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Ronald Hayman

NIETZSCHE
NIETZSCHE E SUAS VOZES

Tradução de
Scarlett Marton

Editora UNESP
© 1997 Ronald Hayman
Título original em inglês: Nietzsche. Nietzsche’^ Voices, publicado pela Phoenix, uma divisão da Orion Publishing Group Ltd.

© 1999 da tradução brasileira:


Fundação Editora da UNESP (FEU)
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil)

Hayman, Ronald, 1932-


Nietzsche: Nietzsche e suas vozes/Ronald Hayman; tradução de Scarlett Marton. - São Paulo: Editora UNESP, 2000. -
(Coleção grandes filósofos)

Título original: Nietzsche.


Bibliografia.
ISBN 85-7139-254-4
1. Filosofia alemã 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900
I. Título. II. Série.
99-3395 CDD-193

Índice para catálogo sistemático:


1. Nietzsche: Filosofia alemã 193

Editora afiliada:

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NIETZSCHE E SUAS VOZES

A menos que você creia em Deus, você não pode crer que Deus está morto: uma entidade que
nunca existiu não pode morrer. Nietzsche nunca afirmou, de modo inequívoco, acreditar que Deus
estava morto: ele estava falando pela boca de um louco num livro de 1882, A gaia ciência, escrito,
como a maior parte de sua obra, em segmentos descontínuos. A história fina e ambígua, que intitulou
“O insensato”, é virtualmente discreta.

Não ouvistes falar desse louco que, em pleno dia, acendia uma lanterna e corria pela praça do mercado, gritando sem
cessar: “Procuro Deus! Procuro Deus!” - E como lá se achavam reunidos precisamente muitos que não acreditavam em Deus,
ele provocou uma grande gargalhada. Então, Deus se perdeu? - dizia um. Perdeu-se como uma criança? - dizia outro. Ou
escondeu-se? Tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? - assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco
precipitou- se no meio deles e atravessou-os com o olhar. “Para onde foi Deus?” - gritou. “Quero dizer-lhes! Nós o matamos -
vós e eu. Nós todos somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como pudemos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja
para apagar todo o horizonte? O que fizemos quando separamos esta terra de seu sol? Para onde ela se movimenta agora? Para
onde nos levam os seus movimentos? Para longe de todos os sóis? Não estamos caindo sem cessar? Para trás, para o lado,
para a frente, para todos os lados? Existem ainda um acima e um abaixo? Não erramos como através de um nada infinito? O
espaço vazio não sopra sobre nós? Não faz mais frio? Não vem a noite e cada vez mais noite? Não é preciso acender lanternas
em pleno dia? Não ouvimos ainda o ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não sentimos ainda a putrefação divina? -
também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus permanece morto! E fomos nós que o matamos! Como nos
consolaremos, nós, os assassinos de todos os assassinos? O que o mundo possuía de mais sagrado e mais poderoso perdeu seu
sangue sob nossas lâminas, - quem lavará esse sangue de nossas mãos? Com que água poderemos purificar- -nos? Que
expirações, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não temos de
converter-nos em deuses, para parecermos dignos desse ato? Nunca houve ato mais grandioso - e quem nascer depois de nós
fará parte, por causa desse ato mesmo, de uma história superior a tudo o que foi a história até agora.” Aqui se calou o louco e
encarou outra vez os seus ouvintes; também eles se calavam e o olhavam com estranheza. Por fim, atirou ao chão a lanterna,
que se partiu em pedaços e se apagou. "Vim cedo demais”, disse então; “ainda não é chegado o meu tempo. Esse enorme
acontecimento ainda está a caminho e viaja - ainda não atingiu os ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de
tempo; a luz dos astros precisa de tempo; os atos precisam de tempo, depois de terem sido realizados, para serem vistos e
ouvidos. Esse ato está ainda mais distante dos homens que o astro mais distante - e no entanto foram eles que o
realizaram!”. (A gaia ciência, § 125)1.

É possível que a noção da morte de Deus tenha sido tomada de empréstimo do trabalho de
1834 de Heinrich Heine Sobre a história da religião e filosofia na Alemanha: “Nosso coração está
repleto de piedade temerosa. O velho Jeová prepara-se para a morte ... Ouvis o sino tocar? Ajoelhai.
Estão trazendo os sacramentos para um Deus agonizante”. Mas Nietzsche produziu mais do que uma
variação sobre um tema pouco original. Antes de apresentar o louco, ele declarou que o maior perigo
a que a humanidade fazia frente era “uma erupção de loucura - um arrebatamento em ouvir, sentir e
ver; prazer na falta de disciplina mental; alegria na humana desrazão”. Como um sonâmbulo que está
sujeito a cair ao acordar, temos de continuar sonhando que existe uma realidade por detrás das
aparências.

Aparência, para mim, é o próprio eficiente e vivente, que vai tão longe em sua zombaria de si mesmo, a ponto de me
fazer sentir que aqui há aparência e fogo-fátuo e dança de espíritos e nada mais - que entre todos esses sonhadores também eu,
o “conhecedor”, danço minha dança, que o conhecedor é um meio para estirar a dança terrestre no sentido do comprimento, e
nessa medida faz parte da ordenação festiva da existência, e que a sublime consequência e coerência de todo conhecimento é e
será, talvez, o meio supremo de manter em pé a generalidade do sonho e a inteligibilidade total de todos esses sonhadores entre
si e, justamente com isso, a duração do sonho. (A gaia ciência, § 54)

Não poderíamos ter sobrevivido sem o nosso hábito arraigado de preferir compromisso a
incerteza, erro e ficção a dúvida, assentimento a recusa, julgamento fortuito a fazer justiça. Em vez de
permitir que o ceticismo nos desoriente, continuamos a agarrar-nos à fé que nos deu estabilidade. Isto
é para sugerir que só o louco está desperto, enquanto a maioria sã ainda continua sonhando.
A tensão na prosa de Nietzsche impede-nos de descartar como ridícula tagarelice a notícia da
morte de Deus. Uma vez que o homem acusa o povo - e a si mesmo - de assassinar a divindade
ausente, suas perguntas deixam de ser absurdas e o ritmo dos golpes impede-nos de pô-las de lado.
Ele não se apresenta como uma personagem imaginária - não temos ideia da sua idade ou da sua
aparência - mas seu modo de falar é diferente do de Nietzsche.
O estilo em prosa não é bíblico e a história não é uma parábola, mas se poderia ler o anúncio
da morte do Pai como uma audaciosa consequência do relato bíblico da crucificação. A história de
Nietzsche é, também, um primeiro ensaio para Assim falava Zaratustra, onde tanto a narrativa quanto
as declarações do herói semelhante a um profeta dependem de um pastiche da Bíblia.

Depois de dizer estas palavras, Zaratustra calou-se como alguém que ainda não disse a sua última palavra; hesitando
longamente, balançou na mão o bastão; por fim, falou assim - e sua voz se havia transformado. Sozinho vou agora, meus
discípulos! Também vós, ide embora, e sozinhos! Assim quero eu. Afastai- -vos de mim e defendei-vos de Zaratustra! E, melhor
ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado. O homem do conhecimento não precisa somente amar seus inimigos,
precisa também poder odiar seus amigos. Paga-se mal a um mestre, quando se continua sempre a ser apenas o aluno. (Assim
falava Zaratustra, Primeira Parte, “Da virtude que dá”).

Aqui ouvimos duas vozes, e apenas uma delas é de Zaratustra. Se ambas forem de Nietzsche,
ambas estão disfarçadas.
Como Kierkegaard, que usou copiosamente pseudônimos e personagens, Nietzsche explorava
sua ambivalência; e nada provocava mais ambivalência em Nietzsche do que a religião de sua
infância: o protestantismo luterano. Em 1534, ao dar aos alemães a primeira tradução da Bíblia,
Martinho Lutero deu-lhes, com efeito, uma língua nacional, imbuída de reverência pela autoridade
tanto divina quanto humana. Nada encorajava mais a artificialidade do fraseado do que a devoção
semelhante à de um suplicante que os pregadores afetavam em seus sermões e os adultos nas homilias
que dirigiam às crianças. A biografia do irmão, que Elizabeth Fõrster-Nietzsche escreveu,
exemplifica o fracasso dela em recuperar-se do condicionamento linguístico que ambos receberam.
O pai, Karl Ludwig Nietzsche, um pastor luterano, morreu quando Friedrich Wilhelm não tinha
ainda cinco anos e Elizabeth só tinha três. A mãe, Franziska Nietzsche, que se casou aos dezessete
anos e deu a luz ao seu filho aos dezoito, era filha de outro clérigo luterano; e a mãe de Karl Ludwig,
que viveu com eles e assumiu a direção da casa, sempre dominando a nora, era filha de um
arquidiácono e viúva de um superintendente - o equivalente de um bispo. Na tenra infância,
Nietzsche viu-se cercado por mulheres, que passavam a vida tratando de pregadores, cozinhando e
cuidando da casa para eles, conversando com eles (provavelmente mais ouvindo do que falando),
imitando-os e tentando agradá-los. O estilo de conversa moralizante dessas mulheres seguia o
modelo do dos homens, e elas apreciavam o que acreditavam ser um dever - impor o cristianismo às
crianças. Elizabeth, a única dos irmãos de Nietzsche que sobreviveu, era por natureza mais
conformista. Em março de 1883, dois meses depois de começar Assim falava Zaratustra, ele disse a
um amigo: “Não gosto de minha mãe e é penoso para mim ouvir a voz de minha irmã; sempre fico
doente quando estou com elas. Quase não discutimos ... Sei como conviver com elas, embora isso
não me convenha” (Carta a Franz Overbeck de 6 de março de 1883).2
Durante a infância, Nietzsche foi encorajado tanto pelos preceitos quanto pelos exemplos a
acreditar que a principal função das palavras consistia em exprimir reverência. Ao escrever Assim
falava Zaratustra, aproximou-se do idioma, da sintaxe e das cadências do velho estilo reverencioso,
em parte para parodiá-los e em parte para construir uma caixa de ressonância que daria maior
repercussão às prédicas an- ticristãs de seu profeta pagão.

“Não furtarás! Não matarás!” - essas palavras eram ditas outrora sagradas; diante delas, dobrava-se o joelho,
abaixava-se a cabeça e tiravam-se os sapatos.
Mas eu vos pergunto: quando houve, alguma vez, no mundo ladrões e assassinos melhores do que essas palavras
sagradas?
Furtar e matar não fazem parte de toda vida? E, ao dizerem-se sagradas tais palavras, não se assassinou com isso a
própria verdade?
Ou foi uma prédica de morte, que disse sagrado o que contradizia e desaconselhava toda vida? O meus irmãos,
quebrai, quebrai as velhas tábuas! (Assim falava Zaratustra, Terceira Parte, “Das velhas e novas tábuas”, § 10).

Na obra de Nietzsche, jamais se pode separar enunciado e estilo, mas, embora ele nos fale
numa variedade de vozes, poucos comentadores oferecem conselhos úteis sobre como deveriamos
lidar com isso. (As honrosas exceções incluem Jacques Derrida e Henry Staten, o autor americano do
livro A voz de Nietzsche). Nietzsche aproxima-se mais de identificar- -se com Zaratustra do que com
o louco, mas nem sempre é fácil - seja com essas duas vozes ou com outras - avaliar a oscilação
entre identificar-se e alienar-se. A questão que Staten levanta é “por que é tão difícil dizer quem está
falando quando ‘Nietzsche’ fala, quem é ‘eu’ ou ‘nós’ e quem são ‘eles’ em seu texto”.
Não é apenas quando está recorrendo a uma personagem que temos de enfrentar os problemas
de voz e de tom. O cultivo de diferentes vozes e estilos foi central para o seu desenvolvimento
enquanto escritor e pensador. Somente um escritor intensamente consciente do estilo teria dito, como
ele fez em Humano, demasiado humano: “Melhorar o estilo significa melhorar o pensamento, e nada
além disso!” (O andarilho e sua sombra, § 131). O estilo de Nietzsche, como Thomas Mann
apontou, poderia por vezes confundir-se com o de Oscar Wilde. Tanto um quanto o outro poderia ter
escrito: “Não passa de parvo quem não julga pelas aparências”. Nietzsche, o autor dessa frase,
também disse: “É apenas enquanto fenômeno estético que a existência e o mundo permanentemente
se justificam”.
Esta orientação para o estético deu-lhe algo em comum com Wilde, mas, de acordo com um
apontamento de 1888, escrito pouco antes do colapso de Nietzsche na insanidade, "para um filósofo,
dizer ‘o bom e o belo são o mesmo' é infâmia; se ele então acrescenta ‘também o verdadeiro’, tem de
ser rechaçado. A verdade é ameaçadora. Possuímos a arte para não perecer com a verdade.”
Aqui, só se poderia traduzir as duas últimas sentenças na língua de Wilde. Em geral, os
aforismos de Nietzsche lembram menos os de Wilde que os de Wittgenstein. Como mostra Erich
Heller em seu ensaio, Wittgenstein e Nietzsche, seria fácil tomar uma declaração de um por uma
declaração do outro, embora nos anos 20 Wittgenstein ainda não tivesse alcançado o ensaio de
Nietzsche de 1873 “Sobre verdade e mentira no sentido extra moral”, que sustentava não poder a
linguagem transmitir a verdade objetiva acerca da realidade exterior. Uma vez que não podemos
evitar ser enganados, desenvolvemos convenções linguísticas para nos enganarmos a nós mesmos
sem medo. Nietzsche comparava a linguagem a uma prisão e a uma rede; Wittgenstein falava de seu
“enfeitiçamento de nossa inteligência” e das “contusões que nosso entendimento sofreu por bater a
cabeça contra os limites da linguagem”.
Por vezes, os aforismos de Nietzsche lembram menos os de Wilde ou os de Wittgenstein que
os de Kafka, que disse sermos pensamentos niilistas na mente de Deus. Nietzsche, que via a morte de
Deus como o equivalente da segunda Queda do homem, sugeriu que em nossa segunda expulsão
precisávamos ver a promessa de um novo paraíso, pois “o demônio pode começar a invejar aqueles
que sofrem profundamente em demasia e mandá-los - para o céu”.
Como Kafka, Nietzsche era um profundo descrente religioso. Mas, junto com muitos dos outros
apontamentos póstumos reunidos na Vontade de potência 3 esse belo paradoxo sugere que,
funcionando mais como escritor criativo do que como filósofo, às vezes anotava frases por causa de
seu apelo verbal, demorando a perguntar-se o que significavam e se concordava ou não com elas.
Escrever era amiúde como tomar nota de um ditado feito por uma voz interna.
Para explicar por que ele procedia dessa maneira, poderíamos partir de sua enfermidade.
Tanto seus hábitos de pensar quanto seus métodos de trabalhar foram afetados pela doença que o
maltratou. Durante os 23 anos de sanidade quando adulto - ele tinha 44 quando enlouqueceu -, lutou
contra intermináveis dores de cabeça, dores nos olhos e ao redor deles, contrações estomacais,
vertigem, náusea, insônia, indigestão, neurastenia. Nunca descobriu o que fazia com que ficasse
doente. Com espantosa paciência e otimismo decrescente, vagueou de lugar em lugar, seguindo
sugestões de médicos e amigos, buscando um clima que aliviasse os sintomas.
A sua maior limitação era não poder manter qualquer atividade - ler, escrever ou até pensar -
por longos períodos. Tinha de fazer o seu trabalho por partes. Se lia ou escrevia durante muito tempo
em seguida, seus olhos faziam-lhe mais mal do que podia suportar. Por vezes, doíam tanto que tinha
de dissertar sem anotações e ditar em vez de escrever. Muitos de seus melhores pensamentos
ocorreram quando estava ao ar livre. Enquanto filósofo, convinha-lhe menos percorrer longas
distâncias do que correr a toda velocidade.
Ele tomava notas, com frequência, em pedaços de papel e o estilo dessas notas mantinha-se,
muitas vezes, tanto nas conferências quanto nos ensaios; mas, se seus livros parecem mais
desarticulados e impressionistas do que os de seus contemporâneos, parecem também mais
modernos. A maioria dos grandes filósofos alemães do século XIX foram mais sistemáticos no
pensamento, mais inclinados a construir sistemas e à abstração. Talvez tenha sido a falta de vigor que
levou Nietzsche a organizar seus livros em unidades relativamente breves ou talvez tenha sido a
percepção intuitiva do valor da descontinuidade. De qualquer modo, a fragmentação trabalhou de
mãos dadas com a assunção de que a filosofia deveria preocupar-se com as minúcias do
comportamento humano. Escrevendo seus comentários históricos impressionistas, ele podia isolar
contradições e momentos de disjunção em vez de enfocar, como fazia a maioria dos historiadores
contemporâneos, personalidades, tendências e períodos circunscritos por datas. Enquanto
historiador, ele foi brilhante, se bem que errático. Sua pobre vista impedia-o de ler o bastante para
embasar todas as generalizações impetuosas que fazia; e muitos de seus argumentos científicos e
teológicos baseavam-se mais em inspiradas conjecturas e arguta auto observação do que em leitura
ou pesquisa; mas, ao delinear a genealogia da moralidade e ao analisar a psicologia da punição, ele
antecipou de modo substancial o livro de Michel Foucault de 1975, Vigiar e punir: o nascimento da
prisão. Nietzsche observou, por exemplo, como funcionam sistemas disciplinares ao assumirem que
delinquentes se tornam devedores em relação à comunidade. Deve-se permitir ao credor - Igreja ou
Estado - que demonstre seu poder infligindo dor e humilhação no réu. Desse modo, equilibram-se as
contas.
Coleridge elogiava os “homens de todas as idades que se viram impelidos, como por um
instinto, a propor a sua própria natureza como um problema e devotaram os seus esforços a
solucioná-lo”. A indisposição pode levar a enfocar a consciência em seu próprio funcionamento; e,
como Dostoievsky e Proust, Nietzsche tinha talento para trazer a introspecção para fora, usando sua
consciência como uma base de observação para aventurar-se em generalizações acerca da mente
humana e seu funcionamento.
O desconforto físico intensificou o sentimento de estar dividido em si mesmo, mas isto era em
alguns aspectos vantajoso. Sem a auto divisão, dizia ele, não há autoanálise; e, ao engrandecer a auto
divisão, sua autoanálise também ampliou-a. Em vez de ouvir uma voz interna, ele ouvia várias, e os
desacordos entre elas eram amiúde veementes. Mas, embora houvesse um elemento de auto
dramatização em seus escritos, ele não procedia como dramaturgo. Era tão impensável uma peça
escrita por Nietzsche quanto por Immanuel Kant ou John Bunyan; as suas relações com as suas vozes
não eram como as de um autor dramático com as suas personagens. Quando ouvia vozes em sua
cabeça, Nietzsche estava menos interessado em reproduzir o conflito do que em dramatizar o
processo de autos superação que parecia continuar incessantemente em seu interior. O impulso
principal era para o monólogo, não para o diálogo. Zaratustra tem vários interlocutores, mas existe
pouca interação com eles. Nietzsche queria ser um transgressor das leis, para destronar o juiz,
enterrar o deus, ter o controle da voz didática que nunca pode silenciar.
Tratando da multiplicidade de vozes em sua prosa, Henry Staten refere-se ao que Derrida
chamou “os Nietzsches” - as vozes em seu texto que, por vezes, se contradizem umas às outras. Staten
diagnostica uma “nostalgia da unidade perdida”. Os escritos de Nietzsche sobre retórica descrevem
um ser mitológico primordial com uma centena de cabeças que poderiam falar umas com as outras.
Dando-se conta de que esse diálogo pode continuar, a criatura deixa-se desintegrar em homens
individuais, sabendo que, em conjunto, não pode perder sua unidade. Nietzsche gostava da ideia de
que somos todos fragmentos do que foi uma vez uma gigantesca criatura.
Ao condenar Wagner como “o artista moderno par excellence”, ele reclamava que os
problemas apresentados nas óperas (ou “dramas musicais”) eram todos problemas do histérico. Um
dos apontamentos reunidos na Vontade de potência define o histérico como “admirável em toda arte
de dissimulação”. Vaidade e irritabilidade fazem-no dramatizar cada incidente trivial e cada mínimo
acidente. Ele não é mais um indivíduo; é como “um encontro de indivíduos - primeiro, um e, depois,
outro arremessa-se para a frente com desavergonhada segurança”. Staten observa quão próximo isto
se acha da passagem do Crepúsculo dos ídolos descrevendo o “estado dionisíaco”, que impele o
sistema afetivo a “excitar simultaneamente o poder de representar, imitar, transfigurar, transformar e
todas as espécies de imitação ou representação”. O elemento significativo é “a inabilidade para não
reagir (como em certos histéricos, que, sentindo-se de qualquer modo instigados, também entram em
qualquer papel ... Eles transformam-se constantemente)”. (“Incursões de um extemporâneo”, § 10).
Embora Nietzsche não apreciasse ver-se comparado a Wagner ou ser classificado como histérico, a
afinidade entre as duas passagens, de fato, lança luz - é o que Staten advoga - sobre o problema das
múltiplas vozes.
Como alternativa, poderiamos olhar para elas a partir de uma perspectiva junguiana. Aos
dezenove anos, então estudante de medicina, Carl Jung assistia a seções em que uma prima de quinze
anos, Helene Preiswerk, era médium. Entrando em estado de transe, ela desmaiava, caía numa
cadeira ou no chão, tinha várias inspirações profundas e começava a conversar na pessoa de parentes
próximos, falando em alto alemão em vez de seu dialeto suíço habitual. Parecendo mais velha e mais
experiente do que era e movendo-se com mais graça do que de costume, convencia Jung de que
através dela estavam falando as vozes de seus dois avós. Seis anos depois, ao escrever sua
dissertação, ele disse que as vozes representavam fragmentos da própria personalidade dela, que
tinha “se despedaçado”.
Assumindo que as emoções que entraram em cena tinham sido reprimidas, ele emprega a
expressão de Freud “identificação histérica” para o “delírio histérico” em que as fantasias oníricas
de Helene “se tornaram típicas alucinações”. Mentirosos patológicos que foram devassados por suas
fantasias, diz ele, comportam-se como crianças que se perdem num jogo ou como atores que se
entregam a seus papéis (Jung, Collected Works, v.l, p.67). Não é distinto do relato que Nietzsche faz
dos histriônicos histéricos no trabalho de Wagner, e, embora Nietzsche de início tivesse controle de
suas vozes, ele perdeu o controle quando ficou louco.
O medo da loucura nem sempre esteve inteiramente separado da ansiedade de que, sem Deus,
a civilização se desintegraria. Dostoievsky assemelha-se a Nietzsche, tanto por ser profundamente
religioso por temperamento quanto por estar apreensivo acerca das consequências do niilismo. Se
Deus está vivo, tudo tem sentido; se Deus está morto, tudo é permitido e nada é compreensível.
“Decidi há muito tempo não compreender”, diz Ivan Kamarazov. “Se tento compreender alguma
coisa, serei desleal ao fato, e estou determinado a permanecer fiel ao fato”. Assim era Nietzsche.
O ensaio de Schiller de 1795-1796, “Sobre poesia ingênua e sentimental”, celebra os poetas
gregos por estarem sem esforço de acordo com a natureza. Contra o romantismo de Rousseau,
Nietzsche sustentou que a arte ingênua sempre representa um triunfo da ordem apolínea sobre a
turbulência dionisíaca. A arte dionisíaca leva-nos a encarar com confiança os horrores da existência,
tendo empatia pelo ser primordial em sua ira pela vida e seu terror ao ameaçar a destruição.
Nietzsche igualava o dionisíaco à superabundância de energia criativa, que fomenta “o desejo por
destruição, mudança e vir- -a-ser”. Ou como Zaratustra pode dizer: “quem tiver de ser um criador,
em verdade, esse tem de ser antes um aniquilador e quebrar valores” (Assim falava Zaratustra,
Segunda Parte, “Da superação de si”).
Num caderno de apontamentos de 1885, Nietzsche descreveu o dionisíaco como “aquele auge
de alegria em que um homem pode sentir-se em apoteose, pode sentir que a natureza nele se
justifica”. Mas “os escravos das ‘idéias modernas’”, os filhos de uma época fragmentada, pluralista,
doente, fantasmagórica (Fragmento póstumo 41 [6] de agosto/setembro de 1885), perderam a
capacidade de ser feliz que os gregos possuíam. Sem ela, estes não poderíam ter participado dos
festivais dionisíacos: a alma helênica floresceu sem nenhuma necessidade de exaltação mórbida ou
loucura. E num caderno de apontamentos que manteve de março a junho de 1888, o último ano de sua
sanidade, Nietzsche define o dionisíaco como

um ímpeto à unidade, um remanejamento radical sobre pessoa, cotidiano, sociedade, realidade, sobre o abismo do
perecer: o passionalmente doloroso transporte para estados mais escuros, mais plenos, mais oscilantes; o embevecido dizer sim
ao caráter global da vida como que, em toda mudança, é igual, de igual potência, de igual ventura; a grande participação
panteísta em alegria e sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as mais terríveis e problemáticas propriedades da vida; a
eterna vontade de geração, de fecundidade, de retorno; o sentimento da unidade da necessidade do criar e do aniquilar.
(Fragmento póstumo 14 [14] da primavera de 1888)

Dizer que Nietzsche cultivava a divisão em si mesmo é dizer que conscientemente corria o
risco da destruição, da desintegração. “O Dioniso cortado em pedaços é uma promessa de vida:
eternamente renascerá e voltará da destruição” (Fragmento póstumo 14 [89] da primavera de 1888).
Como Plutarco explicou em seu relato desse mito da criação alternativo, o deus foi desmembrado,
mas suas partes foram distribuídas ao vento, à água, à terra, às estrelas, aos planetas, aos animais. A
história serve de base para alegorias sazonais, em que a destruição invernal e a morte são seguidas
pela regeneração, mas para um homem era perigoso imitar um deus.
Nietzsche impingiu a Zaratustra suas primeiras ideias de divisão e conflito internos.

E este segredo a própria vida me contou: “vê”, falava ela, “eu sou o que sempre deve superar-se a si mesmo".
“Vós a chamais, por certo, de vontade de procriação ou ímpeto para a finalidade, para o que é mais elevado, mais
distante, mais complexo; mas tudo isso é uma coisa só e um só segredo.”
“Até prefiro sucumbir a renunciar a essa única coisa; e, em verdade, onde há declínio e cair de folhas, sim, é ali que a
vida se sacrifica - por potência!”.
“Que eu deva ser luta e vir-a-ser e objetivo e contradição dos objetivos: ah, quem adivinha minha vontade, adivinha
também quão tortuosos são os caminhos que ela tem de seguir”.
“O que quer que eu crie e como quer que eu o ame - logo tenho de ser adversário seu e de meu amor: assim quer
minha vontade!”
“E tu também, que buscas o conhecimento, és apenas uma senda e uma pegada da minha vontade; em verdade, a
minha vontade de potência caminha com os pés da tua vontade de verdade!”...
Em verdade, eu vos digo: bem e mal que seja imperecível - não há! Por si mesmo ele tem sempre de se superar de
novo.
Com vossos valores e palavras de bem e mal exerceis poder, ó estimadores de valores; e esse é vosso amor escondido
e o esplendor, estremecimento e transbordamento de vossas almas.
Mas um poder mais forte nasce dos vossos valores e uma nova superação: faz ela romperem-se o ovo e a casca do
ovo.
E quem tiver de ser criador em bem e mal, em verdade, esse tem de ser antes um aniquilador e quebrar valores.
Assim o mais alto mal faz parte do mais alto bem; mas é este o criador. (Assim falava Zaratustra, Segunda Parte,
“Da superação de si”).

Talvez Nietzsche não estivesse ciente da extensão em que Zaratustra ecoava o Wotan de
Wagner, que dizia; “até a náusea encontro eternamente apenas a mim mesmo em tudo o que realizo!...
O que amo tenho de abandonar, assassino quem desejo, atraiçoo iludindo quem confia em mim! ...
Destruo o que construí!... Abandono a minha obra; só quero uma coisa: o fim!...” (Wagner, A
Valquíria, Ato II, cena 2).
Mas Zaratustra é mais dionisíaco do que wagneriano, e toda a história do desenvolvimento de
Nietzsche poderia ser contada em termos de sua relação com Dioniso. Seu primeiro livro, O
nascimento da tragédia no espírito da música (1870- 1871), insiste nisto: que entre a ordenada
tendência apolínea e a desordenada tendência dionisíaca não existe inimizade alguma. Elas
“caminham juntas, lado a lado... incitando-se reciprocamente a nascimentos cada vez mais
poderosos” que culminam no nascimento da tragédia grega, que tanto é apolínea quanto dionisíaca.
Em Pforta, uma das mais ilustres escolas clássicas da Alemanha, onde os alunos despendiam todas as
semanas dez ou onze horas com latim e seis com grego, aprendendo não só a ler mas também a falar
ambas as línguas, Nietzsche desenvolveu uma paixão duradoura pela cultura clássica e, em especial,
pela tragédia grega. Em seu jovem entusiasmo por Wagner, considerou-o um gênio, que poderia
fundir música e drama - uma realização cultural prodigiosa que teria o efeito de lançar a Alemanha
num novo Renascimento e reunir arte e filosofia depois de dois mil anos de divórcio.
Embora considerasse difícil afastar-se da influência de Wagner, Nietzsche operou o corte
quando tinha pouco mais de trinta anos e, em seu livro de 1877, Humano, demasiado humano, tentou
desviar-se do heroico para ir em direção ao cotidiano. Queria observar “cientificamente” o
comportamento humano, concentrando-se nas "pequenas verdades imperceptíveis”. Enquanto
filósofo, não recebera nenhuma formação especial e surpreendia-se de que, na tradição alemã, os
filósofos dogmáticos - não só os idealistas mas também os materialistas e realistas - se interessavam,
todos, por problemas irrelevantes para a vida cotidiana.
Na academia, Nietzsche transferiu-se dos estudos clássicos para a filologia e só tinha 24 anos,
em 1869, quando aceitou a nomeação de professor na Universidade da Basiléia. Mas sua saúde frágil
obrigou-o a parar de lecionar em 1876. Sendo o mais analítico dos filólogos, ele tornou-se
extraordinariamente cético quanto à linguagem; e, se Roland Barthes tem razão em afirmar que “a
invenção de um discurso paradoxal é mais revolucionária do que a provocação”, Nietzsche tornou-se
um revolucionário em 1873, quando, já professor na universidade e já sofrendo de distúrbios na vista
que o forçavam a dissertar sem apontamentos, ditou um ensaio sobre linguagem e objetividade,
“Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”.
A linguagem, sustentava ele, é como um guarda-chuva: nós a seguramos para nos abrigarmos
de tomar ciência de que o universo é, na melhor das hipóteses, indiferente e, na pior, hostil. As
palavras não podem nunca ser transparentes

pois, entre duas esferas completamente diferentes tais como sujeito e objeto, não existe nenhuma causalidade, nenhuma
precisão, nenhuma expressão, mas apenas uma relação estética, ou seja, uma transmissão de sugestões, uma tradução trôpega
numa língua completamente estranha. Mas, para tanto, é necessária uma esfera intermediária, que poetize e invente livremente,
e uma força intermediária...
O inseto e o pássaro percebem um mundo diferente do nosso e não deveríamos nos regozijar por ter uma visão melhor,
pois não há padrão de comparação. Um homem pobre pode enganar-nos fingindo ser rico, mas o que significa rico? Todas as
nossas palavras baseiam-se em equações entre coisas desiguais e nunca podem ter mais do que uma relação tênue com o que
representam...
Porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um
acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes desapareça de seu mundo. Esse
tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade. Agora,
com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e
obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o
contraste entre verdade e mentira. O mentiroso usa as designações válidas, as palavras, para fazer aparecer o não-efetivo; ele
diz, por exemplo: “sou rico”, quando para seu estado seria precisamente “pobre” a designação correta. Ele faz mau uso das
firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se o faz de maneira egoísta e de resto
prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si. Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem
enganados, quanto serem prejudicados pelo engano... E também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente
a verdade: deseja as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida; diante do conhecimento puro sem
consequências ele é indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil...
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de
relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um
povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são. ( “Sobre verdade e mentira no
sentido extra moral", § 1)

Já no início de seu trabalho filosófico, Nietzsche chegou a um impasse. Sem as palavras, não
tinha meio de comunicar- -se com os seus leitores e as palavras não eram dignas de confiança. Como
podia ele continuar? Uma vantagem de falar através de uma persona era a de que os leitores teriam
de pensar duas vezes se acreditavam ou não que ele acreditava no que a persona estava dizendo.
Assim falava Zaratustra é o experimento de Nietzsche mais impressionante - e o mantido por
mais tempo - em imitar outras vozes e escrever em estilos que não lhe vinham naturalmente. Enquanto
usou o louco numa única seção, continuou a falar pela boca de Zaratustra em quatro partes
sucessivas, que se estendem por mais de dois anos.
Nietzsche pretendeu que tanto a voz do narrador quanto a voz de Zaratustra sufocassem ecos
das vozes moralizantes que dominaram a sua infância, mas o seu trabalho no livro precipitou-se pela
experiência de apaixonar-se pela primeira vez com a idade de 37 anos. Carismática, bem apessoada,
resoluta e muito inteligente, Lou Salomé era a filha de 21 anos de um general russo. Nietzsche
encontrou-a numa visita aos lagos italianos, onde logo passou a imaginá-la como sua filha, discípula
e noiva espiritual. Ela pensou que um dia ele poderia revelar-se como o profeta de uma nova
religião; e era sobretudo a respeito de religião que falavam, que passavam - dizia ela - dez horas por
dia conversando.
Ele imaginou formar um ménage à trois sem sexo com ela e o jovem autor de um livro
intitulado Observações psicológicas, Paul Rée, que os havia apresentado. Mas não era um plano
factível e a constituição doentia de Nietzsche pagou muito caro pela frustração. “Se não puder
aprender o truque do alquimista de converter essa imundice em ouro”, escreveu, “estou perdido”.
Seu cadinho era a sua mente, e ele levou apenas dez frenéticos dias para destilar a primeira parte de
Zaratustra dessa imundice. Fez deslizar facilmente no livro a persona e o estilo. Sua premência por
vingança era irreprimível, mas o principal impulso era em direção da alegria. “Não é com a ira que
se mata, mas com o riso”, diz Zaratustra. “Eia, matemos pois o espírito de peso” (Assim falava
Zaratustra, Primeira Parte, “Do ler e escrever”).
Zoroastro (Zaratustra em alemão) era o fundador de uma religião persa pré-islâmica do
século VI a. C. Refinou a velha religião popular ariana com a ideia da punição eterna de acordo com
o equilíbrio entre feitos bons e maus na terra. Representou, para Nietzsche, os valores de bom e mau
nas mais velhas histórias da humanidade; e Nietzsche desenvolveu a fantasia criativa do profeta
Zaratustra como seu filho depois de abandonar a fantasia autoindulgente de Lou como sua filha.
A experiência negativa tinha de transformar-se em algo positivo o bastante para inflamar
outras pessoas. Ele precisava olhar bem fundo no abismo e fazê-lo soar com um riso audacioso,
igualando Lou e Rée, que haviam partido juntos, com a vida na grande cidade. A imagem das moscas
no mercado aparece para aviltar a vida social. “Foge, meu amigo, para a solidão e para onde sopra o
ar rude e forte” (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Das moscas do mercado”). Altitude
elevada representa a alternativa para a vida na cidade - afastamento, desligamento, meditação, paz,
solidão. “Aquele que galga as mais altas montanhas ri de todas as tragédias lúdicas e de todas as
tragédias sérias” (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Do ler e escrever”).
Escutando as vozes argumentativas dentro de sua cabeça, Nietzsche recuperou um estado de
equilíbrio que podemos chamar de “astúcia do ouvido”. Discutindo consigo mesmo sobre Lou
Salomé, Paul Rée, vida, amor, Jesus, Deus e humanidade, ouviu uma voz didática a chamá-lo à
ordem, e pôde escrever bem o bastante para traduzir essa voz na de Zaratustra. Em breve, tinha ganho
confiança o bastante para pregar através da boca de Zaratustra.

De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue, e
experienciarás que sangue é espírito.
Não é fácil compreender o sangue alheio; odeio todos os que leem por desfastio.
Quem conhece o leitor nada mais faz pelo leitor. Mais um século de leitores - e até o espírito estará fedendo.
Que todos tenham o direito de aprender a ler, estraga, a longo prazo, não somente o escrever mas também o pensar.
Outrora, o espírito era Deus, depois, tornou-se homem e, agora, ainda acaba tornando-se plebe.
Quem escreve com sangue e máximas, esse não quer ser lido, mas aprendido de cor.
Na montanha, o caminho mais curto é de cume a cume; mas, para isso, precisa-se de longas pernas. Que máximas
sejam cumes; e aqueles a quem são ditas, altos e robustos.
O ar rarefeito e puro, a vizinhança do perigo e o espírito imbuído de uma alegre malvadez: coisas que combinam bem.
Quero ter duendes a meu redor, porque sou corajoso. A coragem, que afugenta os fantasmas, cria seus próprios
duendes: a coragem quer rir.
Eu já não sinto do mesmo modo que vós: essa nuvem que vejo abaixo de mim, essa coisa negra e pesada - é,
justamente, a vossa nuvem de temporal.
Vós olhais para cima, quando aspirais a elevar-vos. E eu olho para baixo, porque já me elevei.
Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado?...
Descuidados, zombeteiros, violentos - assim nos quer a sabedoria: ela é mulher, ela ama sempre somente um
guerreiro...
Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar.
E, quando vi o meu diabo, achei-o sério, metódico, profundo, solene: era o espírito de peso - através dele caem todas as
coisas...
Aprendi a caminhar; desde então, deixo-me correr. Aprendi a voar; desde então, não quero que me empurrem, para
sair do lugar.
Agora, estou leve; agora, voo; agora, vejo-me debaixo de mim mesmo; agora, um deus dança dentro de mim.
Assim falava Zaratustra. (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Do ler e escrever”).

Em vez de abençoar os mansos, os compassivos e os amantes da paz, Zaratustra favorece os


grandes desprezado- res, aqueles que “não querem ter muitas virtudes”. Rejeita o ideal cristão de
amor fraterno. “O vosso amor pelo próximo é o vosso mau amor por vós mesmos” (Assim falava
Zaratustra, Primeira Parte, “Do amor ao próximo”). Mais se tem realizado por bravura e combate do
que por amor ao próximo. “Dizeis que a boa causa santifica até a guerra? Eu vos digo: a boa guerra
santifica qualquer causa” (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Da guerra e dos guerreiros”).
Mas, ao ver que se poderia usar esse ditado em propaganda militarista, Nietzsche ataca o
nacionalismo: “Estado chama-se o mais frio de todos os monstros frios. Friamente também ele mente
... em todas as línguas de bem e mal... Com dentes roubados ele morde, esse mordaz” (Assim falava
Zaratustra, Primeira Parte, “Do novo ídolo”). Invertendo tanto o princípio mosaico de olho por
olho, dente por dente, quanto o princípio cristão de dar a outra face, Zaratustra adverte a víbora a
tomar o seu veneno de volta, já que ela não pode dar-se ao luxo de perdê-lo.

Mas, se tendes um inimigo, não lhe pagueis o mal com o bem, porque isto o humilharia. Mostrai, ao contrário, que ele
vos fez, mesmo assim, algum bem...
E mais nobre dizer que se errou do que querer ter razão, especialmente quando se tem razão. Mas é preciso ser
bastante rico para isso.
Não gosto de vossa fria justiça e, nos olhos de vossos juízes, vejo sempre o olhar do carrasco e seu frio cutelo. (Assim
falava Zaratustra, Primeira Parte, “Da mordida da víbora”)

Nietzsche resume aqui o motivo da morte de Deus.

Para os velhos deuses já há muito chegou o fim: - e em verdade foi um bom, um gaio fim de deuses o que tiveram!
Esses não morreram passando por um “crepúsculo” - isso é uma boa mentira! Pelo contrário: mataram a si próprios -
de rir!
Isso aconteceu, quando a palavra mais sem-Deus foi pronunciada por um deus mesmo - a palavra: “Há um deus! Não
deves ter nenhum outro deus além de mim!”
- Um velho ranzinza de um deus, um ciumento, perdeu assim a compostura:
E todos os deuses riram então, e vacilaram em suas cadeiras e exclamaram: “Mas divindade não é justamente haver
deuses, e não um Deus?”. (Assim falava Zaratustra, Terceira Parte, “Dos renegados”)

Embora prefira de longe o politeísmo ao monoteísmo, Nietzsche sente-se menos hostil a Deus
do que aos homens que o usaram para apoiarem-se. Zaratustra está apto para encontrar o último
Papa.

Voltou a ver alguém sentado no caminho que percorria e, precisamente, um homem alto e vestido de preto, com um
rosto pálido e macilento: esse o deprimiu enormemente. “Ai”, falou ao seu coração, “ali está uma tribulação mascarada e, ao
que me parece, da raça dos padres; o que quer essa gente no meu reino?”...
"Quem quer que sejas, ó andarilho”, falou, “ajuda um extraviado, um buscador, um velho homem a quem por aqui
poderia facilmente acontecer algum mal!
Este mundo a meu redor me é estranho e distante, também ouço bramirem animais ferozes; e aquele que poderia
oferecer- -me abrigo não existe mais.
Eu procurava o último homem piedoso, um santo e eremita, que, sozinho em seu bosque, ainda nada ouvira daquilo que
hoje todo mundo sabe”.
“O que hoje todo mundo sabe?”, indagou Zaratustra. “Talvez que o velho Deus, em que um dia todo mundo
acreditava, não vive mais?”
“Tu o disseste”, respondeu aflito o ancião. “E eu servi esse velho Deus até a sua hora derradeira.
Agora, porém, fiquei sem ofício, sem senhor e, contudo, não livre, e, também, sem ainda um só momento de alegria, a
não ser nas minhas recordações.
Para isso subi nesta montanha, para enfim me oferecer outra vez uma festa, como convém a um velho Papa e pai da
igreja: pois, fica sabendo, eu sou o último Papa! - uma festa de devotas recordações e serviços divinos”...
“Tu o serviste até o fim?”, perguntou Zaratustra, meditativo, depois de um profundo silêncio, “tu sabes como ele
morreu? E verdade o que se fala, que ele foi asfixiado pela compaixão? - que ele viu como o homem pendia na cruz e não o
suportou, que o amor pelo homem foi seu inferno e, por fim, sua morte?”
O velho Papa, porém, não respondia, mas olhava esquivo, com uma expressão dolorosa e sombria, para o lado.
“Deixa-o partir”, disse Zaratustra, depois de uma longa meditação, continuando sempre a olhar o velho diretamente no
olho.
“Deixa-o partir, ele acabou. E mesmo se te honra falares apenas bem desse morto, sabes tão bem quanto eu quem era
ele; e que ele seguia estranhos caminhos.”
“Dito entre três olhos”, disse o Papa, divertido (pois ele era cego de um olho), “em coisas de Deus eu sou mais
ilustrado do que o próprio Zaratustra - e com todo o direito.
Meu amor serviu a ele longos anos, minha vontade seguiu em tudo sua vontade. Um bom servidor, porém, sabe de
tudo, e também de muito daquilo que seu senhor esconde de si mesmo.
Ele era um Deus escondido, cheio de clandestinidade. Em verdade, ele só chegou a ter um filho por vias dissimuladas.
A porta de sua crença está o adultério.
Quem o celebra como um Deus do amor não pensa bastante bem do amor. Não queria esse Deus ser também juiz?
Mas o amante ama para além de recompensa e punição.
Quando ele era jovem, esse deus da terra do sol nascente, ele era duro e vingativo, e edificou um inferno para delícia
de seus prediletos.
Mas por fim ele ficou velho e mole e frágil e compassivo, mais semelhante a um avô do que a um pai, mas mais
semelhante ainda a uma velha, trôpega avó.
E se sentou murcho em seu canto, perto da estufa, queixou- -se de suas pernas fracas, cansado do mundo, cansado da
vontade, e um dia se engasgou em sua compaixão grande demais”. (Assim falava Zaratustra, Quarta Parte, “Fora de
serviço”).

Sentindo-se mais do que nunca em casa numa máscara ou num estilo estranho, Nietzsche podia
escrever de maneira mais autobiográfica, satisfazendo a inclinação de dramatizar sua própria
situação. Tendo poucos amigos e menos contato com eles à medida que passava o tempo, sentiu essa
necessidade de modo cada vez mais agudo. Zaratustra herda tanto a solidão de Nietzsche quanto sua
inquietação peripatética:

Sou um andarilho e um escalador de montanhas, disse ele ao seu coração; não gosto das planícies e não posso ficar
sentado tranquilo por muito tempo.
E seja lá o que ainda me venha como destino e vivência - sempre será o de um andarilho e escalador de montanhas:
afinal, só se tem vivências de si mesmo.
Passou o tempo em que ainda me acontecia deparar-me com acasos; e o que poderia ainda agora ocorrer-me, que já
não seja meu!
Está somente voltando para trás, está somente voltando para mim - o meu próprio eu e o que dele de há muito se
achava em terras estranhas, disperso em meio a todas as coisas e acasos.
E também isto eu sei: encontro-me, agora, diante do meu último cume e daquele que por mais tempo me foi poupado.
Ai de mim, que devo galgar o meu caminho mais árduo! Ai de mim, que iniciei a minha mais solitária peregrinação!
Mas, quem é do meu feitio não se furta a uma hora destas, a hora que lhe diz: “Somente agora percorres o teu caminho
da grandeza! Cume e abismo - resolveram-se numa única coisa!’’. (Assim falava Zaratustra, Terceira Parte, “O andarilho”).

Zaratustra também herda o audacioso masoquismo de Nietzsche. Por demais empobrecido para
pagar acomodações confortáveis ou aquecimento suficiente no inverno, ele tenta ter o controle de sua
má fortuna, lutando contra si mesmo e contra as forças que parecem hostis.

Eu sou Zaratustra, o sem-Deus: e ainda me cozinho todo acaso em minha panela. E somente quando ele está bem
cozido eu lhe dou boas-vindas, como minha comida.
E em verdade muito acaso veio a mim como senhor: mas mais senhorialmente ainda falou-lhe minha vontade - e ali já
estava ele, suplicando de joelhos - suplicando por albergue em mim, e coração, e aduladoramente dizendo: “Mas vê, ó
Zaratustra, como somente um amigo vem a um amigo!”.
Mas o que dizer, quando ninguém tem meus ouvidos! E assim quero clamar a todos os ventos:
Vós vos tornais cada vez menores, ó gente pequena! Desmoronais, ó comodistas! Ainda me ireis ao fundo - por vossas
muitas pequenas virtudes, por vossas muitas pequenas omissões, por vossas muitas pequenas resignações.
Fofo demais, indulgente demais: assim é vosso terreno! Mas, para que uma árvore se torne grande, para isso ela quer
lançar ao redor de duros penhascos duras raízes”. (Assim falava Zaratustra, Terceira Parte, “Da virtude que apequena”).

Zaratustra sente-se enfastiado por aquilo que, em geral, desperta felicidade.

Que podeis experimentar de mais excelso? A hora do grande desprezo...


A hora em que dizeis: “Que me importa a minha felicidade! Não passa de miséria, sujeira e mesquinha satisfação”.
(Assim falava Zaratustra, Prefácio, Terceira Seção)
Amo Aqueles que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois são os que atravessam. (Assim falava
Zaratustra, Prefácio, Quarta Seção).

Essa aparente indiferença à felicidade não põe Nietzsche contra o físico.


Mas o homem já desperto, o sabedor, diz: “Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é apenas uma palavra para
algo no corpo”...
Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, está um soberano poderoso, um sábio desconhecido - chama-se
si-mesmo. Mora no teu corpo, é o teu corpo. (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Dos desprezadores do corpo”).

Não há nenhuma dramatização direta da experiência frustrante com Lou Salomé e Paul Rée,
mas Zaratustra adverte seus discípulos contra as mulheres.

Não é melhor ir parar nas mãos de um assassino do que nos sonhos de uma mulher libidinosa?
E olhai para esses homens: seus olhos o dizem - nada de melhor conhecem na terra do que deitar ao lado de uma
mulher...
Aconselho-vos a castidade? A castidade é uma virtude em alguns, mas em muitos quase um vício.
Estes praticam sem dúvida a abstenção; mas a cadela sensualidade olha com inveja tudo o que fazem...
E com que bons modos sabe a cadela sensualidade mendigar um pedaço de espírito, quando lhe negam um pedaço de
carne! (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Da castidade”)

É claro que não há nenhuma discussão explícita em Assim falava Zaratustra acerca do
elemento autobiográfico na filosofia, mas em Para além de Bem e Mal Nietzsche escreve:

Aos poucos se evidenciou para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a autoconfissão de seu autor, uma
espécie de memórias involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda
filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira. De fato, para explicar como surgiram as mais
remotas afirmações metafísicas de um filósofo, é bom (e esperto) perguntar-se sempre antes de tudo: a que moral isto (ele)
quer chegar? Não creio, portanto, que um “impulso ao conhecimento” seja o pai da filosofia, mas sim que um outro impulso,
nesse ponto e em outros, se tenha utilizado do conhecimento (e do desconhecimento) como um simples instrumento. Quem
observar os impulsos básicos do homem, para examinar até que ponto eles aqui gostaram de fazer seu jogo como gênios
inspiradores (ou demônios ou duendes), verá que todos eles já fizeram alguma vez filosofia - e que cada um deles bem gostaria
de apresentar-se como o objetivo último da existência e senhor legítimo de todos os outros impulsos. Pois todo impulso busca
dominar e, enquanto impulso, procura filosofar... No filósofo, pelo contrário, nada é impessoal; e particularmente a sua moral
dá um decidido e decisivo testemunho de quem ele é - ou seja, da hierarquia em que se dispõem os impulsos mais íntimos da sua
natureza. (Para além de Bem e Mal § 6)

Ele também diz, em Para além de Bem e Mal, que "o tipo e o grau da sexualidade de um
homem atingem os cumes mais altos do espírito” (§75). Mas, em Assim falava Zaratustra, as
generalizações acerca das mulheres e da sexualidade parecem, com frequência, impróprias -
azedadas pela ferida que Lou causou em Nietzsche. “Duas espécies de coisas quer o verdadeiro
homem: perigo e divertimento. Quer por isso a mulher, como o mais perigoso brinquedo.” “Vais ter
com as mulheres? Não esqueças o chicote!” (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Das mulheres
velhas e jovens”).
Aventurando-se tão longe de todas as velhas normas, Nietzsche estava levando seus poderes
de raciocinar para a zona de perigo, onde a loucura poderia surpreendê-lo. Intimidado, tentou
acomodar sua ansiedade na narrativa. “Escreve com sangue, e experienciarás que sangue é espírito ...
Aprendi a caminhar; desde então, deixo-me correr. Aprendi a voar; desde então, não quero que me
empurrem” (Assim falava Zaratustra, Primeira Parte, “Do ler e escrever”). “Eu vos digo: é preciso
ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante” (Assim falava Zaratustra,
Prefácio, Quinta Seção).
Numa das seções, um bufão segue um saltimbanco sobre uma corda e salta por cima dele,
fazendo-o perder o equilíbrio e cair. O incidente causa perplexidade, mas uma interpretação é
sugerida quando Zaratustra diz que, enquanto houver muitas maneiras de se superar a si mesmo, só
um bufão tentará pular por cima do Homem. Outra consiste nisto: Nietzsche está contando com a
personagem que criou, Zaratustra, para salvá-lo da perda de equilíbrio. Numa carta sobre os poemas
ou “canções de Dioniso” que está escrevendo, chama-os de “a última forma de minha loucura”.
Mas ele não quer mais os seus pés para estar prosaicamente no solo: “Quero fazer coisas tão
árduas para mim quanto jamais foram para alguém; é apenas sob essa pressão que tenho uma
consciência clara o bastante de possuir o que poucos homens têm ou alguma vez tiveram - a bem
dizer, asas”.
Seu apetite pela auto superação é insaciável. “E este segredo a própria vida me contou: “vê”,
falava ela, “eu sou o que sempre deve superar-se a si mesmo”... E, em verdade, onde há declínio e
cair de folhas, sim, é ali que a vida se sacrifica - por potência!” (Assim falava Zaratustra, Segunda
Parte, “Da superação de si”). Apanhado no fogo cruzado da batalha de Nietzsche contra si mesmo, o
leitor não tem como ignorar a advertência: “E tu também, que buscas o conhecimento, és apenas uma
senda e uma pegada da minha vontade; em verdade, a minha vontade de potência caminha com os pés
da tua vontade de conhecer a verdade” (Assim falava Zaratustra, Segunda Parte, “Da superação de
si”).
Tendo emprestado a sua voz a um louco que anuncia a morte de Deus, Nietzsche agora usa
Zaratustra para introduzir o conceito de além-do-homem (Übermensch). Trata-se de sugerir que se
pode realizar mais completamente o potencial humano. Traduzido de forma equivocada por “super-
homem”, a palavra Übermensch confundiu muitos leitores, que perderam de vista a perspectiva
darwinista sob a qual Nietzsche escrevia. Schopenhauer havia sugerido que os maiores homens
formavam “uma espécie de ponte sobre o rio turbulento do vir-a-ser”; e, em 1873, quase dez anos
antes de começar Assim falava Zaratustra, Nietzsche escrevia: “O objetivo da humanidade não
pode estar em seu fim, mas apenas em seus exemplares mais elevados” (Da utilidade e
desvantagem da história para a vida).
Acreditando que a qualidade de vida se aprimorava constantemente, ele creditava o fato aos
homens notáveis de cada geração. Por volta de 1883, tornou-se menos otimista, mas, para ele, a ideia
de além-do-homem já estava tão clara que a única definição que forneceu foi negativa e indireta -
baseada na vaga expressão “demasiado humano”: “Em verdade, também o maior (dos homens)
achei - demasiado humano” (Assim falava Zaratustra, Segunda Parte, “Dos sacerdotes”). Aquilo de
que a humanidade precisa é de homens que farão mais ao usar a dialética do conflito e da auto
superação que culmina na autotranscedência. Aqueles com força suficiente, diz Zaratustra, deveriam
imitar as virtudes de uma coluna de mármore, que se torna mais fina, mais branda e internamente
mais dura à medida que sobe. Aqueles que são elevados se tornarão belos e estremecerão com
desejos iguais aos dos deuses, sendo a sua vaidade imbuída de adoração.
Depois de concluir Assim falava Zaratustra em 1885, com quarenta anos, Nietzsche nunca
mais manteve um papel por tanto tempo. Pode-se dizer que, ao adotar tantas vozes e estilos, ele
estava flertando com a loucura, mas pode-se igualmente sustentar que sem essas vozes ele não
poderia ter mantido a loucura à distância durante tanto tempo. A maior parte dos escritores pensa que
sabe o que quer dizer quando diz “eu”; mais sofisticado e menos superficial, Nietzsche era mais
vulnerável, embora não enfrentasse o perigo até escrever Para além de Bem e Mal: prelúdio a uma
filosofia do porvir, que começou no verão de 1885 e concluiu no início de 1886.
Ciente de que não se acharia mais protegido por uma máscara, ele decidiu enfrentar todas as
implicações do que havia escrito em 1873 sobre a impossibilidade de usar as palavras para dizer a
verdade. Durante treze anos, passando ao largo de muitas das saídas, jamais abandonou a fantasia de
que um filósofo poderia permanecer à tona agarrando-se a um mastro de objetividade. Religioso por
temperamento e inclinado a acreditar na redenção (se não pela fé, pelo menos pelas obras literárias),
Nietzsche fracassou em quebrar o hábito sancionado por mais de dois mil anos de filosofar - o hábito
de adorar a verdade. A auto superação que esperava realizar no novo livro é sugerida no primeiro
parágrafo com uma pergunta austera, que provavelmente jamais tinha sido colocada: qual é o valor
da vontade de verdade? Por que não deveríamos preferir a inverdade ou a incerteza ou a ignorância?
A resposta é que, de fato, preferimos. Nosso instinto de autopreservação ensina-nos a ser
superficiais.
Designando-se um iniciado de Dioniso, Nietzsche expõe “a filosofia desse deus”, que com
frequência pensa em como ajudar o homem a ir adiante “e fazê-lo mais forte, mais perverso e mais
profundo do que é”. (O cinismo contrabalança o sentimentalismo de acreditar numa divindade
benevolente). Dando-se conta de que havia ignorado as premissas de que partira em seu ensaio sobre
a verdade e a falsidade, Nietzsche retoma a tese sobre a impossibilidade de referir-se com exatidão
à realidade exterior. A maior parte do pensamento consciente tem de ser descontínua como uma
atividade instintiva; falsificação é a condição de nossa existência.
Como podemos nos sentir confiantes em fazer um enunciado? Quem está a fazê-lo? Como é
possível dizer “eu penso” ou “eu quero”? Descartes ignorou o corpo, quando disse: “Penso, logo
existo”; e fracassou ao responder as questões metafísicas que levantou.

De onde tiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um eu, e
até mesmo de um eu como causa e, afinal, ainda de um eu como causa de pensamentos? ... O povo que acredite que conhecer
é um conhecer- -final; o filósofo tem de dizer a si mesmo: se eu decomponho o processo que está expresso na proposição “eu
penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível - por exemplo, que sou eu
quem pensa, que em geral tem de haver algo que pensa, que pensar é uma atividade e efeito da parte de uma essência que é
pensada como causa, que há um “eu”, e, enfim, que já está estabelecido firmemente o que se deve designar como pensar - que
eu sei o que é pensar. Pois, se eu já não tivesse decidido sobre isso comigo mesmo, em que me basearia para distinguir se o que
acaba de acontecer não é, talvez, “querer” ou “sentir”? Basta dizer que aquele “eu penso” pressupõe que eu compare meu
estado no instante com outros estados que conheço em mim, para assim estabelecer o que ele é... (Para além de Bem e Mal,
§ 16).

...é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado


“penso” ... Um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero... Pensa-se, mas que
este “se” seja precisamente o velho e decantado “eu” é, na melhor das hipóteses, apenas uma
suposição. (,Para além de Bem e Mal, § 17)
Apresentando o pensamento como nada além de uma relação entre vários impulsos, Nietzsche
tinha de pintar-se num estado de dispersão dionisíaca.
Dioniso era o deus das máscaras (ou personae) e, para falar através delas, Nietzsche
precisava de uma variedade de vozes. Sem uma máscara, não se tem nenhum rosto para apresentar; e
é somente através das máscaras que se pode falar bem alto o que se aprendeu. Jamais se pode
remover a máscara, a menos que exista uma outra máscara atrás dela; e escrevemos livros não para
revelar mas para esconder o que está em nós. Pode um filósofo alguma vez ter opiniões “últimas e
próprias”?

Quem, entra ano, sai ano, e de dia e de noite, sentou-se a sós com sua alma em confidencial duelo e diálogo, quem em
sua caverna - pode ser um labirinto, mas também uma jazida de ouro - se tornou urso de cavernas ou cavador de tesouro ou
vigia de tesouro e dragão: seus próprios conceitos acabam por conter uma cor própria de lusco-fusco, um odor de profundeza
como de mofo, algo de incomunicável e renitente, que sopra frio em todo aquele que passa. O ermitão não acredita que um
filósofo - suposto que um filósofo sempre foi primeiro um ermitão - tenha jamais expresso suas próprias e últimas opiniões em
livros: não se escrevem livros, precisamente, para se resguardar o que se guarda em si? - ele até duvidará se um filósofo pode,
em geral, ter opiniões “últimas e próprias”, se nele, por trás de cada caverna, não jaz, não tem de jazer uma caverna ainda mais
profunda, um modo mais vasto, mais alheio, mais rico, além de uma superfície, um sem-fundo por trás de cada fundo, por trás de
cada “fundamento”. Cada filosofia é uma filosofia de fachada - eis aí um juízo ermitão: “Há algo de arbitrário se aqui ele se
deteve, olhou para trás, olhou em torno de si, se aqui ele não cavou mais fundo e pôs de lado a enxada - há também algo de
desconfiado nisso”. Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um esconderijo, cada palavra
também uma máscara. (Para além de Bem e Mal, § 289)

Aqui Nietzsche não tenta disfarçar a sua voz ou usar qualquer máscara a não ser a inevitável
máscara do “filósofo”. Mas filosofar é engajar-se numa atividade didática; e é questionável se isto
pode ser feito sem uma máscara ou uma plataforma de identidade estável.
Conduzindo-se sem máscaras ou vozes, Nietzsche encontra-se em grande perigo de
contradizer-se e produzir temas prosaicos para mudanças perceptíveis na temperatura emocional. Sua
escrita tende a tornar-se mais retórica à medida que mais libido se acha envolvida. Embora seu
hábito de estruturar os livros em sequências relativamente curtas em geral evite a necessidade de
sustentar longos argumentos filosóficos, ele tende a divagar ou a mudar engrenagens emocionais
quando se estimula a cólera ou a admiração. O tom está longe de ser neutro quando escreve a
propósito da besta loira.

Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como “verdade”, que mesmo o sentido de toda cultura seja fazer
do animal de presa “homem” um animal manso e civilizado, amestrá-lo num animal doméstico, então se deveria tomar todos
aqueles instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres junto
com os seus ideais, como os autênticos instrumentos da cultura; com o que não se estaria dizendo, no entanto, que os seus
depositários representem eles mesmos a cultura. O contrário é que seria não apenas provável - não! hoje é palpável1. Os
depositários dos instintos depressores e sedentos de desforra, os descendentes de toda escravatura europeia e não-europeia e,
em especial, de toda população pré-ariana - eles representam o retrocesso da humanidade! Esses “instrumentos da cultura”
são uma vergonha para o homem e, na verdade, uma acusação, um argumento contrário à “cultura”! Pode-se ter toda razão,
quando se guarda temor e se mantém em guarda contra a besta loira que existe no fundo de toda raça nobre; mas quem não
preferiria mil vezes temer e poder ao mesmo tempo admirar a não temer e ao mesmo tempo não mais poder livrar-se da visão
asquerosa dos malogrados, atrofiados, deformados, envenenados? E este não é o nosso destino? O que constitui hoje nossa
aversão contra o “homem”? - pois nós sofremos do homem, não há dúvida, (Para a genealogia da moral, Primeira
Dissertação, § 11)

Henry Staten, que bem sabe assinalar e interpretar mudanças involuntárias de tom, observou
quão veemente Nietzsche se torna ao discutir o tipo que ele denomina o sacerdote aristocrata. No
livro Para a genealogia da moral, de 1887, seu interesse na evolução desse tipo exerce “uma
pressão que leva a sua prosa para aquilo que não é uma narração progressiva mas uma oscilação,
num padrão parecido com o que Derrida observa em Para além do princípio do prazer, de Freud.
Pois, o objeto pelo qual Nietzsche se sente fascinado, o objeto que ele continuamente atrai e então
repele, a vontade ascética, já está inteiramente presente no sacerdote aristocrata com que Nietzsche
começa o seu relato, e todas as suas narrativas de desenvolvimento progressivo entretecem-se em
torno das pulsações de seu fascínio e rejeição pelo objeto”.
Preocupado com o desenvolvimento de bem e mal como conceitos, o livro Para a genealogia
da moral consiste em três dissertações. A primeira versa sobre a diferença entre “ruim” e "mau” e
sobre os sentidos contrastantes de “bom” na moralidade dos senhores e na dos escravos. Nietzsche
subverte a suposição a-histórica dos “psicólogos ingleses”, segundo a qual a ideia de bondade se
originou com aqueles que se beneficiaram de ações altruístas. A evolução da linguagem foi
determinada por grupos dominantes, que usaram a sua prerrogativa de dar nomes para glorificar a si
mesmos e a suas qualidades, enquanto denegriam as de outros grupos.
“Bom” era sinônimo de “nobre”, “mau” de plebeu. Em Homero, os heróis são sempre nobres,
os plebeus sempre fracos, desprezíveis e astutos. A associação do “que é de ascendência nobre” com
magnânimo e do “que é de origem humilde” com vil ainda sobrevive na maior parte das línguas.
Voltando-se para a emergência da casta sacerdotal, Nietzsche sugere que a sua ênfase na
limpeza converteu a abstinência em virtude. As várias cobiças - por poder, conquista, sexo, vingança
- todas acabaram por parecer perigosas e o homem assemelhou-se a um animal interessante, porque
tinha uma oportunidade que não fora proporcionada a nenhuma das outras bestas predatórias: ele
podia pecar. Enquanto os valores dos líderes guerreiros pressupunham um interesse saudável em
lutar, caçar, aventurar-se e dançar, a realização dos sacerdotes consistia em envenenar a corrente
sanguínea: a moralidade judaico-cristã era uma moralidade escrava, consequência de uma revolução
ética alimentada pelo ressentimento - “o ressentimento de seres tais, aos quais está vedada a reação
propriamente dita, o ato, e que somente por uma vingança imaginária ficam quites” (Para a
genealogia da moral, Primeira Dissertação, § 10). Os fracos podem sentir-se superiores aos fortes,
condoendo-se por aquilo que estes sofrerão no inferno.
Embora o sacerdote e o escravo estejam igualmente inclinados a esse ressentimento,
Nietzsche é ambivalente quanto aos sacerdotes e à espécie de ressentimento que instilam. Intitulada
“Culpa, má consciência e companhia”, a segunda dissertação explica a má consciência como a
doença que a humanidade teve de contrair, quando, passando por uma transformação fundamental, se
viu constrangida pela sociedade e pela paz. Instintos que não puderam descarregar-se tiveram de
voltar-se para dentro, enquanto “o inteiro mundo interior, originariamente delgado como algo
retesado entre duas peles, separou-se e aumentou, adquiriu profundeza, largura, altura, na medida em
que a descarga do homem para fora foi obstruída" (Para a genealogia da moral, Segunda
Dissertação, § 16).

Esse instinto de liberdade tornado latente à força - já compreendemos esse instinto de liberdade reprimido, recuado,
encarcerado no íntimo e, por fim, capaz de aliviar-se apenas contra si mesmo: isto, apenas isto foi em seus começos a má
consciência. (Para a genealogia da moral, Segunda Dissertação, § 17)
Guarde-se de fazer pouco caso desse fenômeno, simplesmente porque já é desde o início feio e doloroso. No fundo é a
mesma força ativa, que se põe à obra grandiosamente naqueles organizadores e artistas da violência e constrói Estados, que
aqui, interiormente, em escala menor e mais mesquinha, dirigida para trás, no “labirinto do peito”, para falar com Goethe, cria a
má-consciência e constrói ideais negativos; é aquele mesmo instinto de liberdade (na minha língua: a vontade de potência);
somente que a matéria em que se extravasa a natureza conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu
inteiro e velho si-mesmo animal - e não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o outro homem, os outros homens.
Essa secreta autoviolentação, essa crueldade de artista, esse prazer em dar uma forma a si mesmo, como a uma matéria difícil,
resistente, sofredora, em impor-se uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e
horrivelmente prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente dividida, que a si mesma faz sofrer, por prazer em fazer sofrer,
essa inteira “má consciência” ativa - já se percebe - como o verdadeiro ventre de acontecimentos ideais e imaginosos... (Para
a genealogia da moral, Segunda Dissertação, § 18).

O argumento é confuso se negarmos a Nietzsche o direito de contradizer-se. Inferior a seus


senhores, o padre ascético veio a ser atacado, porque seus instintos estavam enraizados em algo
doentio e porque ele tornou as massas doentes ainda mais doentes à medida que seus maus instintos
se consolidaram em autodisciplina. Mas a autodisciplina era benéfica para um animal doente tal
como o homem, cuja

inquieta energia não lhe dá sossego, fazendo seu futuro entrar como uma espora na carne de cada presente - como não
deveria um animal tão corajoso e rico ser também o mais comprometido, o mais profunda e desesperadamente doente de todos
os animais? (Para a genealogia da moral, Terceira Dissertação, § 13).

Embora tenha remetido o ascetismo à degeneração, Nietzsche regozija-se com a “energia


incansável” que impulsiona a humanidade em direção ao futuro. Apesar de si mesmo, admira a
vontade que faz sofrer a si mesma a fim de recriar-se.
Mas não vem muito ao caso censurar Nietzsche por inconsistência ou por zombar da lei de
não-contradição que ele menosprezava. Uma de suas realizações consistiu em mostrar que o valor
dela era limitado. Seus ataques à linguagem e à lógica foram lançados de modo mais convincente na
obra que não chegou a publicar. Suas formulações de 1886-1887 não divergem substancialmente das
do ensaio de 1873, exceto por abandonarem a distinção que ele havia estabelecido entre conceitos e
consciência intuitiva. Embora se refira com frequência - como faria um empirista - à evidência dos
sentidos, para ele

o contrário do mundo fenomênico não é “o mundo verdadeiro”, mas o mundo sem forma, informulável, do caos das
sensações portanto, uma outra espécie de mundo fenomênico, “incognoscível” para nós. (Fragmento Póstumo (64) 9 [106] do
outono de 1887)
O mundo fictício do sujeito, substância, “razão” etc. é necessário ... “Verdade” é a vontade de tornar-se senhor
sobre a pluralidade das sensações ...Tomamos os fenômenos como reais. (Fragmento póstumo (64) 9 [89] do outono de 1887).

Por ser indescritível, o caráter de um mundo num estado de fluxo pode parecer falso ou
autocontraditório. Se a linguagem e a lógica só são capazes de cobrir um mundo fictício, onde tudo
permanece estático, então a lei de não- -contradição não pode obrigar-nos mais do que, por exemplo,
a regra de três.

O interdito conceitual da contradição procede da crença... de que o conceito não só define o verdadeiro de uma coisa,
mas a apreende... A lógica é uma tentativa de apreender o mundo efetivo segundo um esquema do ser por nós estabelecido.
(Fragmento póstumo (67) 9 [97] do outono de 1887).

Quase não há dúvida de que Nietzsche esteve louco durante os últimos doze anos de sua curta
vida (1844-1900), mas é impossível ter certeza sobre quando ficou louco. Nem mesmo é fácil dizer
quando se defrontou pela primeira vez com a perspectiva da loucura. Seu amigo Franz Overbeck
pensava que ele estivera “vivendo o seu caminho em direção” ao colapso final. E, na Universidade
da Basiléia, quando tinha 25 anos, Nietzsche escreveu:

O que me amedronta não é a forma aterrorizadora atrás da minha cadeira mas a sua voz; portanto, não são as
palavras, mas o tom, que se identifica como inarticulado e inumano, dessa forma. Sim, se pelo menos ela pudesse falar como os
seres humanos falam. (Anotações dos anos 1868-1869).

Este afloramento de linguagem ilusória é isolado, mas a ênfase na voz é significativa, uma vez
que as ideias de divisão, dispersão, desintegração eram básicas para os seus hábitos mentais. Ele
tentava não pensar em termos de indivíduos mas de forças. A identidade estável do eu desaparece, e
o livro que ele começou em 1880, Aurora, sustenta que, mesmo durante o período pré-cristão, a
convenção fora tão implacavelmente opressiva que a loucura fora um fator na história da moralidade.

“Através da loucura vieram os maiores bens à Grécia”, disse Platão com toda a velha humanidade... Para todos
aqueles homens superiores, que foram irresistivelmente impulsionados a quebrar o jugo de toda convenção e fazer novas leis,
não havia alternativa, se não eram realmente loucos, a não ser fazerem-se de loucos. (Aurora, § 14).
Se não fossem corajosos o bastante para assim fingirem, tinham de incitar a isso; e a receita
que Nietzsche jocosa- mente oferece é como um espelho distorcido que focaliza a rotina de sua
própria vida:

excessivo jejum, contínua abstinência sexual, retiro para a solidão, ou escalar uma montanha ou uma coluna, ou "sentar
num antigo salgueiro diante de um lago”, e pensar resolutamente em nada exceto no que provoca êxtase e desordem mental.

A pilhéria reforça a suspeita que se pôde pretender atenuar - a de que havia um elemento de
autodestruição no estilo de vida de Nietzsche. A sua abstinência sexual era, no fundo, involuntária,
mas a sua dieta, que era excêntrica e inadequada, determinava-se menos pela pobreza que pela
autodisciplina masoquista. O conforto físico era menos importante para ele do que a ambição de ser
um dos grandes assassinos da lei. Em todos os períodos, sustenta, os homens mais criativos foram os
que mais sofreram e, assombrados pela lei que assassinaram, ansiaram pelo delírio que lhes
permitiria pensarem-se acima dela. São Paulo foi um desses assassinos da lei; e a denúncia que
Nietzsche faz dele baseia-se, pelo menos em parte, na simpatia, assim como mais tarde, quando
escreve sobre a morte de Deus, está pensando na morte da lei divina e sentindo remorso por ter sido
um dos assassinos.
Mas ser um legislador é ser um líder, e mesmo quando estava falando pela boca do profeta que
inventou, Zaratustra, Nietzsche tinha temores, que passava diretamente para Zaratustra.

Conheceis o pavor de quem adormece?


Até os dedos dos pés apavora-se de que o solo fuja debaixo dele e o sonho comece.
Eu vos digo isso por imagens. Ontem, na hora mais silenciosa, o solo fugiu debaixo de mim: o sonho começou.
O ponteiro avançava, o relógio da minha vida respirava - nunca ouvi tal silêncio a meu redor: a tal ponto que o meu
coração se assustou.
Depois, falaram-me sem voz: “Tu o sabes, Zaratustra?”
A esse murmúrio, gritei de medo e o sangue fugiu-me do rosto; mas fiquei calado.
Então, voltaram a falar-me sem voz: “Tu o sabes, Zaratustra, mas não o dizes!”
E eu, por fim, respondi, teimoso: “Sim, eu sei, mas não quero dizê-lo!” ...
Então, voltaram a falar-me sem voz: “Que sabes disso? O rocio cai sobre as ervas quando a noite mais se cala”.
E eu respondi: “Eles zombaram de mim, quando encontrei o meu próprio caminho e comecei a caminhar; e, em
verdade, então, tremeram-me os pés”.
E falaram-me assim: “Desaprendeste o caminho e, agora, desaprendes, também, a caminhar!”.
Então, voltaram a falar-me sem voz: “Que importância têm suas zombarias! Es alguém que desaprendeu a obedecer;
deves agora ordenar!
Não sabes quem é aquele de que todos mais necessitam? Quem ordena algo grande.
Realizar algo grande é difícil; mas o mais difícil é ordenar algo grande.
É isto o mais imperdoável em ti: tens o poder e não queres dominar”.
E eu respondi: “Para ordenar, falta-me a voz do leão”.
Então, voltaram a falar-me como num sussurro: “As palavras mais quietas são as que trazem a tempestade,
pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo.
O Zaratustra, deves caminhar como a sombra daquilo que tem de vir: assim ordenarás e, ordenando, caminharás à
frente de todos”.
E eu respondi: “Tenho vergonha”.
Então, voltaram a falar-me sem voz: “Ainda tens de tornar-te criança e não sentires vergonha.
O orgulho da juventude ainda tens em ti, tarde te tornaste jovem; mas quem quer tornar-se criança tem de superar,
também, a sua juventude”.
E eu refleti longamente e tremi. Mas, por fim, disse o que dissera no início: “Eu não quero”.
Então, aconteceu uma risada a meu redor. Ai, como essa risada me rasgava as entranhas e dilacerava o coração!
E voltaram a falar-me, pela última vez: “Ó Zaratustra, os teus frutos estão maduros, mas tu não estás maduro para os
teus frutos!
Assim tens de voltar novamente para a solidão: porque ainda deves sazonar”. (Assim falava Zaratustra, Segunda
Parte, “A hora mais silenciosa”).

Um dos luxos que Zaratustra ofereceu a Nietzsche foi a oportunidade de imaginar que tinha
discípulos e uma audiência para a sua pregação. Ele podia até entreter fantasias de prepará-los para
o combate.

Meus irmãos na guerra! Eu vos amo de todo o coração, sou e fui vosso igual. E sou, também, o vosso melhor inimigo.
Deixai, pois, que vos diga a verdade!
Eu sei do ódio e da inveja do vosso coração. Não sois bastante grandes para não conhecer ódio e inveja. Sede bastante
grandes, pois, para não envergonhar-vos de vós mesmos!
E, se não podeis ser santos do conhecimento, sede, ao menos, seus guerreiros. São estes os companheiros e
precursores de tal santidade.
Vejo muitos soldados; gostaria de ver muitos guerreiros! “Uniforme” chama-se a roupa que trajam: oxalá não seja
uniforme o que com ela escondem!
Deveis ser aqueles cujos olhos estão sempre à procura de um inimigo - do vosso inimigo. E em alguns de vós nasce um
ódio logo ao primeiro olhar.
Deveis procurar o vosso inimigo, deveis fazer a vossa guerra e fazê-la por vossos pensamentos! E, se o vosso
pensamento for vencido, deve a vossa retidão lançar ainda assim um grito de vitória!
Deveis amar a paz como meio para novas guerras. E a paz curta mais que a longa.
A vós não aconselho o trabalho, mas a luta. A vós não aconselho a paz, mas a vitória. Que o vosso trabalho seja uma
luta e a vossa paz, uma vitória!
Só se pode ficar calado e tranquilo quando se tem arco e flecha: do contrário, vive-se em ociosas conversas e
desavenças. Que a vossa paz seja uma vitória!
Dizeis que a boa causa santifica até a guerra? Eu vos digo: a boa guerra santifica qualquer causa. (Assim falava
Zaratustra, Primeira Parte, “Da guerra e dos guerreiros”).

Mas Nietzsche não tinha discípulos e só uma pequena audiência para os seus livros. O
isolamento estava agindo como um veneno lento em sua sanidade, mas foi apenas na fase final de seu
trabalho que ilusões de grandeza foram seriamente prejudiciais.
Não havia nada de patológico no fato de ele dar-se conta de que, num mundo sem-Deus, a
humanidade precisaria de uma nova moralidade, mas era insano pensar que isso podia ser provido in
toto por um único filósofo. Em 3 de setembro de 1888, Nietzsche escreveu o que pretendia ser o
prefácio do primeiro volume de sua Transvaloração de todos os valores - “talvez o mais orgulhoso
prefácio já escrito”.

Este livro pertence a poucos. Talvez nenhum deles viva ainda. Podem ser aqueles que compreendem o meu
Zaratustra: como eu poderia confundir-me com aqueles para os quais já existem hoje ouvidos? E somente o depois de
amanhã que me pertence. Alguns homens nascem póstumos... (O Anticristo, Prefácio).

Dentre os pré-requisitos para compreendê-lo estava o hábito das altitudes das montanhas e de

ver abaixo de si a lamentável tagarelice sobre política e interesse nacional... Uma predileção do forte por questões
para as quais ninguém tem hoje coragem, a coragem para o proibido... Uma nova consciência para verdades que até então
permaneceram caladas... Reverência por si mesmo, amor a si mesmo, liberdade incondicional contra si mesmo. (O Anticristo,
Prefácio).

Numa carta a um amigo, ele anunciou que assim que o livro fosse lido e compreendido

ele cortará em duas metades a história da humanidade ... Muito do que foi livre não mais será livre: o domínio da
tolerância reduz- se, por juízos de valor de primeira importância, a mera covardia e fraqueza de caráter. Ser cristão - estou
mencionando apenas uma consequência - será doravante indecente. Uma grande parte disto, a mais radical subversão que a
humanidade já conheceu, está a caminho dentro de mim. (Carta a Paul Deussen de 14 de setembro de 1888).

Em vez de aventurar-se numa transvaloração de todos os valores, o livro que se segue a esse
orgulhoso prefácio, O Anticristo, reitera pontos que Nietzsche já salientara sobre poder, fraqueza,
decadência, compaixão e a moralidade judaico-cristã. Mas ele já era incapaz de autocrítica. O livro
estava meio concluído quando declarou:

Ele possui uma energia e transparência que talvez nunca tenham sido alcançadas por um filósofo. Tudo se passa como
se de repente eu tivesse aprendido a escrever ... A obra atravessa com firmeza os séculos. Aposto que tudo o que foi dito ou
pensado como crítica do cristianismo é, em comparação, pura infantilidade. (Carta a Franz Overbeck de setembro de 1888).

Ilusões de grandeza tornavam Nietzsche peremptório com os seus amigos. A um deles, que
expressou diplomaticamente suas divergências em relação ao panfleto O caso Wagner, ele escreveu:

Não há coisa alguma, sobre a qual eu admita oposição. Sou, em questão de décadence, a mais alta instância que já
existiu sobre a Terra. A humanidade de hoje, com seus instintos miseravelmente viciados, deveria considerar-se com sorte por
ter alguém que pode verter vinho puro. (Carta a Malwida von Meysenbug de 18 de outubro de 1888).

As estratégias que adotava para alcançar a autossuficiência tornavam-se cada vez mais
desesperadas. Sozinho no dia de seu quadragésimo quarto aniversário, ele festejou começando o
livro Ecce Homo.

Na antevisão de que dentro em breve terei de me apresentar à humanidade com a mais difícil exigência que jamais lhe
foi feita, parece-me indispensável dizer quem sou eu ...A desproporção, porém, entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez
de meus contemporâneos, alcançou sua expressão no fato de que nem me ouviram, nem sequer me viram. (Ecce Homo,
Prólogo, § 1).

Ele continua a elogiar Assim falava Zaratustra como o livro mais elevado e mais profundo
que existe,

um poço inesgotável, em que não desce nenhum balde sem voltar cheio de ouro e bondade ... É um privilégio sem igual
ser ouvinte aqui. (Ecce Homo, Prólogo, § 1).
Não foi em vão que enterrei hoje meu quadragésimo quarto ano, eu podia enterrá-lo - o que nele era vida está salvo, é
imortal. (Ecce Homo, Abertura).

Títulos de capítulos tais como “Por que sou tão sábio” e “Por que escrevo livros tão bons”
dificilmente deixam de irritar, mas o capítulo final, “Por que sou um destino”, olha de modo
impressionante para o futuro. Embora não seja niilista, Nietzsche disso se aproxima ao encarar as
consequências de seu desejo de aniquilar a mediocridade, uma vez que grande parte da humanidade é
irremediavelmente medíocre. O que acontecerá agora que ele destruiu a tábua de salvação que o
judaísmo e o cristianismo mantinham?

Um dia, ao meu nome estará ligada a lembrança de algo tremendo - de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da
mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, exigido,
santificado. Eu não sou um homem, sou dinamite... Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos
comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado... O conceito de política
estará então completamente dissolvido em uma guerra dos espíritos, todas as formações de potência da velha sociedade
explodirão pelos ares - todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra. (Ecce
Homo, Por que sou um destino, § 1).

Ele chega a ponto de confundir imagens mentais e atividade literária com acontecimentos
exteriores. Dez dias depois de terminar esse capítulo, escreve:

Considerando o que escrevi entre 3 de setembro e 4 de novembro, receio que possa haver em breve um pequeno
terremoto ... Há dois anos, quando estava em Nice, lá ocorreu de modo apropriado. De fato, ontem o relatório do observatório
mencionou um pequeno tremor. (Carta a Meta von Salis de 14 de novembro de 1888).

Por volta de dezembro, estava maniacamente confiante de que nada existia além de seus
poderes.

As tarefas mais inauditas são fáceis como um jogo; minha saúde, como o tempo, está melhorando a cada dia com firmeza e
ilimitado fulgor... O mundo ficará de ponta-cabeça nos próximos anos: depois que o velho Deus abdicou, doravante governarei o mundo.
(Carta a Carl Fuchs de 11 de dezembro de 1888).

Não tendo mais controle de redação sobre as declarações feitas pelas vozes em sua cabeça,
Nietzsche não podia mais estar certo de sua identidade. As últimas de suas cartas assinadas com o
seu próprio nome foram escritas para o dramaturgo sueco August Strindberg no final do ano: "Eu
ordenei uma convocação de príncipes em Roma. Quero que o jovem Cáiser seja fuzilado”. A
assinatura era “Nietzsche- -César”. Agora poderíamos dizer dele o que Jung dizia de sua prima
espiritualista: elementos reprimidos irromperam em alucinações como se fossem personalidades
independentes.
Enviando a Nietzsche uma carta inteiramente escrita em grego e latim, Strindberg começou
com a citação de um poema anacreôntico - “Eu quero, quero estar louco”. A carta, que terminava
com a frase “Entrementes é uma alegria estar louco”, estava assinada “Strindberg (Deus, optimus
maximus)”.
Na manhã de 3 de janeiro de 1889, Nietzsche viu um condutor de carruagem bater em seu
cavalo numa piazza. Em lágrimas, o filósofo lançou seus braços ao redor do pescoço do animal e
desmaiou. Bem depois, levado a um hospício, pensou que a viúva de Wagner, Cosima, o trouxera lá.
Denominando-se ora o Duque de Cumberland ora o Cáiser, ele estava confuso quanto à sua
identidade; e certa vez disse: “Eu fui Friedrich Wilhelm IV pela última vez”. Por vezes, falava
francês com os outros pacientes e pensava que o chefe da segurança era Bismarck.
Três das cartas que Nietzsche escreveu no início de janeiro de 1889 estão assinadas
“Dioniso” e três, assinadas “O Crucificado”. Escreveu para o rei da Itália, dirigindo-se a ele como
“Meu querido Umberto” e para o secretário do Estado do Vaticano. Numa outra carta, dizia:

O mundo está transfigurado, pois Deus está na Terra. O senhor não vê como os céus se regozijam? Acabei de tomar
posse do meu reino, estou pondo o Papa na prisão e fuzilando Wilhelm, Bismarck e Stöcker. (Carta a Meta von Salis de 3 de
janeiro de 1889).

Numa carta que postou em 5 de janeiro, escreveu:

Por fim, preferiria ser professor na Basiléia a ser Deus; mas não ousei levar tão longe o meu egoísmo privado e, por
causa dele, deixar de criar o mundo. Como o senhor vê, tem-se de fazer sacrifício de qualquer modo e onde quer que se viva ...
- Já que estou condenado a passar a próxima eternidade com piadas ruins, tenho aqui uma papelada, que de fato nada deixa a
desejar - muito agradável e de modo algum fatigante ... O que é desagradável e ofende a minha modéstia é que, no fundo, eu
sou todos os nomes na história; também com as crianças, que eu pus no mundo, é de tal modo que pondero com alguma
desconfiança se todos os que entram no “reino de Deus” não provêm também de Deus. (Carta a Jacob Burckhardt datada de 6
de janeiro de 1889, mas postada no dia 5).

Ele teve de sobreviver por mais de onze anos, que despendeu num estado de apatia. Um
músico, Peter Gast, que o visitou em janeiro de 1890, teve a impressão de que “seu distúrbio mental
consiste apenas num agravamento da excentricidade jocosa que ele estava habituado a fingir no
círculo íntimo dos amigos”, mas, quando Gast o levou para passear, ficou óbvio que não desejava
retomar sua vida pregressa. “Tudo se passava - por horrível que fosse - como se Nietzsche estivesse
apenas fingindo a loucura, como se estivesse contente por tudo ter terminado dessa maneira”. Isto
está de acordo com as impressões de Franz Overbeck, que chegou em fevereiro. “Não posso evitar a
horrível suspeita ... de que a sua loucura é simulada. Só se pode explicar essa impressão pelas
experiências que tive com as dissimulações de Nietzsche, com as suas máscaras espirituais”.
Mas ele raramente pronunciava uma sentença coerente. No dia primeiro de fevereiro, quando
Gast chegou com seis doces, Nietzsche disse: “Não, meu amigo, não quero ficar com dedos
pegajosos agora, porque antes quero tocar um pouco”. E sentou-se ao piano para improvisar. “Nem
uma nota em falso! Entremeando tons da sensibilidade de Tristão... da profundidade de Beethoven, e
canções de júbilo que se sobressaíam. Então, de novo devaneios e sonhos”. Incapaz ou relutante em
usar máscaras ou vozes, ele ainda podia comunicar-se através da música.
A etiologia de sua doença e sua loucura são problemáticas: diagnósticos contemporâneos não
são confiáveis e é rara a evidência que ainda se mantém. Embora seu pai sofresse de ataques
epiléticos (provavelmente, do petit mal), não podemos estar certos de que fossem sifilíticos ou de
que as doenças de Nietzsche na infância fossem hereditárias. Suas enxaquecas talvez se devessem à
sinusite, que pode causar um desconforto persistente e crônico, se não for tratada de modo eficaz;
dificilmente pode ter sido sífilis hereditária que deixou Nietzsche louco ou o colapso teria ocorrido
antes. Em janeiro de 1889, depois do ataque de loucura, ele disse que se contaminara duas vezes em
1866. Se um médico de Leipzig diagnosticou doença venérea, provavelmente baseou sua opinião nas
dores e talvez estivesse errado.
Sabemos que Nietzsche foi a um bordel em 1865, mas aparentemente deixou-o sem tocar em
nenhuma das mulheres. Thomas Mann conjecturou que ele lá voltou, mas isto não parece verossímil.
Uma vez que não podemos estar certos de que a loucura final era sifilítica, não há necessidade de
supor que Nietzsche deva de uma forma ou outra ter-se contaminado com sífilis. Com exceção de
suas próprias afirmações, feitas depois que enlouqueceu, não há evidência alguma de que nem mesmo
tenha feito amor com uma mulher - ou com um homem.
Não podemos excluir a possibilidade de sífilis cerebral, que pode ter causado o ataque que
ele sofreu em 1898, mas é improvável que as ilusões de grandeza ou o colapso tenham algo a ver
com sífilis. Durante muitos anos, entre o colapso e o ataque, Nietzsche permaneceu livre da
incontinência e de qualquer paralisia corporal séria, mantendo pelo menos um controle parcial de sua
memória. Sua mãe podia cuidar dele quase sem ajuda, e ele ainda podia falar sem modulações. Não
se pode conciliar nada disso com o diagnóstico de dementia paralytica. Tampouco posso encontrar
qualquer evidência no boato, que tanto Freud quanto Jung ajudaram a propagar, de que ele visitou um
bordel masculino em Gênova.
Com suas dores de cabeça, perturbação visual, vômitos e loucura, ele estava sobrevivendo,
mais diretamente do que qualquer outro pensador, às consequências de afastar-se da religião
organizada. A relevância de sua experiência seria a maior das causas de seu colapso, se elas não
fossem orgânicas. Há, frequentemente, um elemento de escolha nos colapsos e um elemento
histriônico na loucura, embora pareça improvável que Nietzsche estivesse apenas fingindo ou que
tivesse chegado a tal ponto só para fugir da humilhação de ter fracassado em transvalorar todos os
valores. Ele antecipou seu próprio destino num apontamento sobre “o último filósofo”. Sua maneira
de consentir ao esquecimento foi entregar-se ao colapso.
Mas a loucura de Nietzsche não invalida suas realizações filosóficas nem a exigência que ele
faz de nós. Se o seguimos no impasse, não podemos escapar da maneira como ele escapou. E
possível que nos familiarizemos com a ausência de Deus, mas se perdemos a fé na linguagem e na
verdade, como faremos para nos comunicar? Se perdemos a fé na coerência do eu, como saberemos
quem está pensando quando o fazemos? Mais de um século transcorreu desde que Nietzsche desafiou
as suposições por trás de todas as nossas convenções, mas não encontramos respostas nem
convenções alternativas.

Notas

1. Embora o autor deste ensaio não utilize a edição crítica das obras completas de Nietzsche, organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari, foi a partir dela que traduzimos todas as citações dos textos e cartas do filósofo aqui presentes (Werke. Kritische
Studienausga.be, 15 volumes, Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1967-1978, e Sàmtliche Briefe. Kritische Studienausgabe, 8 volumes,
Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1975-1984). Fruto de um trabalho de fôlego, desenvolvido ao longo de anos com extremo cuidado e
rigor, esta edição crítica tornou-se imprescindível para a pesquisa internacional acerca da obra de Nietzsche. Seus méritos são
inquestionáveis: tornou acessível aos estudiosos a totalidade dos escritos do filósofo; buscou recuperar os textos de acordo com os
manuscritos originais ordenados cronologicamente; procurou depurar das deformações e falsificações que sofreram a obra publicada, as
anotações inéditas e a correspondência; incluiu imenso aparato histórico-filológico de valor inestimável. (N. T.)

2. Neste caso, como em muitos outros, optamos por fornecer ao leitor as referências completas da citação, embora não tivessem sido
incluídas pelo autor deste ensaio. (N. T.)

3. Em 1901, Elizabeth Förster-Nietzsche publicou uma obra a que deu o nome de Vontade de potência. A partir de apontamentos que o
filósofo deixou e de um plano que ele seguiu durante algum tempo, reuniu 483 fragmentos póstumos redigidos entre o outono de 1887 e
os primeiros dias de janeiro de 1889. Escolheu-os a dedo no caos das notas escritas durante meses e organizou-os sem respeitar sequer a
ordem cronológica. Assim, com a ajuda de Peter Gast, compilou o que apresentou como a “obra filosófica capital” de Nietzsche.
Questionável sob vários aspectos, a Vontade de potência serviu, até a década de 1950, enquanto instrumento de trabalho para os
estudiosos. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial, Karl Schlechta denunciou o procedimento de Elizabeth Förster-Nietzsche e
desqualificou o livro por ela inventado. Baseando-se em pesquisas feitas nos Arquivos Nietzsche em Weimar, constatou que não existia a
Vontade de potência, a “obra capital”; tudo o que havia eram papéis póstumos. (N. T.)
Coleção: Grandes Filósofos

Formato: 11 x 18 cm
Mancha: 20 x 38,2 paicas
Tipologia: IowanOldSt Bt 9/12
Papel: Pólen 80 g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)
1a edição: 2000

EQUIPE DE REALIZAÇAO
Produção Gráfica
Edson Francisco dos Santos (Assistente)

Edição de Texto
Fábio Gonçalves (Assistente Editorial)
Fábio Gonçalves (Preparação de Original)
Rodrigo Villela (Revisão)

Editoração Eletrônica
Lourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão)
Luís Carlos Gomes (Diagramação)

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