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Eleanor

Marx
y
Escritos
reunidos
Relatos sobre o movimento socialista europeu
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Rússia subterrânea
Fonte: “Underground Russia”, Progress, edição de agosto de 1883, p. 106-110
e de setembro de 1883, p. 172-176. As duas passagens a seguir foram publi-
cadas de forma truncada, adicionadas à biografia de Eleanor Marx por
Yvonne Kapp, que faz a observação de que foi o próprio Stepniak que
esfaqueou o general Mesentzeff até a morte; a data mencionada de 13 de
março de 1881 foi a do assassinato do Czar.

“O Estado e a forma de seu governo são claramente tirânicos, já que


se voltam totalmente ao privilégio do Príncipe, e isso da maneira
mais deliberada e bárbara.” A Commonwealth de Russe é a forma
de governo aplicada pelo imperador Russe (comumente chamado
de Imperador de Moskauia), junta dos costumes e modas do povo
daquele país. —Giles Fletcher; 1591.

E ra de se esperar que um livro sobre o movimento revolucionário russo,


escrito por Stepniak e com um prefácio vindo da pena de Lawroff,
despertasse o maior dos interesses. O pequeno volume que Stepniak,
modestamente, chama de uma série de “Esboços e Perfis” é na realidade
uma obra do maior valor histórico, pois embora escrito por um niilista
ativo, está cheio de justa apreciação e reflexões críticas. É de se esperar
que todos os historiadores romanceadores e pretensos romanceadores
históricos; todos os velhos estadistas emotivos e de coração mole, mais
os sacerdotes distribuidores de panfletos que visitam prisões, irão lê-lo
antes de voltarem a expressar suas opiniões sobre a Rússia e a condição
do povo russo.

Em sua excelente “Introdução”, Stepniak traçou, de maneira magistral,


a história do movimento socialista – ou, como é indevidamente chamado
– do “movimento niilista” desde seu início em 1861 até sua última fase,
a fase “terrorista” de hoje. Tal introdução, que consideraremos aqui em
detalhe, é seguida de uma série de “Perfis” – na verdade, retratos muito
bem-acabados – de alguns, apenas de alguns (uma pena!) dos mártires
e heróis notáveis ​​do movimento socialista na Rússia. O livro termina
com uma exposição muito lúcida e habilidosa da posição atual dos dois
inimigos: os representantes do despotismo e os representantes da liberdade,
adversários terríveis que “três vezes se encontraram cara a cara”, o Terrorista
que “depois de cada derrota, surge mais ameaçadora do que antes”, até
que “o imperador onipotente caia moribundo no chão”. Mas se Stepniak
mostrou com bastante clareza qual é a condição atual do povo, ele não
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mostrou o que o “grande” e “nobre” feito de Alexandre, a emancipação


do servos, realmente significou – na verdade, isso fugia de seu escopo. E
como – perguntam o estadista emotivo e os clérigos sensíveis – como as
pessoas poderiam ser tão destituídas de todo o senso de gratidão a ponto
de assassinarem, com tanta vilania, seu Libertador, o Emancipador, que
concedeu liberdade a milhares? Antes de procedermos a um exame mais
detalhado do trabalho de Stepniak, vejamos qual era realmente a posição
de Alexandre em relação aos servos.

A chamada emancipação dos camponeses russos foi iniciada pelo czar


Nicolau. O Czar sempre foi, e ainda é, o maior proprietário de terras da
Rússia. Em 1845, os domínios do Estado registrados como pertencentes
à parte europeia do Império totalizavam 261.824.541 desjatines, ou seja,
mais de 30.000 milhas quadradas – um desjatine tem pouco mais de
um hectare –; os camponeses do Estado somavam mais da metade da
população rural. Os últimos eram, na realidade, servos, embora fossem
homens legalmente livres, e a comuna fosse melhor preservada entre
eles do que entre o resto do campesinato. O dirigente da nação não se
comportava como um senhorio, mas como um gendarme, um coletor
de impostos e o destilador privilegiado. Nesse domínio, onde seu alcance
não era controlado, Nicolas iniciou a campanha da autocracia contra a
nobreza latifundiária. Ele – nunca seguramente suspeito de “reinar como
um patriarca”, nem de ser “moderado e justo” –, no entanto, começou
suas reformas em 1837 com uma inédita fraseologia humanitária. Mas
ele não estava só fingindo. Naquela época, a receita estatal de um vasto
domínio era quase nula; já que não se realizava praticamente nenhuma
vistoria, a nobreza latifundiária, como sempre fizera no passado, invadia
constantemente as terras e florestas da coroa.

Isso não é tudo. Os chefes de polícia locais, os isparniks, eram


escolhidos por um comitê de nobres, cujos interesses eram tão antagô-
nicos aos da coroa quanto os interesses dos camponeses subjugados à
coroa. Cuidaram para que na repartição das incumbências do tio, como
o recrutamento, aquartelamento de soldados, construção de estradas, etc.,
o fardo principal não recaísse sobre os próprios camponeses, mas sobre os
do Estado. Mediante uma porção de ukases [éditos do czar], de 1838 até
quase a época da guerra da Crimeia, Nicolas alterou toda a administração.
Ele fez uma vistoria das terras; requiriu parte das propriedades usurpadas;
restaurou, à sua maneira, a comuna rural então em plena decadência;
atribuiu aos camponeses – ou seja, todos os membros do sexo masculino
registrados no censo e oficialmente chamados de “almas de reserva”, por
estarem sujeitos ao serviço militar – quinze desjatines no menos; dez deles
nos distritos mais populosos, além da floresta e das paragens sem cultivo,
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aparelhos indispensáveis ​​na economia rural russa. O obrok (tributo em


dinheiro) baseava-se no valor das terras vistoriadas e, nos locais onde a
quotas dos camponeses estava abaixo da média oficial, a transmigração,
quando solicitada, era estimulada por auxílios do Estado.

Com isso considerado, seria um delírio supor que desde então os


camponeses do Estado viveram em um “país da cocanha”, embora sua
situação seja deveras vantajosa em contraste com a que Nicolas creu ser
necessário impor a seus servos, logo antes da Guerra da Crimeia, para
emitir um novo édito, garantindo à nobreza latifundiária que as reformas
na situação dos camponeses da Coroa não tinham a intenção de infringir a
lei imemorial e fundamental do Império Russo, por força da qual somente
a nobreza teria direito à propriedade fundiária .

Isso, aliás, prova quão curta é a memória de pessoas nobres; de fato,


foi somente sob o domínio da dinastia Romanoff que a maior parte da
nobreza tornou-se (por meio de ukase) proprietária privada das terras
camponesas, e os próprios camponeses foram convertidos de homens livres
em servos, com uma forte mescla de escravidão real, com toda aquela
coisa de venda de gente para fora da terra, etc. As grandes insurreições
camponesas sob Stenka Rezina, durante a segunda metade do século XVII,
e de Pougatcheff no tempo de Catarina II, foram as respostas “terroristas”
às inovações benevolentes dos Romanoff.

Alexander II hesitou seis anos antes de estender seu Manifesto de


Libertação de 1861 aos camponeses do Estado. Ele melhorou o intervalo
aumentando seu obrok em um rublo por desjatine de território, para não
falar de outros impostos extras, pagos, em conjunto, com o resto dos
camponeses. Simultaneamente, os fundos de suas caixas de poupança,
acumulados durante mais de vinte anos e mantidos sob custódia do
governo, foram simplesmente pilhados. Além disso, toda a mudança se
limitou a entregar aos camponeses os títulos de propriedade das terras que
ocupavam de fato, com a condição de que pagassem seu obrok durante
quarenta e nove anos. Embora eles tenham iniciado sua nova carreira sob
condições muito precárias, é impressionante examinar o estado geral do
campesinato russo, pela diferença entre os ex-camponeses do Estado e os
ex-servos dos latifundiários – os primeiros possuem mais terras e pagam
muito menos impostos. Os admiradores de Alexandre deveriam olhar
para cada um desses cenários – um dos emancipados do déspota severo,
o outro de seu filho “moderado e justo”. Nicolas também fizera alguns
esforços débeis para interferir diretamente na questão da servidão. Por
ukase de 2 de abril de 1842, ele “permitiu” aos proprietários que mudassem
o estado de coisas existente por meio de um contrato livre para com seus
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camponeses. Então retornou ao mesmo tema em ukases de 1841, 1847


e 1848, mas foi tudo em vão. Finalmente, por decreto de 3 de março
de 1818, permitiu que os servos comprassem terras. A emancipação dos
servos havia se tornado uma necessidade moral após o fracasso da Crimeia.

Os ocidentais olhavam apenas para o campo de batalha, mas os russos


viram com seus próprios olhos as massas incomparavelmente maiores de
tropas, vindas de todos os cantos do imenso Império, nunca chegando
ao teatro de guerra, pereceram miseravelmente pelo caminho – vítimas
inglórias da incompetência administrativa e da corrupção. O sistema
‘punho de ferro’ de Nicolas faliu antes de sobrevir a primeira emergência
séria. Simultâneas comoções entre os camponeses e a revolta dos intelec-
tuais nas camadas mais altas da sociedade assinalavam a servidão como
a pedra angular do antigo sistema e a verdadeira razão de seu colapso. A
estranha circunstância da mentalidade popular deixa-se deduzir com base
no boato amplamente difundido entre os servos de que sua emancipação
era uma das cláusulas do Tratado de Paz ditado em Paris por Napoleão
III, alguém que eles vez e outra confundiam com Napoleão I. Nenhum
czar, por mais forte que fosse, poderia ter resistido a essa maré. Ele ficaria
muito feliz em fazer de seus nobres os bodes expiatórios dos pecados
acumulados pelos autocratas.

Havia, no entanto, um departamento particular onde Alexandre II


poderia ter dado todo o alcance à sua própria magnanimidade. Refiro-me
aos camponeses appenage – isto é, os camponeses estabeleceram-se nos
domínios privados da família Imperial; seus domínios totalizavam
7.528.312 desjatines e cerca de um milhão de chefes de família. Tudo o
que ele fez foi assegurar a renda dinástica no caso de qualquer perda, e
colocar essas pessoas em uma posição muito inferior à dos camponeses
da coroa.

Falei da necessidade moral da abolição da servidão; se Nicolau, porém,


já sentia que o interesse da coroa seguia aqueles caminhos, qualquer
outra dúvida sobre o assunto tornou-se impossível depois da Guerra da
Crimeia. A guerra deixou para trás cofres públicos exauridos, o papel-
-moeda depreciado e atrasos cada vez maiores dos impostos diretos, que
recaíam apenas sobre os camponeses e trabalhadores em geral. O que se
desejava era o poder de aplicar livremente o golpe da taxação, fazendo
do governo o coletor de impostos. Isso era impossível sob um estado de
servidão em que os proprietários de terras seriam os responsáveis ​​pelos
impostos de seus servos. A abolição da servidão, ademais, exigiria que
os russos evocassem instituições rurais – isto é, conselhos provincianos
e distritais (Zemstwo) eleitos por nobres e camponeses. Esses órgãos já
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serviram, de fato, a dois propósitos: por um lado, uma boa parte dos gastos
do governo central com sua administração de províncias e distritos foi
tirada de seus ombros sob o pretexto da descentralização e autogerência:
até então, esses órgãos se tornaram meramente coletores de impostos dos
governos provincianos, sem qualquer redução dos impostos gerais. Por
outro lado, o governo central concedeu-lhes o privilégio deveras nobre
de tributar livremente seus constituintes para a promoção do bem-estar
público – a fim de fundar escolas, hospitais e outras necessidades da vida
civilizada, das quais até então estavam totalmente desprovidos. Por fim e
não menos importante, para colocar o autocrata em pé de igualdade com
os governantes continentais, a criação de um Banco do Estado tornou-se
inevitável – e isso só poderia ser alcançado pelo esquema peculiar de
emancipação dos servos.

(Isso é só para mencionarmos os interesses fiscais e financeiros).

As considerações militares pesaram ainda mais aos olhos do autocrata.


A guerra da Crimeia deu o golpe final na desajeitada velha organização
do exército, que consistia em um exército permanente formado pelo
campesinato – os guardas servindo por vinte e dois anos e as demais
tropas, por vinte e cinco anos. Com tal tempo de serviço, estava fora de
questão aumentar suas fileiras. Isso foi plenamente compreendido pelo
governo, que, portanto, estendeu cada vez mais as colônias de cossacos
por todo o império – um suplemento irregular do exército permanente e
independente dele. Permitam-me observar en passant que, embora agora
estejam fundidas no recrutamento geral, essas colônias, que totalizam
2,25 milhões de pessoas, foram encarregadas de 54.605.187 desjatines,
uma área maior do que aquela possuída pelos vinte e dois milhões de
ex-servos, e não muito menos do que o dos antigos camponeses da coroa!

(Um exército de elementos tão heterogêneos estava bastante desatu-


alizado em relação aos outros exércitos continentais, especialmente do
exército prussiano, o ideal de Alexandre)

Mas o serviço obrigatório geral não era apenas impossível enquanto


o camponês continuasse sendo propriedade de seu senhorio; não podia
ser estendido às outras classes enquanto o serviço militar – equivalente,
na verdade, à servidão penal vitalícia – fosse o estigma da servidão. O
camponês tinha de se tornar um homem nominalmente “livre” antes
que os outros russos nominalmente “livres” pudessem ser alistados a seu
lado. Assim, se Pedro, o Grande, teve que consolidar a servidão para criar
um exército permanente, Alexandre II, sob condições bastante diversas,
teve de aboli-la ––– isso para introduzir o alistamento obrigatório geral.
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Por fim, é evidente que para transformar cerca de metade do povo


russo de súditos mediados em súditos diretos do czar e, simultaneamente,
aniquilar a independência relativa da nobreza latifundiária, havia apenas
uma maneira – abolir a servidão.

Certamente então, sob essas condições, o povo russo não deve mais
gratidão a Alexandre por sua “emancipação” do servo do que o povo inglês
ao Rei John por assinar a Magna Carta.

Não, ainda menos, pois enquanto a assinatura extorquida de John


conferiu algumas bênçãos ao povo inglês, Alexandre apenas contribuiu
para a já horripilante miséria do povo russo – apenas tornou suas correntes
mais pesadas, seus fardos mais insuportáveis.

II
“A Rússia sob o governo de Alexandre II, longe de ter sido uma
época de progresso e reformas, os últimos anos da Emancipação
foram, sob todos os pontos de vista, um período de confusão, reação
e recuo. Talvez nunca um governo tenha se mostrado tão irresoluto,
tão divergente consigo mesmo, não sabendo nem concluir e nem
destruir o que havia começado. — Anatole Leroy-Beaulieu. Revue
des Deux Mondes,” 1882.1

Em meu último artigo, tentei mostrar que a imensa dívida de gratidão


que a Rússia supostamente deve ao Czar Alexandre II existe apenas na
imaginação fervorosa de certos “europeus ocidentais”. Uma vez que
admitamos isso, poderemos não apenas simpatizar mais profundamente
com os revolucionários russos, mas também compreender melhor seu
curso de ação e a razão pela qual a primeira manifestação do Movimento
Niilista começou em 1860 – ou seja, imediatamente após aquela enorme
farsa, a Emancipação.

A palavra “Niilismo” é invenção do romancista Turgueniev, “assumida”,


diz Stepniak, “do orgulho partidário daqueles contra quem foi empre-

1 Em francês no original: “La Russie sous Alexandre II , loin d’avoir été une époque
de progrès et de reformes, les dernières années de l’émancipation ont été à tous égards
une période de confusion, de réaction et de recul. Jamais peut-être une gouvernement
ne s’est montré aussi irresolu, aussi en désaccord avec lui-meme, ne sachant ni achever
ce qu’il avait commencé, ni detruire ce qu’il avait ebauché.” [Nota da tradução]
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gada”. Agora, é usada para designar um movimento totalmente diferente


daquele que o termo inicialmente designou. A agitação niilista original
não tinha objetivos políticos. Foi “um movimento filosófico e literário
[...] agora absolutamente extinto, e apenas alguns traços dele sobraram”.
Ainda assim, foi o gérmen de onde surgiu o outro movimento, ainda
maior, que, portanto, merece nossa atenção. “Niilismo foi uma luta pela
emancipação da inteligência de todo tipo de dependência”; seu “princípio
fundamental era o do individualismo absoluto. Foi a negação em nome da
liberdade individual de todas as obrigações impostas ao indivíduo [...] O
niilismo foi uma reação apaixonada e poderosa, não contra o despotismo
político, mas contra o despotismo moral que pesa sobre a vida privada e
interior do indivíduo”.

A primeira batalha foi pela liberdade religiosa e venceu-se facilmente.


Todo russo com cultura é ateu, e “uma vez que este grupo de jovens
escritores, munidos das ciências naturais e da filosofia positiva [...] foi
impelido ao ataque, o cristianismo caiu como uma velha cabana decadente
que só permanece de pé porque ninguém encosta nela”. É difícil dar uma
ideia do entusiasmo apaixonado deste “bando” caso não se conheça os
russos. Quando Zaizeff disse que um niilista “teria dado sua vida por
Darwin”, isso não foi um exagero ridículo ou mera figura de linguagem.
Foi a declaração clara de um fato evidente. Mas todo esse fanatismo era
desnecessário. “Não havia ninguém para defender os altares dos deuses”,
e a “batalha foi vencida quase sem problemas [...] definitivamente, foi
vencida de modo decisivo”. Mas, embora vencida com facilidade, foi uma
batalha que valeu a pena travar; Stepniak está certo em apontar que ganho
indescritível esse ateísmo absoluto foi para o movimento revolucionário
moderno.

A liberdade religiosa não era tudo, contudo, pelo qual os niilistas


lutaram. Niilismo reconheceu os direitos iguais de mulheres e homens.
Aqui a luta foi longa e acirrada, pois a “vida familiar bárbara e medieval”
da Rússia a atrapalhou. Mesmo assim, mais uma vez, a vitória foi obtida.
Em nenhum outro país as mulheres das “classes educadas” se encontram
no mesmo nível que os homens de forma tão plena.

Conquistadas essas vitórias, os niilistas começaram a se perguntar:


o que, afinal, eles haviam alcançado? O camponês, prostrado à terra sob
o tacão de ferro do senhorio e do cobrador de impostos, estava sofrendo
menos? Estariam os operários da loja e da fábrica sendo menos escravizados
por seus senhores? No melhor dos casos, não teria o niilismo conferido
apenas novos privilégios a uma classe já privilegiada? O movimento atingiu
o estágio em que a resposta para a questão desesperada O que fazer? foi
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provida pela Associação Internacional dos Trabalhadores [a Primeira


Internacional], e a heroica Comuna de Paris mostrou-lhe o caminho.

Agora estamos no ano de 1871. Mediante invenções maravilhosas com


que os homens dos dias modernos podem ser chamados de onipotentes,
põe-se diante dele (do niilista) o cenário de uma cidade imensa que se
ergueu em prol de uma grande ideia: a de reivindicar os direitos do povo.
Ele segue com grande interesse todas as vicissitudes do terrível drama
que se desenrola nas margens do Sena. Vê o sangue jorrar; ouve gritos
agonizantes de mulheres e crianças massacradas nos bulevares. Mas pelo
que estão morrendo? Por que estão chorando? Em prol da emancipação
do trabalhador; para a grande ideia social!” O niilista agora sabia “o que
fazer”. Ele iria para o meio do povo, faria parte do povo, trabalharia ao seu
lado e lhe pregaria o novo evangelho do socialismo, como os discípulos
de Jesus fizeram. O que lhe importa se o assassino do governo puser as
mãos nele? O que são para ele o exílio, a Sibéria, a morte? Preenchido
por sua ideia sublime, [....] ele desafia o sofrimento, e encontraria a morte
com um olhar de entusiasmo e um sorriso de felicidade)”. Assim, surgiu
o movimento de propaganda socialista de 1872-74, um movimento que
apresentou um contraste total com o de 1860-70; no entanto, por uma
estranha ironia, embora não tão incomum, o movimento posterior veio
a ser conhecido pelo nome do anterior.

Na segunda parte de sua introdução, Stepniak retraça o crescimento


desse segundo movimento. Entre as causas que levaram a juventude russa
a aceitar tais princípios revolucionários, nenhuma foi mais poderosa
do que os anos de reação feroz que seguiram à insurreição polonesa de
1866, uma reação que “varreu tudo o que ainda mantinha a aparência de
liberalismo” e preparou caminho para a propaganda socialista iniciada em
1872. Os jovens rapazes e moças que estavam estudando em Zurique e
foram convocados de volta para casa por meio de Ukase, algo tão estúpido
quanto foi brutal, acabaram inflando as fileiras do partido revolucionário
em 1873. A respeito do efeito imenso, indescritível dessa “propaganda”,
Stepniak diz: “Nada parecido se viu antes ou desde isso. Tratou-se de
uma revelação, não apenas de propaganda. Inicialmente, podia-se retraçar
qual livro ou indivíduo levou tal e tal pessoa a se unir ao movimento;
mas depois de algum tempo, isso se inviabilizou. Trata-se de um clamor
poderoso que se ergueu ninguém sabe de onde, e invocou os mais ardentes
a realizarem o grande trabalho de redenção do país e da humanidade. E
esses mais ardentes, trazendo tal clamor, ergueram-se, transbordando de
pesar e indignação ante suas vidas anteriores – eles abandonaram suas casas,
riquezas, honras, família, atirando-se no movimento com uma alegria,
um entusiasmo, uma fidelidade que se vivencia apenas uma vez na vida,
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e uma vez que se perdem, não pode mais ser encontrados”.

Apesar disso, não se tratava de um movimento político. Os “propagan-


distas” ainda não haviam aprendido que emancipação política é um passo
necessário em direção à emancipação social, e que seria tão provável trazer
a revolução social mediante sermões quanto seria possível estabelecê-la
mediante ukase imperial. Aquele foi um movimento nobre e belo, mas “em
contato com a dura realidade, foi destroçado como um vaso precioso de
Sèvres golpeado por uma pedra pesada e imunda”. Ele durou dois anos.
Trinta e sete províncias estavam, de acordo com circulares do governo,
“infectadas”. Em vez de fazer propaganda em meio às massas de toda a
Rússia, grupos de socialistas se uniram em certas províncias ou distritos.
Em um país tão vasto, esse plano estava fadado ao fracasso. O número
de prisões feitas é desconhecido. Em um único julgamento havia 193
prisioneiros. Em 1875, o movimento mudou um pouco de seu aspecto.
Os anos de 1877-78 marcam o fim do primeiro período revolucionário.
Em 1877, o julgamento dos Cinquenta de Moscou foi, por ordem do
governo, um julgamento público, já que se esperava espalhar terror no
coração da burguesia. Mas a habilidade dos prisioneiros que se reportaram,
seu heroísmo nobre e humilde, seu autossacrifício sem afetações, produ-
ziram o efeito exatamente oposto daquele esperado pelo governo. “Eles
são santos” foi a exclamação repetida, de vozes entrecortadas, daqueles
que estava presentes no memorial julgamento. O “julgamento dos 193”
no ano seguinte apenas confirmou essa impressão. Esses “santos”, porém,
eram de um tipo ideal demais para serem aptos para a batalha, e em seu
lugar apareceu um tipo tão nobre quanto eles, embora mais forte – o do
terrorista.

Apesar de todo o sacrifício de si heroico e devoção, os socialistas


russos estavam prestes a admitir que fracassaram, e começaram a entender
que não as palavras, mas os atos, seriam necessários para combater seu
inimigo. “Não obtivemos sucesso porque falávamos demais”, eles disseram.
“Ajamos” tornou-se o novo grito de guerra; e com essa nova ideia, foram
feitos esforços para organizar movimentos de insurreição. “Uma revolução,
porém, assim como um movimento popular, é algo que cresce organi-
camente, e não pode ser forçada”, de forma que os revolucionários logo
abandonaram as séries de “manifestações” que haviam planejado e que
seriam impossíveis em um país onde cidades de 10.000 ou 15.000
habitantes formam apenas quatro, cinco por cento da população. Mas
ao passo que tais “manifestações” cessaram, as perseguições por parte do
governo intensificaram. Não apenas os prisioneiros eram sujeitados a todo
tipo de tortura – dos 193, setenta e cinco “morreram” ou enlouqueceram
na prisão durante as investigações –, como também “aquilo que é feito
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livremente em qualquer país europeu foi punido, naquele contexto,


como o assassinato é. Dez, doze ou quinze aos de trabalhos forçados
eram designados em função de dois, três discursos públicos [...] ou por
um único livro lido ou emprestado. De vez em quando, por meios que
só os presos sabem encontrar, chegavam algumas cartas desses homens
enterrados vivos, escritas em um pedaço de papel de embrulho para tabaco
ou velas; nelas descreviam a crueldade vil e gratuita que seus carcereiros
infligiram sobre eles [...] [Isso] despertou nas mentes mais gentis e ternas
pensamentos sanguinolentos, de ódio e de vingança”.

O movimento terrorista começou em 24 de janeiro de 1878, quando


Vera Sassulitsch atirou no governador Trépoff. Vera em si não era uma
terrorista – ela agiu para vingar o homem que Trépoff havia insultado e
torturado, e “para chamar a atenção da Rússia e do mundo” para a condição
dos presos políticos. A história de Vera Sassulitseh é tão conhecida que
não precisa ser recapitulada aqui. Acolhido pelo júri – em um veredicto
aprovado pelo público e pela imprensa –, o governo fez uso de todos os
meios para ter Vera novamente sob seu poder. Com um desrespeito cínico
pelo sentimento público, Alexander ostensivamente visitava Trépoff, de
modo que até os “liberais” – ou aqueles entre eles que eram sinceros –
apostaram suas fichas no lado dos revolucionários. Longe de tentar uma
conciliação, o governo, com insolência temerária, buscou apenas agravar
a situação do povo. Forçou a ideia de que o Partido Socialista seria um
sistema meramente acidental; para chegar a um objetivo que, no fundo,
seria apenas os meios para um fim. Cinco meses após a absolvição de Vera
e sua fuga para a Suíça, “os terroristas, ao condenarem à morte o general
Mesentzeff, o chefe da polícia, [...] corajosamente bateram no rosto da
autocracia com sua luva”. Desde então, o braço vingador dos terroristas
atacou com frequência – seu maior golpe foi em 13 de março de 1881.
Qual será o fim disso tudo? Quem pode saber? Certamente, o déspota
covarde, escondendo-se no meio de seus soldados e espiões, tremendo a
cada instante por sua vida miserável, está vivendo uma existência mais
terrível do que aqueles camponeses infelizes ou que suas vítimas torturadas.

É com um sentimento de pesar que devo passar para a seção de


“Perfis” esboçada por Stepniak em tons tão adoráveis, e ainda assim tão
fiéis. Temos vontade de contar e recontar as histórias de Stepanowitsch2 de
Lissogub, de Vera Sassulitsch e, acima de tudo, da mais nobre, mais pura e

2 É de lamentar que o tradutor de inglês de Stepniak tenha permitido que os nomes


dos socialistas aparecessem em sua forma italiana mutilada. Alguns termos são
alterados de forma a serem quase irreconhecíveis, como por exemplo, Deutsch vira
Deuc. [Nota da autora]
Relatos sobre o movimento socialista europeu
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maior dentre eles — Sophie Peroffsky. Porém, devo remeter meus leitores
e minhas leitoras a Stepniak para conferirem as histórias e os “Esboços”
que lidam com certos episódios revolucionários.

Esse livro hábil e valoroso conclui com um interessante resumo de


todo o movimento, no qual é conferido o relato mais lúcido das teorias e
doutrinas do Partido Revolucionário Socialista. A isso é adicionada uma
tradução do admirável discurso ao czar Alexander III por parte do Comitê
Executivo que se seguiu ao 13 de março. Todos aqueles que creem que os
terroristas russos são ou monstros sanguinolentos ou sonhadores enlouque-
cidos e fanáticos, farão bem em estudar o documento em questão. Ele traz,
ao mesmo tempo, a justificação de suas medidas e uma exposição de suas
demandas tão moderadas. Nele, o Executivo ofereceu a Alexander termos
de paz... Que o czar conceda apenas uma reforma em pequena medida,
que ele apenas dê ao seu povo “liberdade de imprensa, de discursar em
público, de reunião pública e discursos eleitorais” – os terroristas estarão
prontos para depor as armas. “E agora”, eles disseram, “a Vossa Majestade
decide. A escolha é vossa. Nós, de nosso lado, só podemos expressar a
esperança de que vosso julgamento e vossa consciência vos sugerirão a
única decisão que pode estar de acordo com o bem-estar da Rússia, com
vossa própria dignidade e com vossos deveres para com o país”.

E o czar, por fim, fez sua escolha. Sua resposta for enforcar Sophie
Peroffsky e seus companheiros aprisionados, exilando e prendendo
milhares.

Mas esse não é o fim.


Eleanor Marx

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