingia os 10%. Fonte: 1910 to 1940, Census Tract Data from National
Historical Geographical Information System, Compiled by Andrew A.
Beveridge and Co-workers, disponível em: https://www.gothamgazette.
com/index.php/demographcis/4077-harlems-shifting-population.

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Paul Laurence Dunbar
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destituídos. Parte do efeito cômico vem da performance dos


dois pobretões que, encontrando-se na posse de uma fortuna,
passam a se vestir como dândis para realizar o antigo sonho
agrário, da época da escravidão, de deixar aquele país que
destituiu seus antepassados dos ganhos de seu trabalho. Os
dois, porém, provam ser perfeitos bostonianos, com seus
vícios e dependência da vida urbana.

Em 1900, a cidade e sua cultura já era um fato na vida


dos EUA.

Um dos defeitos da mente provinciana é o de nunca conseguir


enxergar nada de bom em uma cidade grande. Ela conclui
que, considerando que tantas pessoas são ruins, onde há
uma grande quantidade de seres humanos reunida deve
haver ainda mais males do que em um lugar pequeno. (Paul
Laurence Dunbar. The Uncalled. New York, 1989, p. 55).

Aqui temos, em um romance anterior, o mesmo


equívoco de Fannie Hamilton que, por força de seu
provincialismo, termina sua vida infeliz há alguns passos da
casa do casal que desgraçou toda sua família. O narrador de
Dunbar, porém, é imparcial: por ter optado por uma poética
própria da tragédia – que vê seres humanos como joguetes dos
deuses, “impotentes ante alguma Vontade infinitamente mais
poderosa que a deles” – a perspectiva que oferece se restringe
a relatar os fatos e reações imediatas sobre as personagens. A
leitura habitual da crítica de que a cidade grande teria estragado
o idílio vivido pela família Hamilton é, sugiro, insustentável.
Certamente Joe Hamilton morreu miserável na penitenciária,
mas também foi este o caso de seus pais, de volta à vida da
província. Na última cena do romance, o narrador apressa
um desfecho em que Berry e Fannie passam um final de tarde
de mãos dadas, ouvindo os gritos ensandecidos de Maurice
Oakley, devorado pelo remorso, de sua pequena cabana,
herança dos tempos de escravidão. “Não foi uma vida feliz,
mas era tudo o que lhes restava”, é o que lemos.

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Posfácio

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Em virtualmente todos os comentários da fortuna crítica


sobre o destino de Kitty Hamilton, a nova estrela da Broadway
que perde os vínculos com a família e decide viver o próprio
sonho, ressalta-se o egoísmo de uma filha que ‘perdeu suas
raízes’.

Kitty se tornou uma corista calejada, sua juventude e beleza


manchadas para sempre: “A senhorita Kitty Hamilton tinha
que ter muito cuidado com seus nervos e sua saúde. Ela
havia passado por certos contratempos, e sua voz não era
tão boa quanto antes. Sua beleza precisava ser auxiliada por
cosméticos” (capítulo XV) [...] Kitty deixou-se perder
irremediavelmente no brilho artificial dos palcos (Charles R.
Larson, The Novels of Paul Laurence Dunbar, p. 267 e 269).

Nada no romance atesta que esse teria sido um desfecho


negativo para Kitty. Tornarmo-nos independentes dos pais,
envelhecermos e notarmos que nossas vozes, nervos e saúde
não são como eram – não é o destino de todos nós, sobretudo
de habitantes de cidades grandes? O silêncio do narrador
de Dunbar, ao meu ver, impede qualquer juízo valorativo
que nos permita O Joguete dos Deuses como um romance
de nostalgia agrária na chave do Romantismo – como se a
opção pelo paternalismo do Sul fosse posta como superior à
vida urbana degradada. Consequentemente, mesmo leitores
atentos como John W. Blassingame e Mary Frances Berry
parecem ter tomado Dunbar como um símbolo da regressão
para o novo negro do século XX, um poeta acovardado frente
ao supremacismo branco e as falsas promessas da América
rural.17 Alguns especialistas em Dunbar fizeram o mesmo:
no importante volume The Paul Laurence Dunbar Reader,
deparamo-nos com a inferência desastrosa de que “Dunbar
17  Ver Long Memory: The Black Experience in America de Berry e
Blassingame (Oxford: Oxford University Press, 1982, sobretudo p. 358).
Essa visão perpetuou-se apesar das objeções de Darwin Turner à leitura
de Dunbar como um poeta domesticado pelo establishment literário dos
brancos (ver Paul Laurence Dunbar: the Rejected Symbol. The Journal
of Negro History, Vol. 52, No. 1, Jan., 1967, p. 1-13).

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Paul Laurence Dunbar
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não gostava de sua própria obra em dialeto”, “sua obra em


dialeto constituiu-se como um ato de rendição ante o racismo
tão evidente no país naquela época”.18

Voltemos à prerrogativa do realismo literário. A prosa de


Dunbar – desde seus contos/anedotas sobre a vida da gente
comum, até seus romances-tese sobre a cultura do homem
branco – insere-se na melhor vertente do realismo, cujo
ponto de partida é retratar a vida como ela é, e cujo desfecho
habitual é um panorama de contradições e arbitrariedades que
constituem a existência social. Tudo termina em aporia.

No século XX, György Lukács e Hermann Broch deram


a melhor definição daquele momento crucial na história da
literatura moderna: realismo não foi um estilo literário – ele
foi a realização de uma exigência de racionalidade que surgiu
na História humana. Foi o momento na experiência das artes
em que pintar quadros românticos e idealizados acerca do
destino humano tornou-se um desserviço às novas gerações.
De um ponto de vista artístico, tornou-se um crime. Portanto,
se um romance realista como O Joguete dos Deuses comenta
a Era Jim Crow, ele não poderia oferecer fórmulas palpáveis
para o problema da nova geração – aquela foi uma geração que
participou de movimentos migratórios para o Norte em busca
de uma vida digna, mas quase invariavelmente encontrou
miséria e subempregos; que sentiu na pele, e por causa de sua
pele, o racismo institucionalizado das leis estaduais, que teve de
esperar até a geração de seus netos para que negros pudessem
votar. Parece injusto esperarmos um desfecho heroico para
Kitty e Joe Hamilton no contexto do pós-Guerra Civil, onde:

A escravidão ainda exercia uma forte influência


sobre o povo negro do vilarejo; por unanimidade,
todos se afastariam de um dos seus sempre que o
descontentamento da gente branca lhe impusesse
uma marca de banimento. Mesmo que nutrissem
18  Volume organizado por Jay Martin e Gossie H. Hudson (New York:
Dodd & Mead, 1975, p. xviii).

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Posfácio

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simpatia pelo homem, não ousariam dar vazão a ela.


Seus próprios interesses, a segurança de suas próprias
posições profissionais e de seus lares, exigia que fossem
indiferentes ao criminoso (capítulo V).

Este trecho constitui-se como o ponto de partida do caráter


trágico sugerido no título O Joguete dos Deuses: aqui não são
os deuses, como entidades espirituais, aqueles que agem nos
bastidores da vida, digamos, tirando e devolvendo a felicidade
humana. Antes, são os valores do passado – consequências
das ações dos mortos – que insistem em assombrar a vida
dos vivos. Que parecem extinguir todo o entusiasmo advindo
de conquistas sociais importantes: o fim da Escravidão em
1865, a restauração de participação do processo democrático
à população afrodescendente, os quais foram historicamente
sucedidos por campanhas violentas por parte das forças
reacionárias. Em 1910, não havia um único estado sulista
que não voltara a fazer emendas em suas constituições para
proibir o voto negro.19 A promessa de liberdade e restauração
da cidadania dos ex-escravos foi atropelada pela Era da
Segregação.

O que restou a fazer àquela primeira geração do pós-


Guerra Civil foi, muitas vezes, engolir seu orgulho e tentar
ao máximo educar seus filhos. Há uma história muito mal
contada dos esforços da geração que saiu da escravidão e,
munida de um otimismo único, multiplicou o número de
escolas, universidades para crianças que, como Du Bois e
Dunbar, escreverem a nova literatura e filosofia daquele país.

Um neto dessa geração, James Baldwin, comentou o


período da seguinte forma:

Tenho grande respeito por aquele exército anônimo de negros


e negras que caminhava por ruas contíguas e entravam por
portas dos fundos, dizendo “sim, senhor” e “não, senhora” a
fim de adquirir um novo telhado para a escola, novos livros,
19  Reyna Eisenstark. Abolitionism. New York: Chelsea House, 2010, p. 35.

143
Paul Laurence Dunbar
————

um novo laboratório de química, mais camas para seus


alojamentos, mais alojamentos. Não lhes agradava ter que
dizer “sim, senhor” e “não, senhora”, mas como o país não
tinha pressa para educar os negros, esses homens e mulheres
negras sabiam que havia um trabalho a ser feito; então,
enfiaram o orgulho em seus bolsos para permitir que isso
acontecesse.

[...] No entanto, devemos evitar o equívoco europeu: não


devemos supor que, por causa dessa situação, os modos e
percepções da gente negra difere tanto assim dos dos brancos,
e que por isso ela seria racialmente superior. Tenho orgulho
dessa gente não por causa de sua cor, mas por causa de sua
inteligência, de sua fortitude espiritual e de sua beleza. O
país também deveria ter orgulho dela, mas, verdade seja dita,
muita gente nem sabe de sua existência.20

De certa forma, esse foi o caso de Dunbar – forçosamente


servil às regras rígidas dos literatos americanos –, e da mãe de
Dunbar, que, desconfiada do ensino que se oferecia às crianças
do pós-Escravidão, alfabetizou-se exclusivamente para poder
ensinar o filho pequeno a ler e escrever. Nessa atitude, e no
esforço e preocupações de Berry e Fannie Hamilton reside
o lado resgatável do que Baldwin chamou de “fortitude”
característica de uma parcela da população.

O outro lado, porém, dos espectros regressivos do passado,


parece nunca ter cessado de revisitar nossa própria época, e
aqui Dunbar se faz mais atual que nunca. Se em 1902, retrata
a prisão arbitrária da personagem Berry Hamilton, 2020 é
o ano em que George Floyd tornou-se ícone dos abusos da
polícia assassina e da arbitrariedade da justiça no tratamento
de não-brancos, não apenas nos EUA mas em todo mundo
Atlântico que fracassou em acertar as contas com seu passado
escravista. Obviamente, isso vale para o Brasil.

20  James Baldwin. Down at the Cross: Letter from a Region of My Mind.
In: The Fire Next Time. London: Michael Joseph, 1963, p. 107-108

144
Posfácio

————

Paul Laurence Dunbar faleceu em 1908 aos 33 anos


de idade – alcoólatra, divorciado, na companhia da mãe
que sempre zelara por si. Ao escrever O Joguete dos Deuses,
apresentou-nos um quadro de problemas ainda sem resolução
do futuro americano; ao trazermos seu romance pela primeira
vez para o português, nossa tarefa primordial é a de reconhecer,
como David Bradley sugeriu, que

fracassamos em resolver o problema do século XX [i.e. o


problema do racismo e do fascismo] durante o século XX, e
agora estamos tendo que lidar com o problema em sua forma
metastática. A notícia boa é que podemos resolvê-lo, pois
agora sabemos, cientificamente, que, como Ralph Ellison disse,
“não há genes para a cultura”. Nós sabemos, como só restava a
Du Bois ansiar, que “raças, que se deixam definir pelos olhos
do historiador e do sociólogo, não podem ser definidas com
exatidão de nenhuma outra forma”. Sendo assim, a questão do
século XX é: até quando diferenças raciais continuarão a dar
forma (e inevitavelmente a limitar) nosso pensamento sobre
cada um dos artefatos da civilização humana?21

21  Bradley, Factoring Out Race…

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