Você está na página 1de 4

humanidades História y

Escravo e
abolicionista
Depois de ter sido vendido pelo pai, Luiz Gama transformou
seu drama pessoal em luta pela Abolição e pela República

Eduardo Nunomura

L
uiz Gama foi um personagem tão ex- complexas que a de um pesquisador neutro dian-
traordinário quanto complexo, a come- te de seu objeto. “Às vezes, minimiza-se, quando
çar por suas qualificações: abolicionista, não se invisibiliza, o trabalho dos pesquisadores
republicano, poeta, advogado, jornalis- negros a respeito de personagens históricas ne-
ta e maçom. Pertenceu a uma geração gras que afirmaram esta condição”, afirma.
que preparou a derrocada do Segundo Império A contribuição de Ligia para a compreensão de
no Brasil, no século XIX. Com a pena e a oratória, Luiz Gama é ímpar. Ela organizou a reedição crítica
embrenhou-se na luta contra os conflitos da época, das Primeiras trovas burlescas & outros poemas de
tais como as relações entre Igreja e Estado, Monar- Luiz Gama (Martins Fontes, 2000) e Com a pala-
quia e República, raça e nação. Tomava o partido vra, Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas
das causas libertárias e havia um sentido pessoal (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011). De
nessa escolha: Gama foi escravo, que tinha sido formação em letras, com ênfase na área de língua
vendido por seu pai quando criança. Quase adulto, e literatura francesa, Ligia tomou conhecimento
conseguiu conquistar a liberdade. Autodidata, ex- do abolicionista quando realizava pesquisa na Sor-
traiu de sua dramática e épica história de vida força bonne sobre a literatura negra no Brasil entre 1987
e obstinação para libertar mais de 500 escravos. e 1988. Gama era ninguém menos que o pioneiro.
Esse personagem batiza logradouros por todo o Mas diante da fragmentada documentação sobre
país, sobretudo em São Paulo, onde foi maior a sua o poeta, e já mirando um doutorado, a solução foi
atuação, mas ainda é pouco conhecido. Conhecê- percorrer bibliotecas, centros de estudos e até
-lo, estudá-lo e iluminá-lo tem sido uma tarefa sebos de livros. O que encontrou não foi pouco.
de pesquisadores como Ligia Fonseca Ferreira, As Primeiras trovas burlescas de Getulino foram
Militão Augusto de Azevedo

professora da Universidade Federal de São Paulo publicadas em 1859, em São Paulo, àquela altura
(Unifesp). Autora de uma tese de doutorado sobre uma província de poucos leitores, escassos escrito-
a vida e obra do ex-escravo defendida na Univer- res e parcas tipografias e livrarias. O livro continha
sidade de Paris III - Sorbonne Nouvelle, Ligia é 22 poemas de sua autoria e três do político e pro-
negra e assume a responsabilidade de estudar fessor de direito José Bonifácio, o Moço. A escolha
um personagem com quem guarda relações mais do pseudônimo “Getulino”, derivado de “Getúlia”,

72 z MAIO DE 2014
pESQUISA FAPESP 219 z 73
No periódico Cabrião,
território do norte da África, já indicava o posiciona- tuguesa e membro de uma importante família Luiz Gama empunha
a bandeira dos
mento de um autor de origem africana, adentrando baiana. O abolicionista jamais revelou o nome
liberais dissidentes
o restrito círculo de letrados, privilégio de brancos. do pai que o vendeu como escravo. Foi entregue que não aceitam a
Dois anos mais tarde, ele reedita a obra no Rio, na ao negociante e contrabandista Antônio Pereira República sem o fim
mesma gráfica que imprimia romances de José de Cardoso, que, sem conseguir revendê-lo, acabou da escravidão; no
destaque, anúncio
Alencar. Na segunda edição, “correcta e augmen- ficando com o garoto de 10 anos. Gama apren-
em que ele oferece
tada”, publicou 39 poemas, dos quais 20 inéditos. deu a ser copeiro, sapateiro, a lavar e engomar, sua mão de obra
e a costurar. Sete anos mais tarde, conviveu com

N
o Brasil escravocrata, escrever e ser lido o estudante Antônio Rodrigues do Prado Junior,
eram duas formas de se manter próximo que lhe ensinou as primeiras letras. Em 1848, “ha-
do poder. Procure se colocar no lugar de vendo obtido de forma ardilosa e secretamente
um ex-escravo, no início dos anos 1860. Imagine provas inconcussas de sua liberdade”, segundo
então usar seus escritos para satirizar os políticos seu próprio relato, foge da casa de Cardoso.
e os costumes, parodiar as instituições arcaicas, Apenas dois anos antes de sua morte, em 25 de
criticar os “doutores” e trazer à tona os temas da julho de 1880, Luiz Gama envia carta a Lúcio de
corrupção, do preconceito racial, do embranque- Mendonça, um dos fundadores da Academia Bra-
cimento dos mulatos que renegavam as raízes sileira de Letras, revelando fatos inéditos de sua
e do anticlericalismo. Segundo a pesquisadora, biografia. Ligia encontrou esse documento na Bi-
Luiz Gama fez isso com essa obra. Ao publicar blioteca Nacional, no Rio. “É um dos poucos relatos
em 2000 uma versão compilada com a produção da vida de um ex-escravo no Brasil. Na história dos
poética integral do abolicionista, Ligia abriu um negros e das letras brasileiras, não há equivalentes
frutífero campo de estudos. das memórias de escravos, tão frequentes nos Es-
Luiz Gama nasceu em 21 de junho de 1830 em tados Unidos”, diz. Esse texto é fundamental para
Salvador, filho de uma africana livre, a “altiva” compreender como Gama se tornou uma voz in-
Luiza Mahin, e de um fidalgo de origem por- fluente nos movimentos abolicionista e republicano.

74 z MAIO DE 2014
A esse documento se soma uma carta anterior, Foi também proprietário e redator do semanário
de 26 de novembro de 1870, também na Bibliote- político e satírico O Polichinelo (1876). A impren-
ca Nacional e publicada por Ligia no livro Com a sa e a maçonaria foram fundamentais para o ati-
palavra, Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, má- vismo de Gama, porque lhe franquearam espaço
ximas – obra que traz uma seleção de mais de 40 para defender os ideais republicanos e o apoiaram
textos de Gama, vários inéditos, e também cerca na libertação dos escravos. No século XIX havia
de 30 ilustrações, além de seis ensaios da autora. outros negros abolicionistas, como os jornalistas
O destinatário da carta era José Carlos Rodrigues, Ferreira de Menezes e José do Patrocínio ou o
fundador de O Novo Mundo, primeiro periódico em engenheiro André Rebouças, mas nenhum deles
português publicado nos Estados Unidos. O abo- vivenciou o drama da escravidão. Pode-se com-
licionista fala sobre o movimento republicano no parar o brasileiro só a abolicionistas americanos,
Brasil e sobre a loja maçônica América, fundada por como os ativistas Frederick Douglass, autor de
ele e um grupo de liberais que contava, entre seus The life of an american slave (1845), ou Booker
membros notáveis, com Rui Barbosa e Joaquim T. Washington, autor de Up from slavery (1901).
Nabuco. “Asseguro-te que o partido republicano,

G
graças à divina inépcia do sr. D. Pedro II, organiza- ama manifestava admiração pelos Estados
-se seriamente em todo o império”, escreveu. Mas, Unidos, para ele “o farol da democracia uni-
segundo Ligia, defendia que a instauração de uma versal”. Um modelo exemplar: república
República deveria vir acompanhada da Abolição. federativa, de cidadãos livres e iguais, e ancorada
A convicção era tamanha que ele abandonou a nos ideais iluministas da liberdade, igualdade e
Convenção de Itu (1873), ao encontrar cafeicul- fraternidade. Incomodava ao abolicionista o fato
tores contrários à emancipação dos escravos na de que o Brasil se mantinha como única monar-
fundação do Partido Republicano Paulista. quia das Américas e última nação escravagista do
Naquele momento, Luiz Gama já era uma per- Ocidente. A pesquisadora não deixa de questionar,
sonalidade. Em 1864, havia fundado, ao lado do no artigo “Representações da América nos escri-
caricaturista italiano Angelo Agostini, o Diabo tos de Luiz Gama”, a ser publicado na Revista de
Coxo, primeiro periódico humorístico ilustrado Estudos Afroasiáticos, a ausência de alusões por
da capital paulista. Dois anos depois, colaborou parte de Gama aos conflitos raciais e à segregação
no semanário Cabrião, também com Agostini e dos negros nos Estados Unidos pós-escravista.
Américo de Campos. Em polêmicos artigos, cri- Ligia chama atenção para o fato de ele jamais
ticava com veemência o regime escravocrata e ter mencionado Joaquim Nabuco em seus escritos,
passava a sofrer perseguições políticas. Sua ira se numa recíproca quase verdadeira. Isso decorreria
voltava contra o uso abusivo do Poder Moderador do fato de que o também líder na luta antiescra-
e o próprio imperador vista era filho de Nabuco
dom Pedro II, cuja ima- de Araújo, ex-presidente
gem havia sido abalada da província de São Paulo
na Guerra do Paraguai e denunciado por Gama
(1864-1870). por sua conivência com
Em 1869, Luiz Gama a escravização ilegal de
obteve autorização pa- africanos. Gama, prova-
ra exercer a profissão de velmente cansado de es-
advogado em primeira perar pela libertação dos
instância, mesmo ano africanos, defendia a inci-
em que funda o Clube tação de um movimento
Radical Paulistano com popular, já que, para ele,
outros membros da Lo- se a insurreição é um
ja América. Com sólidos “crime”, a “resistência”
argumentos, Gama reve- afigura-se como “virtude
la a fragilidade do sistema judiciário. De acordo cívica”. Já Joaquim Nabuco estava convencido de
com a pesquisadora, além das críticas, tratou de que a Abolição deveria ser feita pela via parlamentar.
inovar no plano jurídico, como quando desenter- Luiz Gama morreu em 1882, antes de testemu-
fotos 1 Cabrião 2 Correio Paulistano

rou a Lei de 7 de novembro de 1831, que extinguiu nhar a libertação dos escravos e o fim do Impé-
o tráfico negreiro, para conseguir libertar africa- rio. Para a pesquisadora, ele foi poupado de ver a
nos comercializados depois dessa data. Em um República nascer de um golpe militar, constatar
processo de 1869, entrou em choque com um dos que os ideais de igualdade entre os homens não
principais juízes da capital, Rego Freitas, a quem foram aplicados e que a campanha imigrantis-
exigiu que “respeita[sse] o direito e cumpri[sse] ta tinha, entre seus propósitos, embranquecer o
seu dever, para o que é pago com o suor da nação”. Brasil para eliminar os traços da estigmatizada e
O discurso de Gama continua atualíssimo. incômoda presença africana no país. n

pESQUISA FAPESP 219 z 75

Você também pode gostar