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Salma Ferraz
(organizadora)
NUTEL
Núcleo de Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura.
Teopoética
2008
1
Disse Moisés a Deus: Eis que, quando eu vier aos filhos de
Israel e lhes dizer; O Deus de vossos pais me enviou a vós
outros: e eles me perguntarem; Qual é o seu nome? Que
lhes direi?
Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais:
Assim dirás aos filhos de Israel; EU SOU me enviou a vós
outros.
Êxodo 3: 13-14.
2
candeeiros pela manhã? Ainda não escutamos nada do barulho
dos coveiros que estão enterrando Deus? Ainda não sentimos o
cheiro da putrefação de Deus? – também os deuses apodrecem!
Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos!
Como nos consolamos, os assassinos entre todos os
assassinos? O mais sagrado e poderoso que o mundo até aqui
possuía sangrou sob nossas facas – quem é capaz de limpar
este sangue de nós? Com que água poderíamos nos purificar?
Que festejos de purificação, que jogos sagrados não
precisaremos inventar? A grandeza desse ato não é grande
demais para nós? Nós mesmos não precisamos nos tornar
deuses para que venhamos a aparecer como apenas dignos
deste ato? Nunca houve ato tão grandioso – quem quer que
nasça depois de nós pertence por causa deste ato a uma história
mais elevada do que toda história até aqui! O homem desvairado
silenciou neste momento e olhou novamente para os seus
ouvintes: também eles se encontravam em silêncio e olhavam
com estranhamento para ele. Finalmente, ele lançou seu
candeeiro ao chão, de modo que este se partiu e a pagou. “Eu
cheguei cedo demais” – disse ele então – “eu ainda não estou
em sintonia com o tempo. Este acontecimento extraordinário
ainda está a caminho e perambulando – ele ainda não penetrou
nos ouvidos dos homens. O raio e a tempestade precisam de
tempo, a luz dos astros precisa de tempo, atos precisam de
tempo, mesmo depois de terem sido praticados, para serem
vistos e ouvidos. Este ato está para os homens mais distante do
que o mais distante dos astros: e porém, eles o praticaram!” –
Conta-se ainda que o homem desvairado adentrou no mesmo dia
várias igrejas e entoou aí o seu Requiem aeternam deo.
Acompanhado até a porta e questionado energicamente, ele
retrucava sem parar apenas o seguinte: “O que são ainda afinal
estas igrejas, senão túmulos e mausoléus de Deus?”
NIETZSCHE, A gaia ciência, Aforismo 125.
“In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum”.
João 1:1
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SUMÁRIO
1) Teopoética: Os estudos literários sobre Deus.
Salma Ferraz (UFSC)
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10) O Mito Cristão no Cinema.
Laércio Torre de Góes (UFBA)
12) De(u)smundo.
Fernando Floriani Petry (UFSC)
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19) O deserto de Deus e o sertão dos Homens: Guimarães Rosa e o Deserto
do Sinai.
Nelson de Sena Filho (CUC)
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COLABORADORES
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APRESENTAÇÃO
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No Brasil sobre a liderança do NUTEL – Núcleo de Estudos entre
Teologia e Literatura da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina já
foram realizados três Simpósios de Teopoética: o primeiro intitulou-se Teopoética:
os estudos comparados entre Teologia e Literatura e foi realizado em Porto
Alegre, durante a Abralic, em Julho de 2004; o segundo foi denominado da
mesma forma e efetivou-se em Dourados, Mato Grosso do Sul, dentro do
Simpósio Internacional sobre Religiões em Abril de 2006 e o terceiro intitulou-se
Teopoética: o literário como lugar privilegiado para a manifestação do sagrado e
do epifânico e ocorreu dentro da programação da Abralic em Agosto de 2006 no
Rio de Janeiro.
Salma Ferraz
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TEOPOÉTICA:
OS ESTUDOS LITERÁRIOS
SOBRE DEUS
SALMA FERRAZ
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TEOPOÉTICA: OS ESTUDOS LITERÁRIOS SOBRE DEUS
Salma Ferraz1 (UFSC)
1
FERRAZ é professora de Literatura Portuguesa da UFSC, autora de O Quinto Evangelista/UNB
(1999) e As Faces de Deus na obra de um Ateu/EUFJF&EDIFURB (2003) e ministra a matéria
Teopoética – Os Estudos Comparados entre Teologia e Literatura na Pós Graduação em Literatura
da UFSC, Florianópolis, Brasil. Coordena o NUTEL – Núcleo de Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura: salmaferraz@brturbo.com.br
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O que os estudiosos da Teopoética defendem é que é preciso acabar
com a acusação geralmente levantada pelos teólogos de que a Literatura é uma
intromissão não muito desejada na esfera da Religião.
Apesar de ser um novo ramo dos estudos comparados entre Teologia e
Literatura, esta idéia da Teopoética não é recente. Santo Agostinho cita o escritor
romano Varro2, que fazia distinção entre teologia filosófica (a verdade conhecida
pelos filósofos), a teologia civil (a religião oficial estabelecida pelo Estado cujos
rituais são realizados nos templos) e a teologia poética (apresentada nas obras de
poetas e dramaturgos ao retrabalharem no teatro os velhos mitos sobre os
deuses). Ou seja, o conceito de Teopoética nasceu antes do advento do
cristianismo. Santo Agostinho não aceitava a Teopoética, era frontalmente contra
a reinvenção e reinterpretação poética de textos sagrados da Bíblia efetivada
pelos poetas de uma forma mítica ou fabulosa. Segundo Don Cuppit em seu livro
Depois de Deus, o que o pensador católico na realidade pretendia era enterrar a
teologia poética e mantê-la firmemente reprimida pelos próximos mil anos. Santo
Agostinho não queria rivais, queria o monopólio da Teologia para si.
Há alguns algozes de Deus na Literatura na Filosofia. Para Karl Marx, a
religião não passava de ópio para o povo; para Freud, a religião era considerava
uma manifestação de infantilismo; Darwin, no lugar de Adão moldado em barro
pelas mãos divinas, nos legou como ancestral nada menos que um macaco e
Dostoiévski afirmou através de um dos seus personagens que "Se Deus não
existe, tudo é permitido".
Nietzche não entendia por que o sofrimento deveria ser dignificado,
não aceitava que os últimos deveriam ser os primeiros, isto para ele era a
inversão da ordem natural das coisas. Em o Anticristo afirmou que o cristianismo
foi, até agora, o maior infortúnio da humanidade. Para ele, o cristianismo era a
religião dos fracos e fracassados. Se Nietzche, filosoficamente, matou Deus,
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Marcus Trentius Varro (Riet, 116 – 27 A C.), polígrafo latino. Advogado em Roma, participou da
guerra civil ao lado de Pompeu, mas se reconciliou com César, que o encarregou de organizar
bibliotecas públicas. De sua obra colossal (cerca de 650 livros) restaram apenas três livros: um
tratato de economia rural (Res rusticae), parte de um tratado de gramática (De lingua latina),
fragmentos de obras literárias, biográficas e mesmo religiosa (Res divinas).
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realizando o seu funeral, José Saramago, com seu Evangelho Segundo Jesus
Cristo, cremou o pouco que sobrou do Deus dos cristãos.
Sempre digo que a Teopoética é injusta em certa medida com Deus,
porque afinal Deus nunca teve a chance de escrever nenhum romance. Mesmo
sendo protagonista do Antigo Testamento, e se fazendo presente por meio de seu
filho - Jesus, no Novo Testamento, a Bíblia foi escrita por diversos autores, é uma
compilaçção de diversos livros que passaram por diversas reescrituras, não foi
escrita por Deus,
A Bíblia está entre os maiores best-sellers de todos os tempos e é uma
obra clássica da literatura hebraica e cristã, imprescindível para o conhecimento
do cristianismo, da Literatura Ocidental e da cultura do Ocidente. A bem da
verdade, não se trata apenas de um único livro, mas de uma antologia de livros
do judaísmo (Antigo Testamento) e de uma antologia de livros do cristianismo
primitivo (Novo Testamento).
O cristianismo é tão importante para o mundo ocidental que quase
chega a confundir-se com ele. É Miguel de Unamuno quem insinua, em sua obra
A Agonia do Cristianismo, que, se o cristianismo desaparecer, a civilização
ocidental tende a desaparecer juntamente com ele. O cristianismo está na base
de toda a cultura, de toda a História do Ocidente. Northorop Frye na introdução de
seu livro Anatomia da Crítica, afirma que, apesar de a tipologia bíblica ser uma
linguagem morta e desconhecida até por eruditos, há uma íntima ligação entre
Teologia e Literatura, uma vez que para ele a literatura ocidental tem sido mais
influenciada pela Bíblia do que por qualquer outro livro.. Corrobora essa mesma
idéia Jostein Gaarder, em sua obra O Livro das Religiões, ao afirmar que o
cristianismo é o pré-requisito para compreender a sociedade e a cultura em que
vivemos. Portanto, a obra literária produzida no Ocidente sempre guardará
referência à cultura que lhe deu origem.
Estreitando ainda mais estas considerações, podemos dizer que não
existe Ocidente sem a idéia de Deus. Jack Miles, em seu livro Deus – uma
biografia, afirma também que o Deus dos judeus e dos cristãos constitui a
realidade última do Ocidente e que toda a cultura ocidental foi moldada a partir da
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idéia de Deus. Ressalta também que nenhum personagem, porém – no palco, na
página ou na tela – jamais teve o sucesso que Deus sempre teve. Segundo Miles,
no Ocidente, Deus é mais que um nome familiar; ele é, queira-se ou não, um
membro virtual da família ocidental. Em outra obra sua, afirma ainda que o
cristianismo faz parte, é parte constituinte do DNA da civilização ocidental.
Existe uma diferença básica entre o Cristo Histórico e o Cristo da Fé. O
Cristo da Fé, o Cristo Teológico, o Cristo Messias e Redentor é aquele que não
precisa ser legitimado pela pesquisa história. Aceita-se pela fé e, como bem
define o Apóstolo Paulo na sua carta aos Hebreus, a fé é o firme fundamento das
coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem.
Já o Cristo Histórico é aquele que precisa de dados históricos para ter
sua existência comprovada, é aquele que viveu e morreu na Palestina antes do
ano 70 de nossa era.
James H. Charlesworth, no final do seu livro Jesus dentro do Judaísmo,
enumera nada menos que 151 obras publicadas a partir da década de setenta
sobre o Cristo Histórico. Citemos algumas das principais: Verdade e ficção na
Bíblia, de Robin Lane Fox (1992); Jesus, o Judeu de Geza Vermes (1990); A
marginal Jew - Rethinking the Historical Jesus, de John Meier (1991); The
Historical Jesus de John Dominic Crossan (1991) Jesus - a life, de A. N. Wilson
(1992); Cristo – Uma Crise na vida de Deus de Jack Miles (2002). O que ocorre é
que historiadores dos mais variados credos e posições filosóficas, ateus, cristãos,
judeus, agnósticos, marxistas, todos têm escrutinado abundante e
cuidadosamente a vida de um judeu chamado Jesus Cristo, ou seja, tem-se a
impressão de que jamais, em todo o tempo, pesquisou-se, discutiu-se tanto sobre
o Cristo Histórico como agora.
No Brasil, Deus e Cristo já foram destaques nas capas de algumas das
principais revistas nos últimos dois anos: Veja, Super Interessante, Manchete,
Cult, Revista das Religiões, etc.
Há muitos episódios dramáticos narrados na Bíblia. Mas gosto
especificamente do lirismo de Salmos, Eclesiastes, de Cantares, Provérbios. Do
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Eclesiastes, cito o capítulo 3 na transcriação magnífica de Haroldo de Campos –
Qohélet/O-que-sabe:
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Camões, o grande vate português, escreveu vários de suas sonetos a
partir de motivos bíblicos, um deles inclusive baseado na maldição de Jó. Camões
começa seu soneto assim: O dia em que nasci, moura e pereça. Miles, em Deus
uma Biografia, ressalta que a Bíblia é inquestionavelmente uma extraordinária
obra de literatura, e o Senhor Deus um personagem dos mais extraordinários.”
Na Literatura Brasileira dois dos nossos melhores romancistas foram
influenciados pela Teologia: Machado de Assis e Guimarães Rosa. Em Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Esaú e Jacó, há um diálogo constante com a Bíblia. O
leitor que desconhece o texto bíblico perderá muito do texto e da ironia de
Machado. Em Esaú e Jacó, se o leitor souber a estória dos gêmeos Esaú e Jacó
do Antigo Testamento e se conhecer o confronto de idéias entre os apóstolos
Pedro e Paulo no Novo Testamento, terá uma compreensão do livro muito mais
ampla. Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, elabora toda uma teoria e
simbologia sobre o demônio e sobre o pacto com o Arrenegado, o Cão, o
Cramulhão, o Galhardo, o Sujo, o Coisa-Ruim, etc. Não posso me esquecer
também da magnífica biografia de Cristo escrita pelo genial Paulo Leminski.
Na Literatura Portuguesa vários foram os poetas e escritores
influenciados pelo texto bíblico, mas destaco especialmente Padre Vieira com sua
História do Futuro, Gil Vicente com a Trilogia das Barcas (Auto da Barca do
Inferno, Auto da Alma e Auto da Barca da Glória), Eça de Queirós, anticlericalista
ferrenho n’O Crime de Padre Amaro. N’A Relíquia, Eça criticou o catolicismo e
seus santos, sua hipocrisia, suas relíquias, transformando o personagem
Teodorico em uma espécie de evangelista herege, que de uma maneira vulgar e
irônica dessacraliza o Filho de Deus numa caracterização inclemente deste.
Guerra Junqueiro, em A Velhice do Padre Eterno, destinou uma sátira ferrenha à
Primeira Pessoa da Trindade. Raul Brandão mostrou a face dolorida e pessimista
do cristianismo em Húmus e Fernando Pessoa se debruçou em vários momentos
de sua obra poética a questionar o sagrado, os deuses e a própria Trindade
cristã. Por fim, chegamos a José Saramago, um ateu que tem Deus como tema
predileto de suas obras, basta citar aqui dois clássicos: O Evangelho Segundo
Jesus Cristo e Memorial do Convento.
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Na Literatura Universal, dezenas de escritores dialogaram criativa e
ironicamente com o texto bíblico. Dante com sua Divina Comédia é um caso
interessante porque ele foi influenciado pela Bíblia e influenciou o pensamento
cristão com sua noção de inferno e purgatório. Temos O Paraíso Perdido, de
Milton, isto sem falar em Kafka, Rainier Maria Rilke, Herman Hesse, Ernest
Renan, Thomas Mann. Charles Dickens, Jorge Luiz Borges, e centenas de outros
igualmente importantes. E se mencionarmos os best-sellers a lista iria longe: JJ.
Benítez com Operação Cavalo de Tróia, Dan Brown e O Código da Vinci, etc. Nos
Estados Unidos a produção nesta área é imensa. Cito só acomo exemplo Ao vivo
do Calvário, de Gore Vidal e Quarentena de Jim Crace.
O apóstolo Paulo, homem de uma cultura extraordinária, judeu
convertido ao cristianismo, e consolidador dessa doutrina temia que a imaginação
dos homens pudesse dar uma interpretação diferente de Deus. Ele estava em
Atenas, berço da civilização grega e de toda a Filosofia. O apóstolo discursava no
Areópago diante do ceticismo de filósofos epicuristas e estóicos, em certo sentido,
a nata da elite pagã. Benedito Nunes nos informa que estes pagãos cultos,
[estavam] embebidos não da religião popular dos gregos, mas da Paidéia – o
tríplice aprendizado da ginástica, da música e da Filosofia. Foi para eles que
Paulo pregou o seguinte sermão:
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aquilo que Heidegger quase dois mil anos depois enunciou – a pesquisa filosófica
é e permanece ateística. Ou seja, parece que o cristianismo tinha e tem reservas
especiais com relação a filósofos e escritores e a interpretação que eles poderiam
dar a Deus.
A Teodicéia é um campo da Teologia natural que defende a
onipotência, a onisciência, a justiça e a bondade de Deus. É contra a idéia de que
a presença do mal e do sofrimento no mundo reduzem ou minimizam os atributos
divinos. Essa expressão foi criada por Leibniz, em sua obra Teodicéia, publicada
em 1710. Neste ensaio o filósofo debatia a bondade de Deus, tentava elaborar um
tratado racional sobre Deus, sobre a liberdade do homem e a origem do mal.
Perante o problema do mal, o filósofo assumiu uma posição otimista, concluindo
que o mundo criado por Deus ainda é o melhor dos mundos possíveis.
Saramago é um escritor contemporâneo obcecado pelo tema Deus. No
decorrer de sua obra, destrói progressivamente as várias faces de Deus. Em
Terra do Pecado (1945), ataca o Deus de Eva e do pecado carnal; em História do
cerco de Lisboa (1989), condena Jeová/Alá pelas guerras In nomine Dei; em
Memorial do Convento (1982), investe contra o Deus da Igreja Católica, seus
santos, seu ritualismo, sua corrupção; e no Evangelho Segundo Jesus Cristo
(1991), reescreve um evangelho particular, concebendo um Deus cruel que quer
ampliar seus domínios e necessita de um mártir para impressionar as pessoas.
Deus, na obra do escritor português, é o verdadeiro antagonista de Cristo, aliás,
humano por excelência. O Diabo é o grande herói deste evangelho profano, é
quem tenta salvar Jesus da crucifixão e salvar todos os humanos de uma religião
que já nasce com o cheiro de sangue. Saramago escreve em sua obra uma
antiteodicéia, uma antiteopoética, uma antiépica de Deus. Repito o que já disse
anteriormente: se Nietzche matou Deus, Saramago cremou suas cinzas. Não
sobrou mais nada depois do Evangelho Segundo Jesus Cristo. Sua obra é um
verdadeiro locus theologicus. Se a Teologia é a ciência do sagrado, a ciência de
Theos, a escritura de Saramago é a negação absoluta dos atributos e do caráter
divino, neste sentido, Antiteodicéia.
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Cuppit, em Depois de Deus, afirma que desafiar Deus e lutar contra
Deus já faz parte da crença em Deus. Menciona o próprio Abraão, o chamado Pai
da Fé, desafiando Deus. Ou seja, só é ateu aquele cuja mentalidade é teísta.
Para Cuppit, Deus surgiu no momento em que alguém elaborou um pensamento
crítico sobre Ele. O crítico ainda menciona que a crise da representação pós-
moderna começou com Deus. Conclui sua brilhante argumentação afirmando que
o Cristo humano alquebrado, sem família, abandonado, dividido, estraçalhado, foi
o pioneiro da modernidade.
Um excelente estudo sobre as relações entre Teologia e Literatura
encontra-se no livro Deus no espelho das palavras – teologia e literatura em
diálogo de Antonio Magalhães. Entre outros importantes pontos, o autor aponta
para o fato de que tanto a teologia como a literatura buscam esclarecer o mistério
profundo o ser humano. Para ele, a literatura revela o mistério mais profundo de
nossa existência e a Teologia precisa desta revelação. Magalhães reforça uma
idéia de Octávio Paz: sem a Literatura, seus mitos e duas parábolas, a Teologia
corre o risco de se tornar um casarão desabitado.
No princípio era o verbo e o verbo se fez letra, se fez literatura, se fez
linguagem, se fez o dom de línguas, se fez morada do ser, se fez letra e espírito,
sedução e magia, mito, revelação, palavras inspiradas, paixão e contemplação,
travessias muito além da terceira margem do caminho que é certo e (in)certo, de
veredas tortas e veredas mortas da Teologia e da Literatura. O mito que é nada e
que é tudo, aquilo que é, que foi que será. Transleituras de Deus, Deus nas
escrituras e na poesia, Deus no dom de línguas, no pentescostes do dom palavra.
Linguagens de Deus. Deus nas línguas de fogo. No princípio era o verbo e ele se
fez poesia. O numinoso... Afinal, Deus existe mesmo quando não há.
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A TERCEIRA MARGEM DA
FICÇÃO: LITERATURA E
TEOLOGIA EM JORGE LUÍS
BORGES
23
A TERCEIRA MARGEM DA FICÇÃO: LITERATURA E TEOLOGIA
EM JORGE LUÍS BORGES
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“recuperação cristã” das dúvidas, aporias e perplexidades levantadas por Borges,
postulando-se o caráter intrinsecamente cristão das mesmas.
Apesar de reconhecer a relativa pertinência das perspectivas críticas
assim esboçadas e de imaginar que suas aplicações possam eventualmente
redundar em algum tipo de contribuição válida, nenhuma delas me parece de todo
satisfatória: a primeira, por privilegiar os referentes extra-textuais; a segunda, por
operar a partir do esquema pergunta-resposta; e a terceira, por, de alguma forma,
dissolver a especificidade da novidade da escrita de Borges, reconduzindo-a ao
domínio do já conhecido e do previsto.
De fato, não obstante toda a importância que possa ter o conhecimento
minucioso das alusões históricas, geográficas ou culturais presentes num texto
literário, não se deve esquecer que, ao serem incorporadas a este, tais alusões
passam a funcionar como elementos do próprio processo ficcional e que seu
significado literário passa a ser construído pelo próprio texto, independentemente
do grau de fidelidade mantido ao referente extra-textual em questão. Essa parece-
me ser a limitação da primeira perspectiva mencionada. Dependendo da maneira
como for desenvolvida, pode acabar ignorando a especificidade da literatura como
forma de conhecimento e, no caso de Borges, pode acabar enredada na própria
trama de referências eruditas a partir da qual se constroem muitos de
seus textos. Seu risco é o de perder de vista o funcionamento interno dos mesmos
e, de forma mais ampla, do próprio universo literário construído pelo autor,
pulverizando-se a obra numa multidão de alusões atomizadas e desconexas.
Quanto à segunda perspectiva, muito freqüente nos estudos
interdisciplinares de literatura e teologia, sua limitação é evidente. Opera-se aí a
partir de uma espécie de divisão de tarefas: à literatura caberia levantar questões
acerca do homem e do mundo e à teologia, dar as respostas adequadas.
Semelhante pressuposto metodológico parte de uma noção de teologia
completamente auto-suficiente, satisfeita com suas fontes e métodos, e que não
tem nada a receber da literatura. Karl-Josef Kuschel, numa passagem memorável,
procede a uma crítica devastadora desse método, por ele chamado de
“correlativo”:
25
O método correlativo, por sua vez, também dispõe da literatura
para fins próprios. Se o método confrontativo reduzia o diálogo
teologia-literatura a um conflito entre ideologia e verdade, o
método correlativo impõe-lhe um esquema de perguntas e
respostas. Não percebe, com isso, que a revelação cristã, tal
como testemunhada nas Escrituras e sempre recolocada pela
teologia, não é de modo algum idêntica ao anseio pela “solução”
de todas as questões. A “revelação” cristã por certo contém
muitas respostas, mas a característica dessas respostas reside
justamente não em fazer calar as perguntas fundamentais da
existência humana, mas conduzi-las a uma perspectiva correta.
(KUSCHEL,1999, p. 221)
26
papel. Nesse contexto, fala de uma antropologia literária, entendida como a
compreensão do homem apresentada pela literatura, e sustenta que a mesma
pode possibilitar “determinadas aberturas acerca do ser humano que as outras
antropologias, inclusive a antropologia cultural, não podem propiciar” (GESCHÉ,
1995, p. 117).
Gesché propõe, assim, que a antropologia literária desempenhe o papel
de epistemologia da teologia, “não porque o homem seja a única medida de todas
as coisas, mas porque se torna impossível, de fato e de direito, falar corretamente
de Deus se não se conhece o homem e se não se procura encontrá-lo naquilo que
o faz homem no mais profundo de sua verdade” (GESCHÉ, 1995, p. 113). Nessa
perspectiva, caberia à literatura, ou melhor, à antropologia literária, o papel de pôr
à prova as afirmações teológicas, ajuizando de sua relevância e pertinência para o
contexto cultural hodierno.
Parece-me que essa proposta de Adolphe Gesché pode ser muito
fecunda para ensejar o diálogo entre a literatura de Borges e a teologia. Trata-se
de uma perspectiva crítica que leva a sério os dois pólos do diálogo que se
pretende estabelecer, mantendo-os em suas respectivas identidades enquanto
discursos diversos e colocando-os numa relação recíproca de tensão e de
complementaridade, que lhes assegura, ao mesmo tempo, a autonomia e a
possibilidade de interlocução.
Nessa linha, o objetivo deste ensaio é estudar, em diálogo com a
teologia cristã, os contos de Ficciones (1944) e de El Aleph (1949), em grande
parte responsáveis pelo lugar singular que cabe a Borges na literatura do século
XX. Para tanto, a primeira tarefa será esboçar, em largos traços, a antropologia
que deles se depreende. Num segundo momento, será preciso indagar, de
maneira preliminar, em que medida a antropologia assim delineada pode constituir
um desafio e/ou um aporte válido para a teologia cristã e avaliar, numa visão de
conjunto, o impacto da antropologia de Borges para a teologia, vislumbrando-se os
possíveis caminhos a serem trilhados por esta para estar à altura das perspectivas
abertas por aquela.
27
Desse modo, se quisermos levantar a questão da ratio humaniorum
litterarum theologica, isto é, a questão do estatuto teológico da literatura,
formulada de maneira pioneira por Pie Duployé em 1965 (DUPLOYÉ, 1978),
podemos dizer que, neste estudo, não estamos reivindicando para a literatura o
estatuto de forma não-teórica da teologia, nem o de lugar teológico, nem o de
fonte substitutiva da filosofia ou das ciências humanas no método teológico
(BARCELLOS, 2000), mas, sim, consoante a proposta de Gesché, o de instância
reguladora da pertinência e relevância das afirmações teológicas. Por outras
palavras, estamos reivindicando para a literatura o estatuto de epistemologia da
teologia.
28
Ou seja, se entendermos "referência" como o mundo da obra, a "projeção de um
mundo possível habitável", e "sentido", como significado imanente ao plano
semiótico, à articulação dos elementos textuais, vemos que "no uso espontâneo
do discurso, a compreensão não se detém no sentido, mas ultrapassa o sentido
em direção à referência" (RICOEUR, 1983, p. 142), ao passo que na obra literária,
"a relação do sentido com a referência é suspensa", o que equivaleria a dizer, em
termos aristotélicos, que o mythos se separa da mimesis.
Ao questionar a crítica literária das décadas de 1960 e 1970 por
dissociar de maneira radical o mythos da mimesis e reduzir a poiesis à construção
do mythos, Ricoeur abre caminho para uma nova postura crítica que procura
compreender melhor as relações intrínsecas da obra literária com a referência, isto
é, com aquilo que ela efetivamente diz acerca do homem e do mundo (a mimesis,
de Aristóteles), recuperando afinal a plenitude do significado (sentido e referência)
para o domínio específico do literário, como elemento imprescindível e constitutivo
do mesmo. Para tanto, o instrumento heurístico apontado pelo autor é
precisamente a análise da metáfora:
29
visasse a apontar e explicar as referências extra-textuais de uma obra literária, por
mais bem feito, interessante ou útil que fosse, ficaria sempre aquém do literário
propriamente dito.
Na perspectiva de Ricoeur, afirmar a possibilidade de acesso ao
referente da obra literária, nos termos acima expostos, implica sustentar a
proximidade e comunicabilidade das noções de metáfora e de conceito no
processo interpretativo, no quadro daquela compreensão maior da abertura do
texto, que permite o encadeamento de um discurso a outro discurso:
31
epíteto. Não se trata, em Borges, da oscilação entre diferentes possibilidades de
reconstituição da diegese, consoante postula Todorov (TODOROV, 1980), mas,
sim, do contraste entre o efeito de realidade que a dicção precisa e a trama das
alusões dão às narrativas e o caráter insólito das experiências narradas.
Consoante tudo o que ficou dito acima acerca da hermenêutica literária,
a tentativa de se delinear, ainda que em largos traços, a antropologia dos contos
de Ficciones e de El Aleph deve partir do efeito estético dos mesmos e não, de
maneira direta das idéias enunciadas pelos narradores ou pelos personagens. Nos
termos de Ricoeur, somente a referência suspensa dá acesso à referência literária
propriamente dita: esta se constrói sobre as ruínas daquela. Desse modo, o que é
sobremodo significativo em Borges é o contraste entre a estrutura narrativa, em
seu esforço de objetividade, simplicidade e racionalismo, e o material ficcional
marcado pelo insólito, pelo paradoxal ou pelo inesperado. O caráter ensaístico de
alguns contos (pensemos em “Pierre Menard, autor del Quijote”, “Examen de la
obra de Herbert Quain” ou “El jardín de los senderos que se bifurcan”) ou
testemunhal de outros (como “Funes el memorioso”, “El Zahir” ou “El Aleph”), na
tentativa de compreender, descrever e classificar o que foge ao domínio do
razoável ou mesmo do racional, torna patente a inadequação de um determinado
tipo de discurso para a apreensão de uma realidade fugidia e polifacética, cujos
limites se deslocam continuamente.
Com a finalidade de nos aproximarmos desse universo literário,
podemos recorrer a Romano Guardini, em suas reflexões sobre o fim da
modernidade, apresentadas em cursos proferidos em Tübingen e Munique entre
1947 e 1949. Para Guardini, a modernidade se caracterizaria pelas idéias de
natureza, personalidade e cultura: o mundo é concebido como natureza, isto é,
uma totalidade definitiva, impossível de transcender; o ser humano é entendido
em termos de personalidade, na medida em que o sujeito se apresenta como dono
da própria existência, e “seu desejo de ‘cultura’ o impulsiona a tentar construir a
existência como obra sua” (GUARDINI, 1995, p. 69). Desde os anos 1930, porém,
essas três noções básicas da modernidade começam a entrar em crise. A
natureza deixa de ser vista como um todo harmônico, sabiamente organizado, e
32
passa a adquirir um caráter ameaçador. A subjetividade moderna dá lugar ao
homem-massa. A confiança na cultura cede lugar à dúvida e à crítica: o homem
moderno cria achar-se diante da realidade; a partir de agora, parece crer que a
modernidade o enganou. Particularmente significativa é a descrição feita por
Guardini da relação entre subjetividade e personalidade:
33
possibilidades. No âmbito da problemática da causalidade, lembre-se ainda a
temática do sonho, como aparece, por exemplo, em “Las ruinas circulares”: a
própria noção de ente aí aparece problematizada, ao perder sua autonomia e
dissolver-se no “sonho de uma sombra”. Enfim, em Borges, a realidade do mundo
e de suas coordenadas básicas como tempo, espaço e ente mostra-se
extremamente complexa e fugidia. A língua de Tlön e o sistema de numeração
ideado por Funes são imagens absurdas dessa mesma complexidade.
No que tange ao sujeito, alguns aspectos chamam a atenção. Em
alguns contos, há um nítido contraste entre uma extrema lucidez e uma total
incapacidade para atuar: é o caso de “La muerte y la brújula” ou de “La escritura
del dios”. Nos termos do pensamento de Guardini, somos tentados a ver neles
uma concretização do drama do sujeito burguês cuja lucidez contempla sua
própria morte, sem encontrar meios de impedi-la. Muito significativos também são
os temas do duplo e do labirinto. Em muitos contos, temos a imagem do sujeito
perdido num imenso labirinto (“La biblioteca de Babel”, “La casa de Asterión”), cuja
explicação lhe escapa ou do qual deseja libertar-se, numa figuração
impressionante do homem na sociedade de massa. Por outro lado, a própria
identidade do sujeito é colocada em xeque através da temática do duplo, como se
vê em “Los teólogos”, em “Historia del guerrero y de la cautiva” ou em “La otra
muerte”. Ambos os temas ainda se cruzam em contos como “Tema del traidor y
del héroe”. Caberia mencionar ainda aqueles contos em que, de alguma forma, o
personagem narra a própria infâmia, como “La forma de la espada” ou “Deutsches
Réquiem”. Da confluência desses diversos temas, surge uma imagem do ser
humano sem uma identidade claramente definida e que, longe de se experimentar
como senhor e construtor de seu próprio destino, parece viver como joguete de
forças obscuras e mal definidas.
Em síntese, pode-se afirmar que a obra de Borges constrói uma
antropologia centrada na incapacidade de o humanismo burguês, racionalista e
liberal, dar conta de uma realidade que, tanto no plano da natureza, quanto no do
sujeito ou da cultura já não se manifesta segundo os pressupostos da
modernidade. A natureza mostra-se complexa e paradoxal, o ser humano aparece
34
como alguém perdido nos labirintos do tempo, do espaço ou da identidade, a
cultura já não é propiciadora de tranqüilidade e de domínio, mas fonte de
inquietação e de dúvida. A simplicidade e a lógica quase geométrica que presidem
à construção das narrativas aparecem assim como esforços impotentes para
enquadrar uma realidade que se furta a refratar-se em termos de natureza, sujeito
e cultura, conforme postulava a cultura moderna.
36
Sur”. Tendo-se salvado de uma doença séria, encontra a morte num duelo a
caminho da estância aonde iria convalescer.
Em Borges, toda a lógica e o peso de uma tradição cultural
sofisticadíssima mostram-se impotentes diante do acaso, do azar e do absurdo.
Falta à teologia contemporânea essa consciência dramática acerca do que
significou a derrocada do mundo do liberalismo burguês. Alguns teólogos parecem
não se dar conta desse processo, ao passo que outros o celebram levianamente.
A crise da primeira metade do século XX, num arco que vai da I à II Guerra
Mundial, deixou um vazio de valores cujas últimas e trágicas conseqüências ainda
parecem longe de haver se esgotado. O pensamento teológico, em geral, opera
sempre a partir da univocidade, o que é um pesado tributo a correntes filosóficas e
sociológicas muito satisfeitas consigo mesmas. A literatura de Borges, ao
contrário, é um contínuo desafio a se superar qualquer visão linear e unilateral do
mundo e da vida. Nesse sentido, não obstante a temática metafísica, sua obra é
um convite a uma visão trágica e não filosófica da existência, pois, como escreve
Sergio Givone, “o saber filosófico é unívoco, o trágico, dual; por isso, são
incompatíveis” (GIVONE, 1991, p, 118). Ao explorar algumas aporias do
pensamento metafísico, Borges abre caminho para a irrupção do trágico.
Cabe mencionar ainda a ambivalência e complexidade do ser humano
tal qual aparece nos contos. Há uma ambivalência identitária, uma ambivalência
ética e uma ambivalência teológica. No primeiro caso, abundam os duplos já
referidos e os casos de múltiplas identidades, como em “El Inmortal”. No segundo,
temos quer a estratégia narrativa de “La forma de la espada”, já explorada
magistralmente por Borges em “Hombre de la esquina rosada”, de Historia
universal de la infamia, de 1935, em que o personagem só revela sua identidade e
sua culpa ao final da narrativa, até então conduzida como se se tratasse de um
terceiro, quer a vingança de “Emma Zunz”, que se deixa violar para ter um álibi
indiscutível, em função do assassinato que iria cometer a seguir. Ambivalência
teológica encontramos em “Tres versiones de Judas”, exploração magistral da
lógica da kénosis levada às últimas conseqüências. Todas essas formas de
ambivalência são um convite e uma provocação ao aprofundamento das visões
37
correntes acerca do ser humano, de sua identidade e de suas razões para agir,
aos quais o pensamento teológico deveria responder com determinação e
coragem.
Finalmente, é preciso que os teólogos aprendam com Borges a pensar
a não-imediatez da verdade. Esta se mostra sempre um pouco mais adiante, num
outro plano, de uma outra maneira, em outro grau de complexidade. Em suma,
uma teologia que leve a sério os desafios propostos pela obra de Borges será uma
teologia cônscia de que “além da força de qualquer outro ato de testemunho, a
literatura e as artes falam da obstinação do impenetrável, do absolutamente alheio
a nós, com o qual tropeçamos no labirinto da intimidade” (STEINER, 1998, p. 172).
Referências bibliográficas
38
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SZONDI, Peter. Introduction to Literary Hermeneutics. Cambridge: Cambridge University
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1980.
39
O DEUS DA RELIGIÃO
E O DEUS DA LITERATURA
RAFAEL CAMORLINGA
40
O DEUS DA RELIGIÃO
E O DEUS DA LITERATURA
Rafael Camorlinga (UFSC)3
Introdução
3
Professor do Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras da UFSC. Vice Coordenador do
NUTEL – Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura, UFSC, 2006.
4
Boros, Ladislaus. Der anwesende Gott. Walter Verlag, Olten und Freiburg, 1964, p. 236. Uma
tradução aproximada do texto do teólogo húngaro pode ser: "o Deus definitivamente encontrado é
apenas um deus".
5
No universo da língua portuguesa "Deus" aparece 8 milhões de vezes. Já no acervo em inglês
"God" se encontra 172 milhões de vezes (Google, consulta em 20/03/06).
6
O tsunami que castigou as nações asiáticas no fim de 2004 foi uma exceção. Sobreviventes
desesperados ao contemplar seus entes queridos mortos, perguntavam, dirigindo-se a Deus:
"porque fizeste isso conosco? O que fizemos para merecer tamanha desgraça?" (Proceso, N.
1470, 2/1/05, p. 51).
41
vocábulo mais denso de significado que se possa imaginar, é passível de múltiplos
enfoques. O lugar privilegiado para falar dele e de tudo que lhe diz respeito é
certamente a religião. É desnecessário salientar o papel de protagonista do
personagem Deus nas religiões abraâmicas. O volume de estudos dedicados ao
tema cresce de maneira exponencial quando se adentra na teologia - a "ciência de
Deus". Além disso, e em vista da ubiqüidade do Ser, um de cujos atributos é
justamente a onipresença, indagamo-nos também sobre sua performance no
universo literário. Qual será a face "literária" desse Deus cultuado pela religião e
estudado pela teologia? Buscaremos a resposta a essa e outras perguntas
principalmente nas páginas da Bíblia, O Livro de cristãos, judeus e muçulmanos.
O Deus da religião
42
determinados e que observe um código de conduta minuciosamente estabelecido.
Diferentemente das antes mencionadas, as do "religiões do Livro" são
marcadamente teistas, aliás, teocéntricas. "Creio em um só Deus, criador do céu e
da terra", reza o símbolo da fé que o católico recita na missa dominical. A fórmula
teológica remete diretamente às primeiras páginas da Bíblia (Gn 1: ) que atestam
o poder criador de Deus. Porém, a própria Bíblia, tão prolixa em narrar as ações
divinas, é sumamente parca quando se trata de olhar de perto o que e o quem de
Elohim. "Em nenhum lugar chega a Bíblia à cômoda clareza. Sempre e em toda
parte, quer seja na obscura luta do livro de Jó, quer seja ao sol matutino dos
Evangélios, o mistério não é tirado, mas, precisamente desdobrado ante nossos
olhos" (Cat. Para adultos, p. 561).
43
existência do Sacro (das Heilige), caracterizado pelo numinoso, que, por sua vez,
se desdobra no binômio mysterium tremendum e mysterium fascinosum (Otto,
1994). Temos, por um lado, o afastamento do ser humano ante o mistério que o
ultrapassa; por outro, a atração e a entrega àquilo que o fascina. "Essa relação
ambivalente é a essência de toda religião" (Galimberti, 2003: 11). Seguem-se logo
mais os ritos, mandatos e proibições com o intuito de garantir ao mesmo tempo a
distância e o contato com o ser(es) misterioso(s).
7
Esta é a definição completa de religião dada pelo estudioso: "uma religião é um sistema solidário
de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e
práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ele
aderem" (Durkheim, 1996: 32).
8
Os desentendimentos em matéria religiosa têm ocasionado numerosos conflitos ao longo da
história, como provam fatos antigos e recentes, assim como os atuais.
44
O parco resultado da busca faz com que voltemos à atenção para o
próprio ato de buscar. É isso que pensadores tão pouco ortodoxos em matéria de
religião, como Nietzsche, fizeram ao indagar: "O que há nas profundezas do ser
humano para que sinta a necessidade da religião? Que forças ocultas
impulsionam o homem a ser religioso?" (citado por Camorlinga, JM, p. 7).9 O
mesmo pesquisador encontra a resposta, ou uma possível resposta, no
pensamento de Pascal: "O homem supera infinitamente o homem" (Id, Ibid., p.
12). Armstrong, por sua vez, na sua obra Uma história de Deus, completa: "É uma
característica notável da mente humana poder criar conceitos que a transcendem"
(p. 11). Essa busca de transcendência aponta para um vazio do tamanho do
objeto buscado.10 Aparecerá algum dia, nesta ou na outra vida, Aquele/Aquilo
capaz de preencher tamanho vácuo? Será porventura a própria busca indício ou
início do encontro almejado? "Não me buscarias, se não me tivesses já
encontrado" (S. Agustinho)11. A religião, e junto com ela a arte, pretendem vir ao
encontro desses anseios. O Cristianismo conseguiu reduzir o Filho de Deus,
concebido no ventre de uma mulher, ao tamanho da condição humana. Ao
humanizar Deus, a religião pretende divinizar o ser humano, com os resultados
que temos diante de nós. Dentre as artes cabe à literatura um papel importante na
busca de resposta aos questionamentos levantados.
O "outro" Deus
45
inúmeros escritos hagiográficos e teológicos, ao se utilizarem da linguagem, têm
que recorrer necessariamente à literatura. A estreita vinculação da experiência
religiosa com a palavra é inquestionável. "Uma experiência que não for levada até
a linguagem (grifo no original) continuará sendo cega, confusa e incomunicável.
Portanto, nem tudo é linguagem na experiência religiosa, mas a experiência
religiosa não existe sem linguagem" (Ricoeur, In: Barcellos, 2001: 20). Uma vez
que nosso interesse é o "perfil literário" de Deus, abordamos novamente a Bíblia
com esse intuito. Comumente a Escritura Sagrada é vista na sua dimensão
religiosa, mas isso não impede que seja também abordada pelo viés estético. "Em
termos literários e históricos (grifo no original), a Bíblia surgiu através de agentes e
processos humanos que, em si, não são misteriosos. Em conseqüência ela pode
ser discutida mais ou menos como a Ilíada, de Homero, ou qualquer outra obra
literária antiga" (Gabel - Wheeler, 1993: 223). Vista sob essa ótica, a Bíblia pode
ser considerada como o maior best-seller de todos os tempos, cujas edições
totalizaram 2 bilhões de exemplares só no último século, traduzida a 2 mil
línguas.12 Conseqüentemente, o Senhor Deus é um personagem sem igual da
literatura universal porque "nenhum personagem -no palco, na página ou na tela-,
jamais teve o sucesso que Deus teve" (Miles, 2002: 15).
12
Informação retirada da revista "BIBLIOTECA Entre LIVROS", Ano 1, N. 2, p. 8.
46
literário segundo os mesmos críticos, formam também o arcabouço do texto
bíblico (Gabel - Wheeler, 1993: 27).
13
O poema continua assim: "Este que aqui aportou,/ Foi por não ser existindo./Sem existir nos
bastou./ Por não ter vindo foi vindo/ E nos creou. E assim a lenda se escorre/a entrar na realidade,/
E a fecundá-la decorre./ Em baixo, a vida, metade/ De nada, morre". (Pessoa, F. Obra poética.
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2001, p. 72.
47
fascinosum, ficará apenas o tremendum, que longe de ensejar o encontro,
propiciará o afastamento, ou até o desencontro. Assim, tendo em mente as
"Religiões do Livro" podemos perguntar: o que ficaria da figura de Alá, Elohim,
Deus, despido de todo pendor mítico? Uma divindade cruel, arbitrária e prepotente
à serviço de grupos nacionais ou tribais, como prova a história antiga e recente, ou
então, a realidade vivida atualmente. "O Deus definitivamente encontrado, é
apenas um deus".
48
ela.14 É muito mais importante uma determinada idéia de Deus funcionar do que
ser lógica ou cientificamente válida" (Armstrong, 2001: 11). E, se essa idéia tem
funcionado no passado e continua funcionando no presente a ponto de se tornar
atraente e até viciante (Miles, Id., Ibid., p. 16), é graças à literatura. Esta, como
sabemos, privilegia a estética, ainda que sem desdenhar da ética, convicta de que
o triunfo do pulchrum não será completo enquanto não acarretar o do bonum.15 E
vice-versa.
BIBLIOGRAFIA
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PAZ, Octavio. El Arco y la Lira. México: Fondo de Cultura Económica, 1990 (7ª
reimpresión).
14
Arias é mais radical, ao afirmar: "Cada momento histórico costuma criar o seu Deus ou
assassiná-lo" (Arias, 2000: 15).
15
"Una moral sin estética es fea y una estética sin moral resulta perversa" (Teitelboim, Volodia. Los
dos Borges. Ediciones Merán, Albacete (España), 2003, p. 182).
49
WELLEK, R. - WARREN, A. Teoria da Literatura. Trad. J. Palla e C. Capa. Lisboa:
Publicações Europa-América Ltda., 1976.
50
A CONFISSÃO GERAL DE
RIOBALDO
WALDECY TENÓRIO
51
A CONFISSÃO GERAL DE RIOBALDO
... é necessário saber apesar de tudo se essa coisa que fala quando eu
falo é que me implica totalmente em cada som que enuncio, em cada
palavra que escrevo, em cada signo que faço, se essa coisa é realmente
eu, ou um outro que existe em mim, ou ainda um não sei que de exterior
a mim mesmo que se exprime através de minha boca em virtude de
17
qualquer processo ainda inexplicado
16
Waldecy Tenório está vinculado ao IEA - Instituto de Estudos Avançados da USP como
pesquisador na área de Estudos Interdisciplinares de Literatura. É graduado em Letras Clássicas e
doutor em Filosofia pela mesma Universidade. Autor, entre outros, de A bailadora andaluza: a
explosão do sagrado na poesia de João Cabral (Ateliê Editorial/Fapesp).
17
No Prefácio de História da Linguagem, Lisboa, Ed. 70, 1969.
52
No entanto, outro grande lingüista, A. J. Greimas, se também adota uma
atitude de prudência, e se também não faz o percurso teológico, pelo menos nos
faz um sinal. Ele diz: “Talvez exista um mistério na linguagem.18
Aproximando-se assim os dois textos, como estamos fazendo, parece
que Greimas estaria respondendo a Kristeva. Mas isto não passa de suposição e,
afinal, não é relevante saber, pelo menos no nosso caso, se teria havido ou não
esse diálogo entre os dois. O relevante, aí sim, é o fato de Greimas, sendo quem
é, ter podido dizer o que nos disse.
Agora, é mais ou menos evidente que a presença do advérbio “talvez”
no início da frase, sob certo aspecto, diminui a força da afirmação de Greimas. Ele
não diz: Há um mistério. Diz: Talvez haja. Mas vistas sob outro aspecto, as coisas
se passam de maneira diferente. É que o advérbio confere ao pensamento de
Greimas um tom claro-escuro, ou uma aura crepuscular, que o aproxima da idéia
agostiniana de “cognitio verpertina”, uma forma de conhecimento que se dá na
penumbra da tarde – ou na dúvida de um “talvez”.
Olhando-se dessa maneira, o advérbio dá outra nuance à frase, ainda
mais se aceitarmos a fórmula de Jean Lacroix segundo a qual toda dúvida sugere
uma crença superior. Eis por que o nosso ponto de partida é a fragilidade do
“talvez” de Greimas.
18
Apud J.D. Grossan.
19
No ensaio “Lingüística e poética”.
53
“O senhor tolere” (pág. 9), “O senhor entenda” (pág. 10), “O senhor não duvide”
(pág. 12), “Exponho ao senhor” (pág. 39), e assim em mil variantes, o tempo todo.
De vez em quando, o narrador explora a função fática da linguagem, querendo
saber se o outro está atento ao que ele diz, se o canal de comunicação continua
aberto: “Hem?” “Hem?” O destinatário, no entanto, não diz nada, não responde,
não reage às provocações do narrador.
É uma marca textual do romance. O narrador abre o coração, conta a
sua vida, resgata lembranças, pensa, provoca, pergunta, implora uma resposta.
Silêncio. Joga isca atrás de isca: “E como é mesmo que o senhor fraseia?” (pág.
57). Silêncio. “Invejo é a instrução que o senhor tem” (pág. 78). Silêncio. O leitor
se aflige. Quem é essa Esfinge? Mas não se jogue a culpa no narrador, pois ele
também não sabe quem é o destinatário de sua mensagem, e, como nós, está
intrigado.
Tanto que já na segunda página do romance somos testemunhas de
sua perplexidade, naquela passagem na qual ele está contando o que aconteceu
no Andrequicé. Por lá passou um “moço de fora” e disse que, para fazer um
determinado percurso, no qual qualquer jagunço gastava um dia e meio a cavalo,
ele só precisaria de vinte minutos. E o narrador conta então o que ouviu de outras
pessoas: “Tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no
Andrequicé”.
Ora, ao pronunciar a palavra Diabo, o narrador, ele mesmo tem um
sobressalto, um frio na barriga e, neste momento, desconfia da própria pessoa a
quem está se dirigindo:
Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um
exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou
por lá, por puro divertimento engraçado?
54
gosto de “especular idéia” (pág. 11), é assim que as coisas se passam: “Tudo tem
seus mistérios” (pág. 221) e “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”
(pág. 315).
Mas afinal, esse destinatário suspeito, foi mesmo ele quem passou
pelo Andrequicé? “Sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em
hora, às vezes clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há,
quis mangar” (pág. 10).
Por enquanto, o destinatário da mensagem está livre da suspeita de ser
o tal moço, o Diabo. No entanto, a existência deste não está descartada, donde a
presença da oração concessiva: “Se ele existe... quis mangar“. Para desvendar
esse mistério, podemos seguir a pista levantada por um mestre da crítica, Roland
Barthes: em literatura, há muitos lugares de chegar mas um só de partir: esse
lugar é o texto. Voltemos então ao incipit do romance:
- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus
esteja. Alvejei mira em árvore no quintal, no baixo do córrego. Por meu
acerto. Todo dia isso faço: gosto, desde mal em minha mocidade. Daí
vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os
olhos de nem ser – se viu; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu
não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de
beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão:
determinaram – era o demo. Povo pascóvio. Mataram. Dono dele nem
sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões.
O senhor ri certas risadas...
4
A burrice do Demônio
55
Por isso, quando o narrador diz “O senhor ri certas risadas” temos o
direito de fazer um pequeno exercício de transleitura e ouvir a voz de Milan
Kundera no famoso discurso de Jerusalém:
Então, quem é esse que figura rindo e esse que ri? Para falar como o
próprio Riobaldo, “é aí que a pergunta se pergunta” (pág. 86). Em todo caso,
permanecem ainda as duas pistas de nossa investigação. Pode ser o diabo, por
que não? A literatura já esteve tantas vezes no Inferno. E além disso, a presença
do diabo em qualquer romance seria evidente se ele não fosse um mestre do
disfarce, aquele que se esgueira e passa despercebido, como na cena do Pacto.
A segunda pista, já sabemos, é a seguinte: o destinatário enigmático é
Deus. Mas como justificar esta hipótese? Bem, ele também é um mestre do
disfarce, aparece e desaparece, Deus absconditus, age como o esgrimista de
Kierkegaard: o adversário sente o golpe, é tocado, mas sempre num lugar muito
diferente do que esperava. E, além disso, ele é sutil, a ponto de um teólogo como
Karl Rahner ter podido defender a idéia de que o cristianismo é uma forma radical
de agnosticismo. E de um Jack Milles ter dito que, de Deus, não se pode escrever
uma biografia, mas uma teografia, que ele mesmo define como o movimento do
discurso em direção ao silêncio. Desse modo, se o interlocutor de Riobaldo se
disfarça, se esconde, silencia – e ri, pode ser um disfarce de Deus, por que não?
Entretanto, como estamos lendo um romance, o melhor caminho
para comprovar a hipótese levantada é a própria linguagem. Tivemos alguma
expectativa em relação a Kristeva, mas logo percebemos que não podíamos
contar com ela. Greimas, por sua vez, nos deu uma certa suspeita, mas só. E se
procurássemos apoio em algum teólogo? Justamente G. Crespy, que trabalha
com a relação entre linguagem e teologia, vem nos dizer que nossas
representações de Deus têm sempre um suporte cultural de tal modo que, quando
56
a cultura se transforma, elas também mudam. O que isso quer dizer então? Que
Deus existe na linguagem e é lá que devemos procurá-lo.5 Afinal, de Hesíodo a
Heidegger, sabemos que a linguagem é a morada do ser.
Peçamos então a ajuda de Jakobson num de seus ensaios mais
significativos e de grande repercussão nos estudos literários, aquele, já citado, no
qual o lingüista romeno discute os fatores e as funções da linguagem.6 O que diz,
em suma, esse texto? Não se vai repetir aqui o ensaio, mas apenas recordar
alguns pontos de sua estrutura básica. A comunicação lingüística exige que se dê
a presença de três fatores: um remetente, uma mensagem, um destinatário. É
necessário ainda que haja um contexto, um referencial comum e um código
conhecido pelo destinatário. Daí decorrem as seis funções básicas que Jakobson
distingue na comunicação verbal.
Podemos alinhá-las assim: A função emotiva, ou expressiva, que se
caracteriza pela transmissão de conteúdos emotivos próprios do emissor; a função
apelativa, que pretende influenciar o modo de pensar do receptor ou destinatário;
a função referencial, também chamada informativa, que consiste na transmissão
de um saber, um conteúdo intelectual de que se fala; a função fática, que
estabelece, prolonga ou interrompe a comunicação; a função metalingüística, que
verifica se emissor e receptor usam o mesmo código e, por fim, a função poética,
centrada sobre a própria mensagem.
Uma vez que estamos no universo da ficção, vale a pena recordar os
pressupostos da função poética. Quando ela está presente? Quando a
mensagem cria a sua própria realidade, que não se identifica com a realidade
empírica. Della Volpe dá um exemplo a propósito dos nevoeiros londrinos: se eles
estão presentes na obra de Dickens, é graças à palavra do romancista, a qual se
basta a si própria. E Della Volpe pergunta: que palavra de geógrafo, de historiador
5
Essais sur la situation actuelle de la foi, p.82.
6
Lingüistica e poética.
57
ou de cientista é verdadeira por si mesma?7 O mesmo vale para as neblinas de
Siruiz e para o mundo criado pela linguagem de Guimarães Rosa.
Mas há no ensaio de Jakobson uma passagem que às vezes se
esquece e que devemos retomar por ser importante para a hipótese que estamos
levantando. É quando, depois de explicar as funções da linguagem, ele diz:
“Certas funções podem ser facilmente inferidas desse modelo”, e aí vem o que
interessa sublinhar: “Assim, a função mágica, encantatória, é sobretudo a
conversão de uma pessoa ausente em destinatário de uma mensagem conativa.”
Portanto, quando fazemos de um ausente o destinatário de uma mensagem
conativa, estamos realizando a função mágica da linguagem e entrando em
contato com o Absoluto. Não é o que acontece em Grande Sertão?
Mas ainda assim, persiste o mistério sobre a identidade desse
destinatário ausente. Entre ele e Riobaldo há, ao mesmo tempo, proximidade e
distância. “O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho” (pág. 33). E, no
entanto, Riobaldo sente por ele uma atração inexplicável. No começo do
romance, não quer que o outro vá embora (pág. 22). Mais adiante, apesar do
silêncio do destinatário, ele espera o diálogo: “Mais hoje, mais amanhã, quer ver
que o senhor põe uma resposta” (pág. 87). E no final do romance, ele constata
que a relação com o outro é sempre difícil: “O querer-bem da gente se despedindo
como um riso e soluço” (pág. 442).
Quem é esse que assim atormenta Riobaldo? Por artes mágicas, esse
que se esconde nos interstícios da linguagem não poderia ser o Diabo? Sim, já
vimos isso, porém contra essa hipótese pesam os argumentos que levantamos
antes e pesa, sobretudo, o depoimento final do narrador: “O diabo não há! É o que
eu digo, se for... Existe é homem humano”. A última palavra do romance –
“Travessia” – indica uma mudança.
A mudança se esclarece quando Riobaldo diz: “O sério é isto, da história
toda – por isto foi que a estória eu lhe contei - : eu não sentia nada. Só uma
transformação, pesável” (pág. 86). Ora, essa transformação que se dá por meio de
7
In: Critica del gusto.
58
um diálogo secreto – o dialogismo interior de Bakhtin – é a resposta que Riobaldo
esperou durante o romance inteiro.
Mas então quem é este cuja palavra pode transformar assim a vida do
jagunço. Deus? Kristeva sugere, mas se esquiva, Greimas oferece uma pista,
mas hesita. Crespy e Jakobson são mais convincentes, assim como Bakhtin.
Porém, o argumento decisivo para resolver a questão vem de Wolfgang Iser e
pode ser formulado assim: Uma vez que Deus não pode ser nada, está destinado
a ser no-nada, ou seja, nonada, justamente a palavra pela qual o romance
principia. 8
BIBLIOGRAFIA
59
60
ENTRE LOGOS E MYTHOS EM
CITY OF GOD DE DOCTOROW
JULIO JEHA
61
ENTRE LOGOS E MYTHOS EM CITY OF GOD DE
DOCTOROW
Julio Jeha (UFMG)
62
poderia ser expresso em termos puramente lógicos. Essas narrativas também
expressavam os aspectos mais elusivos e misteriosos da vida que sempre fizeram
parte da experiência humana. Como a arte, o mito era o produto da imaginação
criativa; ele transfigurava nosso mundo fragmentado e ajudava a vislumbrar novas
possibilidades. Da mistura de mythos e logos surgia um mundo mais
compreensível para os gregos, diminuindo ser terror e tremor perante o absurdo
da existência.
Como os gregos pré-modernos, Pem e Everett, as personagens de City
of God, contrapõem mythos e logos em sua busca pela verdade. Embora secular e
racional, Everett sente que nem cosmologia nem física ou filosofia conseguem
explicar o universo de maneira satisfatória, pois lhes falta a dimensão do sagrado.
Ao fazer um resumo das teorias sobre a história do universo, ele introduz os dois
tópicos que estruturam o livro de Doctorow: de um lado, a explicação racional,
científica que tenta diminuir a nossa ignorância e, do outro, as histórias que
contamos a nós mesmos, baseadas mais nos nossos anseios e medos do que na
realidade. Se o Big Bang gerou quinze bilhões de anos de expansão espacial, o
universo está se expandindo em direção a quê? E o que o universo está
preenchendo ou substituindo nessa expansão? Mais importante, dizer “que o
universo foi criado junto com tempo e espaço” significa que antes do universo não
existia nada, nem mesmo o conceito de Ser ou existência (p. 3). Um astrônomo
pode tentar explicar os fenômenos físicos, mas será que ele tem consciência de
que além desses fenômenos “se encontra uma verdade tão monumentalmente
horrenda”, diz Everett, “que nem mesmo o voltar-se para Deus consegue aliviar a
miséria de uma infinitude tão profunda, desastrosa e desesperançadora?” E se há
um Deus envolvido nesse assunto, ele “é tão amedrontador que se coloca fora do
alcance de qualquer súplica por conforto ou consolo” (p. 4). Embora a ciência nos
leve a pensar no horror da existência, ela não consegue aliviar nosso desespero
em face de um universo incompreensível. Daí o recurso ao mythos, à fé. Mas
como conciliar o sobrenatural com o racional se ambos, nesse caso, escapam a
nossa compreensão?
63
Everett busca apoio em Albert Einstein e Ludwig Wittgenstein, cujas
idéias moldaram a nossa percepção da vida nos tempos modernos: nenhum ser,
nenhuma idéia, nenhum planeta pode existir num sentido absoluto, sem referência
a alguma outra coisa, sem ser percebido ou nomeado por algo além de si mesmo.
Sem linguagem não há mundo, diz Wittgenstein, pois o mundo é uma história.
Everett e Pem lutam com as conseqüências que necessariamente surgem daí:
Deus é uma história? Um produto da linguagem? Ou a linguagem é um produto de
Deus? Se Deus existe fora da linguagem, criando o texto da vida – que vivemos “à
medida que é escrito” – com quais recursos construímos nossa fé e nossa
esperança para o futuro, e por qual desígnio preestabelecido perseguimos nosso
destino? O Wittgenstein ficcional nega a possibilidade de a ciência responder as
verdadeiras questões da vida, “mesmo que todas as possíveis questões científicas
sejam respondidas” (p. 87). O Wittgenstein real diria que nem tudo pode ser
racionalmente explicado; algumas coisas se manifestam, de maneira mística.21
A princípio, Wittgenstein tentou desenvolver uma teoria que mostrasse
a linguagem surgindo de relações lógicas, mas ele logo reconheceu que o mais
importante na vida humana excede uma descrição lógica. Ele concluiu que
entendemos melhor a linguagem não em termos de lógica formal, mas como uma
forma de atividade humana (um jogo) que é instrumental para um conjunto de
propósitos humanos (uma forma de vida). O significado de um jogo de linguagem
específico (por exemplo, a ciência ou a religião) não está no fato de que ele tenha
capturado de maneira explícita algo da natureza da realidade, mas, ao contrário,
está no fato de que ele serve para auxiliar a consecução de certos fins. Essa
compreensão do caráter contextual da linguagem derruba qualquer forma de
positivismo (científico, filosófico ou teológico), por que positivismos pressupõem
que a linguagem possa ter um significado absoluto independente do contexto.
21
Na proposição 6.52 do Tratactus Logico-Philosophicus, Wittgenstein escreve: “Sentimos que
mesmo que todas as possíveis questões científicas sejam respondidas, os problemas da vida
continuarão completamente intocados”. Mais adiante ele concede que “Há, realmente, coisas que
não podem ser colocadas em palavras. Elas se tornam manifestas. Elas são o que é místico”
(6.522). (As traduções são minhas e se referem à edição eletrônica encontrada no Project
Gutenberg em 3 de março de 2006).
64
Tal como Wittgenstein, Einstein nega a possibilidade de a ciência ser a
única forma de explicar o mundo. O Einstein de Doctorow assume uma postura
mística perante o universo e propõe “celebrarmos a constância da velocidade da
luz, louvarmos a gravidade (...) e darmos glória ao fato de que até a luz é dobrada
por sua força” (p. 53). Nessa curvatura da luz das estrelas pela gravidade ele
enxerga o “primeiro sacramento” da ciência. Essa atitude mística está longe de ser
característica apenas de Einstein, tanto o ficcional quanto o real. O cientista real
afirma que quase todos os cientistas são imbuídos de um sentimento de
religiosidade que se manifesta como espanto e admiração perante a lei natural, lei
essa “que revela uma inteligência tão superior que, comparada com ela, todo o
pensamento e agir sistemático dos seres humanos é um reflexo completamente
irrelevante”.22 Einstein, como Everett depois dele, não consegue se livrar da idéia
de que o universo teve um Criador, por mais que essa opinião seja desacreditada
por cientistas e filósofos.
Rumando em direção oposta à tomada por Everett, Pem rejeita a
religião e apela para a razão no intuito de encontrar um Deus em que ele possa
acreditar, o que no nível material se traduz como a tentativa de descobrir a cruz
roubada de sua igreja. Pem resolve assumir o papel de “Divinity Detective”, ou
detetive da divindade, um jogo de palavra com o título “Divinity Doctor” (doutor em
teologia) e com sua busca por Deus. Ele compra histórias de detetive “para
aprender o ofício”, segundo sua explicação, mas na verdade ele as compra para
obter conforto, pois o mundo do detetive “é circunscrito e a punição é certa, o que
é mais do que [ele] pode dizer do [mundo de Deus]” (p. 8). Pem se pergunta se a
fé deve ser cega: “Por que ela deve surgir da necessidade que as pessoas têm de
acreditar? (…) A autoridade de Deus nos reduz todos, onde quer que estejamos
no mundo, qualquer que seja nossa tradição, a uma submissão de pedinte”. Num
sermão ele pergunta à sua platéia se Deus é uma história, se cada um de nós, ao
examinar a sua fé, consegue acreditar que Deus é a história que contamos a
respeito dele (p. 14). Presumir que o mythos possa conter Deus, “o autor de tudo
22
EINSTEIN, Albert. The world as I see it. Nova York: Philosophical Library, 1949, p. 29. Minha
tradução.
65
que conseguimos conceber e tudo que não conseguimos conceber”, é uma
presunção intolerável (p. 15). Há que se rejeitar o conceito de verdade
inquestionável e os rituais sem significados que servem apenas para manter os
fiéis submissos à autoridade eclesiástica e distante da essência do divino.
Enquanto Pem está lutando com seus demônios pessoais, a cruz de
sua igreja reaparece no topo da sinagoga do Judaísmo Evolucionário, uma seita
judia liderada pelo casal de rabinos Joshua Gruen e Sarah Blumenthal. Pem toma
isso como um sinal e começa a freqüentar os debates sobre a fé judaica. Ao ouvir
de Joshua que eles estão “lutando para redesenhar, revalidar a [sua] tradição” (p.
40), como Einstein havia feito com a física de Newton, Pem sente que tanto ele
quanto os rabinos se afastaram de sua fé, que pertence aos fundamentalistas
atávicos. Ele percebe, então, que não está passando por uma crise espiritual,
mas, sim, sofrendo de “desespero crônico” (p. 41). Essa epifania o leva a dirigir-se
a Deus como “o Senhor nosso Narrador, que fez um texto / do nada; pelo menos
essa é a nossa história / de Vós”, e como história é versão, Pem pede a Deus que
lhe permita investigá-lo, a quem ele considera “O Mistério” (42). A busca de Pem
se revela como uma tentativa de voltar à coisa em si, uma tentativa de reencontrar
o Deus verdadeiro nos dados originários da sua intuição das essências,
descartando religião e teologia.23
Sem perceber, o objeto da sua detecção passa de material (a cruz
roubada) para metafísico (um Deus crível). Quem roubou a cruz, como
conseguiram fazer isso e por que se deram ao trabalho são as perguntas que
formam o mistério original e, como seria apropriado, ele permanece sem solução.
Pem diz que ele não está interessado em saber, por que é da natureza dos signos
espirituais serem inexplicáveis. Os signos podem ser reconhecidos, diz ele a
Everett, mas seu significado e sua proveniência não podem – talvez não devam –
ser expressos em palavras. Aqui ele ecoa Wittgenstein, que termina o Tractatus
nos conclamando a nos calar sobre aquilo que não podemos falar. O que
23
Pode-se dizer que Pem descarta a fenomenologia religiosa (derivada das idéias de Husserl),
para se ocupar do númeno descrito por Kant e Platão antes dele.
66
começou como um mistério comum se transforma numa investigação teológica de
cunho pessoal.
Pem se recusa a abandonar o intelecto pela fé, ou a trocar o logos pelo
mythos, que a aceitação de dogmas e a teologia exigem. Para ele, longe de serem
a palavra de Deus revelada, as Escrituras são histórias criadas por seres humanos
e, como histórias, elas seguem métodos de composição generalizados. O autor
tende a trabalhar do fim para o começo; com o fim já estabelecido, a narrativa
avança em direção a ele. “Se você sabe que os povos do mundo falam muitas
línguas, esse é o final. A história da Torre de Babel leva você até lá” (p. 65). A
Bíblia, então, assume o papel de mito de criação, explicando como o mundo veio a
ser. Ainda que as histórias bíblicas fossem “ciência e religião”, diz Pem, ainda que
elas fossem as únicas explicações disponíveis, “elas não se escreveram por si
mesmas. Nós temos de reconhecer o trabalho do contador de histórias” (p. 65).
Além disso, quem edita a história é mais perigoso que quem a cria, pois tem o
poder de alterá-la. Agostinho, por exemplo, transformou a narrativa de Gênesis 2-
4 de maneira a introduzir o conceito de pecado original, que levou a todo tipo de
autoritarismo e perseguição. “Como”, Pem indaga, “dada a história dolorosa dessa
insensatez, podemos querer exaltar nossa visão religiosa acima das investigações
comuns das nossas mentes racionais?” (p. 66). Isso implicaria remover as práticas
religiosas do contexto histórico cultural que lhes dá sentido, situando-as num plano
metafísico onde elas existiriam como as idéias imutáveis de Platão. Para Pem, a
religião tende a se apresentar como atemporal, transcendental, o que ele se
recusa a aceitar, pois nem Deus ele aceita como sendo imutável.
Paralelamente à narrativa de Pem, Everett introduz a voz de Einstein
num dueto em defesa da crença em Deus, mas recusando a religião. Ao passo
que Einstein fala do ponto de vista de um judeu que experimentou a perseguição
desde a infância até a fuga da Alemanha nazista, Pem leva seu questionamento
até o ponto em que é expulso da igreja episcopal. Para Einstein, a história pregou
uma peça terrível em Jesus, “aquele judeu”, e no sistema criado em nome dele (p.
46). Pem retoma a narrativa perguntando à sua congregação o que eles achavam
que o morticínio planejado dos judeus tinha causado à Cristandade e à nossa
67
história de Jesus e qual seria a expiação adequada a que os cristãos deveriam se
submeter (p. 49). Einstein continua a discussão e questiona o conceito tradicional
de Deus, em face do Holocausto. Por ser uma pessoa séria, ele escolhe procurar
Deus fora das escrituras religiosas, em “certas leis irredutíveis do universo”, nas
quais a divindade se manifestaria. Ele encontra conforto nessas leis e exulta por
ter consciência delas, por que “elas são – incompreensivelmente –
compreensíveis!” (p. 53). O mythos cristão desmorona perante a história e a
irresponsabilidade moral da Igreja; o logos, ao contrário, apresentaria a
possibilidade de um Deus que possa ser inconstante, que possa evoluir.
Essa mistura de vozes e opiniões que Doctorow usa para criar sua
versão da Cidade de Deus pode dar a impressão que o romance é polifônico, com
a expressão de vários pontos de vista e ideologia, mas essa impressão se revela
enganosa tanto em termos de forma quanto de conteúdo. Doctorow usa uma
estrutura bíblica, na qual gêneros literários convergem para tratar de um mesmo
tópico. Ele introduz uma série de histórias relacionadas entre si de maneira tênue,
histórias culturais, ruminações teológicas, aulas de ciência, canções, comentários
de filmes, poesias, profecias e fantasias elaboradas. Aos poucos começamos a
entender a estrutura do livro: a falta de linearidade, os paralelos com a colagem
literária das Escrituras, a mistura de narrativa e filosofia fazem parte do propósito
do autor. Para ele, importa discutir como acreditar em Deus e não se Deus existe,
importa justificar os atos divinos (ou a falta deles) e não avaliar as ações humanas
por suas conseqüências morais.
Doctorow nos mostra Pem evoluindo do conceito doutrinal de religião,
que a vê como um conjunto de doutrinas específicas, para o conceito realista, que
a considera como o somatório das crenças e práticas dos seus seguidores.24
Essencialmente antropológica, a posição realista trata uma religião como um
fenômeno sociocultural e permite uma análise externa do seu valor cultural. Para
Pem, isso lhe permite entender os conceitos centrais do cristianismo como
resultantes de pressões ocasionadas por mudanças sociais ou políticas. O
24
Tomo emprestada essa distinção entre a posição doutrinal e a realista da religião de um
comentário feito por antirealist no blog Butterflies & Wheels, em 7 de março de 2006, sobre o
tópico Remember, the Pope is a Catholic. www.butterfliesandwheels.com/notes.php.
68
conceito doutrinal, ao contrário, não lhe permite isso, pois é uma perspectiva
essencialmente interna, baseada em crenças que transcendem o aqui e agora,
que desconsideram o contexto geográfico e histórico na sua explicação do mundo.
Como alter ego de Doctorow, Pem diz rejeitar a posição doutrinal pela realista,
mas na verdade ele não consegue se libertar da crença num Deus criador do
universo, o Narrador de nossa história. Ainda que o logos deva ser levado em
consideração, o mythos prevalece em City of God, pois só ele acomoda as
crenças religiosas de Doctorow, que atualiza a teodicéia de Agostinho de Hippo,
dando-lhe, ironicamente, um caráter apostata, senão herético.
69
DEUS E O DIABO NA TERRA DE
MAILER
70
DEUS E O DIABO NA TERRA DE MAILER
25
Doutora em Literatura Comparada pela UFMG e professora de Literaturas de Expressão Inglesa.
Pós doutoranda da Faculdade de Letras da UFMG em estudos sobre religião e literatura.
26
BÍBLIA, Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994. Os livros bíblicos serão incluídos entre
parêntesis no corpo do texto, seguidos do capítulo e versículos citados.
27
MILES, Jack. Cristo: uma crise na vida de Deus. Trad. Carlos Eduardo Lins da Silva e Maria
Cecília de Sá Porto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 348.
28
MILES, p. 252.
71
certa freqüência bem maior do que os evangelhos apresentam29. Deus demonstra
ter apreço por Jesus, mas deixa claro que ele não está ali por acaso. Durante o
batismo, diz a Jesus: “Antes de te formar no ventre materno, já te conhecia”,
indicando a existência de uma relação que Jesus sente ser resgatada: “Senti
30
muita coisa já esquecida voltando a mim”. Quando Jesus confessa seu
despreparo diante da missão que tem pela frente, Deus responde: “Não digas
isso, pois terás de ir a todos os lugares que te enviarei” (ESF, p. 31). Segundo
Jesus, nesse momento o “Verbo” entrou nele, “com o mesmo calor que abrasara
[seus] ossos aos doze anos de idade” (ESF, p. 31). A idéia de Jesus como o
“Verbo que se fez carne” aparece exclusivamente em João (1, 14) e é
reinterpretada no romance. Em João, a noção de unidade entre Jesus e Deus é
muito forte, a idéia de que o “Pai e eu somos um” é constantemente enfatizada
pelo Jesus do evangelho de João. No romance, contudo, parece haver uma
distinção hierárquica entre Jesus e Deus. O Verbo entrou em Jesus, mas Jesus
não é o Verbo. Ele o incorpora para realizar uma tarefa definida por Deus. Deus
deixa explícito que Jesus tem algo a fazer, pois precisará ir aos lugares
designados por ele. Jesus “como o filho do homem e o Filho de Deus encarnado e
exaltado, une terra e céu definitivamente e torna possível para todo crente, mesmo
neste mundo, partilhar da vida da eternidade”.31 Sua missão será, por palavras e
atos, revelar essa verdade, sempre sob a orientação divina.
Deus anuncia a Jesus uma mudança na relação com Israel, uma
relação que se caracteriza por uma série de alianças não cumpridas tanto por
parte da divindade como por parte da nação. Mas ele não interferirá diretamente
como fez com Adão e Eva por ocasião da perda do paraíso, nem com Noé,
29
BLOOM, Harold. Jesus e Javé: os nomes divinos. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2006. pp. 177, 179. Bloom considera estranha a falta de comunicação entre Pai e Filho
nos Evangelhos, conjeturando se ela ocorreria porque Jesus e Deus seriam “duas pessoas, mas
uma só substância”, ou porque eles seriam “dois Deuses distintos, antitéticos” ou simplesmente
porque seus estilos verbais são “tão diversos que a interação se torna impossível”. No romance de
Mailer, contudo, a força dessa interação é constantemente enfatizada.
30
MAILER, Norman. O evangelho segundo o Filho. Trad. Marcos A. Reis; Valéria Rodrigues. Rio
de Janeiro: Record, 1998. p. 31. As demais citações referem-se a essa edição. O título será
abreviado ESF e será incluído entre parêntesis no texto, seguido do número da página citada.
31
SMALLEY, Stephen S; SWEET, John. João, o apóstolo. In: METGER, Bruce M.; COOGAN,
Michael D. (Ed.). Dicionário da Bíblia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 156.
72
quando “viu que a maldade do homem se multiplicava na terra” (Gênesis 6, 5),
nem quando mata inúmeros israelitas, após a apostasia do bezerro de ouro. Deus
falará mais uma vez, agora não só para Israel, mas para toda a humanidade, por
intermédio de seu filho, divino e humano. Ele parece concentrar todo o seu apoio
no aspecto humano desse filho. É a esse Jesus que se sente atordoado diante da
magnitude de sua missão que ele confere proteção contra serpentes e escorpiões
durante a subida na montanha, conforta-o durante o extenso jejum e o adverte que
não será possuidor de riquezas, nem de mulheres, para não incorrer em pecado
como Salomão. Deus quer um filho depurado de qualquer desejo, e a ida ao
deserto parece servir a esse propósito. O teste maior é o confronto com o Diabo,
no qual Jesus se sai bem sem qualquer intervenção divina. Superada essa fase,
Deus instrui Jesus para a próxima etapa do plano: a pregação e os milagres.
Durante todo o tempo, Deus parece ter tudo sob controle. Como parte
final da instrução, ainda ensina técnicas retóricas para Jesus: “Sublinha tua fala
com um bordão – ‘Assim diz o Senhor, por exemplo’” (ESF, p. 57). A atenção com
esse tipo de detalhe é compatível com o Deus que fala no Levítico, por exemplo,
descrevendo como devem ser feitos os rituais de purificação e sacrifícios. Deus
mudou a sua forma de relacionar-se com o mundo, mas ainda mantém o velho
estilo para comunicar as mudanças. Onisciente, está sempre atento ao que Jesus
faz e fala. Jesus julga que quando fala certo e bem, é sempre pela graça de Deus,
que lhe “empresta” as palavras (ESF, p. 146). A Jesus, só resta executar da
melhor forma possível as ordens divinas. Na fase final do plano de Deus, na
agonia da crucificação, Jesus suplica por um milagre, mas a voz que vem “no
turbilhão”, a última manifestação de Deus no romance, é inflexível: “Quereis anular
meu julgamento?” (ESF, p. 196). É o Pai, mais uma vez, reforçando a hierarquia
do poder: Jesus é somente o Filho, um filho poderoso, sem dúvida, mas abaixo
dele. Jesus reconhece que “o suplício da cruz era necessário” e se submete,
resistindo ao último ataque do Diabo (ESF, p. 197). O plano divino triunfa e o
Senhor Deus de Israel se tornará, graças ao sacrifício de seu filho, o Deus de
todos os povos.
73
Contudo, no panorama pós-ressurreição que Jesus apresenta ao final
de seu relato, ele relativiza a vitória de Deus, mostrando que ela não foi definitiva:
“Deus e Mamon ainda disputam os corações de homens e mulheres. Ainda assim,
como a contenda permanece tão igual, não se pode dizer quem triunfará – o
Senhor ou Satã” (ESF, p. 202). A mudança arquitetada por Deus para rever os
termos de sua aliança com Israel deve-se, em grande parte, à oposição poderosa
de Satã. Para resolver essa crise, engendra a idéia de oferecer seu próprio filho
em holocausto, a fim de que homens e mulheres compreendam a nova extensão
de sua promessa – não mais a restauração de Israel, mas a glória eterna para
toda a humanidade – e o escolham e não ao demônio. Jesus reconhece que foi
uma estratégia poderosa – “A grande maioria segue acreditando que Deus obteve
uma grande vitória através de mim. E talvez o Diabo não fosse esperto o bastante
para compreender a extensão da sabedoria divina” (ESF, p. 203) – mas não
suficiente para derrotar o Diabo: “Mas porque a verdade é mais preciosa que o
céu, deve ficar claro: Meu Pai não pôde vencer Satanás” (ESF, p. 203). O mundo
continua sendo o palco da contenda entre Deus e o Diabo e suas guerras “tornam-
se mais acirradas” (ESF, p. 203). Segundo Jesus, Deus concentra-se agora em
vencer a batalha, o que relega o relacionamento entre ambos a um segundo
plano: “Meu Pai, porém, não me fala com freqüência. Ainda assim, eu O honro.
Não duvido que Ele me ame tanto quanto pode, mas Seu amor não é ilimitado”
(ESF, p. 203). A última afirmação revela uma característica até então
desconhecida de Deus: a limitação. Como Senhor da terra e do céu ele tudo pode,
mas Jesus parece sentir que não é bem assim.
Como que se desculpando dessa crítica, mais adiante Jesus volta a
falar bem de Deus: “A sagacidade Dele, contudo, tem sido insuperável, Ele
compreendeu homens e mulheres melhor do que o Diabo, aprendendo a ganhar
com a derrota, atribuindo-se vitórias” (ESF, p. 203). Mas essa sagacidade é
intrínseca a Deus, ele já a havia demonstrado anteriormente, quando colocou as
vitórias da Assíria e Babilônia sobre Israel como ações divinas.32 O Deus que o
Jesus de Mailer conhece é o Deus das Escrituras Hebraicas, um deus guerreiro
32
MILES, p. 220.
74
que lança suas hostes sobre seus inimigos. Ele mudou seu discurso (e suas
ações) através de Jesus, enfatizando o amor entre os homens e não a guerra. O
romance de Mailer chama a atenção para a contínua belicidade de Deus. Essa
belicidade é enfatizada com o surgimento de uma figura antagônica, o Diabo, que
não perde uma oportunidade para tentar aniquilar o poder divino. Em O evangelho
segundo o Filho, ele elabora críticas devastadoras a Deus, que contrastam com
tudo que Jesus acredita sobre seu Pai. A perspectiva do Diabo apresentada no
romance revela mais um ângulo da complexa personalidade de Deus.
Segundo Pagels33 nas primeiras menções ao Diabo na Bíblia, ele
“nunca aparece como a cristandade ocidental veio a conhecê-lo, como líder do
império do mal, de um exército de espírito hostis em guerra contra Deus e a
humanidade”. A presença de Satanás na narrativa significava obstrução, como no
episódio da jumenta de Balaão em Números 22, 23-25 ou reveses de fortuna,
como no Livro de Jó. Embora o papel de Satanás em Jó seja antagônico e ele
tenha responsabilidade no mal provocado a Jó, “ele continuou a ser anjo, membro
da corte celestial, servo obediente de Deus”.34 Em 1Crônicas (21), a decisão do rei
Davi de elaborar um censo provocou dissensão e destruição em Israel. Satanás é
mencionado para explicar o ato de Davi, embora o Cronista deixe claro que o
verdadeiro responsável por tudo era o rei.35 O profeta Zacarias também
descreverá Satanás como formador de facções entre os israelitas, envolvendo os
exilados que voltavam da Babilônia e os que haviam ficado em Jerusalém. Na
versão de Zacarias, que toma partido dos exilados, Satanás fala em nome dos
habitantes que ficaram. Para Pagels, nesse ponto, o papel de Satanás começava
a se modificar “de agente para adversário de Deus”.36 Mais tarde, seitas
dissidentes, como a dos essênios, passaram a invocar Satanás para identificar
seus adversários judeus. Nesse processo, elaboraram a figura de Satanás como
foi absorvida pelos primeiros cristãos e como está representada nos Evangelhos e
na literatura apócrifa. O anjo desagradável transformou-se “em uma figura muito
33
PAGELS, Elaine. As origens de Satanás. 2. ed. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Ediouro,
1996. p. 66.
34
PAGELS, p. 69.
35
PAGELS, p. 70.
36
PAGELS, p. 72.
75
mais importante – e muito mais maligna. Deixava de ser um dos servos fiéis de
Deus e começava a tornar-se o que é para Marcos e a cristandade posterior – o
adversário de Deus, seu inimigo, até mesmo seu rival”.37 As inúmeras versões das
origens de Satanás possuem um denominador comum: ele não é o inimigo que
vem de fora, o estrangeiro. Ao contrário, ele é o “inimigo íntimo”, que partilhava
das coisas de Deus e se voltou contra ele.38 . Em O evangelho segundo o Filho, o
Diabo possui essas mesmas características. A versão que Mailer elabora do Diabo
corrobora e suplementa a tradição criada pelos evangelistas.
Na primeira vez que o Diabo é mencionado em O evangelho segundo o
Filho, Deus o chama de visitante. Depois dos quarenta dias de jejum, Deus
informa a Jesus que ele deverá aguardar um visitante que virá. Esse alerta de
Deus parece sugerir que o confronto entre Jesus e o Diabo é algo já sabido, nos
moldes do ocorrido no Livro de Jó. Mas Jó era um simples mortal e o Diabo sabe
que agora está lidando com alguém mais poderoso. Sua batalha com Jesus é
somente verbal, com o objetivo de minar a confiança que Jesus tem em Deus e,
por fim, cooptá-lo. Sua estratégia parece muito bem elaborada: primeiro, ele chega
ricamente trajado, como um príncipe, e deixa Jesus impressionado. Depois fala da
maneira como Isaías, um dos profetas mais reverenciados pelos judeus, foi morto,
contando seu suplício com detalhes. O Diabo parece insinuar que Deus não foi
capaz de livrar Isaías de uma morte horrível, e o que o mesmo poderá acontecer
com Jesus. Ironicamente, acrescenta: “O modo pelo qual Isaías morreu não o
preocupa muito, já que você não é um profeta, mas o Filho” (ESF, p. 42). As
palavras do Diabo parecem surgir o efeito desejado, pois Jesus sente-se
mortificado por suas revelações sobre Isaías, que marcam o início do ataque do
Diabo a Jesus. Mais do que as três tentações narradas em Mateus e Lucas, o
Diabo de Mailer possui outras estratégias, e não hesita em usá-las todas. No
evangelho de Lucas (4, 13), o episódio da tentação termina informando que “o
diabo afastou-se dele até o momento fixado”. Enquanto isso, ele agirá
37
PAGELS, p. 75.
38
PAGELS, p. 77-78.
76
indiretamente. Também no romance, Jesus sentirá a presença do Diabo até a
tentação final, durante a crucificação.
Jesus identifica vários acontecimentos como manifestações do poder do
Diabo. Quando prega na sinagoga de Cafarnaum, após dizer que é capaz de
expulsar demônios, um homem de aspecto embrutecido lhe diz: “O que temos a
ver com você, Yeshua de Nazaré? Você veio para nos destruir?” (ESF, p. 62).
Jesus imediatamente conclui que o homem está tomado por um demônio, e o
exorciza dizendo: “Sai, Satanás” (ESF, p. 62). No Novo Testamento, “Satã e seus
demônios podem penetrar em seres humanos para incitar más ações e causar
doença”.39 A vitória de Jesus sobre Satã no deserto o qualificou para “começar a
expulsar demônios das suas moradas humanas”.40 Em O evangelho segundo o
Filho, Jesus se sente “imbuído de novos poderes” e com eles executará as
expulsões e curas (ESF, p. 62). Depois do homem endemoninhado na sinagoga
de Cafarnaum, Jesus enfrenta outro possesso e é novamente vitorioso na
expulsão dos demônios, que imploram permissão para habitar o corpo de porcos.
O Diabo perde fragorosamente para Jesus nesse terreno, mas não desiste. Até
mesmo Jesus sofre a influência de seu poder, pois em outra ocasião, Jesus
refere-se à sua imodéstia como se fosse “um espírito infame sobre mim” (ESF, p.
89). Mais tarde, comenta que “ninguém está livre de Satã, nem mesmo o Filho de
Deus” (ESF, p. 103). O Diabo parece estar sempre testando Jesus, procurando
seus limites. E Jesus está ciente de que é preciso combater esse inimigo invisível
o tempo todo.
Mesmo que o Diabo fale diretamente com Jesus, este ainda insiste em
reconhecer em determinadas pessoas a presença do “maligno”. Segundo Pagels
os evangelistas raramente identificam Satanás com os romanos, mas sempre o
ligam “aos inimigos judeus de Jesus, sobretudo a Judas Iscariotes e os
escribas”.41 Mailer endossa essa visão no romance. Quando Jesus conversa com
um escriba no templo, as divergências teológicas entre ambos levam Jesus a
39
AVALOS, Hector I. Satã. In: METGER, Bruce M.; COOGAN, Michael D. (Ed.). Dicionário da
Bíblia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 292.
40
MINEAR, Paul S. Demônios. In: METGER, Bruce M.; COOGAN, Michael D. (Ed.). Dicionário da
Bíblia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p.56.
41
PAGELS, p. 35.
77
identificar a presença de Satanás na retórica do escriba. Ao explicar que a
salvação divina é para todos e não apenas para o povo de Israel, o qual Deus já
considera entregue “à devassidão”, Jesus pondera: “No entanto, não devemos
encontrar um meio de salvar as meretrizes?” (ESF, p. 142). A resposta do escriba,
de acordo com Jesus, “soou aos [seus] ouvidos leve e cheia de confiança, como
se as palavras dançassem sobre sua língua e Satanás se agitasse em sua
garganta” (ESF, p. 142). O conflito entre Jesus e os escribas fariseus, que no
evangelho de Lucas é bastante enfatizado, também aparece no romance. Os
fariseus se opõem às idéias de Jesus, interpretando-as como blasfêmias à lei
judaica. Por sua vez, Jesus interpreta essa oposição como mais um estratagema
do Diabo, que, agindo através dos judeus, conspira contra ele para derrotá-lo.
O ataque final do Diabo contra Jesus acontece no momento crítico de
sua crucificação, quando seu sofrimento físico chega ao paroxismo. Sentindo-se
abandonado por Deus, torturado pelo soldado romano que lhe esfrega a esponja
embebida em vinagre, Jesus ouve a última proposta do Diabo: “Junte-se a mim –
disse num sussurro. – Será um prazer apresentar a esse belo romano algumas
humilhações que posso infligir aos homens. Não há nada melhor que a vingança.
E o descerei da cruz” (ESF, p. 197). Jesus reconhece um instante de tentação,
mas não irá fraquejar nesse último confronto terreno com seu oponente: “bani de
mim a voz Diabo, voltando ao mundo onde jazia na cruz” (ESF, p. 198). Quando
Jesus diz, antes de morrer, que está tudo acabado, pode estender essa frase
também ao Diabo: foi impossível derrotar Deus através de seu filho. Jesus, sim,
escolheu “derrotar Satã, e assim, derrotar a morte em si mesma e levar seu povo
para a nova terra prometida da vida eterna”.42 Pelo menos, era nisso que Jesus
acreditava. A derrota, no entanto, foi temporária, como ele reconhece no final de
seu relato. A peleja entre Deus e o Diabo pelo coração dos homens continua. O
destino final do demônio, ser lançado num lago de fogo, parece estar longe de
ocorrer. O paraíso perdido ainda não foi recuperado.
A figura do Diabo na literatura resultou em criações fantásticas, como o
Satã de Milton em Paraíso perdido e Paraíso recuperado e Mefistófeles em
42
MILES, p. 223.
78
Fausto, de Goethe. O Diabo de Mailer em O evangelho segundo o Filho não
possui a força gigantesca desses predecessores, mas apresenta uma
característica que o torna um dos personagens mais instigantes do romance: ele
aponta defeitos na personalidade de Deus, revelando novas interpretações para
determinadas narrativas do Velho Testamento. Obviamente, o Diabo é
suspeitíssimo para falar de Deus, mas suas considerações no episódio da
tentação no deserto levantam o debate: Deus é mesmo instável, descontrolado? É
um misógino inveterado? Ele não consegue dar conta da própria criação? As
passagens bíblicas que o Diabo cita para Jesus dão suporte a essas declarações,
ele não está inventando nada. Tudo depende, como sempre, do ponto de vista de
quem interpreta. E uma das interpretações possíveis é fornecida pelo Diabo: ele
revela o que há de pior em Deus, reforçando a afirmação de Miles de que na
Bíblia “tudo depende de um Deus assustadoramente imprevisível [...] Nunca se
sabe o que ele irá fazer; mais perturbador ainda, nunca se sabe se ele vai fazer
alguma coisa”.43 Para os judeus, Jesus incluído, essa instabilidade traduz-se na
força do poder divino. A declaração de Jesus de que o Senhor é todo poderoso e
que os céus e terras curvam-se diante dele exaspera profundamente o Diabo, que
parece empenhado em mostrar Deus como ele realmente é (ESF, p. 43). Ele falha
em cooptar Jesus, mas sabe que foi bem-sucedido em mostrar o reverso da
medalha, pois Jesus não sai da experiência da tentação “completamente
incólume, ele perde alguma coisa nesse contato diabólico, retém uma certa
‘fidelidade’ a Satã, uma sutil cumplicidade com o mal”44, que o fará lembrar-se, na
crucificação, das palavras do Diabo pouco antes de morrer.
Quanto a Deus, ele não se dá ao trabalho de rebater o Diabo em
nenhum momento; sua resposta virá mais tarde, quando o plano que tem em
mente — salvar seu povo e a si próprio por meio de um novo evento — for
executado. Assim como os Evangelhos, o romance de Mailer endossa a história
de Jesus como esse novo evento. Seu nascimento, batismo, pregação, morte e
43
MILES, Jack. Deus: uma biografia. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997. p. 448.
44
KERMODE, Frank. Resenha de The gospel according to the Son. New York: Random House,
1997. The New York Review of Books, p. 4-8, May 15, 1997. p. 6.
79
ressurreição compõem as etapas dessa história que redefinirá o relacionamento
de Deus com sua criação. Mailer não ousou modificar os personagens centrais
nem os principais eventos, mas suplementa-os de maneira a inserir traços
diferenciadores e mostrar novos aspectos da relação Deus-Jesus-Diabo, aspectos
até então confinados às dobras obscuras do texto bíblico.
Mailer reconhece o cristianismo como uma das maiores forças da
cultura ocidental, e propõe, à sua maneira, uma interpretação alternativa à
proposta pela visão monolítica das instituições religiosas cristãs. Para tanto, utiliza
a mesma ferramenta que garantiu essa posição central ao cristianismo: sua
narrativa poderosa, seus enredos e personagens recontados, endossados e
refutados ad infinitum. Se Mailer não chega a revisar radicalmente Deus nem o
Diabo em O evangelho segundo o Filho, também não se pode afirmar que ele os
deixou incólumes. O romance questiona algumas das verdades que sustentam a
fé cristã, instaurando dúvidas como: Deus é infalível? Afinal “ele não pôde vencer
Satanás”, como confessa Jesus no final de seu relato. Sacrificar seu Filho pelos
pecados da humanidade foi uma tentativa válida? Como manter a fé em um Deus
bom em face do mal e do sofrimento injustificado de tantos? O que o romance
sugere é que a teodicéia cristã parece ser incapaz de respondê-las, e só resta a
Jesus torcer para que no final tudo dê certo. A noção de um sucesso apenas
parcial da cristandade não deixa de abalar a forma de apreender e lidar com suas
narrativas, de deslocá-las e recontextualizá-las, assinalando, como atestam as
recriações literárias, outras configurações possíveis.
80
A PRESENÇA DA VIRGEM
MARIA NA EPOPÉIA
BRASILEIRA
CHRISTINA RAMALHO
81
A PRESENÇA DA VIRGEM MARIA NA EPOPÉIA BRASILEIRA
Christina Ramalho (UFRN)45
45
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autora de Elas escrevem
o épico. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.
46
Texto completo sobre Mito e Religião pode ser encontrado em RAMALHO, Christina. Vozes
épicas: História e Mito segundo as mulheres. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Tese de doutoramento
em Ciência da Literatura. Ver também: RAMALHO, Christina. Elas escrevem o épico. Santa Cruz
do Sul: EDUNISC; Florianópolis: Ed. Mulheres, 2005.
82
objetivo de que o mesmo possa ser coletivamente absorvido. Ou seja, o mito
somente se insere no real ou no mundo na medida em que circula na coletividade
sob forma de imagens (picturais, musicais, escultóricas, literárias, folclóricas,
ritualísticas, etc.), logo, sua existência, ainda que represente estruturas psíquicas
do ser humano, é cultural. Outra conclusão importante para a definição do
conceito proposto é que, na transferência da abstração à materialidade, o mito
recebe uma aderência co-criadora que atuará não sobre o mito em si, potência
significativa múltipla que é, mas sobre uma determinada versão ou imagem desse
mito. Ao mesmo tempo, a reprodução ou o trânsito cultural dessa materialidade
também receberá aderências ideológicas de cunhos os mais diversos. Logo,
acaba por se instaurar o que chamo de circularidade cultural das imagens míticas,
que aqui defino como o processo encadeado de redução material e multiplicação
cultural-ideológica do mito transfigurado em manifestação concreta ou imagem
mítica cuja conseqüência é aumentar o distanciamento da cognição da
linguagem mítica, gerando uma alienação da experiência simbólica
hipoteticamente passível de ser realizada pelo ser humano que, vivenciando sua
inscrição cultural, interaja com as linguagens míticas relacionadas a essa
inscrição.
Por essa razão, é possível detectar, na observação da difusão cultural
das imagens míticas, uma interferência direta ou indireta, consciente ou
inconsciente, que faz com que, por exemplo, certa imagem seja cristalizada como
único referente do mito. Diante disso, concluí que o termo circularidade cultural
seria adequado para representar uma injunção cultural que, desvirtuando o mito,
corrobora para a manutenção de certas estruturas de poder. É, todavia, importante
salientar que esse processo, designado como circularidade cultural, na maioria
das vezes, é reflexo de condicionamentos tão arraigados na sociedade que a
própria circularidade torna-se obscura. Assim, são necessárias décadas ou
séculos ou milênios para que as sociedades redescubram mitos que, até então,
circularam travestidos em imagens materiais únicas. Um exemplo esclarecedor de
circularidade cultural de uma imagem mítica é a representação pictural de Deus.
Quanto tempo foi necessário para que o pensamento ocidental discutisse a
83
associação do “Ser Supremo” à imagem do ancião barburdo, branco, grisalho (ou
aloirado), de olhos claros?
De algum modo, portanto, a circularidade cultural das imagens míticas
reduz as potências sêmicas do mito a uma versão material deste e, após, a
versões da versão, o que favorece sensivelmente a manipulação ideológica e
mesmo os equívocos mitográficos. Muitas vezes, ao lidarmos com certas
estruturas de significação tidas como míticas, estamos, na verdade, lidando com
subprodutos do mito.
Semiologicamente falando, entendo, portanto, o mito como uma
potência de discurso oriunda da necessidade humano-existencial de atribuir
sentidos a suas experiências existenciais particulares e coletivas que, transferida
para o âmbito da manifestação discursiva as imagens míticas , torna-se
independente de sua origem e passa a referenciar tanto o canal de expressão,
que supostamente teria tomado o mito como uma estrutura passível de
representação discursiva, como o canal de recepção, que, na continuidade do
processo de circularidade cultural das imagens míticas, assumirá a função de
reproduzi-lo. Isso não significa que uma manifestação discursiva gerada a partir da
intenção ou intuição do mito não o integre, ao contrário, a potência mítica original
pode ser reconhecida, mas não deve ser confundida com o objeto em si.
Quanto à estrutura sêmica ou significativa inerente às imagens míticas
(ou imagens arquetípicas), como linguagens ou representações simbólico-
culturais, penso ser possível restringir, dentro do universo épico, em especial, o
potencial sêmico mítico ou simbólico a dezoito aspectos relacionados à
problemática humano-existencial, cujas representações ou imagens arquetípicas
tomaram e tomam as mais diversas formas: a criação, a imortalidade, a
sexualidade, a fecundação, a iniciação, a sedução, a redenção, o expansionismo,
a fundação, a predestinação, a submissão, a purificação, a punição, a
metamorfose ou transformação, a transgressão ou superação, a onisciência, a
clivagem e a misoginia.
De modo bem sintético, explico os aspectos diretamente relacionados à
imagem mítica de Maria: o expansionismo está nas raízes antropológicas da
84
presença do ser humano na Terra, afinal, foram os movimentos migratórios que
permitiram às sociedades arcaicas sobreviver às intempéries da Natureza; a
predestinação e a redenção integram, de modo diferente, a necessidade cultural
do ato heróico que originará a transgressão ou superação por meio da qual as
sociedades e os seres humanos evoluem; a submissão remonta à dimensão
instransponível do mistério e à subordinação do humano ao divino; por fim, a
purificação reflete o direcionamento do humano ao divino, a decorrente
extrapolação da compleição carnal e a expurgação dos sentimentos e gestos
espiritual e socialmente negativados. Cabe observar que o fator que mais incide
para essa circularidade é a própria formatação trazida pela racionalização
canônica dos mitos religiosos bíblicos.
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira define religião como “crença na
existência de uma força ou forças sobrenaturais considerada(s) como criadora(s)
do Universo, e que como tal, deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s).” Assim
sendo, a Religião também pode ser entendida como uma linguagem estruturada
cuja função é explicar, organizar e fundamentar mitos relacionados à criação do
Universo e do ser humano. A reprodução e a circulação do discurso religioso se
sustentam por meio dos textos religiosos e dos rituais que dele se originam com o
propósito mesmo de perpetuá-lo. No entanto, enquanto o discurso mítico não
religioso tem o poder de se perpetuar com maior liberdade, renovando-se na
circulação de formas diversas de linguagem, sem injunções ou determinantes
persuasivos explícitos, o discurso religioso, transitando perigosamente entre a
conotação e a denotação, perde essa liberdade. A qualidade metafórica dos mitos
veiculados pelas manifestações do discurso religioso potencializa o poder destas
de oferecer transcendência, no entanto, a dissociação entre metáfora e realidade,
provocada pela “credibilidade científica” que se busca dar a certos eventos
religiosos, inviabiliza a manutenção do mito como tal e pode fazer das imagens
míticas religiosas imagens históricas, o que mina o valor simbólico das imagens
arquetípicas contidas nessas manifestações. Desse modo, a exploração do valor
denotativo da Religião, através de uma suposta comprovação histórica de certos
eventos e da dimensão prática de certos rituais, acaba por interferir diretamente
85
na solidificação da força metafórica da Religião. O discurso religioso, nessa
perspectiva, normalmente assenta-se numa manifestação discursiva mais fechada
ou com número mais controlado de versões.
Integrada ao mito até a chegada do racionalismo clássico, a Religião foi,
aos poucos, desprendendo-se de sua própria dimensão mítica. Este fato deveu-se
e ainda se deve à inequívoca supremacia do logos sobre o mythos, como foi visto
no início deste artigo. Para ter acesso ao e representabilidade no poder, as
religiões ocidentais vinculam-se muito mais fortemente ao histórico do que à
dimensão metafórica de sua constituição mítica. Na Literatura, todavia, imagens
míticas religiosas são tomadas sem as mesmas injunções sofridas pelos textos
canônicos, o que, absolutamente, não significa que as mesmas injunções não
possam ali aparecer. Afinal, também há vínculos entre a Literatura (e das artes em
geral) e a circularidade cultural dessas imagens. Ou seja, mesmo sendo muitas
vezes contestadora, a Arte também sofre influências do processo de
racionalização da experiência humana existencial.
Na poesia épica ocidental, a presença da dimensão mítico-religiosa
fundida à dimensão real, através da interação dos planos maravilhoso e histórico,
torna, muitas vezes, o próprio texto literário um veículo de reafirmação religiosa
cristã das estruturas sociais. A partir da Idade Média, por exemplo, a poesia épica
ocidental reservou um espaço representativo para o Cristianismo, sempre
referendado como uma fonte de reafirmação da estrutura histórica.
Voltando-me, agora, para a imagem mítica de Maria, relembro que o
valor atribuído à imagem da Sagrada Família é o de ser exemplo para as famílias
cristãs. A José, filho de Jacó, além dos Apócrifos, são atribuídas as informações
sobre a infância de Jesus presentes em Mateus. Seu contato com a divindade se
dá apenas por meio do anjo que lhe anuncia a condição milagrosa de Maria
que viria a ser a mãe virgem do Filho de Deus e o posterior contato com o
Menino Jesus. Todavia, segundo Philp Sellew:
A tradição cristã posterior passou a ver José como um viúvo idoso, de tal
modo que os “irmãos e irmãs” de Jesus em passagens como Marcos 6.3
poderiam ser compreendidos como filhos de José num casamento
anterior, não como filhos seus com Maria; mais tarde ele passou a ser
86
visto como um asceta santo, sem interesse em sexo, e os irmãos de
47
Jesus como “primos”.
47
METZGER, Bruce M. & COOGAN, Michael D. Dicionário da bíblia. Vol. 1: as pessoas e os
lugares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 166.
87
conscientiza-se de sua sexualidade e, com isso, adquire uma condição humana
que é repelida pelo divino. Por essa razão, o uso condicionado dos textos bíblicos
ressaltando a dualidade entre a virgem e a pecadora norteou a educação da
mulher, através dos séculos, e estabeleceu parâmetros tais como:
virgem/esposa/mãe dos filhos legítimos/santa X prostituta/amante/mãe de
bastardos/pecadora, cabendo à primeira um comportamento quase assexuado e à
segunda, ao contrário, o exercício pleno da sexualidade, orientado para a
satisfação dos desejos sexuais masculinos, não reprimidos por qualquer tipo de
injunção religiosa.
Para destacar como a circularidade cultural da imagem mítica de Maria,
na epopéia brasileira, reproduz um condicionamento cultural que consagra os
principais estereótipos associados à mãe de Jesus, sem penetrar no que nela
existe de verdadeiramente simbólico, tomo como exemplo três poemas épicos48,
de épocas e, portanto, de estéticas e visão de mundo, diversas.
Caramuru (1781) contém 6.672 versos decassílabos, agrupados em
oitavas reunidas em dez cantos. De forte influência camoniana, de estética híbrida
de notada compleição cultista e de impregnação ideológica cristã, decorrente, por
razões óbvias, da religiosidade do frei-poeta Santa Rita Durão, o poema constitui,
simultaneamente, vastíssimo repertório de informações sobre os primórdios da
colonização do Brasil e, na visão de alguns críticos, manifestação anacrônica da
subserviência da Literatura Brasileira às injunções estéticas e ideológicas
portuguesas. Embora, aparente e explicitamente, o “herói” dessa epopéia seja
Diogo Álvares Correia, que, náufrago em expedição que veio ao Brasil por volta de
1.510, sobreviveu a índios antropófagos e acabou por eles nomeado de
“Caramuru”, é importante verificar a relevância de duas imagens de mulher: uma,
na dimensão mítica, Nossa Senhora; outra, em ambas as dimensões, Paraguaçu
(depois, Catarina), que, segundo Durão, teve acesso a uma imagem da Virgem
Santíssima (encontrada nas mãos de um índio) e dela obteve a força mítica
48
DURÃO, Santa Rita Caramuru. São Paulo: Martins Fontes, 2001; BOPP, Raul. Cobra Norato.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1962; LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Aguilar,
1974.
88
necessária para atuar como elemento de sustentação do expansionismo cristão
português no Brasil.
No poema, as duas primeiras oitavas do canto I louvam Caramuru,
porém, o maior destaque é dado à “Virgem bela” e “Mãe donzela”, cujo poder,
através da chegada de Caramuru, será tirar do paganismo um povo bárbaro,
antropófago, infernal. Na oitava XLII, a imagem de Maria é novamente tomada,
assim como, mais adiante, a imagem de Tupã, que o autor, em nota, explica ser
uma “expressa noção de Deus, que vale entre eles “excelência superior, cousa
grande que nos domina.” Ainda no primeiro canto, são referenciadas as imagens
de Adão e Eva (que “por pena de um voraz desejo,/da feia desnudez se
envergonhava”) que, antes do “pecado”, andavam nus como a “gente bárbara”
encontrada por Diogo.
No canto II, Diogo, vestindo uma armadura e portando uma arma de
fogo, assusta Gupeva (o chefe da tribo) e sua gente que, a partir desse medo,
abrem espaço para que Diogo se manifeste. Diogo, ciente do estratagema
involuntário (pois se fez figura assombrosa por estar vestido de metal), mas
igualmente motivado pela “missão” de tornar mais humana “aquela gente”,
mostrará a Gupeva uma imagem de Nossa Senhora, sabiamente apresentada ao
indígena como “mãe de Tupã”.
Nos cantos VIII, IX e X, as visões proféticas de Catarina-Paraguaçu
sobre o futuro do Brasil ampliam sua projeção na dimensão mítica. O discurso
mítico de vidente remete Catarina-Paraguaçu, cada vez mais, para a convergência
das dimensões histórica e mítica. E será a figura da Virgem Maria a consolidadora
final da fusão dessas dimensões. Ao se manifestar, em voz e imagem, diante de
Catarina-Paraguaçu, a virgem diz amar o Brasil e lhe pede a recuperação de sua
imagem. A recuperação “milagrosa” da imagem, a submissão de Diogo e Catarina
ao governador Tomé de Souza e a conversão dos tupinambás ao catolicismo e ao
colonizador encerram o poema. Caramuru, portanto, dá relevância bastante
significativa à participação da mulher no expansionismo da fé cristã-católica,
índice talvez da percepção de Santa Rita Durão acerca do papel importante que a
mulher assumiria na difusão do catolicismo.
89
Publicado em 1931, o poema Cobra Norato, de Raul Bopp, inscreve-se
no percurso da produção épica moderna brasileira e tem, entre outros, o mérito de
dar visibilidade à região amazônica, com sua geografia, sua cultura, seu linguajar.
O herói da narrativa é um Eu-Lírico-Narrador que, após um ardiloso
expediente “quero contar-te uma história/Vamos passear naquelas ilhas
decotadas?/Faz de conta que há luar” reveste-se da pele da Cobra Norato
(“Brinco então de amarrar uma fita no pescoço/e estrangulo a cobra”), e,
assumindo a identidade mítica da cobra por ele ludibriada, faz o percurso em
direção ao histórico, em busca de construir para si uma identidade humana.
Percorrendo os espaços da geografia amazônica, Cobra Norato, imagem mítica de
sedução, deseja o “casamento” com a filha da rainha Luzia, ou seja, deseja despir-
se de sua função mítica e assumir uma função socialmente aceita. Com a inversão
do percurso, o herói faz a trajetória oposta à da cobra sedutora, ou seja, propõe-se
a ser seduzido e resistir à sedução, daí o maior obstáculo para sua caminhada de
volta ao real ser resistir ao processo de sedução inerente à sua própria natureza
mítica, recusando todas as formas de apelo à fecundação impressas na natureza.
No plano maravilhoso, a mulher é sexuada, sedutora, plena de visgos e
carente de preenchimento uterino; no plano histórico-geográfico, ela é a virgem, a
mulher digna de ser objeto de desejo e de conflito. No coroamento da aventura de
Norato, destaca-se, no plano maravilhoso, a imagem mítica de Nossa Senhora,
santificando o espaço anteriormente erótico (purificação); já no plano geográfico-
cultural, destaca-se a projeção da festa do casamento, o Caxiri Grande, e o
retorno do herói, agora acompanhado de sua noiva, a quem ele se propõe a
“contar histórias” e a “vestir com um vestidinho de flor”. Antropocêntrico, o poema
revela o homem que engana a serpente, sublima sua sexualidade instintiva e
animal, enfrenta as adversidades, domina a terra, submete-se aos rituais cristãos
e, finalmente, reintegra-se ao espaço mágico do Sem-Fim, reinventando o paraíso
Adâmico, do qual foi expurgada a serpente. Nesse retorno ao “estado de pureza”,
Nossa Senhora tem papel de destaque.
Invenção de Orfeu (1952), de Jorge de Lima, possui dez cantos e onze
mil versos, e é tido pela crítica como um dos mais complexos textos de natureza
90
épica. Nele, a figura da mulher é amplamente valorizada. Por isso, no decorrer do
poema, são muitas as alusões a nomes de mulheres que integram as dimensões
mítica e real, com predominância da primeira. No que se refere, especificamente
ao enfoque desta leitura, há, no poema, um aspecto curioso. Ao lado da santidade
de Maria, Jorge de Lima explora a figura de Eva:
Contudo,
burro épico, vertido pra crianças,
transporto-as à outra margem, sou Cristóvão
Colombo, sou columba, Deus Espírito
que desce sobre o início, sou palavra
antes de mim, eu evo. Ave Maria,
Eva sem culpa, tem de mim piedade,
Pia sacramental de que emerjo ilha.
92
A ESFINGE PEJADA DE
MISTÉRIOS:
TRAVESSIAS E TRAVESSURAS
DE JUDAS
SALMA FERRAZ
93
A ESFINGE PEJADA DE MISTÉRIOS:
TRAVESSIAS E TRAVESSURAS DE JUDAS
49
Maria Madalena – a discípula amada. In: Anais do II Simpósio Internacional sobre Religiões,
Religiosidades e Culturas, Dourados, Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), 23 a 26 de Abril de 2006.
94
Bloom em Jesus e Javé – os nomes divinos afirma que o melhor do cristianismo
foi a literatura criada a partir dele. O cristianismo é tão importante para o mundo
ocidental que quase chega a confundir-se com ele e eis aqui o motivo porque
mesmo sendo atéia uma pessoa nascida no Ocidente está imersa numa cultura
cristã e, certamente conhecerá personagens como Deus, Diabo, Madalena, Judas
e tantos outros mais. No Brasil, país predominantemente católico, certas
expressões relativas a este vilão bíblico são muito comuns, como por exemplo –
aquele sujeito é um Judas, lá onde o Judas perdeu as botas, malhar o Judas.
Sem exagero podemos afirmar que Judas é quase um virtual membro “bastardo”
da cultura brasileira.
Ninguém quer ser chamado de Judas, sinônimo de traição. Na
Alemanha o uso do nome Judas é proibido. No Brasil, durante a Páscoa, no
sábado de Aleluia, é comum a malhação de um boneco que simboliza o Judas
que traiu Jesus durante outra Páscoa ocorrida há dois mil anos. A malhação do
Judas é uma verdadeira catarse dos jovens, crianças e adultos, uma vez que o
Judas malhado ganha o rosto de políticos que traíram a pátria.
O Dicionário Aurélio traz as seguintes definições para Judas -
personagem do Novo Testamento: 1) Amigo falso; traidor; 2) Boneco ou
estafermo que se costuma queimar no sábado de aleluia; 3) Indivíduo mal trajado.
A acepção de traidor também está presente nos dicionários de espanhol, francês,
inglês, alemão e italiano.
Recorramos à Bíblia para recordar os principais detalhes da saga de
Judas. Ele é mencionado 15 vezes nos Evangelhos Canônicos e mais algumas
nos Atos dos Apóstolos, mas nada se sabe de sua vida antes dele conhecer
Jesus, afinal os Evangelhos são biografias de Jesus e não de Judas. No
Evangelho de Mateus50 sua primeira aparição já é condenatória e ele já é
apresentado como vilão. Ao narrar a escolha do doze apóstolos, Mateus no
capítulo 10:4 informa o nome de Judas por último: “Simão, o Zelote, e Judas
50
Os historiadores acreditam que os Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João não foram
escritos por eles, mas por membros das comunidades cristãos do primeiro século que resolveram
compilar as narrativas orais existentes.
95
Iscariotes51, que foi quem o traiu.” Trata-se de um relato por ulterioridade, o
evangelista já sabe o futuro quando começa a narrar. Em Mateus 26: 14 temos o
episódio do pacto da traição:
96
o caso em questão, aliás, bastante polêmico: Judas traiu a Jesus porque quis, já
que era dotado de livre arbítrio, mas Jesus, filho de Deus e Onisciente como
Deus, já sabia que era ele que o trairia, embora esta Sua onisciência não fosse
causativa. Ou se aceita estes conceitos somente pela fé ou achamos isto um
completo absurdo.
A partir deste momento, qualquer referência ao décimo segundo
apóstolo virá acompanhada do adjetivo traidor. Analisemos o momento crucial
desta tragédia, quando Judas entrega Jesus no jardim do Getsêmani. O
evangelista Mateus continua seu relato:
97
como esta da biografia de Judas é que a Bíblia é a matriz das grandes estórias da
Literatura Ocidental. Voltando à análise do episódio da traição, observamos que
os principais sacerdotes recolhem as trinta moedas – exatamente o preço de um
escravo na época - e chegam à conclusão que não era lícito lançá-las no cofre
das ofertas do Templo, porque simbolizavam o preço do sangue. Com aquelas
moedas malditas, compraram um campo para ser usado como cemitério de
forasteiros e denominaram aquele campo de Campo de Sangue. Ressaltamos
que na narrativa de Mateus aparece a palavra remorso, porque Judas se
conscientiza de que entregou um homem justo. O Evangelho de Lucas no capítulo
22:3 traz o seguinte relato: “Ora, Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes,
que era um dos doze...” Analisando o texto, podemos inferir daqui que Judas é
inocente já que estava dominado por Satanás e por tanto não era dono de seus
atos. No Evangelho de Marcos, escrito em 65. d.C., Judas é o responsável pela
traição, mas a recompensa é oferecida pelos sacerdotes e não é Judas quem põe
preço na traição.
Cabe acrescentar outro detalhe da biografia bíblica de Judas Iscariotes.
Ele exercia a profissão de tesoureiro, já que Jesus e seus discípulos viviam uma
vida itinerante e dependiam de doações. O décimo segundo Apóstolo de Jesus
era tesoureiro, afinal, alguém precisava cuidar do dinheiro que era arrecadado
entre as pessoas abastadas da época do surgimento do cristianismo. Por ocasião
da unção de Jesus por uma mulher que quebrou um caríssimo vaso de perfume,
Judas não gostou deste desperdício e, neste ponto, o evangelista João, que no
episódio da traição também fala em possessão demoníaca, informa que: “Isto
disse ele, não porque tivesse cuidado dos pobres, mas porque era ladrão e,
tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava.” (João 12:6, negrito nosso). O fato de
ser tesoureiro poderia indicar tanto que era uma pessoa de confiança como
poderia sugerir que era avarento. Mas o evangelista João não deixa dúvidas:
tomava conta da bolsa e era ladrão, ou seja, “desviava” dinheiro sagrado para o
seu caixa dois, tinha sua mala particular e isto não era segredo para ninguém: era
público e notório. Agora sim sua biografia está completa: ladrão, corrupto, traidor e
suicida.
98
O Evangelho de Mateus foi escrito em torno do ano 80 da Era Cristã,
provavelmente, em aramaico e depois vertido para o grego. Mas nos Atos dos
Apóstolos, cuja autoria é atribuída ao evangelista Lucas, redigido em torno do ano
80, durante a narrativa da escolha do discípulo Matias que substituiu Judas,
temos literalmente um parêntesis de oito linhas, um breve resumo da trajetória do
traidor:
“Um dos Evangelhos afirma que Judas agiu por dinheiro, outro não
cita motivações, dois falam em ação demoníaca. Creio que essas
versões tão distintas deixam claro que os escritores do Novo
Testamento não sabiam exatamente quem era Judas
Iscariotes.”52
52
Graig Evens. O Evangelho Segundo Judas. In: Super Interessante, p. 58-59, p. 60, negrito
nosso.
99
Em seu artigo sobre Judas – O Evangelho Segundo Judas, Ana Paula
Chinelli levanta uma interessante pergunta que também já nos ocorreu: porque
Pedro que negou a Cristo 3 vezes, jamais teve sua virtude colocada em dúvida e
não entrou para história como traidor? A resposta “oficial” é que Pedro se
arrependeu e apelou para a misericórdia divina e Judas não se humilhou, se
desesperou e se matou... Contra a fé não há argumentos. No mesmo artigo o
historiador Chevitarese responde: ”Pedro, chefe da Igreja em Roma, tinha de ser
o herói. A Igreja elegeu Judas como vilão já que um dos 12 deveria trair.”53 O
teólogo Fernando Altemeyer corrobora a idéia de Chevitarese ao afirmar que “a
atitude do apóstolo traidor não foi muito pior que a de Pedro, que o negou três
vezes, ou que a dos demais apóstolos, que o abandonaram. Judas foi um mal
necessário, um inocente útil.”54 Luis Felipe Pondé, professor de Ciências da
Religião, vai mais longe e afirma que “é elementar que Deus usasse os elementos
que criou para fazer a Paixão de Cristo acontecer.”55 O cristianismo se construiu
em cima dos grandes arquétipos do bem e do mal, de heróis e vilões e a Judas
coube o papel de traidor do Filho de Deus.
Em outro conto do livro Perfume de Eternidade, Queiroz realiza um
encontro entre Judas e Pedro para que os dois discutam suas culpas. O conto se
intitula Encontro de Culpas e Pedro afirma “Vou viver com aquelas traições.
Nunca poderei dormir sem que galos clarinem dentro do meu sono inquieto.”
Queiroz iguala Pedro e Judas, ambos traidores, ambos culpados.
Não poderíamos deixar de citar a tese de John Dominic Crossan,
professor de estudos bíblicos da DePaul University, de Chicago. Em seu livro
Quem Matou Jesus?, Crossan afirma: “Minha suposição é de que Judas possa ter
sido capturado entre os companheiros de Jesus, durante a ação no Templo, e em
seguida contado quem tinha feito aquilo e onde se encontrava”. Ou seja, o beijo e
as moedas entrariam bem depois no enredo. É o historiador Ademir Luiz quem,
analisando a hipótese de Crossan, afirma que Judas
53
Apud Ana Paula Chinelli. O Evangelho Segundo Judas. In: Super Interessante, p. 62.
54
Apud O Evangelho Segundo Judas de Ivan Padilha & Marcelo Musa Cavallari. In: Época. São
Paulo: Globo, Fevereiro de 2006, p. 65, negrito nosso.
55
Id. ibidem, p. 65.
100
“provavelmente, morreu mesmo enforcado. Afinal, na
Antigüidade, o enforcamento era uma modalidade de execução
pública muito usada. Se a sugestão de Crossan for correta,
podemos supor que talvez os romanos tenham crucificado o
criminoso principal e reservado pena mais branda — o
enforcamento — para um prisioneiro cooperativo. Parece fazer
sentido, uma vez que um estudo filológico sobre seu sobrenome
compromete-o: Judas Iscariotes seria uma latinização do
aramaico Judas Sicarus. Sicarius, algo como portador do punhal,
era uma das formas de se chamar os integrantes dos zelotes,
partido judeu de resistência aos romanos. Ou seja: nada de
suicídio motivado pelo arrependimento. Judas também teria sido
executado.” 56
56
Ademir Luiz Judas, que não teria traído Jesus Cristo, pode ter sido enforcado. In: Jornal Opção
on line, Goiânia., 30 de Abril a 06 de Maio de 2006 - www.jornalopcao.com.br -
57
Consultar o artigo O Outro Judas de Pablo Nogueira In: Revista Galileu. São Paulo: Globo, p.
46-47.
101
O bispo de Lyon, santo Irineu, justamente o bispo que teve atuação
decisiva para que apenas os quatro Evangelhos entrassem na Bíblia58, havia
escrito um livro (5 volumes) em 180 d.C. denominado Contra os Hereges na qual
citava nominalmente O Evangelho de Judas e o classifica de herético59. Cumpre
esclarecer que o livro de Santo Irineu já está publicado em português, em sua
segunda edição pela editora Paulus, com o título Contra as Heresias. Irineu
faleceu em 202, mas em 367, um fervoroso seguidor dele – bispo Atanásio de
Alexandria - elaborou uma lista dos textos aceitáveis (quase todo o Novo
Testamento conhecido) e exigiu que os monges do todo o Egito destruíssem as
obras não incluídas ali. A sorte é que nem todos os monges foram obedientes a
sua ordem e é por isto que O Evangelho de Judas chegou até nós. Aqui uma
hipótese torna-se quase certeza: Judas teve seguidores e algum destes
seguidores provavelmente de alguma comunidade gnóstica, que acreditavam que
a salvação vinha pelo autoconhecimento - escreveu O Evangelho de Judas.
Relatamos aqui duas constatações levantadas por Stephen Emmel, especialista
em copta: “... ou Judas teve tempo de contar suas conversas com Cristo antes de
se matar; ou não morreu tão cedo.” Mistérios...
58
Sobre os critérios e motivações para a escolha de apenas 4 evangelhos oficiais consultar a
reportagem citada acima. Elaine Pagels defende a tese de que se não fosse as idéias e o trabalho
de Irineu e o posterior Concílio de Nicéia (que assentaram os fundamentos teológicos da Igreja),
ou seja, se o cristianismo tivesse continuado com suas várias correntes e tendências, talvez
tivesse simplesmente desaparecido da História.
59
Neste documento Irineu deixa claro que não conhecia pessoalmente O Evangelho de Judas,
mas que já tinha ouvido falar do que ele denomina de caininitas (defensores de Caim) que
“defendiam Judas, o traidor, dizendo que ele é admirável e grande, devido às vantagens que
ajudou a conferir à humanidade. Mas Deus preparou o fogo eterno para todo tipo de heresia”.
Apud. O Outro Judas, p. 48, negrito nosso.
60
Emmel, Apud O Outro Judas, p. 54.
102
atendeu a um pedido de Jesus e o entregou aos soldados romanos; 3) era um
homem leal já que obedeceu a Jesus, mesmo sabendo que seu nome seria
eternamente amaldiçoado; 4) ele foi o único Apóstolo a entender o significado dos
ensinamentos de Jesus; 5) foi o responsável pela libertação do espírito de Jesus,
ao permitir que, pela morte do corpo, o espírito de Jesus se libertasse; 6) não há
relato de suicídio, nem de enforcamento, mas há a sugestão de que ele foi aceito
nos reino dos céus por ter sido usado como instrumento para realizar os
desígnios de Deus.
Citarmos aqui a passagem do Evangelho de Judas na qual Jesus diz a
Judas: “Se afaste dos outros e eu lhe concederei os mistérios do Reino. Você
pode entendê-los, mas vai sofrer por isso.”61 Portanto, este gnóstico revela que
Judas era um iniciado e só ele tinha acesso aos mistério do reino de Deus -
gnosis. Mais adiante Jesus fala que Judas “sacrificará o homem que me veste” e
revela a missão principal de Judas: matar a parte física para livrar seu espírito
daquele corpo62. Judas, leal, cumpre tudo como fora ordenado. Desta forma,
neste Evangelho, ele é o melhor amigo de Jesus e cúmplice perfeito para
execução de seus planos, transformando-se de vilão em herói, modelo de
obediência e amor. A Igreja, como sempre, negou sua aprovação ao texto e taxou
o mesmo de produto de fantasia religiosa. A posição da Igreja é clara: quem trai é
um Judas e ponto final.
Não mencionaremos a trajetória de Judas na pintura e no cinema o que
demandaria outro estudo. Na literatura esta idéia não é nova. Muitos escritores
tiveram Judas como protagonista e defenderam a idéia agiu sob ordens de Jesus,
ajudando-o a selar seu destino na cruz.
E aqui surge uma curiosa e intrigante pergunta? Onde Dante teria
colocado Judas em seu Inferno? Judas se encontra não somente no lugar mais
61
Ana Paula Chinelli. O Evangelho Segundo Judas. In: Super Interessante, p. 58-59, negrito nosso.
62
Os gnósticos acreditavam que a libertação do corpo acontecia quando se conhecia a parcela
divina que cada ser tinha dentro de si, que a salvação vinha pelo autoconhecimento, que não
precisavam freqüentar Igrejas e cultos, não precisavam de intercessores como padres e que a
morte de Cristo o ajudou a libertar-se da prisão que era seu corpo. Para eles, Jesus era um
enviado do Deus verdadeiro e bom, superior ao Deus falso e mau do Antigo Testamento. Eram
influenciados pela filosofia grega e pelas idéias de Platão.
103
profundo do inferno, como também na boca do próprio Lúcifer que o mastiga sem
cessar. A última zona infernal - coberta de gelo - divide-se em quatro partes e
hospeda os traidores (pecado considerado o mais grave, já que implica em
malícia e inteligência aplicadas no engano para o mal de quem se conhece ou
com quem se têm relações): 1) Caina, onde estão os traidores dos parentes; 2)
Antenora, onde estão os traidores da pátria; 3) Tolomea, os traidores dos
hóspedes e 4) Giudecca, os traidores dos benfeitores. Ao chegarem na última
zona infernal, Dante e Virgílio se deparam com Lúcifer em pessoa. Lúcifer é
gigantesco e com suas três caras engole os três traidores por antonomásia: Bruto
e Cássio (traidores de César - o Império) são mastigados - os pés para dentro, os
troncos para fora - pelas bocas laterais e Judas (traidor de Cristo - a Igreja) é
mastigado - os pés para fora, o tronco todo para dentro - pela boca central do
enorme demônio. Bruto, Cássio e Judas são castigados assim eternamente63.
63
Conforme a especialista em Dante, Maria Teresa Arrigoni, no canto XXXIV (Divina
Comédia, Inferno), Judas Iscariotis é citado literalmente:
"Quell'anima là sú c'ha maggior pena -
disse il maestro - è Giuda Scariotto..." (Inferno., XXXIV, 61-62).
104
intencionado, cara feia, medroso, débil, enfermiço, desagradável, antipático,
cachorro sarnento, monstro marinho, monstruosa fealdade. No plano geral seu
enredo não desvia do enredo evangélico, mas Andreiev demoniza enfaticamente a
figura do décimo segundo apóstolo, transformando-o num quasímodo, com
tendências homossexuais.
64
Três versões de Judas, p. 574 (todos os negritos no conto de Borges são de nossa autoria).
105
Borges relata a posição especulativa de Quincey (Borges, ele mesmo):
“De Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para forçá-lo a
declarar sua divindade e a deflagrar uma vasta rebelião contra o jugo de
Roma.”65 Portanto a primeira versão de Judas pertence a Quincey/Borges que
absolve Judas.
Após leitura das reflexões de Quincey, o protagonista Runeberg (outra
vez, o próprio Borges) vai dilatando as idéias daquele. Para ele em sua suposta
obra Kristus och Judas, o ato de Judas poderia ser encarado como superficial e a
traição de um apóstolo poderia ser dispensada, uma vez que Jesus era muito
conhecido, mas não foi isto que ocorreu. O filósofo afirma que a traição de Judas
não foi casual. Segundo ele:
65
Idem.Ibidem, p. 574.
66
Idem. Ibidem, p. 574.
106
Hemlige Frälsaren, em 1909. Resumindo, na sua terceira versão de Judas,
Runeberg/Borges esclarece que: 1) Jesus, sendo onisciente, não precisava de um
homem para redimir todos os homens; 2) reafirma a importância de Judas, como
um dos doze eleitos para anunciar o reino dos céus, para sanar enfermos, para
limpar leprosos, para ressuscitar mortos e para expulsar demônios, ou seja, Judas
foi escolhido por Jesus e merecia uma melhor interpretação dos seus atos; 3)
nega que Judas tenha traído por cobiça, mas afirma que ele era um hiperbólico
asceta, que para maior Glória de Deus, envileceu e mortificou sua carne e seu
espírito. Nesta terceira versão, Runeberg/Borges afirma que Judas:
67
Idem. Ibidem, p. 575.
68
Idem.Ibidem, p. 577.
107
o triste destino daqueles que ousam olhar Deus frente a frente: Elias e Moisés
cobrindo o rosto na montanha para não ver Deus; Isaías assustado com a Glória
de Deus que enchia a terra; Saulo, cegado pelo esplendor divino,
Runeberg/Borges louco de lucidez. Borges termina seu texto perguntando se não
seria este o enigmático pecado contra o Espírito Santo.
O que Borges neste conto que confunde o leitor desavisado, e no qual
as três versões de Judas na realidade são uma só - a versão magnífica de Jorge
Luiz Borges - é que Judas, o suposto delator é, na verdade, o salvador da
humanidade justamente por ter tornado possível a paixão de Cristo.
No Brasil, Paulo Coelho muito antes de seu astronômico sucesso com
seus best-sellers, juntamente com Raul Seixas, um dos roqueiros mais queridos e
geniais do rock brasileiro dos anos setenta, em parceria compuseram em 1978 a
canção intitulada Judas (do LP Mata Virgem), na qual elegem o antagonista
bíblico como motivo para uma composição. Nesta canção, o apóstolo Judas,
confortavelmente instalado no céu, sentado à beira da piscina, se diverte em ver
como as escrituras interpretaram seu ato. Portanto, há quase trinta anos, muito
antes do polêmico surgimento do Evangelho de Judas, os dois compositores já
tinham eleito este antagonista bíblico para uma canção intitulada Judas:
Judas
refrão
108
Se eu não tivesse traído
morreria cercado de luz
e o mundo hoje então não teria
a marca sagrada da cruz
e para provar que me amava
pediu outro gesto de amor
pediu que o traísse com um beijo
que minha boca então marcou.69
69
Do LP Mata Virgem, negrito nosso.
109
dos mortos; 2) do livro Deuses e Santos como nós, publicado em 2000,
destacamos dois belos contos: O irmão Mais Velho e O Punhal. No primeiro conto
o escritor concede voz ao irmão mais velho da Parábola do Filho Pródigo relatada
nos Evangelhos, para que ele demonstre toda a sua dor e sua revolta pela
predileção do Pai pelo filho mais jovem. No segundo conto, O Punhal, a saga de
Abraão e seu filho Isaac é relida e, novamente, o punhal é levantado contra o
peito do próprio filho, só que neste conto o Pai é apunhalado metaforicamente.
Nesta obra em diálogo constante com a Bíblia não poderia faltar uma
recriação de Judas que está no conto O Acordo no livro ainda inédito Perfume de
Eternidade.
“Se estou com medo? Não. Ainda não aprendi a temer o que não
conheço. Depois, sei – não me pergunte de que modo o sei –
que você tem sido sempre um perfeito cavalheiro em seus tratos.
Você gosta de apostar, mas joga limpo. Para mim é importante o
testemunho que dão de sua honradez.
70
História do Riso e do Escárnio, p. 115.
71
Salmos 59: 8.
72
Provérbios 3:34.
73
Jó 9:23
111
O traidor do Filho do Homem admira a lealdade e Deus ri - que perfeita
entrada para um conto. Judas é irônico: primeiro afirma que Deus joga limpo e
que é honrado, depois faz uma análise mais acurada do passado de Deus e
conclui que as atitudes dele são arrojadas, intrépidas e atrevidas. Desde o início
do conto percebemos que neste encontro, só Judas, tão discreto e silencioso nos
Evangelhos fala. Deus, cujos discursos no Antigo Testamento, foram sempre
acompanhados de muito barulho (trovões, fogo e glória), permanece em silêncio
e tudo que o leitor saberá dele será filtrado pela interpretação de Judas.
112
envergadura do projeto e da necessidade de que o escolhido seja leal, Judas
reafirma esta sua virtude máxima:
Judas, honesto e leal cidadão, não tinha planos tão grandes assim para
seu futuro: só queria casar e ter filhos. E por isto resolve adiar seus humildes
planos em função deste megalomaníaco plano mundial que fora convocado a
participar, e sobre o qual, apesar de impressionado, não sabe o que exatamente
é. Deus continua detalhando seu plano e o homem de uma palavra só parece
estar encantado com tudo:
113
se contar que muitos deixarão poucos trabalharem e sempre
haver alguém que trairá.
Pela terceira vez Deus sorri e pela terceira vez Judas constata isto.
Deus ri, Judas se surpreende e o leitor se assusta. Deus detalha tudo o que
Judas deve fazer e este, novamente, reafirma sua lealdade:
“O quê? Você deve estar louco! Ou, pior ainda, pondo minha
lealdade à prova!
Então, você quer que eu traia seu filho por dinheiro? Que,
numa noite, já amigos, ceemos juntos? E, depois, na escuridão
de sua angústia, com um beijo no rosto, o entregue para que o
matem?
115
traísse Jesus, aqui neste conto tanto Judas como o próprio Satanás são
completamente absolvidos, já que é Deus quem convoca Judas, quem o
predestina, quem arquiteta tudo. Nogueira em O Diabo no imaginário cristão
afirma que “Satã é o inimigo implacável de Jesus...”74, mas aqui neste conto tudo
se inverte: o grande adversário implacável de Jesus é Deus. Se referindo ao
Deus das Sagradas Escrituras Jack Milles enuncia em Deus - uma Biografia: “é
estranho dizer isso, mas Deus não é nenhum santo”75. Que podemos dizer então
do Deus arquitetado por Queiroz.?
116
Em nota explicativa e introdutória da novela Judas Iscariotes do escritor
russo Leonid Andreiev, Aristides Ávila faz uma síntese daquilo que ele denomina
de estranha e indecifrada figura de Judas:
Vamos mais longe e afirmamos que homens sábios, livres por vocação,
ousam por meio da literatura questionar o reino de Deus, porque talvez, o único
reino que os sábios conheçam seja o reino das palavras, o reino da poesia. Eis
aqui o propósito da escritura de Julio de Queiroz, nada mais, nada menos.
BIBLIOGRAFIA
78
Judas Iscariotes de Leonid Andreiev, p.7.
117
A BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA REVISTA E ATUALIZADA. São Paulo: Sociedade
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118
MANIFESTAÇÕES BÍBLICAS EM
TRÊS CONTOS DE JORGE LUIS
BORGES
119
MANIFESTAÇÕES BÍBLICAS EM TRÊS CONTOS DE JORGE LUIS
BORGES
120
com as doutrinas teológicas, apresentando-as não como verdades incontestáveis,
mas como invenções ou criações da inquieta imaginação dos homens.
As Sagradas Escrituras aparecem como uma das fontes primeiras de
inspiração borgiana; além de importantes ferramentas estéticas, são textos
carregados de mistério, de esoterismo, de problemas metafísicos. Assim, este
artigo enfoca especificamente três contos de Borges que aludem ao texto bíblico,
uma vez que, como foi dito, a Bíblia exerceu um determinante papel, não somente
como fonte de consulta, mas como elemento de inspiração literária79. Por outro
lado, as narrativas borgianas certamente foram também influenciadas por sua
declarada simpatia pelos judeus. Declara Borges: ‘Yo siempre he hecho todo lo
posible por ser judío. Siempre he buscado antepasados judíos. La familia de mi
madre es Acevedo, y podría ser judía portuguesa’. Afirma, ainda, que ‘todos –
80
quien más y quien menos – somos griegos y judíos’ . Verifica-se, também, que
interessam a Borges não somente as idéias concebidas no judaísmo, mas
também as circunstâncias do homem judeu de carne e osso. Segundo Muñoz
Rengel81, um dos motivos pelos quais Borges admirava os judeus ligava-se ao fato
de que durante a Segunda Guerra Mundial esse povo foi identificado pelo escritor
com o intelecto e a espiritualidade, em oposição à brutalidade absoluta e à
maldade infernal dos nazistas. Ainda de acordo com Rengel, os judeus, para
Borges, são os criadores da cultura, os malditos, os sacrificados, os que têm o
Livro como pátria portátil; porém, são também os que, admirando a Deus, ousam
desafiá-lo. Ao longo de sua carreira literária, encontramos judeus pelos quais
Borges professa veneração, como Kafka, Cansinos-Asséns, Spinoza, ou ainda
Jesus Cristo, objeto especial de sua consideração. Vale lembrar que em 1973,
numa entrevista a María Esther Vázquez, Borges demonstra profunda admiração
por Jesus Cristo, um homem justo e ‘extraordinário’: ‘indudablemente, una de las
1. É importante registrar que, além da Bíblia, Borges também circulou por obras como o Alcorão,
Talmude, Michná, Bhagavad-Gita, além da Cabala.
80
As afirmativas de Borges sobre os judeus estão contidas no texto: MUÑOZ RENGEL, Juan
Jacinto. En qué creía Borges.
Disponível em: http://members.fortunecity.com/mundopoesia2/articulos/enquecreiaborges.htm
Acesso em 28/mar/2006.
81
MUÑOZ RENGEL, op.cit.
121
personas más raras y más admirables con que ha contado el mundo’. Apesar da
admiração por Cristo, de forma irônica mostra-se descrente da religião professada
pelos seus seguidores: ‘pero no sé si los cristianos se parecen a Cristo’ (BORGES
em Vázquez 1977, p. 91-2). Assim, é evidente que o conhecimento do judaísmo e
seu respeito por essa cultura permitiram a Borges criar uma galeria de
personagens judaicas em seus contos.
Nesse artigo, proponho-me a identificar os aspectos bíblicos que Borges
incorpora aos contos “Emma Zunz”, “El muerto” e “El evangelio según Marcos”,
bem como as personagens judaicas destes relatos, com especial destaque para a
figura de Cristo.
O primeiro conto, “Emma Zunz”, trata do assassinato de Aaron
Loewenthal, cometido pela jovem Emma, para vingar a morte do pai. Operária
numa fábrica de tecidos, ela encontra uma carta, proveniente do Brasil, pela qual é
informada da morte do pai, que tinha ingerido por engano uma forte dose de
veronal. Seis anos antes, acusado de desfalque no caixa da fábrica onde
trabalhava e onde Emma é operária, Emanuel Zunz é obrigado a fugir do país e a
mudar de identidade. Em sua última noite junto da filha, jurara inocência e acusara
Loewenthal, antes gerente e depois um dos donos da fábrica, de ter cometido o
desfalque pelo qual fora injustamente incriminado. Certa de que seu pai tinha se
suicidado, a jovem decide vingar sua morte, pelo único modo que julga possível:
passa-se por prostituta e mantém relações sexuais com um marinheiro
desconhecido. Em seguida, procura Loewenthal, mata-o com um revólver que ele
guardava numa gaveta do seu escritório e telefona para a polícia, acusando o
gerente de tê-la violentado. Forja, assim, uma justificativa para o assassinato.
Inquestionavelmente, ela carrega no corpo as marcas dessa violência.
O fato de ser uma jovem de 19 anos, ingênua, solitária, calma (tendo se
declarado, sempre, ‘contra toda violência’) e totalmente inexperiente no
relacionamento com o sexo oposto, certamente confere credibilidade a sua
história, que é parcialmente verdadeira. O ato de violência suportado pelo corpo
de Emma é verdadeiro, mas quem o praticou, entretanto, não foi Loewenthal. No
entanto, a história que conta a todos se impõe como sua verdade porque os
122
sentimentos de ódio, pudor e ultraje são sempre autênticos. A falsidade, ao
contrário, se fundamenta nas circunstâncias. E o narrador aparentemente assume
a defesa de Emma, ao interpretar a narrativa, no final.
82
Todas as citações bíblicas deste trabalho tiveram como fonte: BÍBLIA. Português. Bíblia
Sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia
Britannica, 1980.
123
dela um auto-sacrifício extremo: rebaixar-se ao papel de prostituta e elevar-se
quase à condição anjo vingador e cometer um crime. Aaron Loewenthal é
apresentado como o estereótipo do judeu avaro. Sabe-se que o dote é um dos
costumes mais arraigados entre os judeus e que Loewenthal recebera, no
casamento com uma Gauss, um dote substancial. Para ele, o dinheiro era seu
deus:
Aarón Loewenthal era, para todos, un hombre serio; para sus pocos
íntimos, un avaro. (...) Había llorado con decoro, el año anterior, la
inesperada muerte de su mujer – una Gauss, que le trajo una buena
dote - pero el dinero era su verdadera pasión. Con íntimo bochorno se
sabia menos apto para ganarlo que para conservarlo. (BORGES, 1996,
p. 566, v.I)
124
calendário judeu considera-o dia sagrado e de descanso, especialmente dedicado
a Jeová (Êxodo XX, 8 -11 e XXXI, 12). Para tornar mais terrível o seu sacrifício,
ela escolhe este dia sagrado para se prostituir, matar e mentir. Também rasga o
dinheiro com que foi paga pelo marinheiro. ‘Romper dinero es una impiedad, como
tirar el pan; Emma se arrepintió, apenas lo hizo. Un acto de soberbia y en aquel
día...’ (BORGES, 1996, p. 566, v.I).
Não só os nomes dos protagonistas do conto, mas os nomes de todas
as personagens (Emanuel e Emma Zunz, Aaron Loewenthal, Manuel Maier, Elsa
Urstein, Perla Kronfuss, Gauss, Fein ou Fain) apontam para uma ascendência
judaica. Registre-se que a única personagem não judaica é o sueco ou norueguês,
com quem Emma perde sua virgindade, escolhido por ser um estrangeiro (que
nem sequer fala espanhol), marinheiro do barco Nordstjärnan, de Malmlö, que
zarparia essa mesma noite. Assim, “Emma Zunz” configura-se como uma história
com evidentes remissões e intertextos bíblicos. Nela Borges trabalha com os
conceitos de honra e vingança, de falso e verdadeiro, de realidade e ficção, numa
comunidade judaica.
No segundo conto analisado, “El muerto”, lê-se que a personagem
principal, Benjamin Otálora, um ‘compadrito’ de Buenos Aires, mata um homem e
se refugia no Uruguai. Neste país, une-se aos homens de Azevedo Bandeira e
inicia uma nova vida de aventuras, de contrabando e de aprendizagem. Com o
passar do tempo, Otálora começa a cobiçar o posto de seu chefe e, aos poucos,
decide desmoralizá-lo: não obedece às suas ordens, corrige-as ou modifica-as.
Assim, o argentino vai usurpando o lugar de Bandeira: monta o alazão do chefe,
deita com sua mulher e tenta conquistar a amizade de seus homens de confiança.
Para Otálora, ‘la mujer, el apero y el colorado son atributos o adjetivos de un
hombre que él aspira a destruir’ (BORGES, 1996, p. 548, v.I). No entanto, quando
pensa estar perto de alcançar seu objetivo, numa noite de orgia, ao soar as doze
badaladas do relógio, Bandeira levanta-se e como quem se recorda de uma
obrigação, dá uma ordem: então o argentino é executado a sangue frio, por um de
seus homens.
125
Otálora comprende, antes de morir, que desde el principio lo han
traicionado, que ha sido condenado a muerte, que le han
permitido el amor, el mando y el triunfo, porque ya lo daban por
muerto, porque para Bandeira ya estaba muerto. Suaréz, casi con
desdén, hace fuego (BORGES, 1996, p. 611, v.I).
126
outro ser (a divindade). Assim, de certa forma, Scharlach (“La muerte y la brújula”),
Bandeira (“El muerto”), Nolan (“Tema del traidor e del héroe”), Zaid (“Abenjacán el
Bojarí, muerto en su laberinto”) e Commendatore Sangiácomo (“Las previsiones
de Sangiácomo”) constituem repetições, versões ou perversões da divindade
Sunday; e Lönnrot, Otálora, Ryan, Abenjacán e Ricardo reiteram de algum modo o
homem Syme, protagonista da narrativa de Chesterton (BARRENECHEA, 2000,
p.122-3). Para Alazraki, muitos contos de Borges encerram a idéia de que o
universo é um livro de Deus, no qual somos meras palavras ou versículos. Numa
análise de “El muerto”, comenta que o destino de Otálora é uma linha do livro de
Bandeira; Otálora escreve sua história sem suspeitar que seus atos obedecem a
um diagrama já concebido.
127
Por outro lado, podemos observar que neste conto de Borges os últimos
acontecimentos da vida do protagonista guardam uma estreita relação com a
narrativa bíblica das últimas horas de Jesus neste mundo. Segundo a Bíblia, em
sua última noite, Jesus celebra com os seus discípulos a última ceia, repartindo o
pão e o vinho como se fossem seu corpo e seu sangue (Luc. XXII 14-20).
Também Otálora participa de uma última refeição com os seus
companheiros, antes de ser executado, uma espécie de ceia de despedida.
Paródia da última ceia de Jesus, os alimentos compartilhados não são os
mesmos: ao invés de vinho, bebe-se álcool pendenciador; o cordeiro recém
carneado substitui o pão:
83
Foi encontrado um manuscrito apócrifo que dá outra versão aos fatos e que redime Judas.
Nesse manuscrito, Judas trai a Jesus a pedido do próprio. Também no conto “Três versiones de
Judas” Borges questiona a atitude de ‘traição’ de Judas Iscariote. Na verdade, nesse texto, Judas é
apresentado como o verdadeiro sacrificado, o autêntico mártir, e não Cristo.
128
XIX, 38). E esse mesmo povo, dias depois, escarnece de Jesus, o humilha e
pressiona para que seja crucificado.
Também a Otálora fora permitido aspirar a uma ascensão ao poder e a
suplantar Bandeira como chefe do grupo. Entretanto, no epílogo, Otálora se
apercebe de que tudo não passou de uma farsa criada por Bandeira: ‘Azevedo
Bandeira es diestro en el arte de la intimidación progresiva, en la satánica
maniobra de humillar al interlocutor gradualmente, combinando veras y burlas’
(BORGES, 1996, p.610, v.I).
Assim, pode-se dizer que de uma forma paródica e com algumas
alterações, Borges estabelece uma aproximação do conto “El muerto” com a
história de Cristo, especialmente nos últimos dias antes de ser crucificado.
No último conto a ser analisado, “El evangelio según Marcos”, Borges
narra a viagem de um jovem estudante de Buenos Aires, Baltasar Espinosa, até a
pequena estância de seu primo, “Los Álamos”, para os lados do sul. Durante sua
estada lá, acontece uma forte tempestade que o obriga a permanecer encerrado
na sede da fazenda que compartilha com o capataz e sua família – os Gutre -
pessoas silenciosas e analfabetas. Estando isolados do resto do mundo, o jovem
recorre à leitura para atenuar o mal estar de uma convivência forçada. Em vão,
Espinosa tenta interessá-los por algumas leituras como “La Chacra”, um manual
de veterinária, uma “Historia de los Shorthorn en la Argentina”, ou “Don Segundo
Sombra”. A trivialidade desses relatos não os interessa, uma vez que não os
distinguem das suas próprias rotinas diárias: tratando-se de campo, preferem suas
próprias histórias. Entretanto, ao encontrar uma Bíblia em inglês, para exercitar-se
na tradução, decide ler para eles algumas de suas passagens, traduzindo-as
diretamente ao espanhol. Note-se que a pregação em outra língua encontra
ressonância na passagem bíblica do “Evangelho de São Marcos”: ‘E eis os
milagres que acompanharão os que crerem: expulsarão os demônios em meu
nome, falarão novas línguas (...) (Mar. XVI, 17).
Para a admiração de Espinosa, quando começa a ler o “Evangelho de
São Marcos”, ‘acaso para ver si entendían algo (…), le sorprendió que lo
escucharan con atención y luego con callado interés’. (BORGES, 1996, p.480 v.II).
129
Recordando as aulas de oratória em Ramos Mejía, o estudante de Buenos Aires
passa a ficar de pé para pregar as parábolas. Procede, então, como Cristo, de
forma que sua pregação não se limita a relatar os fatos, mas a dramatizá-los: seu
discurso transforma, aos olhos daquele povo simples, seu relato em ação. De
igual forma, o “Evangelho de São Marcos’, em seu capítulo II,13, relata a pregação
de Cristo: ‘E saiu outra vez para a parte do mar; e vinha a ele toda a gente e ele
os ensinava’. Assim, Baltasar, apesar de ser um homem comum, vai-se
transfigurando no Messias, aos olhos daquela gente simples e iletrada.
Por outro lado, como o texto bíblico de Marcos descreve os milagres de
Cristo, nos capítulos I, II, III,V,VI,VII,VIII e IX, também o conto de Borges descreve
a ‘cura’ que Espinosa faz de uma ovelha que se machucara numa cerca de arame
farpado. ‘Para parar la sangre, quería ponerle una telaraña. Espinosa la curó con
unas pastillas’ (BORGES, 1996, p. 480, v. II). Assim, aos poucos, o relator da vida
e paixão de Cristo reatualiza e se faz protagonista de uma nova versão dessa
mesma história.
Blum analisa neste conto de Borges a presença da tradicional dicotomia
da literatura argentina moderna: civilização e barbárie84. Nos Gutre, descendentes
de europeus e de índios, confluem os dois aspectos dessa polaridade: a
civilização de sangue europeu e a barbárie de sangue indígena: ‘Eran oriundos de
Inverness, habían arribado a este continente, sin duda como peones, a princípios
de siglo diecinueve, y se habían cruzado com indios’ (BORGES, 1996, p. 479,
v.II). Antes da chegada de Baltasar, predominava neles a barbárie: ‘Al cabo de
unas pocas generaciones habían olvidado el inglés; el castellano, cuando
Espinosa los conoció, les daba trabajo’ (BORGES, 1996, p.480, v. II).
Dessa forma, quando Baltasar começa a ler para eles o Evangelho, eles
redescobrem o cristianismo sob a ótica da barbárie. Segundo Blum, os Gutre,
seres mestiços, acolhem fervorosamente o cristianismo, a partir de seu lado índio,
que corresponderia ao paganismo na América85. Por essa razão, eles não se
84
BLUM, Andrea. Mito del Eterno Retorno en seis textos de Borges. Disponível em:
www.2.udec.cl/docliter/magister/blum.pdf .Acesso em 22/mar/2006.
85
Idem.Ibidem.
130
contentam com a reiteração simbólica do sacrifício de Cristo, mas o realizam
literalmente.
Para terem a certeza das conseqüências do ato que vão praticar, o pai
da família Gutre ainda interroga Espinosa sobre a morte de Cristo e se os seus
perseguidores também se salvaram: ‘El día siguiente comenzó como los
anteriores, salvo que el padre habló con Espinoza y le preguntó si Cristo se dejó
matar para salvar a todos los hombres’ (BORGES, 1996, p. 481, v. II). O diálogo
entre o capataz e o visitante de Buenos Aires é uma pista que Borges fornece ao
leitor, preparando-o para o surpreendente final do conto. Assim como Cristo sofre
na via-crúcis, Baltasar Espinosa é também maltratado antes de ser crucificado:
‘Hincados en el piso de piedra le pidieron la bendición. Después lo maldijeron, lo
escupieron y lo empujaron hacia el fondo’ (BORGES, 1996, 482, v. II).
De forma semelhante, escreve São Marcos (XV, 17-19):
Cristo, de acordo com a Bíblia, morre na cruz aos trinta e três anos.
Com a mesma idade, é crucificado Baltasar, que ‘tiene 33 años y le faltaba rendir
una materia para poder graduarse’. (BORGES, 1996, p. 477, v. II).
Sarlo vê uma aproximação do conto de Borges com um relato de
Ezequiel Martínez Estrada, "La inundación": a mesma superfície plana sob as
águas se abre como espaço, onde um choque de culturas desencadeia o mal
entendido trágico. Os peões (gaúchos que se desvincularam de um remoto
passado europeu) escutam a historia evangélica e a traduzem em termos de ato
presente. ‘Aislados por la inundación, en medio de una llanura que el espejo de
aguas reduplica en su falta de referencias, en su pura extensión pre-cultural, los
peones interpretan literalmente la pasión de Cristo y terminan crucificando al
extranjero, un hombre de Buenos Aires, que les ha leído el evangelio no como
mito que puede reactualizarse sino como relato cuya peripecia es, en sí misma,
131
apasionante’. O mal entendido cultural fundamenta-se, pois, nessas duas leituras
diferentes de um mesmo texto e produz o final trágico86.
Observe-se que o protagonista do conto chama-se Baltasar Espinosa e
que Baltasar é também o nome de uma personagem bíblica, antes chamada
Daniel (Dan., IV,19): ‘Então Daniel, por outro nome Baltasar, começou a pensar
consigo mesmo em silêncio...’ Já Espinosa é o nome do filósofo holandês, Baruch
Espinoza, a quem Borges dedica especial admiração, fato largamente
comprovado em toda sua obra literária87. Também é curioso registrar, na
descrição da personagem do conto, uma identificação com o próprio Borges:
ambos tiveram mães religiosas e pais livre pensadores. Observe-se os fragmentos
a seguir. Diz o narrador do conto, a respeito de Baltasar Espinosa:
86
SARLO, Beatriz. "Introducción a El informe de Brodie". Borges Studies on Line. J. L. Borges
Center for Studies & Documentation.
Disponível em: (http://www.uiowa.edu/borges/bsol/bsbrodie.htm). Acesso em 01/abr./2006
87
Além de estar presente em contos, como “La muerte y la brújula”, Borges dedica ao filósofo dois
sonetos: “Spinoza” (BORGES, 1996, p.308 v.II) e “Baruch Spinoza” (BORGES, 1996, p.151 v.III).
88
Citado por Romero, Oswaldo E. “Dios en la obra de Jorge L. Borges: Su teología y su teodicea”.
In: Villegas e Bertrán. Imágenes bíblicas recurrentes en tres cuentos de Jorge Luis Borges.
Disponível em: http://casadeasterion.homestead.com/v5n20borges.html. Acesso em 28/mar/2006
89
No ensaio “Una vindicación de la Cábala”, Borges deixa claro o seu agnosticismo quando,
ironicamente, expõe suas idéias sobre a Santíssima Trindade: ‘La trinidad, imaginada de golpe, su
concepción de un padre, un hijo y un espectro, articulados en un solo organismo, parece un caso
de teratología intelectual, una deformación que solo el horror de una pesadilla pudo parir. Así lo
132
volte a ser crucificado, uma vez que ocorre uma profunda identificação de Baltasar
com o Filho de Deus. Assim, afirma Blum, esta narrativa evoca a noção do Eterno
Retorno, tema que apaixona Borges e se faz presente em sua obra em contos,
ensaios e poemas90. Registre-se que o Eterno Retorno – repetição cíclica daquilo
que já existiu antes – é um dos recursos utilizados pelo autor para instaurar a
existência de um presente contínuo e infinito. Dele deriva a idéia de que a história
universal é a história de um único homem. Note-se que de forma mais tangencial
“El muerto” também transmite a idéia da universalidade do homem, ou seja, que o
destino de um homem é o destino de todos os homens: Otálora, de certa forma,
repete as últimas horas de Cristo.
Para Rengel91, o reconhecido cepticismo de Borges, que o leva a
falsear os dados, é visto como a melhor ferramenta para criar a ficção total. Esta
particularidade essencial da sua obra é reconhecida pelo próprio Borges na
entrevista a María Esther Vázquez, já referida anteriormente, quando declara:
creo, pero trato de reflexionar que todo objeto cuyo fin ignoramos, es provisoriamente monstruoso’
(BORGES, 1996, p. 222 v. I).
90
Op. cit.
91
MUÑOZ RENGEL, op.cit.
133
literários de suas narrativas compõem, até hoje, através de séculos de histórias, a
base teórica de religiões de milhares de crentes no mundo inteiro, inclusive do
Cristianismo.
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135
O MITO CRISTÃO NO CINEMA
136
O MITO CRISTÃO NO CINEMA
92
Jornalista formado pela UFBA e teólogo. Especializou-se em Ética pela Escola Superior de
Teologia, em São Leopoldo – RS. Atualmente, é mestrando na Pós-graduação em Comunicação e
Cultura Contemporânea da UFBA. Atua há vários anos no Jornalismo Sindical. É o autor do livro O
Mito Cristão no Cinema.
93
GÓES, Laércio Torres de. O Mito cristão no Cinema. Salvador/Bauru: Edufba/Edusc, 2003.
94
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
137
judeus, ressaltando seu vínculo com a humanidade inteira, mas desde o primeiro
momento de sua existência é o Filho de Deus, o Salvador do mundo,
particularmente atento aos pobres, aos pecadores e aos pagãos. João, com uma
percepção bem pessoal e distinta dos outros, radicaliza a idéia sobre Cristo. Para
ele, a relação entre o Pai e o Filho apresenta-se como de uma igualdade total, não
podendo haver distinção95.O homem Jesus personifica o agir do próprio Deus, o
Verbo encarnado: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”96.
Com o Iluminismo, alguns estudiosos, levando em conta essas distintas
visões dos evangelistas, tenderam a rejeitar historicidade dos evangelhos,
afirmando que Cristo era apenas e tão somente um ser mitológico criado pela
imaginação dos judeus, como os deuses do Olimpo. Esta idéia foi rejeitada com o
tempo e, atualmente, é certo a existência histórica de Cristo, apesar das poucas
evidências fora dos textos bíblicos (Flávio Josefo, Suetônio, Tácito, Plínio). Jesus
é um personagem histórico, embora não possamos ter certeza de certos fatos,
devido à mitologia em que rapidamente se envolveu. Diferentemente de outros
mitos conhecidos, a sua existência se deu num espaço histórico determinado e
não num espaço cósmico, como no Olimpo, mas no Oriente Médio, em pleno
Império Romano.
Ao estudarmos o personagem Jesus, devemos fazer a distinção entre o
Jesus histórico - o Jesus de Nazaré, que nasceu, pregou e morreu crucificado na
Palestina, durante a colonização romana; e entre o Jesus Cristo, o messias, o
Cristo da fé, que nasceu de uma virgem, era Filho de Deus, realizou milagres, foi
crucificado em sacrifício pelos pecados da humanidade, ressuscitou ao terceiro dia
e subiu aos céus. O difícil é determinar quando começar um e termina o outro,
pois estas duas facetas de Jesus são interligadas97.
Certa vez Jesus indagou aos seus discípulos: “O que dizem os homens
quem eu sou?”. Várias foram as respostas. Quando se pretende escrever ou filmar
uma obra sobre Cristo esta ainda é uma pergunta pertinente. Uma pergunta que
95
KÜMMEL, Werner Georg. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 983.
96
BÍBLIA Sheed. Editor responsável Russel P. Shedd. Trad. em português por João Ferreira de
Almeida. São Paulo: Vida Nova, 1997.
97
BULTMANN, Rudolf. Demitologização. São Leopoldo: Sinodal/IEPG, 1999.
138
os cineastas que dirigiram filmes sobre Cristo fizeram a si mesmos e cuja
resposta serviu como guia para execução e concepção do processo de filmagem.
139
homem é o messias, que tem que sofrer para redimir e ser redimido98. Rambo,
Zorro, Tarzan, Super-Homem, os cowboys, os detetives, os policiais, são
variações do messias no Cinema. Como exemplos temos alguns filmes célebres,
de grandes diretores, que expressam esta questão: Luzes da Ribalta (1950), de
Charles Chaplin; Os Brutos Também Amam (1952), de George Stevens; e Não
Amarás (1988), Krzysztof Kieslowski.
98
ECO, Umberto. O Super-homem de Massa. São Paulo: Perspectiva, 1991.
140
Unidos se consolidaram como o protetor do “mundo livre”. O bem-estar
proporcionado pela aceleração econômica e o desenvolvimento técnico-científico
renovou o sentimento do american way life no cidadão médio americano99. A
sociedade americana, em sua maioria, defendia o seu estilo de vida contra tudo
aquilo que considerasse uma ameaça, como o comunismo e a liberação sexual e
moral.
Pasolini
99
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
100
PASOLINI, Pier Paolo. El Evangelio Segun Mateo. Colección Voz Imagem. Barcelona: Aymá,
1965.
141
O filme reflete todas as transformações que se consolidaram no final da
década de 60 e no início da década de 70. Os jovens, por mais que desejassem
se desvencilhar dos ensinos dos seus pais, dos seus costumes e tradição, não
conseguiam, pois tudo aquilo estava por demais enraizado na sociedade em que
viviam. O que fazer? Se não podiam destruir a tradição, então tinham que
transformá-la. E o Jesus de seus pais se tornou o Jesus da contracultura, da
liberdade, da rebeldia, da paz e do amor. Afinal, no estilo de vida de Cristo, os
jovens encontravam inspiração para isso. Hollywood, percebendo esta
transformação, fez do Messias um hippie, um representante da contracultura, em
quem os jovens daquela época pudessem se identificar.
142
espiritualidade perdida, como forma de encontrar equilíbrio e segurança em um
mundo que se transforma a cada dia de modo assustador.
Em A Última Tentação de Cristo, Scorcese procurou mostrar o seu
Cristo de modo humano e realista, sujeito a dúvidas, questionamentos e
fraquezas. Para isso, baseou-se no romance A Última Tentação, de Nikos
Kazantzakis, grego da Igreja Ortodoxa. O filme escandalizou a visão dogmática
dos crentes do mundo inteiro, causando uma onda de protestos por onde foi
exibido. O objetivo principal é a discussão sobre os sentimentos e os conflitos de
Jesus. É uma meditação sobre a luta espiritual do homem.
143
declarar guerra total aos terroristas do mundo todo e, com este pretexto, invadir o
Afeganistão e o Iraque e a apoiar, incondicionalmente, a política belicista de Israel
contra a resistência palestina nos territórios ocupados. Assim como os
fundamentalistas islâmicos, capitaneados por Osama Bin Laden, Bush também
enxerga o mundo de forma maniqueísta: os que são contra e a favor, os maus e
os bons, os fiéis e os infiéis.
Gibson, como homem religioso do seu tempo e formado na indústria
hollywoodiana, sabia que para sensibilizar um público individualista e hedonista
acostumado com a banalização da violência no Cinema e na TV, o sacrifício de
Cristo deveria ser mostrado em toda a sua intensidade e de forma explícita. Em A
Paixão de Cristo, a violência é usada como instrumento de militância e de
combate a uma modernidade laica, hedonista e materialista, assim como fazem
alguns grupos fundamentalistas religiosos. Mas será que Gibson conseguiu
sensibilizar o público moderno com seu discurso religioso utilizando imagens da
violência explícita do sacrifício de Cristo? Difícil afirmar. Vivemos em uma
sociedade acostumada com a banalização da violência na mídia, na qual a
tragédia é espetacularizada. As vítimas transformam-se em objetos descartáveis
de uma ação descontextualizada, substituídas velozmente por outras, e o cinema
é em grande parte responsável por isto.
O Cinema, assim como vários estudos e pesquisas, também não
consegue responder satisfatoriamente quem é Cristo. Se Cristo é ou não o filho de
Deus, é uma dúvida que só os céticos possuem, uma vez que para quem tem fé
isto é indiscutível. Apesar da tentativa de reinterpretação da figura de Jesus, em
todos os filmes analisados, mesmo aqueles que tentaram fugir da visão tradicional
de Cristo, de certa forma a sua essência religiosa permanece. Não importa como é
mostrado. Parece ser impossível fugir da aura mística e divina que lhe o envolve.
O mito cristão pode receber no decorrer da história, dependendo da
situação cultural, política, social e econômica, vários significados, mas sem perder
a força do seu sentido primeiro (teológico). No Cinema, Cristo poderá aparecer
como um hippie, um ator de cinema, um revolucionário marxista, mas a sua
significação teológica sempre estará presente, com menor ou maior intensidade.
144
Provavelmente, o Filho de Deus nunca encontrará uma resposta definitiva que
sintetize sua importância para o Ocidente e para a história da humanidade, por
isto é um mito.
145
VITALIDADE E FINITUDE EM
MACHADO DE ASSIS
146
VITALIDADE E FINITUDE EM MACHADO DE ASSIS
Douglas Rodrigues da Conceição (UMESP)
147
realidade com base no fundamento último de todas as coisas: Deus. O maior eco
do anúncio da morte de Deus em Nietzsche surge na obra A gaia ciência, aforismo
125:
148
tempo, mesmo depois de terem sido praticados, para serem
vistos e ouvidos. Este ato está para os homens mais distante do
que o mais distante dos astros: e porém, eles o praticaram!” –
Conta-se ainda que o homem desvairado adentrou no mesmo dia
várias igrejas e entoou aí o seu Requiem aeternam deo.
Acompanhado até a porta e questionado energicamente, ele
retrucava sem parar apenas o seguinte: “O que são ainda afinal
estas igrejas, senão túmulos e mausoléus de Deus?”
(NIETZSCHE, 2001, p. 147-148).
150
eclesiástico. Classicamente, a teologia pode ser entendida como processo de
sistematização dos conteúdos da fé cristã. Fazer teologia cristã equivale a dar
resposta à fé cristã no âmbito de um comprometimento científico. (Cf. BOFF,
1998, p.14). A teologia, portanto, não produz experiências de fé, mas as torna
possíveis. Quanto à literatura ao longo de sua história, destacando sua elevada
importância, a partir de seus diferentes usos e papéis no ocidente, parece-nos que
ela, em maior grau, foi destacada para as esferas da fruição e do devaneio, e não
para um lugar de hermenêutica da existência. (Cf. MAGALHÃES, 2000, p. 49-50).
Ricoeur nos ajuda a compreender esta afirmação ao enunciar que:
Ficção e poesia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser-
dado, mas sob a maneira do poder ser. Sendo assim, a realidade
cotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos
chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o
real. (Cf. RICOEUR, 1988, p. 57).
151
fé, imputando-lhes novas exigências conceituais e novo(s) sentido(s), logo um
repensar teológico.
A PROMESSA
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o
esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de
lágrimas nem da causa que fazia verter a minha mãe. A causa
eram provavelmente os projetos eclesiásticos, e a ocasião destes
é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de
dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe
nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus
para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-
lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a
meu pai, nem antes, nem depois de me dar a luz; contava fazê-lo
quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso.
Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era tão devota,
tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação,
confiando a promessa a parentes e familiares. (MACHADO DE
ASSIS, 1985, p. 819-820).
152
dionisíaco que deseja uma vida criativa a partir dela mesma, ou seja, almeja a
efetivação da pura imanência: Capitu. Em Brás Cubas o tema que atravessa a
obra, em nossa ótica, é a apologia à vida. Cubas revela essa condição ao
perceber que a vida tende a finitude. A finitude não revela uma perspectiva niilista
diante da vida, mas a consciência da possibilidade de se (auto)conservar, porque
a personagem sabe que “Estar aqui é magnífico” (RILKE apud MOLTMANN, 1998,
p. 89). A revelação nasce do capítulo II, O emplasto.
O EMPLASTO
(...)
Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento
sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a
nossa melancólica humanidade. (MACHADO DE ASSIS, 1985, p.
515).
25 de janeiro
153
mundo sem sentido. Entretanto, a ausência de sentido se revela como certa
inabilidade de lidar como as novas cosmovisões. O mundo de Bentinho não é
mais regido por Deus. O Deus da promessa é morto. Aqui percebemos com maior
força uma das três dimensões antropológicas tratadas por Nietzsche no aforismo
125 da obra A gaia Ciência. O homem louco sai pela rua com um candeeiro
procurando Deus: caráter de correção de toda aporia estabelecida no real.
Bentinho sucumbe à força da autonomia por não conseguir suportar a perda de
todo horizonte mantenedor, pois ao descumprir a promessa cometeu o
assassinato do Deus da vida. Entretanto, o que anteriormente considerávamos ser
as conseqüências mais funestas diante da vida de encantos pretendida por
Bentinho como, por exemplo, o não reconhecimento do outro, o estabelecimento
de uma condição niilista no fim da vida, a perda da noção de reconhecimento do
mundo natural por não reconhecer o mar como um ente e por isso sentir ciúmes,
torna-se, portanto, a possibilidade de encontrar um princípio que aponte a
transcendência na imanência. Cubas, Aires e Bentinho podem ser vistos como
exemplos vivos da condição humana que busca a transcendência imanente,
embora se apresentem em trânsito para efetivação dessa condição. Eles sabem
que toda experiência precisa ocorrer nos limites do sensível, não mais além dele.
O amor à vida imanente é o que chamamos de Vitalidade. Na vida só pode haver
lugar para os processos de intensificação da própria vida. Isto se constitui numa
verdadeira Espiritualidade. Vitalidade e Espiritualidade são categorias teológicas
que aproximam o humano do mundo da real existência. Vitalidade é
Espiritualidade e por isso são elementos indissociáveis.
Bibliografia
BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
COSTA, Paulo Lourenço (org.). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São
Paulo: Paulus, 1997.
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 1988.
KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológicos literários. São
Paulo: Loyola, 1999.
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura e diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000.
154
MOLTMANN, Jürgen. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
MACHADO de ASSIS, J.M. Obra completa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
155
DE(U)SMUNDO
156
DE(U)SMUNDO
Porém, "Deus é que dirige estas coisas; Ele permite que existam
imperadores e algozes para que haja santos e mártires; Ele eleva os impérios para
que haja lágrimas, castiga para regenerar."105 E, portanto,
101
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 20.
102
Idem, 71.
103
FREIRE, Junqueira. Obras Poéticas, 1943, 50.
104
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 169.
105
LACORDAIRE, apud FREIRE, Junqueira. Obras Poéticas, 1943, 51.
157
“Pobre daquele que crê que Deus provê todas as criaturas, Deus é feito
rei que dá suas mercês aos condes e marqueses, Deus aos bons e
puros. Como poderia Deus ouvir e amar as bestas más, os ladrões, os
matadores e as serpentes de tentação? [...] Porque todos pecamos e
106
mais pecamos numa terra assim distante [...].”
106
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 37.
107
Idem, 40.
158
uma voz predominante na representação da personagem Oribela – personagem
central e narradora do livro:
108
ASSIS, Adriana Carolina Hipólito de. Ensaio: Construção do Romance em Desmundo. 7.
109
N’A Comédia, de Dante Alighieri, Deus manda inclusive nos círculos do inferno. Por várias
vezes Virgílio vale-se da palavra divina para garantir a continuidade da viagem através do inferno,
tendo, portanto, Deus poder sobre todos os espíritos, espectros, demônios.
110
“No seio das rochas / debalde me amparo, / que sempre o deparo, / co’um riso dos seus. /
castigo infinito, / tantálico, eterno, / que veio do inferno / por ordem de Deus!” (FREIRE, Junqueira,
Obras Poéticas, 1943, 66).
111
KUSCHEL, Karl-Josef, Os escritores e as escrituras, 1991, 225.
159
tudo é ditado por Deus. Ou melhor, pela concepção de Deus que Oribela guarda
em si. Os freudianos diriam que Deus seria uma figura próxima do “super ego” da
personagem.
A própria maneira como a órfã vê as terras brasílicas são influenciadas
divinamente. O Brasil é ora tido como Éden – pelas maravilhas, belezas –, ora
como o verdadeiro inferno – desterro e perdição –, e ora como apenas o
purgatório – terra de transição para purgação dos pecados.
E nessas fronteiras divinas nas terras brasileiras Oribela ainda traz uma
esperança de escape do Juízo Final, e da reconstrução do mundo:
(des)mundo. Por vezes Oribela se pergunta por que Deus permitiria os seus
112
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 85.
113
SANTOS, Walmor. Nostalgia do amor ausente. In: Além do medo e do pecado, 1996, 121.
160
culpa de entregar-se ao pecado, ainda mais com um impuro; ela questiona o
próprio amor, e questiona Deus, por permiti-la amar o proibido.
Por que permitiria Deus o pecado, se não fosse ele mesmo o pai do
pecado, e o criador deste Desmundo... De(u)smundo...
114
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 194
161
O “NOVÍSSIMO EVANGELHO”
DE “SÃO TEODORICO
EVANGELISTA”
162
O “NOVÍSSIMO EVANGELHO” DE “SÃO TEODORICO
EVANGELISTA”
115
Doutorando em Letras (Literatura Portuguesa) na Universidade de São Paulo.
116
QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. Porto: Lello e Irmãos, 1976, p. 116.
117
Cf. NERY, Antonio Augusto. Santidade e humanidade: aspectos da temática religiosa em obras
de Eça de Queirós. Dissertação de Mestrado. UFPR: Curitiba, 2005.
163
divindade de Cristo, contestar toda a tradição histórico/religiosa dos Evangelhos e
demonstrar uma certa banalidade pelo caráter miraculoso de Jesus118, pois as
figuras que na Bíblia são sacralizadas aparecem na narrativa com características
bastante humanas e, não obstante os personagens e episódios coincidirem com
as escrituras, são extremamente contraditórios em relação aos seus homônimos
bíblicos119.
Antes de dedicarmos atenção especificamente ao terceiro capítulo,
principal objetivo deste trabalho, é mister volvermos nossa atenção por um
momento ao “evangelista” que narrará esse interessante relato. A narrativa é
construída em primeira pessoa com um discurso memorialista do
narrador/protagonista Teodorico Raposo ou Raposão, como é mais conhecido.
Teodorico narra, de forma jocosa e irônica, as peripécias realizadas para
conseguir herdar a fortuna da tia rica e beata Dona Patrocínio das Neves, ele
vislumbra como uma das possibilidades de impressionar a tia e assim ser
declarado definitivamente seu herdeiro, a realização de uma viagem à Terra Santa
em busca da relíquia que D. Patrocínio tanto almejava para, segundo ela, “ser o
sossego de seus últimos dias”120.
É precisamente quando está na terra santa que se desenvolve o
extenso capítulo terceiro da obra, o qual consideramos ser o mais importante para
compreendermos a forma como Eça dialoga com os acontecimentos bíblicos,
exegeses laicas e com a figura de Jesus. O narrador/protagonista inusitadamente
sonha com a paixão de Cristo e relata, como ele mesmo denomina, um
“testamento novíssimo”121.
O caráter profanador e dessacralizador que o narrador explicitará neste
trecho da obra figura desde o início de sua história, ainda no primeiro capítulo,
quando ele rememora sua genealogia e infância. Os aspectos eróticos com fins de
118
Cf. MATOS, Alfredo de Campos (org.). Dicionário de Eça de Queiroz. 2ª ed. Lisboa: Caminho,
1993, p. 831.
119
O alarido provocado pela publicação da obra partiu não somente dos meios eclesiásticos, mas
também dos literários. É célebre a esse respeito a correspondência trocada entre Eça e Pinheiro
Chagas logo após A relíquia ter perdido o concurso de melhor livro do ano concedido pela Real
Academia das Ciências no mesmo ano que a obra veio a lume
120
QUEIRÓS, 1976, p. 55.
121
Op. cit. p. 116.
164
desconstrução são recorrentes, pois sua história é recheada de passagens
sacrílegas que revelam a personalidade hipócrita de um beato que adora os
prazeres da carne por um lado e por outro um narrador que está preocupado com
o questionamento de verdades e ideologias que para os seguidores do
cristianismo são incontestáveis.
No caso da crítica ao cristianismo, especificamente, suas
observações passam muito pelo crivo do que estava em voga no século XIX: o
questionamento da dialética entre fruição e abstinência, o duelo entre as coisas
carnais e as celestiais (sexo, alimentação, música, dança e principalmente as
coisas simples da vida como a natureza versus a alma, a salvação, o sacrifício e a
abstinência). Enfim, o questionamento entre a fruição e a salvação.
A forma com que Jesus será mostrado no terceiro capítulo está a todo o
momento circunscrita a esses questionamentos122. De fato, como constatou
BUENO (2000)123 , Eça demonstra inovação ao abordar o anticlericalismo, o
cristianismo e, acrescentamos, a religião. Diferente dos outros colegas da
geração, a releitura que o autor faz do Cristianismo, da figura de Jesus Cristo e
dos temas religiosos, de um modo geral, inaugura um novo ciclo de tratamento
sobre tais questões na literatura portuguesa, que se perpetrará até nossos dias.
A inovação do “evangelho” de S. Teodorico é previamente percebida na
forma com que Jesus vai se revelando ao leitor logo no início do capítulo, não pelo
contato direto com o narrador, mas sim pelo relato de personagens judeus que,
em sua maioria, o odiavam. Os discursos dessas personagens são ora paródia do
pouco que se tem de cada partido na Bíblia, ora acréscimo de textos históricos e
servirão não para caracterizar Jesus diretamente, mas para caracterizá-lo
segundo a visão dos partidos da época, que pouco tem vez no texto tradicional.
Parece que há a intenção de dar a voz àqueles que não tiveram a oportunidade de
122
Esses questionamentos parecem ser uma constante na produção queirosiana todas as vezes
em que o cristianismo ou a figura de Jesus se fazem presentes. Em recente trabalho analisamos
tal hipótese no conto “A morte de Jesus” que fora um dos primeiros escritos de Eça em 1870 e que
postumamente foi coligido nas Prosas bárbaras (Ver: NERY, Antonio Augusto. Eça e “A morte de
Jesus”. In: CD-ROM - Anais do XX Encontro Brasileiros de Professores de Literatura Portuguesa –
ABRAPLIP. Rio de Janeiro: L. Christiano, 2005).
123
BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo nas obras de Eça de Queiroz. Tese de
Doutorado. IEL, UNICAMP: Campinas, 2000, p. 30.
165
falar sobre o assunto da paixão nos evangelhos canônicos. As personagens
comuns saem do anonimato para serem protagonistas da história, perfazendo
assim uma “história às avessas”, ou lembrando o conceito bakhtiniano, uma
carnavalização.
A visão carnavalesca de mundo ou a carnavalização da literatura foi
proposta por BAKHTIN (1996)124 para nomear o fenômeno que acontecia nas
festas populares medievais ilustradas nas obras de Rabelais, estudadas pelo
teórico. A carnavalização representa a fuga do cotidiano, do oficial, do
autoritarismo, do discurso dogmático vigente na sociedade, instaurando assim um
“mundo às avessas”. Segundo Bakhtin uma das raízes do gênero romanesco é a
carnavalesca, que se caracteriza pela valorização da atualidade viva (em que se
abandona o passado de mitos e lendas), da fantasia livre e da multiplicação de
estilo e vozes dentro da narrativa:
124
BAKHTIN, Michail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1996.
125
Op. cit, p. 106-109.
166
julga que seu relato terá algo de inusitado, pois será narrado de forma muito
diferente dos Evangelhos tradicionais. No princípio do sonho o narrador faz
constatações nada convencionais sobre Jerusalém e suas cercanias, além de
dialogar e confraternizar com vários judeus que emitem opiniões sempre ruins
sobre Jesus e vai desenhando para o “evangelista” e para o leitor um Cristo novo
e altamente passivo de dúvidas. Quando tem a chance de chegar ao pretório para
acompanhar o julgamento de Cristo, Raposão expõe a sensação que teve ao ver
Jesus pela primeira vez:
E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas apenas
um moço de Galiléia, que cheio dum grande sonho, desce da sua verde
aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um céu, e
encontra a uma esquina um Netenim do Templo que o amarra e o traz ao
pretor, numa manhã de audiência, entre um ladrão que roubara a estrada
127
de Siquém e outro que atirara facadas numa rixa em Emath!
126
QUEIRÓS, 1976, p. 118.
127
QUEIRÓS, 1976, p. 119.
167
O fato de a figura de Jesus permanecer durante toda a narrativa do
sonho envolvido num grau de obscuridade, sendo revelado pelos discursos de
outros, ajuda o leitor a inferir as informações contrastantes deste novo evangelho
em comparação com o texto canônico. Enquanto o Evangelho canônico busca a
todo o momento construir uma aura messiânica para Jesus, o “evangelho” de São
Teodorico, ao contrário, busca humanizar o Cristo.
168
Teodorico não. O “evangelista” hesita até mesmo em acompanhar o
acontecimento; é convencido, na verdade, pelo curioso doutor Topsius, cientista
alemão que acompanha o narrador em todas as suas peripécias pela Terra Santa
antes durante e depois do sonho:
131
QUEIRÓS, 1976, p. 143.
132
Op. cit, p. 118.
169
E até mesmo no momento da crucificação, quando a população voltava
para casa após um dia normal de trabalho no campo. A ressurreição, clímax da
vida de Jesus nos textos canônicos, é desmistificada em A relíquia. Teodorico
narra que tudo não passou de uma fraude mal sucedida. Jesus teria tomado um
narcótico preparado por seus seguidores e que o faria acordar depois, fazendo
assim que "ressuscitasse", contudo, o plano foi mal sucedido e a morte inevitável
realmente ocorre. Quem revela a história é um dos seguidores de Jesus, cujo
nome não é mencionado:
170
mostrar Jesus contra as instituições e elas contra ele, a idéia de um Jesus
antiinstitucional. Eça, neste sentido, estava no rastro de Ernest Renan que em Vie
de Jésus135, sua principal obra de revisão da história de Jesus, insinua a teoria de
que caso Jesus regressasse à contemporaneidade, a própria instituição religiosa -
A igreja católica – o eliminaria.
Ainda com relação ao anti-institucionalismo, cabe reiterar que a Igreja
Católica, de fato, é um dos principais alvos das críticas de A relíquia, direta ou
indiretamente. Com a analogia do Jesus antiinstitucional inspirado em Renan, fica
patente a intenção de Eça de retratar a Igreja oitocentista como traidora de seu
próprio fundador ao se transformar numa instituição que determina em detalhes a
conduta de seus fiéis, tornando-se intolerante, fanática e instrumento de
repressão.
BIBLIOGRAFIA:
135
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. 5 ed. Porto: Chardron, 1926.
136
NERY, 2005.
171
NERY, Antonio Augusto. Santidade e humanidade: aspectos da temática religiosa em
obras de Eça de Queirós. Dissertação de Mestrado. UFPR: Curitiba, 2005.
_______. Eça e “A morte de Jesus”. In: CD-ROM - Anais do XX Encontro Brasileiros de
Professores de Literatura Portuguesa – ABRAPLIP. Rio de Janeiro: L. Christiano, 2005.
QUEIRÓS, Eça de. A relíquia. Porto: Lello e Irmãos, 1976.
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. 5 ed. Porto: Chardron, 1926.
172
OS CRISTOS DE KAZANTZAKIS
E DE JOSÉ SARAMAGO
173
OS CRISTOS DE KAZANTZAKIS E DE JOSÉ SARAMAGO
“No princípio era o verbo, e o verbo estava junto de Deus e o verbo era
Deus” (Jo 1,1).137 Eis como o quarto evangelista inicia o seu evangelho. E o verbo
ao qual ele se refere é o próprio Cristo encarnado que veio ao mundo para,
sacrificando-se na cruz como o cordeiro imaculado de Deus, redimir os pecados
da humanidade e dar aos homens a possibilidade de salvação de suas almas,
libertando-os da mancha do pecado original, cometido por Adão e Eva, que
segundo o mito bíblico são o primeiro homem e a primeira mulher138, expulsos do
Paraíso por desrespeitarem a ordem de Deus que os proibia de comerem o fruto
da árvore do conhecimento do bem e do mal. Por conta disso, até o século XVIII
era inimaginável que a palavra dos evangelhos bíblicos pudesse ser contestada,
pois traziam consigo o selo da aprovação divina; tinham a garantia celeste de que
eram verdadeiros. “De fato, para muitos, os evangelistas eram porta-vozes de
Deus; seus evangelhos eram um ditado de Deus” (VERMES, 1996, p. 26). De
modo que não havia alguém com coragem suficiente para questionar o conteúdo
desses textos.
No entanto, a partir do Iluminismo a autoridade absoluta dos textos
bíblicos começa a ruir. O selo de aprovação divina já não se mostra suficiente
para atestar a veracidade dos evangelhos. E, vistos sem a aura celeste, eles ficam
expostos a diversas indagações sobre as lacunas e enigmas neles encontrados,
sem contar, é claro, com as contradições existentes entre cada um dos relatos
sobre vida de Cristo. Os evangelhos que fazem parte do cânone cristão são
quatro, a saber, Mateus, Marcos, Lucas e João. E cada um deles apresenta Jesus
a sua maneira. Segundo Kermode, embora os evangelhos versem basicamente
sobre o mesmo assunto e de várias maneiras mantenham relações entre si,
137
Todas as citações bíblicas neste ensaio serão retiradas de A Bíblia de Jerusalém.
138
Segundo Frye, “a frase de João, ‘No começo era o logos’, é um comentário do Novo
Testamento sobre a abertura do Gênesis que identifica a palavra criativa original com Cristo”
(FRYE, 2004, p. 42).
174
diferem notavelmente e as diferenças surgem, em parte, porque cada um dos
evangelistas “viu o material básico de modo diferente, trabalhou-o de modo
diferente e imprimiu nele um método literário e um talento específicos.”
(KERMODE, 1997, p. 417).
A partir disso podemos nos perguntar, então, qual dessas narrativas
está realmente correta? Ou melhor, o que há de verdadeiro em tais relatos a
respeito do messias cristão? São perguntas difíceis e que parecem não ter uma
resposta precisa. O que não falta, nos últimos dois séculos, são escritores que se
debrucem sobre a história mais conhecida da cultura ocidental com o intuito de
relê-la com outros olhos que não os da pura fé religiosa. Trata-se de uma releitura
heterodoxa do mito bíblico que geralmente procura apresentar um Cristo com
feições mais humanas, seja por meio de uma tentativa geralmente frustrada de
recuperá-lo historicamente139, seja por meio da literatura ou do cinema.
É evidente que os evangelhos bíblicos são a principal fonte para quem
desejar escrever sobre a personagem central do mito cristão. Em um momento do
primeiro século da era cristã, alguém decidiu que era preciso reunir em um texto
todos os relatos sobre a vida de Jesus. E assim surgiu o evangelho de Marcos,
que, segundo alguns críticos140, foi o primeiro evangelho a ser escrito por cerca de
70 d.C. A ele se seguiram Lucas e Mateus, por entre 80 e 90. O evangelho de
João foi escrito próximo do ano 100 d.C.141
O percurso do Jesus bíblico é sempre um dado a priori nessas
narrativas. Para os evangelistas, sua presença na terra está intimamente ligada ao
cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Ele veio ao mundo como filho
de Deus para que, através de seu sacrifício, os pecados da humanidade fossem
perdoados. Desse modo, tudo que com ele ocorra deve se alinhar nessa
139
Crossan, em seu prólogo a O Jesus Histórico, publicado em 1991, alude às dificuldades de se
debruçar sobre o tema do Jesus histórico. Há uma variedade de interpretações feitas sobre a figura
de Jesus, que despertam a desconfiança sobre esse tipo de estudo no mundo acadêmico. “Essa
impressionante diversidade, no entanto, é considerada um motivo de vergonha no mundo
acadêmico. É impossível evitar a desconfiança de que a pesquisa do Jesus histórico é um campo
em que se pode fazer teologia e chamá-la de história, ou fazer autobiografia e chamá-la de
biografia sem correr grandes riscos”. (CROSSAN, 1994, p. 27).
140
Para David Flusser, Lucas foi escrito antes de Marcos que, por sua vez, influenciou a escrita do
Evangelho de Mateus (Cf. FLUSSER, 2002, p. 4).
141
cf. GABEL & WHEELER, 1993, pp. 170-1.
175
concepção142. Assim o seu nascimento, narrado por Mateus e Lucas, deve ser
apropriado ao de uma criança divina. A infância e a adolescência de Jesus (exceto
pelo episódio dos doze anos no templo, em Lucas) não aparece nos evangelhos
canônicos talvez porque não tenham a menor importância para o que pretendiam
seus autores, cujo objetivo principal era apresentar aos seus leitores a carreira de
Jesus no cumprimento das promessas divinas. Assim, os evangelhos canônicos
tratam dos feitos e ditos de Jesus e do que é considerado o principal evento do
Cristianismo: sua morte e a ressurreição.
Essa variedade de abordagens em relação à mesma história nos leva a
uma tradição de múltiplos relatos sobre a vida de Cristo, que não estão restritos
apenas aos evangelhos bíblicos, pois também existem os chamados apócrifos,
aqueles que foram recusados quando a Igreja formou seu cânone. Segundo
Fokkema, o fato de haver diversos relatos, muitas vezes contraditórios entre si,
sobre a vida de Jesus, faz-nos deduzir que nenhum deles pode ser
completamente verídico. Tal motivo se apresenta como um convite para que
vários escritores se propusessem, a partir do Romantismo, a reescrever essas
histórias de Cristo, pois, segundo o autor, não há nenhum texto oficial que se refira
à vida de Jesus, mas quatro evangelhos, cada um deles lançando uma luz
particular a respeito daquilo que considera verdade histórica. “If truth can be
conveyed in at least four different ways, it means that none of these recordings is
completely satisfactory” (FOKKEMA, 1999, p. 395). Desse modo, preencher as
lacunas e responder as contradições dos textos bíblicos é talvez o motivo
propulsor de vários escritores que nos últimos duzentos anos lançaram um novo
olhar sobre a história mais conhecida do Ocidente.
Podemos citar, por exemplo, Ernest Renan, que busca apresentar, em A
vida de Jesus, uma nova versão da história narrada nos evangelhos, em que
apresenta Jesus como um judeu com idéias muito revolucionárias para época na
qual viveu. O esforço de Renan consiste em dar uma explicação racional ao que é
142
Segundo Gabel &Wheeler, “o fracasso [terreno] de Jesus foi na verdade seu sucesso. Ele foi
rejeitado, por ser mal compreendido. Como se esperava que ele fosse rejeitado, era natural
esperar que ele fosse mal compreendido; por conseguinte, tudo em sua carreira deveria alinhar-se
com essa concepção” (GABEL & WHEELER, 1993, p. 176).
176
relatado pelos textos bíblicos. Para isso ele supõe como poderia ter vivido o
homem Jesus no mundo ao qual pertenceu, tentando separar o que é lenda do
que considera que de fato pode ter acontecido. A ficção também entra em campo
na tentativa de dar uma nova versão à personagem central dos evangelhos
bíblicos. São exemplos disso, no século XIX, os romances Memórias de Judas, de
Ferdinando Petrucelli della Gattina, e A Relíquia, de Eça de Queiroz. Em ambos
Cristo aparece completamente humanizado e a história da ressurreição não passa
de um engodo.
É dentro desse contexto que se inserem A última tentação de Cristo, de
Nikos Kazantzakis, e O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago,
romances que pretendemos discutir nesse artigo. Neles, Jesus é apresentado de
forma diversa da encontrada nos evangelhos bíblicos. Através da paródia e da
ironia, Kazantzakis e Saramago nos mostram um Cristo mais humano, em
detrimento do caráter divino que marca a personagem dos escritos bíblicos. Nosso
interesse é analisar comparativamente a personagem Jesus nesses dois
romances, procurando caracterizar as semelhanças e diferenças entre essas duas
versões de Cristo, não perdendo de vista a relação que elas mantém com a
personagem central dos evangelhos bíblicos.
No romance de Kazantzakis, A última tentação de Cristo é, em última
instância, a narrativa de um sonho que Jesus tem poucos minutos antes de
morrer. Nesse sonho, ele experimenta sensações que não pôde ter em vida por
ter sido obrigado por Deus a cumprir seu papel como messias. Na última tentação,
o Jesus de Kazantzakis vê seu amor por Maria Madalena finalmente se consumar
fisicamente. Ela morre e Cristo, então, une-se as irmãs de Lázaro, Maria e Marta,
tendo filhos com elas, realizando assim um desejo que o persegue durante toda a
narrativa: casar como um homem comum e constituir uma família. O sonho por si
só já destoa das versões bíblicas que apresentam um Cristo acima das paixões
humanas, mais preocupado com a realização do reino dos céus do que com os
prazeres terrenos. No entanto, a tendência de humanizar essa personagem não
se limita apenas ao sonho na cruz, mas perpassa toda a narrativa de A última
tentação de Cristo. Desde o início a figura central desse romance oscila entre o
177
desejo de viver como um homem e a obrigação de cumprir o seu papel como o
messias. O Jesus desse romance é uma figura frágil, sempre dominada pelo terror
que Deus lhe incute. Ele tem dúvidas, medo e sente até mesmo ódio por ter que
fazer algo que não deseja. Ao termo da narrativa tudo acontece como deveria ser:
Cristo é crucificado. Em outras palavras, o romance de Kazantzakis nos apresenta
um ser distinto da versão original dada pelos evangelhos, pois apresenta Cristo
com toda a força de sua natureza humana em detrimento da divina, que surge
como uma imposição de seu pai celestial. Assim, o filho de Maria desce o pedestal
e é tentado não exatamente por um anjo caído, mas pela própria natureza da vida
dos homens, pelos seus próprios desejos carnais.
Essa luta inglória do Jesus de Kazantzakis contra o seu destino é o
motivo que rege a narrativa de A última tentação de Cristo. Seu desejo de viver
como um homem surge como o motivo da culpa que o faz sofrer, pois ele se
considera responsável pelo destino dos outros, um fardo enorme imposto por
Deus e que ele não quer para si. O pedido de Jesus, na oração no Monte das
Oliveiras, “Pai, se queres, afasta de mim este cálice!” (Lc 22, 42), se torna no
romance uma luta indigesta da personagem contra o seu destino, ao qual ela
acabará se rendendo por não possuir força para ir contra a vontade de Deus. O
mundo dos homens é o que este herói almeja, numa inversão patente do que mais
importava para Cristo bíblico, que anunciava o reino dos céus:
179
unindo o que Deus separara. Foi então que, numa noite festiva
em Caná, quando o amado lhe estendeu a mão para lhe dar a
rosa e firmar o noivado, o Deus impiedoso descera sobre eles,
separando-os mais uma vez. E desde então... (KAZANTZAKIS,
1998, p. 46, negrito nosso)
143
Para Salma Ferraz, a Maria de Magdala de Saramago é muito mais que a iniciadora sexual de
Jesus, “ela é uma grande profetisa, datada de uma sabedoria peculiar, sacerdotisa e oráculo
inspirado que o orienta nos momentos mais difíceis de sua missão (...)” (FERRAZ, 1998, p. 90)
180
Kazantzakis é rebaixado ao nível dos demais homens e seu desejo é viver como
eles: eis o princípio da humanização de Cristo realizada em A última tentação de
Cristo. Não se nega nele o a priori de seu destino e nem se exclui sua origem
divina, no entanto se intensifica sua natureza humana. A humanidade para o
Jesus bíblico significa apenas o verbo encarnado: “E o verbo se fez carne, e
habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como
Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14). Para o Jesus do romance,
humanizar-se vai além de ser um espírito encarnado, pois não se limita a dores
físicas, mas a dores da alma, aos sentimentos e conflitos puramente humanos
como o amor, o ódio, o medo, que parecem estranho para o Cristo das escrituras
sagradas. Desse modo, no romance de Kazantzakis o termo “tentação” é levado
até as últimas conseqüências e em muitas vezes o tentado só não sucumbe
prazerosamente, porque sua consciência de Deus, que lhe impõe seu destino,
impede que isso aconteça. Em certo momento, estando Cristo no deserto, a
serpente lhe oferece Madalena, um de seus mais íntimos desejos e no momento
em que ele está prestes a aceitar, sente, ou imagina, a presença de Deus a dizer-
lhe que não faça isso:
181
o seu Senhor, construindo cruzes para sacrificar seus profetas, não poderia haver
pecado maior é o que pensa Jesus. No entanto, o Cristo desse romance se
conforma e caminha em direção ao seu destino, mesmo não sabendo ao certo o
que isso desencadeará. No entanto, sua humanidade é intensificada no romance,
através de sentimentos como amor, ódio, medo e dúvida.
144
Esta análise da personagem Jesus de O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago,
tem como base uma pesquisa de Iniciação Científica que realizei em entre agosto de 2002 e julho
de 2003 com auxílio financeiro da FAPESP, sob orientação do Prof. Dr. Horácio Costa, do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP.
182
reveste a personagem principal como o ser divino que transcende os limites do
que caracteriza o humano. John Drury comenta a falta de compreensão dos
discípulos, no evangelho de Marcos, em relação ao significado dos feitos de
Jesus:
183
Fokkema, o romancista reescreve a história de Jesus sob uma perspectiva
puramente humana, da qual resulta uma história em que a humanidade se
emancipa da servidão religiosa. Costa afirma que o novo evangelista insiste na
humanidade da família de Jesus, submetendo os evangelhos a uma nova leitura
não ortodoxa e, desta forma, oferecendo uma nova concepção da história de
Jesus.
O caminho percorrido pelo Jesus saramaguiano dentro da narrativa é o
do autoconhecimento. Sua história seria a “da alma que sai a campo para
conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se
à prova, encontrar a sua própria essência” (LUKÁCS, 2000, p. 91). Em outras
palavras, a história desta personagem é a do herói romanesco, que está sempre
em busca de algo, sendo que o resultado dessa busca é, para ele, imprevisível.
Com a morte de José, seu pai, Jesus sai de casa para conhecer o lugar onde
nasceu. Uma necessidade que se torna vital para ele diante das dúvidas sobre si e
sobre suas origens, que surgiram depois da morte de seu pai e que se refletem
pelos pesadelos que José tivera, que ficaram como herança para Jesus: tratam-se
dos pesadelos relacionados à morte dos inocentes, pelos quais o filho de Heli não
fez nada, preocupando-se apenas em salvar o próprio filho. Nesse período, a
personagem principal de O Evangelho segundo Jesus Cristo ficará ao lado de
Pastor que, ironicamente, é o próprio Diabo, algo de que o herói ainda não tem
consciência. E é o anjo caído, considerado pela cultura cristã como responsável
pelos males da humanidade, que servirá de mestre ao filho de Maria.
O tempo que Jesus passa ao lado do Pastor é fundamental para a
formação de sua individualidade. É neste momento que toda a sua educação
religiosa passa a ser questionada e é, a partir daí, que a personagem começa a
desenvolver uma postura crítica diante da “verdade” revelada. Em certa
passagem, a questão sexual é colocada pelo Pastor como uma necessidade
intrínseca do ser humano:
184
Porém, pior que tudo foi a vertigem de uma horrível
voluptuosidade que do afogamento da vergonha e da repugnância
num rápido instante emergiu e prevaleceu. Tapou a cara com as
mãos e disse em voz rouca, Esta é a palavra do Senhor Se um
homem se ajuntar com um animal, será punido com a morte, e
matareis o animal, e também disse Maldito o que peca com um
animal qualquer (SARAMAGO, 2001, p. 238).
No trecho acima, Pastor oferece uma ovelha a Jesus para que ele
saciasse seus desejos carnais. Embora Jesus tenha respondido, citando a Lei
mosaica - deixando implícito que a proposta de seu companheiro é impensável -,
pois é proibido pelas escrituras sagradas, o narrador nos mostra que o instinto
humano da personagem prevalece sobre a ideologia que impregna sua mente:
“pior que tudo foi a vertigem de uma horrível voluptuosidade”. O Jesus
saramaguiano nem de perto lembra o Cristo dos evangelhos bíblicos, que paira
acima das paixões humanas. Ele nega veementemente a oferta de seu
interlocutor, mas em seu íntimo ocorre uma luta entre o seu desejo e o fato deste
desejo ser proibido pelas leis de sua religião. São vários os diálogos desse tipo
entre estas duas personagens, em que o Pastor vai aos poucos desconstruindo a
verdade revelada em que Jesus acredita. Silva, ao comentar a paródia em
Memorial do Convento, mostra como se dá o processo de readequação do texto
bíblico e das convicções religiosas neste romance, o que, pensamos, também
ocorre em O Evangelho segundo Jesus Cristo:
185
inabaláveis da fé começam a ruir e o herói da narrativa começa a duvidar de
coisas que antes tinha como certas. Tal é o caso do Jesus saramaguiano que, em
seu processo de aprendizagem, de um simples crente passa a ser um
questionador da vontade de Deus. De modo que o Cristo saramaguiano é o
inverso do Cristo bíblico; se este segue o seu destino sem nenhum
questionamento, aquele não apenas questiona, mas, embora sem sucesso, tenta
mudar o rumo da história. Para Fokkema, parodicamente, o Jesus de Saramago é
uma inversão do Jesus dos evangelhos e sua chave semiótica “a reversal of godly
rhetoric into human wisdom: this is not blunt reversal, but one that is based on
irony, understatement and implication” (FOKKEMA, 1999, p. 397).
Observamos até aqui o modo como Jesus pode ser caracterizado em A
última tentação de Cristo e em O Evangelho segundo Jesus Cristo. Os Cristos de
Kazantzakis e Saramago caracterizam-se por um processo de humanização em
relação à personagem central dos evangelhos bíblicos. No entanto cada autor faz
a sua maneira. É possível perceber que o Jesus de Kazantzakis humaniza-se pela
razão de que apresenta sentimentos típicos de um homem, ele ama, odeia, sente
medo e remorso. No entanto, ele é reconhecido como o messias prometido e
carrega o fardo de seu papel, caminhando, enfim, em direção ao suplício da cruz.
O narrador desse romance nem por um momento quer se passar por um
evangelista, como faz Saramago, tanto ele faz referência à escrita do evangelho
de Mateus, atribuindo-o a uma de suas personagens, durante a narrativa. Assim, o
Cristo de Kazantzakis apresenta características mais humanas que nos
evangelhos bíblicos, pois sofre por desejar ser um homem, chegando a sonhar, no
momento de seu martírio com essa condição. No entanto, ao fim ele aceita o seu
destino e morre como filho de Deus.
Por outro lado, o Jesus saramaguiano se molda diante de nossos olhos
durante a narrativa. Para o romancista português, a humanização de Cristo não se
limita apenas a um conflito espiritual, sua personagem é apresentada como um
homem e procura viver como tal. Seu único laço com o divino reside no fato de ser
o filho de Deus, paternidade que ele rejeita, procurando, ao final, opor-se ao
destino que lhe é imposto. Enquanto o primeiro, ao final da narrativa, contenta-se
186
por haver superado enfim sua humanidade, o segundo percebe ter falhado, pois
não foi capaz de impedir o nascimento da religião cristã.
É evidente nos dois romances o uso da ironia. Em A última tentação de
Cristo, a escrita do evangelho de Mateus, por uma personagem do mesmo nome,
durante o romance contrasta com aquilo que ocorre de fato no decorrer da
narrativa. A justificativa para isso consiste, segundo um “anjo”, no fato de que a
verdade divina não corresponde à verdade dos homens. Assim, a narrativa
principal contrasta com o texto evangélico, correspondente ao cânone. Há de certo
modo um questionamento das verdades estabelecidas, uma vez que existe uma
verdade divina que é ininteligível para o homem já que nem o próprio Jesus a
compreende. Considerá-la como tal, uma vez que ela não corresponde aos fatos
narrados é uma ironia que perpassa por todo a narrativa:
145
Frye, em O código dos códigos, tece uma crítica à teoria cíclica da história que Yeats constrói a
partir do contraste entre os mitos cristão e edipiano. Segundo ele, “Édipo pertence a tragédia e
Cristo a uma divina comédia; mas a tragédia reflete a situação humana como ela é, e a comédia
normalmente chega ao seu final feliz através de uma reviravolta no enredo”. Para o autor é mais
fácil pensar no mito cristão como uma versão cômica do mito edipiano. (FRYE, 2004, p. 191).
187
pecados da humanidade, que remontam ao pecado original cometido pelo pai de
todos os homens - Adão. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, a morte de
Jesus, tal como planejada por Deus, assume um outro significado, pois seu
objetivo não é voltado para o bem dos homens, mas para promover uma espécie
de propaganda que faria ecoar o nome do Deus dos judeus para áreas maiores
que um pequeno país à beira do Mediterrâneo. Jesus, como já frisamos, planeja
atrapalhar este projeto de Deus, morrendo não como seu filho, mas como um
simples homem que se declarou o Rei dos Judeus, sendo este o seu crime.
Contudo, não obtém sucesso, pois Deus no momento de sua morte intervém,
declarando-o seu filho. Assim, o Jesus de Saramago morre, mas não ressuscita
como o Jesus bíblico e desse modo valoriza-se a vida tal como a que conhecemos
e não a que poderia existir depois da morte, que é o que se valoriza no texto
bíblico, como podemos perceber pelas palavras de Jesus, no evangelho de João:
“Meu reino não é deste mundo”. E neste evangelho escrito in nomine hominis146,
onde o Jesus do evangelista Lucas diz, no momento de sua crucificação, “Pai,
perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23, 34), o Jesus de Saramago, diz,
“Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez” (SARAMAGO, 2001, p.
444). No romance de Kazantzakis, o narrador também não apresenta o episódio
da ressurreição. O ápice dessa narrativa é o sonho da tão desejada vida humana
que Jesus tem durante sua crucificação. É apenas um sonho, um devaneio, que
de certo modo ironiza a valorização de uma vida após a morte pregada pela
religião cristã. E nesse sentido os dois romances se aproximam, pois apresentam
um Cristo mais humano e mais preocupado com a vida terrena que com a
desconhecida vida após a morte.
BIBLIOGRAFIA
146
Devo esta expressão ao livro O quinto evangelista, de Salma Ferraz, em que a autora opõe os
evangelhos ao romance, dizendo que este é escrito “em nome do homem” e aqueles, “em nome de
Deus”.
188
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Mediterrâneo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
DRURY, John. “Marcos”. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997, pp. 433-48.
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VERMES, Geza. Jesus e o Mundo do Judaísmo. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
189
RAUL BRANDÃO E JOSÉ
SARAMAGO:
REVISITANDO FIGURAS
CRISTÃS
190
RAUL BRANDÃO E JOSÉ SARAMAGO:
REVISITANDO FIGURAS CRISTÃS
191
de personagens conta a suposta volta de Jesus a Portugal, numa época
contemporânea.
Os quadros da peça não estão diretamente ligados, a não ser pela
figura de Jesus, presente em todos eles. A colaboração de Pascoaes estaria no
quinto quadro, em que Jesus encontra o diabo na catedral. Segundo José Manuel
Vasconcelos, esse quadro teria sido incluído na peça já depois de Brandão tê-la
concluído (cf.: VASCONCELOS, 1984, p.11). Como não há uma interdependência
entre os quadros, sua inclusão não afetou a ordem da peça.
192
Ladrão: E de miséria (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p.38-39)
O tumulto é causado por Jesus que é levado à prisão, como outrora, por
aqueles para quem ele teria vindo. A cena revela os piores sentimentos e os
interesses humanos. Diante de tantas pessoas, o Comissário só permite que
entrem os queixosos e procede a um interrogatório como um novo Pilatos.
Há uma divisão entre aqueles que querem a morte e os que desejam a
liberdade de Jesus. Ele é acusado por pregar aos pobres e muitos deles se
rebelam contra sua pregação que, agora, é considerada ultrapassada.
A Primeira Velha reclama por suas filhas, divorciadas, que não
conseguem arrumar um marido:
Primeira Velha: (...) Quando a minha filha estava para casar com
um dançarino também divorciado... E sabe Deus o que nos custou
a apanhá-lo, a mim e a ela! (...) Aparece este homem e começa a
pregar.
(...)
Comissário (para Jesus): Diga lá.
Jesus : Não adulterarás?
Primeira Velha: Ouve?
Jesus: Digo que todo o que olhar para uma mulher, cobiçando-a,
já no seu coração adulterou com ela.
Comissário: Estávamos bem servidos!
Primeira velha: E agora a minha filha já não pode mais. A minha
filha já não pode mais por causa deste homem... (BRANDÃO,
PASCOAES, 1984, p. 44-45).
193
Segunda Velha: (...) Quem é que pode aturar um santo! Um
santo é um desastre para uma família; pelo menos enquanto está
vivo. Um homem que não tem costumes, que dá tudo o que tem,
que dá o ordenado, que sai e entra a toda hora, diz o que sente e
não quer saber da família! (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p.46)
194
deixaste reduzir à condição de bestas? E reduzidos à condição de bestas, que
querias que eles fossem no mundo?” (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p.51)
O Jesus apontado por Brandão e Pascoaes é submisso, fraco,
impotente diante das situações que se lhe apresentam; ao contrário, o Anarquista
representa a luta por melhores condições de vida:
195
Outro ministro: Substituí-lo por quê?
Presidente: Pela pobreza e pela verdade.
Quarto ministro: A que provação Ele nos quer reduzir! Como
poderemos nós voltar a viver no país, aos bandos, despidos do
progresso material e só com uma doce ilusão, hoje impossível?
(...) (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p. 65)
196
Judeu: (...) Bandeia-te connosco, com os poderosos. Erguemos-
te mais altares e templos mais ricos que os de Salomão!
Podemos até fundar um banco.
Jornalista: Entre para o Banco. Fundamos o Banco do Pai, do
Filho e do Espírito Santo! (...)
Judeu: Bandeia-te connosco. Não digo isto para te corromper.
Falo-te com o coração nas mãos. Reconheço a tua importância no
mundo. Sem ti, que havia de ser de nós? És uma força. Conténs
os desgraçados. Falas-lhes da outra vida, iludes os que têm fome.
Mas és uma força nas nossas mãos. Nas nossas mãos és a
ordem. (...) As tuas teorias não se podem aplicar. (...) Volta para
os altares, porque, estando morto, podes ser uma série de
benefícios para o mundo (...). (BRANDÃO, PASCOAES, 1984,
p.92-93)
197
Em A segunda vida de Francisco de Assis, José Saramago resgata um
seguidor do cristianismo que, depois de Jesus Cristo, destaca-se
consideravelmente entre os católicos. O autor utiliza-se de personagens e de
situações que aconteceram de fato na vida de Francisco de Assis empregando-as,
entretanto, de forma irônica. Saramago parece propor, assim, uma nova leitura e
reflexão da vida do santo construindo uma “teologia” totalmente inovadora.
Em entrevista a Carlos Reis, Saramago revela como surgiu a peça
sobre São Francisco:
198
O título, A segunda vida de Francisco de Assis, também merece
atenção. Saramago dá uma nova chance não ao santo, mas ao homem Francisco.
Também é possível que haja, aqui, uma referência à hagiografia feita por Tomás
Celano chamada Segunda vida de São Francisco.
Já no início da peça, a sala de reuniões do conselho representa o valor
dado à riqueza por aqueles que antes eram amantes da pobreza: “Grande sala.
Ambiente geral discreto e severo. Mesa comprida, cadeirões, cofre, telex, vários
telefones, um terminal de computador” (SARAMAGO, 1987, p. 11); bem diferente
da Porciúncula, a segunda morada dos franciscanos, que, de acordo com os
estudiosos, era um lugar simples com uma igrejinha e uma cabana (Cf.: ROSSI,
1982, p. 12).
Os companheiros de Francisco não mais doam tudo que têm aos
pobres; agora, governam, administram, fabricam, gerem, contam, pesam e, como
diz Elias, na peça, às vezes dividem (Cf. SARAMAGO, 1987, p. 17).
Um interessante conflito é resgatado pelo autor: o relacionamento
conturbado de Francisco com sua família, em especial com a figura paterna.
Pedro Bernadone, pai de Francisco, era um comerciante da pequena burguesia de
Assis que, por causa dos ideais de pobreza do filho, rompeu os laços que havia
entre eles. O pai de Francisco assemelha-se à velha de Jesus Cristo em Lisboa
que diz que enquanto está vivo, um santo é um desastre para uma família. Na
peça, Pedro é o diretor geral da companhia e cuida da contabilidade da empresa.
O ódio entre pai e filho é evidenciado em vários momentos da peça:
“Pedro: (...) Talvez seja por não amar-te que te odeio (...)”(SARAMAGO,1987, p.
60.). O autor reforça a todo instante a revolta, a mágoa e a aversão entre os dois.
Nesse conflito familiar, a mãe, D. Pica, é aquela que está dividida entre
o amor pelo filho e a submissão ao marido, característica da época:
199
compreensão, ao menos aceitação, e nem isso me deu. Melhor é
que não falemos de amor, querida mãe (SARAMAGO, 1987, p.
27).
200
Clara: Ficarei do teu lado, ao teu lado, foi sempre aí que estive,
mesmo quando não sabia de ti. Por favor, por favor, diz o meu
nome.
Francisco: Clara. (As luzes baixam enquanto se aproximam um
do outro. Escuridão quando vão se tocar) (SARAMAGO, 1987, p.
47-48).
201
Essa divisão também aparece na peça quando Leão e Junípero ficam do lado de
Francisco e os demais apóiam Elias.
Segundo Larrañaga, frei Elias foi ministro durante treze anos, e na
época mais delicada da evolução da Ordem:
202
Pedro: Também os ricos são muitos. É um engano supor que os
ricos são poucos. É preciso ser-se pobre, estar colocado no ponto
de vista do pobre, para ver como os ricos são numerosos. Há dias
em que andamos na rua e só vemos ricos.
(...)
Francisco: Pedro, é um pobre que pede auxílio a outro pobre.
Pedro: Não somos pobres iguais. Tu tornaste-te pobre para
poderes ganhar o céu, e nós, que pobres fomos e pobres
continuaremos a ser, nem terra conseguimos conquistar. Nenhum
pobre te agradeceu quando abandonaste as riquezas de teu pai.
Francisco: Não esperava agradecimentos. Tratava-se de salvar
as almas.
Pedro: Não sei se salvaste alguma. Mas, ao louvares a pobreza,
afirmaste a bondade do sofrimento dos pobres. Este é o pecado
de que nenhuma absolvição te lavará (SARAMAGO, 1987, p. 126-
128).
203
Ao colocar Francisco contra a pobreza, Saramago parece permitir que
ele reconstrua sua vida, sua história, assumindo, assim, o que seria sua real
identidade. Não há mais o Francisco conhecido e venerado pelos católicos, mas
alguém que, como a maioria da sociedade, quer uma vida diferente daquela que
os pobres levam, já que pobreza não santificaria ninguém.
204
Referências Bibliográficas
205
AUSÊNCIA DE DEUS E
SENTIMENTO DE
CULPA EM MEMÓRIAS
PÓSTUMAS
206
AUSÊNCIA DE DEUS E SENTIMENTO DE
CULPA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS
1. Considerações iniciais
147
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Obra Completa. Vol.1. Organizada
por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
148
KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras. Trad. Paulo Soethe. São Paulo: Loyola,
1999, p.40.
149
FERRAZ, Salma. Teopoética: los estúdios literários sobre Dios. In: RDC – Revista de
Divulgação Cultural, ano 27, n. 86, mai/ago 2005. Blumenau: Fundação Universidade Regional de
Blumenau – SC,p.15.
207
A escolha de temas tão caros ao catolicismo, por envolverem questões
de fé, justifica-se pela preocupação demonstrada pelo papa Bento XVI, quando
ainda cardeal, durante o meeting de Rímini, em 1990. Disse ele: “O núcleo da
crise espiritual de nossa época tem suas raízes no obscurecimento acerca das
questões da graça do perdão”.150 É do mesmo cardeal a advertência para o
perigo que representa a psicanálise, que ao fornecer novas possibilidades de
interpretação do desejo, “retira” do homem sentimentos fundamentais, como o da
culpa. Necessária, portanto, na avaliação das relações entre teologia e literatura,
151
considerar a possibilidade de inclusão desta área de conhecimento, sem o que
a teopoética – ao menos no que se refere à análise literária do pecado ou do
perdão – pode encontrar dificuldade para dar conta de sua pretensão científica.
É levando em conta tais questões de teologia, literatura e psicanálise,
que este trabalho se propõe a verificar as condições de atuação dos personagens
machadianos, com ênfase para o comportamento moral predominante à época
dos acontecimentos ficcionais relatados.
150
RATZINGER, J. Compreender a igreja hoje: vocação para a comunhão. Trad. D. Mateus
Ramalho Rocha, 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2005,p.83.
151
Neste estudo considera-se a teoria psicanalítica fundada por Sigmund Freud (1856-1939) que
identifica o desejo como um sentimento “indissoluvelmente ligado a traços mnésicos e encontra
sua realização na reprodução alucinatória das percepções”. Comumente identificamos a noção de
desejo com necessidade e vontade. Freud tenta criar uma noção que isole tal termo – ao menos no
que se refere à psicanálise – e parte do contraponto em relação a necessidade. Segundo ele “a
necessidade, nascida de um estado de tensão interna, encontra a sua satisfação pela ação
específica que fornece o objeto adequado”. Freud vai desenvolver o conceito principalmente na
sua teoria do sonho e mostrar como o desejo aparece sob o sintoma do compromisso. Estas
observações têm por finalidade apenas lançar uma luz – certamente pálida – sobre termos
utilizados da mesma maneira para expressar idéias distintas. Quando o Cardeal afirma que a teoria
psicanalítica “retira” do homem sentimentos fundamentais como a culpa, evidentemente
desconsidera que a mesma teoria trabalha essa culpa ao limite do suportável, fazendo
simplesmente que o homem aprenda – ou tente aprender – a conviver com esse fardo. Machado,
num pas-de-deux transcendental com o pai da psicanálise, apenas faz mostrar que essa
convivência em nada será atenuada por mil Pai-nossos ou mil Ave-Marias. LAPLANCHE, Jean.
Vocabulário de psicanálise/ Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Lagache; trad. Pedro
Tamen. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, em especial p. 115.
208
passagens bíblicas, recordações sobre ritos e rituais ou mesmo diálogos
imaginários entre deus e o diabo. Na medida em que tratam de textos ficcionais,
ultrapassam a realidade histórica-social e o caráter biográfico do autor. Sob a ótica
literária, procuram anunciar uma “verdade inédita” e “uma compreensão singular
do ser humano”.152
Tais textos distinguem-se dos escritos teológicos – que se pretendem
científicos - como os reunidos pelo cardeal Ratzinger no volume editado em 1992,
aqui utilizado como referência inicial para posicionar o estado da arte do debate
sobre fé, pecado e perdão. Disse o Cardeal que “a atual discussão sobre moral
tende, em grande parte, a libertar homem da culpa, fazendo com que as
condições de sua possibilidade jamais possam existir. [...] Esta maneira de libertar
o mundo é demasiadamente banal. [...] A moral só conserva sua serenidade
quando existe o perdão.[...] Mas só existe o verdadeiro perdão se se pagou um
‘preço’, um valor correspondente, se houve desagravo pela culpa, se existe
expiação. Não se pode romper o entrelaçamento que existe entre moral, perdão e
expiação; se faltar um dos elementos, todo o resto cai por terra. Este círculo
sempre só existe como um todo; depende dele a salvação ou não salvação do
153
homem”. E citando A. Gorres, fez o cardeal uma crítica pontual a Sigmund
Freud, que com suas descobertas psicanalíticas do início do século passado, teria
eliminado o pecado e a culpa do mundo espiritual, ou seja, retirando
arbitrariamente da moral um dos seus elementos fundantes. Esta moderna
ciência, que privilegia a razão, não levaria mais em conta que o sentimento de
culpa não só é necessário como também e principalmente indispensável na ordem
psíquica para a saúde espiritual.
Numa palavra, o papa revela o temor de que o divã tome o lugar do
confessionário: se não há mais necessidade de um padre para receber a
confissão dos pecadores, se não há mais alguém para punir a culpa, se não há
mais o intermediário entre o divino e o terreno, coloca-se em risco a pedra de
152
WILLEMART, Philippe. A pequena letra em teoria literária. São Paulo: Annablume, 1997, p.30.
153
RATZINGER. Op. cit., p. 83-84.
209
toque da religião, qual seja, a salvação pela fé que conduz à morada eterna, ao
céu, ao paraíso.
Que pecados são estes de que fala o papa, para os quais
exclusivamente os padres da igreja estariam habilitados a fornecer o perdão? São
aqueles reconhecidos pela história do catolicismo e reafirmados no Novo
catecismo da igreja católica154 e popularizados como os Dez mandamentos e os
que constituem os chamados pecados capitais.
154
AGNUS DEI. Novo catecismo da igreja católica. Parte 2. Vaticano, 1997. Disponível em:
<www.veritatis.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2005.
155
MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura. São Paulo: Loyola, 1994,p.14.
156
BRESSANE ARAÚJO, Hugo. O Aspecto religioso na obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Cruzada da Boa Imprensa, 1939,p.16.
157
Mais recentemente Conceição procura demonstrar que Machado, ao escrever D. Casmurro,
dividiu a trajetória de Bento Santiago em duas fases: a primeira, ordenada, pois que prometido à
igreja de Deus pela vontade de sua mãe. É o mundo das garantias; a segunda, caótica, a partir do
momento em que decide abandonar o seminário, matar Deus e desistir da carreira religiosa em
troca do casamento com Capitu. É a realidade insuportável. Ver mais em: CONCEIÇÃO, Douglas
Rodrigues da. Fuga da promessa e nostalgia do divino. Rio de Janeiro: Horizontal, 2004.
210
perdão, nos sentimentos inculcados pela fé católica (e por todas as demais
religiões) ao homem. Sem esta dor – a mesma dor que Cristo teria sofrido na cruz
– como pode um ser humano saber o que se passa na alma de uma pessoa?
Como pode ter uma compreensão verdadeira do indivíduo? Como pode ter a
pretensão de produzir um belo texto literário?
Ainda conforme o crítico, o que atrai em Machado é tão somente “o
aticismo158 castiço do estilo, a anatomia impassível de paixões burguesas”. Aquilo
que para Bressane é uma falha, a crítica literária aponta como umas das principais
características da beleza do texto machadiano, ou seja, a capacidade da concisão,
do poder de síntese, da descrição precisa e objetiva das situações ou de
personagens. É o “lápis do caricaturista que desenha homens com uma precisão
impressionante e atinge o ponto central das mais ocultas deformidades”.159 Os
estudos de Astrojildo Pereira, Silviano Santiago, Roberto Schwarz e John
Gledson, também já demonstraram que Machado foi um fiel relator das
contradições da sociedade brasileira do século XIX, cuja ideologia liberal escondia
uma realidade baseada em relações escravocratas e de favores. 160
Bressane assegura que o cético Machado não sentiu os nobres ideais
católicos “que em nossos dogmas nobilitantes e confortadores têm um manancial
inesgotável”. O resultado é que o escritor “não vibrou e por isso não faz vibrar”.
Tais ideais estão baseados na fé em Cristo, na remissão dos pecados, na vida
eterna. São estas as fontes inesgotáveis da sabedoria e que somente os crentes
podem assimilar e transpor para a experiência literária. Do contrário, a obra
literária não atinge a sua plenitude, por deficiência de seu autor ou por falta de
conhecimentos religiosos que ele demonstra. É o que ocorre com os livros de
Machado, que “entretêm, mas não elevam, ensinam a língua, mas não tornam
mais homens, não atingem a finalidade última da arte na acepção mais elevada do
termo”.
158
Aticismo: “Estilística, retórica. Estilo próprio aos escritores áticos e que se caracterizou pela
concisão da linguagem”. Cf. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva,
2004.
159
MOOG, Vianna. Heróis da decadência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p.80.
160
GLEDSON, John. Machado de Assis, ficção e História. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p.98.
211
O crítico literário católico lamenta que Memórias póstumas “sejam
refertas de cruas minúcias pecaminosas e que com Quincas Borba e Dom
Casmurro formem uma trilogia indefinível, merencóreo poema cujo refrão
tenebroso é a fatídica palavra insculpida pelo esqueleto que Goya faz surgir do
sono sepulcral: ‘Nada’. [...] Os livros de Machado de Assis resumbram gélido
pessimismo nascido, em parte, da impossibilidade de desvendar os mistérios que
o cercam, o que já é mais uma angústia para o espírito atribulado”. 161
212
mas ao final. Brás se compara a Moisés e seu relato ao antigo livro das leis. Mais
do que soberba, é possível considerar que o paralelo com as Escrituras tem como
intenção a banalização do livro sagrado e revela uma “satisfação maligna de
rebaixar e vexar, de anunciar que os desplantes do narrador não vão se deter
diante de nada, que não ficará pedra sobre pedra.164
Brás morre de uma idéia fixa: inventar um remédio que aliviasse a
melancólica humanidade. Para conseguir a patente, usa em falso o nome do filho
de deus. O resultado pretendido era “verdadeiramente cristão”. Na intimidade
confessa: pretendia mesmo era o lucro e a fama. Quando delira, Brás assume a
forma de um livro, que imobiliza completamente seu corpo, idêntico ao fenômeno
que a medicina moderna identificou como paralisia do sono.165 O livro é a Suma
Teológica, de S. Tomás.
Quando do nascimento de Brás, o seu tio, padre Ildefonso, prognostica
que o menino será cônego ou bispo. O tio cônego fareja no sobrinho não uma
vocação, mas uma carreira.166 As orações que sua mãe lhe ensina são inúteis ao
“menino diabo” que, com o perdão do pai, ora quebra a cabeça de uma escrava,
ora faz de besta o negrinho Prudêncio. Dá mais ouvido às estórias eróticas
contadas por seu tio João do que à austeridade do tio cônego, este um “espírito
medíocre” e subalterno, preocupado tão somente com o lado externo da igreja.
Adolescente, com dezessete anos, apaixona-se pela cortesã Marcela,
um sentimento semelhante ao “efeito do primeiro sol na criação bíblica”. Quando
vai estudar direito em Coimbra, imagina que poderia ser bispo, desde que este
cargo lhe trouxesse uma posição superior qualquer. De volta ao Brasil, participa
do enterro de sua “santa mãe” e depois descansa na chácara da Tijuca. Volta,
164
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2000. (Coleção Espírito Crítico), p.21.
165
“As alucinações relacionadas ao sono e a paralisia do sono podem ocorrer simultaneamente,
produzindo uma experiência, em geral terrível, de ver ou ouvir coisas incomuns e ser incapaz de se
mover. Tanto as alucinações relacionadas ao sono quanto a paralisia do sono duram de alguns
segundos a alguns minutos e terminam espontaneamente. Ambos os fenômenos (imagens mentais
vívidas e atonia dos músculos esqueléticos) supostamente resultam da intrusão de elementos
dissociados do sono REM na vigília”. Ver mais em: PSIQWEB.Transtornos primários do sono.
Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/dsm/sono2.html>. Acesso em: 10 jan. 2006.
166
FAORO, Raymundo.Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4. ed.rev. São Paulo: Globo,
2001, p.498.
213
segue para a Corte, após ouvir uma misteriosa voz que lhe sussurrou as palavras
da Escritura (At, IX, 7): “Levanta-te e entra na cidade”;167 lá estaria a sua salvação:
uma cadeira na Câmara dos deputados, a fama e o reconhecimento público. O
casamento com Virgínia, filha do Conselheiro Dutra, tornaria apenas mais rápida a
sua trajetória política.
O casamento, entretanto, não acontece, Mas Virgínia torna-se sua
amante. O romance com Virgília, embora contrariasse as normas legais, morais e
sociais não se constituía nem em crime e nem desonra para Brás. Virgília, casada
com Lobo Neves, era um “diabrete angélico”, amante do outrora “menino diabo”.
Se Brás acredita que Virgília amava-o por “vontade do Céu”, nem por isso deixava
de relativizar as virtudes católicas da mulher: ela é apenas um “pouco religiosa” e
prefere ir à igreja em dia de festa, mas só se encontrar algum lugar vago em uma
tribuna.
Para resguardar a segurança do romance, Brás adquire uma casa, que
abre para os dois a expectativa de um mundo novo. Era ela um santuário, o
infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, em suma, uma “habitação dos
anjos”, sem leis, sem instituições, um só mundo, “a unidade moral de todas as
cousas”.
O humanitismo, filosofia criada por Quincas Borba e da qual Brás se
torna adepto, seria também, no futuro, também uma religião, “a única verdadeira”,
distinta do cristianismo, pois este “é bom para as mulheres e os mendigos”. As
demais religiões têm o mesmo defeito do cristianismo: “orçam todas pela mesma
vulgaridade ou fraqueza”. Se por princípio tal filosofia é adversa ao catolicismo,
nem por isso o seu fundador deixa de buscar nas passagens bíblicas a metáfora
para os acontecimentos do presente. Assim, quando a irmã de Brás impõe-lhe o
casamento com Nhã-loló, sobrinha de Cotrim, Quincas Borba exclama: “Compelle
167
Saulo foi o nome de batismo do apóstolo Paulo. Ele entrou na história a partir do relato de sua
conversão: ele havia recebido autorização do sumo sacerdote, em Jerusalém, que era a maior
autoridade religiosa entre os judeus, para prender e torturar os cristãos que se encontravam em
Damasco. Quando ele se aproximava da cidade, "uma luz do céu brilhou ao seu redor e, caindo
por terra, ouviu uma voz que dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? Ele perguntou: Quem és
tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus a quem tu persegues; mas levanta-te, e entra na
cidade, onde te dirão o que te convém fazer".
214
intrare”, sem deixar de provar que o apólogo evangélico “não era mais do que um
prenúncio do humanitismo, erradamente interpretado pelos padres”.168
O cunhado Cotrim é o empresário capitalista que ficou rico
contrabandeando escravos e tornou-se fornecedor da Marinha (por influência de
Brás quando deputado). Embora mandasse com freqüência escravos ao
calabouço “donde eles desciam a escorrer sangue”, Cotrim não deixava se ser
uma boa pessoa, e prova disso é que era tesoureiro em uma confraria e pertencia
a diversas irmandades. Este mesmo caminho foi traçado por Brás Cubas.
5. Considerações finais
168
“Compelle intrare. Obriga-os a entrar. Expressão de Cristo (São Lucas, XIV, 23) referindo-se
aos convidados para o festim. Aplica-se à insistência de alguém em procurar fazer outrem aceitar
algo cujo valor desconhece”.
169
CÂNDIDO, Antônio. “Dialética da Malandragem”. In: O Discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993,p.33.
170
FAORO. Op.cit., p. 434.
215
leitoras, na contestação à ordem estabelecida, à moral vigente, uma sensação de
normalidade”. 171
Pelos motivos, razões e fundamentos expostos, o estudo buscou
elementos que indicam a existência de um real confronto entre o texto literário e a
pregação teológica, ou seja, um campo de tensão que desobriga os personagens
a obedecerem aos ensinamentos religiosos, estejam eles contidos nos Dez
mandamentos ou no index dos Pecados capitais. O que Machado apresenta,
como síntese da experiência de Brás, é um simples nada, terreno ou eterno, sem
Deus ou piedade, sem culpa ou necessidade de perdão. Sobressai-se no texto
machadiano, e em particular nas Memórias póstumas, a crítica à Igreja, a
manipulação pela fé e a descrença na ordem divina, que pressupõe o perdão a
tudo. 172
171
FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre
psicanálise e literatura. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p.94.
172
PIZA, Daniel. Machado de Assis: um gênio brasileiro. São Paulo: IOESP, 2005, p.15.
216
LITERATURA E
(DES)CONSTITUIÇÃO DO
SAGRADO
217
LITERATURA E (DES)CONSTITUIÇÃO DO SAGRADO
Claudemir Francisco Alves
PUC Minas – Faculdade de Letras/UFMG
173
BAUMAN. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.205.
218
particularizam esse conceito a ponto de reduzi-lo a um conjunto de crenças ou de
práticas específicas.
É construindo uma via entre esses extremos que a noção de sagrado é
discutida no presente texto, partindo do fato de que, na pós-modernidade, assiste-
se a um recrudescimento do fascínio pelo sagrado, experimentado pelo senso
comum, mas também pelos pensamentos filosófico e científico. Pretende-se
relacionar as mudanças na percepção do sagrado – que, há não muito tempo, fora
tratado como algo absoluto, totalmente diferente do humano – com os tempos
atuais em que ele aparece como um imanente objeto relacional. Constata-se que
tanto no primeiro caso como no segundo subjaz a idéia do sagrado como um
princípio ordenador ou um ponto de orientação, algo a partir do qual é possível
localizar-se existencialmente no tempo e no espaço físico-sociais, mas esse
aspecto comum não impede a ocorrência de distintos desdobramentos em um e
outro modelos.
Deseja-se destacar, como elemento de comparação com a atualidade,
uma atitude epistemológica que se caracteriza pela confiança no conhecimento
produzido pelo sujeito, na experiência como critério da verdade e na razão como
medida de todas as coisas. A circunscrição dessa atitude em um período histórico
oferece alguma dificuldade, pois pode ser encontrada desde o início do que,
comumente, se chama de “Idade Moderna” até os dias atuais e constitui
pressuposto de várias correntes e sistemas filosóficos. De qualquer modo, importa
dar visibilidade ao fato de que as pretensões de objetividade e de esgotamento do
real são vistas atualmente com maior desconfiança e com uma consciência mais
nítida de que – dada sua inerente e inevitável narratividade – todo conhecimento
é, antes de tudo, uma construção e uma postulação sobre a realidade. Nenhum
conhecimento pode escapar à fabulação operada pela linguagem, do mesmo
modo que sua historicidade e contingência não lhe permitem ser neutro ou
alcançar imparcialidade.
Torna-se, pois, relevante rever uma certa tradição de estudos sobre o
sagrado conformada por Durkheim174, Otto175 e Eliade176 no início do século XX,
174
DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
219
com o intuito de avaliar de que maneira a experiência contemporânea afeta a
própria compreensão do sagrado. Com efeito, pode-se deduzir da leitura desses
autores que sagrado é o que, colocando-se fora da história e da cultura e
pretendendo-se objetivo, real e absoluto, se apresenta como princípio organizador
da existência humana. É o que distingue tempos no tempo e espaços no espaço,
atribuindo-lhes um caráter diferenciado e elevando-os a um estatuto ontológico
superior, em oposição a outros tempos e espaços considerados comuns e
corriqueiros. O sagrado, pretensamente estável e permanente, seria, então,
considerado, por quem nele crê, capaz de dar legitimidade ao modo de
organização da sociedade em que está inserido e de garantir a identidade que
permite a tal grupo dizer, de um espaço físico socialmente ordenado, “nosso
mundo”, distinguindo-o do que se acredita não poder ser assim denominado.
Um modelo como esse, que eleva o sagrado à ordem do eterno, da
certeza, da verdade única e unívoca e do que protege do caos, defronta-se,
inevitavelmente, com um modelo caracterizado pela pluralidade, como é o
contemporâneo, em que a própria idéia de realidade entra em crise e passa a não
coincidir “necessariamente com aquilo que é estável, fixo, permanente, mas tem a
ver com o acontecimento, o consenso, o diálogo, a interpretação”177. O tempo e o
espaço não são mais considerados diferenciáveis nem por uma característica
intrínseca e essencial, nem pela manifestação de uma força misteriosa que lhe
imprima um caráter distinto. Fala-se, com maior freqüência, em tempos e espaços,
cujo caráter especial (transitório) incorpora-se às convenções de um dado grupo
social. O sagrado passa a ser paradoxalmente concebido como contingente,
relativo e não como absoluto.
Para analisar mais detidamente alguns desses aspectos que apontam
para uma modificação na maneira como o sagrado é vivenciado atualmente,
elege-se, como objeto de análise, a forma como o sagrado é representado em
obras literárias. É necessário ressaltar que não se entende com isso que um texto
literário represente especularmente a cultura em que foi produzido, o que suporia
175
OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.
176
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
177
VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D’Água, 1992. p. 17.
220
uma posterioridade do texto em relação a ela. Ao contrário disso, o texto ficcional
pressupõe sua própria situação comunicacional. Como afirma Stierle178 , o ficcional
não se deixa corrigir pela experiência do mesmo modo que não se deixa transpor
para o conhecimento, desligando-se de sua ficcionalidade. Além disso, a própria
unidade formal de uma obra de ficção constitui uma relação específica, não
imediatamente transponível nem passível de generalizações lineares. Ao contrário
de uma posição naturalista e realista que se fundamenta na expectativa de uma
paridade bipolar e unívoca entre o signo lingüístico e uma realidade, concebe-se o
texto, aqui, como um “arranjo configurante”179 que une uma sucessão de eventos,
transformando-a numa totalidade. Tal totalidade, entretanto, só é inteligível por
estar ligada a um sistema simbólico, cujas contingências históricas e culturais
constituem uma espécie de contexto, o qual pode ser idêntico ou distinto nos
momentos da produção e da recepção da obra.
Assim, os textos literários tomados a seguir, não são entendidos como
espelhos da “realidade” que constitui o objeto deste estudo. Eles não se limitam a
refletir as contingências do modo como o sagrado é atualmente percebido, mas
são uma reprodução (no sentido de que produzem uma outra vez) dos fatos em
sua tessitura. O ato narrativo – como, ademais, toda linguagem – é uma
postulação prévia sobre os fatos narrados, pois não se limita a concatená-los; ao
configurá-los, os interpreta, avalia e, desse modo, os constitui.
É com tal concepção da complexa relação entre o texto literário e suas
múltiplas referências que aqui se propõe, primeiramente, a releitura de Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar180 . A intensidade dramática desse texto – em que é
narrada a história de um jovem, filho de uma família de ascendência árabe,
imigrada para um ambiente predominantemente cristão – é devida, primeiramente,
à escolha cuidadosa de cada palavra, numa composição em que a narrativa e o
lirismo se misturam. Em meio a uma profusão de imagens e metáforas, um
narrador convulsivo e impetuoso deixa entrever os acontecimentos que envolvem
178
STIERLE, Karlheinz. Que significa a recepção dos textos ficcionais? In: LIMA, Luiz Costa. A
literatura e o leitor. 2.ed.rev.ampl. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 119-171.
179
RICOEUR. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v.1. p.106.
180
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3.ed.rev. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
221
essa família, ao mesmo tempo revelando-os e ocultando-os. Essa atmosfera de
mistério que envolve o leitor – desafiado a perseguir evidências apenas
nuançadas e a construir, de conjectura em conjectura, a compreensão dos
acontecimentos – persiste mesmo ao final da seqüência narrativa e é reforçada
por comportamentos ritualísticos dos personagens, pelos sermões em que
predominam as anáforas e o tom profético, e pela recorrência de temas míticos,
como a ordem, o caos, o incesto. Reforça-se esse misticismo pelo arcaísmo a que
também o título do livro remete, no qual estão implicadas, simultaneamente, as
idéias de precariedade e de originalidade primordial. São numerosas as
referências ao Alcorão e à Bíblia, merecendo particular destaque a
intertextualidade do romance com a parábola do filho pródigo e as demais
parábolas da misericórdia, que ressaltam a alegria do reencontro de algo já
considerado perdido. Bem cedo, porém, o romance se distancia dessas parábolas,
pois o discurso do personagem e narrador André, que define a si mesmo como
ensandecido e demoníaco, parece conduzir o leitor (os críticos literários inclusive)
a entendê-lo – em relação aos “textos sagrados” – como uma profanação.
Em Lavoura arcaica, o sagrado coincide com a idéia de um princípio
ordenador teleologicamente orientado, que se formula na concepção de uma
dupla determinação que tudo afetaria: pressupõe-se que todo ser tem uma
natureza a realizar e está determinado em sua origem e em seu destino.
Distinguem-se, contudo, duas formas de relacionamento com essa ordenação
universal. Para Iohána – o pai –, a conformidade com a ordem que ele enxerga
presente em tudo é condição para a sabedoria, a felicidade e a imortalidade.
Percebe-se que, para Iohána, é possível decidir entre viver ou não em
conformidade com essa determinação natural, desde que se saiba que nenhuma
infringência aos princípios da natureza ficará sem castigo: há ineludível
pagamento para toda insubmissão. Também André – o filho – tem uma concepção
de destinação. Para ele, no entanto, não há aprendizado possível na conformação
à ordem concebida pelo pai. Ao contrário, a determinação na origem implica
também a determinação no destino, logo não pode haver liberdade e, daí ele
conclui, nem responsabilidade pelo que lhe sucede. A obediência à lei, longe de
222
ser condição para a sabedoria, para a felicidade e para a imortalidade, produz
exatamente o efeito contrário do que propõe: as “leis [de Deus] são a lenha
resinosa que alimenta a constância do Fogo Eterno”. Esses dois modos diversos
de relação com o sagrado que se delineiam levam à constituição de escalas de
valores morais distintas. Enquanto Iohána apresenta a transcendência, a
universalidade e a inexorabilidade dos princípios que ele julga garantirem a ordem
natural e das relações humanas, André põe em pauta as demandas do indivíduo.
A compreensão da noção de sagrado que pode ser identificada em
Lavoura arcaica, pela evidenciação das diferenças e inter-relações entre o modelo
do pai e o modelo do filho, segundo os quais tal noção se configura, contribui para
entender as mudanças contemporâneas, em que não há mais uma oposição
simples e evidente entre sagrado e profano, mas sim um sagrado plural, em que
os princípios religiosos e éticos são postos em diálogo com exigências
particulares.
André não deseja se estabelecer radicalmente fora dos valores
familiares ou negá-los completamente. Não é à destruição dos princípios que
André visa, mas sim à sua flexibilização e a mostrar que a verdade do pai convive
com outras verdades. O discurso de André não é niilista. Constrói uma realidade
paralela: a sua realidade. Parece coerente afirmar que há no romance não o
confronto entre o sagrado e o profano, mas entre os modos distintos de pai e filho
pensarem dever ser a relação com o sagrado, com os princípios que eles julgam
fundamentar a ação e a existência.
Não é possível considerar profano o discurso de André, pelo menos se,
com esse termo, se entende uma supressão do sagrado. Todo seu discurso está
marcado por figuras religiosas. Mesmo se o conteúdo é a blasfêmia, ainda assim
(e por isso mesmo) a fala do personagem permanece no âmbito do sagrado, em
que se distinguem o bem e o mal, sadio e doentio, deus e o diabo. André não
representa o profano numa contraposição ao sagrado do domínio paterno, mas
sim uma outra concepção de sagrado. Ele não se coloca fora do âmbito do
sagrado, mas representa uma proposição que não se define como o “totalmente
223
outro”, absolutamente distinto do profano. Antes, constitui-se como um sagrado
relacional, referido às necessidades de quem a ele recorre.
Não é mais o sagrado das antinomias e antagonismos presentes em
definições como as de Otto, Durkheim e Eliade: sagrado e profano, real e irreal,
bem e mal, certo e errado. Tornaram-se tênues as fronteiras entre esses pares de
conceitos, colocando em questão a validade de semelhantes categorias. No
modelo proposto pelo personagem André já não há um conjunto de categorias
binárias que tudo resolvem pelo princípio do terceiro excluído (bem ou mal, certo
ou errado, construtivo ou destrutivo etc.); o equilíbrio dual cede lugar à pluralidade:
“a realidade não é a mesma para todos”181; ao contrário, é “modelável nas mãos
de cada um”182.
Expressa-se, em Lavoura arcaica, o difícil equacionamento entre o uno
e o múltiplo. O sagrado do pai arroga para si a unicidade: coincide com o infinito e
o eterno; coloca-se fora de todo condicionamento cultural, fora do tempo e do
devir. Qualquer coisa que se apresente como diferente dessa unicidade é
considerada não apenas como diversidade, mas como dissidência e representa
uma ameaça. Seguir a lei é legitimar uma visão de mundo, uma moral, um sistema
simbólico; não segui-la é mostrar a fragilidade desse sistema, sua impossibilidade
de fundamentação, é deslegitimá-lo. O filho torna-se execrável aos olhos do pai,
porque, em última análise, mostra a fragilidade do modelo deste. Aos olhos de
André, porém, o modelo do pai só é execrável porque se impõe sobre os demais
membros da família, arrogando para si o status de verdade única. O sagrado de
André não tem prerrogativa de absoluto. Propõe-se como um modelo entre outros.
Só não pode conviver com o monismo do pai.
Algo bem distinto pode ser encontrado em Centúria – cem pequenos
romances-rio, do italiano Giorgio Manganelli183. Trata-se de um conjunto de cem
contos com extensão de pouco mais do que uma página. A ação concentrada e
abreviada e personagens apenas tracejados transferem a atenção para as
181
NASSAR. Lavoura arcaica, p.166.
182
NASSAR. Lavoura arcaica, p.44.
183
MANGANELLI, Giorgio. Centuria; cento piccoli romanzi fiume. Roma: Rizzoli, 1979. (Trad. bras. por
Roberta Barni: Centúria; cem pequenos romances-rio. São Paulo: Iluminuras, 1995.)
224
lacunas, o silêncio, a esquiva e a reticência. Poder-se-ia afirmar mais
propriamente tratar-se de uma antinarrativa em que se valoriza não a capacidade
de contar histórias ou o seu conteúdo, mas sim o “gesto” pelo qual são narradas,
um certo procedimento com a linguagem e uma determinada maneira de concebê-
la. O postulado central da obra de Manganelli é a convicção de que toda obra
literária oferece, em primeiro lugar, a linguagem. Trata-se da invenção (ou
destruição) de estruturas narrativas por meio de deslocamentos e de distrações
calculadas em que diversos procedimentos são empregados para afastar
constantemente do tema a atenção do leitor, eludindo a comunicação direta e
evidenciando a artificialidade do universo de palavras que é o texto. Tal
perspectiva traz implícita a convicção de que, não apenas a literatura, mas todo
texto, toda formulação lingüística é ficcional: “a artificialidade do discurso humano
toca todas as coisas, as deforma e adorna”184.
Um outro importante pilar da obra manganelliana é a recusa ao
logocentrismo, isto é, à expectativa nutrida pelo senso comum – mas também por
certas tradições dos pensamentos filosófico e científico – da existência de uma
relação direta e natural entre a linguagem e o sentido; de que há uma realidade
que cumpriria o papel de lastro da linguagem, garantindo-lhe valor. O que se
aceita corriqueiramente como verdade é apenas a eleição arbitrária de um
artefato, construído segundo regras estabelecidas pela lógica, que ao invés de
revelar uma propensão natural do ser humano para a verdade, se apresenta
apenas como atribuição de maior valor a determinados aspectos dados como
certos por um assenso coletivo. Para Manganelli, ao contrário da
incompreensibilidade, da solidão e da loucura com que os “defensores do logos”
ameaçam os que se põem fora de tal assenso coletivo, trata-se de ampliar a
noção de realidade atribuindo valor também ao que escapa à ordem do sentido.
O sagrado que surge na obra de Manganelli traz as marcas do embate
com essas questões. É fruto de uma realidade e de uma linguagem intensamente
problematizadas. A maneira como a experiência religiosa é figurada em Centúria
se põe na contramão daquilo que tradicionalmente seria considerado sagrado por
184
MANGANELLI. La letteratura come menzogna. Milano: Adelphi, 1985. p. 18.
225
situar-se fora da história e da cultura, por pretender-se um princípio objetivo, real e
absoluto de organização da existência humana. Diferentemente de uma urdoxa
(opinião primordial) ou de um princípio suficiente de legitimação e de proteção da
ordem, o sagrado se torna imanente, relativo e incapaz de constituir uma ontologia
de tempos e espaços a partir dos quais seria possível obter orientação. O homem
manganelliano vive no caos do movimento permanente e não sente necessidade
de pontos fixos ou de tempos especiais. Não há realidade paradigmática com que
se conformar, caindo no vazio, em razão disso, qualquer pretensão à verdade.
Parece emblemática a centúria Quatro em que se narra a história de um
homem que havia descoberto a prova irrefutável da existência de Deus, mas,
depois de sair de casa para ocupar-se com os afazeres do cotidiano, percebe que
esqueceu partes da exata formulação da demonstração. Ainda que da
argumentação resultasse algo inatacável e “indiscutivelmente verdadeiro”, a
verdade – ou a descoberta de Deus – estava irremediavelmente perdida já que era
“impossível de se fixar numa fórmula inesquecível”.
Na impossibilidade de legitimação de qualquer verdade, postula-se a
“fundamental inexatidão do universo”. Nada havendo além de acordos provisórios
e desconfiáveis, lugares e tempos que se pretendam absolutos não podem ser
senão “uma estação de trânsito para o nada”. Incapaz de oferecer a orientação e a
estabilidade prometidas, o espaço sagrado pode ser substituído por qualquer
outro, como se narra no conto Oitenta, em que um guardião de banheiros públicos
considera seu mictório como “uma igreja e a si próprio oficiante”. A
autoconsciência produzida no banheiro não encontraria paralelo em nenhuma
igreja, pois ali o homem não pode mentir ou deixar de se reconhecer “criatura,
trânsito de alimentos, perecedouro”. Ao contrário, o lugar que se propunha
sagrado – forte, significativo, “realmente existente”, revelador de uma “realidade
absoluta”, como definido por Eliade − é apresentado como falso e enganador.
As centúrias manganellianas desenham uma crise da noção de sagrado.
Este cede seu lugar a marcos imanentes, provisórios e substituíveis. Não há
princípio orientador nem legitimação extrínseca para que se postule a verdade;
nada há que se possa pretender estável pondo-se fora das regras da linguagem e
226
do discurso que tudo permeia e tudo contamina com sua contingência e
relatividade. Nem por isso os personagens manganellianos aspiram a novas
tábuas de valores que recoloquem o desejo de uma existência dotada de sentido.
Em suma, Centúria e Lavoura arcaica apresentam diferentes maneiras
de vivência do sagrado que parecem coexistir atualmente. Centúria apresenta um
momento em que o sagrado não é mais postulado senão como definitivamente
perdido e impossível de ser resgatado sem o recurso à falsificação, à mentira e à
enganação. Nada há que possa se colocar fora das contingências cotidianas. Não
há realidade sem a cicatriz indelével da linguagem. Não há verdade que escape à
arbitrariedade do discurso.
Distintamente, em Lavoura arcaica, o domínio paterno parece coincidir
com a forma como o sagrado foi tradicionalmente entendido, com sua pretensão
de universalidade e necessidade, mas no conflito entre André e Iohána, o sagrado
deslocou-se do centro, cedendo esse lugar para o indivíduo. Não são mais os
princípios decididos heteronomamente, mas cada qual nomeia para si o que deve
ou não ser tomado como valor. Ao invés do solilóquio e do monismo que
preconizam a sacralidade da fazenda, da casa, da mesa, da família, André
contrapõe a afirmação de que são “também coisas do direito divino, coisas santas
os muros e as portas da cidade”. É, assim, reposto o sagrado, mas agora
revestido de relatividade.
Resta saber se esse sagrado – estilhaçado e despojado de suas
referências ontológicas em semelhantes noções – não representa a dissolução de
si mesmo.
227
A VIRTUOSA GRAÇA DA
REFLEXÃO PELA HUMORÍSTICA
GRAÇA DA CONTESTAÇÃO:
MOACYR SCLIAR E SEUS
PROFETAS
228
A VIRTUOSA GRAÇA DA REFLEXÃO PELA
HUMORÍSTICA GRAÇA DA CONTESTAÇÃO: MOACYR SCLIAR E
SEUS PROFETAS
229
c) são a ficcionalidade e o humor empregados na estrutura que
possibilitam a reflexão séria do tema religioso.
230
Benjamim “[...] era considerado meio louco [...]”, ao passo em que, na frase
posterior, “[...] a ninguém ocorreu ligar a expressão com a profecia de Ezequiel
[...]”. Sua incompreensão, inclusive, perdura até o final do conto, pois “[...] ninguém
o compreendia, nem mesmo o jovem psiquiatra que o tratava [...]”. Ou seja, a
loucura de Benjamim – que o leva ao hospício – se deve, em grande parte, à não
reflexão dos outros sobre seu problema.
O não questionamento é explorado, porém, não apenas como status
quo das personagens, mas também como pano de fundo para Scliar lançar, já no
início do conto, um dogma para ser debatido: a possessão espiritual como obra
demoníaca.
Além da voz rouca, das falas em hebraico que ninguém entende – e
cuja língua Benjamim não aprendera - o autor reforça, na relação conflituosa entre
Benjamim e os profetas ao longo da narrativa, a condição de possessão espiritual.
Para ilustrar cito duas passagens:
188
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. O Diabo no imaginário cristão. Bauru, SP, EDUSC,
2002.
231
No conto, entretanto, são profetas e não demônios que possuem o
corpo de Benjamim. E não apenas em uma língua a qual este não havia aprendido
(cois´dudêmo?), mas principalmente por comunicar-se em hebraico, a língua
falada por profetas bíblicos, utilizada na própria composição da Bíblia e vista
dentro do judaísmo como língua sagrada189, ou seja, Scliar utiliza o sagrado para
realçar o diabólico.
Talvez uma ironia do autor – afinal a possessão dantes diabólica
poderia ser compreendida agora (pelo possuído e pelo leitor) como uma
convocação divina. Ou teria Scliar, por exemplo, a intenção de mostrar que o
caráter diabólico da possessão pode estar relacionado ao autoritarismo do
possuidor perante o possuído - que não recebe nenhum fax ou sonho prévio, é
possuído e pronto – e que a palavra divina poderia sim ser diabólica enquanto
autoritária e opressiva?
Eis um questionamento cujo alento se encontra no próprio conto,
quando se percebe que o inferno de Benjamim está em ser possuído. E, para que
não restem dúvidas sobre o que o chamado divino representa para o protagonista,
lembremos quando ele “agarrou a mão da mulher: por que não posso ser como os
outros, Paulina? Por que não posso levar uma vida normal?” (p. 203). O próprio
Benjamim confessa: “O que eu queria era me livrar destes profetas.” (p. 206).
Não obstante, a preferência divina de possuir ao invés de revelar
(normalmente ocorre a revelação aos profetas bíblicos), talvez queira assegurar a
Deus o repasse de Sua palavra, o que nos mostra com humor que, para
Benjamim, o dogma do “livre-arbítrio” resume-se em optar ou não por repassar a
palavra de Deus, desde que a repasse.
Irônico sim. Tanto quanto o episódio em que Benjamim, ao ir para o
hospício, encontra-se com outros “loucos”:
189
REEBER, Michel. Religião: termos, conceitos e idéias. Trad. Luiz C. M. Guerra. Rio de Janeiro,
Ediouro, 2002, p. 107.
232
longos cabelos parecia tranqüilo – ele não estava possesso, ele era
Jesus Cristo.” (p. 205)
233
incoerência – uma inversão de valoração dos problemas – me parece proposital,
com o intuito de realçar justamente o lembrar-se de que Jó não era profeta.
Uma certeza explicitada por um recurso de inversão não poderia passar
impune: se Benjamim tivesse lido o Corão (a bíblia muçulmana), provavelmente
suspiraria de angústia, não de alívio, haja vista que, no Corão, Jó é profeta sim190.
O que nos convida a refletir, mais uma vez, sobre a necessidade de se repensar
certezas, dogmas e demais verdades. Religiosas ou não, aliás.
O caráter diabólico da possessão divina, a serenidade pela ignorância
de si mesmo, a fala individualista sobre o dogma da unicidade e mesmo a
preocupação com Jó (ao invés das úlceras) representam uma estratégia de
inversão, recurso analisado pelo teólogo alemão Karl-Josef Kuschel em Os
Escritores e as Escrituras191 ao estudar o poema Incidente Lamentável de Bertold
Brecht, onde
chamar o leitor para a reflexão da religião, não para seu desmascaramento. Afinal,
não seria a religião algo a ser desmascarado, mas repensado sempre que
190
Ibid, p. 50 e 205.
191
KUSCHEL, Karl-Josef. Os Escritores e as Escrituras. Trad. Paulo Soethe. São Paulo, Loyola,
1999, p. 21.
192
Trata-se do “Deus festejado”, amigo de Brecht que sobe em um palco para fazer um
pronunciamento, conforme narrado no poema e analisado por Kuschel em Os Escritores e as
Escrituras.
234
filosóficos, enfim, existenciais, são submetidos, a começar nas perguntas caladas
193
SCLIAR, Moacyr. A Condição Judaica, 1985.
235
ainda que este o esclareça da própria ignorância. Muito superior a um riso
interminável que nos "livra" de pensar.
Com a explanação até aqui organizada, percebe-se na ficção e no
humor o solo propício para debater o discurso religioso, e não apenas como
característica do estilo de Scliar. A ficção permite trabalhar o caráter irreal que o
discurso religioso lança sobre nossa existência (anjos, espíritos, deuses,
demônios, planos espirituais etc).
O humor, por sua vez, quebra a prepotência do dogma estabelecido e,
ao invés de confrontar o que era imposto como certo, permite a graça da reflexão
sobre algo possível. Ou seja, a religiosa, virtuosa graça da reflexão se dá pela
graça (humorística) da contestação. Talvez por isso o escritor Umberto Eco nos
apresente, de forma tão saborosa, o poder da comédia, do humor, no livro O nome
da rosa194.
O humor e a contestação presentes (ambos como meio-sorriso, não
como gargalhada) no conto Os Profetas de Benjamim Bok apresentam, a meu ver,
um esboço de resposta a uma das perguntas levantadas pela Teopoética: “Cuáles
serían los criterios estilísticos para um discurso teológico dentro de la Literatura
del siglo XX?”195.
Pensei em analisar também as gargalhadas do conto, ou seja, as
relações visíveis entre esse texto de Scliar e as Sagradas Escrituras, afinal a
maioria dos personagens apresenta nomes bíblicos (principalmente de profetas do
Antigo Testamento) e há várias citações diretas e indiretas de passagens bíblicas.
Preferi, porém, explorar o meio-sorriso, aquilo que não se dá, mas se permite
descobrir. Questão de escolha. Afinal, o artigo necessitava de um rumo.
Antes de encerrar o artigo, gostaria de salientar – como curiosidade – as
constantes interrogações de amigos e familiares sobre a real função de meu
estudo ou, em outras palavras, “pra que serve isso, afinal?”. Tal questionamento
fez-me lembrar de reflexões minhas recentes, sobre a angústia que por vezes
povoa meu espírito quanto à utilidade com a qual precisaria preencher trabalhos
194
ECO, Umberto. O nome da Rosa. Trad. Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade, 34ª
edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
195
FERRAZ, Salma. Teopoética: los estúdios literários sobre Dios, 2005, p. 15.
236
acadêmicos, diálogos cotidianos, planejamentos de carreira, estudos e mesmo um
poema que eu escreva ou sonho que suspire.
Em resposta aos outros – e a mim mesmo – encerro com considerações
do pensador alemão Friedrich Schiller em A Educação Estética do Homem196 , no
qual Schiller refere-se - já no século XVIII - à liberdade de que o espírito humano
necessita, necessidade tão atual quanto historicamente renovada:
196
SCHILLER, Friedrich. A Educação Estética do Homem. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki.
São Paulo, Iluminuras, 1989.
237
O DESERTO DE DEUS E O
SERTÃO DOS HOMENS:
GUIMARÃES ROSA E O
DESERTO DO SINAI
238
O DESERTO DE DEUS E O SERTÃO DOS HOMENS: GUIMARÃES
ROSA E O DESERTO DO SINAI
197
KAUFMANN, Yehezkel. A Religião de Deus. São Paulo. Editora Perspectiva. 1989. p. 231.
198
BOLLE, Willi. Grandesertão.Br. São Paulo. Duas Cidades – Editora 34. 2004. p. 154.
199
MARTINS, Wilson. “Guimarães Rosa na sala de aula”. In. DANIEL. Mary. L. João Guimarães
Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio. 1968.
200
FLUSSER, Vilém. Guimarães Rosa e a geografia. Kriterion: Revista de Filosofia. Belo
Horizonte: UFMG, v.10, n.3, p. 275-278, 1969.
239
uma similaridade entre dois episódios centrais nas duas historias: quando Moisés
recebe as tábuas da lei e quando Riobaldo está prestes a atravessar o referido
Liso. Na passagem bíblica, Iahweh, do alto de uma montanha, diz a Moisés para
que fixe os limites de onde o povo não poderia passar, pois seria firmada uma
aliança entre Deus e o povo hebreu. Moisés sobe sozinho e recebe então o que
seria conhecido como “decálogo”, base da “Aliança Mosaica”, a saber os
mandamentos que expressavam a vontade de Deus, os juízos, que regulariam a
vida cotidiana e as ordenanças, que regulariam a vida religiosa. Estes preparativos
eram necessários para um projeto ainda mais ambicioso: a conquista da terra
prometida e a adoração de um único Deus, âmago do decálogo e base da aliança.
Nesta travessia pelo deserto, o povo se prepararia para uma nova vida, baseada
agora num pacto com Deus:
201
BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2ª ed., São Paulo, Paulinas, 1985.
202
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 437.
240
em precisão de fazer. E vi um Itambé de pedra muito lisa; subi lá.
Mandei os homens ficassem em baixo, eles outros esperavam... tinham
me dado em mão o brinquedo do mundo (GSV. p. 455).
Iahweh: aquilo que foi, é e será Nonada: não ao nada, não há nada e no
nada.
Este Deus é aquele que cria Este ser seria aquilo que aniquila
203
MARTINS. 1968, p. XXX.
204
Baseado em FLUSSER, p. 277.
241
Portugal, não “a noção de deserto (aridez, secura, esterilidade) mas sim... de
interior, de distante da costa”.205 Outra possibilidade seria, de que, de De-Sertum,
(o que sai da fileira, o que deserta), surgiria desertanum, para “indicar o lugar
desconhecido para onde ia o desertor”.206 Ainda segundo VICENTINI, daí surgiria
certum, “vocábulo que aponta sempre para um sítio oposto e distante de quem
está falando”. Seja como for, diferenciados conceitualmente, o sertão e o deserto
formam uma das mais impressionantes representações construídas, “que
condensa uma pluralidade de significados, um entremeado de imagens fugidias e
associações apenas entrevistas”207 .
A travessia do Êxodo pode ser considerada como marco inicial da
“religião israelita”. É com Moisés que “aparece o contraste entre a fé de Iahweh e
o paganismo”,208 numa ¨revolução monoteísta”, base de toda a teologia e de toda
metafísica da civilização ocidental. O Êxodo foi “um ato se separação e de
resistências políticas; mas também foi, e acima de tudo, um ato religioso”,209
responsável pela transformação de um povo nômade e tribal na congregação dos
“Filhos de Deus”, escolhidos para se tornarem uma “Nação eleita”, numa
“Assembléia”, que mais tarde resultaria na Eclésia (assembléia) dos Cristãos.
A travessia que Riobaldo realiza pelo sertão é “humana,
demasiadamente humana”, sendo, tanto exterior (pelas estradas da vida terrena)
quanto interior, (pelo “roteiro de Deus”), percorrendo sempre o “miolo mal do
sertão” (GSV, p. 40), que se transmuta em uma grande metáfora geográfica.
Retirando fragmentos desta Geografia real, o autor desloca, desmonta e
recompõe livremente a sua travessia neste sertão, que metamorfizado, ao mesmo
tempo em que “está dentro de nós”, é também “do tamanho do mundo”. Este
sertão é o terreno da eternidade e da solidão, um lugar da memória, com
existência simbólica, atemporal e ageográfica, onde se fala, segundo o próprio
205
GALVÂO. Walnice N. O Império de Belo Monte. São Paulo. Editora Fundação Perseu Abramo.
2001.
206
VICENTINI, Albertina. O sertão e a literatura. Sociedade e Cultura. Goiânia: Editora UFG. N. 1,
v. 1, p. 41-54, jan./jun. 1998.
207
SENA, Custódia Selma. A categoria Sertão: um exercício de imaginação antropológica.
Sociedade e Cultura. Goiânia: Editora UFG. N. 1, v. 1, p. 18-28, jan./jun. 1998.
208
KAUFMANN, Yehezkel. A Religião de Deus. São Paulo. Editora Perspectiva. 1989. p. 222.
209
JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de janeiro. Editora Imago. 1995. p. 41.
242
Rosa, a língua de Goethe, Dostoeviski e Flaubert. BOLLE210 (1998) afirma que
esta linguagem inventada do Grande Sertão reapresentaria a construção da
cidadania através da energia da linguagem.
O sertão de Riobaldo seria o lugar do estranho, da perplexidade, do
demoníaco, do sagrado, ou seja, o lugar próprio do ser humano. O deserto de
Moisés seria o lugar da redenção, da ordem no caos, da manifestação de Deus.
Os dois são locais de travessias dantescas, no sentido existencial, onde o ser
humano, como Jó é posto à prova.
Para BOLLE, (2002)211, o sertão é uma forma de pensamento, que como
um médium dissolvente, possibilita, a transformação de uma imagem que se
configura como uma imagem arcaica, no sentido de que se trata de camadas
míticas e mitoligizantes do texto em uma imagem dialética ou histórica, dotada de
teor político e histórico. Como um intérprete dos sonhos coletivos, ele traduziria as
imagens arcaicas em dialéticas, tornando-as legíveis enquanto informações
históricas. Seguramente pode-se fazer esta mesma afirmação para aquela
travessia do Deserto do Sinai e, ainda, com mais força, constatada a
preponderância de imagens e arquétipos quer povoam toda a imaginação
ocidental. A própria idéia de que no Monte Sinai se celebrou “un pacto religioso...
entre los hebreos y Yavé... su vida como nación estaba colocada…bajo la
autoridad de Yavé, y los cimientos de la unidad nacional de establecieron”,212 é a
base pela qual toda a cristandade se assentou, com seus conceitos de “Eclésia”,
“monoteísmo” “redenção” etc. O tema do deserto faz parte de uma tradição
cultural milenar, sendo visto como o local onde sagrado e o profano se digladiam.
Também é o local do silêncio e da reflexão permanente.
O deserto é um local rico em simbologias, um local freqüentado pelos
animais (reais e míticos) que assombram os homens que se atrevem a desafiá-lo.
Por isso o deserto é um local de refúgio e de expiação e sua travessia tende,
quase sempre, a metamorfoses profundas naqueles que se aventuram por ele. O
210
BOLLE, Willi. O pacto em Grande Sertão: Veredas- esoterismo ou lei fundadora. Revista USP.
São Paulo, n. 36, p.26-45, Dezembro-Fevereiro, 1997-1998
211
BOLLE, Willi. Representação do povo e invenção de linguagem em grande Sertão: Veredas.
SCRIPTA. Belo Horizonte, v. 5 n. 10, p. 352-366, 1º sem. 2002.
212
RATTEY, Beatrice. Los Hebreos. México. Fondo de Cultura Economica. 1992. p. 39.
243
sertão de Guimarães Rosa se aproxima deste deserto e suas metáforas. Em sua
famosa entrevista a Günter Lorenz, Guimarães Rosa se define como sendo “um
homem do sertão, fabulista por natureza”, um sertão que seria o “terreno da
eternidade e da solidão, onde o interior e o exterior já não podem ser separados”,
onde “o homem é o eu que ainda não encontrou o tu”.213
Tanto no Deserto do Sinai como no sertão de Riobaldo a imensidão da
solidão das paisagens infinitas se encontra e se confunde com solidão do ser
abandonado e assombrado pelos deuses e demônios internos. BACHELARD,
falando sobre a imensidão destes dois espaços afirma que “é por sua imensidão
que dois espaços – o espaço da intimidade e o espaço do mundo – tornam-se
consoantes. Quando a grande solidão do homem se aprofunda, as duas solidões
se tocam se confundem”214. Riobaldo afirma que o sertão que está em toda parte
é também “sem lugar”, mas ao mesmo tempo está dentro da gente: “sertão: estes
seus vazios”. No sertão de Riobaldo estas duas grandes solidões realmente se
confundem. Este sertão é o espaço do deserto do homem humano. Talvez por isto
os naturalistas já falassem da solidão do sertão.
De fato, alguns dos naturalistas viajantes que aqui passaram se
impressionaram com o sertão de Riobaldo, como, por exemplo, o repórter francês
FERDINAND DENIS, o zoólogo J. B. Von SPIX e o botânico C. F. P. MARTIUS
que deixaram relatos preciosos sobre a solidão e a complexidade dos sertões das
Gerais. DENIS, que aqui viveu entre 1816 e 1831 afirma que, esta região, o sertão
de Minas Gerais, apresenta “tão vastas solidões” e “pobres aldeias... nenhuma
instrução... numa palavra, uma profunda indiferença por tudo que existe além de
sua solidão”.215 (DENIS 1980). SPIX E MARTIUS, que atravessaram o sertão
mineiro em 1818, falam perplexos de uma região que ora apresenta um sol
causticante que já havia ressecado o verde viçoso da vegetação, com uma
atmosfera quente, leve e seca, e que ora apresenta “uma das mais bonitas regiões
213
Citado pelo próprio Guimarães Rosa em sua famosa entrevista a Günter Lorenz, em Rosa, João
Guimarães, Ficção Completa em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
214
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p 124
215
DENIS, Fedinand. Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 384.
244
que conhecemos no Brasil”216 (SPIX e MARTIUS, 1976), um buritizal, com uma
“linda mata de palmeira”, em pleno deserto. “O Sertão é o sertão”, afinal, o “sertão:
estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa ainda encontra”.
Estas imagens fugidias e entrelaçadas das travessias desérticas são
difíceis de se compreender, pois escondem em si “as formas do falso”, já que uma
das representações simbólicas do deserto é a de exprimir “metaforicamente a
passagem de uma situação de desgraça para uma situação de felicidade”.217
Assim foi com o Moisés guiando seu povo até a terra prometida, assim foi com
Cristo no deserto da Judéia quando foi tentado pelo diabo e assim foi com
Riobaldo pactário das Gerais.
216
SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil. 1817-1820. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, 1981, 3v. p.73.
217
GIRARD, Marc. Os Símbolos na Bíblia. São Paulo. Editora Paulus. 1997. p. 577.
245
assiste a morte de Diadorim dos seus amores e ainda perde sua alma para o
diabo. “Deus é paciência. O contrario, é o diabo” (GSV, p. 18). Deste segundo
pacto, nasce, segundo GALVÂO, a culpa, a de ter “vendido a alma ao diabo e
assim ter levado o amigo (Diadorim) à morte”.218 Numa aliança a culpa apontava
para uma redenção futura, mas trazia em si um livramento provisório. No pacto
dos sertões, o resultado é a angústia da culpa que atormenta. Sartreana, humana.
A primeira aliança é feita entre e para homens e deuses. O segundo pacto, o
sertanejo, é feito entre e para aqueles que após a longa travessia de descobrem
apenas “homens humanos”, afinal “o diabo não há! É o que eu digo, se for... existe
é homem humano. Travessia” (GSV, p. 624). Por isso o fogo é a marca do
primeiro pacto e o frio o do segundo. Se, São Tomas de Aquino é o intérprete do
primeiro, Nietzsche é o do segundo.
218
GALVÃO, Walnice N. As formas do falso. São Paulo. Editora Perspectiva. 1986. p. 132.
219
Citação retirada da Bíblia de Jerusalém, 1985, Livro de Hebreus, Capitulo X verso 1. (p. 2252)
220
CHAMPLIN. Norman Russel. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. 5ª ed.,
São Paulo, Milenium, 1985.
246
trata-se de um espaço que, ao mesmo tempo em que “está dentro de nós”, é
também “do tamanho do mundo”.
O resultado final, qualquer que seja a tentativa de se aprofundar nesta
geografia sertaneja, ainda sempre será de incompletude, da busca de um espaço
que está, ao mesmo tempo dentro da gente e em todo lugar. De um espaço, que
afinal, é a própria travessia de todos aqueles que são “homens humanos” nesta
perigosa travessia. Atravessar este sertão que, mais que um lugar abandonado, é
o lugar do ser abandonado, é como atravessar o deserto do Sinai bíblico. No
sertão também ocorre uma revelação, só que motivada agora por uma epifania
demoníaca, que, para Rosa seria apenas um pretexto para provocar uma nova
revelação do ser e “substituir a revelação cansada e profanada da tradição do
ocidente”.221
221
FLUSSER, Vilém. Guimarães Rosa e a geografia. Kriterion: Revista de Filosofia. Belo
Horizonte: UFMG, v.10, n.3, p. 275-278, 1969.
247
A VOZ RITUALIZADA DA NARRATIVA
ROSIANA
248
A VOZ RITUALIZIDA DA NARRATIVA ROSIANA
249
Três vezes chamarei, três pancadas lhe darei!...
A primeira, na testa, para que você lembre,
a segunda, no peito, para que você sofra,
a terceira, nos pés, para você caminhar...
Se estiver comendo, pare,
se estiver conversando, cale,
se estiver dormindo, tem de acordar...
A meia-noite já vem chegando,
e é hora boa para rezar.
Vou queimar pólvora, vou traçar o sino,
vou rezar as sete ave-marias retornadas,
e depois a reza brava de São Marcos e São Manso,
com um prato fundo cheio de cachaça
e uma faca espetada na mesa de jantar.
(MA pp.111/112)
226
Pode-se conferir também o breve ensaio, mas bem frutífero, de Jeane Mari Sant’Ana Spera,. “A
poesia em Magma em contos de Sagarana”. In: Seminário Internacional Guimarães Rosa: Veredas
de Rosa. Belo Horizonte: PUC Minas, CESPUC, 2000, pp.295/298
250
as particularidades, ao uso da mesma oração (“São Marcos”); do mesmo ritual
(“Corpo Fechado”); do mesmo objetivo (“Buriti”); do sobrenatural (“Campo Geral” e
Grande Sertão: veredas).
A leitura de LEONEL enfoca a auto-intertextualidade que parte dos
poemas de Magma para as narrativas de Sagarana; deste modo, a preocupação
da autora se constitui no processo de criação, mas não em lidar com esses
elementos que reiteram temas das narrativas. Tanto é que LEONEL (2000,
pp.198/199) expõe que:
251
móvel envolvente como o redemoinho, é a imagem-mor do certo
no incerto.
252
e musicalidade, compara-se o ritual de fechar o corpo ao próprio ato narrar de
Rosa. Assim, mais do que nomear ou se apossar dessas temáticas para suas
estórias, o autor de Grande sertão:veredas elabora narrativas em ritual, ou seja,
um jogo dramático e complexo que interpõe todas as peças enigmáticas no texto.
Elas são fragmentadas e colocadas para ocuparem um lugar no texto/ritual, como
se tudo entrasse para se constituir em um sortilégio ao longo do texto. Por isso, é
preciso compreender como cada artefato se articula com seus pares e adquire sua
função na narrativa, como se fosse um objeto mágico do ritual de feitiçaria, com
que o bruxo/autor e o leitor precisam lidar. Caso esse ritual (narrativa?) não se
componha de forma apropriada não se obterá o êxito necessário desejado, como
ocorre com, na estória contada pelo narrador de “São Marcos”, os meninos de
Calango-Frito e sua mandinga para com o professor:
... gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria
aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul
253
Eluard: ...“o peixe avança nágua, como um dedo numa luva” ...
Um ideal: precisão, micro-milimétrica.
(...) Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João
Condé, realizar é que são elas...): além dos estados líquidos e
sólidos, porque não tentar trabalhar a língua também em estado
gasoso?! (SA, p.07)
254
presença de todos. Prova disso, como todos do Calango-Frito, é o narrador de
“São Marcos”, que parecia não acreditar em feiticeiros, mas acabava por ser “o
pior de todos” (SA p.242), pois além de manter um arsenal de recursos contra
feitiço e intempéries do cotidiano, também oculta seu nome verdadeiro227 para
evitar possíveis bruxedos e decora a oração de São Marcos. Com Manuel Fulô de
“Corpo Fechado”, há de se pensar também que após um ritual de fechamento do
corpo, ele consegue vencer seu medo e enfrentar, com êxito, Targino, se tornando
o novo valentão de Laginha.
Não há apenas a necessidade da crendice dos atores envolvidos no
processo de magia. Para seu bom êxito, a bruxaria carece de se constituir de uma
complexidade de objetos, dos quais, como numa alquimia, o cerimonial deverá se
cercar, como, por exemplo, na mandinga dos meninos contra o professor; ou em
cerimonial mais elaborado, o fechamento do corpo de Manuel Fulô. Os artefatos
são expostos ao coletivo228, mas há a interdição da presença de estranhos ao rito.
Assim, a estória convoca seu leitor a depreender os componentes envolvidos no
ritual de feitiçaria e a interpretá-los, mas, ao mesmo tempo, também lhe nega o
direito de assisti-lo, mantendo seu poder mágico ao não narrar a cerimônia na sua
totalidade. De maneira que não é gratuita a omissão do ritual, mas a garantia de
sua sacralização, garantia essa também posta em dúvida, já que o feiticeiro surge
“cínico e sacerdotal”, ou retomando a fala irônica de Mário de ANDRADE (1963,
p.34) a respeito da cerimônia vivenciada: “mescla de sinceridade e charlatanice”.
No texto de Guimarães Rosa se lê:
227
Para outro exemplo, em “Corpo Fechado” o feiticeiro possui vários nomes: “Toniquinho das
Águas”; “Antonico das Pedras”; “Antonico das Águas”; “Antônio curandeiro-feiticeiro”; “Antonico
das Pedras-Águas”.
228
Como curiosidade etnográfica, vale mostrar que os objetos, ressaltados por Mário de ANDRADE
(1963, p.35) quando do seu ritual de fechamento, lembram os arrolados em “Corpo Fechado”: “A
mesa servia de altar, e sobre a toalha branca muito limpa estava a “princesa”, uma vasilha rasa,
que é uma espécie de ara do ritual. Ao lado dela se ajuntavam as marcas, objetos cerimoniais:
cachimbos, maracá pequenote de madeira, óleo, água-benta e “cauim”. O que chamam de cauim
às vezes é uma beberagem feita de jurema. Atualmente, não sei se por desagradável de beber ou
por dificuldade de confecção a bebida de jurema é frequentissimamente substituída pela aguinha
santa que passarinho não bebe”.
255
e sacerdotal, requisitando agulha-e-linha, um prato fundo,
cachaça e uma lata com brasas. E Manuel Fulô reapareceu
também, muito mais amarelo ao povo Veiga, funebremente:
— Podem entregar a minha Beija-Fulô p’ra o seu Toniqinho das
Águas, que ela agora é dele...
Então eu me sobressaltei, e umas mulheres choramingaram,
porque o dito equivalia a um perfeito legado testamentário. Mas
os dois donos da Beija-Fulô tornaram a fechar-se no quarto, com
o prato fundo, as brasas, a agulha-e-linha e a cachaça, e ainda
outros aviamentos. (SA p.297/98)
256
‘ano da fumaça’, liturgista ilegal e orixá-pai de todos os metapsíquicos por-perto”
(SA p.247).
Além dos qualitativos atribuídos, o seu sobrenome (alcunha?) corrobora
ainda mais seu estado e profissão. Mangolô está registrado no “Dicionário musical
brasileiro” de Mário de Andrade (1989 p.301) como “dança da família da mana-
chica”; e no Dicionário AURÉLIO (1990), como de provável origem africana e
significa “feijão-de-porco”. Ainda consta: mangalaça e mangalaço,
respectivamente, 1) “vadiagem, mandrice, vagabundagem” e 2) “vagabundo,
vadio, tunante, biltre e patife”. Também se precisa fazer referência ao termo
tanglomanglo que significa; 1) “malefícios atribuídos a feitiços ou feiticeiros,
bruxedo, sortilégio”; 2) “azar; infelicidade” 3) “caiporismo”; tendo como variante:
tangolomango, e salientar que tango (de origem africana) significa “pequeno
instrumento e dança executada por esse instrumento”. Deve-se também explorar o
verbo mangolar ou mangonar: “ter mangona, vadiar, preguiçar, mangonear”.
Bariani ORTÊNCIO (1983, p.263), em seu Dicionário do Brasil central, registra os
termos: 1) mangano como “feiticeiro poderoso, respeitado e considerado como
gente de outro mundo, que possuía poder mágico e desafiava o céu, a terra, o ar,
até o sol”; 2) mangalaço como “sujeito sem préstimo, ordinário” e 3) mangongo
como “sujeito enjoado, antipático”. Por fim, vale anunciar mangoça ou mangofa:
“zombaria” e que o verbo mangar significa “rir, ridicularizar”. Ora, desse
arrolamento dos inúmeros significados que se completam, num ritual das palavras,
percebe-se bem a chacota de “José/João” frente a Mangolô:
— Ó Mangolô!
— Senh’us’Cristo, Sinhô!
— Pensei que você era uma cabiúna de queimada...
— Isso é graça de Sinhô...
—... Com um balaio de rama de mocó, por cima!...
— Ixe!
— Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe?
“Primeiro: todo negro é cachaceiro...”
— Oi, oi!...
— “Segundo: todo negro é vagabundo.”
— Virgem!
257
— “Terceiro: todo negro é feiticeiro...”229 (...)
— Ó Mangolô!: “Negro na festa, pau na testa!...” (SA p.245)
229
- Em Grande sertão: veredas (2001, p.554), se lê que “Ara, para obrar bom feitiço, que valha,
diz-se que só mesmo negra, ou negro”
258
leitor fica interditado — como no cerimonial de fechamento do corpo — de alguns
elementos do ritual da narrativa, os quais ele não percebe por inteiro, mas que vão
sendo anunciados aos poucos no ato da leitura.
A linguagem estará pronta para instituir o real — como no encanto da
cegueira preparada pelo feiticeiro do Calango-Frito e nas palavras do Targino ao
convidar Manuel Fulô ao duelo pela Maria das Dores — como também para
desrealizá-lo pela magia da pronúncia da oração de São Marcos e Santo Amâncio
e do ritual de fechamento do corpo. Nos dois casos, a palavra será veneno e
remédio, causa e conseqüência do movimento das personagens. Até porque,
como se pode ver, tanto João/José como Manuel Fulô fazem discursos de
heroísmo frente a situações que ainda não se cumpriram ou que acreditassem
possíveis. A ambigüidade desses discursos pode ser vista nos termos de DERRIDA
(1991, p.15) em A farmácia de Platão:
São falas que antecedem ao ponto principal da estória, mas que já lhe
realizam de alguma forma o que — pela palavra proferida — irá também instaurar
a sua cura. O mesmo se poderia falar dos títulos, que, a priori, parecem não dizer
nada ou pouca coisa, mas fazem parte central da resolução (veneno/remédio) da
querela entre as personagens. Em outras palavras, a solução das intrigas que
foram instauradas acontece pela via de rituais que se manifestam desde o início
nos títulos dos contos: fechar corpo e a oração brava.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
ANDRADE, Mário de. Música de feitiçaria no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1963.
ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Coordenações Oneyda Alvarenga e
Flávia C. Toni. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: Ministério da Cultura; São Paulo: EDUSP,
1989.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1988.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.
259
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: 1990.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “O certo no incerto: o pactário”. In: COUTINHO, Eduardo F.
(Org.), Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
LEONEL, Maria Célia. Magma e gênese da obra. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
MARTINS, Nilce Santa’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 2ª ed., São Paulo: EDUSP,
2001.
ORTÊNCIO, Waldomiro Bariani. Dicionário do Brasil Central. São Paulo: Ática, 1983.
RAMA, Angel. Os primeiros contos de dez mestres da narrativa latino-americana. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
RAMOS, Arthur. A aculturação negra no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1942.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Record/Altaya, s/d.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
ROSA, João Guimarães. Magma. Desenhos de Poty. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998.
ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no pinhém. 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001a.
SPERA, Jeane Mari Sant’Ana. “A poesia em Magma em contos de Sagarana”. In:
Seminário Internacional Guimarães Rosa: Veredas de Rosa I (1998: Belo Horizonte). Belo
Horizonte: PUC Minas, CESPUC, 2000, pp.295/298.
UTÉZA, Francis & RASSIER, Luciana Wrege. Sagarana: Marcos São Marcos. In: Nonada:
Letras em revista. Nº 01, Ano 01, Porto Alegre: Faculdades Integradas do Instituto Ritter
dos Reis, 1997.
260
BIPOLARIDADE E
ANTAGONISMOS: O SAGRADO
E O PROFANO EM O PAGADOR
DE PROMESSAS
261
BIPOLARIDADE E ANTAGONISMOS: O SAGRADO E O
PROFANO EM O PAGADOR DE PROMESSAS
262
encadeamento rigoroso das cenas conduz ao desfecho trágico. A peça tem sua
ação ambientada em Salvador e marca fatos de uma época atual. Apresenta-se
dividida em três atos, sendo os dois primeiros atos divididos em dois quadros cada
um. Semelhante à tragédia antiga, a ação desenrola-se do lado de fora, em
espaço aberto, o que nos remete a pensar, que no caso do ambiente da Grécia
antiga, tal peça se passaria em frente a um palácio, índice do poder dos reis. Na
peça do dramaturgo brasileiro, a ação dramática desenrola-se em frente à igreja,
remetendo já para a tipificação do conflito unificador da peça. No primeiro ato tem-
se, então, a descrição do cenário.
Padre - Você fez mal meu filho. Essas rezas são orações do demo.
Zé - Do demo, não senhor.
Padre - Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo
homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus. E
230
não sabe se caminha para o céu ou para o inferno. (p. 62)
230
Todas as citações ilustrativas do texto dramatúrgico utilizadas no presente artigo referem-se a
GOMES, Dias. O Pagador de Promessas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
263
Na peça, os contrastes evoluem, no sentido de adensar a tensão entre
outros aspectos contrastantes, como à luta entre os valores do espaço urbano e
do espaço rural e arcaico que caracteriza o perfil do herói Zé-do-Burro.
264
A linguagem da peça, diferente do tom solene da linguagem da tragédia
antiga, faz transpirar a vida popular rica em regionalismos, expandindo-se num
diálogo espontâneo e comunicativo, de grande carga géstica e eficácia cênica.
231
HEGEL, G. W. Friedrich. Estética. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Nova Fronteira, 1999, p.
175.
265
simpatia sobre o indivíduo isolado em face da poderosa organização da igreja,
munida de todos os argumentos e de toda a lucidez racional. Mesmo buscando a
conciliação, ela não parece fazer jus às expectativas de sabedoria e tolerância, em
face do indivíduo simples e frágil, no seu desespero solitário e na sua fé ingênua.
232
MAGALDI, S. Aspectos da dramaturgia moderna. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 78.
266
choque com todos os habitantes da cidade: senhoras religiosas, prostitutas,
rufiões, jornalistas, negociantes interesseiros, delegados e padres, cujas falas ele
não consegue compreender. Zé-do-Burro não sabe raciocinar nos termos
universais e abstratos da cidade, agindo com o sentimento e com a intuição. A
personagem vive num estágio mágico-mítico.
233
BARTHES, R. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. São Paulo:
Vozes, 1973, p. 28.
234
OLIVEIRA, A. P. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo
romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 115.
267
âmbito de uma economia religiosa que reside nas práticas ritualísticas do
catolicismo popular:
235
OLIVEIRA, A. P. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo
romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 117.
268
promessa de Zé-do-Burro inscreve-se no chamado modo contratual, pois a idéia
de um possível castigo, no caso de um não cumprimento, transferiu-se para o
imaginário desse homem religioso.
A peça não remete apenas para uma forma de violência, ou para uma
região em particular. A personagem de padre Olavo que aparece no texto não é
um símbolo de intolerância religiosa, mas de intolerância universal. A
caracterização desta personagem pode travestir-se de outros significados.
236
GOMES, D. Dias Gomes: apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 220.
269
Mas, no contexto histórico e estético do mundo contemporâneo é perfeitamente
possível, vindo a instaurar diversas interpretações, ou pelo menos relações de
contradições.
237
T. S. Eliot. Ensaios de doutrina crítica. Trad. Fernando de Mello Moser. Lisboa: Guimarães
Editores, 1997, p. 68.
270
O valor totêmico talvez possa ser visto como um elemento que
intensifica a (des)personificação da personagem ao minimizar a sua condição
humana. A carga totêmica que sustenta o nome Zé-do-Burro cinge-o de valores
que o aproximam de um vínculo misterioso, que na acepção de Mirceia Eliade
denomina-se hierofania,238 ou seja, o ato da manifestação do sagrado; a
manifestação de algo de “ordem diferente”, de uma realidade que não pertence ao
mundo real, em objetos que fazem parte integrante do mundo “natural”, ‘profano”.
Mirceia Eliade assevera que o homem ocidental moderno experimenta um certo
239
mal-estar diante de formas de manifestações do sagrado. Ao contrário do
homem moderno, o homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o
mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos sagrados. Conforme Eliade
essa tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de
todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última
análise, à realidade por excelência. Dessa forma, parece plausível observar que a
presença do totem, ao suprimir o nome da personagem, ou antes, reduzi-la a um
processo de zoomorfização, presta-se à negação da personagem enquanto ser
histórico capaz de ser ouvido, entendido na sua fé ou se fazer entender como
homem religioso, constituindo-se um dos agôns responsáveis pelo fim trágico do
herói.
238
ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 30.
239
ELIADE, M. Op. cit., p. 18.
271
AS INTERFACES ESPIRITUAIS NA
OBRA DE MANOEL DE BARROS
272
AS INTERFACES ESPIRITUAIS NA OBRA DE MANOEL DE BARROS
240
SOUZA, dissertação de mestrado, texto não estabelecido, UFMS, 2004.
241
Disponível em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/castel09.htm> .Acesso em 30 de julho de
2003.
273
Nem outra –
A fim de dizer todas –
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
242
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.
[...]
O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-
ninguém. Ele parece com Bernardo.
[...]
Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com ár-
vore. As plantas querem o corpo dele para crescer por
sobre. Passarinho já faz poleiro na sua cabeça.244
[...]
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.245
242
BARROS, 1989, pp. 60,61.
243
BARROS, 1989, p. 20.
244
BARROS, 1996, pp.29, 31.
245
BARROS, 1993, p. 97.
274
iniciação, mas também porque esse ‘conhecimento’ é acompanhado de um poder
mágico religioso”.246.
246
ELIADE, 1993, pp. 18-19.
247
Baralho de cartas do Tarô, consultar as pesquisas de Stuart R. Kaplan em Tarô clássico. São
Paulo: Edit. Pensamento, 1995. De acordo com Gebelin, as vinte e duas cartas dos Arcanos
Maiores são um antigo livro egípcio, o ‘Livro de Thoth’ que fora salvo das ruínas dos templos
egípcios. “Thot” era na cultura egípcia, deus Mercúrio, inventor mítico da linguagem, dos
hieróglifos, ou letras. Assim, todos os deuses são letras, todas as letras são idéias, todas as idéias
são números e todos os números são signos perfeitos.
248
BARROS, 1985.
275
Analisando-se os aspectos numerológicos e iconográficos dos
conteúdos emitidos pelo eu narrador, notamos a simbologia do naipe 9: O Ermitão,
e nas dez etapas citadas, o naipe 10, A Roda da Fortuna. Desse modo,
necessitamos inserir alguns dados referentes à Cabala Judaica para que
possamos retirar maior efeito contrastivo da poética de Barros.
249
O conhecimento cabalístico é um sistema de filosofia religiosa que trata das concepções
místicas de Deus, afirma que a criação foi realizada através da emanação e da taumaturgia. A
teosofia da Cabala segue ao longo das linhas panteístas, a doutrina que equipara Deus às forças e
às leis do universo. Há dois livros que tratam das doutrinas da Cabala: O Sefer Tezira e o Sohar
(KAPLAN, 1995, pp. 51,52).
250
A Roda da Fortuna é um emblema iconográfico que dimensiona significâncias interpretativas em
volta de um “círculo” – que confere-se à simbologia da eternidade perdurante; um movimento
contínuo em direção ao progresso e à mudança (KAPLAN, 1995, pp. 98-100).
276
pela “Ordem dos frades menores” fundada por São Francisco de Assis.251. Em
alguns versos, o poeta faz alusão ao santo católico, o que pode ser constatado
capítulo dois de nossa dissertação de mestrado, mais precisamente no subtítulo
“Bernardo e o Tratado das Metamorfoses”, quando analisamos os contrastes
deste personagem com os conteúdos poéticos voltados aos elementos telúricos e
à natureza.
251
São Francisco de Assis é, certamente, o santo que teve maior comunicação, carinho, atenção,
amor para com todas as criaturas. Daí porque é o “padroeiro da ecologia”. Francisco foi fascinado
pela criação. [...] Era tamanha a sensibilidade e a delicadeza de Francisco que ele andava com
respeito em cima das pedras [...]. Recolhia do caminho os vermezinhos, para que não fossem
pisados. [...] Sabe-se que Francisco realmente costumava conversar com os animais.
(HARTMANN, 2003, pp. 32, 64).
277
Faz comunhão com o começo do verbo.252
252
BARROS, 2000, p. 25.
253
BARROS, 1996, p. 39 .
254
BARROS, 1998, P. 21.
255
As Sagradas Escrituras, sobre o mistério da Anunciação: Eis que um anjo lhe apareceu em
sonho e disse: “José [...], não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem
do Espírito Santo. Ela dará a luz um filho a quem porão nome de Jesus” (Bíblia. Mat. 1, 20-21).
256
BARROS, 1998, P.41.
278
formas completamente desalojadas dos textos precursores. Verificamos nos
versos os resquícios de trechos da Missa Católica, cuja simbologia inscreve-se no
ritual da comunhão –, quando o pão e o vinho recebem a ação consagradora do
mistério da fé, uma transmutadora espiritualização que se materializa no corpo e
no sangue do Filho de Deus, simbologia que os fiéis compartilham. O poema
citado alude por meio dos desvios da linguagem parodística os momentos em que
o sacerdote, elevando a hóstia consagrada, tem a reciprocidade do responsório
dos fiéis nestas falas emblemáticas: “Senhor eu não sou digno de que entreis em
minha morada, mas direi uma palavra e serei salvo”257.
257
MISSAL ROMANO, 2000, p. 21.
279
Pareceu-nos, a todos da família que ele estava
feliz.
[...]
Todos olhavam para o alto na hora das
refeições, e víamos o avô lá em cima, flutuando
no espaço da sala com o rosto alegre de quem
estava encetando uma viagem.
[...]
Quatro dias depois de um novo Pentecostes, caiu
sobre o assoalho da sala, onde viviam os outros
membros da família, um ovo! Pluft e se quebrou.
Era um ovo de anhuma.
[...]
Doze dias antes de sua morte meu avô me
entregou um CADERNO DE APONTAMENTOS.
Os pássaros iam carregando os trapos
esgarçados do corpo do meu avô.
Ele morreu nu.
Falam que meu avô, nos últimos anos , estava
sofrendo do moral.
Por tudo que leio nesses apontamentos, pela
ruptura de certas frases, fico em dúvida se esses
escritos são meros delírios ônticos ou mera
sedição de palavras.
Metade das frases não pude copiar por ilegíveis. 258
258
BARROS, 1991. pp.9-13.
259
O relato dos Atos dos Apóstolos, no seu capítulo 2, demarcados nos episódios bíblicos:
“Quando se completaram os dias de Pentecostes estavam todos juntos no mesmo lugar; e de
repente um estrondo, [...] Apareceram-lhes repartidas umas como línguas de fogo, e pousou sobre
cada um deles. Foram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar várias línguas,
conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem.” (Bíblia, 1979)
280
caso remetamos às descrições originais sobre os relatos do Espírito Santo acerca
dos apóstolos. O eu poético referenda essa apropriação do contexto sagrado,
contudo o efeito transformador é originalíssimo e comparece pela linguagem
metonímica de uma paródia. Esse efeito contrastante pode ser obtido no contato
com a leitura textual precursora, que segue:
260
BÍBLIA, Opus cit , cap.2, vs. 1-4.
281
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão.
__
Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o silêncio
das paredes.
261
BARROS, 1993, p. 89.
282
Esperamos ter feito uma provocação por meio desta leitura, na qual
comprovamos que a poética de Barros funda-se numa preocupação pela
cosmogênese; carrega os valores genesíacos que se engatam às reiterações
temáticas e simbólicas, por isso, a figura do Ermitão associada ao desempenho do
personagem Bernardo é sempre próspera, desenvolve-se em meio às
hibridizações dos temas, conteúdos e contextos apresentados nos poemas. O
campo de interação multidisciplinar conjugou-se com incrustações filosóficas,
hagiográficas, e religiosas e por isso, a sua obra converteu-se numa peregrinação
iniciática que explorou os sentidos, as sensações espirituais materializadas ao ato
da escritura literária, integrada à mundivivência dos trajetos e das paisagens do
Pantanal.
283
LITERATURA INSPIRADA –
IMAGENS DO JUDAÍSMO EM
BORGES
284
LITERATURA INSPIRADA – IMAGENS DO JUDAÍSMO EM
BORGES
texto, tendo como “fio de Ariadne” a palavra escrita e a certeza de que a saída só é
da Literatura, que a minoria étnica judaica, a comunidade religiosa, ou como quer que
âmbito da Literatura, essas contribuições também foram sentidas pela amplitude com que
não dizer? - em circunstâncias adversas a sua cultura, uma passional relação com o
livro262.
Isto pode ser identificado no envolvimento que levou o povo judeu a traduzir as
262
ROANI, Gerson Luiz. Literatura e judaísmo. O rosto judeu de Borges. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2003.
285
revelam a pluralidade de faces assumidas pela cultura judaica ao longo dos últimos dois
mil anos: A Bíblia, comentários teológicos e filosóficos sobre a fé hebraica, tratados éticos
sacra e profana e prosa ficcional. Com base nessa tradição cultural, inúmeros poetas,
imaginário judaico, nos sendeiros ficcionais trilhados pela Literatura do Ocidente, bem
não pode recusar à tradição judaica uma importância inegável. Repudiar o legado judaico
motivos, imagens e temas para a confecção de suas obras empobrece a própria visão da
263
STEINER, Georg apud ALTER, Robert, KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. São Paulo:
Editora da UNESP, 1997. 725 p.
286
capacidade de “referência desdobrada”, para lembrarmos a bela expressão cunhada por
Paul Ricoeur264.
narrativas. Nós vivemos com essa tradição judaica durante toda a vida. Isto é, a
limites das considerações religiosas inerentes ao corpus cultural hebraico. Com isso,
postulamos que o universo judaico mostra-se como uma das mais importantes fontes
escritor argentino Jorge Luís Borges, se constata a presença de uma invariante, que, pela
natureza das suas imagens, motivos, argumentos e temas poder-se-ia denominar judaica,
Escritura, o texto hebraico por excelência, difere de outros livros? Diz o artista que na
tradição literária ocidental, não existem textos absolutos. Segundo o artista, por mais
notáveis que muitas obras da Literatura do Ocidente possam ser, elas jamais podem ser
264
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa – Tomo III. Campinas: Papirus, 1997. 518 p.
265
ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Op. cit., p. 11.
287
No que concerne à mística judaica, a Sagrada Escritura é um texto absoluto,
no qual nada pode ser obra do acaso. Isso equivale a dizer que por ser ditada pelo
Espírito Santo, a Sagrada Escritura não apresenta lacunas, gretas e fendas. Com
admiração, Borges sublinhava a importância das palavras desde uma perspectiva divina:
“Não há textos absolutos; em todo o caso, os textos humanos não o são. [...] Em um texto
redigido por uma inteligência infinita, em um texto redigido pelo Espírito Santo, como
constantemente afirmou sua admiração pelo povo hebreu como aquele que legou à
buscas ficcionais, tanto em sua prosa, quanto em inúmeros de seus versos 267.
subjaz um encantamento acerca da relação dos leitores hebreus com os textos sagrados
doutrinários, reunidos na Torá (Lei), no Talmud ou sob a forma das poesias dos Salmos e
do Cântico dos Cânticos. Os antigos judeus acreditavam firmemente que tais obras
haviam sido ditadas pelo Espírito Santo, tendo o ser humano como causa segunda. Em
266
BORGES, Jorge Luís. Obras completas de Jorge Luis Borges. 3 volumes. São Paulo: Globo,
1999, p. 304.
267
ROANI, Gerson Luiz. Op. cit., p. 105.
288
tal escritura, a participação humana representa apenas um momento fugaz de uma
Cumpre observar, ainda, que Jorge Luis Borges tinha consciência da sua
ao Judaísmo. Ele se sentia fascinado por pertencer e se inserir numa longínqua tradição
familiar de origem sefardita e marrana, que remontava a judeus portugueses, cujos laços
circunstâncias históricas. Pelo lado materno, dos “Acevedo”, assim como pelo lado
paterno dos “Borges”, o escritor teria herdado o mítico sangue judeu. Essa herança
singelo poema, “A Israel”, do livro Elogio da Sombra: “Quem me dirá se estás no perdido /
Labirinto de rios seculares/ De meu sangue, Israel? Quem, os lugares / Que meu sangue
memória em restabelecer o que foi esquecido no suceder dos anos, leva o eu-poemático
ressoa de ecos e já não vemos em que profundezas esses ecos vão repercutir e
morrer”269.
268
BORGES, Jorge Luis. Op. cit., p. 398.
269
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 2.
289
Borges aproximou-se da cultura hebraica fascinado pelas possibilidades
estéticas que essa assimilação artístico-cultural lhe possibilitava. Sua mirada intelectual
cifrado pela abertura ao ser e aos valores do “Outro”, acabou reunindo e harmonizando,
vozes hebraicas. Tais vozes atestam a sensibilidade com que Borges acompanhou a
trajetória do Judaísmo ao longo destes dois conturbados milênios. A alusão aos nomes
hebraicos de Baruch Spinoza, Baal Schem, Gershon Scholem, Rafael Cansinos Ansés,
Samuel Abramowitz, Heine, Cordovero, Maimônides, Franz Kafka ilustram o rosto judeu
270
BORGES apud SVANASCINI, Osvaldo. Borges y as culturas orientales. Cuadernos
hispanoamericanos, Madri, n. 505/507, pp. 350-351, julho-setembro de 1992.
290
Essas figuras judaicas, que irrompem em inúmeros de seus poemas, foram
cantadas com uma profunda respiração, semelhante àquela dos Salmos. Mas não faltou
nessa interlocução com o Judaísmo um olhar que recorta uma imagem ignóbil e sinistra,
submetido: “um homem condenado a ser a serpente/ que guarda um ouro infame/um
homem condenado a ser Shylock, / um homem que se inclina sobre a terra/ e que sabe
Todavia, não foi essa imagem judaica que mais o interessou. No Judaísmo, o
que mais impressionava Borges, do ponto de vista da criação ficcional, era a imagem de
um “homem que é o livro/uma boca que brada desde o abismo/ a justiça do firmamento”,
vitória/ belo como um leão ao meio dia”272. Por que essa vitória e essa vitória estão no
inclemências do real273.
história do livro Artifícios, no qual é a inteligência criativa que vence a violência e o peso
condena Hladík à prisão e ao posterior fuzilamento. O escritor judeu faz então o que
271
BORGES, Jorge Luís. Op. cit., p. 399.
272
Idem, ibidem, p. 570.
273
LIBERMAN, Arnaldo. Borges, el judío blanco. Cuadernos hispanoamericanos, Madri, n.
505/507, pp. 145-151, julho-setembro de 1992.
274
BORGES, Jorge Luís. Op. cit., p. 567-572.
291
A personagem não invoca Deus simplesmente para pedir o fim de seu suplício,
mas para exigir, que o Criador lhe proporcione mais um ano de vida para que ele conclua
dilata. Os nazistas vão matar Hladík na hora assinalada para a execução, mas na
original: o da criação.
“arte degenerada”. Zur Linde transfigura o horror e a tragédia trazidas pelo nazismo e
Davi Jerusalém representa a civilização ocidental, que tem uma das suas raízes em
Jerusalém, obstáculo que impede a gestação do “homem novo”, que os nazistas julgavam
estar criando: “Eu esperava a guerra inexorável que iria provar nossa fé. Bastava-me
saber que eu seria um soldado de suas batalhas”276. Mediante a leitura desse conto, Davi
Jerusalém pode ser Heinrich Heine, Martim Buber, Franz Kafka, Walter Benjamin e tantos
275
BORGES, Jorge Luís. Op.cit., p. 641-646.
276
Idem, ibidem, p. 642-643.
292
concentração: “Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que
já somos sua vítima. [...] que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno” 277.
poema incessante, à palavra iluminadora da desordem do mundo. É essa palavra que nos
impede de cair nos braços do acaso, pois desprezar a casualidade é uma das lições de
Borges, que como escritor aproximou-se da face judaica que mais lhe serviu para seus
confirmar.
277
Idem, ibidem, p. 646.
293
O TEMA DA VIAGEM AO ALÉM E
A DIVINA COMÉDIA: A ESCADA
DE OURO.
294
O TEMA DA VIAGEM AO ALÉM E A DIVINA COMÉDIA: A ESCADA
DE OURO.
Maria Teresa Arrigoni (UFSC)
278 a
Chevalier, J. Geerbrandt, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993, 7 .
ed., p. 378.
279
Tradução minha deste (p. 9) e dos demais trechos citados a partir do volume Il Libro della Scala
di Maometto, Arnoldo Mondadori Editore, 1999, tradução de Roberto Rossi Testa, notas e posfácio
de Carlo Saccone. Agradeço a Fabiano Dalla Bona pelo empréstimo e a Vilma de Katinszky pela
leitura.
280
Saccone, C. “Il mi’râj di Maometto: una leggenda tra Oriente e Occidente”. In: Libro della Scala,
op. cit., p. 178.
295
A obra que serviu de base para essas reflexões é considerada uma
versão apócrifa do original árabe do Libro della Scala, nunca encontrado, segundo
afirma Saccone. É ainda o autor do ensaio sobre o mi’raj que nos remete à
questão levantada pelo orientalista Miguel Asín Palacios [eclesiástico espanhol,
1871-1944], sobre a possibilidade de o escrito árabe poder ser considerado uma
das fontes da obra de Dante. O estudioso espanhol abordou em seus escritos os
dois ciclos lendários que desenvolveram a matéria da viagem de Maomé, sendo
que o mais complexo, o do mi’râj é o que nos interessa mais de perto. Nele está
descrito que:
281
Idem, p. 181-182.
282
Idem, p. 18.
283
Il Libro della Scala, op. cit., p. 19.
296
Maomé chegou ao tempo de Jerusalém. Durante o percurso, ouviu vozes que o
chamavam, sem que ele parasse para escutá-las ou as seguisse, mesmo sendo a
terceira uma mulher belíssima, que o convidou a segui-la. Tendo continuado, sem
parar, recebeu do anjo Gabriel a explicação do que havia vivenciado: a primeira
voz “era a lei judaica, e se você tivesse respondido, todos os seus fiéis teriam-se
tornado judeus”; quanto à segunda voz, disse-lhe o anjo: “era a lei dos cristãos: se
você tivesse respondido, o teu povo teria se tornado cristão”; quanto à terceira
voz, da mulher encantadora, vestindo trajes belíssimos, era a “do mundo terreno,
cheio de delícias”. Pelo fato de Maomé tê-la esperado, seu povo teria conforto e
bens materiais, e pelo fato dele ter-se afastado dela, disse-lhe o anjo: “você será
sem pecado, mais do que todos os profetas que até agora existiram e daqueles
que no futuro virão”.284
Ao entrar no templo de Jerusalém, Maomé deparou-se com todos os
profetas, “a quem Deus havia ordenado que saíssem de suas tumbas, reunindo-os
ali para que me honrassem” e após conduzir as orações e receber de todos as
boas novas para seu povo e muitas honras e abraços, Maomé seguiu o anjo para
fora do templo. Em ‘suas’ palavras:
284
Idem, p. 21.
285
Idem, p. 22-23.
297
muçulmanos de todos os tempos, uma luminosa escada dourada – daí o nome de
Libro della Scala que aparece nas traduções ocidentais da lenda – graças à qual o
Profeta inicia seu ascensus celeste”.286
Acompanhado do anjo Gabriel, pois, tem início assim a viagem de
Maomé, com a subida pela escada de ouro, que o levará através dos oito céus até
o trono de Deus que com suas próprias mãos lhe entregará o Corão, dizendo-lhe:
”Maomé, tome esta revelação do Corão que eu lhe dou e concedo. O livro trata
dos meus tesouros do Paraíso, que superam todos os outros tesouros do
287
universo”. E foi assim que Maomé e Deus ficaram “frente a frente”, sem que
nada houvesse entre eles, “nem anjos, nem homens, nem nada”.
Interrompo aqui momentaneamente a narrativa do mi’râj de Maomé,
para focalizar agora o momento em que o personagem-poeta-peregrino Dante
também percorre uma escada de ouro, embora em outra dimensão de sua viagem
ao além.
Primeiramente, é bom lembrar que a viagem de Dante se articula em
três momentos, em suas passagens pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso.
Seus guias, como sabemos, são Virgílio, até o Paraíso Terrestre, Beatriz, dali para
as esferas do Paraíso até a mais alta, em que São Bernardo o acompanha na
última parte da viagem, na qual Dante tem a fulguração da visão divina em sua
tríplice dimensão de luz.
286
Saccone, C., op. cit., p. 178.
287
Il Libro della Scala, op. cit., p. 85.
298
Dentro al cristallo che ‘l vocabol porta,
cerchiando il mondo, del suo caro duce
sotto cui giacque ogne malizia morta,
di color d’oro in che raggio traluce
vid’io uno scaleo eretto in suso
tanto, che nol seguiva la mia luce. (Par., XXI, 25-30)288
288
As citações em italiano foram extraídas de: Alighieri, D. Divina Commedia, comentário e notas
de Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Torino, Garzanti, 2004, vol. 3, Paradiso.
289
Dentro da luz cristalina do céu que envolve o mundo e tem o nome do bom senhor [Saturno],
em cujo reinado [idade do ouro] toda maldade cessou, da cor do ouro em que os raios de luz
refulgem, vi uma escada que subia a se perder de vista. Releitura minha destes e dos demais
versos citados.
290
Divina Commedia, op. cit., p. 296.
299
visualizada por Dante pelo fato de estar seguindo um desenho divino, graças ao
qual sua viagem ultramundana se tornou possível.
Diferentemente dessa concepção, a escada de ouro vista e descrita por
Maomé, nos faz pensar no sonho de Jacó: “Eis que uma escada se erguia sobre a
terra e o seu topo atingia o céu, e anjos de Deus subiam e desciam por ela!”
(Gen., 28,12).291
Se a escada de Jacó não foi descrita como sendo de ouro, e não
aparece somente no Paraíso como a de Dante, temos um elo que as aproxima,
pois, pela escada de ouro, Dante viu descer uma infinidade de espíritos
refulgentes, tanto que pensou que todas as estrelas do céu tivessem sido
deslocadas para lá, da mesma forma, embora não descrita em imagens, Jacó viu
os anjos:
291
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas, 1989.
292
Vi também pelos degraus descerem tantas almas em esplendor que pensei que todas as luzes
que vemos no céu, daqui [da escada] se difundissem.
293
Frye, N. O código dos códigos. A Bíblia e a Literatura. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 193.
300
escada, percorrendo os céus e encontrando os profetas ao longo da viagem,
enquanto no sonho de Jacó, seu corpo permanece deitado com a cabeça sobre a
pedra em que adormeceu. Nesse caso, é Deus que aparece à sua frente: “Eis que
Iahweh estava de pé diante dele...”.
Na narrativa de Dante, cronologicamente posterior seja ao texto
bíblico, seja ao Libro della Scala, o desenvolvimento da viagem se faz mais rico de
detalhes e mais complexo, embora ambas as narrativas que o precederam
possam ser vistas como fontes: comprovada a primeira, confutada e pouco aceita
pela crítica, até hoje, a segunda. No momento em que Dante vê a escada de ouro,
ainda se encontra em sua trajetória em direção a Deus. No próprio canto em que
aparece a imagem da escada de ouro, Dante encontra Pietro Damiano, monge do
século XI, que combateu a corrupção da Igreja e a decadência dos costumes, ao
mesmo tempo em que foi acirrado defensor da penitência e da vida ascética.
Ainda antes de percorrer a escada de ouro, Dante tem um colóquio
com são Bento (480-543), o fundador da ordem beneditina, que conta ao viajante
sua trajetória até o convento de Montecassino, onde terminou sua vida terrena,
durante a qual combateu o paganismo e se dedicou à vida contemplativa. Depois
de ter falado a Dante, são Bento e as almas que com ele estavam subiram num
turbilhão de luz pela escada de ouro. O mesmo fez fazer Beatriz a Dante, que se
encontrou depois de uma fulminante ascensão no oitavo céu, o das estrelas fixas.
301
céus que já havia percorrido, como que se despedindo com o olhar dos planetas e
dos céus menos importantes em face da aproximação ao Empíreo, sede de Deus,
e meta da viagem.
Antes, porém, Dante ainda vivencia o triunfo de Cristo e a coroação
da Virgem Maria, numa coreografia majestosa que se desenrola a seus olhos no
oitavo céu. Depois disso, Dante enfrenta ainda um tríplice exame: de fé,
respondendo aos quesitos de são Pedro, de esperança, com são Tiago e de
caridade, com são João. Aprovado em todas as instâncias, o viajante encontra
Adão e com ele mantém um colóquio, que abrange inclusive as questões da
língua adâmica, e da expulsão do Paraíso Terrestre.
Só então – e estamos ainda no canto XXVII – Beatriz e Dante sobem
ao nono céu, o Primeiro Móvel, a sede das inteligências angelicais, e Dante tem a
visão de um ponto de luz extremamente forte, envolvido por nove esferas que
giram à sua volta. Repropõem-se na mente de Dante e nos esclarecimentos de
Beatriz os temas da criação e das faculdades dos anjos, da rebelião de Lúcifer. A
ascensão ao Empíreo projeta Dante num mundo de luz absoluta, em que se
encontra a morada das almas abençoadas, definida como ‘rosa’ por analogia a um
anfiteatro em forma de pétalas, também imaginado como um diamante com suas
facetas.
Dante vivencia ainda a visão dos santos, da Virgem Maria, dos
apóstolos, dos anjos e de sua Beatriz, já assumindo seu lugar entre os
abençoados e deixando a são Bernardo a missão de levar Dante à presença de
Deus, não sem antes pedir a intercessão de Maria.
Somente no final da viagem, no canto XXXIII, que encerra sua
viagem ao Paraíso e é o encerramento da Divina Comédia, Dante tem a fulgurante
visão divina na forma de três círculos concêntricos, em que o segundo refletia o
aspecto humano. O êxtase da fulguração impede qualquer outro desejo e
impossibilita qualquer outro pensamento.
Constatamos, pois, que tanto a escada no sonho de Jacó, quanto a
escada de ouro na narrativa de Maomé, mantém a simbologia da ligação céu-
terra, e permitem nos dois casos o encontro direto do personagem com Deus. Na
302
narrativa de Dante, a escada de ouro não une céu e terra, mas um e outro céu,
não coloca o personagem em contato com Deus, mas serve como elemento a
mais na complexa concepção da coreografia do Paraíso tal qual foi ‘vista’ e
concebida por ele.
Outra questão instigante diz respeito aos diferentes êxitos resultantes
do elo céu-terra, que, como vimos, se reflete na simbologia da escada. No caso de
Jacó, Deus, que aparece à sua frente, oferece-lhe a proteção e desenha para seu
povo a predestinação da terra e da benção: “Eu estou contigo e te guardarei em
todo lugar aonde fores, e te reconduzirei a essa terra, porque não te abandonarei
enquanto não tiver realizado o que prometi” (Gen., 28, 15).
Maomé, por sua vez, ao chegar na sede divina, na qual nem o anjo
Gabriel o pôde acompanhar, viu-se separado de Deus por duas cortinas, “a
primeira era de trevas e a outra do esplendor de sua potência”295 . Por detrás das
cortinas, ouviu as seguintes palavras: “hamina harazul bine unzila ylay, que
significam ‘o mensageiro acreditou em tudo o que lhe foi revelado’”. Depois da
longa oração, e das palavras de Deus, Maomé relata que recebeu o Livro de sua
mão e agradeceu a Deus o presente dele recebido, e termina dizendo: “E entre
Ele e eu não havia nem anjos, nem homens, nem nada, a não ser Ele e eu, frente
a frente”.296
E Dante? Ele não recebeu a visita de Deus chegando até ele pela
escada, nem chegou ao céu subindo diretamente por uma escada de ouro
cravejada de pedras preciosas, nem tampouco recebeu de Deus o livro sagrado,
mas enquanto descia e subia, vencendo as agruras de sua jornada no além, tecia
sua obra, que os homens fizeram divina, e que ele deixou como legado para a
humanidade.
295
Libro della Scala, op. cit., p. 84.
296
Idem, p. 85.
303
O CORPO DO DIABO
JONAS TENFEN
304
O CORPO DO DIABO
1) Introdução
305
homem de fazer medida para aquilo que quer compreender. Contudo, não há um
corpo porque não há uma forma apenas, isto é, várias formas, vários corpos; foi
humanizado, mas não é humano.
As formas que o diabo assumiu, ou melhor, as representações feitas
dele são temporais e mutáveis. Tanto que, as representações deste são datadas,
localizadas em um espaço-tempo dentro de uma sociedade; épocas diferentes,
diabos diferentes. Quando não se torna possível uma datação plausível da
representação, pode-se fazer o levantamento das influências culturais que tiveram
importante relevância para o feitio desta.
Ideologicamente, é mais interessante não ter forma fixa para o diabo.
Parece que na luta contra o príncipe deste mundo, o cão, o tibinga, o pai-da-
mentira, etc, tudo é permitido, a ética é mais maleável, e são aceitáveis muitas
táticas que não se aplicariam aos iguais, quando muito, semelhantes. Vide Bush
Filho que demonizou Bin Laden e seu séqüito e vide Bin Laden que satanizou
Bush Filho e sua horda.
Neste breve artigo, será feita uma análise sobre o corpo do diabo
sem ao menos ter uma idéia de diabo estabilizada. O imaginário sobre Deus, ao
menos em um meio católico, é relativamente estabilizado com todos os atributos
que se façam a Ele. Na maioria das vezes, as ideologias religiosas têm embates
na relação do crente com aquele que deve ser adorado e não sobre o que e como
é aquilo que deve ser adorado (é discutido se Deus deve ser amado ou temido –
um dos sete dons do Espírito Santo – e não sobre as feições Dele).
De qualquer forma, o diabo é o Mal e suas representações irão
simbolizá-lo dessa forma e muitas vezes como se relacionar com ele. Por essa
razão, como se verá adiante, o ânus do diabo é, em dados momentos bem
definidos, mais importante que sua face.
2) A Queda
297
A Cicatriz de Ulisses. In: AUERBACH, Erich. Mimesis. 2 ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1987.
306
a mula que levou Isaac para ser sacrificado por Abraão. Auerbach faz um recorte
de uma passagem bíblica específica do Antigo Testamento, mas que é prototípico
de toda a Bíblia no que concerne aos detalhes, ou melhor, na falta dele. Deus fez
o mundo, fez o homem a sua imagem e semelhança, mas o que é Deus, ninguém
o entende, que a tanto o engenho humano não se estende298 e a Bíblia não dá
muitas pistas. Ele sequer nos é apresentado em formatos e feições; com exceção
de sarças ardentes e luzes. Ele é aquele que é.
O temor religioso das pessoas a quem Deus se manifesta é
caracterizado pelo medo de vê-Lo, de perder a vida simplesmente por olhar para
Ele. Tal temor teve Moisés (Êxodo 3,6; 19;21; 33, 20-23) e Gedeão (Juízes 6,22).
A face de Deus jamais foi vislumbrada.
A narrativa da Odisséia é interrompida para a explicação sobre a cicatriz
de Ulisses, já a narrativa bíblica não possui interrupções para maiores
explicações. Contudo, é justamente nas minúcias que ocorrem os
desdobramentos. Todos os imperativos que Deus usou ao trabalhar no primeiro
dia estão no singular e, nos outro cinco, no plural. Isso implica em
acompanhamento, alguém para ordenar; não necessariamente a sua negação ou
duplo, mas seu séqüito: os anjos.
Deus hierarquizou suas hostes e seu maior comandante atendia pelo
nome de Lúcifer; nome latino que decomposto significa “aquele que carrega a luz”.
Responsável pelo amanhecer e regente do coro celestial, quis tomar o lugar de
seu criador. Reuniu um terço de todos os anjos e fez uma rebelião. Derrotado, foi
expulso do Céu pela resistência organizada pelo Arcanjo Gabriel: deu-se assim a
queda. Se a atitude de Lúcifer foi uma tentativa de golpe de Estado ou uma
revolução “popular” fracassada são perguntas que nem as minúcias da Bíblia
respondem.
Não há passagem bíblica, no Antigo Testamento, para a queda. Ela faz
parte da tradição (a legenda áurea) que vem suprimir a falta de detalhes nas
narrativas dos primeiros livros como das releituras dadas a estes pelo Novo
298
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. São Paulo: Verbo, 1980.
307
Testamento. De qualquer forma, temos que um terço dos anjos e Lúcifer caíram:
este se transformou no diabo e aqueles nos demônios.
3) O Corpo
308
tornando menor conforme se aproxima do diabo, assim há pecados que estão
mais longe e pecados que estão mais próximos dele. Além de Lúcifer deformado,
Dante o mostra como traidor, passando a eternidade torturando os seus
semelhantes.
A queda o afastou de Deus e isso o tornou monstruoso; logo, o que
afasta de Deus é feio, desprezível, punível. Tal premissa é discutível, da mesma
forma que é discutível a idéia de belo e de bom para Safo de Lesbos:
Quem é belo
é belo aos olhos
- e basta.
4) A explosão
309
Como citado na Introdução, o padre Antônio Vieira se utiliza da idéia de
que o diabo explodiu na queda e os seus pedaços disseminaram o pecado (o mal)
no mundo. Ainda não existia Espanha, mas a cabeça caiu no pedaço de mundo
que um dia se tornou esse país. A língua rolou para fora da boca, caído onde se
constituiu Portugal e, por contaminação, os pecados dele vieram até o Brasil de
Vieira.
Deus criou o Mal no coração de Lúcifer ou Lúcifer se tornou o Mal? Na
essência, essa é a pergunta “Qual é a origem do Mal?” Em uma perspectiva
inicial, o afastamento, ou melhor, o afastado de Deus é o Mal; contudo nada temos
além de conjecturas sobre o que levou a este distanciamento.
A disseminação dos pecados se deu pelo contato do corpo deformado,
partido aos pedaços, com a terra. E é pelo corpo do fiel que o pecado chega à
alma. Basta lembrar que nenhum dos sete pecados capitais é de ordem
metafísica, todos são físicos ou a sua ocorrência acarreta deformação
(necessitando, assim, do corpo). Pecados de ordem metafísica, como a apostasia
e a heresia, são decorrentes do físico.
É impossível não associar a idéia descrita pelo padre Vieira ao big-bang,
no que concerne uma explosão como origem. Afinal, enquanto uma teoria dá uma
explicação científica à origem do universo, a outra explica a origem do universo
católico: ou a benesse do céu ou a condenação do inferno no pós-morte; e o que
definia isso é a relação do crente, neste mundo, com os pecados.
5) O Ânus
310
Ao cair, o diabo foi relegado ao inferno. Contudo, continua como
príncipe deste mundo. Logo, há dois lugares onde ele pode atuar: em um
comandando, torturando e em outro corrompendo, aliciando. A tripartição do
espaço da crença (Céu-Terra-Inferno) deve ser herança da cultura helênica.
Agora, a delimitação do campo de atuação do diabo é mais uma das releituras do
Novo Testamento. Tendo em vista, por exemplo, o episódio de Jó, onde satanás
transita pelo Céu e Terra.
Não importou, para toda a Idade Média, a representação que se deu ao
diabo, desde que apresentasse algo feio e com o ânus em relativo destaque. A
feiúra como forma de catequização das massas é feito entre as relações visuais
(afinal, quanto mais feio o diabo, mais bonito Deus-Jesus). O ânus como símbolo
da inversão de valores que o diabo propõe aos humanos. Afastado da cabeça, tais
valores são baixos, mundanos, corporais. O excesso de ânus, em torno de mil,
espalhados pelo corpo do diabo faz parte do imaginário medieval.
Os registros da Inquisição, com toda a desconfiança possível aos dados
recolhidos devido a maneira como eram obtidos, trazem em detalhes como vender
a alma. Um aparte fundamental do ritual para selar o pacto é quando o “vendedor”
(que negocia a alma em troca de poder neste mundo) beija o ânus do diabo.
A maioria das gravuras ou iluminuras foram encomendadas por
aqueles que incendiavam os adoradores e que ditavam a moral. Parte da
perseguição dá-se pela representação, onde o ato de beijar o ânus se configura
como um deboche carregado de inversão de valores: os católicos beijavam o anel
do bispo buscando uma benção espiritual e os adoradores beijavam o ânus do
diabo buscando uma benção terrena. Também queriam causar nojo e repudio
àqueles que entrassem em contato com tal figura; a idéia do quanto que teriam
que se rebaixar ao adorar o diabo é uma idéia que aproxima, ao menos tinha esta
intenção, de Deus.
O pacto atravessa os tempos, mas o ânus não. Parece que a relação
dele como selador de acordos satânicos ficou restrito à Idade Média, enquanto
ainda se buscavam formas de criação e re-interpretação do diabo. O Dr. Fausto
assinou um contrato e Riobaldo “tentou” vender a sua alma gritado em uma
311
encruzilhada, em um dia e local específico. No panteão de crônicas de Veríssimo,
temos Alma, vendo, onde o personagem quer vender sua alma e põe um anúncio
na internet para entrar em contato com o comprador.
Da mesma forma que as formas do diabo mudaram com o tempo, as
relações com ele também.
6) Os Corpos
312
Assim, com a possibilidade de representar o Mal de maneiras diferentes, ou
melhor, na simples possibilidade de representá-lo, ele tende a ser diferente
quando diferente forem os tempos e as relações intrínsecas a este.
A relação com o diabo é, per si, diferente da relação com o mal.
Quem inverte o foco de adoração, beija o ânus, muda o foco do repúdio: Deus
passa a ser o Mal, usando de relativística básica. Agora, não há como mudar o
foco do mal, isto é, aquilo que dever ser combatido ao extermínio,
independentemente do que seja – se é mal, deve ser expurgado. E esta é a
abertura ideológica para demonizar o inimigo; não acarreta uma declaração de
guerra, mas a possibilidade de tê-la.
Se no outro lado do front estiver um igual, como atirar? Como
mandar, permitir aos filhos se alistarem, aceitando que eles vão matar outros
filhos? É impossível lutar contra si mesmo, por isso, a categoria outro é
estabelecida; mesmo assim, o outro ainda se mantém como semelhante, até ser
demonizado (etapa final que elimina muitas barreiras éticas ainda
remanescentes).
O mal sempre foi relativo e o bem nunca deixou de ser.
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RUBEM ALVES: UM DISCURSO
QUE SE FAZ TEOLOGIA DA
BELEZA.
314
RUBEM ALVES: UM DISCURSO QUE SE FAZ TEOLOGIA DA
BELEZA.
315
Para que se tenha melhor entendimento desta argumentação, será
estudado o livro Pai Nosso – Meditações, nos capítulos reunidos sob os títulos:
“Meu filho, eu não sei somar...” e “Trilogia: Liturgia, esperança, brinquedo”
O autor recorre, freqüentemente, a outros autores cujo pensamento
sustenta sua própria teologia. É o caso das numerosas citações da fala do
personagem rosiano, Riobaldo.
316
fatos. As metáforas – “engravidar pelo ouvir” e “Anjo engravidante” – ratificam, de
modo poético, o texto bíblico e o tornam mais próximo de um entendimento
humano.
A linguagem é a base da teologia do autor. Sua construção teológica
trabalha a capacidade da palavra e da linguagem de representar os conceitos
bíblicos.
O livro Pai Nosso: Meditações pode ser considerado um dos mais
representativos de sua teologia e, conseqüentemente, da sua linguagem poética,
tal como a teopoética de Kuschel permite compreender, o que a torna
representativa da Teologia que aqui será intitulada “da Beleza”. Nele aparecem
outras metáforas também basilares para o entendimento de sua teologia: Vento =
Deus; ausência = verdade; presença = ídolos, materialidade; desejo = onde
Deus se encontra.
Ao escrever melancólica e emotivamente sobre a mais importante
das orações cristãs, Rubem Alves impregna seu leitor do mesmo “desejo da
ausência”, revelado pelo Vento que passa e perpassa o corpo do homem “onde
mora o desejo do Vento”, onde está a saudade, a nostalgia daquela ausência. O
livro é um diálogo do homem com Deus através da oração que Jesus ensinou. E é
um tratado teológico em forma poética, que faz dialogarem o teólogo e a Bíblia.
Perceba-se a intertextualidade com o salmo 139 (ALVES, 2004, p.122 ) :
317
morava no mesmo mundo que Sara, embora seus corpos se
tocassem à noite. Abraão morava no futuro e aquele berço era um
fragmento de um tempo que ainda não chegar, prenúncio de
risos, aperitivo de celebrações. Ele via o invisível, vivia no
ausente, pois era lá que viviam seus desejos. Quem come o pão
engorda com o presente. Mas Abraão se sentia grávido com o
futuro: seu pão era diáfano como o arco-íris, fluido como o vento e
tinha o gosto impossível do cheiro de jasmim. Berço, hieróglifo
indecifrável, enigma, poema de um outro mundo...
Com seu simbolismo, ele nos faz “ver” a natureza que canta as belezas
e solicitudes de seu Criador. Ele nos faz sentir o inefável toque da passagem
daquele “vento que sopra onde quer, quando quer”, e nos dá vida. Lê-lo é, ao
mesmo tempo e na mesma intensidade, perceber nossa humanidade e o desejo
de transcendê-la. Quando se lê Rubem Alves, as lições bíblicas abandonam seu
tom doutoral, para assumirem a força do convite a que se pode, mas não se quer,
dizer não...Ou será que se quer, mas não se consegue dizer não?...
Rubem Alves ousa criar metáforas inesperadas, associações
vocabulares inéditas, assim como desmistifica algumas afirmações cristalizadas,
que dificultam a apreensão do profundo sentido espiritual que a Bíblia apresenta.
Alguns o consideram herético por isso. Outros o chamam erótico. Ele diz que
brinca com as palavras como uma criança. E assim deve ser visto: um teólogo que
transgride para significar; um religioso que surpreende para mostrar a verdade; um
artista que embeleza para conquistar pela Beleza.
Portanto, “o semeador saiu a semear” e, quem sabe, os ipês amarelos
engravidar-se-ão de flores, os jardins encher-se-ão de orquídeas, as gaiolas
ficarão vazias. Árvores serão plantadas para o amanhã, as crianças poderão
brincar sem medo, os jovens se amarão com sinceridade, os velhos se verão nos
filhos de seus filhos e todos, juntos, poderão descobrir o rosto para sentir o Vento
que sopra onde quer...como quer...quando quer...
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