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NO PRINCÍPIO ERA

DEUS E ELE SE FEZ


POESIA
(livro publicado)

Salma Ferraz
(organizadora)

NUTEL
Núcleo de Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura.
Teopoética
2008

1
Disse Moisés a Deus: Eis que, quando eu vier aos filhos de
Israel e lhes dizer; O Deus de vossos pais me enviou a vós
outros: e eles me perguntarem; Qual é o seu nome? Que
lhes direi?
Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais:
Assim dirás aos filhos de Israel; EU SOU me enviou a vós
outros.
Êxodo 3: 13-14.

Como não ter Deus? Com Deus existindo tudo dá esperança;


sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas se não
tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vém, e a vida é burra. É
o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo
facilitar – é todos contra os acasos Tendo Deus, é menos grave
se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem
Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque
existe dor... O Senhor não vê? O que não é Deus, é estado do
demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não
precisa existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí
é que ele toma conta de tudo.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas, p. 48

O homem louco – Vós não ouvistes falar daquele homem


desvairado que em plena manhã luminosa acendeu um
candeeiro, correu até a praça e gritou ininterruptamente: “Estou
procurando Deus! Estou procurando Deus!” – Uma vez que lá se
encontravam muitos dos que não acreditavam em Deus, ele
provocou uma grande gargalhada. Será que ele se perdeu? –
dizia um. Ou será que ele está se mantendo escondido? Será
que ele tem medo de nós? Ele foi passear de navio? Passear? –
assim eles gritavam e riam em confusão. O homem desvairado
saltou para o meio deles e atravessou-os como seu olhar. “Para
onde foi Deus?” – ele falou. Gostaria de vos dizer: Nós o
matamos – vós e eu! Nós todos somos assassinos! Mas como
fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos
deu a esponja para apagar o horizonte? O que fizemos ao
arrebentarmos as correntes que prendiam esta terra ao seu sol?
Para onde ela se move agora? Para onde nos movemos? Não
caímos continuamente? E para trás, para os lados, para frente,
para todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos
como que através de um nada infinito? Não nos envolve o sopro
do espaço vazio? Não está mais frio? Não advém sempre
novamente a noite e mais noite? Não precisamos acender

2
candeeiros pela manhã? Ainda não escutamos nada do barulho
dos coveiros que estão enterrando Deus? Ainda não sentimos o
cheiro da putrefação de Deus? – também os deuses apodrecem!
Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos!
Como nos consolamos, os assassinos entre todos os
assassinos? O mais sagrado e poderoso que o mundo até aqui
possuía sangrou sob nossas facas – quem é capaz de limpar
este sangue de nós? Com que água poderíamos nos purificar?
Que festejos de purificação, que jogos sagrados não
precisaremos inventar? A grandeza desse ato não é grande
demais para nós? Nós mesmos não precisamos nos tornar
deuses para que venhamos a aparecer como apenas dignos
deste ato? Nunca houve ato tão grandioso – quem quer que
nasça depois de nós pertence por causa deste ato a uma história
mais elevada do que toda história até aqui! O homem desvairado
silenciou neste momento e olhou novamente para os seus
ouvintes: também eles se encontravam em silêncio e olhavam
com estranhamento para ele. Finalmente, ele lançou seu
candeeiro ao chão, de modo que este se partiu e a pagou. “Eu
cheguei cedo demais” – disse ele então – “eu ainda não estou
em sintonia com o tempo. Este acontecimento extraordinário
ainda está a caminho e perambulando – ele ainda não penetrou
nos ouvidos dos homens. O raio e a tempestade precisam de
tempo, a luz dos astros precisa de tempo, atos precisam de
tempo, mesmo depois de terem sido praticados, para serem
vistos e ouvidos. Este ato está para os homens mais distante do
que o mais distante dos astros: e porém, eles o praticaram!” –
Conta-se ainda que o homem desvairado adentrou no mesmo dia
várias igrejas e entoou aí o seu Requiem aeternam deo.
Acompanhado até a porta e questionado energicamente, ele
retrucava sem parar apenas o seguinte: “O que são ainda afinal
estas igrejas, senão túmulos e mausoléus de Deus?”
NIETZSCHE, A gaia ciência, Aforismo 125.

“A Literatura tem o direito de dizer tudo”.


Jacques Derrida, Paixões, p. 48

“In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum et Deus erat Verbum”.
João 1:1

3
SUMÁRIO
1) Teopoética: Os estudos literários sobre Deus.
Salma Ferraz (UFSC)

2) A terceira margem da ficção: Literatura e Teologia em Jorge Luís Borges


José Carlos Barcellos (UERJ/UFF)

3) O Deus da Religião e o Deus da Literatura.


Rafael Camorlinga (UFSC)

4) A confissão geral de Riobaldo.


Waldecy Tenório (PUC - USP)

5) Entre Logos e Mythos em City of God de Doctorow.

Julio Jeha (UFMG)

6) Deus o Diabo na terra de Mailer.


Delzi Alves Laranjeira (UFMG)

7) A presença da Virgem Maria na epopéia brasileira.


Christina Ramalho (UFRN)

8) A Esfinge pejada de mistérios: travessias e travessuras de Judas.


Salma Ferraz (UFSC)

9) Manifestações bíblicas em três contos de Jorge Luis Borges.


Andréa Lúcia Paiva Padrão Ângelo (UFSC)

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10) O Mito Cristão no Cinema.
Laércio Torre de Góes (UFBA)

11) Vitalidade e finitude em Machado de Assis.


Douglas Rodrigues da Conceição (UMESP)

12) De(u)smundo.
Fernando Floriani Petry (UFSC)

13) O “Novíssimo Evangelho” de “São Teodorico Evangelista”.


Antonio Augusto Nery (USP)

14) Os Cristos de Kazantzakis e de José Saramago.


Ronaldo Ventura Souza (USP)

15) Raul Brandão e José Saramago – revisitando figuras cristãs.


Ana Paula Carraro Borges (USP)

16) Ausência de Deus e sentimento de culpa em Memórias Póstumas de Brás


Cubas.
Luis Carlos Cancellier de Olivo (UFSC)

17) Literatura e (Des)constituição do Sagrado.


Claudemir Francisco Alves (PUC – UFMG)

18) A virtuosa graça da reflexão pela humorística graça da contestação: Moacyr


Scliar e seus profetas.
Tony Roberson de Mello Rodrigues (UFSC)

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19) O deserto de Deus e o sertão dos Homens: Guimarães Rosa e o Deserto
do Sinai.
Nelson de Sena Filho (CUC)

20) A voz ritualizada da narrativa rosiana.


Márcio Araújo de Melo (UFMG)

21) Bipolaridade e antagonismos: o sagrado e o profano em O Pagador de


Promessas.
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)

22) As interfaces espirituais na obra de Manoel de Barros.


Maria Aparecida Ferreira de Melo Souza (NTE/MS)

23) Literatura Inspirada - Imagens do Judaísmo em Borges.

Gerson Luiz Roani (Universidade Federal de Viçosa)

24) A escada de ouro e a Divina Comédia.


Maria Teresa Arrigoni (UFSC)

25) O corpo do Diabo.


Jonas Tenfen (UFSC)

26) Rubem Alves: um discurso que se faz Teologia da Beleza.


Maria Celeste de Castro Machado (UERJ)

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COLABORADORES

Ana Paula Carraro Borges


Andréa Lúcia Paiva Padrão Ângelo
Antonio Augusto Nery
Christina Ramalho
Claudemir Francisco Alves
Delzi Alves Laranjeira
Douglas Rodrigues da Conceição
Fernando Floriani Petry
Gerson Luiz Roani
Jonas Tenfen
José Carlos Barcellos
Julio Jeha
Laércio Torre de Góes
Lourdes Kaminski Alves
Luis Carlos Cancellier de Olivo
Márcio Araújo de Melo
Maria Aparecida Ferreira de Melo Souza
Maria Celeste de Castro Machado
Maria Teresa Arrigoni
Nelson de Sena Filho
Rafael Camorlinga
Ronaldo Ventura Souza
Salma Ferraz
Tony Roberson de Mello Rodrigues
Waldecy Tenório

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APRESENTAÇÃO

É com imenso prazer que apresento esta compilação de artigos de


estudiosos de Teopoética no Brasil. Neste volume estão reunidos vinte e seis
artigos, numa pequena amostragem do que os pesquisadores da área estão
produzindo. Poderíamos dizer que os estudos de Teopoética abrangem três
grandes áreas: a representação de Deus na literatura, as relações intertextuais e
interdisciplinares entre Teologia e Literatura e a migração de personagens
bíblicos para o texto literário como Madalena, Jesus, Judas,
Lúcifer/Diabo/Satanás, etc. Estes estudos têm seus principais teóricos espalhados
pela Alemanha (Karl Josef Kuschel), pelos Estados Unidos (Jack Miles, Harold
Bloom, etc), pela Espanha (José Pedro Tosaus Abadia), seguidos pelo Chile
(Clemens A. Franken) e Argentina (Cecilia Avenatti de Palumbo e Hugo Rudolfo
Safa). No Chile há um Seminário permanente intitulado Literatura y Fe. O X
Seminário permanente de Literatura y Fe ocorreu no Chile em setembro de 2005
e contou com a presença dos nossos pesquisadores brasileiros. No Brasil, há
cerca de quatro anos, surgiram quatro grupos de pesquisadores: o grupo do Rio
de Janeiro (José Carlos Barcellos, Eliane Yunes, Maria Clara Bingermer) o grupo
interinstitucional como sede na Universidade Federal de Santa
Catarina/Florianópolis (Salma Ferraz, Rafael Camorlinga, Teresa Arrigoni, Silvana
de Gáspari, Paulo Soethe), o grupo de São Paulo (Antonio Carlos Magalhães,
Waldecy Tenório, Antonio Manzatto) e o grupo mineiro de Juiz de Fora, reunidos
em torno da Revista NUMEN, Revista de Estudos e Pesquisa da Religião (Luiz
Henrique Dreher), além de alguns outros casos isolados que agora estão se
agregando aos grupos já existentes. No Brasil estes pesquisadores têm publicado
obras fundamentais para o desenvolvimento desta área de pesquisa. Citamos
como exemplo os livros Deus no espelho das palavras de Antonio Carlos
Magalhães, Teologia e Literatura - reflexões teológica a partir da antropologia
contida nos romances de Jorge Amado, de Antonio Manzatto, Literatura e
Espiritualidade de Carlos A. Barcellos, e Crivo de Papel de Benedito Nunes.

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No Brasil sobre a liderança do NUTEL – Núcleo de Estudos entre
Teologia e Literatura da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina já
foram realizados três Simpósios de Teopoética: o primeiro intitulou-se Teopoética:
os estudos comparados entre Teologia e Literatura e foi realizado em Porto
Alegre, durante a Abralic, em Julho de 2004; o segundo foi denominado da
mesma forma e efetivou-se em Dourados, Mato Grosso do Sul, dentro do
Simpósio Internacional sobre Religiões em Abril de 2006 e o terceiro intitulou-se
Teopoética: o literário como lugar privilegiado para a manifestação do sagrado e
do epifânico e ocorreu dentro da programação da Abralic em Agosto de 2006 no
Rio de Janeiro.

A primeira publicação do Nutel foi o número especial da RDC – Revista


de Divulgação Cultural da FURB de Blumenau, dirigida pela querida amiga e
pesquisadora Tuca Ribeiro, outra seduzida pela Teopoética e quem nos concedou
a oportunidade de reunir ali os primeiros artigos dos teopoéticos. Este número
especial da RDC (n. 86) foi publicado em Agosto de 2005.

E agora tenho a alegria de passar às mãos do leitor No Princípio era


Deus e ele se fez poesia, na certeza de que esta publicação marcará
definitivamente a consolidação desta área de estudos no Brasil. Na parte final
deste livro, deixo duas ementas de disciplinas que ministro no Programa de Pós
Graduação em Literatura da UFSC, as quais contém excelente bibliografia deste
ramo de estudos. Esta publicação sai no ano em que será fundada no Brasil a
ALALITE – Associação Latino Americano de Literatura e Teologia.

E, principalmente meus sinceros agradecimentos à EDUFAC, que


encampou este projeto num momento importante para os estudos de Teopoética
no Brasil.

Salma Ferraz

NUTEL – Núcleo de estudos comparados entre Teologia e


Literatura.

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TEOPOÉTICA:
OS ESTUDOS LITERÁRIOS
SOBRE DEUS

SALMA FERRAZ

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TEOPOÉTICA: OS ESTUDOS LITERÁRIOS SOBRE DEUS
Salma Ferraz1 (UFSC)

A Teopoética foi proposta por Karl Josef Kuschel e consiste em um


novo ramo de estudos acadêmicos voltados para o discurso crítico-literário sobre
Deus, no âmbito da Literatura e da análise literária, a partir da reflexão teológica
presente nos autores. Trata-se de análises literárias efetivadas por meio de uma
reflexão teológica e de um diálogo interdisciplinar possível entre Teologia e
Literatura. Algumas das principais perguntas da Teopoética são: qual o discurso
dos autores sobre Deus dentro da Literatura do século XX? Quais seriam os
critérios estilísticos para um discurso teológico dentro da Literatura do século XX?
Quais as relações entre literatura contemporânea e crise existencial da
consciência moderna? Sobre o primeiro tópico já existe um interessante estudo
denominado Literatura do século XX e cristianismo – o silêncio de Deus, de
autoria de Charles Moeller, que investiga a importância de Deus nas obras de
Albert Camus, André Gide e diversos outros escritores.
Kuschel em seu livro Os Escritores e as Escrituras elabora um retrato
teológico-literário de quatro grandes autores que, de alguma forma, revelaram em
seus escritos lampejos da face de Deus: Franz Kafka (a questão da existência de
Deus); Rainer Maria Rilke (as metamorfoses da essência religiosa); Herman
Hesse (a imagem de Deus e a insondabilidade da alma); e Thomas Mann (a
redescoberta do cristianismo, e as relações entre Deus e a ética).

1
FERRAZ é professora de Literatura Portuguesa da UFSC, autora de O Quinto Evangelista/UNB
(1999) e As Faces de Deus na obra de um Ateu/EUFJF&EDIFURB (2003) e ministra a matéria
Teopoética – Os Estudos Comparados entre Teologia e Literatura na Pós Graduação em Literatura
da UFSC, Florianópolis, Brasil. Coordena o NUTEL – Núcleo de Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura: salmaferraz@brturbo.com.br

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O que os estudiosos da Teopoética defendem é que é preciso acabar
com a acusação geralmente levantada pelos teólogos de que a Literatura é uma
intromissão não muito desejada na esfera da Religião.
Apesar de ser um novo ramo dos estudos comparados entre Teologia e
Literatura, esta idéia da Teopoética não é recente. Santo Agostinho cita o escritor
romano Varro2, que fazia distinção entre teologia filosófica (a verdade conhecida
pelos filósofos), a teologia civil (a religião oficial estabelecida pelo Estado cujos
rituais são realizados nos templos) e a teologia poética (apresentada nas obras de
poetas e dramaturgos ao retrabalharem no teatro os velhos mitos sobre os
deuses). Ou seja, o conceito de Teopoética nasceu antes do advento do
cristianismo. Santo Agostinho não aceitava a Teopoética, era frontalmente contra
a reinvenção e reinterpretação poética de textos sagrados da Bíblia efetivada
pelos poetas de uma forma mítica ou fabulosa. Segundo Don Cuppit em seu livro
Depois de Deus, o que o pensador católico na realidade pretendia era enterrar a
teologia poética e mantê-la firmemente reprimida pelos próximos mil anos. Santo
Agostinho não queria rivais, queria o monopólio da Teologia para si.
Há alguns algozes de Deus na Literatura na Filosofia. Para Karl Marx, a
religião não passava de ópio para o povo; para Freud, a religião era considerava
uma manifestação de infantilismo; Darwin, no lugar de Adão moldado em barro
pelas mãos divinas, nos legou como ancestral nada menos que um macaco e
Dostoiévski afirmou através de um dos seus personagens que "Se Deus não
existe, tudo é permitido".
Nietzche não entendia por que o sofrimento deveria ser dignificado,
não aceitava que os últimos deveriam ser os primeiros, isto para ele era a
inversão da ordem natural das coisas. Em o Anticristo afirmou que o cristianismo
foi, até agora, o maior infortúnio da humanidade. Para ele, o cristianismo era a
religião dos fracos e fracassados. Se Nietzche, filosoficamente, matou Deus,

2
Marcus Trentius Varro (Riet, 116 – 27 A C.), polígrafo latino. Advogado em Roma, participou da
guerra civil ao lado de Pompeu, mas se reconciliou com César, que o encarregou de organizar
bibliotecas públicas. De sua obra colossal (cerca de 650 livros) restaram apenas três livros: um
tratato de economia rural (Res rusticae), parte de um tratado de gramática (De lingua latina),
fragmentos de obras literárias, biográficas e mesmo religiosa (Res divinas).

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realizando o seu funeral, José Saramago, com seu Evangelho Segundo Jesus
Cristo, cremou o pouco que sobrou do Deus dos cristãos.
Sempre digo que a Teopoética é injusta em certa medida com Deus,
porque afinal Deus nunca teve a chance de escrever nenhum romance. Mesmo
sendo protagonista do Antigo Testamento, e se fazendo presente por meio de seu
filho - Jesus, no Novo Testamento, a Bíblia foi escrita por diversos autores, é uma
compilaçção de diversos livros que passaram por diversas reescrituras, não foi
escrita por Deus,
A Bíblia está entre os maiores best-sellers de todos os tempos e é uma
obra clássica da literatura hebraica e cristã, imprescindível para o conhecimento
do cristianismo, da Literatura Ocidental e da cultura do Ocidente. A bem da
verdade, não se trata apenas de um único livro, mas de uma antologia de livros
do judaísmo (Antigo Testamento) e de uma antologia de livros do cristianismo
primitivo (Novo Testamento).
O cristianismo é tão importante para o mundo ocidental que quase
chega a confundir-se com ele. É Miguel de Unamuno quem insinua, em sua obra
A Agonia do Cristianismo, que, se o cristianismo desaparecer, a civilização
ocidental tende a desaparecer juntamente com ele. O cristianismo está na base
de toda a cultura, de toda a História do Ocidente. Northorop Frye na introdução de
seu livro Anatomia da Crítica, afirma que, apesar de a tipologia bíblica ser uma
linguagem morta e desconhecida até por eruditos, há uma íntima ligação entre
Teologia e Literatura, uma vez que para ele a literatura ocidental tem sido mais
influenciada pela Bíblia do que por qualquer outro livro.. Corrobora essa mesma
idéia Jostein Gaarder, em sua obra O Livro das Religiões, ao afirmar que o
cristianismo é o pré-requisito para compreender a sociedade e a cultura em que
vivemos. Portanto, a obra literária produzida no Ocidente sempre guardará
referência à cultura que lhe deu origem.
Estreitando ainda mais estas considerações, podemos dizer que não
existe Ocidente sem a idéia de Deus. Jack Miles, em seu livro Deus – uma
biografia, afirma também que o Deus dos judeus e dos cristãos constitui a
realidade última do Ocidente e que toda a cultura ocidental foi moldada a partir da

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idéia de Deus. Ressalta também que nenhum personagem, porém – no palco, na
página ou na tela – jamais teve o sucesso que Deus sempre teve. Segundo Miles,
no Ocidente, Deus é mais que um nome familiar; ele é, queira-se ou não, um
membro virtual da família ocidental. Em outra obra sua, afirma ainda que o
cristianismo faz parte, é parte constituinte do DNA da civilização ocidental.
Existe uma diferença básica entre o Cristo Histórico e o Cristo da Fé. O
Cristo da Fé, o Cristo Teológico, o Cristo Messias e Redentor é aquele que não
precisa ser legitimado pela pesquisa história. Aceita-se pela fé e, como bem
define o Apóstolo Paulo na sua carta aos Hebreus, a fé é o firme fundamento das
coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem.
Já o Cristo Histórico é aquele que precisa de dados históricos para ter
sua existência comprovada, é aquele que viveu e morreu na Palestina antes do
ano 70 de nossa era.
James H. Charlesworth, no final do seu livro Jesus dentro do Judaísmo,
enumera nada menos que 151 obras publicadas a partir da década de setenta
sobre o Cristo Histórico. Citemos algumas das principais: Verdade e ficção na
Bíblia, de Robin Lane Fox (1992); Jesus, o Judeu de Geza Vermes (1990); A
marginal Jew - Rethinking the Historical Jesus, de John Meier (1991); The
Historical Jesus de John Dominic Crossan (1991) Jesus - a life, de A. N. Wilson
(1992); Cristo – Uma Crise na vida de Deus de Jack Miles (2002). O que ocorre é
que historiadores dos mais variados credos e posições filosóficas, ateus, cristãos,
judeus, agnósticos, marxistas, todos têm escrutinado abundante e
cuidadosamente a vida de um judeu chamado Jesus Cristo, ou seja, tem-se a
impressão de que jamais, em todo o tempo, pesquisou-se, discutiu-se tanto sobre
o Cristo Histórico como agora.
No Brasil, Deus e Cristo já foram destaques nas capas de algumas das
principais revistas nos últimos dois anos: Veja, Super Interessante, Manchete,
Cult, Revista das Religiões, etc.
Há muitos episódios dramáticos narrados na Bíblia. Mas gosto
especificamente do lirismo de Salmos, Eclesiastes, de Cantares, Provérbios. Do

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Eclesiastes, cito o capítulo 3 na transcriação magnífica de Haroldo de Campos –
Qohélet/O-que-sabe:

Para tudo seu momento


E tempo para todo o evento sob o céu
Tempo de nascer tempo de morrer
Tempo de plantar e tempo de arrancar a planta
Tempo de matar e tempo de curar
Tempo de destruir e tempo de construir
Tempo de pranto e tempo de riso
Tempo de ânsia e tempo de dança
Tempo de atirar pedras e tempo de retirar pedras
Tempo de abraçar e tempo de afastar os braços
Tempo de procurar e tempo de perder
Tempo de reter e tempo de dissipar
Tempo de rasgar e tempo de coser
Tempo de calar e tempo de falar
Tempo de amar e tempo de odiar
Tempo de guerra e tempo de paz.

Eu ainda citaria o magnífico verso de São Paulo em I Coríntios 13:


Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria
como o metal que sou ou o sino que tine. Aliás, brilhantemente transcriado pelo
conjunto musical denominado Legião Urbana: Ainda que eu falasse a língua dos
anjos, sem amor eu nada seria.
Quando aos episódios dramáticos, temos centenas: a morte de Abel,
Abraão sacrificando seu filho Isaac, a estória de José sendo vendido como
escravo pelos próprios irmãos, a rivalidade entre Esaú e Jacó, Jó tentando
entender os juízos de Deus e amaldiçoando seu nascimento (Converta-se aquele
dia em trevas e Deus dele não se lembre, jamais a luz brilhe sobre aquele dia), e
o mais trágico e incomprensível de todos: Jesus agonizando na cruz (Pai se é
possível passa de mim este cálice).

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Camões, o grande vate português, escreveu vários de suas sonetos a
partir de motivos bíblicos, um deles inclusive baseado na maldição de Jó. Camões
começa seu soneto assim: O dia em que nasci, moura e pereça. Miles, em Deus
uma Biografia, ressalta que a Bíblia é inquestionavelmente uma extraordinária
obra de literatura, e o Senhor Deus um personagem dos mais extraordinários.”
Na Literatura Brasileira dois dos nossos melhores romancistas foram
influenciados pela Teologia: Machado de Assis e Guimarães Rosa. Em Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Esaú e Jacó, há um diálogo constante com a Bíblia. O
leitor que desconhece o texto bíblico perderá muito do texto e da ironia de
Machado. Em Esaú e Jacó, se o leitor souber a estória dos gêmeos Esaú e Jacó
do Antigo Testamento e se conhecer o confronto de idéias entre os apóstolos
Pedro e Paulo no Novo Testamento, terá uma compreensão do livro muito mais
ampla. Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, elabora toda uma teoria e
simbologia sobre o demônio e sobre o pacto com o Arrenegado, o Cão, o
Cramulhão, o Galhardo, o Sujo, o Coisa-Ruim, etc. Não posso me esquecer
também da magnífica biografia de Cristo escrita pelo genial Paulo Leminski.
Na Literatura Portuguesa vários foram os poetas e escritores
influenciados pelo texto bíblico, mas destaco especialmente Padre Vieira com sua
História do Futuro, Gil Vicente com a Trilogia das Barcas (Auto da Barca do
Inferno, Auto da Alma e Auto da Barca da Glória), Eça de Queirós, anticlericalista
ferrenho n’O Crime de Padre Amaro. N’A Relíquia, Eça criticou o catolicismo e
seus santos, sua hipocrisia, suas relíquias, transformando o personagem
Teodorico em uma espécie de evangelista herege, que de uma maneira vulgar e
irônica dessacraliza o Filho de Deus numa caracterização inclemente deste.
Guerra Junqueiro, em A Velhice do Padre Eterno, destinou uma sátira ferrenha à
Primeira Pessoa da Trindade. Raul Brandão mostrou a face dolorida e pessimista
do cristianismo em Húmus e Fernando Pessoa se debruçou em vários momentos
de sua obra poética a questionar o sagrado, os deuses e a própria Trindade
cristã. Por fim, chegamos a José Saramago, um ateu que tem Deus como tema
predileto de suas obras, basta citar aqui dois clássicos: O Evangelho Segundo
Jesus Cristo e Memorial do Convento.

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Na Literatura Universal, dezenas de escritores dialogaram criativa e
ironicamente com o texto bíblico. Dante com sua Divina Comédia é um caso
interessante porque ele foi influenciado pela Bíblia e influenciou o pensamento
cristão com sua noção de inferno e purgatório. Temos O Paraíso Perdido, de
Milton, isto sem falar em Kafka, Rainier Maria Rilke, Herman Hesse, Ernest
Renan, Thomas Mann. Charles Dickens, Jorge Luiz Borges, e centenas de outros
igualmente importantes. E se mencionarmos os best-sellers a lista iria longe: JJ.
Benítez com Operação Cavalo de Tróia, Dan Brown e O Código da Vinci, etc. Nos
Estados Unidos a produção nesta área é imensa. Cito só acomo exemplo Ao vivo
do Calvário, de Gore Vidal e Quarentena de Jim Crace.
O apóstolo Paulo, homem de uma cultura extraordinária, judeu
convertido ao cristianismo, e consolidador dessa doutrina temia que a imaginação
dos homens pudesse dar uma interpretação diferente de Deus. Ele estava em
Atenas, berço da civilização grega e de toda a Filosofia. O apóstolo discursava no
Areópago diante do ceticismo de filósofos epicuristas e estóicos, em certo sentido,
a nata da elite pagã. Benedito Nunes nos informa que estes pagãos cultos,
[estavam] embebidos não da religião popular dos gregos, mas da Paidéia – o
tríplice aprendizado da ginástica, da música e da Filosofia. Foi para eles que
Paulo pregou o seguinte sermão:

Para que buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem


achar: ainda que não está longe de cada um de nós; Porque nele
vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos
vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração. Sendo
nós, pois, geração de Deus, não havemos de cuidar que a divindade
seja semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra esculpida por
artifício e imaginação dos homens. (Atos 17: 28/29).

Essa é talvez a única passagem na Bíblia que se refere a poetas.


Paulo conhecia alguns poetas e filósofos gregos, estava familiarizado com eles,
com a mentalidade helenística do século, portanto temia que a arte desse uma
interpretação literária de Deus, ou que os poetas o substituíssem pela arte. Paulo
sabia que o Deus Desconhecido que ele pregava era visto como loucura pelos
gregos que buscavam a Sabedoria (I Coríntios 1: 22 e 23) e, talvez, intuísse

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aquilo que Heidegger quase dois mil anos depois enunciou – a pesquisa filosófica
é e permanece ateística. Ou seja, parece que o cristianismo tinha e tem reservas
especiais com relação a filósofos e escritores e a interpretação que eles poderiam
dar a Deus.
A Teodicéia é um campo da Teologia natural que defende a
onipotência, a onisciência, a justiça e a bondade de Deus. É contra a idéia de que
a presença do mal e do sofrimento no mundo reduzem ou minimizam os atributos
divinos. Essa expressão foi criada por Leibniz, em sua obra Teodicéia, publicada
em 1710. Neste ensaio o filósofo debatia a bondade de Deus, tentava elaborar um
tratado racional sobre Deus, sobre a liberdade do homem e a origem do mal.
Perante o problema do mal, o filósofo assumiu uma posição otimista, concluindo
que o mundo criado por Deus ainda é o melhor dos mundos possíveis.
Saramago é um escritor contemporâneo obcecado pelo tema Deus. No
decorrer de sua obra, destrói progressivamente as várias faces de Deus. Em
Terra do Pecado (1945), ataca o Deus de Eva e do pecado carnal; em História do
cerco de Lisboa (1989), condena Jeová/Alá pelas guerras In nomine Dei; em
Memorial do Convento (1982), investe contra o Deus da Igreja Católica, seus
santos, seu ritualismo, sua corrupção; e no Evangelho Segundo Jesus Cristo
(1991), reescreve um evangelho particular, concebendo um Deus cruel que quer
ampliar seus domínios e necessita de um mártir para impressionar as pessoas.
Deus, na obra do escritor português, é o verdadeiro antagonista de Cristo, aliás,
humano por excelência. O Diabo é o grande herói deste evangelho profano, é
quem tenta salvar Jesus da crucifixão e salvar todos os humanos de uma religião
que já nasce com o cheiro de sangue. Saramago escreve em sua obra uma
antiteodicéia, uma antiteopoética, uma antiépica de Deus. Repito o que já disse
anteriormente: se Nietzche matou Deus, Saramago cremou suas cinzas. Não
sobrou mais nada depois do Evangelho Segundo Jesus Cristo. Sua obra é um
verdadeiro locus theologicus. Se a Teologia é a ciência do sagrado, a ciência de
Theos, a escritura de Saramago é a negação absoluta dos atributos e do caráter
divino, neste sentido, Antiteodicéia.

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Cuppit, em Depois de Deus, afirma que desafiar Deus e lutar contra
Deus já faz parte da crença em Deus. Menciona o próprio Abraão, o chamado Pai
da Fé, desafiando Deus. Ou seja, só é ateu aquele cuja mentalidade é teísta.
Para Cuppit, Deus surgiu no momento em que alguém elaborou um pensamento
crítico sobre Ele. O crítico ainda menciona que a crise da representação pós-
moderna começou com Deus. Conclui sua brilhante argumentação afirmando que
o Cristo humano alquebrado, sem família, abandonado, dividido, estraçalhado, foi
o pioneiro da modernidade.
Um excelente estudo sobre as relações entre Teologia e Literatura
encontra-se no livro Deus no espelho das palavras – teologia e literatura em
diálogo de Antonio Magalhães. Entre outros importantes pontos, o autor aponta
para o fato de que tanto a teologia como a literatura buscam esclarecer o mistério
profundo o ser humano. Para ele, a literatura revela o mistério mais profundo de
nossa existência e a Teologia precisa desta revelação. Magalhães reforça uma
idéia de Octávio Paz: sem a Literatura, seus mitos e duas parábolas, a Teologia
corre o risco de se tornar um casarão desabitado.
No princípio era o verbo e o verbo se fez letra, se fez literatura, se fez
linguagem, se fez o dom de línguas, se fez morada do ser, se fez letra e espírito,
sedução e magia, mito, revelação, palavras inspiradas, paixão e contemplação,
travessias muito além da terceira margem do caminho que é certo e (in)certo, de
veredas tortas e veredas mortas da Teologia e da Literatura. O mito que é nada e
que é tudo, aquilo que é, que foi que será. Transleituras de Deus, Deus nas
escrituras e na poesia, Deus no dom de línguas, no pentescostes do dom palavra.
Linguagens de Deus. Deus nas línguas de fogo. No princípio era o verbo e ele se
fez poesia. O numinoso... Afinal, Deus existe mesmo quando não há.

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22
A TERCEIRA MARGEM DA
FICÇÃO: LITERATURA E
TEOLOGIA EM JORGE LUÍS
BORGES

JOSÉ CARLOS BARCELLOS

23
A TERCEIRA MARGEM DA FICÇÃO: LITERATURA E TEOLOGIA
EM JORGE LUÍS BORGES

José Carlos Barcellos (UERJ/UFF)

Para Gabriela Cargnel

Estudar a literatura de Borges em diálogo com a teologia não é tarefa


fácil. Não há dúvida de que, em vários de seus textos, o grande escritor argentino
aborda ou tangencia importantes questões teológicas. Assim, não é difícil ver em
“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” a temática da criação, em “La lotería en Babilonia”, a
do destino e da providência, ou em “Tres versiones de Judas”, a do alcance
universal do mistério da kénosis e da salvação, por exemplo. A dificuldade está, a
meu ver, em se encontrar um método de análise suficientemente refinado para dar
conta, de maneira produtiva, da complexidade e riqueza da obra borgiana em
diálogo com a teologia.
Em princípio, poder-se-ia pensar em três perspectivas críticas: na
primeira, a discussão estaria centrada nas referências teológicas disseminadas ao
longo da multiforme obra de Borges. Teríamos, nesse caso, um tipo de estudo
erudito, que buscaria deslindar, do emaranhado de alusões históricas e fictícias
que permeiam os textos borgianos, aquelas referentes a questões teológicas (ou
filosóficas com ressonâncias teológicas, como é freqüente em Borges) e
procuraria reconstituir a problemática pertinente a cada uma delas e à sua
utilização por parte de nosso autor. Uma segunda perspectiva possível procuraria
apreender e formular as grandes indagações de natureza metafísica ou teológica
propostas pelos textos e, num segundo momento, procuraria trazer o aporte da
teologia para o encaminhamento de eventuais soluções para as mesmas.
Finalmente, com base em teorias como a do “cristianismo anônimo”, de Karl
Rahner, ou outras formulações equivalentes, poder-se-ia tentar uma espécie de

24
“recuperação cristã” das dúvidas, aporias e perplexidades levantadas por Borges,
postulando-se o caráter intrinsecamente cristão das mesmas.
Apesar de reconhecer a relativa pertinência das perspectivas críticas
assim esboçadas e de imaginar que suas aplicações possam eventualmente
redundar em algum tipo de contribuição válida, nenhuma delas me parece de todo
satisfatória: a primeira, por privilegiar os referentes extra-textuais; a segunda, por
operar a partir do esquema pergunta-resposta; e a terceira, por, de alguma forma,
dissolver a especificidade da novidade da escrita de Borges, reconduzindo-a ao
domínio do já conhecido e do previsto.
De fato, não obstante toda a importância que possa ter o conhecimento
minucioso das alusões históricas, geográficas ou culturais presentes num texto
literário, não se deve esquecer que, ao serem incorporadas a este, tais alusões
passam a funcionar como elementos do próprio processo ficcional e que seu
significado literário passa a ser construído pelo próprio texto, independentemente
do grau de fidelidade mantido ao referente extra-textual em questão. Essa parece-
me ser a limitação da primeira perspectiva mencionada. Dependendo da maneira
como for desenvolvida, pode acabar ignorando a especificidade da literatura como
forma de conhecimento e, no caso de Borges, pode acabar enredada na própria
trama de referências eruditas a partir da qual se constroem muitos de
seus textos. Seu risco é o de perder de vista o funcionamento interno dos mesmos
e, de forma mais ampla, do próprio universo literário construído pelo autor,
pulverizando-se a obra numa multidão de alusões atomizadas e desconexas.
Quanto à segunda perspectiva, muito freqüente nos estudos
interdisciplinares de literatura e teologia, sua limitação é evidente. Opera-se aí a
partir de uma espécie de divisão de tarefas: à literatura caberia levantar questões
acerca do homem e do mundo e à teologia, dar as respostas adequadas.
Semelhante pressuposto metodológico parte de uma noção de teologia
completamente auto-suficiente, satisfeita com suas fontes e métodos, e que não
tem nada a receber da literatura. Karl-Josef Kuschel, numa passagem memorável,
procede a uma crítica devastadora desse método, por ele chamado de
“correlativo”:

25
O método correlativo, por sua vez, também dispõe da literatura
para fins próprios. Se o método confrontativo reduzia o diálogo
teologia-literatura a um conflito entre ideologia e verdade, o
método correlativo impõe-lhe um esquema de perguntas e
respostas. Não percebe, com isso, que a revelação cristã, tal
como testemunhada nas Escrituras e sempre recolocada pela
teologia, não é de modo algum idêntica ao anseio pela “solução”
de todas as questões. A “revelação” cristã por certo contém
muitas respostas, mas a característica dessas respostas reside
justamente não em fazer calar as perguntas fundamentais da
existência humana, mas conduzi-las a uma perspectiva correta.
(KUSCHEL,1999, p. 221)

O problema da terceira perspectiva apresentada é não levar a sério a


diferença e a alteridade, reduzindo-as sempre ao mesmo e ao idêntico. Uma vez
mais, acaba-se por desconhecer a especificidade da literatura como forma de
conhecimento e a novidade trazida pela visão de mundo dos grandes escritores.
Tudo cai dentro do que já estava previsto por uma teologia satisfeita consigo
mesma e com suas certezas: a perplexidade diante do sem-sentido da existência
torna-se busca de Deus, o sofrimento é identificado, de maneira imediata, com a
cruz de Cristo, todo esforço de humanização é visto como experiência salvífica,
qualquer aspecto da existência torna-se experiência da graça ou do pecado e
assim por diante. Não há nada que a literatura possa propor que não receba
imediatamente um rótulo e cujo lugar, no grande edifício da teologia cristã, já não
esteja assinalado de antemão. Não é preciso lembrar que, nesse caso, não
obstante as maneiras amáveis e a aparente abertura de perspectivas, o diálogo
converte-se em monólogo e toda alteridade é sistematicamente anulada.
Recusadas, portanto, as três perspectivas apontadas, podemos recorrer
a algumas idéias de Adolphe Gesché, expressas num texto de 1995, intitulado “La
théologie dans le temps de l’homme. Littérature et Révélation”, na tentativa de se
construir um caminho mais adequado para o estabelecimento de um diálogo
produtivo entre a obra de Borges e a teologia. Postulando que, na situação atual, a
teologia deveria recorrer à antropologia “para assegurar e verificar sua
competência de discurso sobre o homem e, dessa forma, propor, entre os outros,
o seu discurso específico” (GESCHÉ, 1995, p. 112), afirma o mestre de Louvain
que a literatura pode ser uma fonte particularmente apta a desempenhar esse

26
papel. Nesse contexto, fala de uma antropologia literária, entendida como a
compreensão do homem apresentada pela literatura, e sustenta que a mesma
pode possibilitar “determinadas aberturas acerca do ser humano que as outras
antropologias, inclusive a antropologia cultural, não podem propiciar” (GESCHÉ,
1995, p. 117).
Gesché propõe, assim, que a antropologia literária desempenhe o papel
de epistemologia da teologia, “não porque o homem seja a única medida de todas
as coisas, mas porque se torna impossível, de fato e de direito, falar corretamente
de Deus se não se conhece o homem e se não se procura encontrá-lo naquilo que
o faz homem no mais profundo de sua verdade” (GESCHÉ, 1995, p. 113). Nessa
perspectiva, caberia à literatura, ou melhor, à antropologia literária, o papel de pôr
à prova as afirmações teológicas, ajuizando de sua relevância e pertinência para o
contexto cultural hodierno.
Parece-me que essa proposta de Adolphe Gesché pode ser muito
fecunda para ensejar o diálogo entre a literatura de Borges e a teologia. Trata-se
de uma perspectiva crítica que leva a sério os dois pólos do diálogo que se
pretende estabelecer, mantendo-os em suas respectivas identidades enquanto
discursos diversos e colocando-os numa relação recíproca de tensão e de
complementaridade, que lhes assegura, ao mesmo tempo, a autonomia e a
possibilidade de interlocução.
Nessa linha, o objetivo deste ensaio é estudar, em diálogo com a
teologia cristã, os contos de Ficciones (1944) e de El Aleph (1949), em grande
parte responsáveis pelo lugar singular que cabe a Borges na literatura do século
XX. Para tanto, a primeira tarefa será esboçar, em largos traços, a antropologia
que deles se depreende. Num segundo momento, será preciso indagar, de
maneira preliminar, em que medida a antropologia assim delineada pode constituir
um desafio e/ou um aporte válido para a teologia cristã e avaliar, numa visão de
conjunto, o impacto da antropologia de Borges para a teologia, vislumbrando-se os
possíveis caminhos a serem trilhados por esta para estar à altura das perspectivas
abertas por aquela.

27
Desse modo, se quisermos levantar a questão da ratio humaniorum
litterarum theologica, isto é, a questão do estatuto teológico da literatura,
formulada de maneira pioneira por Pie Duployé em 1965 (DUPLOYÉ, 1978),
podemos dizer que, neste estudo, não estamos reivindicando para a literatura o
estatuto de forma não-teórica da teologia, nem o de lugar teológico, nem o de
fonte substitutiva da filosofia ou das ciências humanas no método teológico
(BARCELLOS, 2000), mas, sim, consoante a proposta de Gesché, o de instância
reguladora da pertinência e relevância das afirmações teológicas. Por outras
palavras, estamos reivindicando para a literatura o estatuto de epistemologia da
teologia.

1- O labirinto e a bússola: aproximações à antropologia de Borges

A tarefa crítica de se delinear a antropologia de um autor ou de uma


obra literária deve ter sempre presente a especificidade da literatura como forma
de conhecimento da realidade. Desse modo, não se trata de extrair do texto
literário uma série de proposições abstratas, de cunho particular ou genérico, nem
de reduzi-las a um sistema mais ou menos coerente, através dos mecanismos da
indução ou da dedução. Proceder assim é não perceber o proprium da literatura e
deixar escapar aquilo que ela tem de mais específico e, portanto, de mais valioso.
Com toda a tradição hermenêutica, é preciso ter presente que o caráter
estético do texto literário há de ser considerado uma premissa fundamental e
ineludível de todo o processo interpretativo e não como um acréscimo extrínseco a
um sentido já dado. Como escreve Peter Szondi, “ao invés de considerar o caráter
estético de um texto numa ‘apreciação’ apresentada depois de o texto ter sido
interpretado, como faz a filologia clássica, a hermenêutica literária considerará o
caráter estético do texto uma premissa da interpretação” (SZONDI, 1995, p.4).
Paul Ricoeur, ao tratar do problema da interpretação dos textos
literários, afirma que a obra literária, assim como a metáfora, se caracteriza em
termos semânticos pela dissociação entre sentido e referência, de tal sorte que o
primeiro desses elementos seja investido de prioridade em relação ao segundo.

28
Ou seja, se entendermos "referência" como o mundo da obra, a "projeção de um
mundo possível habitável", e "sentido", como significado imanente ao plano
semiótico, à articulação dos elementos textuais, vemos que "no uso espontâneo
do discurso, a compreensão não se detém no sentido, mas ultrapassa o sentido
em direção à referência" (RICOEUR, 1983, p. 142), ao passo que na obra literária,
"a relação do sentido com a referência é suspensa", o que equivaleria a dizer, em
termos aristotélicos, que o mythos se separa da mimesis.
Ao questionar a crítica literária das décadas de 1960 e 1970 por
dissociar de maneira radical o mythos da mimesis e reduzir a poiesis à construção
do mythos, Ricoeur abre caminho para uma nova postura crítica que procura
compreender melhor as relações intrínsecas da obra literária com a referência, isto
é, com aquilo que ela efetivamente diz acerca do homem e do mundo (a mimesis,
de Aristóteles), recuperando afinal a plenitude do significado (sentido e referência)
para o domínio específico do literário, como elemento imprescindível e constitutivo
do mesmo. Para tanto, o instrumento heurístico apontado pelo autor é
precisamente a análise da metáfora:

(...) pela sua estrutura própria, a obra literária manifesta o mundo


apenas sob a condição de ser suspendida a referência do
discurso descritivo.(...) Este postulado reconduz-nos ao problema
da metáfora. É possível, com efeito, que o enunciado metafórico
seja precisamente aquele que mostra de forma clara esta relação
entre referência suspendida e referência manifestada. Do mesmo
modo que o enunciado metafórico é aquele que conquista o seu
sentido sobre as ruínas do sentido literal, ele é também o que
adquire a sua referência sobre as ruínas daquilo que podemos
chamar, por simetria, a sua referência literal. Se é verdade que é
numa interpretação que sentido literal e sentido metafórico se
distinguem e se articulam, é também numa interpretação que,
graças à suspensão da denotação de primeira ordem, se liberta
uma denotação de segunda ordem, que é propriamente a
denotação metafórica. (RICOEUR, 1983, p. 330)

Assim, o estudo do funcionamento da metáfora propicia uma melhor


compreensão acerca da hermenêutica literária. A obra literária tem, sim, um
referente, mas o acesso a ele se dá apenas através da ruína do que seria o
referente imediato ou literal do discurso. Eis por que um trabalho de erudição que

29
visasse a apontar e explicar as referências extra-textuais de uma obra literária, por
mais bem feito, interessante ou útil que fosse, ficaria sempre aquém do literário
propriamente dito.
Na perspectiva de Ricoeur, afirmar a possibilidade de acesso ao
referente da obra literária, nos termos acima expostos, implica sustentar a
proximidade e comunicabilidade das noções de metáfora e de conceito no
processo interpretativo, no quadro daquela compreensão maior da abertura do
texto, que permite o encadeamento de um discurso a outro discurso:

Toda interpretação visa reinscrever o esboço semântico


desenhado pela enunciação metafórica num horizonte de
compreensão disponível e controlável conceitualmente. Mas a
destruição do metafórico pelo conceptual nas interpretações
racionalizantes não é a única saída da interação entre
modalidades diferentes de discurso. É possível conceber um
estilo hermenêutico no qual a interpretação responde
simultaneamente à noção de conceito e à da intenção constituinte
da experiência que procura ser dita sob o modo metafórico. A
interpretação é então uma modalidade de discurso que opera na
intersecção de duas circunscrições, a do metafórico e a do
especulativo. É, portanto, um discurso misto que, como tal, não
pode deixar de sofrer a atração de duas exigências rivais. Por um
lado, ela quer a clareza do conceito  por outro, procura
preservar o dinamismo da significação que o conceito detém e
fixa. (RICOEUR, 1983, p. 458)

Para Ricoeur, portanto, a interpretação é um esforço para "pensar mais"


no plano teórico-conceitual, sob o impulso "vivificante" que o discurso
metafórico/literário imprime à linguagem. Partindo de outro quadro de referências
teórico, a saber, a estética teológica de Hans Urs von Balthasar, Cecília Avenatti
de Palumbo tem uma formulação muito feliz que, em sua essência, é
perfeitamente compatível com o que postula Ricoeur: para essa autora, trata-se de
que “a visão estética da figura” nos introduza “na dramaticidade da existência e na
dialogicidade da verdade” (AVENATTI DE PALUMBO, 2002, p. 344). É nesses
termos que se pode compreender o esforço para se depreender a antropologia
literária de um determinado autor, como se fará a seguir, a propósito de Borges.
Numa primeira leitura dos contos de Ficciones e de El Aleph, chama a
atenção o vívido contraste entre a precisão formal dos textos e o caráter
30
surpreendente dos temas abordados ou das revelações feitas ao longo das
narrativas. De fato, os contos de Borges têm uma precisão arquitetônica e
estilística quase geométrica e o racionalismo dessa estrutura entra em choque
com os paradoxos, paralogismos e aporias presentes nas histórias narradas.
Manejando uma língua de uma limpidez impressionante, sem qualquer laivo de
barroquismo, os narradores de Borges buscam uma dicção simples e precisa, que
se assemelha, muitas vezes, à de uma nota jornalística, à de um pequeno e
despretensioso depoimento ou ainda à de um modesto ensaio acadêmico.
Essa simplicidade narrativa é sobremaneira reforçada pela profusão de
alusões a pessoas, a lugares e, sobretudo, a livros, utilizadas sistematicamente
como forma de aproximação do mundo ficcional com o mundo da realidade
reconhecível pelo leitor, de tal forma que este poderia chegar à conclusão de que
está diante não de um texto ficcional, em sentido próprio, mas de um mero
testemunho  bem documentado e, às vezes, bastante erudito  acerca de
pessoas, fatos ou correntes de pensamento. Em função dessas alusões, em que
se mesclam informações históricas com elementos imaginados, e da utilização
que delas se faz nos contos, pode-se dizer que os narradores de Borges
compartilham com o leitor-implícito algumas características bastante nítidas: uns e
outro movem-se inequivocamente dentro do mundo da sociedade liberal burguesa
e estão marcados por uma cultura letrada, de matriz européia, na qual a palavra
impressa ocupa um lugar central. É esse conjunto de valores compartilhados que
contribui para dar a impressão de que os textos de Borges nada mais são que
uma nota a se acrescentar a uma tradição crítica ou historiográfica bem
consolidada, cujos referentes básicos são reconhecidos universalmente.
Ora, essa impressão que a leitura dos contos deixa no leitor já é parte
do efeito estético visado pela obra borgiana, efeito este tanto mais significativo
quanto conjuga precisão e simplicidade formais com temas e desenvolvimentos
narrativos surpreendentes e paradoxais. Essa particular impostação da obra de
Borges foi chamada pelo seu próprio autor de fantástico, numa interessante e
criativa apropriação desse termo. Com efeito, o fantástico borgiano é bastante
original, se comparado ao tipo de literatura que habitualmente se designa por esse

31
epíteto. Não se trata, em Borges, da oscilação entre diferentes possibilidades de
reconstituição da diegese, consoante postula Todorov (TODOROV, 1980), mas,
sim, do contraste entre o efeito de realidade que a dicção precisa e a trama das
alusões dão às narrativas e o caráter insólito das experiências narradas.
Consoante tudo o que ficou dito acima acerca da hermenêutica literária,
a tentativa de se delinear, ainda que em largos traços, a antropologia dos contos
de Ficciones e de El Aleph deve partir do efeito estético dos mesmos e não, de
maneira direta das idéias enunciadas pelos narradores ou pelos personagens. Nos
termos de Ricoeur, somente a referência suspensa dá acesso à referência literária
propriamente dita: esta se constrói sobre as ruínas daquela. Desse modo, o que é
sobremodo significativo em Borges é o contraste entre a estrutura narrativa, em
seu esforço de objetividade, simplicidade e racionalismo, e o material ficcional
marcado pelo insólito, pelo paradoxal ou pelo inesperado. O caráter ensaístico de
alguns contos (pensemos em “Pierre Menard, autor del Quijote”, “Examen de la
obra de Herbert Quain” ou “El jardín de los senderos que se bifurcan”) ou
testemunhal de outros (como “Funes el memorioso”, “El Zahir” ou “El Aleph”), na
tentativa de compreender, descrever e classificar o que foge ao domínio do
razoável ou mesmo do racional, torna patente a inadequação de um determinado
tipo de discurso para a apreensão de uma realidade fugidia e polifacética, cujos
limites se deslocam continuamente.
Com a finalidade de nos aproximarmos desse universo literário,
podemos recorrer a Romano Guardini, em suas reflexões sobre o fim da
modernidade, apresentadas em cursos proferidos em Tübingen e Munique entre
1947 e 1949. Para Guardini, a modernidade se caracterizaria pelas idéias de
natureza, personalidade e cultura: o mundo é concebido como natureza, isto é,
uma totalidade definitiva, impossível de transcender; o ser humano é entendido
em termos de personalidade, na medida em que o sujeito se apresenta como dono
da própria existência, e “seu desejo de ‘cultura’ o impulsiona a tentar construir a
existência como obra sua” (GUARDINI, 1995, p. 69). Desde os anos 1930, porém,
essas três noções básicas da modernidade começam a entrar em crise. A
natureza deixa de ser vista como um todo harmônico, sabiamente organizado, e

32
passa a adquirir um caráter ameaçador. A subjetividade moderna dá lugar ao
homem-massa. A confiança na cultura cede lugar à dúvida e à crítica: o homem
moderno cria achar-se diante da realidade; a partir de agora, parece crer que a
modernidade o enganou. Particularmente significativa é a descrição feita por
Guardini da relação entre subjetividade e personalidade:

Esta relação consistia essencialmente na sensação de liberdade


que tinha o indivíduo ao ver-se livre das ataduras medievais e ao
sentir-se autônomo e dono de si mesmo. Sua expressão filosófica
era a teoria que considera o sujeito como fundamento de toda
intelecção; sua manifestação política, o conceito das liberdades
burguesas. Sua concreção vital, a idéia de que o indivíduo
humano é portador de uma estrutura interna que está preparada e
condenada a se desenvolver a partir de dentro e a configurar uma
vida absolutamente pessoal. (GUARDINI, 1995, p. 83s).

Parece-me que essas considerações de Romano Guardini são muito


fecundas para uma aproximação à literatura de Borges. Não seria esta a
encenação da crise apontada  exatamente na mesma época, note-se bem 
pelo mestre de A visão católica do mundo? Com efeito, poderíamos interpretar o
contraste entre a objetividade e o racionalismo da forma dos relatos borgianos
com o insólito e o inesperado da matéria narrada precisamente como
manifestação literária dessa incapacidade de o sujeito da modernidade (burguês,
liberal, letrado) apreender, com as categorias de que dispõe, um mundo cujos
contornos se romperam. No plano ontológico, os limites entre real e irreal
mostram-se fluidos; no plano epistemológico, princípios como os da causalidade,
da não-contradição ou do terceiro excluso claudicam; no plano ético, as certezas
do humanismo moderno mostram-se vacilantes.
Em primeiro lugar, poderíamos pensar a questão da natureza. Em
Borges, não se trata mais da totalidade fechada e organizada de maneira
harmônica através de uma extensa cadeia de relações causais, tal qual postula o
pensamento da modernidade. Sobretudo a partir de um tratamento original da
questão do tempo e da causalidade (em particular, ao explorar, em vários contos,
a questão escolástica dos futuríveis), Borges amplia o conceito de natureza,
juntamente com o de tempo e de espaço, desdobrando-o em vários planos de

33
possibilidades. No âmbito da problemática da causalidade, lembre-se ainda a
temática do sonho, como aparece, por exemplo, em “Las ruinas circulares”: a
própria noção de ente aí aparece problematizada, ao perder sua autonomia e
dissolver-se no “sonho de uma sombra”. Enfim, em Borges, a realidade do mundo
e de suas coordenadas básicas  como tempo, espaço e ente  mostra-se
extremamente complexa e fugidia. A língua de Tlön e o sistema de numeração
ideado por Funes são imagens absurdas dessa mesma complexidade.
No que tange ao sujeito, alguns aspectos chamam a atenção. Em
alguns contos, há um nítido contraste entre uma extrema lucidez e uma total
incapacidade para atuar: é o caso de “La muerte y la brújula” ou de “La escritura
del dios”. Nos termos do pensamento de Guardini, somos tentados a ver neles
uma concretização do drama do sujeito burguês cuja lucidez contempla sua
própria morte, sem encontrar meios de impedi-la. Muito significativos também são
os temas do duplo e do labirinto. Em muitos contos, temos a imagem do sujeito
perdido num imenso labirinto (“La biblioteca de Babel”, “La casa de Asterión”), cuja
explicação lhe escapa ou do qual deseja libertar-se, numa figuração
impressionante do homem na sociedade de massa. Por outro lado, a própria
identidade do sujeito é colocada em xeque através da temática do duplo, como se
vê em “Los teólogos”, em “Historia del guerrero y de la cautiva” ou em “La otra
muerte”. Ambos os temas ainda se cruzam em contos como “Tema del traidor y
del héroe”. Caberia mencionar ainda aqueles contos em que, de alguma forma, o
personagem narra a própria infâmia, como “La forma de la espada” ou “Deutsches
Réquiem”. Da confluência desses diversos temas, surge uma imagem do ser
humano sem uma identidade claramente definida e que, longe de se experimentar
como senhor e construtor de seu próprio destino, parece viver como joguete de
forças obscuras e mal definidas.
Em síntese, pode-se afirmar que a obra de Borges constrói uma
antropologia centrada na incapacidade de o humanismo burguês, racionalista e
liberal, dar conta de uma realidade que, tanto no plano da natureza, quanto no do
sujeito ou da cultura já não se manifesta segundo os pressupostos da
modernidade. A natureza mostra-se complexa e paradoxal, o ser humano aparece

34
como alguém perdido nos labirintos do tempo, do espaço ou da identidade, a
cultura já não é propiciadora de tranqüilidade e de domínio, mas fonte de
inquietação e de dúvida. A simplicidade e a lógica quase geométrica que presidem
à construção das narrativas aparecem assim como esforços impotentes para
enquadrar uma realidade que se furta a refratar-se em termos de natureza, sujeito
e cultura, conforme postulava a cultura moderna.

2- Caminhos que se bifurcam: da antropologia literária à teologia

Se Borges, como ele próprio reconhece numa entrevista de 1980,


procurou explorar as “possibilidades literárias da metafísica” (apud BLANCH,
1995, p. 376), cabe ao crítico não se deixar enredar por essas mesmas questões
metafísicas, mas procurar avaliar a exploração de suas possibilidades literárias
por parte de nosso autor. Por outras palavras, a tarefa da crítica é apreender a
Weltanschauung, isto é, a visão de mundo, que na obra se configura. Como
escreve Romano Guardini,

A Weltanschauung vê cada coisa a priori “sob a forma de


totalidade”. Considera-a como uma totalidade em si e como inserta
em uma totalidade. Esta totalidade, este “mundo” não é (...) um
resultado final que nasça quando todas as partes tiverem sido
apreendidas, mas lá está a priori. Em cada coisa singular, há
“mundo”, porque cada uma é totalidade em si e se refere ao
complexo de todo o resto. A coisa singular não é um “pedaço”
informe da realidade, mas uma forma assumida pelo ser, acabada
em si mesma. (GUARDINI, 1994, p. 17s)

Pensar, nos termos propostos por Adolphe Geché, na antropologia


literária como epistemologia da teologia exige, portanto, que se considere a visão
de mundo configurada em Ficciones e El Aleph como uma totalidade e não como
uma soma de elementos diversos. Somente a partir daí é que se pode pretender
fazê-la dialogar com a teologia cristã, avaliando-se os possíveis desafios e aportes
que aquela possa trazer a esta e os caminhos que o pensamento teológico
deveria trilhar para estar a altura das perspectivas acerca do homem e do mundo
abertas por Borges.
35
Em primeiro lugar, poderíamos tomar a questão da crise do
racionalismo. Como vimos, a própria forma dos contos manifesta uma precisão e
uma lógica em profundo contraste com muitos dos assuntos tratados. Esse
contraste atingiria uma formulação emblemática em “El idioma analítico de John
Wilkins”, de Otras Inquisiciones, na célebre e absurda classificação dos animais
de “certa enciclopédia chinesa”, que Michel Foucault toma como ponto de partida
de As palavras e as coisas (BORGES, 2000b, p. 85s). Ora, a teologia do século
XX, com raras exceções, sucumbiu completamente ao racionalismo. Da neo-
escolástica, passando-se pela teologia transcendental de Karl Rahner, até as
teologias do político, o racionalismo esquematizante e esterilizador avassala a
teologia cristã.
Cumpre recuperar uma teologia simbólica, que dê à forma o lugar de
primazia que lhe cabe no processo de encontro com Cristo e na tematização
desse encontro, que é o pensar teológico. É o que propõe, por exemplo, a teologia
de Hans Urs von Balthasar, para quem “o próprio ser cristão é, de fato, forma. E
como não seria, se é graça, possibilidade de existência aberta para nós pelo Deus
que nos justifica, pelo Deus feito homem que nos redime?” (BALTHASAR, 1985, p.
19). Uma teologia simbólica é também uma teologia aberta ao mistério de todas as
coisas. Chama a atenção em boa parte da teologia do século XX a total falta de
abertura ao mistério. Tempo, espaço, natureza etc. são pressupostos da maneira
mais simples e linear possível. A literatura de Borges é um contínuo desafio à
contemplação do mistério das coisas e dos seres, dos tempos e dos destinos.
Em segundo lugar, é preciso que se atente para os aspectos dramáticos
que, nos contos de Borges, assume a crise da modernidade burguesa e liberal, o
que se revela, sobretudo, na impotência do sujeito, não obstante sua lucidez e
clarividência. Erik Lönnrot, de “La muerte y la brújula”, é, a esse respeito, uma
figura impressionante. Investigando uma série de crimes, no melhor estilo das
histórias policiais, logra desvendar o encadeamento dos mesmos, sem perceber,
no entanto, que está sendo atraído pelo criminoso a uma cilada em que
encontrará a morte. Igualmente impactante é a figura de Juan Dahlmann, de “El

36
Sur”. Tendo-se salvado de uma doença séria, encontra a morte num duelo a
caminho da estância aonde iria convalescer.
Em Borges, toda a lógica e o peso de uma tradição cultural
sofisticadíssima mostram-se impotentes diante do acaso, do azar e do absurdo.
Falta à teologia contemporânea essa consciência dramática acerca do que
significou a derrocada do mundo do liberalismo burguês. Alguns teólogos parecem
não se dar conta desse processo, ao passo que outros o celebram levianamente.
A crise da primeira metade do século XX, num arco que vai da I à II Guerra
Mundial, deixou um vazio de valores cujas últimas e trágicas conseqüências ainda
parecem longe de haver se esgotado. O pensamento teológico, em geral, opera
sempre a partir da univocidade, o que é um pesado tributo a correntes filosóficas e
sociológicas muito satisfeitas consigo mesmas. A literatura de Borges, ao
contrário, é um contínuo desafio a se superar qualquer visão linear e unilateral do
mundo e da vida. Nesse sentido, não obstante a temática metafísica, sua obra é
um convite a uma visão trágica e não filosófica da existência, pois, como escreve
Sergio Givone, “o saber filosófico é unívoco, o trágico, dual; por isso, são
incompatíveis” (GIVONE, 1991, p, 118). Ao explorar algumas aporias do
pensamento metafísico, Borges abre caminho para a irrupção do trágico.
Cabe mencionar ainda a ambivalência e complexidade do ser humano
tal qual aparece nos contos. Há uma ambivalência identitária, uma ambivalência
ética e uma ambivalência teológica. No primeiro caso, abundam os duplos já
referidos e os casos de múltiplas identidades, como em “El Inmortal”. No segundo,
temos quer a estratégia narrativa de “La forma de la espada”, já explorada
magistralmente por Borges em “Hombre de la esquina rosada”, de Historia
universal de la infamia, de 1935, em que o personagem só revela sua identidade e
sua culpa ao final da narrativa, até então conduzida como se se tratasse de um
terceiro, quer a vingança de “Emma Zunz”, que se deixa violar para ter um álibi
indiscutível, em função do assassinato que iria cometer a seguir. Ambivalência
teológica encontramos em “Tres versiones de Judas”, exploração magistral da
lógica da kénosis levada às últimas conseqüências. Todas essas formas de
ambivalência são um convite e uma provocação ao aprofundamento das visões

37
correntes acerca do ser humano, de sua identidade e de suas razões para agir,
aos quais o pensamento teológico deveria responder com determinação e
coragem.
Finalmente, é preciso que os teólogos aprendam com Borges a pensar
a não-imediatez da verdade. Esta se mostra sempre um pouco mais adiante, num
outro plano, de uma outra maneira, em outro grau de complexidade. Em suma,
uma teologia que leve a sério os desafios propostos pela obra de Borges será uma
teologia cônscia de que “além da força de qualquer outro ato de testemunho, a
literatura e as artes falam da obstinação do impenetrável, do absolutamente alheio
a nós, com o qual tropeçamos no labirinto da intimidade” (STEINER, 1998, p. 172).

Referências bibliográficas

38
AVENATTI DE PALUMBO, Cecilia Inés. La literatura en la estética de Hans Urs von
Balthasar: figura, drama y verdad. Salamanca: Secretariado Trinitario, 2002.
BALTHASAR, Hans Urs von. Gloria: una estetica teologica. V. I: La percezione della
forma. Milão: Jaca Book, 1985.
BARCELLOS, José Carlos. Literatura e teologia: perspectivas teórico-metodológicas no
pensamento católico contemporâneo. Numen: Revista de Estudos e Pesquisa da Religião.
Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 3 n. 2, jul./dez. 2000, p. 9-30.
BLANCH, Antonio. El hombre imaginario: una antropología literaria. Madri: PPC, 1995.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas v. I. 5 ed. Barcelona: Emecé, 2000a.
_________. Obras completas v. II. 4 ed. Barcelona: Emecé, 2000b
DUPLOYÉ, Pie. La religion de Péguy. Genebra: Slatkine Reprints, 1978 (1 ed. 1965).
GESCHÉ, Adolphe. “La théologie dans le temps de l’homme. Littérature et Révélation” in
VERMEYLEN, Jacques (org.). Cultures et théologies en Europe: jalons pour un dialogue.
Paris: Cerf, 1995.
GIVONE, Sergio. Desencanto del mundo y pensamiento trágico. Madri: Visor, 1991.
GUARDINI, Romano. La visione cattolica del mondo. Brescia: Morcelliana, 1994.
_________. El fin de la modernidad. Quien sabe de Dios conoce al hombre. Madri: PPC,
1995.
KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as Escrituras: retratos teológico-literários. São
Paulo: Loyola, 1999.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Porto: Rés, 1983.
STEINER, George. Presencias reales. Barcelona: Destino, 1998.
SZONDI, Peter. Introduction to Literary Hermeneutics. Cambridge: Cambridge University
Press, 1995.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1980.

39
O DEUS DA RELIGIÃO
E O DEUS DA LITERATURA

RAFAEL CAMORLINGA

40
O DEUS DA RELIGIÃO
E O DEUS DA LITERATURA
Rafael Camorlinga (UFSC)3

Der entgültige gefundene Gott


ist kein Gott (L. Boros)4

Introdução

O sacrossanto nome de DEUS é certamente o mais proferido no mundo


ocidental, também chamado de "mundo cristão". A freqüência dessa palavra na
língua escrita não é menor; e se passamos ao mundo virtual nos deparamos com
esse monossílabo milhões de vezes,5 de maneira que parece não haver palavra
que sobrepasse essas cifras. A familiaridade com este substantivo confere ao
"Senhor Deus" o status de "membro virtual da família ocidental" (Miles, 2002: 15).
Com efeito, se recebemos uma boa notícia, escapamos de uma desgraça ou
alcançamos algum objetivo, é "graças a Deus". Um desejo longamente acalentado
tornar-se-á realidade "se Deus quiser". A ameaça de um perigo iminente é
esconjurada com um "Deus me livre!". As catástrofes naturais que se abatem
sobre cidades e nações costumam ser atribuídas "à vontade de Deus", embora o
angustiante "porquê" desses flagelos fique sem resposta.6

Sendo, pois, "Deus" o ser mais invocado, o nome impresso em milhões


de páginas e objeto de culto para bilhões de crentes, sendo, justamente por isso, o

3
Professor do Departamento de Língua e Literaturas Estrangeiras da UFSC. Vice Coordenador do
NUTEL – Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura, UFSC, 2006.
4
Boros, Ladislaus. Der anwesende Gott. Walter Verlag, Olten und Freiburg, 1964, p. 236. Uma
tradução aproximada do texto do teólogo húngaro pode ser: "o Deus definitivamente encontrado é
apenas um deus".
5
No universo da língua portuguesa "Deus" aparece 8 milhões de vezes. Já no acervo em inglês
"God" se encontra 172 milhões de vezes (Google, consulta em 20/03/06).
6
O tsunami que castigou as nações asiáticas no fim de 2004 foi uma exceção. Sobreviventes
desesperados ao contemplar seus entes queridos mortos, perguntavam, dirigindo-se a Deus:
"porque fizeste isso conosco? O que fizemos para merecer tamanha desgraça?" (Proceso, N.
1470, 2/1/05, p. 51).

41
vocábulo mais denso de significado que se possa imaginar, é passível de múltiplos
enfoques. O lugar privilegiado para falar dele e de tudo que lhe diz respeito é
certamente a religião. É desnecessário salientar o papel de protagonista do
personagem Deus nas religiões abraâmicas. O volume de estudos dedicados ao
tema cresce de maneira exponencial quando se adentra na teologia - a "ciência de
Deus". Além disso, e em vista da ubiqüidade do Ser, um de cujos atributos é
justamente a onipresença, indagamo-nos também sobre sua performance no
universo literário. Qual será a face "literária" desse Deus cultuado pela religião e
estudado pela teologia? Buscaremos a resposta a essa e outras perguntas
principalmente nas páginas da Bíblia, O Livro de cristãos, judeus e muçulmanos.

O Deus da religião

O homo sapiens, ao se tornar homo religiosus pressentiu a existência de


seres ou forças que o ultrapassavam, sentindo ao mesmo tempo a necessidade
de se relacionar com eles. Contudo, é ainda cedo para falar de Deus ou deuses
responsáveis pelos fenômenos que não era possível explicar. "Parece que a
humanidade pressentiu tudo isso antes de temer ou de invocar uma divindade.
Com efeito, na religião, Deus chegou com muito atraso" (Galimberti, 2003: 12).
Não só; há sistemas religiosos em que a divindade está ausente. "Sem dúvida,
crer é natural para o único animal que sabe que vai morrer, mas é tão pouco
natural 'crer em Deus' que muitas civilizações refinadas de que temos notícia
viveram e morreram tranqüilamente sem ter a menor idéia de um Criador."
(Debray, 2004: 16). Na esteira desses achados, outra pesquisadora constata que
"nem todas as religiões são teistas" (Armstrong, 2001: 9), concluindo assim pela
existência de "religiões ateias".

No entanto, o monoteísmo que predomina no mundo ocidental e no


oriente próximo é um caso à parte. O Deus de cristãos, judeus e muçulmanos, ao
se revelar, suscita um povo que o cultue segundo parâmetros rigidamente

42
determinados e que observe um código de conduta minuciosamente estabelecido.
Diferentemente das antes mencionadas, as do "religiões do Livro" são
marcadamente teistas, aliás, teocéntricas. "Creio em um só Deus, criador do céu e
da terra", reza o símbolo da fé que o católico recita na missa dominical. A fórmula
teológica remete diretamente às primeiras páginas da Bíblia (Gn 1: ) que atestam
o poder criador de Deus. Porém, a própria Bíblia, tão prolixa em narrar as ações
divinas, é sumamente parca quando se trata de olhar de perto o que e o quem de
Elohim. "Em nenhum lugar chega a Bíblia à cômoda clareza. Sempre e em toda
parte, quer seja na obscura luta do livro de Jó, quer seja ao sol matutino dos
Evangélios, o mistério não é tirado, mas, precisamente desdobrado ante nossos
olhos" (Cat. Para adultos, p. 561).

Uma rápida consulta às páginas bíblicas revela um Deus a procura dos


homens e interessado no relacionamento com eles, oferecendo benefícios
imediatos e prometendo um futuro alvissareiro. Entretanto, prevalece a figura de
um Deus prestes a castigar antes que a premiar, um Deus irritadiço, vingativo, que
destrói o que ele mesmo criara, que se arrepende de ter sido bom, que grita e
ameaça; em suma, um Deus aterrador. Observações como essas fazem com que
um "biógrafo de Deus" afirme: "É extranho dizer, mas Deus não é nenhum santo.
Muitas objeções podem ser feitas a seu respeito e já houve várias tentativas de
melhorá-lo. Muitas coisas que a Bíblia diz a seu respeito raramente são pregadas
no púlpito porque se examinadas mais de perto, seriam um escândalo" (Miles,
2002: 17). A imagem do Deus "religioso", com base nas Escrituras, e,
posteriormente, desenvolvida pelo cristianismo católico, ainda que melhorada em
relação ao Deus bíblico antes mencionado, é a de uma divindade excessivamente
preocupada com a ética.

Tendo, pois, constatado a prolixidade da Bíblia no que diz respeito à


existência, e a unicidade de Deus (Deut 6: 4-5) e a escassez quanto à essência,
quem Ele realmente é, consultamos agora a pesquisa extra-bíblica buscando
desanuviar a atmosfera. Os estudiosos do tema assinalam, em primeiro lugar, a

43
existência do Sacro (das Heilige), caracterizado pelo numinoso, que, por sua vez,
se desdobra no binômio mysterium tremendum e mysterium fascinosum (Otto,
1994). Temos, por um lado, o afastamento do ser humano ante o mistério que o
ultrapassa; por outro, a atração e a entrega àquilo que o fascina. "Essa relação
ambivalente é a essência de toda religião" (Galimberti, 2003: 11). Seguem-se logo
mais os ritos, mandatos e proibições com o intuito de garantir ao mesmo tempo a
distância e o contato com o ser(es) misterioso(s).

Há quem veja nesse Ser ou seres, cuja experiência deflagra os referidos


sentimentos de afastamento-atração, o Deus do monoteísmo convidando o ser
humano para entrar em contato com Ele, ainda que mantendo a distância. À
experiência do tremendum corresponde, por parte do homem, a atitude de
adoração; ao fascinosum a de oração (Mandrioni, 1993: 196). Mas nem todos
concordam com essa dedução. A conclusão à qual chega Durkheim a partir de
uma premissa análoga, fala apenas de "coisas sagradas, isto é, separadas,
proibidas".7

A universalidade do fenômeno religioso é comumente admitida (Bagú,


1989; Elíade, 1999; Armstrong, 2001). No entanto, religião não é um conceito
unívoco e sim polivalente, aliás, capaz de gerar equívocos e até mal-entendidos.8
O que dizer, então, das forças, entes, seres, ou Ser deflagradores do referido
fenômeno? Nem mesmo sobre o Deus das religiões abraâmicas sabemos muito.
Nem sequer a própria fórmula do credo católico "eu creio em Deus" reveste o
mesmo sentido junto às comunidades que a recitam nos diversos cantos do
mundo ao longo dos séculos. "Por conseguinte, a palavra Deus não contém uma
idéia imutável; ao contrário, contém todo um espectro de significados, alguns dos
quais contraditórios ou até exclusivos" (Armstrong, 2001: 10).

7
Esta é a definição completa de religião dada pelo estudioso: "uma religião é um sistema solidário
de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e
práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ele
aderem" (Durkheim, 1996: 32).
8
Os desentendimentos em matéria religiosa têm ocasionado numerosos conflitos ao longo da
história, como provam fatos antigos e recentes, assim como os atuais.

44
O parco resultado da busca faz com que voltemos à atenção para o
próprio ato de buscar. É isso que pensadores tão pouco ortodoxos em matéria de
religião, como Nietzsche, fizeram ao indagar: "O que há nas profundezas do ser
humano para que sinta a necessidade da religião? Que forças ocultas
impulsionam o homem a ser religioso?" (citado por Camorlinga, JM, p. 7).9 O
mesmo pesquisador encontra a resposta, ou uma possível resposta, no
pensamento de Pascal: "O homem supera infinitamente o homem" (Id, Ibid., p.
12). Armstrong, por sua vez, na sua obra Uma história de Deus, completa: "É uma
característica notável da mente humana poder criar conceitos que a transcendem"
(p. 11). Essa busca de transcendência aponta para um vazio do tamanho do
objeto buscado.10 Aparecerá algum dia, nesta ou na outra vida, Aquele/Aquilo
capaz de preencher tamanho vácuo? Será porventura a própria busca indício ou
início do encontro almejado? "Não me buscarias, se não me tivesses já
encontrado" (S. Agustinho)11. A religião, e junto com ela a arte, pretendem vir ao
encontro desses anseios. O Cristianismo conseguiu reduzir o Filho de Deus,
concebido no ventre de uma mulher, ao tamanho da condição humana. Ao
humanizar Deus, a religião pretende divinizar o ser humano, com os resultados
que temos diante de nós. Dentre as artes cabe à literatura um papel importante na
busca de resposta aos questionamentos levantados.

O "outro" Deus

A arte, de maneira geral, tem incursionado pelo universo religioso ao


abordar temas relativos a Deus, aos deuses e a tudo o que lhes diz respeito. A
contribuição da literatura neste particular tem sido conspícua. A Bíblia e os
9
Curiosamente, o mesmo pensamento e quase com as mesmas palavras encontramos no escritor
mexicano José Revueltas, caracterizado por sua crítica feroz à religião, em especial ao cristianismo
católico: "El hombre se martiriza buscando verdades absolutas. Pero lo importante no es que tales
verdades existan, sino que exista esa propensión del hombre a buscarlas" (Domíngues M., 1996,
vol. I: 1029).
10
"¿Adónde te escondiste, Amado, y me dejaste com gemido?", brada o místico espanhol S. Juan
de la Cruz.
11
Octavio Paz diz enuncia parecido a respeito do poema: "Cada lector busca algo en el poema. Y
no es insólito que lo encuentre: ya lo llevaba dentro" (Paz, 1990: 24).

45
inúmeros escritos hagiográficos e teológicos, ao se utilizarem da linguagem, têm
que recorrer necessariamente à literatura. A estreita vinculação da experiência
religiosa com a palavra é inquestionável. "Uma experiência que não for levada até
a linguagem (grifo no original) continuará sendo cega, confusa e incomunicável.
Portanto, nem tudo é linguagem na experiência religiosa, mas a experiência
religiosa não existe sem linguagem" (Ricoeur, In: Barcellos, 2001: 20). Uma vez
que nosso interesse é o "perfil literário" de Deus, abordamos novamente a Bíblia
com esse intuito. Comumente a Escritura Sagrada é vista na sua dimensão
religiosa, mas isso não impede que seja também abordada pelo viés estético. "Em
termos literários e históricos (grifo no original), a Bíblia surgiu através de agentes e
processos humanos que, em si, não são misteriosos. Em conseqüência ela pode
ser discutida mais ou menos como a Ilíada, de Homero, ou qualquer outra obra
literária antiga" (Gabel - Wheeler, 1993: 223). Vista sob essa ótica, a Bíblia pode
ser considerada como o maior best-seller de todos os tempos, cujas edições
totalizaram 2 bilhões de exemplares só no último século, traduzida a 2 mil
línguas.12 Conseqüentemente, o Senhor Deus é um personagem sem igual da
literatura universal porque "nenhum personagem -no palco, na página ou na tela-,
jamais teve o sucesso que Deus teve" (Miles, 2002: 15).

A princípio, o recurso à linguagem literária na Bíblia surge do mistério


em torno do próprio nome de Yahweh, ser enigmático que se revela a Moisés e
cujo cartão de visita é: "Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó" (Ex 3,
15). O estreito relacionamento entre o nome e o nomeado, por uma parte, e a
reverência devida a Deus, por outra, tornam necessário o recurso a
circunlocuções e eufemismos próprios da linguagem figurada. O tabu, isto é, a
proibição de pronunciar o nome "verdadeiro" do ser em questão aconselha o uso
da metáfora. "Lembramos imediatamente do fértil talento hebraico para
metaforizar o inominável Iavé em Rocha, Sol, em Leão, etc" (Wellek - Warren,
1973: 243). Imagem, metáfora, símbolo e mito, elementos centrais do discurso

12
Informação retirada da revista "BIBLIOTECA Entre LIVROS", Ano 1, N. 2, p. 8.

46
literário segundo os mesmos críticos, formam também o arcabouço do texto
bíblico (Gabel - Wheeler, 1993: 27).

O mito é, segundo Teo de Alexandria (s. XII), "discurso mentiroso que


exprime a verdade" (Pseudés logos eikonixon aletheian) A ênfase em uma ou
outra dessas características levará a uma concepção de mito como discurso
pouco confiável e que não deve ser levada a sério, ou considerá-lo como veículo
de verdade, função que desempenha de uma maneira peculiar, isto é,
figurativamente - "eikonixon aletheian". Para evitar o risco de encapsular o mito
numa definição, apelamos para a descrição poético-filosófica de Fernando
Pessoa, em "Ulisses":

O MITO é o nada que é tudo,


O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
13
Vivo e desnudo.

Para as grandes religiões monoteístas que congregam um terço da


Humanidade o mito parece ser nada, ou quase nada; elas recusam a pecha de
"mitológicas", alegando contar com uma sólida base histórica. Porém, não se deve
esquecer que as narrativas bíblicas não foram codificadas em um discurso
unívoco, dogmático. O corpus dogmaticum elaborado posteriormente, sobretudo
pelas igrejas cristãs, é apenas uma das interpretações; por certo, não isenta de
"contaminações" mitológicas. "Chama a atenção o fato de que a tentativa de fixar
a narrativa mítica, como, por exemplo, a da encarnação, só é possível em termos
novamente míticos" (Magalhães, 2000: 98). O discurso religioso não pode se
afastar da sua matriz mitológica, ou melhor, mito-poética, sob pena de perder seu
apelo para os homens e mulheres de nosso e de todos os tempos. Eliminado o

13
O poema continua assim: "Este que aqui aportou,/ Foi por não ser existindo./Sem existir nos
bastou./ Por não ter vindo foi vindo/ E nos creou. E assim a lenda se escorre/a entrar na realidade,/
E a fecundá-la decorre./ Em baixo, a vida, metade/ De nada, morre". (Pessoa, F. Obra poética.
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2001, p. 72.

47
fascinosum, ficará apenas o tremendum, que longe de ensejar o encontro,
propiciará o afastamento, ou até o desencontro. Assim, tendo em mente as
"Religiões do Livro" podemos perguntar: o que ficaria da figura de Alá, Elohim,
Deus, despido de todo pendor mítico? Uma divindade cruel, arbitrária e prepotente
à serviço de grupos nacionais ou tribais, como prova a história antiga e recente, ou
então, a realidade vivida atualmente. "O Deus definitivamente encontrado, é
apenas um deus".

A preocupação do discurso religioso com uma interpretação unívoca


obriga os exegetas a fazerem complicadas acrobacias para explicar o inexplicável,
aquilo que nem admite explicação, nem precisa dela. Já, se levarmos em
consideração o caráter polissémico, conotativo e sugestivo da linguagem literária,
a mensagem aparecerá em toda a sua beleza e "clareza". A fé poética (Borges) ou
"suspensão da descrença" (Colerigde) não exclui, mas vai além da fé religiosa. A
excessiva preocupação com a ortodoxia acaba criando a imagem de um Deus
moralista, legalista e "teológico". Já um olhar literário ao texto sacro assinala um
Deus com todas as fragilidades humanas, mas também com as suas grandezas.
"Ele se revela com uma característica única: a sua fidelidade. É, ao mesmo tempo,
um Deus 'ciumento' como um Deus amante. Os ciúmes de Deus são ao mesmo
tempo ira terrível e frágil ternura" (Arias, 2004: 119-120).
O Deus polifacetado que emerge de uma leitura literária da Bíblia é
difícil de conciliar com o da abordagem religiosa. Mais difícil ainda é reconhecer
nele o "motor imóvel" aristotélico, retomado pela Escolástica. Uma visão literária
do Senhor Deus se põe em conflito tanto com a unicidade quanto com a
imutabilidade divina. "A Bíblia insiste na unidade de Deus mais do que em
qualquer outra coisa. E, no entanto, esse mesmo ser combina diversas
personalidades" (Miles, 2002: 17). Além disso, a idéia de Deus tem evoluído ao
longo da história, o que põe em cheque a existência de uma "visão objetiva" de
Deus. "Cada geração tem de criar a sua imagem de Deus que funcionará para

48
ela.14 É muito mais importante uma determinada idéia de Deus funcionar do que
ser lógica ou cientificamente válida" (Armstrong, 2001: 11). E, se essa idéia tem
funcionado no passado e continua funcionando no presente a ponto de se tornar
atraente e até viciante (Miles, Id., Ibid., p. 16), é graças à literatura. Esta, como
sabemos, privilegia a estética, ainda que sem desdenhar da ética, convicta de que
o triunfo do pulchrum não será completo enquanto não acarretar o do bonum.15 E
vice-versa.

BIBLIOGRAFIA

ARIAS, Juan. Um Deus para 2000. Trad. Roseana Murray. Petrópolis: Vozes, 2000.
__________ A Bíblia e seus segredos. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus - Quatro milênios de busca do Judaísmo,
Cristianismo e Budismo. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
BAGÚ, Sergio. La idea de Dios en la sociedad de los hombres. México: Siglo XXI
Editores, 1989.
BARCELLOS, Carlos A. Literatura e Espiritualidade. Bauru: Edusc, SP., 2001.
CAMORLINGA, J. M. Religión - una aproximación filosófica. UNAM, México (mimeo).
DEBRAY, Regis. Deus - um itinerário. Trad. Jonatas B. Neto. Companhia das Letras: São
Paulo, 2004.
DOMINGUEZ M. Christopher (Org.). Antología de la narrativa mexicana del siglo XX. Vol
I, México: Fondo de Cutura Econômica, 1996.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
GABEL, J. - WHEELER, CH. A Bíblia como literatura. Trad. Adail U. Sobral e Maria S.
Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1993.
NOVO CATECISMO - a fé para adultos. São Paulo: Loyola 1988.
MAGALHES, Antonio. Deus no espelho das palavras - Teologia e literatura em diálogo.
São Paulo: Paulinas, 2000.
MANDRIONI, H. Delfor. "Religión, Etica y Estética". In: GOMEZ C. José (Ed.),
Enciclopedia Iberoamericana de Filosofía (3) Religión. Valladolid: Editorial Trotta, 1993.
MILES, Jack. Deus, uma Biografia. Trad. José R. Siqueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
OTTO, Rudolf. Lo Santo. Trad. Fernando Vela. Madrid: Alianza Editorial, 1998.
PAZ, Octavio. El Arco y la Lira. México: Fondo de Cultura Económica, 1990 (7ª
reimpresión).

14
Arias é mais radical, ao afirmar: "Cada momento histórico costuma criar o seu Deus ou
assassiná-lo" (Arias, 2000: 15).
15
"Una moral sin estética es fea y una estética sin moral resulta perversa" (Teitelboim, Volodia. Los
dos Borges. Ediciones Merán, Albacete (España), 2003, p. 182).

49
WELLEK, R. - WARREN, A. Teoria da Literatura. Trad. J. Palla e C. Capa. Lisboa:
Publicações Europa-América Ltda., 1976.

50
A CONFISSÃO GERAL DE
RIOBALDO

WALDECY TENÓRIO

51
A CONFISSÃO GERAL DE RIOBALDO

Waldecy Tenório (-USP)16

Numa passagem de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, o


narrador-protagonista recorda os dias durante os quais viveu num sítio, perto de
um lugar chamado Currais do Padre, um lugar tão pobre que lá não havia nada,
nem curral nem padre. “Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever,
assim mesmo possuía um livro, capeado em ouro, que se chamava o ‘Senclér das
ilhas’ e que pedi para deletrear nos meus descansos”. E depois de ter lido o livro,
diz o narrador que “nele achei outras verdades, muito extraordinárias” (pág. 287).
O que se deseja neste artigo é mostrar algumas verdades também extraordinárias
que esperam ser acordadas pelo leitor de Grande Sertão.

Comecemos por uma citação de Julia Kristeva:

... é necessário saber apesar de tudo se essa coisa que fala quando eu
falo é que me implica totalmente em cada som que enuncio, em cada
palavra que escrevo, em cada signo que faço, se essa coisa é realmente
eu, ou um outro que existe em mim, ou ainda um não sei que de exterior
a mim mesmo que se exprime através de minha boca em virtude de
17
qualquer processo ainda inexplicado

Logo depois de fazer esta afirmação, que poderia incriminá-la em


flagrante delito de metafísica, Kristeva prudentemente se esquiva e corta o
assunto dizendo: “Mas não se vai responder aqui a esta questão”. A verdade é
que ela não vai responder “aqui” nem em lugar nenhum justamente porque, para
fazê-lo, seria necessário seguir o percurso que vai da lingüística à teologia, ou
vice-versa, o que Kristeva não faria jamais.

16
Waldecy Tenório está vinculado ao IEA - Instituto de Estudos Avançados da USP como
pesquisador na área de Estudos Interdisciplinares de Literatura. É graduado em Letras Clássicas e
doutor em Filosofia pela mesma Universidade. Autor, entre outros, de A bailadora andaluza: a
explosão do sagrado na poesia de João Cabral (Ateliê Editorial/Fapesp).
17
No Prefácio de História da Linguagem, Lisboa, Ed. 70, 1969.

52
No entanto, outro grande lingüista, A. J. Greimas, se também adota uma
atitude de prudência, e se também não faz o percurso teológico, pelo menos nos
faz um sinal. Ele diz: “Talvez exista um mistério na linguagem.18
Aproximando-se assim os dois textos, como estamos fazendo, parece
que Greimas estaria respondendo a Kristeva. Mas isto não passa de suposição e,
afinal, não é relevante saber, pelo menos no nosso caso, se teria havido ou não
esse diálogo entre os dois. O relevante, aí sim, é o fato de Greimas, sendo quem
é, ter podido dizer o que nos disse.
Agora, é mais ou menos evidente que a presença do advérbio “talvez”
no início da frase, sob certo aspecto, diminui a força da afirmação de Greimas. Ele
não diz: Há um mistério. Diz: Talvez haja. Mas vistas sob outro aspecto, as coisas
se passam de maneira diferente. É que o advérbio confere ao pensamento de
Greimas um tom claro-escuro, ou uma aura crepuscular, que o aproxima da idéia
agostiniana de “cognitio verpertina”, uma forma de conhecimento que se dá na
penumbra da tarde – ou na dúvida de um “talvez”.
Olhando-se dessa maneira, o advérbio dá outra nuance à frase, ainda
mais se aceitarmos a fórmula de Jean Lacroix segundo a qual toda dúvida sugere
uma crença superior. Eis por que o nosso ponto de partida é a fragilidade do
“talvez” de Greimas.

É com isto em mente que abrimos a primeira página do romance. Como


ele principia? Por um incipit famoso: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de
briga de homem não”. Esta voz que fala é a voz do narrador, que mais tarde
saberemos tratar-se de Riobaldo, o protagonista da história. E aqui se insinua
uma pergunta: A quem o narrador se dirige? Ou, nos termos de Roman
Jakobson19, quem é o destinatário neste ato lingüístico de comunicação? A
resposta é: Não sabemos.
Por duas razões. A primeira é que o emissor da mensagem só se refere
ao destinatário de forma muito vaga, que absolutamente não dá para identificá-lo.

18
Apud J.D. Grossan.
19
No ensaio “Lingüística e poética”.

53
“O senhor tolere” (pág. 9), “O senhor entenda” (pág. 10), “O senhor não duvide”
(pág. 12), “Exponho ao senhor” (pág. 39), e assim em mil variantes, o tempo todo.
De vez em quando, o narrador explora a função fática da linguagem, querendo
saber se o outro está atento ao que ele diz, se o canal de comunicação continua
aberto: “Hem?” “Hem?” O destinatário, no entanto, não diz nada, não responde,
não reage às provocações do narrador.
É uma marca textual do romance. O narrador abre o coração, conta a
sua vida, resgata lembranças, pensa, provoca, pergunta, implora uma resposta.
Silêncio. Joga isca atrás de isca: “E como é mesmo que o senhor fraseia?” (pág.
57). Silêncio. “Invejo é a instrução que o senhor tem” (pág. 78). Silêncio. O leitor
se aflige. Quem é essa Esfinge? Mas não se jogue a culpa no narrador, pois ele
também não sabe quem é o destinatário de sua mensagem, e, como nós, está
intrigado.
Tanto que já na segunda página do romance somos testemunhas de
sua perplexidade, naquela passagem na qual ele está contando o que aconteceu
no Andrequicé. Por lá passou um “moço de fora” e disse que, para fazer um
determinado percurso, no qual qualquer jagunço gastava um dia e meio a cavalo,
ele só precisaria de vinte minutos. E o narrador conta então o que ouviu de outras
pessoas: “Tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no
Andrequicé”.
Ora, ao pronunciar a palavra Diabo, o narrador, ele mesmo tem um
sobressalto, um frio na barriga e, neste momento, desconfia da própria pessoa a
quem está se dirigindo:

Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um
exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou
por lá, por puro divertimento engraçado?

A linguagem é cautelosa, como gato em cima de brasa, mas a suspeita


está lançada. Será que o destinatário é o Diabo mesmo, ou tudo não passa de
“prazido divertimento engraçado?” Lembrando Edgar Morin, o pensamento do
romance é um pensamento complexo: “Deus existe mesmo quando não há. Mas
o demônio não precisa de existir para haver” (pág. 49). Para quem se inventou no

54
gosto de “especular idéia” (pág. 11), é assim que as coisas se passam: “Tudo tem
seus mistérios” (pág. 221) e “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza”
(pág. 315).
Mas afinal, esse destinatário suspeito, foi mesmo ele quem passou
pelo Andrequicé? “Sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em
hora, às vezes clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há,
quis mangar” (pág. 10).
Por enquanto, o destinatário da mensagem está livre da suspeita de ser
o tal moço, o Diabo. No entanto, a existência deste não está descartada, donde a
presença da oração concessiva: “Se ele existe... quis mangar“. Para desvendar
esse mistério, podemos seguir a pista levantada por um mestre da crítica, Roland
Barthes: em literatura, há muitos lugares de chegar mas um só de partir: esse
lugar é o texto. Voltemos então ao incipit do romance:

- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus
esteja. Alvejei mira em árvore no quintal, no baixo do córrego. Por meu
acerto. Todo dia isso faço: gosto, desde mal em minha mocidade. Daí
vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os
olhos de nem ser – se viu; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu
não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de
beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão:
determinaram – era o demo. Povo pascóvio. Mataram. Dono dele nem
sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões.
O senhor ri certas risadas...

Desde o início do romance, e a última citação o comprova, sentimos a


presença/ausência de Deus ou do diabo, sempre numa atmosfera de
ambigüidade. É e não é, pode ser que seja, e se não for? E sempre alguma coisa
desnorteia o leitor. O bezerro, ou seja, o demo, “figurava rindo”. Do destinatário, o
narrador diz que “ri certas risadas”. E retorna a suspeita. Então o demo e o
destinatário são a mesma pessoa? Hélio Pellegrino sugere que não quando nos
diz que o demônio, partidário dos sistemas, é muito sério, não conhece nossas
alegrias, não sabe rir 4.

4
A burrice do Demônio

55
Por isso, quando o narrador diz “O senhor ri certas risadas” temos o
direito de fazer um pequeno exercício de transleitura e ouvir a voz de Milan
Kundera no famoso discurso de Jerusalém:

Gosto de imaginar que François Rabelais um dia ouviu o riso de Deus e


foi assim que nasceu a idéia do primeiro grande romance europeu.
Agrada-me pensar que a arte do romance veio ao mundo como eco do
riso de Deus.

Então, quem é esse que figura rindo e esse que ri? Para falar como o
próprio Riobaldo, “é aí que a pergunta se pergunta” (pág. 86). Em todo caso,
permanecem ainda as duas pistas de nossa investigação. Pode ser o diabo, por
que não? A literatura já esteve tantas vezes no Inferno. E além disso, a presença
do diabo em qualquer romance seria evidente se ele não fosse um mestre do
disfarce, aquele que se esgueira e passa despercebido, como na cena do Pacto.
A segunda pista, já sabemos, é a seguinte: o destinatário enigmático é
Deus. Mas como justificar esta hipótese? Bem, ele também é um mestre do
disfarce, aparece e desaparece, Deus absconditus, age como o esgrimista de
Kierkegaard: o adversário sente o golpe, é tocado, mas sempre num lugar muito
diferente do que esperava. E, além disso, ele é sutil, a ponto de um teólogo como
Karl Rahner ter podido defender a idéia de que o cristianismo é uma forma radical
de agnosticismo. E de um Jack Milles ter dito que, de Deus, não se pode escrever
uma biografia, mas uma teografia, que ele mesmo define como o movimento do
discurso em direção ao silêncio. Desse modo, se o interlocutor de Riobaldo se
disfarça, se esconde, silencia – e ri, pode ser um disfarce de Deus, por que não?
Entretanto, como estamos lendo um romance, o melhor caminho
para comprovar a hipótese levantada é a própria linguagem. Tivemos alguma
expectativa em relação a Kristeva, mas logo percebemos que não podíamos
contar com ela. Greimas, por sua vez, nos deu uma certa suspeita, mas só. E se
procurássemos apoio em algum teólogo? Justamente G. Crespy, que trabalha
com a relação entre linguagem e teologia, vem nos dizer que nossas
representações de Deus têm sempre um suporte cultural de tal modo que, quando

56
a cultura se transforma, elas também mudam. O que isso quer dizer então? Que
Deus existe na linguagem e é lá que devemos procurá-lo.5 Afinal, de Hesíodo a
Heidegger, sabemos que a linguagem é a morada do ser.
Peçamos então a ajuda de Jakobson num de seus ensaios mais
significativos e de grande repercussão nos estudos literários, aquele, já citado, no
qual o lingüista romeno discute os fatores e as funções da linguagem.6 O que diz,
em suma, esse texto? Não se vai repetir aqui o ensaio, mas apenas recordar
alguns pontos de sua estrutura básica. A comunicação lingüística exige que se dê
a presença de três fatores: um remetente, uma mensagem, um destinatário. É
necessário ainda que haja um contexto, um referencial comum e um código
conhecido pelo destinatário. Daí decorrem as seis funções básicas que Jakobson
distingue na comunicação verbal.
Podemos alinhá-las assim: A função emotiva, ou expressiva, que se
caracteriza pela transmissão de conteúdos emotivos próprios do emissor; a função
apelativa, que pretende influenciar o modo de pensar do receptor ou destinatário;
a função referencial, também chamada informativa, que consiste na transmissão
de um saber, um conteúdo intelectual de que se fala; a função fática, que
estabelece, prolonga ou interrompe a comunicação; a função metalingüística, que
verifica se emissor e receptor usam o mesmo código e, por fim, a função poética,
centrada sobre a própria mensagem.
Uma vez que estamos no universo da ficção, vale a pena recordar os
pressupostos da função poética. Quando ela está presente? Quando a
mensagem cria a sua própria realidade, que não se identifica com a realidade
empírica. Della Volpe dá um exemplo a propósito dos nevoeiros londrinos: se eles
estão presentes na obra de Dickens, é graças à palavra do romancista, a qual se
basta a si própria. E Della Volpe pergunta: que palavra de geógrafo, de historiador

5
Essais sur la situation actuelle de la foi, p.82.
6
Lingüistica e poética.

57
ou de cientista é verdadeira por si mesma?7 O mesmo vale para as neblinas de
Siruiz e para o mundo criado pela linguagem de Guimarães Rosa.
Mas há no ensaio de Jakobson uma passagem que às vezes se
esquece e que devemos retomar por ser importante para a hipótese que estamos
levantando. É quando, depois de explicar as funções da linguagem, ele diz:
“Certas funções podem ser facilmente inferidas desse modelo”, e aí vem o que
interessa sublinhar: “Assim, a função mágica, encantatória, é sobretudo a
conversão de uma pessoa ausente em destinatário de uma mensagem conativa.”
Portanto, quando fazemos de um ausente o destinatário de uma mensagem
conativa, estamos realizando a função mágica da linguagem e entrando em
contato com o Absoluto. Não é o que acontece em Grande Sertão?
Mas ainda assim, persiste o mistério sobre a identidade desse
destinatário ausente. Entre ele e Riobaldo há, ao mesmo tempo, proximidade e
distância. “O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho” (pág. 33). E, no
entanto, Riobaldo sente por ele uma atração inexplicável. No começo do
romance, não quer que o outro vá embora (pág. 22). Mais adiante, apesar do
silêncio do destinatário, ele espera o diálogo: “Mais hoje, mais amanhã, quer ver
que o senhor põe uma resposta” (pág. 87). E no final do romance, ele constata
que a relação com o outro é sempre difícil: “O querer-bem da gente se despedindo
como um riso e soluço” (pág. 442).
Quem é esse que assim atormenta Riobaldo? Por artes mágicas, esse
que se esconde nos interstícios da linguagem não poderia ser o Diabo? Sim, já
vimos isso, porém contra essa hipótese pesam os argumentos que levantamos
antes e pesa, sobretudo, o depoimento final do narrador: “O diabo não há! É o que
eu digo, se for... Existe é homem humano”. A última palavra do romance –
“Travessia” – indica uma mudança.
A mudança se esclarece quando Riobaldo diz: “O sério é isto, da história
toda – por isto foi que a estória eu lhe contei - : eu não sentia nada. Só uma
transformação, pesável” (pág. 86). Ora, essa transformação que se dá por meio de

7
In: Critica del gusto.

58
um diálogo secreto – o dialogismo interior de Bakhtin – é a resposta que Riobaldo
esperou durante o romance inteiro.
Mas então quem é este cuja palavra pode transformar assim a vida do
jagunço. Deus? Kristeva sugere, mas se esquiva, Greimas oferece uma pista,
mas hesita. Crespy e Jakobson são mais convincentes, assim como Bakhtin.
Porém, o argumento decisivo para resolver a questão vem de Wolfgang Iser e
pode ser formulado assim: Uma vez que Deus não pode ser nada, está destinado
a ser no-nada, ou seja, nonada, justamente a palavra pela qual o romance
principia. 8

“O senhor me diga: o senhor desconfiou de alguma arte, concebeu


alguma coisa?” (pág. 408). Vou lhe dizer um segredo: “Nonada” é uma
invocação, ou talvez uma prece, e o destinatário misterioso a quem o narrador se
dirige é Deus. É a Deus, portanto, que ele narra toda a sua vida, numa confissão
geral. E Deus, esse grande mestre do disfarce, escondido ali no romance desde o
inicio, desde a primeira palavra, sem que nós o suspeitássemos!
Por isso, Riobaldo não precisa de “suma doutoração” (pág. 14) para
nos dizer que “no sertão, o que é doideira às vezes é a razão mais certa” (pág.
217). Nem para nos lembrar que “um bom entendedor num bando faz muita
necessidade” (pág. 302). Para que? Para encontrar o que ele mesmo encontrou
não nos “livros de estudo” mas no “Senclér das ilhas” e, enfim, para descobrir esta
verdade muito extraordinária que acabamos de demonstrar. “Senhor o que acha?”

BIBLIOGRAFIA

CRESPY, G. Essais sur la situation actuelle de la foi, Paris, Cerf, 1970.


CROSSAN, J.D. Incursion sobre lo articulado, Buenos Aires, Ediciones Megalopolis, 1976.
ISER, Wolfgang. Rutas de la interpretación, México, FCE, 2005.
JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação, SP, Cultrix, 1970.
KRISTEVA, J. História da Linguagem, Lisboa, Ed. 70, 1969..
PELLEGRINO, H. A burrice do demônio, RJ, Rocco, 1988.
ROSA, J.G. Grande Sertão: Veredas, RJ, José Olypmpio, 1970.

8 Rutas de la interpretacion, pag 248


.

59
60
ENTRE LOGOS E MYTHOS EM
CITY OF GOD DE DOCTOROW

JULIO JEHA

61
ENTRE LOGOS E MYTHOS EM CITY OF GOD DE
DOCTOROW
Julio Jeha (UFMG)

Ao tomar emprestado o título da obra máxima de Agostinho de Hippo,


E. L. Doctorow indica o conteúdo do seu livro para os leitores com conhecimento
de teologia. Talvez o mais influente texto da Igreja antiga, Cidade de Deus de
Agostinho combina filosofia, história e exegese das Escrituras num longo relato de
sua luta espiritual. O livro homônimo de Doctorow tem um objetivo semelhante, ao
qual ele acresce uma discussão da possibilidade de haver religião nos dias de
hoje, numa civilização marcada tanto pelo avanço tecnológico quanto pela
barbárie fratricida.20 A história se passa na Nova York do final do século 20 e o
livro é uma coletânea das anotações do narrador, Everett, que está escrevendo,
entre outras coisas, um livro sobre Thomas Pemberton, ou Pem, um padre
anglicano em aparente crise espiritual. Ambos buscam a verdade, o sentido da
vida, uma resposta para o problema do mal e para a razão de existirmos. O padre
questiona a tradição judaico-cristã, o escritor recorre à produção intelectual do
ocidente, e as trajetórias de ambos tendem para uma síntese de mythos e logos.
Usados pelos gregos pré-modernos para chegar à verdade, mythos e
logos eram considerados maneiras complementares de adquirir conhecimento,
cada uma em sua esfera de competência. Usava-se o logos (isto é, ciência, razão)
para funcionar no mundo externo: esse tipo de pensamento era fundamental para
a organização social ou para o desenvolvimento tecnológico. O logos é
pragmático; ele deve corresponder a fatos. Mas ele não consegue responder
perguntas sobre o valor da vida nem mitigar a dor e o sofrimento, que são partes
inevitáveis da condição humana. Essa era a tarefa do mythos. Se um amigo
querido morria ou se uma catástrofe natural acontecia, as pessoas não se
satisfaziam com uma explicação racional. Ao contrário, elas desenvolviam
narrativas míticas que, como a poesia ou a música, davam um conforto que não
20
DOCTOROW E. L. City of God: a novel. New York: Penguin, 2000. As referências ao texto se
referem sempre a essa edição e são de minha tradução.

62
poderia ser expresso em termos puramente lógicos. Essas narrativas também
expressavam os aspectos mais elusivos e misteriosos da vida que sempre fizeram
parte da experiência humana. Como a arte, o mito era o produto da imaginação
criativa; ele transfigurava nosso mundo fragmentado e ajudava a vislumbrar novas
possibilidades. Da mistura de mythos e logos surgia um mundo mais
compreensível para os gregos, diminuindo ser terror e tremor perante o absurdo
da existência.
Como os gregos pré-modernos, Pem e Everett, as personagens de City
of God, contrapõem mythos e logos em sua busca pela verdade. Embora secular e
racional, Everett sente que nem cosmologia nem física ou filosofia conseguem
explicar o universo de maneira satisfatória, pois lhes falta a dimensão do sagrado.
Ao fazer um resumo das teorias sobre a história do universo, ele introduz os dois
tópicos que estruturam o livro de Doctorow: de um lado, a explicação racional,
científica que tenta diminuir a nossa ignorância e, do outro, as histórias que
contamos a nós mesmos, baseadas mais nos nossos anseios e medos do que na
realidade. Se o Big Bang gerou quinze bilhões de anos de expansão espacial, o
universo está se expandindo em direção a quê? E o que o universo está
preenchendo ou substituindo nessa expansão? Mais importante, dizer “que o
universo foi criado junto com tempo e espaço” significa que antes do universo não
existia nada, nem mesmo o conceito de Ser ou existência (p. 3). Um astrônomo
pode tentar explicar os fenômenos físicos, mas será que ele tem consciência de
que além desses fenômenos “se encontra uma verdade tão monumentalmente
horrenda”, diz Everett, “que nem mesmo o voltar-se para Deus consegue aliviar a
miséria de uma infinitude tão profunda, desastrosa e desesperançadora?” E se há
um Deus envolvido nesse assunto, ele “é tão amedrontador que se coloca fora do
alcance de qualquer súplica por conforto ou consolo” (p. 4). Embora a ciência nos
leve a pensar no horror da existência, ela não consegue aliviar nosso desespero
em face de um universo incompreensível. Daí o recurso ao mythos, à fé. Mas
como conciliar o sobrenatural com o racional se ambos, nesse caso, escapam a
nossa compreensão?

63
Everett busca apoio em Albert Einstein e Ludwig Wittgenstein, cujas
idéias moldaram a nossa percepção da vida nos tempos modernos: nenhum ser,
nenhuma idéia, nenhum planeta pode existir num sentido absoluto, sem referência
a alguma outra coisa, sem ser percebido ou nomeado por algo além de si mesmo.
Sem linguagem não há mundo, diz Wittgenstein, pois o mundo é uma história.
Everett e Pem lutam com as conseqüências que necessariamente surgem daí:
Deus é uma história? Um produto da linguagem? Ou a linguagem é um produto de
Deus? Se Deus existe fora da linguagem, criando o texto da vida – que vivemos “à
medida que é escrito” – com quais recursos construímos nossa fé e nossa
esperança para o futuro, e por qual desígnio preestabelecido perseguimos nosso
destino? O Wittgenstein ficcional nega a possibilidade de a ciência responder as
verdadeiras questões da vida, “mesmo que todas as possíveis questões científicas
sejam respondidas” (p. 87). O Wittgenstein real diria que nem tudo pode ser
racionalmente explicado; algumas coisas se manifestam, de maneira mística.21
A princípio, Wittgenstein tentou desenvolver uma teoria que mostrasse
a linguagem surgindo de relações lógicas, mas ele logo reconheceu que o mais
importante na vida humana excede uma descrição lógica. Ele concluiu que
entendemos melhor a linguagem não em termos de lógica formal, mas como uma
forma de atividade humana (um jogo) que é instrumental para um conjunto de
propósitos humanos (uma forma de vida). O significado de um jogo de linguagem
específico (por exemplo, a ciência ou a religião) não está no fato de que ele tenha
capturado de maneira explícita algo da natureza da realidade, mas, ao contrário,
está no fato de que ele serve para auxiliar a consecução de certos fins. Essa
compreensão do caráter contextual da linguagem derruba qualquer forma de
positivismo (científico, filosófico ou teológico), por que positivismos pressupõem
que a linguagem possa ter um significado absoluto independente do contexto.

21
Na proposição 6.52 do Tratactus Logico-Philosophicus, Wittgenstein escreve: “Sentimos que
mesmo que todas as possíveis questões científicas sejam respondidas, os problemas da vida
continuarão completamente intocados”. Mais adiante ele concede que “Há, realmente, coisas que
não podem ser colocadas em palavras. Elas se tornam manifestas. Elas são o que é místico”
(6.522). (As traduções são minhas e se referem à edição eletrônica encontrada no Project
Gutenberg em 3 de março de 2006).

64
Tal como Wittgenstein, Einstein nega a possibilidade de a ciência ser a
única forma de explicar o mundo. O Einstein de Doctorow assume uma postura
mística perante o universo e propõe “celebrarmos a constância da velocidade da
luz, louvarmos a gravidade (...) e darmos glória ao fato de que até a luz é dobrada
por sua força” (p. 53). Nessa curvatura da luz das estrelas pela gravidade ele
enxerga o “primeiro sacramento” da ciência. Essa atitude mística está longe de ser
característica apenas de Einstein, tanto o ficcional quanto o real. O cientista real
afirma que quase todos os cientistas são imbuídos de um sentimento de
religiosidade que se manifesta como espanto e admiração perante a lei natural, lei
essa “que revela uma inteligência tão superior que, comparada com ela, todo o
pensamento e agir sistemático dos seres humanos é um reflexo completamente
irrelevante”.22 Einstein, como Everett depois dele, não consegue se livrar da idéia
de que o universo teve um Criador, por mais que essa opinião seja desacreditada
por cientistas e filósofos.
Rumando em direção oposta à tomada por Everett, Pem rejeita a
religião e apela para a razão no intuito de encontrar um Deus em que ele possa
acreditar, o que no nível material se traduz como a tentativa de descobrir a cruz
roubada de sua igreja. Pem resolve assumir o papel de “Divinity Detective”, ou
detetive da divindade, um jogo de palavra com o título “Divinity Doctor” (doutor em
teologia) e com sua busca por Deus. Ele compra histórias de detetive “para
aprender o ofício”, segundo sua explicação, mas na verdade ele as compra para
obter conforto, pois o mundo do detetive “é circunscrito e a punição é certa, o que
é mais do que [ele] pode dizer do [mundo de Deus]” (p. 8). Pem se pergunta se a
fé deve ser cega: “Por que ela deve surgir da necessidade que as pessoas têm de
acreditar? (…) A autoridade de Deus nos reduz todos, onde quer que estejamos
no mundo, qualquer que seja nossa tradição, a uma submissão de pedinte”. Num
sermão ele pergunta à sua platéia se Deus é uma história, se cada um de nós, ao
examinar a sua fé, consegue acreditar que Deus é a história que contamos a
respeito dele (p. 14). Presumir que o mythos possa conter Deus, “o autor de tudo

22
EINSTEIN, Albert. The world as I see it. Nova York: Philosophical Library, 1949, p. 29. Minha
tradução.

65
que conseguimos conceber e tudo que não conseguimos conceber”, é uma
presunção intolerável (p. 15). Há que se rejeitar o conceito de verdade
inquestionável e os rituais sem significados que servem apenas para manter os
fiéis submissos à autoridade eclesiástica e distante da essência do divino.
Enquanto Pem está lutando com seus demônios pessoais, a cruz de
sua igreja reaparece no topo da sinagoga do Judaísmo Evolucionário, uma seita
judia liderada pelo casal de rabinos Joshua Gruen e Sarah Blumenthal. Pem toma
isso como um sinal e começa a freqüentar os debates sobre a fé judaica. Ao ouvir
de Joshua que eles estão “lutando para redesenhar, revalidar a [sua] tradição” (p.
40), como Einstein havia feito com a física de Newton, Pem sente que tanto ele
quanto os rabinos se afastaram de sua fé, que pertence aos fundamentalistas
atávicos. Ele percebe, então, que não está passando por uma crise espiritual,
mas, sim, sofrendo de “desespero crônico” (p. 41). Essa epifania o leva a dirigir-se
a Deus como “o Senhor nosso Narrador, que fez um texto / do nada; pelo menos
essa é a nossa história / de Vós”, e como história é versão, Pem pede a Deus que
lhe permita investigá-lo, a quem ele considera “O Mistério” (42). A busca de Pem
se revela como uma tentativa de voltar à coisa em si, uma tentativa de reencontrar
o Deus verdadeiro nos dados originários da sua intuição das essências,
descartando religião e teologia.23
Sem perceber, o objeto da sua detecção passa de material (a cruz
roubada) para metafísico (um Deus crível). Quem roubou a cruz, como
conseguiram fazer isso e por que se deram ao trabalho são as perguntas que
formam o mistério original e, como seria apropriado, ele permanece sem solução.
Pem diz que ele não está interessado em saber, por que é da natureza dos signos
espirituais serem inexplicáveis. Os signos podem ser reconhecidos, diz ele a
Everett, mas seu significado e sua proveniência não podem – talvez não devam –
ser expressos em palavras. Aqui ele ecoa Wittgenstein, que termina o Tractatus
nos conclamando a nos calar sobre aquilo que não podemos falar. O que

23
Pode-se dizer que Pem descarta a fenomenologia religiosa (derivada das idéias de Husserl),
para se ocupar do númeno descrito por Kant e Platão antes dele.

66
começou como um mistério comum se transforma numa investigação teológica de
cunho pessoal.
Pem se recusa a abandonar o intelecto pela fé, ou a trocar o logos pelo
mythos, que a aceitação de dogmas e a teologia exigem. Para ele, longe de serem
a palavra de Deus revelada, as Escrituras são histórias criadas por seres humanos
e, como histórias, elas seguem métodos de composição generalizados. O autor
tende a trabalhar do fim para o começo; com o fim já estabelecido, a narrativa
avança em direção a ele. “Se você sabe que os povos do mundo falam muitas
línguas, esse é o final. A história da Torre de Babel leva você até lá” (p. 65). A
Bíblia, então, assume o papel de mito de criação, explicando como o mundo veio a
ser. Ainda que as histórias bíblicas fossem “ciência e religião”, diz Pem, ainda que
elas fossem as únicas explicações disponíveis, “elas não se escreveram por si
mesmas. Nós temos de reconhecer o trabalho do contador de histórias” (p. 65).
Além disso, quem edita a história é mais perigoso que quem a cria, pois tem o
poder de alterá-la. Agostinho, por exemplo, transformou a narrativa de Gênesis 2-
4 de maneira a introduzir o conceito de pecado original, que levou a todo tipo de
autoritarismo e perseguição. “Como”, Pem indaga, “dada a história dolorosa dessa
insensatez, podemos querer exaltar nossa visão religiosa acima das investigações
comuns das nossas mentes racionais?” (p. 66). Isso implicaria remover as práticas
religiosas do contexto histórico cultural que lhes dá sentido, situando-as num plano
metafísico onde elas existiriam como as idéias imutáveis de Platão. Para Pem, a
religião tende a se apresentar como atemporal, transcendental, o que ele se
recusa a aceitar, pois nem Deus ele aceita como sendo imutável.
Paralelamente à narrativa de Pem, Everett introduz a voz de Einstein
num dueto em defesa da crença em Deus, mas recusando a religião. Ao passo
que Einstein fala do ponto de vista de um judeu que experimentou a perseguição
desde a infância até a fuga da Alemanha nazista, Pem leva seu questionamento
até o ponto em que é expulso da igreja episcopal. Para Einstein, a história pregou
uma peça terrível em Jesus, “aquele judeu”, e no sistema criado em nome dele (p.
46). Pem retoma a narrativa perguntando à sua congregação o que eles achavam
que o morticínio planejado dos judeus tinha causado à Cristandade e à nossa

67
história de Jesus e qual seria a expiação adequada a que os cristãos deveriam se
submeter (p. 49). Einstein continua a discussão e questiona o conceito tradicional
de Deus, em face do Holocausto. Por ser uma pessoa séria, ele escolhe procurar
Deus fora das escrituras religiosas, em “certas leis irredutíveis do universo”, nas
quais a divindade se manifestaria. Ele encontra conforto nessas leis e exulta por
ter consciência delas, por que “elas são – incompreensivelmente –
compreensíveis!” (p. 53). O mythos cristão desmorona perante a história e a
irresponsabilidade moral da Igreja; o logos, ao contrário, apresentaria a
possibilidade de um Deus que possa ser inconstante, que possa evoluir.
Essa mistura de vozes e opiniões que Doctorow usa para criar sua
versão da Cidade de Deus pode dar a impressão que o romance é polifônico, com
a expressão de vários pontos de vista e ideologia, mas essa impressão se revela
enganosa tanto em termos de forma quanto de conteúdo. Doctorow usa uma
estrutura bíblica, na qual gêneros literários convergem para tratar de um mesmo
tópico. Ele introduz uma série de histórias relacionadas entre si de maneira tênue,
histórias culturais, ruminações teológicas, aulas de ciência, canções, comentários
de filmes, poesias, profecias e fantasias elaboradas. Aos poucos começamos a
entender a estrutura do livro: a falta de linearidade, os paralelos com a colagem
literária das Escrituras, a mistura de narrativa e filosofia fazem parte do propósito
do autor. Para ele, importa discutir como acreditar em Deus e não se Deus existe,
importa justificar os atos divinos (ou a falta deles) e não avaliar as ações humanas
por suas conseqüências morais.
Doctorow nos mostra Pem evoluindo do conceito doutrinal de religião,
que a vê como um conjunto de doutrinas específicas, para o conceito realista, que
a considera como o somatório das crenças e práticas dos seus seguidores.24
Essencialmente antropológica, a posição realista trata uma religião como um
fenômeno sociocultural e permite uma análise externa do seu valor cultural. Para
Pem, isso lhe permite entender os conceitos centrais do cristianismo como
resultantes de pressões ocasionadas por mudanças sociais ou políticas. O

24
Tomo emprestada essa distinção entre a posição doutrinal e a realista da religião de um
comentário feito por antirealist no blog Butterflies & Wheels, em 7 de março de 2006, sobre o
tópico Remember, the Pope is a Catholic. www.butterfliesandwheels.com/notes.php.

68
conceito doutrinal, ao contrário, não lhe permite isso, pois é uma perspectiva
essencialmente interna, baseada em crenças que transcendem o aqui e agora,
que desconsideram o contexto geográfico e histórico na sua explicação do mundo.
Como alter ego de Doctorow, Pem diz rejeitar a posição doutrinal pela realista,
mas na verdade ele não consegue se libertar da crença num Deus criador do
universo, o Narrador de nossa história. Ainda que o logos deva ser levado em
consideração, o mythos prevalece em City of God, pois só ele acomoda as
crenças religiosas de Doctorow, que atualiza a teodicéia de Agostinho de Hippo,
dando-lhe, ironicamente, um caráter apostata, senão herético.

69
DEUS E O DIABO NA TERRA DE
MAILER

DELZI ALVES LARANJEIRA

70
DEUS E O DIABO NA TERRA DE MAILER

Delzi Alves Laranjeira (UFMG)25

Antes de decidir pronunciar as primordiais palavras: “Que a luz seja”26


(Gênesis 1, 3), Deus encontrava-se “sozinho no cosmo, sem sexo, sem pai, sem
mãe, e por um bom tempo, sem filho”.27 Terminada a grande obra, portanto, sua
relação passa a ser com sua criação, particularmente com a humanidade criada à
sua imagem e semelhança. Adão e Eva, Noé, Abraão, Moisés, Samuel e Davi, são
alguns dos personagens que ouvem diretamente a voz de Deus e dialogam com
ele. Ele se manifesta também por meio da natureza: faz chover, separa as águas
do mar, faz aparecer rãs e moscas sobre a terra, faz arder um arbusto que não se
consome. O Deus das Escrituras apresenta tantas facetas ao longo das narrativas
bíblicas que é como se fosse “um ator que foi chamado para substituir um elenco
inteiro”.28 No Velho Testamento, ele é o deus criador que engendrou o mundo, e
também o deus da destruição e da ira, que não poupa seus inimigos. É,
principalmente, o deus da aliança com o povo de Israel, seu escolhido. Como
conseqüência dessa aliança, a presença de Deus se confirma continuamente
entre seu povo através das ordens que emana, dos sacrifícios que exige, das leis
que elabora, do socorro que provê nas horas difíceis, tais como situações de
fome, guerra e opressão; das bênçãos que distribui, dos perdões que concede e
das punições que inflige.
Muitas dessas características atribuídas ao Deus do Antigo Testamento
estão presentes na narrativa de Jesus em O evangelho segundo o Filho, do
americano Norman Mailer. O batismo de Jesus é o rito de passagem pelo qual ele
terá acesso direto a esse Deus-Pai. Após esse evento eles conversarão com uma

25
Doutora em Literatura Comparada pela UFMG e professora de Literaturas de Expressão Inglesa.
Pós doutoranda da Faculdade de Letras da UFMG em estudos sobre religião e literatura.
26
BÍBLIA, Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994. Os livros bíblicos serão incluídos entre
parêntesis no corpo do texto, seguidos do capítulo e versículos citados.
27
MILES, Jack. Cristo: uma crise na vida de Deus. Trad. Carlos Eduardo Lins da Silva e Maria
Cecília de Sá Porto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 348.
28
MILES, p. 252.

71
certa freqüência bem maior do que os evangelhos apresentam29. Deus demonstra
ter apreço por Jesus, mas deixa claro que ele não está ali por acaso. Durante o
batismo, diz a Jesus: “Antes de te formar no ventre materno, já te conhecia”,
indicando a existência de uma relação que Jesus sente ser resgatada: “Senti
30
muita coisa já esquecida voltando a mim”. Quando Jesus confessa seu
despreparo diante da missão que tem pela frente, Deus responde: “Não digas
isso, pois terás de ir a todos os lugares que te enviarei” (ESF, p. 31). Segundo
Jesus, nesse momento o “Verbo” entrou nele, “com o mesmo calor que abrasara
[seus] ossos aos doze anos de idade” (ESF, p. 31). A idéia de Jesus como o
“Verbo que se fez carne” aparece exclusivamente em João (1, 14) e é
reinterpretada no romance. Em João, a noção de unidade entre Jesus e Deus é
muito forte, a idéia de que o “Pai e eu somos um” é constantemente enfatizada
pelo Jesus do evangelho de João. No romance, contudo, parece haver uma
distinção hierárquica entre Jesus e Deus. O Verbo entrou em Jesus, mas Jesus
não é o Verbo. Ele o incorpora para realizar uma tarefa definida por Deus. Deus
deixa explícito que Jesus tem algo a fazer, pois precisará ir aos lugares
designados por ele. Jesus “como o filho do homem e o Filho de Deus encarnado e
exaltado, une terra e céu definitivamente e torna possível para todo crente, mesmo
neste mundo, partilhar da vida da eternidade”.31 Sua missão será, por palavras e
atos, revelar essa verdade, sempre sob a orientação divina.
Deus anuncia a Jesus uma mudança na relação com Israel, uma
relação que se caracteriza por uma série de alianças não cumpridas tanto por
parte da divindade como por parte da nação. Mas ele não interferirá diretamente
como fez com Adão e Eva por ocasião da perda do paraíso, nem com Noé,

29
BLOOM, Harold. Jesus e Javé: os nomes divinos. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2006. pp. 177, 179. Bloom considera estranha a falta de comunicação entre Pai e Filho
nos Evangelhos, conjeturando se ela ocorreria porque Jesus e Deus seriam “duas pessoas, mas
uma só substância”, ou porque eles seriam “dois Deuses distintos, antitéticos” ou simplesmente
porque seus estilos verbais são “tão diversos que a interação se torna impossível”. No romance de
Mailer, contudo, a força dessa interação é constantemente enfatizada.
30
MAILER, Norman. O evangelho segundo o Filho. Trad. Marcos A. Reis; Valéria Rodrigues. Rio
de Janeiro: Record, 1998. p. 31. As demais citações referem-se a essa edição. O título será
abreviado ESF e será incluído entre parêntesis no texto, seguido do número da página citada.
31
SMALLEY, Stephen S; SWEET, John. João, o apóstolo. In: METGER, Bruce M.; COOGAN,
Michael D. (Ed.). Dicionário da Bíblia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 156.

72
quando “viu que a maldade do homem se multiplicava na terra” (Gênesis 6, 5),
nem quando mata inúmeros israelitas, após a apostasia do bezerro de ouro. Deus
falará mais uma vez, agora não só para Israel, mas para toda a humanidade, por
intermédio de seu filho, divino e humano. Ele parece concentrar todo o seu apoio
no aspecto humano desse filho. É a esse Jesus que se sente atordoado diante da
magnitude de sua missão que ele confere proteção contra serpentes e escorpiões
durante a subida na montanha, conforta-o durante o extenso jejum e o adverte que
não será possuidor de riquezas, nem de mulheres, para não incorrer em pecado
como Salomão. Deus quer um filho depurado de qualquer desejo, e a ida ao
deserto parece servir a esse propósito. O teste maior é o confronto com o Diabo,
no qual Jesus se sai bem sem qualquer intervenção divina. Superada essa fase,
Deus instrui Jesus para a próxima etapa do plano: a pregação e os milagres.
Durante todo o tempo, Deus parece ter tudo sob controle. Como parte
final da instrução, ainda ensina técnicas retóricas para Jesus: “Sublinha tua fala
com um bordão – ‘Assim diz o Senhor, por exemplo’” (ESF, p. 57). A atenção com
esse tipo de detalhe é compatível com o Deus que fala no Levítico, por exemplo,
descrevendo como devem ser feitos os rituais de purificação e sacrifícios. Deus
mudou a sua forma de relacionar-se com o mundo, mas ainda mantém o velho
estilo para comunicar as mudanças. Onisciente, está sempre atento ao que Jesus
faz e fala. Jesus julga que quando fala certo e bem, é sempre pela graça de Deus,
que lhe “empresta” as palavras (ESF, p. 146). A Jesus, só resta executar da
melhor forma possível as ordens divinas. Na fase final do plano de Deus, na
agonia da crucificação, Jesus suplica por um milagre, mas a voz que vem “no
turbilhão”, a última manifestação de Deus no romance, é inflexível: “Quereis anular
meu julgamento?” (ESF, p. 196). É o Pai, mais uma vez, reforçando a hierarquia
do poder: Jesus é somente o Filho, um filho poderoso, sem dúvida, mas abaixo
dele. Jesus reconhece que “o suplício da cruz era necessário” e se submete,
resistindo ao último ataque do Diabo (ESF, p. 197). O plano divino triunfa e o
Senhor Deus de Israel se tornará, graças ao sacrifício de seu filho, o Deus de
todos os povos.

73
Contudo, no panorama pós-ressurreição que Jesus apresenta ao final
de seu relato, ele relativiza a vitória de Deus, mostrando que ela não foi definitiva:
“Deus e Mamon ainda disputam os corações de homens e mulheres. Ainda assim,
como a contenda permanece tão igual, não se pode dizer quem triunfará – o
Senhor ou Satã” (ESF, p. 202). A mudança arquitetada por Deus para rever os
termos de sua aliança com Israel deve-se, em grande parte, à oposição poderosa
de Satã. Para resolver essa crise, engendra a idéia de oferecer seu próprio filho
em holocausto, a fim de que homens e mulheres compreendam a nova extensão
de sua promessa – não mais a restauração de Israel, mas a glória eterna para
toda a humanidade – e o escolham e não ao demônio. Jesus reconhece que foi
uma estratégia poderosa – “A grande maioria segue acreditando que Deus obteve
uma grande vitória através de mim. E talvez o Diabo não fosse esperto o bastante
para compreender a extensão da sabedoria divina” (ESF, p. 203) – mas não
suficiente para derrotar o Diabo: “Mas porque a verdade é mais preciosa que o
céu, deve ficar claro: Meu Pai não pôde vencer Satanás” (ESF, p. 203). O mundo
continua sendo o palco da contenda entre Deus e o Diabo e suas guerras “tornam-
se mais acirradas” (ESF, p. 203). Segundo Jesus, Deus concentra-se agora em
vencer a batalha, o que relega o relacionamento entre ambos a um segundo
plano: “Meu Pai, porém, não me fala com freqüência. Ainda assim, eu O honro.
Não duvido que Ele me ame tanto quanto pode, mas Seu amor não é ilimitado”
(ESF, p. 203). A última afirmação revela uma característica até então
desconhecida de Deus: a limitação. Como Senhor da terra e do céu ele tudo pode,
mas Jesus parece sentir que não é bem assim.
Como que se desculpando dessa crítica, mais adiante Jesus volta a
falar bem de Deus: “A sagacidade Dele, contudo, tem sido insuperável, Ele
compreendeu homens e mulheres melhor do que o Diabo, aprendendo a ganhar
com a derrota, atribuindo-se vitórias” (ESF, p. 203). Mas essa sagacidade é
intrínseca a Deus, ele já a havia demonstrado anteriormente, quando colocou as
vitórias da Assíria e Babilônia sobre Israel como ações divinas.32 O Deus que o
Jesus de Mailer conhece é o Deus das Escrituras Hebraicas, um deus guerreiro

32
MILES, p. 220.

74
que lança suas hostes sobre seus inimigos. Ele mudou seu discurso (e suas
ações) através de Jesus, enfatizando o amor entre os homens e não a guerra. O
romance de Mailer chama a atenção para a contínua belicidade de Deus. Essa
belicidade é enfatizada com o surgimento de uma figura antagônica, o Diabo, que
não perde uma oportunidade para tentar aniquilar o poder divino. Em O evangelho
segundo o Filho, ele elabora críticas devastadoras a Deus, que contrastam com
tudo que Jesus acredita sobre seu Pai. A perspectiva do Diabo apresentada no
romance revela mais um ângulo da complexa personalidade de Deus.
Segundo Pagels33 nas primeiras menções ao Diabo na Bíblia, ele
“nunca aparece como a cristandade ocidental veio a conhecê-lo, como líder do
império do mal, de um exército de espírito hostis em guerra contra Deus e a
humanidade”. A presença de Satanás na narrativa significava obstrução, como no
episódio da jumenta de Balaão em Números 22, 23-25 ou reveses de fortuna,
como no Livro de Jó. Embora o papel de Satanás em Jó seja antagônico e ele
tenha responsabilidade no mal provocado a Jó, “ele continuou a ser anjo, membro
da corte celestial, servo obediente de Deus”.34 Em 1Crônicas (21), a decisão do rei
Davi de elaborar um censo provocou dissensão e destruição em Israel. Satanás é
mencionado para explicar o ato de Davi, embora o Cronista deixe claro que o
verdadeiro responsável por tudo era o rei.35 O profeta Zacarias também
descreverá Satanás como formador de facções entre os israelitas, envolvendo os
exilados que voltavam da Babilônia e os que haviam ficado em Jerusalém. Na
versão de Zacarias, que toma partido dos exilados, Satanás fala em nome dos
habitantes que ficaram. Para Pagels, nesse ponto, o papel de Satanás começava
a se modificar “de agente para adversário de Deus”.36 Mais tarde, seitas
dissidentes, como a dos essênios, passaram a invocar Satanás para identificar
seus adversários judeus. Nesse processo, elaboraram a figura de Satanás como
foi absorvida pelos primeiros cristãos e como está representada nos Evangelhos e
na literatura apócrifa. O anjo desagradável transformou-se “em uma figura muito

33
PAGELS, Elaine. As origens de Satanás. 2. ed. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Ediouro,
1996. p. 66.
34
PAGELS, p. 69.
35
PAGELS, p. 70.
36
PAGELS, p. 72.

75
mais importante – e muito mais maligna. Deixava de ser um dos servos fiéis de
Deus e começava a tornar-se o que é para Marcos e a cristandade posterior – o
adversário de Deus, seu inimigo, até mesmo seu rival”.37 As inúmeras versões das
origens de Satanás possuem um denominador comum: ele não é o inimigo que
vem de fora, o estrangeiro. Ao contrário, ele é o “inimigo íntimo”, que partilhava
das coisas de Deus e se voltou contra ele.38 . Em O evangelho segundo o Filho, o
Diabo possui essas mesmas características. A versão que Mailer elabora do Diabo
corrobora e suplementa a tradição criada pelos evangelistas.
Na primeira vez que o Diabo é mencionado em O evangelho segundo o
Filho, Deus o chama de visitante. Depois dos quarenta dias de jejum, Deus
informa a Jesus que ele deverá aguardar um visitante que virá. Esse alerta de
Deus parece sugerir que o confronto entre Jesus e o Diabo é algo já sabido, nos
moldes do ocorrido no Livro de Jó. Mas Jó era um simples mortal e o Diabo sabe
que agora está lidando com alguém mais poderoso. Sua batalha com Jesus é
somente verbal, com o objetivo de minar a confiança que Jesus tem em Deus e,
por fim, cooptá-lo. Sua estratégia parece muito bem elaborada: primeiro, ele chega
ricamente trajado, como um príncipe, e deixa Jesus impressionado. Depois fala da
maneira como Isaías, um dos profetas mais reverenciados pelos judeus, foi morto,
contando seu suplício com detalhes. O Diabo parece insinuar que Deus não foi
capaz de livrar Isaías de uma morte horrível, e o que o mesmo poderá acontecer
com Jesus. Ironicamente, acrescenta: “O modo pelo qual Isaías morreu não o
preocupa muito, já que você não é um profeta, mas o Filho” (ESF, p. 42). As
palavras do Diabo parecem surgir o efeito desejado, pois Jesus sente-se
mortificado por suas revelações sobre Isaías, que marcam o início do ataque do
Diabo a Jesus. Mais do que as três tentações narradas em Mateus e Lucas, o
Diabo de Mailer possui outras estratégias, e não hesita em usá-las todas. No
evangelho de Lucas (4, 13), o episódio da tentação termina informando que “o
diabo afastou-se dele até o momento fixado”. Enquanto isso, ele agirá

37
PAGELS, p. 75.
38
PAGELS, p. 77-78.

76
indiretamente. Também no romance, Jesus sentirá a presença do Diabo até a
tentação final, durante a crucificação.
Jesus identifica vários acontecimentos como manifestações do poder do
Diabo. Quando prega na sinagoga de Cafarnaum, após dizer que é capaz de
expulsar demônios, um homem de aspecto embrutecido lhe diz: “O que temos a
ver com você, Yeshua de Nazaré? Você veio para nos destruir?” (ESF, p. 62).
Jesus imediatamente conclui que o homem está tomado por um demônio, e o
exorciza dizendo: “Sai, Satanás” (ESF, p. 62). No Novo Testamento, “Satã e seus
demônios podem penetrar em seres humanos para incitar más ações e causar
doença”.39 A vitória de Jesus sobre Satã no deserto o qualificou para “começar a
expulsar demônios das suas moradas humanas”.40 Em O evangelho segundo o
Filho, Jesus se sente “imbuído de novos poderes” e com eles executará as
expulsões e curas (ESF, p. 62). Depois do homem endemoninhado na sinagoga
de Cafarnaum, Jesus enfrenta outro possesso e é novamente vitorioso na
expulsão dos demônios, que imploram permissão para habitar o corpo de porcos.
O Diabo perde fragorosamente para Jesus nesse terreno, mas não desiste. Até
mesmo Jesus sofre a influência de seu poder, pois em outra ocasião, Jesus
refere-se à sua imodéstia como se fosse “um espírito infame sobre mim” (ESF, p.
89). Mais tarde, comenta que “ninguém está livre de Satã, nem mesmo o Filho de
Deus” (ESF, p. 103). O Diabo parece estar sempre testando Jesus, procurando
seus limites. E Jesus está ciente de que é preciso combater esse inimigo invisível
o tempo todo.
Mesmo que o Diabo fale diretamente com Jesus, este ainda insiste em
reconhecer em determinadas pessoas a presença do “maligno”. Segundo Pagels
os evangelistas raramente identificam Satanás com os romanos, mas sempre o
ligam “aos inimigos judeus de Jesus, sobretudo a Judas Iscariotes e os
escribas”.41 Mailer endossa essa visão no romance. Quando Jesus conversa com
um escriba no templo, as divergências teológicas entre ambos levam Jesus a

39
AVALOS, Hector I. Satã. In: METGER, Bruce M.; COOGAN, Michael D. (Ed.). Dicionário da
Bíblia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 292.
40
MINEAR, Paul S. Demônios. In: METGER, Bruce M.; COOGAN, Michael D. (Ed.). Dicionário da
Bíblia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p.56.
41
PAGELS, p. 35.

77
identificar a presença de Satanás na retórica do escriba. Ao explicar que a
salvação divina é para todos e não apenas para o povo de Israel, o qual Deus já
considera entregue “à devassidão”, Jesus pondera: “No entanto, não devemos
encontrar um meio de salvar as meretrizes?” (ESF, p. 142). A resposta do escriba,
de acordo com Jesus, “soou aos [seus] ouvidos leve e cheia de confiança, como
se as palavras dançassem sobre sua língua e Satanás se agitasse em sua
garganta” (ESF, p. 142). O conflito entre Jesus e os escribas fariseus, que no
evangelho de Lucas é bastante enfatizado, também aparece no romance. Os
fariseus se opõem às idéias de Jesus, interpretando-as como blasfêmias à lei
judaica. Por sua vez, Jesus interpreta essa oposição como mais um estratagema
do Diabo, que, agindo através dos judeus, conspira contra ele para derrotá-lo.
O ataque final do Diabo contra Jesus acontece no momento crítico de
sua crucificação, quando seu sofrimento físico chega ao paroxismo. Sentindo-se
abandonado por Deus, torturado pelo soldado romano que lhe esfrega a esponja
embebida em vinagre, Jesus ouve a última proposta do Diabo: “Junte-se a mim –
disse num sussurro. – Será um prazer apresentar a esse belo romano algumas
humilhações que posso infligir aos homens. Não há nada melhor que a vingança.
E o descerei da cruz” (ESF, p. 197). Jesus reconhece um instante de tentação,
mas não irá fraquejar nesse último confronto terreno com seu oponente: “bani de
mim a voz Diabo, voltando ao mundo onde jazia na cruz” (ESF, p. 198). Quando
Jesus diz, antes de morrer, que está tudo acabado, pode estender essa frase
também ao Diabo: foi impossível derrotar Deus através de seu filho. Jesus, sim,
escolheu “derrotar Satã, e assim, derrotar a morte em si mesma e levar seu povo
para a nova terra prometida da vida eterna”.42 Pelo menos, era nisso que Jesus
acreditava. A derrota, no entanto, foi temporária, como ele reconhece no final de
seu relato. A peleja entre Deus e o Diabo pelo coração dos homens continua. O
destino final do demônio, ser lançado num lago de fogo, parece estar longe de
ocorrer. O paraíso perdido ainda não foi recuperado.
A figura do Diabo na literatura resultou em criações fantásticas, como o
Satã de Milton em Paraíso perdido e Paraíso recuperado e Mefistófeles em

42
MILES, p. 223.

78
Fausto, de Goethe. O Diabo de Mailer em O evangelho segundo o Filho não
possui a força gigantesca desses predecessores, mas apresenta uma
característica que o torna um dos personagens mais instigantes do romance: ele
aponta defeitos na personalidade de Deus, revelando novas interpretações para
determinadas narrativas do Velho Testamento. Obviamente, o Diabo é
suspeitíssimo para falar de Deus, mas suas considerações no episódio da
tentação no deserto levantam o debate: Deus é mesmo instável, descontrolado? É
um misógino inveterado? Ele não consegue dar conta da própria criação? As
passagens bíblicas que o Diabo cita para Jesus dão suporte a essas declarações,
ele não está inventando nada. Tudo depende, como sempre, do ponto de vista de
quem interpreta. E uma das interpretações possíveis é fornecida pelo Diabo: ele
revela o que há de pior em Deus, reforçando a afirmação de Miles de que na
Bíblia “tudo depende de um Deus assustadoramente imprevisível [...] Nunca se
sabe o que ele irá fazer; mais perturbador ainda, nunca se sabe se ele vai fazer
alguma coisa”.43 Para os judeus, Jesus incluído, essa instabilidade traduz-se na
força do poder divino. A declaração de Jesus de que o Senhor é todo poderoso e
que os céus e terras curvam-se diante dele exaspera profundamente o Diabo, que
parece empenhado em mostrar Deus como ele realmente é (ESF, p. 43). Ele falha
em cooptar Jesus, mas sabe que foi bem-sucedido em mostrar o reverso da
medalha, pois Jesus não sai da experiência da tentação “completamente
incólume, ele perde alguma coisa nesse contato diabólico, retém uma certa
‘fidelidade’ a Satã, uma sutil cumplicidade com o mal”44, que o fará lembrar-se, na
crucificação, das palavras do Diabo pouco antes de morrer.
Quanto a Deus, ele não se dá ao trabalho de rebater o Diabo em
nenhum momento; sua resposta virá mais tarde, quando o plano que tem em
mente — salvar seu povo e a si próprio por meio de um novo evento — for
executado. Assim como os Evangelhos, o romance de Mailer endossa a história
de Jesus como esse novo evento. Seu nascimento, batismo, pregação, morte e

43
MILES, Jack. Deus: uma biografia. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997. p. 448.
44
KERMODE, Frank. Resenha de The gospel according to the Son. New York: Random House,
1997. The New York Review of Books, p. 4-8, May 15, 1997. p. 6.

79
ressurreição compõem as etapas dessa história que redefinirá o relacionamento
de Deus com sua criação. Mailer não ousou modificar os personagens centrais
nem os principais eventos, mas suplementa-os de maneira a inserir traços
diferenciadores e mostrar novos aspectos da relação Deus-Jesus-Diabo, aspectos
até então confinados às dobras obscuras do texto bíblico.
Mailer reconhece o cristianismo como uma das maiores forças da
cultura ocidental, e propõe, à sua maneira, uma interpretação alternativa à
proposta pela visão monolítica das instituições religiosas cristãs. Para tanto, utiliza
a mesma ferramenta que garantiu essa posição central ao cristianismo: sua
narrativa poderosa, seus enredos e personagens recontados, endossados e
refutados ad infinitum. Se Mailer não chega a revisar radicalmente Deus nem o
Diabo em O evangelho segundo o Filho, também não se pode afirmar que ele os
deixou incólumes. O romance questiona algumas das verdades que sustentam a
fé cristã, instaurando dúvidas como: Deus é infalível? Afinal “ele não pôde vencer
Satanás”, como confessa Jesus no final de seu relato. Sacrificar seu Filho pelos
pecados da humanidade foi uma tentativa válida? Como manter a fé em um Deus
bom em face do mal e do sofrimento injustificado de tantos? O que o romance
sugere é que a teodicéia cristã parece ser incapaz de respondê-las, e só resta a
Jesus torcer para que no final tudo dê certo. A noção de um sucesso apenas
parcial da cristandade não deixa de abalar a forma de apreender e lidar com suas
narrativas, de deslocá-las e recontextualizá-las, assinalando, como atestam as
recriações literárias, outras configurações possíveis.

80
A PRESENÇA DA VIRGEM
MARIA NA EPOPÉIA
BRASILEIRA

CHRISTINA RAMALHO

81
A PRESENÇA DA VIRGEM MARIA NA EPOPÉIA BRASILEIRA
Christina Ramalho (UFRN)45

A figura da Virgem Maria tornou-se, no decorrer da História do Ocidente,


o maior elo entre a humanidade cristã e Deus. Tal relação é evidenciada pelas
Artes em geral. Na poesia épica, em especial, são inúmeras as manifestações em
que a imagem surge, seja para evidenciar a filiação cristã do autor ou da autora,
seja para realçar, por meio de sua inserção no plano maravilhoso, a dimensão
mítico-religiosa cristã. A Literatura Brasileira não foge a tal procedimento. À
imagem de Maria são sempre relacionadas categorias sêmicas como a
predestinação, a purificação, a submissão, a redenção e o expansionismo. Cabe
verificar como essa imagem foi e é tomada pela poesia épica brasileira,
problematizando as visões plurais e/ou unilaterais decorrentes do processo de
circularidade cultural da imagem mítica46 de Maria.
Para isso, é preciso destacar que o conceito de circularidade cultural
das imagens míticas nasceu da observação de algumas das inúmeras definições
de mito, recolhidas no trânsito por diversos textos teóricos sobre Mito e Mitologia.
De modo geral, esses conceitos têm em comum a idéia da força plural do mito e
sua relação com a projeção do universo simbólico no coletivo. Além disso,
também é perceptível a necessidade de transfiguração do mito como abstração,
idéia, inconsciente ou arquétipo, em materialidade  imagem arquetípica,
manifestação discursiva oral, escrita, pictural, escultural, folclórica, etc.  com o

45
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autora de Elas escrevem
o épico. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.

46
Texto completo sobre Mito e Religião pode ser encontrado em RAMALHO, Christina. Vozes
épicas: História e Mito segundo as mulheres. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Tese de doutoramento
em Ciência da Literatura. Ver também: RAMALHO, Christina. Elas escrevem o épico. Santa Cruz
do Sul: EDUNISC; Florianópolis: Ed. Mulheres, 2005.

82
objetivo de que o mesmo possa ser coletivamente absorvido. Ou seja, o mito
somente se insere no real ou no mundo na medida em que circula na coletividade
sob forma de imagens (picturais, musicais, escultóricas, literárias, folclóricas,
ritualísticas, etc.), logo, sua existência, ainda que represente estruturas psíquicas
do ser humano, é cultural. Outra conclusão importante para a definição do
conceito proposto é que, na transferência da abstração à materialidade, o mito
recebe uma aderência co-criadora que atuará não sobre o mito em si, potência
significativa múltipla que é, mas sobre uma determinada versão ou imagem desse
mito. Ao mesmo tempo, a reprodução ou o trânsito cultural dessa materialidade
também receberá aderências ideológicas de cunhos os mais diversos. Logo,
acaba por se instaurar o que chamo de circularidade cultural das imagens míticas,
que aqui defino como o processo encadeado de redução material e multiplicação
cultural-ideológica do mito  transfigurado em manifestação concreta ou imagem
mítica  cuja conseqüência é aumentar o distanciamento da cognição da
linguagem mítica, gerando uma alienação da experiência simbólica
hipoteticamente passível de ser realizada pelo ser humano que, vivenciando sua
inscrição cultural, interaja com as linguagens míticas relacionadas a essa
inscrição.
Por essa razão, é possível detectar, na observação da difusão cultural
das imagens míticas, uma interferência direta ou indireta, consciente ou
inconsciente, que faz com que, por exemplo, certa imagem seja cristalizada como
único referente do mito. Diante disso, concluí que o termo circularidade cultural
seria adequado para representar uma injunção cultural que, desvirtuando o mito,
corrobora para a manutenção de certas estruturas de poder. É, todavia, importante
salientar que esse processo, designado como circularidade cultural, na maioria
das vezes, é reflexo de condicionamentos tão arraigados na sociedade que a
própria circularidade torna-se obscura. Assim, são necessárias décadas ou
séculos ou milênios para que as sociedades redescubram mitos que, até então,
circularam travestidos em imagens materiais únicas. Um exemplo esclarecedor de
circularidade cultural de uma imagem mítica é a representação pictural de Deus.
Quanto tempo foi necessário para que o pensamento ocidental discutisse a

83
associação do “Ser Supremo” à imagem do ancião barburdo, branco, grisalho (ou
aloirado), de olhos claros?
De algum modo, portanto, a circularidade cultural das imagens míticas
reduz as potências sêmicas do mito a uma versão material deste e, após, a
versões da versão, o que favorece sensivelmente a manipulação ideológica e
mesmo os equívocos mitográficos. Muitas vezes, ao lidarmos com certas
estruturas de significação tidas como míticas, estamos, na verdade, lidando com
subprodutos do mito.
Semiologicamente falando, entendo, portanto, o mito como uma
potência de discurso oriunda da necessidade humano-existencial de atribuir
sentidos a suas experiências existenciais particulares e coletivas que, transferida
para o âmbito da manifestação discursiva  as imagens míticas , torna-se
independente de sua origem e passa a referenciar tanto o canal de expressão,
que supostamente teria tomado o mito como uma estrutura passível de
representação discursiva, como o canal de recepção, que, na continuidade do
processo de circularidade cultural das imagens míticas, assumirá a função de
reproduzi-lo. Isso não significa que uma manifestação discursiva gerada a partir da
intenção ou intuição do mito não o integre, ao contrário, a potência mítica original
pode ser reconhecida, mas não deve ser confundida com o objeto em si.
Quanto à estrutura sêmica ou significativa inerente às imagens míticas
(ou imagens arquetípicas), como linguagens ou representações simbólico-
culturais, penso ser possível restringir, dentro do universo épico, em especial, o
potencial sêmico mítico ou simbólico a dezoito aspectos relacionados à
problemática humano-existencial, cujas representações ou imagens arquetípicas
tomaram e tomam as mais diversas formas: a criação, a imortalidade, a
sexualidade, a fecundação, a iniciação, a sedução, a redenção, o expansionismo,
a fundação, a predestinação, a submissão, a purificação, a punição, a
metamorfose ou transformação, a transgressão ou superação, a onisciência, a
clivagem e a misoginia.
De modo bem sintético, explico os aspectos diretamente relacionados à
imagem mítica de Maria: o expansionismo está nas raízes antropológicas da

84
presença do ser humano na Terra, afinal, foram os movimentos migratórios que
permitiram às sociedades arcaicas sobreviver às intempéries da Natureza; a
predestinação e a redenção integram, de modo diferente, a necessidade cultural
do ato heróico que originará a transgressão ou superação por meio da qual as
sociedades e os seres humanos evoluem; a submissão remonta à dimensão
instransponível do mistério e à subordinação do humano ao divino; por fim, a
purificação reflete o direcionamento do humano ao divino, a decorrente
extrapolação da compleição carnal e a expurgação dos sentimentos e gestos
espiritual e socialmente negativados. Cabe observar que o fator que mais incide
para essa circularidade é a própria formatação trazida pela racionalização
canônica dos mitos religiosos bíblicos.
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira define religião como “crença na
existência de uma força ou forças sobrenaturais considerada(s) como criadora(s)
do Universo, e que como tal, deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s).” Assim
sendo, a Religião também pode ser entendida como uma linguagem estruturada
cuja função é explicar, organizar e fundamentar mitos relacionados à criação do
Universo e do ser humano. A reprodução e a circulação do discurso religioso se
sustentam por meio dos textos religiosos e dos rituais que dele se originam com o
propósito mesmo de perpetuá-lo. No entanto, enquanto o discurso mítico não
religioso tem o poder de se perpetuar com maior liberdade, renovando-se na
circulação de formas diversas de linguagem, sem injunções ou determinantes
persuasivos explícitos, o discurso religioso, transitando perigosamente entre a
conotação e a denotação, perde essa liberdade. A qualidade metafórica dos mitos
veiculados pelas manifestações do discurso religioso potencializa o poder destas
de oferecer transcendência, no entanto, a dissociação entre metáfora e realidade,
provocada pela “credibilidade científica” que se busca dar a certos eventos
religiosos, inviabiliza a manutenção do mito como tal e pode fazer das imagens
míticas religiosas imagens históricas, o que mina o valor simbólico das imagens
arquetípicas contidas nessas manifestações. Desse modo, a exploração do valor
denotativo da Religião, através de uma suposta comprovação histórica de certos
eventos e da dimensão prática de certos rituais, acaba por interferir diretamente

85
na solidificação da força metafórica da Religião. O discurso religioso, nessa
perspectiva, normalmente assenta-se numa manifestação discursiva mais fechada
ou com número mais controlado de versões.
Integrada ao mito até a chegada do racionalismo clássico, a Religião foi,
aos poucos, desprendendo-se de sua própria dimensão mítica. Este fato deveu-se
e ainda se deve à inequívoca supremacia do logos sobre o mythos, como foi visto
no início deste artigo. Para ter acesso ao e representabilidade no poder, as
religiões ocidentais vinculam-se muito mais fortemente ao histórico do que à
dimensão metafórica de sua constituição mítica. Na Literatura, todavia, imagens
míticas religiosas são tomadas sem as mesmas injunções sofridas pelos textos
canônicos, o que, absolutamente, não significa que as mesmas injunções não
possam ali aparecer. Afinal, também há vínculos entre a Literatura (e das artes em
geral) e a circularidade cultural dessas imagens. Ou seja, mesmo sendo muitas
vezes contestadora, a Arte também sofre influências do processo de
racionalização da experiência humana existencial.
Na poesia épica ocidental, a presença da dimensão mítico-religiosa
fundida à dimensão real, através da interação dos planos maravilhoso e histórico,
torna, muitas vezes, o próprio texto literário um veículo de reafirmação religiosa
cristã das estruturas sociais. A partir da Idade Média, por exemplo, a poesia épica
ocidental reservou um espaço representativo para o Cristianismo, sempre
referendado como uma fonte de reafirmação da estrutura histórica.
Voltando-me, agora, para a imagem mítica de Maria, relembro que o
valor atribuído à imagem da Sagrada Família é o de ser exemplo para as famílias
cristãs. A José, filho de Jacó, além dos Apócrifos, são atribuídas as informações
sobre a infância de Jesus presentes em Mateus. Seu contato com a divindade se
dá apenas por meio do anjo que lhe anuncia a condição milagrosa de Maria 
que viria a ser a mãe virgem do Filho de Deus  e o posterior contato com o
Menino Jesus. Todavia, segundo Philp Sellew:

A tradição cristã posterior passou a ver José como um viúvo idoso, de tal
modo que os “irmãos e irmãs” de Jesus em passagens como Marcos 6.3
poderiam ser compreendidos como filhos de José num casamento
anterior, não como filhos seus com Maria; mais tarde ele passou a ser

86
visto como um asceta santo, sem interesse em sexo, e os irmãos de
47
Jesus como “primos”.

Como se vê, diante do conflito entre a versão de Maria eternamente


virgem e a citação de “irmãos e irmãs” de Jesus, a circularidade cultural da
imagem mítica de José acabou por consolidar versões que pareceriam menos
agressivas à imagem virginal de Maria. Esse processo denota ou exemplifica
como eram limitadas as leituras dos textos sagrados, uma vez que buscavam no
registro histórico a justificativa para o valor religioso do acontecimento. Tais
versões contribuíram ainda mais para a manutenção de valores como o
patriarcalismo, a virgindade, a submissão do humano ao divino e à relação
sexo/pecado.
Dentro do recorte historicista, Maria, judia filha de Joaquim e Ana, teria
supostamente nascido entre 18 e 20 A.C., em Jerusalém ou na Galiléia. À sua
imagem são sempre relacionadas categorias sêmicas como predestinação,
purificação, a submissão, a redenção e o expansionismo. Todavia, a fecundação,
a sexualidade e a misoginia parecem ser tabus quando a imagem mítica em
questão é a da Virgem Maria. Dificilmente artistas se propõem a questionar esses
aspectos, ficando o culto a Nossa Senhora de certo modo protegido. Tal fato deve-
se, provavelmente, à inscrição de Maria como interlocutora entre o humano e o
divino.
A presença de Maria nas culturas ocidentais tanto como interlocutora
entre o divino e o humano quanto como exemplo a ser seguido ampliou a projeção
de sua imagem mítica. Exemplos disso são as aparições que resultaram em novos
nomes para a mãe de Cristo. A essas aparições relacionam-se, por sua vez,
diversos aspectos culturais específicos e valorizados por essa especificidade.
É ainda curioso observar que, nas tradições canônicas e mesmo nas
Artes, a imagem mítico-religiosa de Maria contrapõe-se à de Eva. A virgindade de
Maria (pré e pós parto) ratifica-lhe, segundo as escrituras, a condição divina, uma
vez que a assexualidade é um atributo do Senhor Deus. Já Eva, ao “pecar”,

47
METZGER, Bruce M. & COOGAN, Michael D. Dicionário da bíblia. Vol. 1: as pessoas e os
lugares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 166.

87
conscientiza-se de sua sexualidade e, com isso, adquire uma condição humana
que é repelida pelo divino. Por essa razão, o uso condicionado dos textos bíblicos
 ressaltando a dualidade entre a virgem e a pecadora  norteou a educação da
mulher, através dos séculos, e estabeleceu parâmetros tais como:
virgem/esposa/mãe dos filhos legítimos/santa X prostituta/amante/mãe de
bastardos/pecadora, cabendo à primeira um comportamento quase assexuado e à
segunda, ao contrário, o exercício pleno da sexualidade, orientado para a
satisfação dos desejos sexuais masculinos, não reprimidos por qualquer tipo de
injunção religiosa.
Para destacar como a circularidade cultural da imagem mítica de Maria,
na epopéia brasileira, reproduz um condicionamento cultural que consagra os
principais estereótipos associados à mãe de Jesus, sem penetrar no que nela
existe de verdadeiramente simbólico, tomo como exemplo três poemas épicos48,
de épocas e, portanto, de estéticas e visão de mundo, diversas.
Caramuru (1781) contém 6.672 versos decassílabos, agrupados em
oitavas reunidas em dez cantos. De forte influência camoniana, de estética híbrida
de notada compleição cultista e de impregnação ideológica cristã, decorrente, por
razões óbvias, da religiosidade do frei-poeta Santa Rita Durão, o poema constitui,
simultaneamente, vastíssimo repertório de informações sobre os primórdios da
colonização do Brasil e, na visão de alguns críticos, manifestação anacrônica da
subserviência da Literatura Brasileira às injunções estéticas e ideológicas
portuguesas. Embora, aparente e explicitamente, o “herói” dessa epopéia seja
Diogo Álvares Correia, que, náufrago em expedição que veio ao Brasil por volta de
1.510, sobreviveu a índios antropófagos e acabou por eles nomeado de
“Caramuru”, é importante verificar a relevância de duas imagens de mulher: uma,
na dimensão mítica, Nossa Senhora; outra, em ambas as dimensões, Paraguaçu
(depois, Catarina), que, segundo Durão, teve acesso a uma imagem da Virgem
Santíssima (encontrada nas mãos de um índio) e dela obteve a força mítica

48
DURÃO, Santa Rita Caramuru. São Paulo: Martins Fontes, 2001; BOPP, Raul. Cobra Norato.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1962; LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Aguilar,
1974.

88
necessária para atuar como elemento de sustentação do expansionismo cristão
português no Brasil.
No poema, as duas primeiras oitavas do canto I louvam Caramuru,
porém, o maior destaque é dado à “Virgem bela” e “Mãe donzela”, cujo poder,
através da chegada de Caramuru, será tirar do paganismo um povo bárbaro,
antropófago, infernal. Na oitava XLII, a imagem de Maria é novamente tomada,
assim como, mais adiante, a imagem de Tupã, que o autor, em nota, explica ser
uma “expressa noção de Deus, que vale entre eles “excelência superior, cousa
grande que nos domina.” Ainda no primeiro canto, são referenciadas as imagens
de Adão e Eva (que “por pena de um voraz desejo,/da feia desnudez se
envergonhava”) que, antes do “pecado”, andavam nus como a “gente bárbara”
encontrada por Diogo.
No canto II, Diogo, vestindo uma armadura e portando uma arma de
fogo, assusta Gupeva (o chefe da tribo) e sua gente que, a partir desse medo,
abrem espaço para que Diogo se manifeste. Diogo, ciente do estratagema
involuntário (pois se fez figura assombrosa por estar vestido de metal), mas
igualmente motivado pela “missão” de tornar mais humana “aquela gente”,
mostrará a Gupeva uma imagem de Nossa Senhora, sabiamente apresentada ao
indígena como “mãe de Tupã”.
Nos cantos VIII, IX e X, as visões proféticas de Catarina-Paraguaçu
sobre o futuro do Brasil ampliam sua projeção na dimensão mítica. O discurso
mítico de vidente remete Catarina-Paraguaçu, cada vez mais, para a convergência
das dimensões histórica e mítica. E será a figura da Virgem Maria a consolidadora
final da fusão dessas dimensões. Ao se manifestar, em voz e imagem, diante de
Catarina-Paraguaçu, a virgem diz amar o Brasil e lhe pede a recuperação de sua
imagem. A recuperação “milagrosa” da imagem, a submissão de Diogo e Catarina
ao governador Tomé de Souza e a conversão dos tupinambás ao catolicismo e ao
colonizador encerram o poema. Caramuru, portanto, dá relevância bastante
significativa à participação da mulher no expansionismo da fé cristã-católica,
índice talvez da percepção de Santa Rita Durão acerca do papel importante que a
mulher assumiria na difusão do catolicismo.

89
Publicado em 1931, o poema Cobra Norato, de Raul Bopp, inscreve-se
no percurso da produção épica moderna brasileira e tem, entre outros, o mérito de
dar visibilidade à região amazônica, com sua geografia, sua cultura, seu linguajar.
O herói da narrativa é um Eu-Lírico-Narrador que, após um ardiloso
expediente  “quero contar-te uma história/Vamos passear naquelas ilhas
decotadas?/Faz de conta que há luar”  reveste-se da pele da Cobra Norato
(“Brinco então de amarrar uma fita no pescoço/e estrangulo a cobra”), e,
assumindo a identidade mítica da cobra por ele ludibriada, faz o percurso em
direção ao histórico, em busca de construir para si uma identidade humana.
Percorrendo os espaços da geografia amazônica, Cobra Norato, imagem mítica de
sedução, deseja o “casamento” com a filha da rainha Luzia, ou seja, deseja despir-
se de sua função mítica e assumir uma função socialmente aceita. Com a inversão
do percurso, o herói faz a trajetória oposta à da cobra sedutora, ou seja, propõe-se
a ser seduzido e resistir à sedução, daí o maior obstáculo para sua caminhada de
volta ao real ser resistir ao processo de sedução inerente à sua própria natureza
mítica, recusando todas as formas de apelo à fecundação impressas na natureza.
No plano maravilhoso, a mulher é sexuada, sedutora, plena de visgos e
carente de preenchimento uterino; no plano histórico-geográfico, ela é a virgem, a
mulher digna de ser objeto de desejo e de conflito. No coroamento da aventura de
Norato, destaca-se, no plano maravilhoso, a imagem mítica de Nossa Senhora,
santificando o espaço anteriormente erótico (purificação); já no plano geográfico-
cultural, destaca-se a projeção da festa do casamento, o Caxiri Grande, e o
retorno do herói, agora acompanhado de sua noiva, a quem ele se propõe a
“contar histórias” e a “vestir com um vestidinho de flor”. Antropocêntrico, o poema
revela o homem que engana a serpente, sublima sua sexualidade instintiva e
animal, enfrenta as adversidades, domina a terra, submete-se aos rituais cristãos
e, finalmente, reintegra-se ao espaço mágico do Sem-Fim, reinventando o paraíso
Adâmico, do qual foi expurgada a serpente. Nesse retorno ao “estado de pureza”,
Nossa Senhora tem papel de destaque.
Invenção de Orfeu (1952), de Jorge de Lima, possui dez cantos e onze
mil versos, e é tido pela crítica como um dos mais complexos textos de natureza

90
épica. Nele, a figura da mulher é amplamente valorizada. Por isso, no decorrer do
poema, são muitas as alusões a nomes de mulheres que integram as dimensões
mítica e real, com predominância da primeira. No que se refere, especificamente
ao enfoque desta leitura, há, no poema, um aspecto curioso. Ao lado da santidade
de Maria, Jorge de Lima explora a figura de Eva:

Abrigo as minhas musas, amam sobre.


Aflijo-me por elas, sofro nelas,
encarno-me em poesia, morro em cruz,
cravo-me, ressuscito-me. Petrus sum.
Sou Ele mas traindo-o, mas em burro,
com esses cascos na terra, e ventas no ar,
cheirando Flora; minhas quatro patas
rimam iguais, forradas, alforriadas,
burro de Ramos, levo sobre o dorso
Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém.

Contudo,
burro épico, vertido pra crianças,
transporto-as à outra margem, sou Cristóvão
Colombo, sou columba, Deus Espírito
que desce sobre o início, sou palavra
antes de mim, eu evo. Ave Maria,
Eva sem culpa, tem de mim piedade,
Pia sacramental de que emerjo ilha.

A fala “eu evo, Ave Maria” mostra a intenção de vivenciar duplamente,


desde as origens remotas, a dupla experiência existencial. Desse modo, fazendo-
se híbrido do divino e do terreno, do masculino e do feminino, do céu e do inferno,
de Eva e de Maria, o Eu-Lírico-Narrador conquista o batismo e a purificação lírica.
O verbo “evar”, curiosamente, também terá duplo sentido: “evar” como “pecar”
ratifica a imagem de Eva como a fonte dos pecados humanos; no entanto, “eu
evo, Ave Maria” revela a integração do sujeito com a condição humana em sua
dualidade pecadora/santa.
Outros poemas épicos brasileiros, como A lágrima de um caeté, de
Nísia Floresta, Toda a América, de Ronald de Carvalho, Romanceiro da
Inconfidência, de Cecília Meireles, Porta Bandeira, de Leda Miranda Hühne, As
Marinhas, de Neide Archanjo, poderiam ser tomados como exemplos da
ratificação que a epopéia dá aos potenciais sêmicos relacionados à Maria. Não
vejo nisso, obviamente, um equívoco ou um vício da Literatura, mas, sim, um
91
signo evidente de que há muito a ser desconstruído quando o tema é Religião. As
imagens míticas religiosas, mesmo quando veiculadas por obras de Arte, são,
talvez, dentre as várias representações míticas, as mais atingidas pelo processo
de circularidade cultural. Decerto, a imagem de Maria poderia ganhar conotações
muito mais ricas e expressivas, caso não se impusesse a ela a obrigatoriedade de
cumprir um papel social e culturalmente pré-determinado, sustentado,
principalmente, pela dicotomia pecado/santidade. Assim, de modo geral, posso
concluir que ainda há muito a se conquistar em termos de fruição da linguagem
simbólica dos mitos.

92
A ESFINGE PEJADA DE
MISTÉRIOS:
TRAVESSIAS E TRAVESSURAS
DE JUDAS

SALMA FERRAZ

93
A ESFINGE PEJADA DE MISTÉRIOS:
TRAVESSIAS E TRAVESSURAS DE JUDAS

Salma Ferraz (UFSC)

“... pois tu sacrificarás o homem que veste a


mim. Vê, a atua estrela é que agora ilumina
o caminho.” O Evangelho de Judas.

Quando falamos em Teopoética – os estudos comparados entre


Teologia e Literatura, podemos pensar que se trata de estudos pertinentes
somente à personagem Deus. Mas o discurso crítico-literário, a reflexão teológica
e literária deste ramo de estudos é extensivo a toda a Bíblia – Velho e Novo
Testamentos e a todos os personagens bíblicos. Em outra oportunidade já
analisamos o trânsito da Madalena bíblica49 para a Literatura e neste artigo
mapearemos alguns aspectos da travessia do Judas bíblico - um dos mais
polêmicos e famosos personagens da história do Cristianismo e do Ocidente e o
responsável por trair Jesus - para o Judas literário e, principalmente, o Judas
concebido por Julio de Queiroz em seu conto O Acordo do livro Perfume de
Eternidade. Parece-nos que o Novo Testamento criou grandes arquétipos de
personagens vilões: Satanás/Diabo/Besta do Apocalipse - o grande tentador e
inimigo do Filho de Deus, Madalena – a meretriz arrependida (profissão que ela
efetivamente jamais exerceu) e Judas - o grande traidor de todos os tempos.
Sendo a Bíblia – composta pela antologia de livros do judaísmo (Velho
Testamento) e de uma antologia de livros do cristianismo primitivo (Novo
Testamento) - o maior best-sellers de todos os tempos e uma obra clássica da
literatura mundial, imprescindível para o conhecimento do cristianismo, da
Literatura Ocidental e da cultural do Ocidente, é natural que muitos de seus
personagens migrem para as páginas de grandes romances do Ocidente. Harold

49
Maria Madalena – a discípula amada. In: Anais do II Simpósio Internacional sobre Religiões,
Religiosidades e Culturas, Dourados, Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), 23 a 26 de Abril de 2006.

94
Bloom em Jesus e Javé – os nomes divinos afirma que o melhor do cristianismo
foi a literatura criada a partir dele. O cristianismo é tão importante para o mundo
ocidental que quase chega a confundir-se com ele e eis aqui o motivo porque
mesmo sendo atéia uma pessoa nascida no Ocidente está imersa numa cultura
cristã e, certamente conhecerá personagens como Deus, Diabo, Madalena, Judas
e tantos outros mais. No Brasil, país predominantemente católico, certas
expressões relativas a este vilão bíblico são muito comuns, como por exemplo –
aquele sujeito é um Judas, lá onde o Judas perdeu as botas, malhar o Judas.
Sem exagero podemos afirmar que Judas é quase um virtual membro “bastardo”
da cultura brasileira.
Ninguém quer ser chamado de Judas, sinônimo de traição. Na
Alemanha o uso do nome Judas é proibido. No Brasil, durante a Páscoa, no
sábado de Aleluia, é comum a malhação de um boneco que simboliza o Judas
que traiu Jesus durante outra Páscoa ocorrida há dois mil anos. A malhação do
Judas é uma verdadeira catarse dos jovens, crianças e adultos, uma vez que o
Judas malhado ganha o rosto de políticos que traíram a pátria.
O Dicionário Aurélio traz as seguintes definições para Judas -
personagem do Novo Testamento: 1) Amigo falso; traidor; 2) Boneco ou
estafermo que se costuma queimar no sábado de aleluia; 3) Indivíduo mal trajado.
A acepção de traidor também está presente nos dicionários de espanhol, francês,
inglês, alemão e italiano.
Recorramos à Bíblia para recordar os principais detalhes da saga de
Judas. Ele é mencionado 15 vezes nos Evangelhos Canônicos e mais algumas
nos Atos dos Apóstolos, mas nada se sabe de sua vida antes dele conhecer
Jesus, afinal os Evangelhos são biografias de Jesus e não de Judas. No
Evangelho de Mateus50 sua primeira aparição já é condenatória e ele já é
apresentado como vilão. Ao narrar a escolha do doze apóstolos, Mateus no
capítulo 10:4 informa o nome de Judas por último: “Simão, o Zelote, e Judas

50
Os historiadores acreditam que os Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João não foram
escritos por eles, mas por membros das comunidades cristãos do primeiro século que resolveram
compilar as narrativas orais existentes.

95
Iscariotes51, que foi quem o traiu.” Trata-se de um relato por ulterioridade, o
evangelista já sabe o futuro quando começa a narrar. Em Mateus 26: 14 temos o
episódio do pacto da traição:

“Então, um dos doze, chamado Judas Iscariotes, indo ter com os


principais sacerdotes, propôs:
Que me querei dar, e eu vo-lo entregarei? E pagaram-lhe trinta
moedas de prata.
E, deste momento em diante, buscava ele uma boa ocasião para
o entregar.”

De um grupo maior de setenta pessoas que seguiam a Jesus, foram


escolhidos doze homens a quem Jesus chamou de Apóstolos, (mensageiro em
grego) e Judas estava entre estes doze. A saga continua e Mateus narra agora a
última ceia, na qual Jesus está reunido com todos seus discípulos quando
pronuncia estas palavras fatídicas:

“E, enquanto comiam, declarou Jesus: em verdade vos digo que


um dentre vós me trairá.
E eles, muitíssimo contristados, começaram um por um a
perguntar-lhe: Porventura, sou eu, Senhor?
E ele respondeu: O que mete comigo a mão no prato, esse me
trairá.
O Filho do Homem vai, como está escrito a seu respeito, mas ai
daquele por intermédio de quem o Filho do Homem está
sendo traído! Melhor que fora não haver nascido!
Então Judas, que o traía, perguntou: Acaso, sou eu, Mestre?
Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste.” (Mateus 26: 21-25,
negrito nosso)

Não sabemos ao certo porque Jesus levantou esta polêmica na última


ceia. Anteriormente a este fato, por três vezes, Jesus havia dito que seria morto.
Alguns teólogos defendem a idéia de que alguém deveria trair Jesus, não
especificamente Judas e talvez e que Jesus tenha dito a frase um dentre vós me
trairá para dar a oportunidade para que Judas se arrependesse, o que,
efetivamente, não ocorreu. Teríamos que entrar aqui em dois conceitos teológicos
complicados, porque não são racionais: Livre Arbítrio e Predestinação. Explicando
51
Iscariotes provavelmente indicava seu lugar de nascimento - Cariotes ou Kerioth. Esta vila
nunca foi localizada, mas deveria ficar perto de Hebrom, no sul da Judéia, e distante uns 5 dias de
viagem da Galiléia.

96
o caso em questão, aliás, bastante polêmico: Judas traiu a Jesus porque quis, já
que era dotado de livre arbítrio, mas Jesus, filho de Deus e Onisciente como
Deus, já sabia que era ele que o trairia, embora esta Sua onisciência não fosse
causativa. Ou se aceita estes conceitos somente pela fé ou achamos isto um
completo absurdo.
A partir deste momento, qualquer referência ao décimo segundo
apóstolo virá acompanhada do adjetivo traidor. Analisemos o momento crucial
desta tragédia, quando Judas entrega Jesus no jardim do Getsêmani. O
evangelista Mateus continua seu relato:

“- Levantai-vos, vamos! Eis que o traidor se aproxima.


Falava ele ainda, e eis que chegou Judas, um dos doze, e com
ele, grande turba com espadas e porretes, vinda da parte dos
principais sacerdotes e dos anciãos do povo.
Ora, o traidor lhes tinha dado este sinal: Aquele a quem eu
beijar, é esse; prendei-o.
E logo, aproximando-se de Jesus, lhe disse: Salve, Mestre e o
beijou.
Jesus, porém, lhe disse: Amigo, para que vieste? Nisto,
aproximando-se eles, deitaram as mãos em Jesus e o
prenderam.” (São Mateus 26: 46- 50, negrito nosso)

Observamos na citação acima que Jesus tinha plena onisciência que


Judas era o traidor e se refere a este discípulo como traidor pela segunda vez,
antes de Judas efetivamente o trair. O beijo, símbolo de fraternidade, respeito e
de honra entre os seguidores de Jesus, passa a simbolizar o beijo traiçoeiro. Logo
em seguida o narrador do Evangelho se refere a ele também como traidor e
informa qual foi o fim dramático de Judas:

“Então, Judas, o que o traiu, vendo que Jesus fora condenado,


tocado de remorso, devolveu as trinta moedas de prata aos
principais sacerdotes e aos anciãos, dizendo:
- Pequei, traindo sangue inocente. Eles, porém, responderam:
Que nos importa? Isso é contigo.
Então Judas, atirando para o santuário as moedas de pratas,
retirou-se e foi enforcar-se.” (São Mateus 27:3-5, negrito nosso)

Eis aqui um enredo com todos os componentes de uma tragédia grega:


amizade, pacto, ceia, traição, suborno, remorso, morte e suicídio. Por narrativas

97
como esta da biografia de Judas é que a Bíblia é a matriz das grandes estórias da
Literatura Ocidental. Voltando à análise do episódio da traição, observamos que
os principais sacerdotes recolhem as trinta moedas – exatamente o preço de um
escravo na época - e chegam à conclusão que não era lícito lançá-las no cofre
das ofertas do Templo, porque simbolizavam o preço do sangue. Com aquelas
moedas malditas, compraram um campo para ser usado como cemitério de
forasteiros e denominaram aquele campo de Campo de Sangue. Ressaltamos
que na narrativa de Mateus aparece a palavra remorso, porque Judas se
conscientiza de que entregou um homem justo. O Evangelho de Lucas no capítulo
22:3 traz o seguinte relato: “Ora, Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes,
que era um dos doze...” Analisando o texto, podemos inferir daqui que Judas é
inocente já que estava dominado por Satanás e por tanto não era dono de seus
atos. No Evangelho de Marcos, escrito em 65. d.C., Judas é o responsável pela
traição, mas a recompensa é oferecida pelos sacerdotes e não é Judas quem põe
preço na traição.
Cabe acrescentar outro detalhe da biografia bíblica de Judas Iscariotes.
Ele exercia a profissão de tesoureiro, já que Jesus e seus discípulos viviam uma
vida itinerante e dependiam de doações. O décimo segundo Apóstolo de Jesus
era tesoureiro, afinal, alguém precisava cuidar do dinheiro que era arrecadado
entre as pessoas abastadas da época do surgimento do cristianismo. Por ocasião
da unção de Jesus por uma mulher que quebrou um caríssimo vaso de perfume,
Judas não gostou deste desperdício e, neste ponto, o evangelista João, que no
episódio da traição também fala em possessão demoníaca, informa que: “Isto
disse ele, não porque tivesse cuidado dos pobres, mas porque era ladrão e,
tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava.” (João 12:6, negrito nosso). O fato de
ser tesoureiro poderia indicar tanto que era uma pessoa de confiança como
poderia sugerir que era avarento. Mas o evangelista João não deixa dúvidas:
tomava conta da bolsa e era ladrão, ou seja, “desviava” dinheiro sagrado para o
seu caixa dois, tinha sua mala particular e isto não era segredo para ninguém: era
público e notório. Agora sim sua biografia está completa: ladrão, corrupto, traidor e
suicida.

98
O Evangelho de Mateus foi escrito em torno do ano 80 da Era Cristã,
provavelmente, em aramaico e depois vertido para o grego. Mas nos Atos dos
Apóstolos, cuja autoria é atribuída ao evangelista Lucas, redigido em torno do ano
80, durante a narrativa da escolha do discípulo Matias que substituiu Judas,
temos literalmente um parêntesis de oito linhas, um breve resumo da trajetória do
traidor:

(Ora, este homem adquiriu um campo como o preço da


iniqüidade; e, precipitando-se, rompeu-se pelo meio, e todas
as suas entranhas se derramaram;
e isto chegou ao conhecimento de todos os habitantes de
Jerusalém, de maneira que em sua própria língua este campo era
chamado de Aceldama, isto é, Campo de Sangue).
Porque está escrito no livro de Salmos: Fique deserta a sua
morada; e não haja quem nela habite.
Tome outro o seu lugar.” (Atos dos Apóstolos 1:18-20, negrito
nosso)

Em Atos dos Apóstolos, no meio de um parêntesis, um resumo do fim


de Judas o que revela total desprezo por sua atuação. Mas aqui há quatro fatos
diferentes da narrativa de Mateus: Judas não devolve as moedas no Templo; 2)
com estas moedas adquire o campo; 3) não se fala explicitamente de suicídio,
muito menos de enforcamento. 4) suas vísceras/entranhas se partem pelo meio e
se derramam.
Notamos que há muitas discrepâncias nas narrativas evangélicas sobre
Judas. Citamos aqui Graig Evens, estudioso canadense da Bíblia:

“Um dos Evangelhos afirma que Judas agiu por dinheiro, outro não
cita motivações, dois falam em ação demoníaca. Creio que essas
versões tão distintas deixam claro que os escritores do Novo
Testamento não sabiam exatamente quem era Judas
Iscariotes.”52

Mas fica aqui uma indagação: todos os outros Apóstolos tiveram


seguidores, e Judas? Se houve seguidores quem eram o que escreveram?
Acreditavam realmente que Judas foi ladrão, traidor e suicida?

52
Graig Evens. O Evangelho Segundo Judas. In: Super Interessante, p. 58-59, p. 60, negrito
nosso.

99
Em seu artigo sobre Judas – O Evangelho Segundo Judas, Ana Paula
Chinelli levanta uma interessante pergunta que também já nos ocorreu: porque
Pedro que negou a Cristo 3 vezes, jamais teve sua virtude colocada em dúvida e
não entrou para história como traidor? A resposta “oficial” é que Pedro se
arrependeu e apelou para a misericórdia divina e Judas não se humilhou, se
desesperou e se matou... Contra a fé não há argumentos. No mesmo artigo o
historiador Chevitarese responde: ”Pedro, chefe da Igreja em Roma, tinha de ser
o herói. A Igreja elegeu Judas como vilão já que um dos 12 deveria trair.”53 O
teólogo Fernando Altemeyer corrobora a idéia de Chevitarese ao afirmar que “a
atitude do apóstolo traidor não foi muito pior que a de Pedro, que o negou três
vezes, ou que a dos demais apóstolos, que o abandonaram. Judas foi um mal
necessário, um inocente útil.”54 Luis Felipe Pondé, professor de Ciências da
Religião, vai mais longe e afirma que “é elementar que Deus usasse os elementos
que criou para fazer a Paixão de Cristo acontecer.”55 O cristianismo se construiu
em cima dos grandes arquétipos do bem e do mal, de heróis e vilões e a Judas
coube o papel de traidor do Filho de Deus.
Em outro conto do livro Perfume de Eternidade, Queiroz realiza um
encontro entre Judas e Pedro para que os dois discutam suas culpas. O conto se
intitula Encontro de Culpas e Pedro afirma “Vou viver com aquelas traições.
Nunca poderei dormir sem que galos clarinem dentro do meu sono inquieto.”
Queiroz iguala Pedro e Judas, ambos traidores, ambos culpados.
Não poderíamos deixar de citar a tese de John Dominic Crossan,
professor de estudos bíblicos da DePaul University, de Chicago. Em seu livro
Quem Matou Jesus?, Crossan afirma: “Minha suposição é de que Judas possa ter
sido capturado entre os companheiros de Jesus, durante a ação no Templo, e em
seguida contado quem tinha feito aquilo e onde se encontrava”. Ou seja, o beijo e
as moedas entrariam bem depois no enredo. É o historiador Ademir Luiz quem,
analisando a hipótese de Crossan, afirma que Judas

53
Apud Ana Paula Chinelli. O Evangelho Segundo Judas. In: Super Interessante, p. 62.
54
Apud O Evangelho Segundo Judas de Ivan Padilha & Marcelo Musa Cavallari. In: Época. São
Paulo: Globo, Fevereiro de 2006, p. 65, negrito nosso.
55
Id. ibidem, p. 65.

100
“provavelmente, morreu mesmo enforcado. Afinal, na
Antigüidade, o enforcamento era uma modalidade de execução
pública muito usada. Se a sugestão de Crossan for correta,
podemos supor que talvez os romanos tenham crucificado o
criminoso principal e reservado pena mais branda — o
enforcamento — para um prisioneiro cooperativo. Parece fazer
sentido, uma vez que um estudo filológico sobre seu sobrenome
compromete-o: Judas Iscariotes seria uma latinização do
aramaico Judas Sicarus. Sicarius, algo como portador do punhal,
era uma das formas de se chamar os integrantes dos zelotes,
partido judeu de resistência aos romanos. Ou seja: nada de
suicídio motivado pelo arrependimento. Judas também teria sido
executado.” 56

Em 2006 o mundo cristão foi abalado pela descoberta de um manuscrito


redigido em língua copta, datado do século IV, e que tinha permanecido escondido
numa caixa dentro caverna El Minya no deserto Egito. Da autoria anônima de
cristãos gnósticos, o documento foi escrito originalmente em grego no ano 180 e
traduzido para o copta entre 220 e 340. A tradução para o inglês foi
supervisionada por Marvin Meyer, professor de Estudos Bíblicos e Cristãos na
Chapman University, da Califórnia. Aliás, a própria descoberta do manuscrito é
uma estória rocambolesca, foram 28 anos de peregrinação entre a descoberta do
texto e a publicação oficial57. O chamado Evangelho de Judas possui treze folhas
e foram necessários cinco anos para o trabalho de tradução, autenticação e
restauração que se transformaram em vinte e seis páginas. Este texto vem juntar-
se aos Pergaminhos do Mar Morto descoberto em 1947, que nos trouxeram textos
antigos do Velho Testamento e aos Manuscritos do Nag Hammadi, descoberto em
1948 e que revelaram a existência dos Evangelhos Apócrifos, textos estes que
mostram a existência de diversas versões, contradições e correntes diferentes
dentro do cristianismo primitivo. Ou seja, muita coisa foi escrita nos primeiros
séculos do cristianismo além dos Evangelhos Canônicos.

56
Ademir Luiz Judas, que não teria traído Jesus Cristo, pode ter sido enforcado. In: Jornal Opção
on line, Goiânia., 30 de Abril a 06 de Maio de 2006 - www.jornalopcao.com.br -
57
Consultar o artigo O Outro Judas de Pablo Nogueira In: Revista Galileu. São Paulo: Globo, p.
46-47.

101
O bispo de Lyon, santo Irineu, justamente o bispo que teve atuação
decisiva para que apenas os quatro Evangelhos entrassem na Bíblia58, havia
escrito um livro (5 volumes) em 180 d.C. denominado Contra os Hereges na qual
citava nominalmente O Evangelho de Judas e o classifica de herético59. Cumpre
esclarecer que o livro de Santo Irineu já está publicado em português, em sua
segunda edição pela editora Paulus, com o título Contra as Heresias. Irineu
faleceu em 202, mas em 367, um fervoroso seguidor dele – bispo Atanásio de
Alexandria - elaborou uma lista dos textos aceitáveis (quase todo o Novo
Testamento conhecido) e exigiu que os monges do todo o Egito destruíssem as
obras não incluídas ali. A sorte é que nem todos os monges foram obedientes a
sua ordem e é por isto que O Evangelho de Judas chegou até nós. Aqui uma
hipótese torna-se quase certeza: Judas teve seguidores e algum destes
seguidores provavelmente de alguma comunidade gnóstica, que acreditavam que
a salvação vinha pelo autoconhecimento - escreveu O Evangelho de Judas.
Relatamos aqui duas constatações levantadas por Stephen Emmel, especialista
em copta: “... ou Judas teve tempo de contar suas conversas com Cristo antes de
se matar; ou não morreu tão cedo.” Mistérios...

Outra questão importante a ser levantada: o que teria acontecido se os


textos gnósticos tivessem predominado sobre os demais correntes do
cristianismo? Emmel, especulativamente, responde: “Nesse caso, talvez, Judas
viesse a ser conhecido como o discípulo mais importante de Jesus... mas não foi
isso que aconteceu.”60
E o que afinal traz de novo O Evangelho de Judas? Ele afirma que: 1)
Judas foi o Apóstolo preferido de Jesus; 2) não houve traição, uma vez que ele

58
Sobre os critérios e motivações para a escolha de apenas 4 evangelhos oficiais consultar a
reportagem citada acima. Elaine Pagels defende a tese de que se não fosse as idéias e o trabalho
de Irineu e o posterior Concílio de Nicéia (que assentaram os fundamentos teológicos da Igreja),
ou seja, se o cristianismo tivesse continuado com suas várias correntes e tendências, talvez
tivesse simplesmente desaparecido da História.
59
Neste documento Irineu deixa claro que não conhecia pessoalmente O Evangelho de Judas,
mas que já tinha ouvido falar do que ele denomina de caininitas (defensores de Caim) que
“defendiam Judas, o traidor, dizendo que ele é admirável e grande, devido às vantagens que
ajudou a conferir à humanidade. Mas Deus preparou o fogo eterno para todo tipo de heresia”.
Apud. O Outro Judas, p. 48, negrito nosso.
60
Emmel, Apud O Outro Judas, p. 54.

102
atendeu a um pedido de Jesus e o entregou aos soldados romanos; 3) era um
homem leal já que obedeceu a Jesus, mesmo sabendo que seu nome seria
eternamente amaldiçoado; 4) ele foi o único Apóstolo a entender o significado dos
ensinamentos de Jesus; 5) foi o responsável pela libertação do espírito de Jesus,
ao permitir que, pela morte do corpo, o espírito de Jesus se libertasse; 6) não há
relato de suicídio, nem de enforcamento, mas há a sugestão de que ele foi aceito
nos reino dos céus por ter sido usado como instrumento para realizar os
desígnios de Deus.
Citarmos aqui a passagem do Evangelho de Judas na qual Jesus diz a
Judas: “Se afaste dos outros e eu lhe concederei os mistérios do Reino. Você
pode entendê-los, mas vai sofrer por isso.”61 Portanto, este gnóstico revela que
Judas era um iniciado e só ele tinha acesso aos mistério do reino de Deus -
gnosis. Mais adiante Jesus fala que Judas “sacrificará o homem que me veste” e
revela a missão principal de Judas: matar a parte física para livrar seu espírito
daquele corpo62. Judas, leal, cumpre tudo como fora ordenado. Desta forma,
neste Evangelho, ele é o melhor amigo de Jesus e cúmplice perfeito para
execução de seus planos, transformando-se de vilão em herói, modelo de
obediência e amor. A Igreja, como sempre, negou sua aprovação ao texto e taxou
o mesmo de produto de fantasia religiosa. A posição da Igreja é clara: quem trai é
um Judas e ponto final.
Não mencionaremos a trajetória de Judas na pintura e no cinema o que
demandaria outro estudo. Na literatura esta idéia não é nova. Muitos escritores
tiveram Judas como protagonista e defenderam a idéia agiu sob ordens de Jesus,
ajudando-o a selar seu destino na cruz.
E aqui surge uma curiosa e intrigante pergunta? Onde Dante teria
colocado Judas em seu Inferno? Judas se encontra não somente no lugar mais

61
Ana Paula Chinelli. O Evangelho Segundo Judas. In: Super Interessante, p. 58-59, negrito nosso.
62
Os gnósticos acreditavam que a libertação do corpo acontecia quando se conhecia a parcela
divina que cada ser tinha dentro de si, que a salvação vinha pelo autoconhecimento, que não
precisavam freqüentar Igrejas e cultos, não precisavam de intercessores como padres e que a
morte de Cristo o ajudou a libertar-se da prisão que era seu corpo. Para eles, Jesus era um
enviado do Deus verdadeiro e bom, superior ao Deus falso e mau do Antigo Testamento. Eram
influenciados pela filosofia grega e pelas idéias de Platão.

103
profundo do inferno, como também na boca do próprio Lúcifer que o mastiga sem
cessar. A última zona infernal - coberta de gelo - divide-se em quatro partes e
hospeda os traidores (pecado considerado o mais grave, já que implica em
malícia e inteligência aplicadas no engano para o mal de quem se conhece ou
com quem se têm relações): 1) Caina, onde estão os traidores dos parentes; 2)
Antenora, onde estão os traidores da pátria; 3) Tolomea, os traidores dos
hóspedes e 4) Giudecca, os traidores dos benfeitores. Ao chegarem na última
zona infernal, Dante e Virgílio se deparam com Lúcifer em pessoa. Lúcifer é
gigantesco e com suas três caras engole os três traidores por antonomásia: Bruto
e Cássio (traidores de César - o Império) são mastigados - os pés para dentro, os
troncos para fora - pelas bocas laterais e Judas (traidor de Cristo - a Igreja) é
mastigado - os pés para fora, o tronco todo para dentro - pela boca central do
enorme demônio. Bruto, Cássio e Judas são castigados assim eternamente63.

Não poderíamos deixar de citar aqui o romance do canadense Nino


Ricci, Testament, no qual apresenta uma narrativa de Judas e novela Judas
Iscariotes do escritor russo Leonid Andreiev. Em português temos Evangelho de
Judas, de Sílvio Fiorani, Judas de Aristides Ávila publicado em 1953 e O
Evangelho de Judas de Roberto Prazzi publicado pela Editorial Presença, em
1992.

Andreiv é inclemente em sua descrição de Judas. Citamos aqui alguns


adjetivos e termos retirados somente dos dois primeiros capítulos de sua novela
Judas Iscariotes e que foram usados para caracterizá-lo: escorpião que provoca
escândalos, cobiçoso, pérfido, mentiroso, vagabundo, ruivo, peito largo peludo,
mãos deformadas como um tentáculo, caolho, voz acre e guinchada como uma
velha harpa, implantava a discórdia, servil, irônico abjeto, astuto, hipócrita, mal-

63
Conforme a especialista em Dante, Maria Teresa Arrigoni, no canto XXXIV (Divina
Comédia, Inferno), Judas Iscariotis é citado literalmente:
"Quell'anima là sú c'ha maggior pena -
disse il maestro - è Giuda Scariotto..." (Inferno., XXXIV, 61-62).

104
intencionado, cara feia, medroso, débil, enfermiço, desagradável, antipático,
cachorro sarnento, monstro marinho, monstruosa fealdade. No plano geral seu
enredo não desvia do enredo evangélico, mas Andreiev demoniza enfaticamente a
figura do décimo segundo apóstolo, transformando-o num quasímodo, com
tendências homossexuais.

É no caldo da cultura judaico-cristã que Jorge Luiz Borges foi buscar e


ressuscitar Judas em seu conto intitulado Três versões de Judas incluído em seu
livro Ficções publicado em 1940. Nunca é demais lembrar que o teológico é um
dos temas preferidos de Borges.
Em se tratando de Borges devemos desconfiar de tudo, porque ele tem
um célebre estilo de realizar falsificações eruditas, criar livros, autores,
enciclopédias, e citações inexistentes. Desta forma o genial Borges inventa um
teólogo - Nils Runeberg – seu alter ego, autor de um livro que nunca existiu,
chamado Kristus och Judas. Agindo assim, Borges por meio deste teólogo e
filósofo, pode elucubrar as mais hipotéticas versões para este personagem
bíblico. Borges se fantasia de Runeberg, comanda-o como um títere, e assim se
livra da acusação de heresia. Neste conto, Borges analisa três versões
oferecidas por dois supostos escritores para o personagem Judas (duas versões
por Runeberg e uma por De Quincey). Borges cria um protagonista - Nils
Runeberg que teria publicado em 1904 a primeira edição de Kristus och Judas,
livro que, assim como seu autor jamais existiu. Analisando a fictícia obra de
Runeberg, Borges esclarece que a primeira epígrafe do livro afirma que “Não uma
coisa, todas as coisas que a tradição atribui a Judas Iscariotes são falsas.”64 Esta
epígrafe pertenceria a De Quincey que teria escrito isto em 1857.
Genialmente Borges atribui a epígrafe do fictício livro e do fictício autor a
Thomas de Quincey (1785-1859), escritor britânico que em sua obra Confissões
de um comedor de ópio, narra suas experiências com o ópio. Ao escolher um
opiômano, Borges poderia colocar em sua boca qualquer epígrafe, ter dito o que
quisesse e que ninguém ligaria.

64
Três versões de Judas, p. 574 (todos os negritos no conto de Borges são de nossa autoria).

105
Borges relata a posição especulativa de Quincey (Borges, ele mesmo):
“De Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para forçá-lo a
declarar sua divindade e a deflagrar uma vasta rebelião contra o jugo de
Roma.”65 Portanto a primeira versão de Judas pertence a Quincey/Borges que
absolve Judas.
Após leitura das reflexões de Quincey, o protagonista Runeberg (outra
vez, o próprio Borges) vai dilatando as idéias daquele. Para ele em sua suposta
obra Kristus och Judas, o ato de Judas poderia ser encarado como superficial e a
traição de um apóstolo poderia ser dispensada, uma vez que Jesus era muito
conhecido, mas não foi isto que ocorreu. O filósofo afirma que a traição de Judas
não foi casual. Segundo ele:

“Supor um erro na Escritura é intolerável: não menos intolerável é


admitir um fato casual no mais precioso acontecimento da
história do mundo. Ergo, a traição de Judas não foi casual; foi
um fato predeterminado que tem seu lugar misterioso na
economia da redenção... O Verbo, quando foi feito carne, passou
da ubiqüidade ao espaço, da eternidade à história, da felicidade
sem limites à mutação e à morte; para corresponder a tal
sacrifício, era necessário que um homem, em representação
de todos os homens, fizesse um sacrifício condigno. Judas
Iscariotes foi esse homem. Judas, único entre os apóstolos,
intuiu a secreta divindade e o terrível propósito de Jesus. O
Verbo rebaixara-se a mortal; Judas, discípulo do Verbo,
podia rebaixar-se a delator (o pior delito que a infâmia
suporta) e a ser hóspede do fogo que não se apaga... Judas
reflete, de algum modo, Jesus. Daí os trinta dinheiros e o beijo;
daí a morte voluntária, para merecer mais a Reprovação.”66

Se na primeira versão de Judas, Quincey/Borges o inocenta, na


segunda versão, Runeberg/Borges o perdoa e o iguala ao Verbo, sendo Judas o
reflexo de Jesus, ambos iguais, inocentes e necessários. O conto de Borges
segue trazendo os nomes dos opositores das idéias de Runeberg. Sua versão
deixa os teólogos enfurecidos. Parece que tudo isto mexeu muito com ele, que
reescreveu parcialmente o seu livro e modificou sua doutrina. Então temos a
terceira versão de Judas de Runeberg/Borges publicada no suposto Livro Den

65
Idem.Ibidem, p. 574.
66
Idem. Ibidem, p. 574.

106
Hemlige Frälsaren, em 1909. Resumindo, na sua terceira versão de Judas,
Runeberg/Borges esclarece que: 1) Jesus, sendo onisciente, não precisava de um
homem para redimir todos os homens; 2) reafirma a importância de Judas, como
um dos doze eleitos para anunciar o reino dos céus, para sanar enfermos, para
limpar leprosos, para ressuscitar mortos e para expulsar demônios, ou seja, Judas
foi escolhido por Jesus e merecia uma melhor interpretação dos seus atos; 3)
nega que Judas tenha traído por cobiça, mas afirma que ele era um hiperbólico
asceta, que para maior Glória de Deus, envileceu e mortificou sua carne e seu
espírito. Nesta terceira versão, Runeberg/Borges afirma que Judas:

“Renunciou à honra, ao bem, à paz, ao reino dos céus, como


outros, menos heroicamente, ao prazer. Premeditou com
lucidez terrível suas culpas. No adultério, costumam participar
a ternura e a abnegação: no homicídio, a coragem; nas
profanações e na blasfêmia, certo fulgor satânico. Judas
escolheu aquelas culpas não visitadas por nenhuma virtude:
o abuso de confiança e a delação. Agiu com gigantesca
humildade, acreditou-se indigno de ser bom... Judas procurou
o Inferno, porque a felicidade, como o bem, é um atributo divino e
que não devem usurpá-los os homens.”67

Para Borges, o segundo livro de Runeberg (Den Hemlige Frälsaren-


1909) não nega, nem refuta a sua primeira versão (Kristus och Judas – 1904),
pelo contrário seu segundo texto exaspera o que havia sido dito no primeiro. Para
Runeberg/Borges:

“Deus se fez totalmente homem, porém homem até a infâmia,


homem até a reprovação e o abismo. Para nos salvar, pôde
escolher qualquer dos destinos que tramam a perplexa rede de
histórias. Pôde ser Alexandre ou Pitágoras ou Rurik ou Jesus,
escolheu um ínfimo destino, foi Judas.”68

Borges termina seu conto informando que, mal compreendido por


todos, o filósofo vagou pelas ruas, pedindo a graça de compartilhar com o
Redentor o Inferno. Isto demonstra a sua loucura e a sua vertiginosa dialética.
Borges, após livrar-se do filósofo, que não passa de um ser de papel, alerta para

67
Idem. Ibidem, p. 575.
68
Idem.Ibidem, p. 577.

107
o triste destino daqueles que ousam olhar Deus frente a frente: Elias e Moisés
cobrindo o rosto na montanha para não ver Deus; Isaías assustado com a Glória
de Deus que enchia a terra; Saulo, cegado pelo esplendor divino,
Runeberg/Borges louco de lucidez. Borges termina seu texto perguntando se não
seria este o enigmático pecado contra o Espírito Santo.
O que Borges neste conto que confunde o leitor desavisado, e no qual
as três versões de Judas na realidade são uma só - a versão magnífica de Jorge
Luiz Borges - é que Judas, o suposto delator é, na verdade, o salvador da
humanidade justamente por ter tornado possível a paixão de Cristo.
No Brasil, Paulo Coelho muito antes de seu astronômico sucesso com
seus best-sellers, juntamente com Raul Seixas, um dos roqueiros mais queridos e
geniais do rock brasileiro dos anos setenta, em parceria compuseram em 1978 a
canção intitulada Judas (do LP Mata Virgem), na qual elegem o antagonista
bíblico como motivo para uma composição. Nesta canção, o apóstolo Judas,
confortavelmente instalado no céu, sentado à beira da piscina, se diverte em ver
como as escrituras interpretaram seu ato. Portanto, há quase trinta anos, muito
antes do polêmico surgimento do Evangelho de Judas, os dois compositores já
tinham eleito este antagonista bíblico para uma canção intitulada Judas:

Judas

Composição: Raul Seixas e Paulo Coelho

Parte de um plano secreto


amigo fiel de Jesus
eu fui escolhido por ele
para pregá-lo na cruz
Cristo morreu como um homem
um mártir da salvação
deixando para mim seu amigo
o sinal da traição

refrão

Mais é que lá em cima


lá na beira da piscina
olhando simples mortais
das alturas fazem escrituras
e não me perguntam se é pouco ou demais

108
Se eu não tivesse traído
morreria cercado de luz
e o mundo hoje então não teria
a marca sagrada da cruz
e para provar que me amava
pediu outro gesto de amor
pediu que o traísse com um beijo
que minha boca então marcou.69

Raul Seixas e Paulo Coelho foram muito felizes ao compor esta


canção/narrativa/libelo de defesa de Judas. Eles absolvem Judas e neste sentido
sua canção é um resumo musical do Evangelho Segundo Judas e do conto Três
versões de Judas de Borges. Para os compositores, tratava-se de um plano
secreto e a traição foi uma prova de fidelidade uma vez que Jesus escolheu Judas
para traí-lo. Aqui os compositores invertem completamente a história bíblica: o
responsável pela traição é Jesus que escolheu Judas para realizar esta missão,
uma que se não houvesse a traição, não haveria a cruz. Se a traição foi uma
prova de fidelidade, o beijo foi a maior prova de amor que o Filho do Homem
recebeu em sua breve vida.

No Brasil, Julio de Queiroz tem produzido na última década uma obra


fecunda que dialoga constantemente com a Bíblia. Com formação em Teologia,
pertencente à Congregação Beneditina do Brasil, graduado em Filosofia,
pesquisador de fenomenologia da mística, mística medieval alemã, estudioso de
tanatologia, é Membro da Academia Catarinense de Letras, da Academia Sul-
Brasileira de Letras e da Academia Catarinense de Filosofia. Autor de mais de 15
livros, entre contos, romance e poesia, suas obras tem como característica
principal o intertexto fecundo com o texto bíblico. Citamos aqui alguns de seus
contos mais conhecidos e, logicamente, os de nossa preferência: Fulgor da Noite
do livro Encontros de Abismos publicado em 2002, no qual recria magnificamente
a vida de Lázaro após a sua ressurreição: uma verdadeira maldição já que passa
a viver como um morto-vivo que não encontra mais lugar no mundo dos vivos nem

69
Do LP Mata Virgem, negrito nosso.

109
dos mortos; 2) do livro Deuses e Santos como nós, publicado em 2000,
destacamos dois belos contos: O irmão Mais Velho e O Punhal. No primeiro conto
o escritor concede voz ao irmão mais velho da Parábola do Filho Pródigo relatada
nos Evangelhos, para que ele demonstre toda a sua dor e sua revolta pela
predileção do Pai pelo filho mais jovem. No segundo conto, O Punhal, a saga de
Abraão e seu filho Isaac é relida e, novamente, o punhal é levantado contra o
peito do próprio filho, só que neste conto o Pai é apunhalado metaforicamente.

Nesta obra em diálogo constante com a Bíblia não poderia faltar uma
recriação de Judas que está no conto O Acordo no livro ainda inédito Perfume de
Eternidade.

(Des)culpar ou não Judas, eis a questão.! Analisemos a versão de


Queiroz para os fatos. O autor tira a corda do pescoço do deicida/cristicida,
pendurado numa velha árvore da Galiléia e permite que faça sua defesa.

Pelo título do conto já deduzimos que duas pessoas irão se encontrar


para realizarem um acordo de cavalheiros. Queiroz concede a Judas o privilégio
de ser protagonista e relatar tudo do seu ponto de vista. Judas, um pacato
cidadão, é convidado para uma conversa com Deus. Desde o começo do conto,
notamos que Judas é irônico, ao usar a palavra convocação e não convite, afinal
o Deus do Velho Testamento nunca foi humilde o suficiente para convidar, ele
convoca e pronto. O conto não tem floreios, nem circunlóquios, é direto e objetivo
e Judas já no primeiro parágrafo informa que “Lealdade é a virtude que mais
admiro”.

Em seguida algo surpreendente ocorre: Deus ri. Em primeira pessoa


Judas reclama: Não se ria. Em sua obra de referência sobre o riso – História do
Riso e do Escárnio – Georges Minois afirma que o riso não é natural no
cristianismo, uma vez que o gênero do cristianismo por excelência é o drama. O
riso estaria ligado ao ser humano, este fantoche ridículo e imperfeito, mas
principalmente ao Diabo que é o pai do riso. Segundo autor, Deus não ri, Deus se
basta e não gosta do riso de seus filhos, tanto que Ele fica surpreso quando
110
Sara, ao receber a notícia de que terá um filho ri. Segundo o autor, o cômico
parece não fazer parte da literatura bíblica, no entanto, “é claro que há riso na
Bíblia.”70. Deus não gosta que riam Dele, mas há várias passagens bíblicas em
que o riso é atribuído a Deus: “Tu Senhor, ris de todos eles, zombas de todas as
nações”71, “Ele zomba dos zombadores”72 e Jó acusa Deus de rir dos íntegros
“Da desgraça dos homens íntegros Ele escarnece”73. Ou seja, Deus não gosta
que riam Dele, mas o riso é atribuído a Ele. Os maus riem de Deus, Deus
escarnece dos maus e, às vezes, até dos homens íntegros. O riso na Bíblia é o
riso do triunfo dos vencedores sobre os vencidos. Parece que o riso é mais aceito
no Antigo Testamento do que no Novo Testamento, afinal Jesus nos Evangelhos
nunca riu, mesmo sendo humano e podendo rir. O Apóstolo Paulo condena o riso
em Efésios 5:4. O fato é que o Deus de Queiroz ri, ou seja, o riso fenômeno
comumente atribuído ao Demônio, pai da mentira e do riso, aqui é deslocado
para o personagem Deus.

O narrador Judas voltar a reiterar sua ironia e logo após critica os


métodos usados por Deus:

“Se estou com medo? Não. Ainda não aprendi a temer o que não
conheço. Depois, sei – não me pergunte de que modo o sei –
que você tem sido sempre um perfeito cavalheiro em seus tratos.
Você gosta de apostar, mas joga limpo. Para mim é importante o
testemunho que dão de sua honradez.

Não sei se honradez seria o termo exato.

Suas estratégias, às vezes, são ousadas demais para serem


classificadas como honradas. Arrojadas, isto elas são, sem
sombra de dúvidas. Talvez eu devesse dizer intrépidas, até
mesmo atrevidas.”

70
História do Riso e do Escárnio, p. 115.
71
Salmos 59: 8.
72
Provérbios 3:34.
73
Jó 9:23

111
O traidor do Filho do Homem admira a lealdade e Deus ri - que perfeita
entrada para um conto. Judas é irônico: primeiro afirma que Deus joga limpo e
que é honrado, depois faz uma análise mais acurada do passado de Deus e
conclui que as atitudes dele são arrojadas, intrépidas e atrevidas. Desde o início
do conto percebemos que neste encontro, só Judas, tão discreto e silencioso nos
Evangelhos fala. Deus, cujos discursos no Antigo Testamento, foram sempre
acompanhados de muito barulho (trovões, fogo e glória), permanece em silêncio
e tudo que o leitor saberá dele será filtrado pela interpretação de Judas.

À medida em que vai enaltecendo as qualidades de Deus, Judas vai se


descrevendo: por que eu?... Não tenho habilidades assim tão especiais. Mas se
há algo que ele não abre mão é sua lealdade superior a todos os seus defeitos.
No primeiro parágrafo do conto ele já havia mencionado que a atitude que ele
mais admirava era a lealdade. Agora volta a insistir neste ponto:

“Realmente, se há alguma virtude da qual eu me orgulhe de


cultivar é a da lealdade. Assim como algumas pessoas são
feias; outras, bonitas, sou leal.

Como acontece com essas pessoas, não devo isto a mim


mesmo. Nasci assim. Talvez deva agradecer a meus ancestrais.
Nunca me detive muito nesse aspecto das coisas. Sou leal. E,
por decorrência, – não é preciso ser um grande filósofo para
fazer essa dedução – gosto da verdade. Mentira e lealdade
não se combinam.”

A primeira grande virtude de Judas: lealdade e a segunda é não gostar


de mentiras, afinal Deus não intimaria para um encontro e para propor um acordo
uma pessoa em que ele não tivesse absoluta confiança e que não fosse
completamente leal. Judas reconhece que não é tão sagaz quando Deus. Ele
começa a propor seu acordo e o homem leal ouve atentamente; revela que tem
um plano que no futuro atingirá muita gente e que necessita do engajamento e
cooperação irrestrita de todos os empenhados. Judas se impressiona e afirma
que o projeto é um tanto megalomaníaco. Pela terceira vez diante da

112
envergadura do projeto e da necessidade de que o escolhido seja leal, Judas
reafirma esta sua virtude máxima:

“Lealdade! Sim, posso ver que esta seja a qualidade mais


essencial de quem participe de um empreendimento de tal
monta. Como lhe afirmei, sou leal e, uma vez convencido,
entro de corpo inteiro.”

Judas se impressiona quando Deus revela que tem um filho e o projeto


foi desenvolvido especialmente para ele e fica maravilhado ao pensar como Deus
se preocupa, como qualquer pai, pelo futuro político, comercial de seu único filho.
Ele pensa em projeto financeiro, com muita gente, divisão de lucros, herdeiros, e
reconhece que Deus é generoso. Deus ri pela segunda vez ao que Judas
repreende: Não sorria. Judas se sente honrado em participar deste grandioso
projeto e que tenha sido escolhido. Deus fala em contrato já que se trata de um
grande projeto dinâmico e mundial no qual seu filho será o chefe da equipe e
Judas responde:

“Haverá um contrato, diz você. Se achar que é necessário,


firmaremos. Sou homem de uma palavra só. Caso eu me
envolva com esse projeto, entregar-me-ei a ele com todo
empenho. E o cumprirei até o fim. É assim que sou. Toda
minha gente é assim. Mas sobre isto você já se deve ter
informado.”

Judas, honesto e leal cidadão, não tinha planos tão grandes assim para
seu futuro: só queria casar e ter filhos. E por isto resolve adiar seus humildes
planos em função deste megalomaníaco plano mundial que fora convocado a
participar, e sobre o qual, apesar de impressionado, não sabe o que exatamente
é. Deus continua detalhando seu plano e o homem de uma palavra só parece
estar encantado com tudo:

“Como mais que acompanhar? Envolver-me? Fazer-me seu


amigo? Conviver, tomar juntos as refeições, estar sempre por
perto dele? Para quê?

Então, se não for uma equipe coesa, é possível que o projeto


fracasse? Não? Melhor assim! Não acredito em equipes muito
grandes. Entre nós, diz-se que em todo grupo muito grande pode

113
se contar que muitos deixarão poucos trabalharem e sempre
haver alguém que trairá.

Por que você sorriu?”

Pela terceira vez Deus sorri e pela terceira vez Judas constata isto.
Deus ri, Judas se surpreende e o leitor se assusta. Deus detalha tudo o que
Judas deve fazer e este, novamente, reafirma sua lealdade:

“Quando há lealdade entre os membros de uma equipe, é


natural que uns levem um pouco da carga de outros. Chamo a
isto de cooperação leal. Ser leal ao grupo implica em ser leal a
cada um dos que fazem parte dele.

Mas o que espera que eu faça?”

Judas continua insistentemente a reafirmar sua lealdade. Quando Deus


expõe o seu projeto e a função de Judas nele, o homem leal e de uma única
palavra se apavora:

“O quê? Você deve estar louco! Ou, pior ainda, pondo minha
lealdade à prova!

Digamos que eu venha a conviver com esse seu filho. Venha a


admirar sua atuação. Que essa admiração, com o tempo, cresça
e se transforme em amizade profunda, depois, em amor fraterno.
Sou de uma gente leal, pergunte a quem quiser! Como é que,
então, poderei fazer isto que você considera o ponto essencial
de minha colaboração nesse projeto destrambelhado! Se eu
fizer o que você me propõe, como, depois, poderei olhar para
mim mesmo, para meus filhos, para os filhos de meus filhos?
Que nome deixarei por todas as gerações quando souberem
o que eu tenha feito?”

Em todas as cinco páginas do conto Judas usa o adjetivo leal e


lealdade quatorze vezes. O autor usa abundantemente o adjetivo leal justamente
para frisar esta virtude de Judas e deixar isto marcado para o leitor. Destas
quatorze vezes, três vezes Judas afirma sou leal. Deus sorri três vezes. Judas
que já tinha caracterizado Deus como arrojado, intrépido e atrevido e
considerado o projeto digno de um megalomaníaco, agora pensa em qual nome
legará para o futuro e não quer saber nem os detalhes do projeto. Não quer
escutar mais nada: “Nego-me a escutar tais sandices! Ou você está me pondo à
114
prova ou é um megalomaníaco perigoso e deveria estar num manicômio.”
Pela segunda vez ele chama Deus de megalomaníaco e o Deus de Queiroz é um
Deus que prova Judas, que exige dele a maior prova de lealdade de todos os
tempos: trair o filho de Deus, ser cristicida. Judas, assustado dá poucos minutos
para que Deus encerre suas elucubrações enlouquecidas e o conto vai atingido o
clímax de maneira magnífica, a qual só é permitida aos grandes escritores:

“Que terrível! Por que você me incluiu nisto?

Está bem. Não importa o que o resto da humanidade pense de


mim. Buscarei ocasião para contar aos companheiros da equipe
o que você e eu combinamos.

Como? Segredo para sempre?

Pelo menos que eu possa dar a entender que, leal a mim


mesmo, mudei de opinião a respeito de seu filho.

O quê? Nem isto? Por dinheiro?

Então, você quer que eu traia seu filho por dinheiro? Que,
numa noite, já amigos, ceemos juntos? E, depois, na escuridão
de sua angústia, com um beijo no rosto, o entregue para que o
matem?

Pelo bem de muitos? Por todo o sempre?”

Ele não tem saída, acuado responde: “Comprometo-me. Com uma


condição: o que eu fizer depois é decisão minha.”

A subversão do texto primeiro ocorre, já que nos pergaminhos de


Queiroz, temos que desconfiar de tudo, pois nada do que parece é. Neste conto
é Deus quem, sem piedade, predestina Judas e não o predestina a ser o traidor
dos Evangelhos, mas o predestina a ser leal, e pior, a guardar sigilo absoluto.
Judas concorda desde que, a partir da sua prova de lealdade, ela possa exercer
seu livre arbítrio. E o único ato exercido pelo seu livre arbítrio e sobre o qual Deus
não tem poder – é seu suicídio. Seu suicídio neste conto não é uma maldição,
pelo contrário é sua redenção. Se é comum a crença de alguns evangelistas,
como vimos no início deste artigo, de que Satanás tentou Judas para que ele

115
traísse Jesus, aqui neste conto tanto Judas como o próprio Satanás são
completamente absolvidos, já que é Deus quem convoca Judas, quem o
predestina, quem arquiteta tudo. Nogueira em O Diabo no imaginário cristão
afirma que “Satã é o inimigo implacável de Jesus...”74, mas aqui neste conto tudo
se inverte: o grande adversário implacável de Jesus é Deus. Se referindo ao
Deus das Sagradas Escrituras Jack Milles enuncia em Deus - uma Biografia: “é
estranho dizer isso, mas Deus não é nenhum santo”75. Que podemos dizer então
do Deus arquitetado por Queiroz.?

Milles também afirma que, de Deus, não se pode escrever uma


biografia, mas uma teografia, que o autor define como o movimento do discurso
em direção ao silêncio. É isto que Queiroz escreve: um discurso em direção ao
silêncio. Judas fala e Deus só é encontrado no não dito, no silêncio absoluto.
Waldecy Tenório em brilhante análise de Grande Sertão: Veredas76, afirma que o
interlocutor para qual Riobaldo se dirige não é o Diabo e sim Deus, porque
segundo ele, muito mais do que o Diabo é Deus quem é o mestre dos disfarces,
aparece e desaparece, Deus absconditus. Deus está escondido neste conto e, no
entanto, é ele quem é julgado, muito mais do que Judas. É Deus que, em seu
silêncio absoluto, está sendo julgado pelo autor e pelo leitor. Aqui Deus é
construído pela linguagem do silêncio.
Rindo três vezes no conto, Deus demonstra seu orgulho e presunção e
vai além de todos os limites ao propor um acordo com Judas. Harold Bloom em
Jesus e Javé – os nomes divinos afirma que “Javé continua sendo o maior
personagem literário, espiritual e ideológico do Ocidente”77 e que, nem mesmo
Shakespeare, conseguiu criar um personagem cuja personalidade é tão rica em
contradições. Para Bloom decifrar e compreender Javé é impossível. Mas Queiroz
tenta e consegue chegar no limiar do maior de todos os mistérios – Deus e ainda
tenta decifrar o enigma chamado Judas.
74
Carlos Roberto Nogueira. O Diabo no Imaginário cristão, p. 25.
75
Deus - Uma biografia, p. 17.
76
Consultar o artigo A confissão geral de Riobaldo publicado nos Anais do II Simpósio
Internacional sobre Religiões, Religiosidades e Culturas/ II Simpósio de Teopoética, 23 a 26 de
Abril de 2006, em Dourados, UFGD, UFMS.
77
Harold Bloom. Jesus e Javé – os nomes divinos, p. 21

116
Em nota explicativa e introdutória da novela Judas Iscariotes do escritor
russo Leonid Andreiev, Aristides Ávila faz uma síntese daquilo que ele denomina
de estranha e indecifrada figura de Judas:

“Aquele vulto sombrio, que manchou a página mais triste da


história dos homens, percorreu vinte séculos a desafiar quem o
compreendesse, como esfinge pejada de mistérios. Mal
conhecida sua origem, mal definida a sua personalidade, mas
justificada a sua existência, continuou, depois do suicídio, como
antes dele, a suscitar dúvidas e viver de hipóteses.”78

Judas, magnífico personagem bíblico se abre à interpretação dos


ficcionistas como Borges, Andreiev e tantos outros. Queiroz consegue decifrar
finalmente, não a esfinge pejada de mistérios, mas um Judas sendo tentado no
deserto de sua vida. Um Judas só. Um Judas leal. Um Judas primordial. Um Judas
sem o qual não haveria crucifixão. Um Judas sem o qual não haveria cristianismo.
Um Judas, necessário, tal como Jesus. Um Judas sendo sacrificado por Deus, tal
como Jesus. Judas e Jesus, ambos inocentes, ambos heróis, ambos instrumentos
de Deus em seus imperscrutáveis desígnios.
O livro Sentenças de Sexto, uma obra pagã provavelmente do
segundo século traz o seguinte pensamento:

“Depois de Deus, nada é mais livre que um homem sábio.


Tudo o que Deus possui pertence também ao sábio.
Um homem sábio compartilha o reino de Deus.”

Vamos mais longe e afirmamos que homens sábios, livres por vocação,
ousam por meio da literatura questionar o reino de Deus, porque talvez, o único
reino que os sábios conheçam seja o reino das palavras, o reino da poesia. Eis
aqui o propósito da escritura de Julio de Queiroz, nada mais, nada menos.

BIBLIOGRAFIA

78
Judas Iscariotes de Leonid Andreiev, p.7.

117
A BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA REVISTA E ATUALIZADA. São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1999.
ANDREIEV, Leonid. Trad. Henrique Alves. Judas Iscariotes. São Paulo: Clube do Livro,
1984.
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Janeiro; Objetiva, 2006.
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2000.
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SKINER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. Trad. Alessandro Zir. São
Leopoldo: Unisinos, 2002.

118
MANIFESTAÇÕES BÍBLICAS EM
TRÊS CONTOS DE JORGE LUIS
BORGES

ANDRÉA LÚCIA PAIVA PADRÃO

119
MANIFESTAÇÕES BÍBLICAS EM TRÊS CONTOS DE JORGE LUIS
BORGES

Andréa Lúcia Paiva Padrão Ângelo (UFSC)

Os temas dos contos de Borges, afirma Alazraki, inspiram-se em


hipóteses metafísicas acumuladas ao longo de séculos de história da filosofia, e
em sistemas teológicos que sustentam muitas religiões. Descrente da veracidade
de umas e das revelações de outras, Borges despe-as da angústia da verdade
absoluta e transforma-as em matéria prima para suas invenções, devolvendo-lhes
o caráter de recreação estética e de maravilha pelo qual valem e se justificam.
Assim, ao final da leitura de suas narrações, é possível notar a presença de uma
metafísica, de uma teologia que, de alguma maneira, explica o relato e, por sua
vez, confere esse sabor transcendental presente em seus contos, ainda que
Borges negue e zombe de tais transcendentalismos (ALAZRAKI,1983, p.22-3).
Na opinião de críticos literários, como Camurati (1988, p.926), uma das
características mais originais da obra de Borges é esse tênue equilíbrio entre a
reflexão e os limites e as exigências do texto literário. Essa particularidade
essencial de sua obra, o próprio Borges a reconhece no Epílogo de Otras
Inquisiciones, em 1952, quando confessa sua inclinação ‘a estimar las ideas
religiosas o filosóficas por su valor estético y aun por lo que encierran de singular y
de maravilloso’ (BORGES, 1996, p.153, v. II). Para o escritor argentino, ‘todo
hombre culto es un teólogo, y para serlo no es indispensable la fe’ (BORGES,
1996, p. 110, v. II). Assim, é possível verificar que ao longo de toda sua carreira
literária Borges circulou por um grande número de filósofos, acompanhando com
dedicação o debate filosófico. Da mesma forma, dedicou-se à teologia, assunto
presente em inúmeros artigos, ensaios e contos que enfocam temas bíblicos e
religiosos. Desse modo, pode-se afirmar que grande parte da originalidade de
Borges reside na capacidade de fazer literatura com as especulações filosóficas e

120
com as doutrinas teológicas, apresentando-as não como verdades incontestáveis,
mas como invenções ou criações da inquieta imaginação dos homens.
As Sagradas Escrituras aparecem como uma das fontes primeiras de
inspiração borgiana; além de importantes ferramentas estéticas, são textos
carregados de mistério, de esoterismo, de problemas metafísicos. Assim, este
artigo enfoca especificamente três contos de Borges que aludem ao texto bíblico,
uma vez que, como foi dito, a Bíblia exerceu um determinante papel, não somente
como fonte de consulta, mas como elemento de inspiração literária79. Por outro
lado, as narrativas borgianas certamente foram também influenciadas por sua
declarada simpatia pelos judeus. Declara Borges: ‘Yo siempre he hecho todo lo
posible por ser judío. Siempre he buscado antepasados judíos. La familia de mi
madre es Acevedo, y podría ser judía portuguesa’. Afirma, ainda, que ‘todos –
80
quien más y quien menos – somos griegos y judíos’ . Verifica-se, também, que
interessam a Borges não somente as idéias concebidas no judaísmo, mas
também as circunstâncias do homem judeu de carne e osso. Segundo Muñoz
Rengel81, um dos motivos pelos quais Borges admirava os judeus ligava-se ao fato
de que durante a Segunda Guerra Mundial esse povo foi identificado pelo escritor
com o intelecto e a espiritualidade, em oposição à brutalidade absoluta e à
maldade infernal dos nazistas. Ainda de acordo com Rengel, os judeus, para
Borges, são os criadores da cultura, os malditos, os sacrificados, os que têm o
Livro como pátria portátil; porém, são também os que, admirando a Deus, ousam
desafiá-lo. Ao longo de sua carreira literária, encontramos judeus pelos quais
Borges professa veneração, como Kafka, Cansinos-Asséns, Spinoza, ou ainda
Jesus Cristo, objeto especial de sua consideração. Vale lembrar que em 1973,
numa entrevista a María Esther Vázquez, Borges demonstra profunda admiração
por Jesus Cristo, um homem justo e ‘extraordinário’: ‘indudablemente, una de las

1. É importante registrar que, além da Bíblia, Borges também circulou por obras como o Alcorão,
Talmude, Michná, Bhagavad-Gita, além da Cabala.
80
As afirmativas de Borges sobre os judeus estão contidas no texto: MUÑOZ RENGEL, Juan
Jacinto. En qué creía Borges.
Disponível em: http://members.fortunecity.com/mundopoesia2/articulos/enquecreiaborges.htm
Acesso em 28/mar/2006.
81
MUÑOZ RENGEL, op.cit.

121
personas más raras y más admirables con que ha contado el mundo’. Apesar da
admiração por Cristo, de forma irônica mostra-se descrente da religião professada
pelos seus seguidores: ‘pero no sé si los cristianos se parecen a Cristo’ (BORGES
em Vázquez 1977, p. 91-2). Assim, é evidente que o conhecimento do judaísmo e
seu respeito por essa cultura permitiram a Borges criar uma galeria de
personagens judaicas em seus contos.
Nesse artigo, proponho-me a identificar os aspectos bíblicos que Borges
incorpora aos contos “Emma Zunz”, “El muerto” e “El evangelio según Marcos”,
bem como as personagens judaicas destes relatos, com especial destaque para a
figura de Cristo.
O primeiro conto, “Emma Zunz”, trata do assassinato de Aaron
Loewenthal, cometido pela jovem Emma, para vingar a morte do pai. Operária
numa fábrica de tecidos, ela encontra uma carta, proveniente do Brasil, pela qual é
informada da morte do pai, que tinha ingerido por engano uma forte dose de
veronal. Seis anos antes, acusado de desfalque no caixa da fábrica onde
trabalhava e onde Emma é operária, Emanuel Zunz é obrigado a fugir do país e a
mudar de identidade. Em sua última noite junto da filha, jurara inocência e acusara
Loewenthal, antes gerente e depois um dos donos da fábrica, de ter cometido o
desfalque pelo qual fora injustamente incriminado. Certa de que seu pai tinha se
suicidado, a jovem decide vingar sua morte, pelo único modo que julga possível:
passa-se por prostituta e mantém relações sexuais com um marinheiro
desconhecido. Em seguida, procura Loewenthal, mata-o com um revólver que ele
guardava numa gaveta do seu escritório e telefona para a polícia, acusando o
gerente de tê-la violentado. Forja, assim, uma justificativa para o assassinato.
Inquestionavelmente, ela carrega no corpo as marcas dessa violência.
O fato de ser uma jovem de 19 anos, ingênua, solitária, calma (tendo se
declarado, sempre, ‘contra toda violência’) e totalmente inexperiente no
relacionamento com o sexo oposto, certamente confere credibilidade a sua
história, que é parcialmente verdadeira. O ato de violência suportado pelo corpo
de Emma é verdadeiro, mas quem o praticou, entretanto, não foi Loewenthal. No
entanto, a história que conta a todos se impõe como sua verdade porque os

122
sentimentos de ódio, pudor e ultraje são sempre autênticos. A falsidade, ao
contrário, se fundamenta nas circunstâncias. E o narrador aparentemente assume
a defesa de Emma, ao interpretar a narrativa, no final.

La historia era increíble, en efecto, pero se impuso a todos,


porque substancialmente era cierta. Verdadero era el tono de
Emma Zunz, verdadero el pudor, verdadero el odio. Verdadero,
también era el ultraje que había padecido; sólo eran falsas las
circunstancias, la hora y uno o dos nombres propios (BORGES,
1996, p. 568 v.I).

É importante registrar que as múltiplas leituras que podem ser feitas de


“Emma Zunz” tornam-se possíveis porque, como uma característica da obra
ficcional de Borges, o conto deixa lacunas e produz ambigüidades que tornam
imprescindível a participação do leitor na produção do fato estético.
A história se passa entre 1916 e 1922 (datas que correspondem
respectivamente ao desfalque e ao suicídio de Emanuel Zunz); portanto, numa
época sob forte influência da Primeira Guerra Mundial. Para compor sua história,
Borges certamente inspirou-se num grande número de judeus que imigraram para
a América Latina – particularmente a Argentina – e aqui se fixaram.
Emma é um nome de origem germânica, significando ‘força’, mas é,
também, o diminutivo feminino de Emanuel, nome hebreu (Emmanuel), que
significa ‘Deus conosco’ (Mat. 1: 23) – o que justificaria o fato de ela se considerar
uma espécie de instrumento da Justiça de Deus82. Note-se que Emma tece ‘la
intrépida estratagema que permitiría a la Justicia de Dios triunfar de la justicia
humana’ (BORGES, 1996, p. 567, v.I). Uma outra personagem do texto, Aaron,
também possui um nome bíblico judeu que remete ao irmão de Moisés, idólatra de
um bezerro de ouro (Êxodo XXXII, 1-4).
Assim, numa das muitas interpretações a que o texto se abre, trata-se
de um inocente – Emanuel – que, por dinheiro, é traído por Aaron. Para vingá-lo,
Emma, descendente de Emanuel, leva a cabo uma missão de Deus, que exige

82
Todas as citações bíblicas deste trabalho tiveram como fonte: BÍBLIA. Português. Bíblia
Sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia
Britannica, 1980.

123
dela um auto-sacrifício extremo: rebaixar-se ao papel de prostituta e elevar-se
quase à condição anjo vingador e cometer um crime. Aaron Loewenthal é
apresentado como o estereótipo do judeu avaro. Sabe-se que o dote é um dos
costumes mais arraigados entre os judeus e que Loewenthal recebera, no
casamento com uma Gauss, um dote substancial. Para ele, o dinheiro era seu
deus:

Aarón Loewenthal era, para todos, un hombre serio; para sus pocos
íntimos, un avaro. (...) Había llorado con decoro, el año anterior, la
inesperada muerte de su mujer – una Gauss, que le trajo una buena
dote - pero el dinero era su verdadera pasión. Con íntimo bochorno se
sabia menos apto para ganarlo que para conservarlo. (BORGES, 1996,
p. 566, v.I)

Nessa descrição de Loewenthal está presente de forma marcante a


ironia borgiana. O ‘llorar com decoro’, para manter as aparências, não esconde os
reais sentimentos: ‘el dinero era su verdadera pasión’. Prova de sua avareza
também era o seu modo de vida:

Vivía en los altos de la fábrica, solo. Establecido en el


desmantelado arrabal, temía a los ladrones; en el patio de la
fábrica había un gran perro y en el cajón de su escritorio, nadie lo
ignoraba, un revólver (BORGES, 1996, p. 566, v.I).

O fato de Loewenthal viver só remete também à dificuldade de as


culturas judaicas deixarem-se assimilar pelas culturas que as recebem. Além de
avarento e usurário, também vive uma falsa religiosidade: ‘Era muy religioso; creía
tener con el Señor un pacto secreto, que lo eximía de obrar bien, a trueque de
oraciones y devociones’ (BORGES, 1996, p. 566-7, v.I).
Pode-se observar, também, que além dos tópicos religiosos já citados, o
copo de água que Emma pede a Loewenthal, com o objetivo de fazê-lo sair da
sala para que ela pegue o revólver, nos remete ao episódio bíblico em que Pôncio
Pilatos lava as mãos (Mat. XXVII, 24). Tal fato revela a intenção de Emma de se
eximir de culpa pelo ato que vai praticar; ou, ainda, um ato de purificação
(considerando a importância simbólica da água entre os judeus). Também o dia da
semana que Emma escolhe para sua vingança – o sábado – é significativo. O

124
calendário judeu considera-o dia sagrado e de descanso, especialmente dedicado
a Jeová (Êxodo XX, 8 -11 e XXXI, 12). Para tornar mais terrível o seu sacrifício,
ela escolhe este dia sagrado para se prostituir, matar e mentir. Também rasga o
dinheiro com que foi paga pelo marinheiro. ‘Romper dinero es una impiedad, como
tirar el pan; Emma se arrepintió, apenas lo hizo. Un acto de soberbia y en aquel
día...’ (BORGES, 1996, p. 566, v.I).
Não só os nomes dos protagonistas do conto, mas os nomes de todas
as personagens (Emanuel e Emma Zunz, Aaron Loewenthal, Manuel Maier, Elsa
Urstein, Perla Kronfuss, Gauss, Fein ou Fain) apontam para uma ascendência
judaica. Registre-se que a única personagem não judaica é o sueco ou norueguês,
com quem Emma perde sua virgindade, escolhido por ser um estrangeiro (que
nem sequer fala espanhol), marinheiro do barco Nordstjärnan, de Malmlö, que
zarparia essa mesma noite. Assim, “Emma Zunz” configura-se como uma história
com evidentes remissões e intertextos bíblicos. Nela Borges trabalha com os
conceitos de honra e vingança, de falso e verdadeiro, de realidade e ficção, numa
comunidade judaica.
No segundo conto analisado, “El muerto”, lê-se que a personagem
principal, Benjamin Otálora, um ‘compadrito’ de Buenos Aires, mata um homem e
se refugia no Uruguai. Neste país, une-se aos homens de Azevedo Bandeira e
inicia uma nova vida de aventuras, de contrabando e de aprendizagem. Com o
passar do tempo, Otálora começa a cobiçar o posto de seu chefe e, aos poucos,
decide desmoralizá-lo: não obedece às suas ordens, corrige-as ou modifica-as.
Assim, o argentino vai usurpando o lugar de Bandeira: monta o alazão do chefe,
deita com sua mulher e tenta conquistar a amizade de seus homens de confiança.
Para Otálora, ‘la mujer, el apero y el colorado son atributos o adjetivos de un
hombre que él aspira a destruir’ (BORGES, 1996, p. 548, v.I). No entanto, quando
pensa estar perto de alcançar seu objetivo, numa noite de orgia, ao soar as doze
badaladas do relógio, Bandeira levanta-se e como quem se recorda de uma
obrigação, dá uma ordem: então o argentino é executado a sangue frio, por um de
seus homens.

125
Otálora comprende, antes de morir, que desde el principio lo han
traicionado, que ha sido condenado a muerte, que le han
permitido el amor, el mando y el triunfo, porque ya lo daban por
muerto, porque para Bandeira ya estaba muerto. Suaréz, casi con
desdén, hace fuego (BORGES, 1996, p. 611, v.I).

Otálora acredita, até o surpreendente final, que executa seus planos


com independência e autonomia e só quando está prestes a morrer, reconhece
que, na realidade, pertence aos planos de outra pessoa. Suprema ironia de
Borges: é Suaréz, a quem julgava ter conquistado como amigo, que o executa.
É interessante registrar a presença do tema ‘manipulação’, abordado em
diversos contos borgianos. Observe-se que o fato de repetir os mesmos temas em
diversas narrativas, tão comum em Borges, é admitido pelo autor que declara,
com modéstia, no “Prólogo” de El informe de Brodie: ‘Unos pocos argumentos me
han hostigado a lo largo del tiempo; soy decididamente monótono’ (BORGES,
1996, p. 399, v. II). No conto “Abenjacán el Bojarí, muerto en su laberinto”, o
assassino Zaid, conhecedor do adversário, manipula-o, ao antecipar e induzir seu
raciocínio, atraindo-o a uma armadilha. Também em “La muerte y la brújula” o
detetive Lönnrot crê ter descoberto o autor da secreta série de crimes, mas é
Scharlach, o criminoso, que prevê e dirige a mente do detetive. De igual forma, no
conto “Tema del traidor y del héroe”, o conspirador que atraiçoa os companheiros,
descoberto e condenado, tem sua morte cuidadosamente representada para
pensarem que é um herói e não um traidor. Assim também o conto “Las
previsiones de Sangiácomo”, de Borges e Bioy Casares (sob o pseudônimo de
Bustos Domecq), conta a história de um homem que se crê Deus e manipula o
destino de seu enteado a ponto de induzi-lo a cometer suicídio. Nessas narrativas,
pode-se sentir a influência de Chesterton, em The man who was Thursday. É de
Borges (1996, p. 629, v. I) a declaração a respeito de Azevedo Bandeira, no
Epílogo de El Aleph: ‘una tosca divinidad, una versión mulata y cimarrona del
incomparable Sunday de Chesterton.’ Tais contos, afirma Barrenechea, têm em
comum o pensamento borgiano de que se para os cristãos tudo está presente e
simultâneo da mente de Deus, não há gesto, por menor que seja, que não esteja
previsto – o que converte o homem em autômato, um mero joguete nas mãos de

126
outro ser (a divindade). Assim, de certa forma, Scharlach (“La muerte y la brújula”),
Bandeira (“El muerto”), Nolan (“Tema del traidor e del héroe”), Zaid (“Abenjacán el
Bojarí, muerto en su laberinto”) e Commendatore Sangiácomo (“Las previsiones
de Sangiácomo”) constituem repetições, versões ou perversões da divindade
Sunday; e Lönnrot, Otálora, Ryan, Abenjacán e Ricardo reiteram de algum modo o
homem Syme, protagonista da narrativa de Chesterton (BARRENECHEA, 2000,
p.122-3). Para Alazraki, muitos contos de Borges encerram a idéia de que o
universo é um livro de Deus, no qual somos meras palavras ou versículos. Numa
análise de “El muerto”, comenta que o destino de Otálora é uma linha do livro de
Bandeira; Otálora escreve sua história sem suspeitar que seus atos obedecem a
um diagrama já concebido.

Este trágico contraste entre un hombre que se cree dueño y


hacedor de su destino y un texto o plan divino en el cual está ya
escrita su suerte, hace pareja con el problema del universo: el
mundo es impenetrable y, sin embargo, las metafísicas de todos
los tiempos no cesan de proponer esquemas. La ambición
humana de resolver la incógnita del universo es tan vana como el
empeño de Otálora; éste quiere trazar su destino según una
geometría humana, extraña al diseño que Alguien ya ha dibujado
y que él, Otálora, ignora. En ese libro que es el universo, Dios, o
Alguien, ya ha escrito nuestro destino; para nosotros ese libro es
ilegible (ALAZRAKI, 1983, p.71).

Assim, ressalta Alazraki, Otálora é uma mera manifestação da vontade


humana e seus esforços para compreender a vontade divina estão, por
antecedência, condenados ao fracasso; até mesmo essas vãs tentativas estão
previstas. O destino de Otálora é uma linha no livro de Bandeira: ‘Otálora escribe
(las palabras) sin sospechar que sus actos van diseñando un diagrama ya
concebido, un texto prefijado, en el libro de esa divinidad mulata que es Bandeira,
y que en ese libro él, Otálora, (…) ya está muerto’ (ALAZRAKI, 1983, p.71).
Note-se que Benjamin, prenome do protagonista de “El muerto”, é
também o prenome do filho mais novo de Jacó e Raquel (Gen., XXXV, 16-18).
Como filho mais novo, presume-se que seja, também, o mais ingênuo, o mais
inocente. Essas mesmas qualidades podem ser observadas em Benjamin Otálora,
incapaz de decifrar, no momento oportuno, as tramas de Bandeira para destruí-lo.

127
Por outro lado, podemos observar que neste conto de Borges os últimos
acontecimentos da vida do protagonista guardam uma estreita relação com a
narrativa bíblica das últimas horas de Jesus neste mundo. Segundo a Bíblia, em
sua última noite, Jesus celebra com os seus discípulos a última ceia, repartindo o
pão e o vinho como se fossem seu corpo e seu sangue (Luc. XXII 14-20).
Também Otálora participa de uma última refeição com os seus
companheiros, antes de ser executado, uma espécie de ceia de despedida.
Paródia da última ceia de Jesus, os alimentos compartilhados não são os
mesmos: ao invés de vinho, bebe-se álcool pendenciador; o cordeiro recém
carneado substitui o pão:

‘La última escena de la historia corresponde a la agitación de la


última noche de 1894. Esa noche, los hombres del Suspiro,
comen cordero recién carneado y beben un alcohol pendenciero
(…)’ (BORGES, 1996, p. 611 v.I).

Outra aproximação com o texto sagrado é o beijo recebido pouco antes


de morrer. Os Evangelistas relatam que Judas trai Jesus e o indica com um beijo
aos soldados83:

Estando ele ainda falando, eis (que chegou) um tropel de gente; e


aquele que se chamava Judas, um dos doze, vinha à frente deles;
e aproximou-se de Jesus para o beijar. E Jesus disse-lhe: Judas,
com um beijo entregas o Filho do Homem?’ (Luc.,XX, 48)

Também Bandeira, numa ironia, obriga a mulher a beijar Otálora, ao


soar as doze badaladas da meia noite, antes que este seja entregue a Suárez,
para a execução. (Note-se que o numeral doze é emblemático: corresponde às
doze badaladas e, também, ao número de discípulos de Jesus).
Outra analogia que pode ser resgatada refere-se ao fato de Jesus e
Otálora terem sido objetos de zombaria. Os Evangelhos relatam que durante a
entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, o povo o louvava e aclamava, dizendo:
‘Bendito o rei que vem em nome do Senhor, paz no céu e glória nas alturas’ (Luc.

83
Foi encontrado um manuscrito apócrifo que dá outra versão aos fatos e que redime Judas.
Nesse manuscrito, Judas trai a Jesus a pedido do próprio. Também no conto “Três versiones de
Judas” Borges questiona a atitude de ‘traição’ de Judas Iscariote. Na verdade, nesse texto, Judas é
apresentado como o verdadeiro sacrificado, o autêntico mártir, e não Cristo.

128
XIX, 38). E esse mesmo povo, dias depois, escarnece de Jesus, o humilha e
pressiona para que seja crucificado.
Também a Otálora fora permitido aspirar a uma ascensão ao poder e a
suplantar Bandeira como chefe do grupo. Entretanto, no epílogo, Otálora se
apercebe de que tudo não passou de uma farsa criada por Bandeira: ‘Azevedo
Bandeira es diestro en el arte de la intimidación progresiva, en la satánica
maniobra de humillar al interlocutor gradualmente, combinando veras y burlas’
(BORGES, 1996, p.610, v.I).
Assim, pode-se dizer que de uma forma paródica e com algumas
alterações, Borges estabelece uma aproximação do conto “El muerto” com a
história de Cristo, especialmente nos últimos dias antes de ser crucificado.
No último conto a ser analisado, “El evangelio según Marcos”, Borges
narra a viagem de um jovem estudante de Buenos Aires, Baltasar Espinosa, até a
pequena estância de seu primo, “Los Álamos”, para os lados do sul. Durante sua
estada lá, acontece uma forte tempestade que o obriga a permanecer encerrado
na sede da fazenda que compartilha com o capataz e sua família – os Gutre -
pessoas silenciosas e analfabetas. Estando isolados do resto do mundo, o jovem
recorre à leitura para atenuar o mal estar de uma convivência forçada. Em vão,
Espinosa tenta interessá-los por algumas leituras como “La Chacra”, um manual
de veterinária, uma “Historia de los Shorthorn en la Argentina”, ou “Don Segundo
Sombra”. A trivialidade desses relatos não os interessa, uma vez que não os
distinguem das suas próprias rotinas diárias: tratando-se de campo, preferem suas
próprias histórias. Entretanto, ao encontrar uma Bíblia em inglês, para exercitar-se
na tradução, decide ler para eles algumas de suas passagens, traduzindo-as
diretamente ao espanhol. Note-se que a pregação em outra língua encontra
ressonância na passagem bíblica do “Evangelho de São Marcos”: ‘E eis os
milagres que acompanharão os que crerem: expulsarão os demônios em meu
nome, falarão novas línguas (...) (Mar. XVI, 17).
Para a admiração de Espinosa, quando começa a ler o “Evangelho de
São Marcos”, ‘acaso para ver si entendían algo (…), le sorprendió que lo
escucharan con atención y luego con callado interés’. (BORGES, 1996, p.480 v.II).

129
Recordando as aulas de oratória em Ramos Mejía, o estudante de Buenos Aires
passa a ficar de pé para pregar as parábolas. Procede, então, como Cristo, de
forma que sua pregação não se limita a relatar os fatos, mas a dramatizá-los: seu
discurso transforma, aos olhos daquele povo simples, seu relato em ação. De
igual forma, o “Evangelho de São Marcos’, em seu capítulo II,13, relata a pregação
de Cristo: ‘E saiu outra vez para a parte do mar; e vinha a ele toda a gente e ele
os ensinava’. Assim, Baltasar, apesar de ser um homem comum, vai-se
transfigurando no Messias, aos olhos daquela gente simples e iletrada.
Por outro lado, como o texto bíblico de Marcos descreve os milagres de
Cristo, nos capítulos I, II, III,V,VI,VII,VIII e IX, também o conto de Borges descreve
a ‘cura’ que Espinosa faz de uma ovelha que se machucara numa cerca de arame
farpado. ‘Para parar la sangre, quería ponerle una telaraña. Espinosa la curó con
unas pastillas’ (BORGES, 1996, p. 480, v. II). Assim, aos poucos, o relator da vida
e paixão de Cristo reatualiza e se faz protagonista de uma nova versão dessa
mesma história.
Blum analisa neste conto de Borges a presença da tradicional dicotomia
da literatura argentina moderna: civilização e barbárie84. Nos Gutre, descendentes
de europeus e de índios, confluem os dois aspectos dessa polaridade: a
civilização de sangue europeu e a barbárie de sangue indígena: ‘Eran oriundos de
Inverness, habían arribado a este continente, sin duda como peones, a princípios
de siglo diecinueve, y se habían cruzado com indios’ (BORGES, 1996, p. 479,
v.II). Antes da chegada de Baltasar, predominava neles a barbárie: ‘Al cabo de
unas pocas generaciones habían olvidado el inglés; el castellano, cuando
Espinosa los conoció, les daba trabajo’ (BORGES, 1996, p.480, v. II).
Dessa forma, quando Baltasar começa a ler para eles o Evangelho, eles
redescobrem o cristianismo sob a ótica da barbárie. Segundo Blum, os Gutre,
seres mestiços, acolhem fervorosamente o cristianismo, a partir de seu lado índio,
que corresponderia ao paganismo na América85. Por essa razão, eles não se

84
BLUM, Andrea. Mito del Eterno Retorno en seis textos de Borges. Disponível em:
www.2.udec.cl/docliter/magister/blum.pdf .Acesso em 22/mar/2006.
85
Idem.Ibidem.

130
contentam com a reiteração simbólica do sacrifício de Cristo, mas o realizam
literalmente.
Para terem a certeza das conseqüências do ato que vão praticar, o pai
da família Gutre ainda interroga Espinosa sobre a morte de Cristo e se os seus
perseguidores também se salvaram: ‘El día siguiente comenzó como los
anteriores, salvo que el padre habló con Espinoza y le preguntó si Cristo se dejó
matar para salvar a todos los hombres’ (BORGES, 1996, p. 481, v. II). O diálogo
entre o capataz e o visitante de Buenos Aires é uma pista que Borges fornece ao
leitor, preparando-o para o surpreendente final do conto. Assim como Cristo sofre
na via-crúcis, Baltasar Espinosa é também maltratado antes de ser crucificado:
‘Hincados en el piso de piedra le pidieron la bendición. Después lo maldijeron, lo
escupieron y lo empujaron hacia el fondo’ (BORGES, 1996, 482, v. II).
De forma semelhante, escreve São Marcos (XV, 17-19):

‘E o vestem de púrpura, e, tecendo uma coroa de espinhos, lha


põem na cabeça. E começaram a saudá-lo: Deus te salve, rei dos
judeus. E davam-lhe na cabeça com uma cana e cuspiam-lhe no
rosto, e, pondo-se de joelhos, o adoravam’.

Cristo, de acordo com a Bíblia, morre na cruz aos trinta e três anos.
Com a mesma idade, é crucificado Baltasar, que ‘tiene 33 años y le faltaba rendir
una materia para poder graduarse’. (BORGES, 1996, p. 477, v. II).
Sarlo vê uma aproximação do conto de Borges com um relato de
Ezequiel Martínez Estrada, "La inundación": a mesma superfície plana sob as
águas se abre como espaço, onde um choque de culturas desencadeia o mal
entendido trágico. Os peões (gaúchos que se desvincularam de um remoto
passado europeu) escutam a historia evangélica e a traduzem em termos de ato
presente. ‘Aislados por la inundación, en medio de una llanura que el espejo de
aguas reduplica en su falta de referencias, en su pura extensión pre-cultural, los
peones interpretan literalmente la pasión de Cristo y terminan crucificando al
extranjero, un hombre de Buenos Aires, que les ha leído el evangelio no como
mito que puede reactualizarse sino como relato cuya peripecia es, en sí misma,

131
apasionante’. O mal entendido cultural fundamenta-se, pois, nessas duas leituras
diferentes de um mesmo texto e produz o final trágico86.
Observe-se que o protagonista do conto chama-se Baltasar Espinosa e
que Baltasar é também o nome de uma personagem bíblica, antes chamada
Daniel (Dan., IV,19): ‘Então Daniel, por outro nome Baltasar, começou a pensar
consigo mesmo em silêncio...’ Já Espinosa é o nome do filósofo holandês, Baruch
Espinoza, a quem Borges dedica especial admiração, fato largamente
comprovado em toda sua obra literária87. Também é curioso registrar, na
descrição da personagem do conto, uma identificação com o próprio Borges:
ambos tiveram mães religiosas e pais livre pensadores. Observe-se os fragmentos
a seguir. Diz o narrador do conto, a respeito de Baltasar Espinosa:

Su padre librepensador, como todos os señores de su época, lo


había instruido en la Doctrina de Herbert Spencer, pero su madre,
antes de un viaje a Montevideo, le pidió que rezara todas las
noches el Padrenuestro e hiciera la señal de la cruz. (BORGES,
1996, p.477, v. II).

Declara Borges, a respeito de si mesmo:

Mi madre era católica como todas las señoras argentinas, es


decir, sin entender absolutamente nada de religión. Mi padre
era librepensador, como todos los señores argentinos;
también, como Spencer. 88

Assim, os textos de Borges, de alguma forma, refletem esta dupla


influência: aludem a textos sagrados, mas questionam as verdades que eles
professam89. No conto “El Evangelio según Marcos”, Borges faz com que Jesus

86
SARLO, Beatriz. "Introducción a El informe de Brodie". Borges Studies on Line. J. L. Borges
Center for Studies & Documentation.
Disponível em: (http://www.uiowa.edu/borges/bsol/bsbrodie.htm). Acesso em 01/abr./2006
87
Além de estar presente em contos, como “La muerte y la brújula”, Borges dedica ao filósofo dois
sonetos: “Spinoza” (BORGES, 1996, p.308 v.II) e “Baruch Spinoza” (BORGES, 1996, p.151 v.III).
88
Citado por Romero, Oswaldo E. “Dios en la obra de Jorge L. Borges: Su teología y su teodicea”.
In: Villegas e Bertrán. Imágenes bíblicas recurrentes en tres cuentos de Jorge Luis Borges.
Disponível em: http://casadeasterion.homestead.com/v5n20borges.html. Acesso em 28/mar/2006
89
No ensaio “Una vindicación de la Cábala”, Borges deixa claro o seu agnosticismo quando,
ironicamente, expõe suas idéias sobre a Santíssima Trindade: ‘La trinidad, imaginada de golpe, su
concepción de un padre, un hijo y un espectro, articulados en un solo organismo, parece un caso
de teratología intelectual, una deformación que solo el horror de una pesadilla pudo parir. Así lo

132
volte a ser crucificado, uma vez que ocorre uma profunda identificação de Baltasar
com o Filho de Deus. Assim, afirma Blum, esta narrativa evoca a noção do Eterno
Retorno, tema que apaixona Borges e se faz presente em sua obra em contos,
ensaios e poemas90. Registre-se que o Eterno Retorno – repetição cíclica daquilo
que já existiu antes – é um dos recursos utilizados pelo autor para instaurar a
existência de um presente contínuo e infinito. Dele deriva a idéia de que a história
universal é a história de um único homem. Note-se que de forma mais tangencial
“El muerto” também transmite a idéia da universalidade do homem, ou seja, que o
destino de um homem é o destino de todos os homens: Otálora, de certa forma,
repete as últimas horas de Cristo.
Para Rengel91, o reconhecido cepticismo de Borges, que o leva a
falsear os dados, é visto como a melhor ferramenta para criar a ficção total. Esta
particularidade essencial da sua obra é reconhecida pelo próprio Borges na
entrevista a María Esther Vázquez, já referida anteriormente, quando declara:

Yo no tengo ninguna teoría del mundo. En general, como yo he


usado los diversos sistemas metafísicos y teológicos para fines
literarios, los lectores han creído que yo profesaba esos sistemas,
cuando realmente lo único que he hecho ha sido aprovecharlos
para esos fines, nada más. Además, si yo tuviera que definirme,
me definiría como un agnóstico, es decir, una persona que no
cree que el conocimiento sea posible (VÁZQUEZ, 1977, p.107).

Assim, para Borges, essas doutrinas que formam o fundamento de seus


relatos estão muito longe de constituírem-se verdades essenciais. No “Prólogo” a
El informe de Brodie o próprio autor adverte: ‘Mis cuentos, como los de Las mil y
una noches, quieren distraer y conmover y no persuadir’ (BORGES, 1996, p.399
v.II). Entretanto, o fato de ele julgar essas doutrinas como literatura, como
invenções da imaginação que mais valem pelas maravilhas que encerram, diz
Alazraki (1988, p. 30), não invalida o fato de que os sistemas metafísicos que ele
manipula constituem a síntese da inteligência humana no esforço para penetrar
nos mistérios do universo; também as teologias que ele usa como ingredientes

creo, pero trato de reflexionar que todo objeto cuyo fin ignoramos, es provisoriamente monstruoso’
(BORGES, 1996, p. 222 v. I).
90
Op. cit.
91
MUÑOZ RENGEL, op.cit.

133
literários de suas narrativas compõem, até hoje, através de séculos de histórias, a
base teórica de religiões de milhares de crentes no mundo inteiro, inclusive do
Cristianismo.

BIBLIOGRAFIA

ALAZRAKI, Jaime. La prosa narrativa de Jorge Luis Borges. Madrid: Gredos, 1983.
BARRENECHEA, Ana María. La expresión de la irrealidad en la obra de Jorge Luis
Borges y otros ensayos. Buenos Aires: Cifrado, 2000.
BORGES, Jorge Luis. “Abenjacán el Bojarí, muerto en su laberinto”. In: Obras completas
I. El Aleph. Barcelona: Emecé, 1996.
__________________. “Emma Zunz”. In: Obras completas I. El Aleph. Barcelona: Emecé,
1996.
___________________. “La muerte y la brújula”. In: Obras completas I. Ficciones.
Barcelona: Emecé, 1996.
_________________. “La forma de la espada.” In: Obras completas I. Artificios.
Barcelona: Emecé, 1996.
___________________. “Spinoza”. In: Obras completas II. El otro, el mismo. Barcelona:
Emecé, 1996.
___________________. “Baruch Spinoza”. In: Obras completas III. La moneda de hierro.
Barcelona: Emecé, 1996.
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Disponível em: http://casadeasterion.homestead.com/v5n20borges.html. Acesso
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135
O MITO CRISTÃO NO CINEMA

LAÉRCIO TORRES DE GÓES

136
O MITO CRISTÃO NO CINEMA

Laércio Torre de Góes (UFBA)92

1. Jesus Cristo, o mito

O cinema faz uma leitura mitológica de Jesus, utilizando-o como


símbolo de uma idéia, de um pensamento vigente ou de uma postura de vida. A
pessoa de Cristo, dentro do contexto da indústria cinematográfica, recebeu várias
interpretações dependendo do momento histórico, político e social da produção do
filme93. Fala-se de mito aqui não como uma fase primitiva e superada da história
humana, onde o ser humano buscava explicações sobre o mundo utilizando
narrativas fantásticas, mas como uma fonte que serve para se compreender vários
aspectos do mundo em que vivemos. Se, segundo os parâmetros modernos, o
mito cristão é impossível de ser concebido, a sociedade moderna ocidental
transforma-o, reinterpreta-o, distorce-o, esvazia-o. Para Roland Barthes, o mito é
um sistema de comunicação, uma mensagem, um modo de significação, uma
forma, onde a sociedade reinveste dando-lhe sentido contextualizado
historicamente94.
Na verdade, a visão mitológica de Cristo, como meio de expressar uma
idéia teológica, teve início com os seus discípulos. Cada evangelista – Mateus,
Marcos, Lucas e João – lançou, em certa medida, um olhar diferente sobre Jesus.
Mateus escreveu para os judeus, pretendendo mostrar Cristo como o segundo
Moisés, o Messias esperado pelo povo. Marcos, o primeiro a escrever um
evangelho, dentro do contexto romano revela um Cristo Filho de Deus, que
procura esconder o seu messianismo. Lucas redigiu para os gentios, os não-

92
Jornalista formado pela UFBA e teólogo. Especializou-se em Ética pela Escola Superior de
Teologia, em São Leopoldo – RS. Atualmente, é mestrando na Pós-graduação em Comunicação e
Cultura Contemporânea da UFBA. Atua há vários anos no Jornalismo Sindical. É o autor do livro O
Mito Cristão no Cinema.
93
GÓES, Laércio Torres de. O Mito cristão no Cinema. Salvador/Bauru: Edufba/Edusc, 2003.
94
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

137
judeus, ressaltando seu vínculo com a humanidade inteira, mas desde o primeiro
momento de sua existência é o Filho de Deus, o Salvador do mundo,
particularmente atento aos pobres, aos pecadores e aos pagãos. João, com uma
percepção bem pessoal e distinta dos outros, radicaliza a idéia sobre Cristo. Para
ele, a relação entre o Pai e o Filho apresenta-se como de uma igualdade total, não
podendo haver distinção95.O homem Jesus personifica o agir do próprio Deus, o
Verbo encarnado: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”96.
Com o Iluminismo, alguns estudiosos, levando em conta essas distintas
visões dos evangelistas, tenderam a rejeitar historicidade dos evangelhos,
afirmando que Cristo era apenas e tão somente um ser mitológico criado pela
imaginação dos judeus, como os deuses do Olimpo. Esta idéia foi rejeitada com o
tempo e, atualmente, é certo a existência histórica de Cristo, apesar das poucas
evidências fora dos textos bíblicos (Flávio Josefo, Suetônio, Tácito, Plínio). Jesus
é um personagem histórico, embora não possamos ter certeza de certos fatos,
devido à mitologia em que rapidamente se envolveu. Diferentemente de outros
mitos conhecidos, a sua existência se deu num espaço histórico determinado e
não num espaço cósmico, como no Olimpo, mas no Oriente Médio, em pleno
Império Romano.
Ao estudarmos o personagem Jesus, devemos fazer a distinção entre o
Jesus histórico - o Jesus de Nazaré, que nasceu, pregou e morreu crucificado na
Palestina, durante a colonização romana; e entre o Jesus Cristo, o messias, o
Cristo da fé, que nasceu de uma virgem, era Filho de Deus, realizou milagres, foi
crucificado em sacrifício pelos pecados da humanidade, ressuscitou ao terceiro dia
e subiu aos céus. O difícil é determinar quando começar um e termina o outro,
pois estas duas facetas de Jesus são interligadas97.
Certa vez Jesus indagou aos seus discípulos: “O que dizem os homens
quem eu sou?”. Várias foram as respostas. Quando se pretende escrever ou filmar
uma obra sobre Cristo esta ainda é uma pergunta pertinente. Uma pergunta que

95
KÜMMEL, Werner Georg. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 983.
96
BÍBLIA Sheed. Editor responsável Russel P. Shedd. Trad. em português por João Ferreira de
Almeida. São Paulo: Vida Nova, 1997.
97
BULTMANN, Rudolf. Demitologização. São Leopoldo: Sinodal/IEPG, 1999.

138
os cineastas que dirigiram filmes sobre Cristo fizeram a si mesmos e cuja
resposta serviu como guia para execução e concepção do processo de filmagem.

2. O mito cristão no cinema

Desde o início do cinema, foram produzidos vários filmes sobre a vida


de Jesus. Foi a Sociedade Lumière, na França, que iniciou esta tradição em 1897.
O filme repetia em 13 quadros os passos do martírio de Jesus a caminho do
Gólgota. Em 1905, foi concluída uma das mais célebres paixões, dirigida por
Ferdinand Zecca. Em 1927, Cecil B. De Mille deu início ao épico bíblico
hollywoodiano, com O Reis dos Reis. Nos anos 50, Jesus surgiu em várias
produções americanas como coadjuvante: Ben-Hur, O Manto Sagrado, Barrabás e
Cálice Sagrado.
Outras representações conhecidas no Cinema são: O Rei dos Reis
(1961), de Nicholas Ray; O Evangelho Segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo
Pasolini; A Maior História de Todos os Tempos (1965), de George Stevens; Jesus
Cristo Superstar (1973), de Norman Jewison; O Messias (1976), de Roberto
Rossellini; Jesus de Nazaré (1977), de Franco Zeffirelli; A Vida de Brian (1979), de
Terry Jones; A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorcese; Jesus de
Montreal (1989), de Denys Arcand; e A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson.
Entretanto, há no Cinema incontáveis exemplos de filmes, os quais não
tratam diretamente da vida de Cristo, mas nos quais se verificam elementos do
mito cristão. É impossível dimensionar a influência da estrutura narrativa dos
evangelhos na arte ocidental, principalmente, no Cinema. Nos evangelhos surgem
a dicotomia entre o bem e o mal e a sua eterna luta, a recompensa para os bons e
o castigo para os maus e o messianismo judaico-cristão: a personalidade que
transforma, redime, faz justiça, instaura o novo. Em Cristo observa-se um tipo
singular do super-homem, que nos trouxe a idéia do herói justiceiro e poderoso.
Há inúmeros filmes que se utilizam do messianismo em sua estrutura
narrativa, variando muitas vezes apenas na maneira de ser e agir. O super-

139
homem é o messias, que tem que sofrer para redimir e ser redimido98. Rambo,
Zorro, Tarzan, Super-Homem, os cowboys, os detetives, os policiais, são
variações do messias no Cinema. Como exemplos temos alguns filmes célebres,
de grandes diretores, que expressam esta questão: Luzes da Ribalta (1950), de
Charles Chaplin; Os Brutos Também Amam (1952), de George Stevens; e Não
Amarás (1988), Krzysztof Kieslowski.

3. As diferentes leituras de Cristo no Cinema

Nem sempre o que é mostrado em um filme sobre Jesus possui uma


única visão, pessoal, do cineasta. Existem várias outras influências, como da fonte
inspiradora e da produção. Os filmes hollywoodianos dificilmente sairão de uma
visão tradicional de Jesus, pois buscam o lucro fácil e agradar o máximo de
pessoas possíveis e não se arriscarão em produções que entrem em conflito com
determinadas crenças da sociedade. Em diferentes representações de Cristo nas
telas, observamos a visão de mundo que os cineastas pretendem expressar com
sua leitura específica. Uma breve análise de alguns filmes comprova esta
afirmação.

3.1. O Rei dos Reis (1961), de Nicholas Ray

Em O Rei dos Reis, de Nicholas Ray, Cristo é o Cristo dos altares,


inatingível, senhor de si, confiante e plenamente consciente de sua missão. Um
típico filme épico hollywoodiano, tradicional, da década de 60. Representa uma
faceta da sociedade americana, não reacionária, mas tradicional. Sociedade que
tentava manter as suas raízes morais, religiosas e culturais, em meio a várias
transformações que ocorriam naquele momento. Na década de 60, além do
conflito político-econômico entre EUA e URSS, havia o conflito entre os
moralistas-conservadores e a nova ordem moral dos jovens e liberais. Os Estados

98
ECO, Umberto. O Super-homem de Massa. São Paulo: Perspectiva, 1991.

140
Unidos se consolidaram como o protetor do “mundo livre”. O bem-estar
proporcionado pela aceleração econômica e o desenvolvimento técnico-científico
renovou o sentimento do american way life no cidadão médio americano99. A
sociedade americana, em sua maioria, defendia o seu estilo de vida contra tudo
aquilo que considerasse uma ameaça, como o comunismo e a liberação sexual e
moral.

3.2. O Evangelho Segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo

Pasolini

O Cristo do cineasta italiano Pasolini representa um aspecto histórico da


década de 60, quando em várias partes do mundo havia um anseio por liberdade
e igualdade. Pasolini, motivado por sua ideologia marxista, tentou tirar Cristo do
pedestal das igrejas e trazê-lo de volta para o povo que há tanto tempo estava
distante do seu maior mito100. Distância imposta pelas autoridades e instituições
eclesiásticas.
O povo deveria conhecer um Jesus como realmente ele deveria ter sido,
cara de proletário, revolucionário, incisivo, apaixonado pela vida e pelos homens.
Pasolini utiliza o Cristo do Evangelho de Mateus, o messias esperado pelos
judeus, seguindo quase literalmente sua seqüência narrativa, como símbolo de
subversão. Em Mateus, está presente um Jesus mais contestador que denuncia a
hipocrisia e as injustiças dos poderosos de sua época. Um Jesus sofredor, mas
seguro de si, firme em seus propósitos.

3.3. Jesus Cristo Superstar (1973), de Norman Jewison

99
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
100
PASOLINI, Pier Paolo. El Evangelio Segun Mateo. Colección Voz Imagem. Barcelona: Aymá,
1965.

141
O filme reflete todas as transformações que se consolidaram no final da
década de 60 e no início da década de 70. Os jovens, por mais que desejassem
se desvencilhar dos ensinos dos seus pais, dos seus costumes e tradição, não
conseguiam, pois tudo aquilo estava por demais enraizado na sociedade em que
viviam. O que fazer? Se não podiam destruir a tradição, então tinham que
transformá-la. E o Jesus de seus pais se tornou o Jesus da contracultura, da
liberdade, da rebeldia, da paz e do amor. Afinal, no estilo de vida de Cristo, os
jovens encontravam inspiração para isso. Hollywood, percebendo esta
transformação, fez do Messias um hippie, um representante da contracultura, em
quem os jovens daquela época pudessem se identificar.

3.4. A Vida de Brian (1979), de Terry Jones

O filme utiliza o mais querido arsenal mitológico e simbólico do


Ocidente, a vida de Jesus e seus ensinamentos, para criticar a sociedade. O
Monty Python não brinca com a figura de Jesus, trata-a até com respeito, mas
utiliza-se de Brian, um herói contemporâneo seu, para satirizar a religião, a
política, o status quo. Em elipse, Brian é Cristo. Nada restou das utopias
sonhadas. O que fazer após a destruição dos valores, dos costumes, da religião,
da moral que direcionava a sociedade ocidental? O cinismo e a irreverência do
filme são uma constatação de que o sonho de uma sociedade alternativa, onde
haveria igualdade entre os homens, paz, liberdade de pensar e agir, era apenas
ilusão. Restou aos jovens uma visão sarcástica, irônica e crítica do mundo.

3.5. A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorcese

O Cristo de A Última Tentação reflete o homem moderno que busca um


sentido existencial. Não um sentido baseado em coisas efêmeras e materiais,
mais em algo sólido, eterno e prazeroso. Mas, como não podia deixar de ser, esta
busca é cheia de dúvidas, incertezas e sofrimento. O filme representa o retorno à

142
espiritualidade perdida, como forma de encontrar equilíbrio e segurança em um
mundo que se transforma a cada dia de modo assustador.
Em A Última Tentação de Cristo, Scorcese procurou mostrar o seu
Cristo de modo humano e realista, sujeito a dúvidas, questionamentos e
fraquezas. Para isso, baseou-se no romance A Última Tentação, de Nikos
Kazantzakis, grego da Igreja Ortodoxa. O filme escandalizou a visão dogmática
dos crentes do mundo inteiro, causando uma onda de protestos por onde foi
exibido. O objetivo principal é a discussão sobre os sentimentos e os conflitos de
Jesus. É uma meditação sobre a luta espiritual do homem.

3.6. Jesus de Montreal (1989), de Denys Arcand

Em Jesus de Montreal, filme que ganhou o Prêmio Especial do Júri no


Festival de Cannes, Arcand utiliza-se da figura de Cristo para mostrar o quanto a
sociedade moderna, urbana, está distante dos seus ensinamentos, denunciando a
superficialidade, individualismo, egoísmo e falta de solidariedade. O filme faz uma
alegoria sobre a religião e o poder e uma reflexão sobre o cotidiano das pessoas,
utilizando o mito de Cristo.
Verifica-se, além disso, um questionamento explícito não somente da
Igreja, mas do consumismo, do teatro, do cinema, da mídia, da publicidade, da
medicina, da Justiça, da psicologia, da coisificação do homem, enfim, das
instituições que regem a nossa sociedade. Há uma discussão dos mecanismos de
funcionamento da religião, tão distante do que Cristo ensinou.

3.7. A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson

Em A Paixão de Cristo, há um retorno radical à visão tradicional de


Jesus. Gibson utiliza o filme para redimir-se e tentar sensibilizar o público da
necessidade de redenção também. Historicamente, o filme expressa o
fundamentalismo religioso e político atual. O ataque terrorista de 11 de setembro
de 2001 nos Estados Unidos motivou o presidente do país - George W. Bush – a

143
declarar guerra total aos terroristas do mundo todo e, com este pretexto, invadir o
Afeganistão e o Iraque e a apoiar, incondicionalmente, a política belicista de Israel
contra a resistência palestina nos territórios ocupados. Assim como os
fundamentalistas islâmicos, capitaneados por Osama Bin Laden, Bush também
enxerga o mundo de forma maniqueísta: os que são contra e a favor, os maus e
os bons, os fiéis e os infiéis.
Gibson, como homem religioso do seu tempo e formado na indústria
hollywoodiana, sabia que para sensibilizar um público individualista e hedonista
acostumado com a banalização da violência no Cinema e na TV, o sacrifício de
Cristo deveria ser mostrado em toda a sua intensidade e de forma explícita. Em A
Paixão de Cristo, a violência é usada como instrumento de militância e de
combate a uma modernidade laica, hedonista e materialista, assim como fazem
alguns grupos fundamentalistas religiosos. Mas será que Gibson conseguiu
sensibilizar o público moderno com seu discurso religioso utilizando imagens da
violência explícita do sacrifício de Cristo? Difícil afirmar. Vivemos em uma
sociedade acostumada com a banalização da violência na mídia, na qual a
tragédia é espetacularizada. As vítimas transformam-se em objetos descartáveis
de uma ação descontextualizada, substituídas velozmente por outras, e o cinema
é em grande parte responsável por isto.
O Cinema, assim como vários estudos e pesquisas, também não
consegue responder satisfatoriamente quem é Cristo. Se Cristo é ou não o filho de
Deus, é uma dúvida que só os céticos possuem, uma vez que para quem tem fé
isto é indiscutível. Apesar da tentativa de reinterpretação da figura de Jesus, em
todos os filmes analisados, mesmo aqueles que tentaram fugir da visão tradicional
de Cristo, de certa forma a sua essência religiosa permanece. Não importa como é
mostrado. Parece ser impossível fugir da aura mística e divina que lhe o envolve.
O mito cristão pode receber no decorrer da história, dependendo da
situação cultural, política, social e econômica, vários significados, mas sem perder
a força do seu sentido primeiro (teológico). No Cinema, Cristo poderá aparecer
como um hippie, um ator de cinema, um revolucionário marxista, mas a sua
significação teológica sempre estará presente, com menor ou maior intensidade.

144
Provavelmente, o Filho de Deus nunca encontrará uma resposta definitiva que
sintetize sua importância para o Ocidente e para a história da humanidade, por
isto é um mito.

145
VITALIDADE E FINITUDE EM
MACHADO DE ASSIS

DOUGLAS RODRIGUES DA CONCEIÇÃO

146
VITALIDADE E FINITUDE EM MACHADO DE ASSIS
Douglas Rodrigues da Conceição (UMESP)

O cenário acadêmico contemporâneo parece desejar a construção de


debates e a produção do conhecimento a partir de uma demanda interdisciplinar.
A busca pelas inter-relações acentua-se nos dias de hoje, culminado numa quebra
harmônica das fronteiras disciplinares. O cruzamento de saberes, aqui
representado pelo diálogo teologia e literatura, apresenta-se no despontar do
século XXI, como horizonte de uma importante articulação interdisciplinar. A
proposta deste artigo é debater as possíveis confluências entre a teologia e a
literatura. Se for possível uma aproximação entre elas esta aproximação dar-se-á
pela convergência temática, uma vez que os temas da literatura são também os
temas da teologia. Adotaremos como princípio a seguinte questão: a literatura da
transição século XIX–XX configura-se como locus do refluxo do tema “Deus” após
as aparições das chamadas filosofias da suspeita, sobretudo a partir da recepção
do pensamento nietzschiano. Traremos para a discussão três romances
machadianos (Dom Casmurro, Memórias póstumas de Brás Cubas e Memorial de
Aires) como lugar da nova reorientação humana que busca a transcendência na
imanência.

1) A morte de Deus como crítica à teologia cristã

Os problemas advindos do mundo iluminista e suas críticas à religião


parecem submeter a teologia a um processo de segregação e mutilação de seu
pressuposto fundador, Deus: “Cinzas de um incêndio extinto há em toda parte, em
todas as consciências...” (FAORO, 1988, p. 393). A filosofia de Nietzsche
acompanhada de sua crítica ao cristianismo despeja literalmente sobre o
pensamento teológico e metafísico, durante o séc. XIX, uma pá de cal,
“decretando” dessa forma a morte de toda tentativa de explicação acerca da

147
realidade com base no fundamento último de todas as coisas: Deus. O maior eco
do anúncio da morte de Deus em Nietzsche surge na obra A gaia ciência, aforismo
125:

O homem louco – Vós não ouvistes falar daquele homem


desvairado que em plena manhã luminosa acendeu um
candeeiro, correu até a praça e gritou ininterruptamente: “Estou
procurando Deus! Estou procurando Deus!” – Uma vez que lá se
encontravam muitos dos que não acreditavam em Deus, ele
provocou uma grande gargalhada. Será que ele se perdeu? –
dizia um. Ou será que ele está se mantendo escondido? Será
que ele tem medo de nós? Ele foi passear de navio? Passear? –
assim eles gritavam e riam em confusão. O homem desvairado
saltou para o meio deles e atravessou-os como seu olhar. “Para
onde foi Deus?” – ele falou. Gostaria de vos dizer: Nós o
matamos – vós e eu! Nós todos somos assassinos! Mas como
fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos
deu a esponja para apagar o horizonte? O que fizemos ao
arrebentarmos as correntes que prendiam esta terra ao seu sol?
Para onde ela se move agora? Para onde nos movemos? Não
caímos continuamente? E para trás, para os lados, para frente,
para todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos
como que através de um nada infinito? Não nos envolve o sopro
do espaço vazio? Não está mais frio? Não advém sempre
novamente a noite e mais noite? Não precisamos acender
candeeiros pela manhã? Ainda não escutamos nada do barulho
dos coveiros que estão enterrando Deus? Ainda não sentimos o
cheiro da putrefação de Deus? – também os deuses apodrecem!
Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos!
Como nos consolamos, os assassinos entre todos os
assassinos? O mais sagrado e poderoso que o mundo até aqui
possuía sangrou sob nossas facas – quem é capaz de limpar
este sangue de nós? Com que água poderíamos nos purificar?
Que festejos de purificação, que jogos sagrados não
precisaremos inventar? A grandeza desse ato não é grande
demais para nós? Nós mesmos não precisamos nos tornar
deuses para que venhamos a aparecer como apenas dignos
deste ato? Nunca houve ato tão grandioso – quem quer que
nasça depois de nós pertence por causa deste ato a uma história
mais elevada do que toda história até aqui! O homem desvairado
silenciou neste momento e olhou novamente para os seus
ouvintes: também eles se encontravam em silêncio e olhavam
com estranhamento para ele. Finalmente, ele lançou seu
candeeiro ao chão, de modo que este se partiu e a pagou. “Eu
cheguei cedo demais” – disse ele então – “eu ainda não estou
em sintonia com o tempo. Este acontecimento extraordinário
ainda está a caminho e perambulando – ele ainda não penetrou
nos ouvidos dos homens. O raio e a tempestade precisam de
tempo, a luz dos astros precisa de tempo, atos precisam de

148
tempo, mesmo depois de terem sido praticados, para serem
vistos e ouvidos. Este ato está para os homens mais distante do
que o mais distante dos astros: e porém, eles o praticaram!” –
Conta-se ainda que o homem desvairado adentrou no mesmo dia
várias igrejas e entoou aí o seu Requiem aeternam deo.
Acompanhado até a porta e questionado energicamente, ele
retrucava sem parar apenas o seguinte: “O que são ainda afinal
estas igrejas, senão túmulos e mausoléus de Deus?”
(NIETZSCHE, 2001, p. 147-148).

Nasce da experiência da morte de Deus um processo de desvalorização


dos simulacros e como conseqüência a absolutização daquilo que outrora fora
transformado em fábula: mundo verdadeiro. Entretanto, não se pode
simplesmente abandonar o falar sobre Deus. Como deixar de falar de Deus depois
das severas críticas proferidas por Nietzsche?

As reações do pensamento teológico parecem não possuir antídotos ao


efeito do pensamento nietzschiano e partem para as reformulações teológicas
conservadoras a partir do um conceito de Deus cada vez mais vazio e sem
sentido. Somente na segunda metade do século XX percebe-se que a literatura da
transição (séc. XIX-XX) capta com riqueza de detalhes tal problemática. O caráter
(auto)conservador, criador de sentido, a partir do próprio humano, também pode
ser visto como uma exigência do próprio advento antropológico diante de um
esfacelamento das antigas cosmovisões.

A literatura machadiana se encarna neste movimento ao apresentar


ressonâncias deste ambiente através de suas personagens. O romance Dom
Casmurro, do ano de 1899, revela o desmoronamento do conceito Deus diante da
vida humana, uma vez que esta vida a partir de agora se pretende autônoma e
criadora de seu próprio sentido. Este movimento, que admito ser um movimento
circular naquilo que denomino trilogia machadiana, inicia-se com a relação
Homem/Deus no romance Dom Casmurro, passando pela pergunta acerca da
existência e pelo sentido da vida em Brás Cubas, culminando no
desencantamento de Aires no romance que carrega seu nome. Movimento
semelhante ocorre em autores de escrita alemã como Rilke. O livro de horas ao
lado de As histórias do bom Deus parecem ainda pretender recuperar certo
149
discurso acerca de Deus. (Cf. KUSCHEL, 1999, p. 213). Todavia, As elegias de
Duíno apresentam traços de um mundo que segue uma nova reorientação sem
recuperar de uma forma ou de outra o falar sobre Deus. A aproximação entre a
literatura machadiana e autores alemães como representação do que denomino
literatura de transição, perpassa, em princípio, pela referência a uma crise
espiritual generalizada causada pela tentativa de superação da metafísica.
Entretanto, tais literaturas apresentam um efeito reverso ao abrigarem certo
discurso acerca de Deus e por também lhe dar nova face. Teologicamente, nossa
hipótese central, reside na afirmação de que tais literaturas exigem uma nova
configuração de Deus a partir de uma perspectiva da imanência. A reorientação
humana em direção a Deus num plano horizontal (Transcendência Imanente)
exigirá que a experiência aconteça nos limites da vida e da plena imanência.
Portanto, entendemos que o trabalho da teologia é o de explicar a experiência
humana (dentro ou fora do âmbito da Igreja) e por isso somos partidários do
pensamento de Paul Tillich ao defender que na cultura também há teologia. Neste
sentido, compreendemos o porquê de a constituição pastoral Gaudim et spes, do
Concílio Vaticano II, dar uma importante ênfase à literatura e às artes:

A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhe é


própria, de grande importância para a vida da Igreja. Procuram
elas dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e
à experiência de suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-
se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na
história e no universo, dar a conhecer as suas misérias e alegrias
e necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor.
Conseguem assim elevar a vida humana, que exprimem sob
muito diferentes formas, segundo os tempos e lugares. Por
conseguinte, deve trabalhar-se por que os artistas se sintam
compreendidos, na sua atividade, pela Igreja e que gozando
duma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de contatos
com a comunidade cristã. (GAUDIUM ET SPES, 1997, p. 618-
619).

2) A crítica à esfacelada compreensão do conceito de Teologia

O conceito clássico de teologia parece não dar conta das questões


humanas que surgem em conseqüência de um mundo aparentemente colapsado
e sem sentido. Este conceito, historicamente, circunscreveu-se no âmbito

150
eclesiástico. Classicamente, a teologia pode ser entendida como processo de
sistematização dos conteúdos da fé cristã. Fazer teologia cristã equivale a dar
resposta à fé cristã no âmbito de um comprometimento científico. (Cf. BOFF,
1998, p.14). A teologia, portanto, não produz experiências de fé, mas as torna
possíveis. Quanto à literatura ao longo de sua história, destacando sua elevada
importância, a partir de seus diferentes usos e papéis no ocidente, parece-nos que
ela, em maior grau, foi destacada para as esferas da fruição e do devaneio, e não
para um lugar de hermenêutica da existência. (Cf. MAGALHÃES, 2000, p. 49-50).
Ricoeur nos ajuda a compreender esta afirmação ao enunciar que:

Ficção e poesia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser-
dado, mas sob a maneira do poder ser. Sendo assim, a realidade
cotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos
chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o
real. (Cf. RICOEUR, 1988, p. 57).

Entretanto, não é com o conceito de teologia – aquele que aprisiona os


temas da fé dentro da teologia da Igreja – nem com o de literatura – aquele que
destaca os temas literários da dinâmica da vida – que pretenderemos operar. Para
o aclaramento do mistério da condição humana que se revela na literatura –
questão central do diálogo teologia e literatura -, procuraremos operar com uma
noção de teologia que confere mérito à percepção tillichina de revelação. Tillich
defende que o Incondicional está sempre ativo e espera ser redescoberto além
das fronteiras da comunidade eclesial. Em nossa ótica, esta perspectiva teológica,
implica, entre outras coisas, a reformulação de um conceito de teologia que possa
abarcar o que excede, o que transborda; o que a fé cristã e sua seleção de temas
e conceitos rígidos não são capazes de dizer e compreender dentro de um
ambiente específico e historicamente construído. A possível dimensão teológica
emergida diante e dentro do que nomeio ser uma literatura de transição (XIX-XX)
impõe desafios à teologia clássica à medida que seus conceitos, sobretudo, o
conceito de Deus enquanto elemento solucionador de toda aporia/fundamento,
não oferecem explicações do estado daquele ambiente. Esta literatura, portanto,
(poetas e escritores da época) recepciona o reflexo de Deus e temas advindos da

151
fé, imputando-lhes novas exigências conceituais e novo(s) sentido(s), logo um
repensar teológico.

3) Teologia e literatura em Machado de Assis

O que admitimos ser uma nova reorientação humana nasce da literatura


Machadiana a partir de três romances, a saber: Dom Casmurro, Memórias
póstumas de Brás Cubas e Memorial de Aires. O romance de 1899, Dom
Casmurro, na análise conjunta que fazemos das três obras, aponta diretamente
para as novas cosmovisões humanas surgidas da crise espiritual à luz da
recepção do pensamento Nietzschiano. Tentando nos distanciar das diversas
especulações realizadas pela crítica literária machadiana que envolveu o romance
Dom Casmurro em temas novelescos - por exemplo, até hoje se discute a questão
do adultério – afirmamos que a porta de entrada para texto não é outra senão pela
promessa, capítulo XI do romance.

A PROMESSA
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o
esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de
lágrimas nem da causa que fazia verter a minha mãe. A causa
eram provavelmente os projetos eclesiásticos, e a ocasião destes
é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de
dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe
nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus
para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-
lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a
meu pai, nem antes, nem depois de me dar a luz; contava fazê-lo
quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso.
Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era tão devota,
tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação,
confiando a promessa a parentes e familiares. (MACHADO DE
ASSIS, 1985, p. 819-820).

Na promessa temos uma relação revelacional do Deus da fé clássica


com o lugar de efetivação dessa relação, o humano, D. Glória. Ela promete
Bentinho a Igreja se esse nascesse com vida. Ainda na adolescência Bentinho
toma conhecimento da promessa, todavia sua vida neste momento já é regida não
por uma ordem mantenedora de toda causa, mas por um ideário autônomo e

152
dionisíaco que deseja uma vida criativa a partir dela mesma, ou seja, almeja a
efetivação da pura imanência: Capitu. Em Brás Cubas o tema que atravessa a
obra, em nossa ótica, é a apologia à vida. Cubas revela essa condição ao
perceber que a vida tende a finitude. A finitude não revela uma perspectiva niilista
diante da vida, mas a consciência da possibilidade de se (auto)conservar, porque
a personagem sabe que “Estar aqui é magnífico” (RILKE apud MOLTMANN, 1998,
p. 89). A revelação nasce do capítulo II, O emplasto.

O EMPLASTO
(...)
Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento
sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a
nossa melancólica humanidade. (MACHADO DE ASSIS, 1985, p.
515).

No romance de 1908, Memorial de Aires, a revelação da crise


generalizada de que falamos também se dá com a consciência da finitude. Essa
condição que evoca certo niilismo tem como fio condutor a velhice do conselheiro,
que o remete à impossibilidade de explodir em direção à vida frente à angústia
provocada pela incapacidade de amar. Fidélia torna-se irrealizável para o velho
conselheiro.

25 de janeiro

I can give not what men call love.


Assim disse comigo em inglês, mas logo respondi em prosa
nossa a confissão do poeta, como um fecho da minha
composição: eu não posso dar o que os homens chamam amor...
e é pena! (MACHADO DE ASSIS, 1985, p. 1.104).

A centralidade antropológica que se evidencia nas obras aqui tratadas


nos faz considerar o tema da vida a partir da pura imanência uma vez que não há
alternativa para fugir dessa condição. Em Dom Casmurro o processo de libertação
da promessa se dá pela (escobaderie). Escobar tem a idéia da substituição de
Bentinho por um menino qualquer. A quebra da promessa despeja sobre a vida de
Bentinho uma dose insuportável de autonomia que transforma seu mundo em um

153
mundo sem sentido. Entretanto, a ausência de sentido se revela como certa
inabilidade de lidar como as novas cosmovisões. O mundo de Bentinho não é
mais regido por Deus. O Deus da promessa é morto. Aqui percebemos com maior
força uma das três dimensões antropológicas tratadas por Nietzsche no aforismo
125 da obra A gaia Ciência. O homem louco sai pela rua com um candeeiro
procurando Deus: caráter de correção de toda aporia estabelecida no real.
Bentinho sucumbe à força da autonomia por não conseguir suportar a perda de
todo horizonte mantenedor, pois ao descumprir a promessa cometeu o
assassinato do Deus da vida. Entretanto, o que anteriormente considerávamos ser
as conseqüências mais funestas diante da vida de encantos pretendida por
Bentinho como, por exemplo, o não reconhecimento do outro, o estabelecimento
de uma condição niilista no fim da vida, a perda da noção de reconhecimento do
mundo natural por não reconhecer o mar como um ente e por isso sentir ciúmes,
torna-se, portanto, a possibilidade de encontrar um princípio que aponte a
transcendência na imanência. Cubas, Aires e Bentinho podem ser vistos como
exemplos vivos da condição humana que busca a transcendência imanente,
embora se apresentem em trânsito para efetivação dessa condição. Eles sabem
que toda experiência precisa ocorrer nos limites do sensível, não mais além dele.
O amor à vida imanente é o que chamamos de Vitalidade. Na vida só pode haver
lugar para os processos de intensificação da própria vida. Isto se constitui numa
verdadeira Espiritualidade. Vitalidade e Espiritualidade são categorias teológicas
que aproximam o humano do mundo da real existência. Vitalidade é
Espiritualidade e por isso são elementos indissociáveis.

Bibliografia

BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
COSTA, Paulo Lourenço (org.). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São
Paulo: Paulus, 1997.
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Editora Globo, 1988.
KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológicos literários. São
Paulo: Loyola, 1999.
MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura e diálogo. São
Paulo: Paulinas, 2000.

154
MOLTMANN, Jürgen. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
MACHADO de ASSIS, J.M. Obra completa. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

155
DE(U)SMUNDO

FERNANDO FLORIANI PETRY

156
DE(U)SMUNDO

Fernando Floriani Petry (UFSC)

Deus é destino. É Deus quem define, desenha, delineia caminhos,


trajetos e pecados. Deus onipotente, onipresente. Deus é Deus. Essa talvez fosse
a melhor definição de Deus. Deus é quem (se) diz Deus.
Deus é quem diz o que acontecerá, quem brinca com os títeres, a definir a
confusa história humana e divina. Foi Deus quem fez a Máquina do Mundo, as
Máquinas do Mundo. Deus quem define tudo nessa "confusa divisão com que
Deus ordena o mundo."101
Deus é quem reina dos céus, no trono eterno. Quem habita o paraíso dos
reinos. "Mas serviam de trono a Deus umas laranjeiras, um tanque, uma fonte,
como se feridos pelos raios do luar."102 Sendo árvores, tanques, fontes de
imortalizadas chagas de raios lunares Deus, “Tudo é Deus, tudo é Deus! - o mais
são nomes."103 Deus não é tudo:

"cumpria eu uma pena, ia descumprir outra, que os olhos de Deus não


viam tudo, se não, por que não viram na criação dos anjos o desmancho
e a ofensa que Lúcifer iria fazer contra seu criador, como veria este
mundo de homens que ladram como cães com baba que lhes corre dos
104
beiços, de cólera?"

Porém, "Deus é que dirige estas coisas; Ele permite que existam
imperadores e algozes para que haja santos e mártires; Ele eleva os impérios para
que haja lágrimas, castiga para regenerar."105 E, portanto,

101
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 20.
102
Idem, 71.
103
FREIRE, Junqueira. Obras Poéticas, 1943, 50.
104
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 169.
105
LACORDAIRE, apud FREIRE, Junqueira. Obras Poéticas, 1943, 51.

157
“Pobre daquele que crê que Deus provê todas as criaturas, Deus é feito
rei que dá suas mercês aos condes e marqueses, Deus aos bons e
puros. Como poderia Deus ouvir e amar as bestas más, os ladrões, os
matadores e as serpentes de tentação? [...] Porque todos pecamos e
106
mais pecamos numa terra assim distante [...].”

Pobre daquele, pois, “No mosteiro ensinavam e mostravam que Deus


era bom e amava seus filhos, mas por mim ouvia a leitura do livro novo e sabia
que o pai destrói, destruiu toda a geração de Noé e salvou o bêbado, que era puro
de coração. Destruiu então por luxúria?”107
Porém, Deus pode ser lido – isso sem pesar a influência de qualquer
religião, crença, credo – como um discurso polifônico, que reúne em si uma
miscelânea de pensamentos e sentimentos de diversas culturas e credos. Cuppit,
no seu livro Depois de Deus, afirmou que negar Deus, desafiar Deus já é crer em
Deus. Ou seja, o próprio discurso anti-Deus é uma das vozes da polifonia
discursiva aqui proposta.
E se Deus é discurso, Deus é literatura. E eis a justificação da
Teopoética. Antes de aprofundar a análise deste artigo, faz-se algumas
observações sobre esse campo teórico. Teopoética é uma proposta de Karl Josef
Kuschel, para um ramo de estudos acadêmicos centrados no discurso crítico-
literário acerca de Deus. Uma reflexão teológica das representações literárias de
Deus. Apesar de ser um campo de estudos relativamente recente, os conceitos
envolvidos na Teopoética são antigos. Santo Agostinho já falava da Teopoética,
posicionando-se, inclusive, contra a reinterpretação, recriação literária dos textos
bíblicos, e de Deus.
A Teopoética é, portanto, um campo de estudos extremamente vasto,
sendo inclusive fonte de preocupação para diversos teólogos, religiosos, e até
para o Apóstolo Paulo, temente que a imaginação dos homens pudesse interpretar
de várias maneiras Deus.
Voltando a Deus, o que aqui se tenta é um olhar teopoético sobre a obra
Desmundo, de Ana Miranda. No romance, também de caráter polifônico, Deus é

106
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 37.
107
Idem, 40.

158
uma voz predominante na representação da personagem Oribela – personagem
central e narradora do livro:

Em Desmundo, podemos observar ecos dos discursos da Farsa de Inês


Pereira e da Barca do Inferno, no qual o personagem ora configura-se
como Diabo que encaminha as almas para a Barca do Inferno (o enredo
de Desmundo), ora como Parvo – símbolo da pureza (da órfã
desprotegida, a mercê do desmundo), e de cuja linguagem apresenta-se
confusa e por vezes sem nexo como a do Parvo; ora como a adúltera
108
Inês Pereira, mantendo relações com o mouro Ximeno.

Assim, o entrelugar constituído entre as múltiplas representações –


percepções de Oribela – de Deus reserva-Lhe, algumas vezes, o próprio lugar de
Diabo. O papel do Pai é destacado, sempre como representante do dual; ao
mesmo tempo em que Ele é pai, misericordioso; Ele é intolerável, vingativo. Com
Suas setas de fogo, e chamas de enxofre, Deus culpa e castiga os culpados, na
eterna vigília da expiação. E ao mesmo tempo em que Ele em todos e a todos
manda – assim como n’ A Comédia, de Dante Alighieri109 , ou como no poema
Misantropo, de Junqueira Freire110 – Ele rege apenas os bons, puros e dignos.
Muitas vezes o maior questionamento de Oribela é como viver diante de
Deus no mundo, sem trair nem ao mundo, nem a Deus; é como preservar o
equilíbrio na vida entre as exigências da vontade de Deus, e a urgência das
tarefas – e da sobrevivência – no (des)mundo.
Mas no discurso criado por Ana Miranda a representação de Deus,
através de Oribela, “não está isenta de um sujeito ou de uma realidade, mas
situada em um local, e envolta por uma situação, imersas na tríade espaço, tempo
e presença do outro”. 111
Oribela, personagem principal do livro, é diretamente governada por sua
percepção de Deus. O que se pode ou não fazer, o que se pode ou não pensar,

108
ASSIS, Adriana Carolina Hipólito de. Ensaio: Construção do Romance em Desmundo. 7.
109
N’A Comédia, de Dante Alighieri, Deus manda inclusive nos círculos do inferno. Por várias
vezes Virgílio vale-se da palavra divina para garantir a continuidade da viagem através do inferno,
tendo, portanto, Deus poder sobre todos os espíritos, espectros, demônios.
110
“No seio das rochas / debalde me amparo, / que sempre o deparo, / co’um riso dos seus. /
castigo infinito, / tantálico, eterno, / que veio do inferno / por ordem de Deus!” (FREIRE, Junqueira,
Obras Poéticas, 1943, 66).
111
KUSCHEL, Karl-Josef, Os escritores e as escrituras, 1991, 225.

159
tudo é ditado por Deus. Ou melhor, pela concepção de Deus que Oribela guarda
em si. Os freudianos diriam que Deus seria uma figura próxima do “super ego” da
personagem.
A própria maneira como a órfã vê as terras brasílicas são influenciadas
divinamente. O Brasil é ora tido como Éden – pelas maravilhas, belezas –, ora
como o verdadeiro inferno – desterro e perdição –, e ora como apenas o
purgatório – terra de transição para purgação dos pecados.
E nessas fronteiras divinas nas terras brasileiras Oribela ainda traz uma
esperança de escape do Juízo Final, e da reconstrução do mundo:

Um dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do céu em que se


afogaria todo o gênero humano como se matasse uma vaca brava e a
terra ficaria deserta, restando os que tinham vindo ao novo país e quem
112
aqui fosse o mais forte seria o rei do mundo.

As fronteiras edênicas e infernais se confundem em um amassilho de

tamanha complexidade que imbrica inclusive o dual Deus e Diabo. Vivem no

mesmo país ambos. E ambos se prestam um ao serviço do outro. Ambos neste

(des)mundo. Por vezes Oribela se pergunta por que Deus permitiria os seus

pecados. Por vezes questiona onde estará a salvação misericordiosa, o repouso

de tanto pecar e desejar o pecado.

E essas dúvidas de Oribela em relação a Deus podem ser vistas como


uma tentativa de justificação, de legitimação da sua própria existência. Como
poderia Oribela viver em um mundo sem Deus.
E a tentativa de justificação se dá principalmente quando Oribela
descobre o amor, o amor proibido, por algo proibido. “Éramos um, e nosso amor
113
ofendia a paz inútil dos anjos”. O amor por Ximeno, mouro, infiel, desperta
reações adversas em Oribela. Ao mesmo tempo em que a personagem carrega a

112
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 85.
113
SANTOS, Walmor. Nostalgia do amor ausente. In: Além do medo e do pecado, 1996, 121.

160
culpa de entregar-se ao pecado, ainda mais com um impuro; ela questiona o
próprio amor, e questiona Deus, por permiti-la amar o proibido.

Por que permitiria Deus, pela minha maldade, que as luxúrias e as


paixões me arrastassem? Por que não salvava minha alma, pois disse
que somos seus filhos e me livraria das aflições e me dava repouso de
tanto desejar o pecado e um pecador? [...] Se era amor, amor seria coisa
114
do Diabo. [...] O amor não era coisa criada por Deus [...].

Por que permitiria Deus o pecado, se não fosse ele mesmo o pai do
pecado, e o criador deste Desmundo... De(u)smundo...

114
MIRANDA, Ana. Desmundo, 2001, 194

161
O “NOVÍSSIMO EVANGELHO”
DE “SÃO TEODORICO
EVANGELISTA”

ANTONIO AUGUSTO NERY

162
O “NOVÍSSIMO EVANGELHO” DE “SÃO TEODORICO

EVANGELISTA”

Antonio Augusto Nery (PG – USP)115

Eu saberia então uma palavra nova de Cristo, não escrita no


Evangelho; - e só eu teria o direito pontificial de a repetir às
multidões prostradas. A minha autoridade surgia, na Igreja, como
a dum Testamento novíssimo. Eu era uma testemunha inédita da
paixão. Tornava-me S. Teodorico Evangelista!116

Em muitas narrativas, Eça de Queirós expõe seus questionamentos em


relação à religião, seja ela entendida como fenômeno institucional ou
transcendente. A realidade religiosa em suas obras é mostrada sempre com um
tom de crítica, sobretudo em relação à instituição religiosa dominante na época em
que escritor vivia: a Igreja Católica e o seu poder de influência na sociedade
portuguesa de um modo geral117 .
A Relíquia (1887) é a obra de ficção do autor em que a religião e a vida
de Jesus mais se configuram. É especialmente nesta obra que se observa um
trabalho intertextual de Eça com o texto bíblico - principalmente o Evangelho - e
com o desenvolvimento da paródia do mesmo, realizada de forma original e
refletindo uma distância interessante e peculiar da história oficial que a Igreja
difundiu. Isso se torna explícito, especialmente no terceiro capítulo da ficção, uma
espécie de canto paralelo, em que o narrador/protagonista Teodorico Raposo
sonha com a paixão de Cristo e relata cenas da vida de Jesus que destoam, ou
sequer existem, nos relatos dos evangelistas bíblicos.
Logo após a publicação de A relíquia, ainda em folhetins, no jornal
Gazeta de Notícias, Eça enfrentou várias críticas ao colocar dúvidas em relação à

115
Doutorando em Letras (Literatura Portuguesa) na Universidade de São Paulo.
116
QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. Porto: Lello e Irmãos, 1976, p. 116.
117
Cf. NERY, Antonio Augusto. Santidade e humanidade: aspectos da temática religiosa em obras
de Eça de Queirós. Dissertação de Mestrado. UFPR: Curitiba, 2005.

163
divindade de Cristo, contestar toda a tradição histórico/religiosa dos Evangelhos e
demonstrar uma certa banalidade pelo caráter miraculoso de Jesus118, pois as
figuras que na Bíblia são sacralizadas aparecem na narrativa com características
bastante humanas e, não obstante os personagens e episódios coincidirem com
as escrituras, são extremamente contraditórios em relação aos seus homônimos
bíblicos119.
Antes de dedicarmos atenção especificamente ao terceiro capítulo,
principal objetivo deste trabalho, é mister volvermos nossa atenção por um
momento ao “evangelista” que narrará esse interessante relato. A narrativa é
construída em primeira pessoa com um discurso memorialista do
narrador/protagonista Teodorico Raposo ou Raposão, como é mais conhecido.
Teodorico narra, de forma jocosa e irônica, as peripécias realizadas para
conseguir herdar a fortuna da tia rica e beata Dona Patrocínio das Neves, ele
vislumbra como uma das possibilidades de impressionar a tia e assim ser
declarado definitivamente seu herdeiro, a realização de uma viagem à Terra Santa
em busca da relíquia que D. Patrocínio tanto almejava para, segundo ela, “ser o
sossego de seus últimos dias”120.
É precisamente quando está na terra santa que se desenvolve o
extenso capítulo terceiro da obra, o qual consideramos ser o mais importante para
compreendermos a forma como Eça dialoga com os acontecimentos bíblicos,
exegeses laicas e com a figura de Jesus. O narrador/protagonista inusitadamente
sonha com a paixão de Cristo e relata, como ele mesmo denomina, um
“testamento novíssimo”121.
O caráter profanador e dessacralizador que o narrador explicitará neste
trecho da obra figura desde o início de sua história, ainda no primeiro capítulo,
quando ele rememora sua genealogia e infância. Os aspectos eróticos com fins de
118
Cf. MATOS, Alfredo de Campos (org.). Dicionário de Eça de Queiroz. 2ª ed. Lisboa: Caminho,
1993, p. 831.
119
O alarido provocado pela publicação da obra partiu não somente dos meios eclesiásticos, mas
também dos literários. É célebre a esse respeito a correspondência trocada entre Eça e Pinheiro
Chagas logo após A relíquia ter perdido o concurso de melhor livro do ano concedido pela Real
Academia das Ciências no mesmo ano que a obra veio a lume
120
QUEIRÓS, 1976, p. 55.
121
Op. cit. p. 116.

164
desconstrução são recorrentes, pois sua história é recheada de passagens
sacrílegas que revelam a personalidade hipócrita de um beato que adora os
prazeres da carne por um lado e por outro um narrador que está preocupado com
o questionamento de verdades e ideologias que para os seguidores do
cristianismo são incontestáveis.
No caso da crítica ao cristianismo, especificamente, suas
observações passam muito pelo crivo do que estava em voga no século XIX: o
questionamento da dialética entre fruição e abstinência, o duelo entre as coisas
carnais e as celestiais (sexo, alimentação, música, dança e principalmente as
coisas simples da vida como a natureza versus a alma, a salvação, o sacrifício e a
abstinência). Enfim, o questionamento entre a fruição e a salvação.
A forma com que Jesus será mostrado no terceiro capítulo está a todo o
momento circunscrita a esses questionamentos122. De fato, como constatou
BUENO (2000)123 , Eça demonstra inovação ao abordar o anticlericalismo, o
cristianismo e, acrescentamos, a religião. Diferente dos outros colegas da
geração, a releitura que o autor faz do Cristianismo, da figura de Jesus Cristo e
dos temas religiosos, de um modo geral, inaugura um novo ciclo de tratamento
sobre tais questões na literatura portuguesa, que se perpetrará até nossos dias.
A inovação do “evangelho” de S. Teodorico é previamente percebida na
forma com que Jesus vai se revelando ao leitor logo no início do capítulo, não pelo
contato direto com o narrador, mas sim pelo relato de personagens judeus que,
em sua maioria, o odiavam. Os discursos dessas personagens são ora paródia do
pouco que se tem de cada partido na Bíblia, ora acréscimo de textos históricos e
servirão não para caracterizar Jesus diretamente, mas para caracterizá-lo
segundo a visão dos partidos da época, que pouco tem vez no texto tradicional.
Parece que há a intenção de dar a voz àqueles que não tiveram a oportunidade de

122
Esses questionamentos parecem ser uma constante na produção queirosiana todas as vezes
em que o cristianismo ou a figura de Jesus se fazem presentes. Em recente trabalho analisamos
tal hipótese no conto “A morte de Jesus” que fora um dos primeiros escritos de Eça em 1870 e que
postumamente foi coligido nas Prosas bárbaras (Ver: NERY, Antonio Augusto. Eça e “A morte de
Jesus”. In: CD-ROM - Anais do XX Encontro Brasileiros de Professores de Literatura Portuguesa –
ABRAPLIP. Rio de Janeiro: L. Christiano, 2005).
123
BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo nas obras de Eça de Queiroz. Tese de
Doutorado. IEL, UNICAMP: Campinas, 2000, p. 30.

165
falar sobre o assunto da paixão nos evangelhos canônicos. As personagens
comuns saem do anonimato para serem protagonistas da história, perfazendo
assim uma “história às avessas”, ou lembrando o conceito bakhtiniano, uma
carnavalização.
A visão carnavalesca de mundo ou a carnavalização da literatura foi
proposta por BAKHTIN (1996)124 para nomear o fenômeno que acontecia nas
festas populares medievais ilustradas nas obras de Rabelais, estudadas pelo
teórico. A carnavalização representa a fuga do cotidiano, do oficial, do
autoritarismo, do discurso dogmático vigente na sociedade, instaurando assim um
“mundo às avessas”. Segundo Bakhtin uma das raízes do gênero romanesco é a
carnavalesca, que se caracteriza pela valorização da atualidade viva (em que se
abandona o passado de mitos e lendas), da fantasia livre e da multiplicação de
estilo e vozes dentro da narrativa:

(...) renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à unicidade


estilística) da epopéia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica.
Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e
do vulgar, do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros
intercalados: cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados,
125
paródia dos gêneros elevados, citações recriadas em paródia, etc.

O “universo carnavalizado” de Bakhtin constituir-se-ia como um mundo


subvertido em relação a convencionalidade, uma vez que a interpenetração do
jocoso com o sério romperia com os limites da racionalidade, instaurando um
universo absurdo no qual as idéias pré-concebidas deixariam de ter validade. O
teórico vê a paródia como elemento inseparável de todos os gêneros
carnavalizados.

Por várias vezes podemos encontrar nos episódios narrados no


evangelho de São Teodorico esses pressupostos teóricos da carnavalização
elencados por Bakhtin. É nítida a releitura “às avessas” dos Evangelhos, já que o
texto de Eça privilegia o outro lado dos episódios bíblicos. O próprio Teodorico

124
BAKHTIN, Michail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1996.
125
Op. cit, p. 106-109.

166
julga que seu relato terá algo de inusitado, pois será narrado de forma muito
diferente dos Evangelhos tradicionais. No princípio do sonho o narrador faz
constatações nada convencionais sobre Jerusalém e suas cercanias, além de
dialogar e confraternizar com vários judeus que emitem opiniões sempre ruins
sobre Jesus e vai desenhando para o “evangelista” e para o leitor um Cristo novo
e altamente passivo de dúvidas. Quando tem a chance de chegar ao pretório para
acompanhar o julgamento de Cristo, Raposão expõe a sensação que teve ao ver
Jesus pela primeira vez:

Aí, comovido, caminhei para o parapeito: e logo os meus olhos mortais


encontraram lá embaixo – a forma encarnada do meu Deus! Mas, oh rara
surpresa da alma variável, não senti êxtase nem terror! Era como se de
repente me tivessem fugido da memória longos, laboriosos séculos de
História e de religião. Nem pensei que aquele homem seco e moreno
fosse o Remidor da Humanidade... Achei-me inexplicavelmente anterior
126
aos tempos

E enxergando os fatos como um galileu qualquer daquela conjuntura,


Teodorico começa o processo que desenvolverá acerca da pessoa de Jesus
durante o restante da narrativa: tentará mostrar que Jesus não passava de um
simples idealista, um profeta como tantos, que acaba sendo morto por seu ideal.
Na verdade, em A relíquia, Jesus está numa espécie de falso segundo plano, pois,
apesar de não ser a figura central, está ligado a todos os elementos da narrativa,
deixando aparente que para Eça não interessava o Jesus mitificado pela Igreja,
mas sim aquele homem galileu de tempos atrás que vivia como qualquer outro de
seu tempo:

E aquele homem não era Jesus, nem Cristo, nem Messias – mas apenas
um moço de Galiléia, que cheio dum grande sonho, desce da sua verde
aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um céu, e
encontra a uma esquina um Netenim do Templo que o amarra e o traz ao
pretor, numa manhã de audiência, entre um ladrão que roubara a estrada
127
de Siquém e outro que atirara facadas numa rixa em Emath!

126
QUEIRÓS, 1976, p. 118.
127
QUEIRÓS, 1976, p. 119.

167
O fato de a figura de Jesus permanecer durante toda a narrativa do
sonho envolvido num grau de obscuridade, sendo revelado pelos discursos de
outros, ajuda o leitor a inferir as informações contrastantes deste novo evangelho
em comparação com o texto canônico. Enquanto o Evangelho canônico busca a
todo o momento construir uma aura messiânica para Jesus, o “evangelho” de São
Teodorico, ao contrário, busca humanizar o Cristo.

Como bem notou BUENO128 o julgamento de Jesus no Pretório será


desenvolvido com muita semelhança ao que encontramos no texto bíblico em
João, capítulos 18 e 19, com um aprofundamento em alguns pontos particulares,
como o emudecimento de Jesus diante da pergunta de Pilatos “o que é a
verdade?”. Segundo a crítica, por ser o único momento em que Cristo tem a
possibilidade de ter voz ativa na narrativa, o emudecimento seria a revelação de
que ele talvez não soubesse responder “a que veio” demonstrando sua
ingênuidade e perplexidade diante da pergunta. Ao invés de Pilatos se retirar e a
pergunta pairar suspensa, como no Evangelho de João, uma ênfase é dada ao
silêncio de Jesus: “Jesus de Nazaré emudeceu - e no Pretório espalhou-se um
silêncio, como se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de
incerteza...”129.
No texto bíblico o silêncio de Jesus diante de Pilatos é interpretado
como o mistério da inefabilidade de Jesus. Diante dele não haveria palavras para
designar o que é a verdade, pois a verdade, reiterada várias vezes no texto
bíblico, é o próprio Jesus, como ele mesmo reconhece: “Eu sou o caminho, a
130
verdade e a vida” . O peculiar evangelho de Eça apresenta mais um indício da
desconstrução operada no texto bíblico que pode corroborar o desconhecimento
que o povo possuía da mensagem evangélica, todos os “corações cheios de
incerteza”, sem reconhecer a filiação divina de Jesus que os Evangelhos
canônicos pretendem demonstrar. Logo após o julgamento no pretório o que
ocorre na história é a crucificação de Jesus. Como bem sabemos esse momento
configura-se como clímax nos Evangelhos canônicos. No “evangelho” de
128
BUENO, 2000, p. 55.
129
QUEIRÓS, 1976, p. 122.
130
Cf. Jo 14, 6.

168
Teodorico não. O “evangelista” hesita até mesmo em acompanhar o
acontecimento; é convencido, na verdade, pelo curioso doutor Topsius, cientista
alemão que acompanha o narrador em todas as suas peripécias pela Terra Santa
antes durante e depois do sonho:

E pareceu-me que nenhuma vantagem espiritual obteria minha


alma, nenhuma inesperada aquisição enriqueceria o saber de
Topsius – por irmos contemplar do alto de um morro, entre urzes,
Jesus atado a um madeiro e sofrendo: era apenas um tormento
para a nossa sensibilidade! Mas, submisso, segui o meu sapiente
amigo pela escadaria das Águas, que eleva ao largo lajeado de
basalto onde começam as primeiras casas de Acra.131

Teodorico parece estar em comunhão com a indiferença do povo para


com aqueles acontecimentos, embora saiba da importância que possuem. Ele
transparece sempre estar mais preocupado com outros interesses e
necessidades. No momento em que Jesus está sendo crucificado, no Calvário,
quando a atenção do “evangelista” deveria estar voltada totalmente para os
últimos momentos do Cristo, ela é volvida para outras personagens. Prova disso é
o pedido de música que ele e Topsius fazem para um rapsodo no momento exato
em que Cristo está morrendo.
A hipótese lançada por A relíquia, no esteio das exegeses laicas, parece
ser a de que poucos conheciam Jesus, apenas alguns amigos que o
abandonaram no momento da paixão. Para corroborar a pouca importância da
paixão para a população de Jerusalém, é ilustrada a indiferença que o povo
mantinha em relação ao que se realizava no pretório:

Lentamente caminhei pelo pátio (...) Estendidos no chão, junto à


balaustrada do claustro, negros dormitavam com a barriga ao sol. Uma
velha contava moedas de cobre, acocorada diante do seu gigo de frutas.
Em andaimes, postos em uma coluna, havia trabalhadores compondo o
telhado. E crianças, a um canto, jogavam com discos de ferro que tiniam
132
de leve nas lajes .

131
QUEIRÓS, 1976, p. 143.
132
Op. cit, p. 118.

169
E até mesmo no momento da crucificação, quando a população voltava
para casa após um dia normal de trabalho no campo. A ressurreição, clímax da
vida de Jesus nos textos canônicos, é desmistificada em A relíquia. Teodorico
narra que tudo não passou de uma fraude mal sucedida. Jesus teria tomado um
narcótico preparado por seus seguidores e que o faria acordar depois, fazendo
assim que "ressuscitasse", contudo, o plano foi mal sucedido e a morte inevitável
realmente ocorre. Quem revela a história é um dos seguidores de Jesus, cujo
nome não é mencionado:

- Ao anoitecer – segredou o homem por fim, com um murmúrio triste de


água correndo na sombra – voltamos ao túmulo. Levantamos a pedra,
tiramos o corpo. Parecia adormecido, tão belo, como divino, nos panos
que o envolviam... (...) Estendemos Jesus na esteira. Demos-lhe de beber
os cordiais, chamamo-lo, esperamos, oramos... Mas ai! sentíamos, sob
as nossas mãos, arrefecer-lhe o corpo!... Um instante abriu lentamente os
olhos, uma palavra saiu-lhe dos lábios. Era vaga, não a
compreendemos... Parecia que invocava seu pai, e que se queixava de
um abandono... Depois estremeceu: um pouco de sangue apareceu-lhe
ao canto da boca. E, com a cabeça sobre o peito de Nicodemo, o Rabi
133
ficou morto!

A desconstrução é completa: Cristo não é colocado como fundador de


fato do cristianismo, mas de forma herética esta função é remetida a seus
seguidores, e dirigida logo após sua morte a Maria Madalena, que, aliás, é tratada
por Eça como amante de Jesus, consoante Ernest Renan, historiador francês
muito famoso no século XIX por pesquisar a vida de Jesus e que teve
provavelmente sua obra lida por Eça e utilizada em um peculiar diálogo
intertextual134.
Após a crucificação e o relato de suas verdades sobre a ressurreição,
Teodorico acorda do sonho, encerrando-se o terceiro e principal capítulo da
narrativa.
Interessante enfatizar que em A relíquia a morte de Jesus é
explicitamente justificada pela insatisfação que ele provocava junto ao meio
político da época em decorrência de suas denúncias contra a hipocrisia na Judéia
de então. Como menciona BUENO (2000), havia uma intenção declarada de
133
Op. cit., p. 159.
134
Ver: NERY, 2005, p. 26-34.

170
mostrar Jesus contra as instituições e elas contra ele, a idéia de um Jesus
antiinstitucional. Eça, neste sentido, estava no rastro de Ernest Renan que em Vie
de Jésus135, sua principal obra de revisão da história de Jesus, insinua a teoria de
que caso Jesus regressasse à contemporaneidade, a própria instituição religiosa -
A igreja católica – o eliminaria.
Ainda com relação ao anti-institucionalismo, cabe reiterar que a Igreja
Católica, de fato, é um dos principais alvos das críticas de A relíquia, direta ou
indiretamente. Com a analogia do Jesus antiinstitucional inspirado em Renan, fica
patente a intenção de Eça de retratar a Igreja oitocentista como traidora de seu
próprio fundador ao se transformar numa instituição que determina em detalhes a
conduta de seus fiéis, tornando-se intolerante, fanática e instrumento de
repressão.

Sem dúvidas, analisando especificamente a temática religiosa, esta é a


obra ficcional de Eça que contém a crítica mais ferina e que vai muito além do
anticlericalismo e dos indícios dos questionamentos que seriam manifestados nas
obras publicadas até então. Além do mais, no livro já está proposto de uma forma
mais explícita o ideal de transcendência na imanência, o ideal de santidade que,
ao nosso ver, será desenvolvido com mais afinco por Eça nos escritos posteriores,
como analisamos em nossa dissertação de mestrado136. O Jesus de Teodorico
pode ser ilustrado como aquele que terá as maiores características das várias
oscilações que permanecem nos Cristos de Eça.

BIBLIOGRAFIA:

BAKHTIN, Michail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1996.
BÍBLIA SAGRADA – Trad. Centro Bíblico Católico. São Paulo, Ave Maria, 1994.
BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo nas obras de Eça de Queiroz. Tese
de Doutorado. IEL, UNICAMP: Campinas, 2000.
MATOS, Alfredo de Campos (org.). Dicionário de Eça de Queiroz. 2ª ed. Lisboa: Caminho,
1993.

135
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. 5 ed. Porto: Chardron, 1926.
136
NERY, 2005.

171
NERY, Antonio Augusto. Santidade e humanidade: aspectos da temática religiosa em
obras de Eça de Queirós. Dissertação de Mestrado. UFPR: Curitiba, 2005.
_______. Eça e “A morte de Jesus”. In: CD-ROM - Anais do XX Encontro Brasileiros de
Professores de Literatura Portuguesa – ABRAPLIP. Rio de Janeiro: L. Christiano, 2005.
QUEIRÓS, Eça de. A relíquia. Porto: Lello e Irmãos, 1976.
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. 5 ed. Porto: Chardron, 1926.

172
OS CRISTOS DE KAZANTZAKIS
E DE JOSÉ SARAMAGO

RONALDO VENTURA SOUZA

173
OS CRISTOS DE KAZANTZAKIS E DE JOSÉ SARAMAGO

Ronaldo Ventura Souza (USP)

“No princípio era o verbo, e o verbo estava junto de Deus e o verbo era
Deus” (Jo 1,1).137 Eis como o quarto evangelista inicia o seu evangelho. E o verbo
ao qual ele se refere é o próprio Cristo encarnado que veio ao mundo para,
sacrificando-se na cruz como o cordeiro imaculado de Deus, redimir os pecados
da humanidade e dar aos homens a possibilidade de salvação de suas almas,
libertando-os da mancha do pecado original, cometido por Adão e Eva, que
segundo o mito bíblico são o primeiro homem e a primeira mulher138, expulsos do
Paraíso por desrespeitarem a ordem de Deus que os proibia de comerem o fruto
da árvore do conhecimento do bem e do mal. Por conta disso, até o século XVIII
era inimaginável que a palavra dos evangelhos bíblicos pudesse ser contestada,
pois traziam consigo o selo da aprovação divina; tinham a garantia celeste de que
eram verdadeiros. “De fato, para muitos, os evangelistas eram porta-vozes de
Deus; seus evangelhos eram um ditado de Deus” (VERMES, 1996, p. 26). De
modo que não havia alguém com coragem suficiente para questionar o conteúdo
desses textos.
No entanto, a partir do Iluminismo a autoridade absoluta dos textos
bíblicos começa a ruir. O selo de aprovação divina já não se mostra suficiente
para atestar a veracidade dos evangelhos. E, vistos sem a aura celeste, eles ficam
expostos a diversas indagações sobre as lacunas e enigmas neles encontrados,
sem contar, é claro, com as contradições existentes entre cada um dos relatos
sobre vida de Cristo. Os evangelhos que fazem parte do cânone cristão são
quatro, a saber, Mateus, Marcos, Lucas e João. E cada um deles apresenta Jesus
a sua maneira. Segundo Kermode, embora os evangelhos versem basicamente
sobre o mesmo assunto e de várias maneiras mantenham relações entre si,

137
Todas as citações bíblicas neste ensaio serão retiradas de A Bíblia de Jerusalém.
138
Segundo Frye, “a frase de João, ‘No começo era o logos’, é um comentário do Novo
Testamento sobre a abertura do Gênesis que identifica a palavra criativa original com Cristo”
(FRYE, 2004, p. 42).

174
diferem notavelmente e as diferenças surgem, em parte, porque cada um dos
evangelistas “viu o material básico de modo diferente, trabalhou-o de modo
diferente e imprimiu nele um método literário e um talento específicos.”
(KERMODE, 1997, p. 417).
A partir disso podemos nos perguntar, então, qual dessas narrativas
está realmente correta? Ou melhor, o que há de verdadeiro em tais relatos a
respeito do messias cristão? São perguntas difíceis e que parecem não ter uma
resposta precisa. O que não falta, nos últimos dois séculos, são escritores que se
debrucem sobre a história mais conhecida da cultura ocidental com o intuito de
relê-la com outros olhos que não os da pura fé religiosa. Trata-se de uma releitura
heterodoxa do mito bíblico que geralmente procura apresentar um Cristo com
feições mais humanas, seja por meio de uma tentativa geralmente frustrada de
recuperá-lo historicamente139, seja por meio da literatura ou do cinema.
É evidente que os evangelhos bíblicos são a principal fonte para quem
desejar escrever sobre a personagem central do mito cristão. Em um momento do
primeiro século da era cristã, alguém decidiu que era preciso reunir em um texto
todos os relatos sobre a vida de Jesus. E assim surgiu o evangelho de Marcos,
que, segundo alguns críticos140, foi o primeiro evangelho a ser escrito por cerca de
70 d.C. A ele se seguiram Lucas e Mateus, por entre 80 e 90. O evangelho de
João foi escrito próximo do ano 100 d.C.141
O percurso do Jesus bíblico é sempre um dado a priori nessas
narrativas. Para os evangelistas, sua presença na terra está intimamente ligada ao
cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Ele veio ao mundo como filho
de Deus para que, através de seu sacrifício, os pecados da humanidade fossem
perdoados. Desse modo, tudo que com ele ocorra deve se alinhar nessa

139
Crossan, em seu prólogo a O Jesus Histórico, publicado em 1991, alude às dificuldades de se
debruçar sobre o tema do Jesus histórico. Há uma variedade de interpretações feitas sobre a figura
de Jesus, que despertam a desconfiança sobre esse tipo de estudo no mundo acadêmico. “Essa
impressionante diversidade, no entanto, é considerada um motivo de vergonha no mundo
acadêmico. É impossível evitar a desconfiança de que a pesquisa do Jesus histórico é um campo
em que se pode fazer teologia e chamá-la de história, ou fazer autobiografia e chamá-la de
biografia sem correr grandes riscos”. (CROSSAN, 1994, p. 27).
140
Para David Flusser, Lucas foi escrito antes de Marcos que, por sua vez, influenciou a escrita do
Evangelho de Mateus (Cf. FLUSSER, 2002, p. 4).
141
cf. GABEL & WHEELER, 1993, pp. 170-1.

175
concepção142. Assim o seu nascimento, narrado por Mateus e Lucas, deve ser
apropriado ao de uma criança divina. A infância e a adolescência de Jesus (exceto
pelo episódio dos doze anos no templo, em Lucas) não aparece nos evangelhos
canônicos talvez porque não tenham a menor importância para o que pretendiam
seus autores, cujo objetivo principal era apresentar aos seus leitores a carreira de
Jesus no cumprimento das promessas divinas. Assim, os evangelhos canônicos
tratam dos feitos e ditos de Jesus e do que é considerado o principal evento do
Cristianismo: sua morte e a ressurreição.
Essa variedade de abordagens em relação à mesma história nos leva a
uma tradição de múltiplos relatos sobre a vida de Cristo, que não estão restritos
apenas aos evangelhos bíblicos, pois também existem os chamados apócrifos,
aqueles que foram recusados quando a Igreja formou seu cânone. Segundo
Fokkema, o fato de haver diversos relatos, muitas vezes contraditórios entre si,
sobre a vida de Jesus, faz-nos deduzir que nenhum deles pode ser
completamente verídico. Tal motivo se apresenta como um convite para que
vários escritores se propusessem, a partir do Romantismo, a reescrever essas
histórias de Cristo, pois, segundo o autor, não há nenhum texto oficial que se refira
à vida de Jesus, mas quatro evangelhos, cada um deles lançando uma luz
particular a respeito daquilo que considera verdade histórica. “If truth can be
conveyed in at least four different ways, it means that none of these recordings is
completely satisfactory” (FOKKEMA, 1999, p. 395). Desse modo, preencher as
lacunas e responder as contradições dos textos bíblicos é talvez o motivo
propulsor de vários escritores que nos últimos duzentos anos lançaram um novo
olhar sobre a história mais conhecida do Ocidente.
Podemos citar, por exemplo, Ernest Renan, que busca apresentar, em A
vida de Jesus, uma nova versão da história narrada nos evangelhos, em que
apresenta Jesus como um judeu com idéias muito revolucionárias para época na
qual viveu. O esforço de Renan consiste em dar uma explicação racional ao que é

142
Segundo Gabel &Wheeler, “o fracasso [terreno] de Jesus foi na verdade seu sucesso. Ele foi
rejeitado, por ser mal compreendido. Como se esperava que ele fosse rejeitado, era natural
esperar que ele fosse mal compreendido; por conseguinte, tudo em sua carreira deveria alinhar-se
com essa concepção” (GABEL & WHEELER, 1993, p. 176).

176
relatado pelos textos bíblicos. Para isso ele supõe como poderia ter vivido o
homem Jesus no mundo ao qual pertenceu, tentando separar o que é lenda do
que considera que de fato pode ter acontecido. A ficção também entra em campo
na tentativa de dar uma nova versão à personagem central dos evangelhos
bíblicos. São exemplos disso, no século XIX, os romances Memórias de Judas, de
Ferdinando Petrucelli della Gattina, e A Relíquia, de Eça de Queiroz. Em ambos
Cristo aparece completamente humanizado e a história da ressurreição não passa
de um engodo.
É dentro desse contexto que se inserem A última tentação de Cristo, de
Nikos Kazantzakis, e O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago,
romances que pretendemos discutir nesse artigo. Neles, Jesus é apresentado de
forma diversa da encontrada nos evangelhos bíblicos. Através da paródia e da
ironia, Kazantzakis e Saramago nos mostram um Cristo mais humano, em
detrimento do caráter divino que marca a personagem dos escritos bíblicos. Nosso
interesse é analisar comparativamente a personagem Jesus nesses dois
romances, procurando caracterizar as semelhanças e diferenças entre essas duas
versões de Cristo, não perdendo de vista a relação que elas mantém com a
personagem central dos evangelhos bíblicos.
No romance de Kazantzakis, A última tentação de Cristo é, em última
instância, a narrativa de um sonho que Jesus tem poucos minutos antes de
morrer. Nesse sonho, ele experimenta sensações que não pôde ter em vida por
ter sido obrigado por Deus a cumprir seu papel como messias. Na última tentação,
o Jesus de Kazantzakis vê seu amor por Maria Madalena finalmente se consumar
fisicamente. Ela morre e Cristo, então, une-se as irmãs de Lázaro, Maria e Marta,
tendo filhos com elas, realizando assim um desejo que o persegue durante toda a
narrativa: casar como um homem comum e constituir uma família. O sonho por si
só já destoa das versões bíblicas que apresentam um Cristo acima das paixões
humanas, mais preocupado com a realização do reino dos céus do que com os
prazeres terrenos. No entanto, a tendência de humanizar essa personagem não
se limita apenas ao sonho na cruz, mas perpassa toda a narrativa de A última
tentação de Cristo. Desde o início a figura central desse romance oscila entre o

177
desejo de viver como um homem e a obrigação de cumprir o seu papel como o
messias. O Jesus desse romance é uma figura frágil, sempre dominada pelo terror
que Deus lhe incute. Ele tem dúvidas, medo e sente até mesmo ódio por ter que
fazer algo que não deseja. Ao termo da narrativa tudo acontece como deveria ser:
Cristo é crucificado. Em outras palavras, o romance de Kazantzakis nos apresenta
um ser distinto da versão original dada pelos evangelhos, pois apresenta Cristo
com toda a força de sua natureza humana em detrimento da divina, que surge
como uma imposição de seu pai celestial. Assim, o filho de Maria desce o pedestal
e é tentado não exatamente por um anjo caído, mas pela própria natureza da vida
dos homens, pelos seus próprios desejos carnais.
Essa luta inglória do Jesus de Kazantzakis contra o seu destino é o
motivo que rege a narrativa de A última tentação de Cristo. Seu desejo de viver
como um homem surge como o motivo da culpa que o faz sofrer, pois ele se
considera responsável pelo destino dos outros, um fardo enorme imposto por
Deus e que ele não quer para si. O pedido de Jesus, na oração no Monte das
Oliveiras, “Pai, se queres, afasta de mim este cálice!” (Lc 22, 42), se torna no
romance uma luta indigesta da personagem contra o seu destino, ao qual ela
acabará se rendendo por não possuir força para ir contra a vontade de Deus. O
mundo dos homens é o que este herói almeja, numa inversão patente do que mais
importava para Cristo bíblico, que anunciava o reino dos céus:

- É verdade, tenho medo... Você quer que eu me levante e fale,


certo? Mas o que eu posso dizer? Como vou poder dizer alguma
coisa? Não, não posso, já disse. Sou analfabeto!... O que você
disse?... O reino dos céus?... Não ligo nem um pouco para o reino
dos céus. Gosto da terra. Quero me casar, já disse. Quero
Madalena, mesmo que ela seja uma prostituta. É por minha culpa
que ela é assim. Minha culpa, e eu vou salvá-la. A ela! Não a terra!
Nem ao reino deste mundo. É a Madalena que desejo salvar. Para
mim, isso basta... E fale mais baixo, não consigo entender o que diz
(KAZANTZAKIS, 1988, p. 33).

O trecho acima revela um diálogo entre Jesus e Deus, ou mais


precisamente um monólogo, pois quase nunca ouvimos a voz divina neste
romance, embora a presença de Deus pareça sensível, principalmente, quando é
preciso garantir que Cristo seja crucificado. As diferenças em relação ao texto
178
bíblico são evidentes. A personagem mostra revolta perante a sua situação e
medo do que lhe pode acontecer. O “Contudo não a minha vontade, mas a tua
vontade seja feita!” (Lc 22, 42), pronunciado pelo Cristo bíblico em total
conformidade com a vontade do Pai celestial, pode ser caracterizado como um
pesadelo para o Jesus de Kazantzakis. Este oscila entre o ser egoísta, cujo
principal objetivo é se casar com Maria Madalena e estabelecer uma vida simples
como um homem comum e o sentimento de culpa por não desejar cumprir o seu
destino. Ele não é mais aquele que diz simplesmente “a tua vontade seja feita”,
mas alguém que questiona abertamente tal determinação. Seu principal interesse
é a terra e a vida dos homens, não algo que está além dessa vida, ponto em que
guarda algumas semelhanças com o Jesus saramaguiano, cujo principal objetivo
ao tentar burlar os planos de Deus é permitir que os homens vivam suas vidas
sem penitenciarem-se por causa de uma promessa de vida após a morte, mote da
religião cristã. A personagem de Saramago, quando confirma a sua filiação divina,
mostra total preferência pela vida humana: “Sou um homem, vivo, como, durmo,
amo como um homem e como homem morrerei” (SARAMAGO, 2001, p. 365).
Como vimos acima, o papel de Maria Madalena é de suma importância
na narrativa do romance de Kazantzakis, uma vez que Jesus é perdidamente
apaixonado por ela. Essa paixão é, certamente, o maior obstáculo para que ele
siga o seu papel como filho de Deus. Ora e outra, Cristo se vê consumido pelos
desejos sexuais que tem por Maria. A relação entre os dois remonta à infância de
ambos:

Madalena saltou de súbito de dentro da multidão e pregou os


olhos no filho de Maria, que ainda vinha subindo. Seu coração
enchia-se de tristeza quando ela recordava os momentos em que,
ainda pequenos, brincavam juntos: ele com três, ela com quatro
anos. Que alegria profunda e inefável haviam experimentado
então! Que doçura indescritível! Pela primeira vez, os dois haviam
percebido o fato ao mesmo tempo nítido e obscuro de um ser
homem e o outro, mulher. Dois corpos que pareciam outrora
ter sido um, e que algum Deus cruel separara. Agora as partes
encontravam-se novamente e procuravam juntar-se, reunir-se.
Quanto mais cresciam, mais claro percebiam o milagre de um ser
homem e o outro, mulher. E olhavam-se com um pavor mútuo,
como dois animais selvagens esperando que a fome aumentasse
e que chegasse a hora em que fluiriam um para dentro do outro,

179
unindo o que Deus separara. Foi então que, numa noite festiva
em Caná, quando o amado lhe estendeu a mão para lhe dar a
rosa e firmar o noivado, o Deus impiedoso descera sobre eles,
separando-os mais uma vez. E desde então... (KAZANTZAKIS,
1998, p. 46, negrito nosso)

Maria é prima de Jesus. E, no decorrer do romance, a lembrança mais


recorrente para estas duas personagens é o episódio da infância citado no trecho
acima. Desde então os dois se desejam mutuamente, porém, o Deus impiedoso
trata de os separar. Tal intervenção divina aparece como uma inversão das
palavras ditas no evangelho “o que Deus uniu o homem não separe” (Mc 10, 9).
No entanto, no romance homem e mulher seguem o caminho natural que seria o
da união entre eles, mas Deus trata de separá-los mediante seus próprios
interesses. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, Maria de
Magdala também exerce uma importante influência sobre Jesus, porém, isso se
procede de forma diferente do que ocorre no romance do escritor grego. No
romance saramaguiano, essa personagem torna-se companheira e amante de
Jesus e, mais do que isso, ela surge, em momentos cruciais da narrativa, como a
voz da sabedoria, que orienta e conforta Jesus.143
O Cristo de Kazantzakis sabe de antemão que o seu destino é morrer
na cruz como o messias. Sua vida inteira flui neste sentido, mas como homem isto
resulta num sofrimento antecipado, numa angústia talvez semelhante à de um
homem condenado à morte, a espera do momento de sua execução. Tal é o
ambiente em que se desenvolve a personagem central do romance. O Cristo
bíblico também tem conhecimento de seu destino, no entanto, ele se comporta
como um ser divino bem acima das imperfeições humanas e nisto reside a sua
força, o motivo pelo qual ele vai ao matadouro sem sentir medo, pois tudo, no
percurso de sua vida terrena, encaminha-se perfeitamente no sentido do
cumprimento das profecias e nem lhe passa pela cabeça questionar seu destino.
Por outro lado, a personagem do romance não deseja o sacrifício, para o qual
caminha forçado pela vontade soberana de um Deus cruel. O Jesus de

143
Para Salma Ferraz, a Maria de Magdala de Saramago é muito mais que a iniciadora sexual de
Jesus, “ela é uma grande profetisa, datada de uma sabedoria peculiar, sacerdotisa e oráculo
inspirado que o orienta nos momentos mais difíceis de sua missão (...)” (FERRAZ, 1998, p. 90)

180
Kazantzakis é rebaixado ao nível dos demais homens e seu desejo é viver como
eles: eis o princípio da humanização de Cristo realizada em A última tentação de
Cristo. Não se nega nele o a priori de seu destino e nem se exclui sua origem
divina, no entanto se intensifica sua natureza humana. A humanidade para o
Jesus bíblico significa apenas o verbo encarnado: “E o verbo se fez carne, e
habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como
Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14). Para o Jesus do romance,
humanizar-se vai além de ser um espírito encarnado, pois não se limita a dores
físicas, mas a dores da alma, aos sentimentos e conflitos puramente humanos
como o amor, o ódio, o medo, que parecem estranho para o Cristo das escrituras
sagradas. Desse modo, no romance de Kazantzakis o termo “tentação” é levado
até as últimas conseqüências e em muitas vezes o tentado só não sucumbe
prazerosamente, porque sua consciência de Deus, que lhe impõe seu destino,
impede que isso aconteça. Em certo momento, estando Cristo no deserto, a
serpente lhe oferece Madalena, um de seus mais íntimos desejos e no momento
em que ele está prestes a aceitar, sente, ou imagina, a presença de Deus a dizer-
lhe que não faça isso:

No instante em que ia abria a boca para concordar, sentiu que


alguém acima dele o olhava. Apavorado, ergueu a cabeça e viu
dois olhos no ar, apenas dois olhos, negros como a noite e duas
sobrancelhas brancas que se moviam para indicar-lhe que dissesse
não. (KAZANTZAKIS, 1988, p. 264).

Desse modo, estamos diante de um processo de dessacralização do


Cristo bíblico, que é rebaixado aos parâmetros humanos, e se ele não é
totalmente desdivinizado, ganha outro tanto de humanidade. Assim, parece-nos
que o modo como Perrone-Moisés define o Jesus saramaguiano se encaixa
perfeitamente no que diz respeito à personagem central deste romance de
Kazantzakis, pois, assim como o herói do romance de Saramago ele “não é nem
totalmente divino, nem totalmente humano: é uma personagem de ficção”
(PERRONE-MOISÉS, 1999, p. 120).
Em suma, o Jesus de Kazantzakis luta, embora sem nenhum sucesso,
para afirmar sua natureza humana perante Deus. Ele até mesmo se insurge contra

181
o seu Senhor, construindo cruzes para sacrificar seus profetas, não poderia haver
pecado maior é o que pensa Jesus. No entanto, o Cristo desse romance se
conforma e caminha em direção ao seu destino, mesmo não sabendo ao certo o
que isso desencadeará. No entanto, sua humanidade é intensificada no romance,
através de sentimentos como amor, ódio, medo e dúvida.

No Evangelho de João, Jesus se volta a Felipe e pergunta onde arrumar


pão para a multidão que o acompanha. Cristo já sabe o que deve fazer, sua
indagação serve apenas para por à prova a fé do discípulo. Trata-se do milagre da
multiplicação dos pães, relatado nos quatro evangelhos bíblicos, que podem
divergir um do outro quanto a alguns detalhes de como o milagre aconteceu, mas
não neste: Jesus estava totalmente no controle da situação, ele sabia exatamente
o que podia ser feito, ou melhor, o que podia fazer. Ocorre exatamente o contrário,
em O Evangelho segundo Jesus Cristo144, uma vez que nele são os discípulos que
tem que mostrar o caminho ao filho de Maria que não tem idéia de como proceder
diante da situação:

Jesus nem por sombras imaginava que pudesse valer a tanta


gente num tal aperto, mas Tiago e João, com a segurança que
caracteriza as testemunhas presenciais, foram para ele e
disseram-lhe, Se foste capaz de fazer sair do corpo de um homem
os demônios que o matavam, também deves poder fazer entrar
no corpo dessa gente a comida de que precisam para viver, E
como farei, se aqui não temos mais alimento do que este pouco
que trouxemos, És o filho de Deus, podes fazê-lo (SARAMAGO,
2001, p. 360-1).

No romance é necessário que Tiago e João encorajem Jesus,


lembrando-lhe que ele é o filho de Deus, fato este que souberam pela boca do
demônio, e que os milagres que já havia feito credenciavam-no como capaz de
solucionar o problema que se lhe apresentava: alimentar a multidão. A diferença é
patente entre o texto bíblico e o romance, os papéis estão trocados. No primeiro
caso são os discípulos que duvidam o tempo todo, não crendo no poder de que se

144
Esta análise da personagem Jesus de O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago,
tem como base uma pesquisa de Iniciação Científica que realizei em entre agosto de 2002 e julho
de 2003 com auxílio financeiro da FAPESP, sob orientação do Prof. Dr. Horácio Costa, do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP.

182
reveste a personagem principal como o ser divino que transcende os limites do
que caracteriza o humano. John Drury comenta a falta de compreensão dos
discípulos, no evangelho de Marcos, em relação ao significado dos feitos de
Jesus:

Sendo as refeições miraculosas tão repletas de importância, a


fúria controlada da inquirição de Jesus a seus discípulos no barco
é compreensível e apropriada: ‘Nem assim compreendeis?’ (8:21).
Ele está desesperado. Eles não entenderam muita coisa. A
discussão no trigal e o precedente davídico, a conversa animada
com a mulher grega e as refeições miraculosas antes e depois
disso – tudo se perdeu para eles. Mais do que isso, eles perderam
de vista o sagrado e o divino, que, nesse longo fio de eventos
codificados associados com o pão, se deslocou de seu contexto
habitual para um novo lugar: da tradição antiga para a vida e
corpo de Cristo, e a nova comunidade que será mantida por ele
(DRURY, 1997, p. 448)

O significado muito mais extenso e abrangente dos milagres de Jesus


que representam o sagrado e o divino na figura da personagem principal do
evangelho não é compreendido pelos discípulos, pois lhes falta sabedoria para o
entendimento dos desígnios de Deus, que só Cristo tem ao seu alcance. Por outro
lado, o Jesus saramaguiano é quem precisa de ajuda para crer no seu próprio
potencial, uma vez que os discípulos crêem no que ele pode realizar muito mais
do que ele mesmo. Eles tiveram diante de seus olhos várias evidências do caráter
sobrenatural do homem que acompanham e isso aumenta a certeza que eles têm
do que Jesus é capaz. Porém, a própria personagem a quem são atribuídas tais
capacidades sobre-humanas duvida de que realmente esse poder esteja
depositado em si. Assim, o Jesus de Saramago aparece distanciado ironicamente
de seu homônimo bíblico, pois precisa a todo o momento do auxílio de outras
personagens com as quais irá se relacionar no decorrer da narrativa, tais como o
Pastor, com quem passa quatro anos de sua vida, e Maria de Magdala, que será
sua companheira nos últimos anos de sua existência. Ele é um ser que se forma
diante de nossos olhos no decorrer da narrativa, alguém que aprende com a vida,
ao contrário do Jesus dos evangelhos bíblicos, cujo percurso terreno é um dado a
priori na narrativa. Dowe Fokkema e Horácio Costa apontam para a tendência de
humanização dos evangelhos que ocorre no romance de Saramago. Para

183
Fokkema, o romancista reescreve a história de Jesus sob uma perspectiva
puramente humana, da qual resulta uma história em que a humanidade se
emancipa da servidão religiosa. Costa afirma que o novo evangelista insiste na
humanidade da família de Jesus, submetendo os evangelhos a uma nova leitura
não ortodoxa e, desta forma, oferecendo uma nova concepção da história de
Jesus.
O caminho percorrido pelo Jesus saramaguiano dentro da narrativa é o
do autoconhecimento. Sua história seria a “da alma que sai a campo para
conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se
à prova, encontrar a sua própria essência” (LUKÁCS, 2000, p. 91). Em outras
palavras, a história desta personagem é a do herói romanesco, que está sempre
em busca de algo, sendo que o resultado dessa busca é, para ele, imprevisível.
Com a morte de José, seu pai, Jesus sai de casa para conhecer o lugar onde
nasceu. Uma necessidade que se torna vital para ele diante das dúvidas sobre si e
sobre suas origens, que surgiram depois da morte de seu pai e que se refletem
pelos pesadelos que José tivera, que ficaram como herança para Jesus: tratam-se
dos pesadelos relacionados à morte dos inocentes, pelos quais o filho de Heli não
fez nada, preocupando-se apenas em salvar o próprio filho. Nesse período, a
personagem principal de O Evangelho segundo Jesus Cristo ficará ao lado de
Pastor que, ironicamente, é o próprio Diabo, algo de que o herói ainda não tem
consciência. E é o anjo caído, considerado pela cultura cristã como responsável
pelos males da humanidade, que servirá de mestre ao filho de Maria.
O tempo que Jesus passa ao lado do Pastor é fundamental para a
formação de sua individualidade. É neste momento que toda a sua educação
religiosa passa a ser questionada e é, a partir daí, que a personagem começa a
desenvolver uma postura crítica diante da “verdade” revelada. Em certa
passagem, a questão sexual é colocada pelo Pastor como uma necessidade
intrínseca do ser humano:

Escolhe uma ovelha, disse, Quê, perguntou Jesus desnorteado,


Digo-te que escolhas uma ovelha, a não ser que prefiras uma
cabra, Para quê, Vais precisar dela, se realmente não és um
eunuco. A compreensão atingiu o rapaz com a força de um murro.

184
Porém, pior que tudo foi a vertigem de uma horrível
voluptuosidade que do afogamento da vergonha e da repugnância
num rápido instante emergiu e prevaleceu. Tapou a cara com as
mãos e disse em voz rouca, Esta é a palavra do Senhor Se um
homem se ajuntar com um animal, será punido com a morte, e
matareis o animal, e também disse Maldito o que peca com um
animal qualquer (SARAMAGO, 2001, p. 238).

No trecho acima, Pastor oferece uma ovelha a Jesus para que ele
saciasse seus desejos carnais. Embora Jesus tenha respondido, citando a Lei
mosaica - deixando implícito que a proposta de seu companheiro é impensável -,
pois é proibido pelas escrituras sagradas, o narrador nos mostra que o instinto
humano da personagem prevalece sobre a ideologia que impregna sua mente:
“pior que tudo foi a vertigem de uma horrível voluptuosidade”. O Jesus
saramaguiano nem de perto lembra o Cristo dos evangelhos bíblicos, que paira
acima das paixões humanas. Ele nega veementemente a oferta de seu
interlocutor, mas em seu íntimo ocorre uma luta entre o seu desejo e o fato deste
desejo ser proibido pelas leis de sua religião. São vários os diálogos desse tipo
entre estas duas personagens, em que o Pastor vai aos poucos desconstruindo a
verdade revelada em que Jesus acredita. Silva, ao comentar a paródia em
Memorial do Convento, mostra como se dá o processo de readequação do texto
bíblico e das convicções religiosas neste romance, o que, pensamos, também
ocorre em O Evangelho segundo Jesus Cristo:

poderíamos chamá-lo de heresia literária, uma vez que o texto


primeiro passa por uma desconstrução que o leva primeiro a uma
completa transfiguração no novo contexto. Não se trata de
paráfrase, de reduplicação, mas de uma filtragem irônica que dilui
o tom sempre nobre e laudatório do texto de origem, para
reinscrevê-lo de forma inopinada no novo espaço narrativo. Ora
esta é a fórmula que se utiliza também com o texto bíblico e as
convicções religiosas. A ironia é cáustica e vai por em questão as
respostas seguras e as certezas inabaláveis da ideologia (SILVA,
1989, p. 88).

Como observamos, a cada resposta baseada no texto sagrado que é


tido como inquestionável, a ironia empregada pelo narrador, no processo de
parodização deste texto, abala as convicções da personagem que, inicialmente,
assume uma postura ideológica fundamentada pela crença religiosa. As estruturas

185
inabaláveis da fé começam a ruir e o herói da narrativa começa a duvidar de
coisas que antes tinha como certas. Tal é o caso do Jesus saramaguiano que, em
seu processo de aprendizagem, de um simples crente passa a ser um
questionador da vontade de Deus. De modo que o Cristo saramaguiano é o
inverso do Cristo bíblico; se este segue o seu destino sem nenhum
questionamento, aquele não apenas questiona, mas, embora sem sucesso, tenta
mudar o rumo da história. Para Fokkema, parodicamente, o Jesus de Saramago é
uma inversão do Jesus dos evangelhos e sua chave semiótica “a reversal of godly
rhetoric into human wisdom: this is not blunt reversal, but one that is based on
irony, understatement and implication” (FOKKEMA, 1999, p. 397).
Observamos até aqui o modo como Jesus pode ser caracterizado em A
última tentação de Cristo e em O Evangelho segundo Jesus Cristo. Os Cristos de
Kazantzakis e Saramago caracterizam-se por um processo de humanização em
relação à personagem central dos evangelhos bíblicos. No entanto cada autor faz
a sua maneira. É possível perceber que o Jesus de Kazantzakis humaniza-se pela
razão de que apresenta sentimentos típicos de um homem, ele ama, odeia, sente
medo e remorso. No entanto, ele é reconhecido como o messias prometido e
carrega o fardo de seu papel, caminhando, enfim, em direção ao suplício da cruz.
O narrador desse romance nem por um momento quer se passar por um
evangelista, como faz Saramago, tanto ele faz referência à escrita do evangelho
de Mateus, atribuindo-o a uma de suas personagens, durante a narrativa. Assim, o
Cristo de Kazantzakis apresenta características mais humanas que nos
evangelhos bíblicos, pois sofre por desejar ser um homem, chegando a sonhar, no
momento de seu martírio com essa condição. No entanto, ao fim ele aceita o seu
destino e morre como filho de Deus.
Por outro lado, o Jesus saramaguiano se molda diante de nossos olhos
durante a narrativa. Para o romancista português, a humanização de Cristo não se
limita apenas a um conflito espiritual, sua personagem é apresentada como um
homem e procura viver como tal. Seu único laço com o divino reside no fato de ser
o filho de Deus, paternidade que ele rejeita, procurando, ao final, opor-se ao
destino que lhe é imposto. Enquanto o primeiro, ao final da narrativa, contenta-se

186
por haver superado enfim sua humanidade, o segundo percebe ter falhado, pois
não foi capaz de impedir o nascimento da religião cristã.
É evidente nos dois romances o uso da ironia. Em A última tentação de
Cristo, a escrita do evangelho de Mateus, por uma personagem do mesmo nome,
durante o romance contrasta com aquilo que ocorre de fato no decorrer da
narrativa. A justificativa para isso consiste, segundo um “anjo”, no fato de que a
verdade divina não corresponde à verdade dos homens. Assim, a narrativa
principal contrasta com o texto evangélico, correspondente ao cânone. Há de certo
modo um questionamento das verdades estabelecidas, uma vez que existe uma
verdade divina que é ininteligível para o homem já que nem o próprio Jesus a
compreende. Considerá-la como tal, uma vez que ela não corresponde aos fatos
narrados é uma ironia que perpassa por todo a narrativa:

Eu digo uma coisa, você escreve outra, e quem lê entende ainda


outra. Quando falo da cruz, da morte, do reino dos céus, o que
vocês entendem? Cada um atribui seus próprios sofrimentos,
desejos e interesses a essas palavras sagradas, assim o que eu
disse desaparece; meu espírito fica perdido. Não consigo
agüentar mais! (KAZANTZAKIS, 1988, p. 426).

No caso de O Evangelho segundo Jesus Cristo, o narrador se coloca


um evangelista, que narra os fatos a partir do ponto de vista de Jesus, não como
uma testemunha dos fatos como ocorre nos evangelhos bíblicos. Este romance
inverte os valores que permeiam a escritura dos textos que lhe servem de
inspiração, caracterizando-se, desse modo, como uma paródia, no sentido dado
por Linda Hutcheon, de “uma repetição com distância crítica, que marca a
diferença em vez da semelhança, de modo que ‘a inversão irônica é uma
característica de toda paródia’” (HUTCHEON, 1985, p. 18).
Assim, na narrativa bíblica, a paixão de Cristo tem como desfecho um
final feliz145. Jesus é crucificado, mas seu destino é vencer a morte e ressuscitar
no terceiro dia e é isto que ocorre. O objetivo desse sacrifício é a remissão dos

145
Frye, em O código dos códigos, tece uma crítica à teoria cíclica da história que Yeats constrói a
partir do contraste entre os mitos cristão e edipiano. Segundo ele, “Édipo pertence a tragédia e
Cristo a uma divina comédia; mas a tragédia reflete a situação humana como ela é, e a comédia
normalmente chega ao seu final feliz através de uma reviravolta no enredo”. Para o autor é mais
fácil pensar no mito cristão como uma versão cômica do mito edipiano. (FRYE, 2004, p. 191).

187
pecados da humanidade, que remontam ao pecado original cometido pelo pai de
todos os homens - Adão. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, a morte de
Jesus, tal como planejada por Deus, assume um outro significado, pois seu
objetivo não é voltado para o bem dos homens, mas para promover uma espécie
de propaganda que faria ecoar o nome do Deus dos judeus para áreas maiores
que um pequeno país à beira do Mediterrâneo. Jesus, como já frisamos, planeja
atrapalhar este projeto de Deus, morrendo não como seu filho, mas como um
simples homem que se declarou o Rei dos Judeus, sendo este o seu crime.
Contudo, não obtém sucesso, pois Deus no momento de sua morte intervém,
declarando-o seu filho. Assim, o Jesus de Saramago morre, mas não ressuscita
como o Jesus bíblico e desse modo valoriza-se a vida tal como a que conhecemos
e não a que poderia existir depois da morte, que é o que se valoriza no texto
bíblico, como podemos perceber pelas palavras de Jesus, no evangelho de João:
“Meu reino não é deste mundo”. E neste evangelho escrito in nomine hominis146,
onde o Jesus do evangelista Lucas diz, no momento de sua crucificação, “Pai,
perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23, 34), o Jesus de Saramago, diz,
“Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez” (SARAMAGO, 2001, p.
444). No romance de Kazantzakis, o narrador também não apresenta o episódio
da ressurreição. O ápice dessa narrativa é o sonho da tão desejada vida humana
que Jesus tem durante sua crucificação. É apenas um sonho, um devaneio, que
de certo modo ironiza a valorização de uma vida após a morte pregada pela
religião cristã. E nesse sentido os dois romances se aproximam, pois apresentam
um Cristo mais humano e mais preocupado com a vida terrena que com a
desconhecida vida após a morte.

BIBLIOGRAFIA

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.


COSTA, Horácio. “The Fundamental Re-writing: Religious Texts and Contemporary
Narrative. Gore Vidal’s Live from Golgotha, Salman Rushidie’s The Satanic Verses, José
Saramago’s O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Poligrafías - Revista Portuguesa de
Literatura Comparada, nº. 1, 1996, pp. 189-98.

146
Devo esta expressão ao livro O quinto evangelista, de Salma Ferraz, em que a autora opõe os
evangelhos ao romance, dizendo que este é escrito “em nome do homem” e aqueles, “em nome de
Deus”.

188
CROSSAN, John Dominic. Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do
Mediterrâneo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
DRURY, John. “Marcos”. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997, pp. 433-48.
EÇA DE QUEIROZ, José Maria. A Relíquia. São Paulo: O Estado de São Paulo/ Klick
Editora, 1997.
FERRAZ, Salma. O quinto evangelista: o (des)evangelho segundo José Saramago.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
FOKKEMA, Douwe. “The Art of Rewriting the Gospel”. Colóquio-Letras, n.º 151/152,
janeiro/julho de 1999, pp. 395-402.
FRYE, Northrop. O código dos códigos – A Bíblia e a Literatura. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2004.
GABEL, John B., WHEELER, Charles B. A Bíblia como Literatura. São Paulo: Edições
Loyola, 1993.
GATTINA, Ferdinando Petrucelli de la. Memórias de Judas. Rio de Janeiro: Irmãos
Pongetti, Editores, 1946.
HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Lisboa: Edições 70, 1985.
KAZANTZAKIS, Nikos. A Última Tentação de Cristo. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
KERMODE, Frank. “Mateus”. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997, pp. 416-
31.
LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: 34, 2000.
RENAN, Ernest. Vida de Jesus (Eduardo Augusto Salgado, trad.). Porto: Livraria
Chardron, 1926.
SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga
de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
VERMES, Geza. Jesus e o Mundo do Judaísmo. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

189
RAUL BRANDÃO E JOSÉ
SARAMAGO:
REVISITANDO FIGURAS
CRISTÃS

ANA PAULA CARRARO BORGES

190
RAUL BRANDÃO E JOSÉ SARAMAGO:
REVISITANDO FIGURAS CRISTÃS

Ana Paula Carraro Borges (USP)

Se nos dedicarmos ao estudo de textos literários, mesmo que


superficialmente, será fácil encontrarmos inúmeros exemplos em que a figura de
Jesus ou o cristianismo aparecem com certo destaque. Ora questionando, ora
difundindo crenças, a literatura sempre serviu de ponte para as discussões entre a
fé e a razão. O cristianismo foi, e ainda é, motivação para grandes estudos.

Escritores, pensadores e filósofos influenciaram e ainda influenciam nas


muitas reflexões sobre a figura emblemática de Jesus. Em Portugal, país
tradicionalmente católico, a religião é uma espécie de herança de um povo eleito -
imagem largamente cultivada na cultura portuguesa.
Entretanto, há também aqueles que contestam a religião, como a
geração de 70, que colocou à prova a Igreja Católica. Para Bueno, essa geração
“vai além da crítica anticlerical, pois culmina por colocar em xeque a divindade de
Jesus” (BUENO, 2003, p.55).
Todo esse questionamento atravessa gerações. Para este artigo
destacamos o teatro de Raul Brandão e José Saramago, que, em tempos
distintos, dão nova vida a figuras centrais do cristianismo: Jesus e Francisco de
Assis. Salientamos, ainda, que embora o ápice da crítica à religião na obra de
Saramago esteja presente em O Evangelho segundo Jesus Cristo, utilizamos para
o nosso confronto a peça teatral A segunda vida de Francisco de Assis, de 1987,
na qual está presente uma das importantes figuras do catolicismo, visto que o
evangelho saramaguiano já foi amplamente estudado.
De Raul Brandão, destacamos a peça Jesus Cristo em Lisboa, de 1927.
Teixeira de Pascoaes também é autor da peça, embora estudos limitem sua
participação a apenas um quadro. Em sete quadros, a tragicomédia com dezenas

191
de personagens conta a suposta volta de Jesus a Portugal, numa época
contemporânea.
Os quadros da peça não estão diretamente ligados, a não ser pela
figura de Jesus, presente em todos eles. A colaboração de Pascoaes estaria no
quinto quadro, em que Jesus encontra o diabo na catedral. Segundo José Manuel
Vasconcelos, esse quadro teria sido incluído na peça já depois de Brandão tê-la
concluído (cf.: VASCONCELOS, 1984, p.11). Como não há uma interdependência
entre os quadros, sua inclusão não afetou a ordem da peça.

No começo dessa obra, Jesus aparece no campo e inicia sua


caminhada rumo à cidade. Para Vasconcelos, os diálogos de Jesus com as
personagens refletem uma viagem pelas classes e extratos sociais (políticos,
clero, povo). Ele afirma, ainda, que “A descida à cidade é uma descida aos
infernos”:

Cristo atravessa a cidade de desilusão em desilusão, é preso,


ameaçado, aliciado, declarado um perigo público e finalmente
crucificado. E durante a sua passagem deslizam diante de nossos
olhos os frutos terríveis da vida urbana (...): a morte da verdade, a
hipocrisia, o calculismo mesquinho (VASCONCELOS, 1984,
p.13).

Para nosso confronto, damos destaque ao segundo quadro,


principalmente à personagem do Anarquista. Depois de se deixar conhecer
novamente e pregar pelas ruas, Jesus é outra vez preso e acusado pelo povo. Na
prisão, está sendo interrogado um Anarquista com uma mão entrapada por causa
da explosão de uma bomba. Lá, ele descobre que provocara a morte de sua
própria filha. Um barulho cada vez maior, vindo de fora, interrompe o interrogatório
e um policial leva os presos para o calabouço - o Anarquista, uma Mulher da Vida
e um Ladrão. Confuso pela notícia da morte da criança, o Anarquista inicia um
diálogo que revelará a indignação pela desigualdade social, presente em vários
quadros da peça:

Anarquista: Vocês ouviram dizer que morreu uma criança?


Ladrão: Crianças morrem todos os dias.
Mulher da Vida: De fome.

192
Ladrão: E de miséria (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p.38-39)

O tumulto é causado por Jesus que é levado à prisão, como outrora, por
aqueles para quem ele teria vindo. A cena revela os piores sentimentos e os
interesses humanos. Diante de tantas pessoas, o Comissário só permite que
entrem os queixosos e procede a um interrogatório como um novo Pilatos.
Há uma divisão entre aqueles que querem a morte e os que desejam a
liberdade de Jesus. Ele é acusado por pregar aos pobres e muitos deles se
rebelam contra sua pregação que, agora, é considerada ultrapassada.
A Primeira Velha reclama por suas filhas, divorciadas, que não
conseguem arrumar um marido:

Primeira Velha: (...) Quando a minha filha estava para casar com
um dançarino também divorciado... E sabe Deus o que nos custou
a apanhá-lo, a mim e a ela! (...) Aparece este homem e começa a
pregar.
(...)
Comissário (para Jesus): Diga lá.
Jesus : Não adulterarás?
Primeira Velha: Ouve?
Jesus: Digo que todo o que olhar para uma mulher, cobiçando-a,
já no seu coração adulterou com ela.
Comissário: Estávamos bem servidos!
Primeira velha: E agora a minha filha já não pode mais. A minha
filha já não pode mais por causa deste homem... (BRANDÃO,
PASCOAES, 1984, p. 44-45).

É interessante como os valores pregados por Jesus e, ainda hoje, por


muitas igrejas, são contestados pela sociedade. Diante desse novo dilema, entre
condenar ou absolver Jesus, o Comissário age, de fato, como Pilatos, chegando a
repetir a expressão proveniente do gesto bíblico do governador romano:
“Comissário: Já vejo que o caso é muito mais sério do que eu pensava. Motins
públicos, o senhor Governador Civil que decida. Eu daí lavo as mãos” (BRANDÃO,
PASCOAES, 1984, p.45).
Uma Segunda Velha também reclama. Ela diz que, depois de ouvir
Jesus, seu marido fez-se santo e ninguém pode aturá-lo. A santidade não é mais
uma virtude:

193
Segunda Velha: (...) Quem é que pode aturar um santo! Um
santo é um desastre para uma família; pelo menos enquanto está
vivo. Um homem que não tem costumes, que dá tudo o que tem,
que dá o ordenado, que sai e entra a toda hora, diz o que sente e
não quer saber da família! (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p.46)

Em um estudo sobre Brandão (Coleção a obra e o homem), Andrade


afirma que

Se Jesus Cristo voltasse ao mundo encontraria os mesmos


interesses, os mesmos ódios e paixões, as mesmas injustiças,
uma igreja organizada e uma sociedade mergulhando as suas
bases no poder temporal, representado pelo dinheiro. Esta é a
tese de Jesus Cristo em Lisboa. Os autores restringiram o seu
modo a este pequeno Portugal, e, renunciando a uma vasta visão
panorâmica e largamente simbólica, situaram a ação entre gente
conhecida, com vícios e defeitos que, sendo universais, assumem
expressão nacional, logo miniatural; por isso enveredaram pelo
cômico (não esquecer que se trata de uma tragicomédia) e deram
em traços caricaturais a ampliação dos seus fantoches”
(ANDRADE, [s.d.], p. 218-219).

Entremeando a conversa, o Ladrão, preso no calabouço com Jesus,


desafia o poder de Cristo - “Mas, se és Deus, abre-nos esta porta!” (p.46) – como,
nos Evangelhos, faz o ladrão da crucificação – “(...) Se és o Cristo, salva-te a ti
mesmo e salva-nos a nós!” (Lc. 23, 39).
Mesmo os que estão em defesa de Jesus têm um interesse por trás
desse gesto. É o caso do homem que o defende por pregar “De que andareis
vestidos? Olhai os lírios dos montes...” pois, com isso, não precisará comprar
vestidos e chapéus para sua mulher, que viveria nua; também é o caso da mulher
do Comissário, D. Elvira, que prefere tratar a Jesus bem, temendo que seja
realmente Deus, a correr o risco de o marido perder o emprego por não o ter
recebido de maneira adequada.
Após libertar-se da prisão e, com ele, os que lá estavam, Jesus é
questionado várias vezes acerca dos problemas da humanidade: “Ladrão: Se tu
és Deus, porque me deixaste ser ladrão? E porque me deixas sofrer? De que é
que me acusas?” ou ainda: “Anarquista: Ele tem razão. Se tu és Deus, porque os

194
deixaste reduzir à condição de bestas? E reduzidos à condição de bestas, que
querias que eles fossem no mundo?” (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p.51)
O Jesus apontado por Brandão e Pascoaes é submisso, fraco,
impotente diante das situações que se lhe apresentam; ao contrário, o Anarquista
representa a luta por melhores condições de vida:

Anarquista: Não resistir ao mal. Não lutar, submeter-se!


Submeter-se à força e à desgraça! E os outros? E todos os outros
que morrem de miséria e de frio? Os que parece que são criados
de propósito para o vício e para o crime e que tenho aqui dentro,
no coração, como uma chaga! Ao contrário, lutar, resistir é que é
preciso! Lutar contra os que nos calcam! (BRANDÃO,
PASCOAES, 1984, p.51-52)

Mesmo aceitando ir pregar com Jesus, o Anarquista reforça sua crença


no homem, colocando à prova a força e a divindade de Jesus: “Anarquista:
Vamos pregar a verdade. Mas eu não creio em ti, creio em mim” (BRANDÃO,
PASCOAES, 1984, p.54). Essa valorização da figura humana se repete no terceiro
quadro, quando a personagem Sofia, desiludida por ser honesta e nada ter
conseguido com isso, diz: “Não confio em Deus, só confio em mim” (BRANDÃO,
PASCOAES, 1984, p. 57)
Para Bueno, “o Anarquista (...) acusa Jesus Cristo de, com sua
mensagem, só conseguir que os pobres se submetam aos ricos” (BUENO, 2003,
p.57). Ele é a voz revolucionária que clama por justiça e igualdade, coisa que o
Cristo não faz.
O questionamento a propósito da pobreza do mundo é constante na
peça. Jesus aparece como um pedinte. É preso porque prega na rua e prega aos
pobres e chega a dizer que “Deus é o Pobre dos pobres” (BRANDÃO,
PASCOAES, 1984, p.31). Contudo, seu ideal de pobreza, de humildade é mais
uma vez questionado.
No quarto quadro, os poderosos da época discutem sobre as atitudes de
Jesus:

Primeiro ministro: Destruir este mundo prodigioso de actividade!


As grandes invenções, o progresso, a riqueza e a beleza!

195
Outro ministro: Substituí-lo por quê?
Presidente: Pela pobreza e pela verdade.
Quarto ministro: A que provação Ele nos quer reduzir! Como
poderemos nós voltar a viver no país, aos bandos, despidos do
progresso material e só com uma doce ilusão, hoje impossível?
(...) (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p. 65)

Segundo Abdala Junior e Paschoalin, em sua obra, Brandão se voltou


contra a ideologia do “progresso” do tempo em que vivia, pois os efeitos por ele
gerados não foram positivos para a população dos humildes. Afirmam, ainda, que
“A solução desses problemas seria encontrada, para o escritor, em uma espécie
de socialismo cristão onde coexistiriam seus ideais anárquicos com seu idealismo
místico” (ABDALA JUNIOR, PASCHOALIN, 1982, p. 130-131)
Os ideais de Cristo, mais uma vez, vão de encontro com a vontade dos
governantes. Mesmo convencidos de que Ele é Deus, não aceitam sua doutrina
como antigamente:

Presidente: Estou convencido que é Deus. Prega contra a


riqueza e contra o escândalo. (...)
Outro ministro: Um mundo de pobres e de justos!
Judeu: Pobres?!
Segundo banqueiro: Todos pobres!
Presidente: Pobres!
Segundo banqueiro: Mas efectivamente pobres?
Presidente: Pobres e humildes.
Quarto ministro: Isso não pode ser!
Judeu: Desfazer-se a gente de tudo o que tem! Duma parte ainda
se compreende, de metade ainda lá chego. Mas de tudo! de
tudo?!
Primeiro ministro: Não há ninguém que se desfaça de tudo.
Quarto ministro: É sobre-humano.
(...)
Terceiro ministro: Para dar aos outros que a gente não
conhece?
(...)
Judeu: O meu rico dinheiro? (Risadas) (BRANDÃO, PASCOAES,
1984, p.66-67)

No quinto quadro, depois de ser tentado pelo diabo, Jesus sofre


pressão para se juntar ao poder dominante :

196
Judeu: (...) Bandeia-te connosco, com os poderosos. Erguemos-
te mais altares e templos mais ricos que os de Salomão!
Podemos até fundar um banco.
Jornalista: Entre para o Banco. Fundamos o Banco do Pai, do
Filho e do Espírito Santo! (...)
Judeu: Bandeia-te connosco. Não digo isto para te corromper.
Falo-te com o coração nas mãos. Reconheço a tua importância no
mundo. Sem ti, que havia de ser de nós? És uma força. Conténs
os desgraçados. Falas-lhes da outra vida, iludes os que têm fome.
Mas és uma força nas nossas mãos. Nas nossas mãos és a
ordem. (...) As tuas teorias não se podem aplicar. (...) Volta para
os altares, porque, estando morto, podes ser uma série de
benefícios para o mundo (...). (BRANDÃO, PASCOAES, 1984,
p.92-93)

Observe que o papel de Cristo na sociedade é limitado. Sua mensagem


de esperança aos humildes, prometendo a vida eterna como recompensa, serve
de alento e contém a revolta do povo. Só assim ele é útil; caso o contrário, merece
novamente ser crucificado.
Como os poderosos não obtêm uma resposta de Jesus, ele é
novamente traído com um beijo: Primeiro judeu: “Ah, não respondes? não
aceitas?... (Avança para Ele e beija-o. a esse sinal entram soldados na igreja para
o prenderem. O judeu aponta-o.)” (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p. 93)
Crucificado, Jesus silencia diante daqueles que dizem não querer sua
piedade: “Anarquista: Guarda a tua piedade! Não queremos a piedade de
ninguém! Queremos o pão que a vida nos deve, queremos a alegria que a vida
nos deve.” (BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p. 100) Sua impotência diante de
tantas cobranças é evidenciada no final do quadro: “Jesus ouve tudo em silêncio,
até que estende os braços, mostra as chagas das mãos e desata a chorar.”
(BRANDÃO, PASCOAES, 1984, p. 100) , como quem nada pode fazer.
Para Andrade, “Se há um sentido nesta peça, para além do
‘divertimento’ intelectual que ela representa na actividade dos dois escritores, é
decerto o da inutilidade – ou da impossibilidade – de uma nova mensagem de
Cristo.” (ANDRADE, [s.d.], p. 223).
Décadas depois, como Brandão e Pascoaes, José Saramago em 1987
também dá nova vida a um seguidor do cristianismo: Francisco de Assis.

197
Em A segunda vida de Francisco de Assis, José Saramago resgata um
seguidor do cristianismo que, depois de Jesus Cristo, destaca-se
consideravelmente entre os católicos. O autor utiliza-se de personagens e de
situações que aconteceram de fato na vida de Francisco de Assis empregando-as,
entretanto, de forma irônica. Saramago parece propor, assim, uma nova leitura e
reflexão da vida do santo construindo uma “teologia” totalmente inovadora.
Em entrevista a Carlos Reis, Saramago revela como surgiu a peça
sobre São Francisco:

A segunda vida de Francisco de Assis nasce bastantes anos


antes, de uma coisa desagradável, em Assis, quando eu me
encontrava lá, num claustro, com dois frades franciscanos a
vender bugigangas religiosas, estampinhas, crucifixos e rosários.
E como já é um lugar-comum dizer-se que não há nada tão
escrupuloso em matéria de religião como um agnóstico ou um
ateu, aquilo chocou-me: então o Francisco de Assis, o santo, era
a pobreza e estes tipos estão para aqui a vender estas coisas?
Deviam fazê-las e dá-las, se quisessem. Mais tarde o João
Lourenço diz-me: “Você podia-me fazer uma peça”; e eu
respondo: “Tenho esta ideia, talvez isto resulte.” Acho que a peça
não está inteiramente conseguida, não consegui fazer aquilo que
queria, ou seja, diz aquilo que eu quero, mas formalmente não me
agrada completamente. E a peça representou-se sem grande
êxito, há que dizê-lo. (REIS, 1998, p.114).

Na peça, composta por dois atos e 14 personagens, Francisco retorna à


vida na atualidade, após um longo período depois de sua morte e encontra a
Ordem transformada em uma Companhia com ideais contrários ao carisma da
fraternidade por ele fundada.
Exceto Pedro, o pobre, todas as demais personagens fizeram parte da
vida de Francisco de Assis. Em sua dissertação de mestrado intitulada Releituras
de Francisco de Assis: a santidade segundo José Saramago – UFF, Andréa
Miranda Campos da Costa, demonstra que o novo Francisco e Pedro, o
representante dos pobres, são as personagens de raiz ficcional da peça. Ela
salienta, ainda, que as demais personagens são históricas e ficcionais porque
mesmo fazendo parte da biografia do santo, receberam um tratamento ficcional de
Saramago (Cf.: COSTA, 2003, p. 93).

198
O título, A segunda vida de Francisco de Assis, também merece
atenção. Saramago dá uma nova chance não ao santo, mas ao homem Francisco.
Também é possível que haja, aqui, uma referência à hagiografia feita por Tomás
Celano chamada Segunda vida de São Francisco.
Já no início da peça, a sala de reuniões do conselho representa o valor
dado à riqueza por aqueles que antes eram amantes da pobreza: “Grande sala.
Ambiente geral discreto e severo. Mesa comprida, cadeirões, cofre, telex, vários
telefones, um terminal de computador” (SARAMAGO, 1987, p. 11); bem diferente
da Porciúncula, a segunda morada dos franciscanos, que, de acordo com os
estudiosos, era um lugar simples com uma igrejinha e uma cabana (Cf.: ROSSI,
1982, p. 12).
Os companheiros de Francisco não mais doam tudo que têm aos
pobres; agora, governam, administram, fabricam, gerem, contam, pesam e, como
diz Elias, na peça, às vezes dividem (Cf. SARAMAGO, 1987, p. 17).
Um interessante conflito é resgatado pelo autor: o relacionamento
conturbado de Francisco com sua família, em especial com a figura paterna.
Pedro Bernadone, pai de Francisco, era um comerciante da pequena burguesia de
Assis que, por causa dos ideais de pobreza do filho, rompeu os laços que havia
entre eles. O pai de Francisco assemelha-se à velha de Jesus Cristo em Lisboa
que diz que enquanto está vivo, um santo é um desastre para uma família. Na
peça, Pedro é o diretor geral da companhia e cuida da contabilidade da empresa.
O ódio entre pai e filho é evidenciado em vários momentos da peça:
“Pedro: (...) Talvez seja por não amar-te que te odeio (...)”(SARAMAGO,1987, p.
60.). O autor reforça a todo instante a revolta, a mágoa e a aversão entre os dois.
Nesse conflito familiar, a mãe, D. Pica, é aquela que está dividida entre
o amor pelo filho e a submissão ao marido, característica da época:

Pica: Amei-te como se ama um filho...


Francisco: Apenas soubeste como amaste este filho. E talvez
nem sequer isso tenhas sabido.
Pica: Seria esta a ocasião de perguntar se amaste os teus pais.
Francisco: Claro que amei. Quanto em mim podia caber. Depois
detestei meu pai. Acaso não chegou a ser ódio, porque mal nunca
lhe quis. Mas foi desespero. Não lhe pedia mais do que

199
compreensão, ao menos aceitação, e nem isso me deu. Melhor é
que não falemos de amor, querida mãe (SARAMAGO, 1987, p.
27).

Contrapondo-se ao ódio exacerbado entre Francisco e Pedro,


Saramago introduz na peça um detalhe que suaviza o clima de tensão na
Companhia: o romance entre o santo e Clara de Assis, sua discípula que, segundo
os biógrafos, após professar os votos, viveu em contemplação e oração até sua
morte alguns anos depois do falecimento de Francisco. A Clara de Saramago
apresenta características bem diferentes de uma monja enclausurada. Ela é
secretária da Companhia juntamente com Jacoba e Inês.
No decorrer da peça, Saramago desenvolve uma situação bem
romântica envolvendo os dois personagens. Ao procurar Francisco, Clara
demonstra de forma direta sentimentos amorosos pelo santo: “Clara: Se tens um
coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne, e sangra todo o dia”
(SARAMAGO, 1987, p. 39).
Em muitos momentos na biografia do santo, diferente do que mostra
Saramago, fala-se em evitar a proximidade com as mulheres, inclusive a regra
orienta os irmãos a não entrarem em mosteiros de freiras (Cf.: REGRA, 2000,
p.138). Contrariando a regra, o Francisco de Saramago tece elogios a Clara:

Francisco: A regra não mo permitiria, mas hoje é o dia da minha


chegada. Só por isso sou capaz de te dizer que estás muito
bonita. É a primeira vez. Nem naqueles tempos, quando,
pensando em ti, o corpo me atormentava, nem então te disse que
eras bonita (SARAMAGO, 1987, p.41).

No final da cena em que Clara e Francisco se reencontram, Saramago


parece acentuar em torno deles a existência de um forte sentimento amoroso,
principalmente por deixar que o leitor imagine o desfecho da cena:

Francisco: (...) Ainda não respondeste à minha pergunta.


Clara: Qual?
Francisco: Se ficarás do meu lado.

200
Clara: Ficarei do teu lado, ao teu lado, foi sempre aí que estive,
mesmo quando não sabia de ti. Por favor, por favor, diz o meu
nome.
Francisco: Clara. (As luzes baixam enquanto se aproximam um
do outro. Escuridão quando vão se tocar) (SARAMAGO, 1987, p.
47-48).

O autor parece questionar, por meio de Clara, a vida celibatária que os


santos levaram e que, nos dias atuais, a Igreja ainda propõe aos sacerdotes.
Nota-se, então, mais uma vez uma crítica à “velha teologia” que persiste em
manter o celibato até hoje entre os consagrados.
Durante toda a peça, Saramago utiliza-se de pessoas que estiveram
próximas ao santo e se apropria de suas características para reconstituir a vida de
Francisco. Entre elas a figura de frei Elias, outro personagem recriado, destaca-se
por seus interesses em manter a Companhia rica, opondo-se ao ideal de vida
franciscano. Trava-se uma luta entre Francisco e Elias pela direção da
Companhia.
Buscando as referências biográficas do santo, percebe-se que Elias é
uma personalidade confusa entre os franciscanos. É necessário primeiro
contextualizar esse frei dentro da Ordem, para então compreender um possível
porquê da escolha feita por Saramago de Elias para presidente da Companhia.
Segundo Jaques Le Goff, ainda em vida, Francisco enfrentou divisões
na Ordem e por causa delas voltou a Terra Santa para regidir as regras não–
bulada e bulada.. Por isso deixou a direção da ordem com Pedro Cattani, e depois
de sua morte, com frei Elias (Cf.: LE GOFF, 2001, p. 49). Para Inácio Larrañaga
“Em termos humanos, foi uma perda irreparável e de conseqüências imprevisíveis,
porque a um homem tão franciscano sucedeu, no governo, frei Elias Bombarone,
homem tão pouco franciscano” (LARRAÑAGA, 1998, p. 282).
Ieda Maria S. F. Nogueira, explica que dois grupos se formaram dentro
da Ordem: Os “Espirituais”, que buscavam continuar radicalmente o projeto
apostólico de Francisco, e os “Conventuais”, que “acreditavam poder adaptar o
modelo de vida do santo aos esquemas eclesiásticos tradicionais, como possuir
bens, fixar-se em conventos, dedicar-se aos estudos nas universidades; inclusive
para viabilizar o crescimento e a expansão da ordem” (NOGUEIRA, 1997, p. 41).

201
Essa divisão também aparece na peça quando Leão e Junípero ficam do lado de
Francisco e os demais apóiam Elias.
Segundo Larrañaga, frei Elias foi ministro durante treze anos, e na
época mais delicada da evolução da Ordem:

(...) enquanto Francisco viveu ou em sua presença, frei Elias teve


um comportamento digno. Pelo que parece, frei Elias amava e
admirava sinceramente a Francisco. Este apreciava-o e depositou
nele sua confiança. Como pode ter escapado a um homem tão
perspicaz como Francisco a verdadeira natureza da
personalidade de Elias? O escritor fica com a tentação de pensar
que Elias foi um perfeito político; um mestre da dissimulação, e
que agiu sempre buscando a própria promoção. Mas isso seria
entrar no terreno das intenções, o que não é permitido a nenhum
mortal (LARRAÑAGA, 1998, p. 282).

Se Inácio Larrañaga resistiu à tentação de criar uma imagem de Elias


como um perfeito político, Saramago não só deixou-se vencer pela tentação, como
construiu seu personagem com características de alguém ambicioso e
dissimulado, o que Larrañaga timidamente sugere. José Saramago penetra no
terreno das intenções e cria a sua versão de frei Elias como aquele que quer o
enriquecimento da Companhia acima de tudo.
Tentação para o Elias de Saramago é relembrar o espírito de pobreza
franciscana: "Elias: (Tom condescendente) Permito-me pedir a atenção de todos
vós para a inutilidade de um debate sobre o fundo da questão, por muito aliciante
que nos pareça. Outras vezes caímos nessa tentação" (SARAMAGO, 1987, p. 13).
Embora em vários momentos, usando a voz de Francisco, o autor
proponha que a Companhia volte a ser pobre, o seu objetivo parece ser deixar
claro que isso não deve acontecer. O mundo é outro, é preciso construir novos
conceitos, como é o caso do pobre, com o mesmo nome e idênticas
características físicas do pai de Francisco, que na reunião de conselho coloca-se
contra o santo:

Pedro: Como queres tu que os pobres destruam os ricos? Como


queres que os fracos vençam os fortes? Como queres que os
inermes arrendem os poderosos? Que armas nos dás, Francisco?
(...)
Francisco: Os pobres são muitos.

202
Pedro: Também os ricos são muitos. É um engano supor que os
ricos são poucos. É preciso ser-se pobre, estar colocado no ponto
de vista do pobre, para ver como os ricos são numerosos. Há dias
em que andamos na rua e só vemos ricos.
(...)
Francisco: Pedro, é um pobre que pede auxílio a outro pobre.
Pedro: Não somos pobres iguais. Tu tornaste-te pobre para
poderes ganhar o céu, e nós, que pobres fomos e pobres
continuaremos a ser, nem terra conseguimos conquistar. Nenhum
pobre te agradeceu quando abandonaste as riquezas de teu pai.
Francisco: Não esperava agradecimentos. Tratava-se de salvar
as almas.
Pedro: Não sei se salvaste alguma. Mas, ao louvares a pobreza,
afirmaste a bondade do sofrimento dos pobres. Este é o pecado
de que nenhuma absolvição te lavará (SARAMAGO, 1987, p. 126-
128).

Para Costa, a figura de Pedro, o pobre, pode ser associada à de São


Pedro:

Trata-se de um outro Pedro que podemos também associar à


pedra, que remete a Pedro, discípulo de Cristo, que edificou
uma nova Igreja em nome de Cristo. Vem para destruir e neste
sentido é o oposto do apóstolo. E como pobre é o oposto do
poder representado pelo pai (Pedro), pela própria Igreja
(fundada por Pedro) e pela Companhia (COSTA, 2003, p. 109).

Depois de lutar para destruir a Companhia que se tornara rica, tentar


voltar ao antigo ideal de pobreza, Francisco é desesperançado pelo pobre a quem
havia dedicado toda sua vida. A decisão do Francisco de Saramago surpreende a
todos que conhecem um pouco da biografia do santo. A partir de então ele lutará
contra a pobreza:

Francisco: Vou fazer-te a vontade, Elias. Vou-me embora.


Elias: Vais tentar reunir forças contra nós? Talvez ainda consigas
convencer Pedro e os pobres.
Francisco: Não o tentarei.
Elias: Então?
Francisco: Agora vou lutar contra a pobreza. É a pobreza que
deve ser eliminada do mundo. A pobreza não é santa.
(SARAMAGO, 1987, p. 131-132).

203
Ao colocar Francisco contra a pobreza, Saramago parece permitir que
ele reconstrua sua vida, sua história, assumindo, assim, o que seria sua real
identidade. Não há mais o Francisco conhecido e venerado pelos católicos, mas
alguém que, como a maioria da sociedade, quer uma vida diferente daquela que
os pobres levam, já que pobreza não santificaria ninguém.

Confrontando as obras Jesus Cristo em Lisboa e A segunda vida de


Francisco de Assis, percebemos que ambas são obras de re-escritura, ou seja,
dá-se uma nova oportunidade tanto ao Cristo quanto ao Santo de reverem suas
vidas. Embora, na hierarquia da Igreja, Francisco esteja em uma posição inferior a
Jesus, seu mestre, o protagonista de Saramago é muito mais forte e decidido e,
diferente do Jesus impotente de Brandão, luta por seus ideais.
O questionamento acerca da pobreza é ponto comum nas duas obras.
As personagens do Anarquista, em Brandão, e do representante dos pobres, o
Pedro, em Saramago assemelham-se por sua indignação com a condição de
submissos. Assim como o Anarquista, Pedro não vê vantagem na humildade que
vem da submissão e da pobreza.
A Senhora Pobreza, esposa amada de Francisco, é colocada em xeque.
Diferente da postura católica, que vê na pobreza um caminho para alcançar o céu,
Francisco assume uma postura mais próxima do protestantismo, que vê a riqueza,
sem esbanjamento, como uma bênção de Deus. A denúncia contra uma
mentalidade que faz com que os pobres permaneçam nessa condição está
presente em ambas as obras, como uma voz ecoando por novos caminhos.
Percebemos, portanto, que tanto a figura de Jesus quanto a de
Francisco não se adequam aos padrões de hoje. A tradição cristã e suas
arbitrariedades são colocadas em debate pela necessidade de mudanças.
Questionando as falhas do passado e, até mesmo, aquelas que ocorrem nos dias
atuais, talvez possamos, como Brandão, Pascoaes, Saramago e tantos outros,
apontar novos rumos em busca de uma sociedade melhor.

204
Referências Bibliográficas

ABDALA JUNIOR, Benjamin, PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura


portuguesa. São Paulo: Ática, 1982.
ANDRADE, João Pedro. Raul Brandão. Lisboa: Arcádia, [s.d.].
BÍBLIA SAGRADA: 74.ed. São Paulo: Ave-Maria, 1993. 1632p.
BRANDÃO, Raul, PASCOAES, Teixeira. Jesus Cristo em Lisboa. Vega, 1984.
BUENO, Aparecida de Fátima. Nas trilhas de Eça e Saramago: representações de Cristo
no século XX.Via Atlântica, São Paulo, n.6, p.55-64, out. 2003.
COSTA, Andréa Miranda Campos da. Releituras de Francisco de Assis: a santidade
segundo José Saramago. 2003. 154f. Dissertação (Mestrado) – UFF, Rio de Janeiro,
2003.
LARRAÑAGA, Inácio. O irmão de Assis. 10.ed. São Paulo: Paulinas, 1998.
LE GOFF, Jaques. São Francisco de Assis. Trad. Marcos de Castro. 6.ed. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
NOGUEIRA, Ieda Maria Silveira Fleury. Do homem ao Cristo. O espaço-tempo na
construção da imagem de São Francisco de Assis. 1997. 115f. Dissertação (Mestrado) –
USP, São Paulo, 1997.
SARAMAGO, José. A segunda vida de Francisco de Assis. Lisboa: Caminho, 1987.
REGRA bulada da ordem dos frades menores. In: SÃO Francisco de Assis: Escritos e
biografias de São Francisco de Assis; crônicas e outros testemunhos do primeiro século
franciscano. 9ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p.131-138.
REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998.
VASCONCELOS, JOSÉ Manuel. Prefácio. In: BRANDÃO, Raul, PASCOAES, Teixeira.
Jesus Cristo em Lisboa. Vega, 1984. p. 9 -16.

205
AUSÊNCIA DE DEUS E
SENTIMENTO DE
CULPA EM MEMÓRIAS
PÓSTUMAS

LUIS CARLOS CANCELLIER DE OLIVO

206
AUSÊNCIA DE DEUS E SENTIMENTO DE
CULPA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS

Luis Carlos Cancellier de Olivo (UFSC)

1. Considerações iniciais

O objetivo deste artigo, no campo de estudos da teopoética, é a


identificação nos escritos de Machado de Assis, em especial no romance
Memórias póstumas de Brás Cubas,147 de um possível confronto entre a moral de
seus personagens e alguns dos princípios que constituem a base da fé católica,
entre eles o pecado, a culpa, o sofrimento e o perdão. Assim, importa saber de
que forma se trava o diálogo de Machado de Assis, cristalizado por meio de seus
textos, com a teologia. Ou, antes, verificar se ao invés de um diálogo há uma
tensão entre o comportamento moral dos personagens e os ensinamentos
religiosos, que se encontram indicados nas escrituras bíblicas, notadamente
expressos nos dez mandamentos e no rol dos pecados capitais.
A teopoética, cuja pesquisa está voltada para os estudos literários sobre
Deus,148 possibilita também a abertura para outras abordagens, como aquelas que
buscam o diálogo interdisciplinar possível entre teologia e literatura. Do conjunto
de temas que envolvem a teopoética, constituem objeto do presente trabalho os
que tratam do discurso autoral sobre Deus na literatura e a relação entre a
literatura contemporânea e a crise existencial da consciência moderna.149

147
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Obra Completa. Vol.1. Organizada
por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
148
KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras. Trad. Paulo Soethe. São Paulo: Loyola,
1999, p.40.
149
FERRAZ, Salma. Teopoética: los estúdios literários sobre Dios. In: RDC – Revista de
Divulgação Cultural, ano 27, n. 86, mai/ago 2005. Blumenau: Fundação Universidade Regional de
Blumenau – SC,p.15.

207
A escolha de temas tão caros ao catolicismo, por envolverem questões
de fé, justifica-se pela preocupação demonstrada pelo papa Bento XVI, quando
ainda cardeal, durante o meeting de Rímini, em 1990. Disse ele: “O núcleo da
crise espiritual de nossa época tem suas raízes no obscurecimento acerca das
questões da graça do perdão”.150 É do mesmo cardeal a advertência para o
perigo que representa a psicanálise, que ao fornecer novas possibilidades de
interpretação do desejo, “retira” do homem sentimentos fundamentais, como o da
culpa. Necessária, portanto, na avaliação das relações entre teologia e literatura,
151
considerar a possibilidade de inclusão desta área de conhecimento, sem o que
a teopoética – ao menos no que se refere à análise literária do pecado ou do
perdão – pode encontrar dificuldade para dar conta de sua pretensão científica.
É levando em conta tais questões de teologia, literatura e psicanálise,
que este trabalho se propõe a verificar as condições de atuação dos personagens
machadianos, com ênfase para o comportamento moral predominante à época
dos acontecimentos ficcionais relatados.

2. Teologia do perdão aos pecadores

No conjunto da obra ficcional de Machado, as referências aos aspectos


religiosos são constantes, seja envolvendo questões institucionais da igreja,

150
RATZINGER, J. Compreender a igreja hoje: vocação para a comunhão. Trad. D. Mateus
Ramalho Rocha, 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2005,p.83.
151
Neste estudo considera-se a teoria psicanalítica fundada por Sigmund Freud (1856-1939) que
identifica o desejo como um sentimento “indissoluvelmente ligado a traços mnésicos e encontra
sua realização na reprodução alucinatória das percepções”. Comumente identificamos a noção de
desejo com necessidade e vontade. Freud tenta criar uma noção que isole tal termo – ao menos no
que se refere à psicanálise – e parte do contraponto em relação a necessidade. Segundo ele “a
necessidade, nascida de um estado de tensão interna, encontra a sua satisfação pela ação
específica que fornece o objeto adequado”. Freud vai desenvolver o conceito principalmente na
sua teoria do sonho e mostrar como o desejo aparece sob o sintoma do compromisso. Estas
observações têm por finalidade apenas lançar uma luz – certamente pálida – sobre termos
utilizados da mesma maneira para expressar idéias distintas. Quando o Cardeal afirma que a teoria
psicanalítica “retira” do homem sentimentos fundamentais como a culpa, evidentemente
desconsidera que a mesma teoria trabalha essa culpa ao limite do suportável, fazendo
simplesmente que o homem aprenda – ou tente aprender – a conviver com esse fardo. Machado,
num pas-de-deux transcendental com o pai da psicanálise, apenas faz mostrar que essa
convivência em nada será atenuada por mil Pai-nossos ou mil Ave-Marias. LAPLANCHE, Jean.
Vocabulário de psicanálise/ Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Lagache; trad. Pedro
Tamen. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, em especial p. 115.

208
passagens bíblicas, recordações sobre ritos e rituais ou mesmo diálogos
imaginários entre deus e o diabo. Na medida em que tratam de textos ficcionais,
ultrapassam a realidade histórica-social e o caráter biográfico do autor. Sob a ótica
literária, procuram anunciar uma “verdade inédita” e “uma compreensão singular
do ser humano”.152
Tais textos distinguem-se dos escritos teológicos – que se pretendem
científicos - como os reunidos pelo cardeal Ratzinger no volume editado em 1992,
aqui utilizado como referência inicial para posicionar o estado da arte do debate
sobre fé, pecado e perdão. Disse o Cardeal que “a atual discussão sobre moral
tende, em grande parte, a libertar homem da culpa, fazendo com que as
condições de sua possibilidade jamais possam existir. [...] Esta maneira de libertar
o mundo é demasiadamente banal. [...] A moral só conserva sua serenidade
quando existe o perdão.[...] Mas só existe o verdadeiro perdão se se pagou um
‘preço’, um valor correspondente, se houve desagravo pela culpa, se existe
expiação. Não se pode romper o entrelaçamento que existe entre moral, perdão e
expiação; se faltar um dos elementos, todo o resto cai por terra. Este círculo
sempre só existe como um todo; depende dele a salvação ou não salvação do
153
homem”. E citando A. Gorres, fez o cardeal uma crítica pontual a Sigmund
Freud, que com suas descobertas psicanalíticas do início do século passado, teria
eliminado o pecado e a culpa do mundo espiritual, ou seja, retirando
arbitrariamente da moral um dos seus elementos fundantes. Esta moderna
ciência, que privilegia a razão, não levaria mais em conta que o sentimento de
culpa não só é necessário como também e principalmente indispensável na ordem
psíquica para a saúde espiritual.
Numa palavra, o papa revela o temor de que o divã tome o lugar do
confessionário: se não há mais necessidade de um padre para receber a
confissão dos pecadores, se não há mais alguém para punir a culpa, se não há
mais o intermediário entre o divino e o terreno, coloca-se em risco a pedra de

152
WILLEMART, Philippe. A pequena letra em teoria literária. São Paulo: Annablume, 1997, p.30.
153
RATZINGER. Op. cit., p. 83-84.

209
toque da religião, qual seja, a salvação pela fé que conduz à morada eterna, ao
céu, ao paraíso.
Que pecados são estes de que fala o papa, para os quais
exclusivamente os padres da igreja estariam habilitados a fornecer o perdão? São
aqueles reconhecidos pela história do catolicismo e reafirmados no Novo
catecismo da igreja católica154 e popularizados como os Dez mandamentos e os
que constituem os chamados pecados capitais.

3. Fé como requisito da criação artística

Ao contrário do que ocorre no plano internacional, onde o tema tem


merecido a atenção de teólogos e literatos,155 ainda não se consolidou na tradição
da crítica brasileira uma área de estudos voltada especificamente para a questão
religiosa do ponto de vista literário. Trabalho pioneiro, o livro O aspecto religioso
na obra de Machado de Assis156 sustenta a hipótese de que a fé em Cristo é uma
157
condição a priori da verdadeira criação artística literária. D. Hugo Bressane
supõe que a “deficiente” formação religiosa de Machado de Assis é a responsável
direta pelo seu ceticismo e que este, desconsiderando a importância do
sofrimento, do pecado e do perdão, estaria na raiz de sua literatura pouco
reveladora da alma humana.
Para o crítico religioso, por ser Machado um “coração de pedra que
jamais gotejou lágrimas [...] diamante a coar um sol frio”, faltou-lhe “uma das
fontes máximas de inspiração do belo artístico” A fonte máxima da inspiração,
capaz de produzir o belo artístico, estaria na dor, no sofrimento, na culpa, no

154
AGNUS DEI. Novo catecismo da igreja católica. Parte 2. Vaticano, 1997. Disponível em:
<www.veritatis.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2005.
155
MANZATTO, Antonio. Teologia e literatura. São Paulo: Loyola, 1994,p.14.
156
BRESSANE ARAÚJO, Hugo. O Aspecto religioso na obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Cruzada da Boa Imprensa, 1939,p.16.
157
Mais recentemente Conceição procura demonstrar que Machado, ao escrever D. Casmurro,
dividiu a trajetória de Bento Santiago em duas fases: a primeira, ordenada, pois que prometido à
igreja de Deus pela vontade de sua mãe. É o mundo das garantias; a segunda, caótica, a partir do
momento em que decide abandonar o seminário, matar Deus e desistir da carreira religiosa em
troca do casamento com Capitu. É a realidade insuportável. Ver mais em: CONCEIÇÃO, Douglas
Rodrigues da. Fuga da promessa e nostalgia do divino. Rio de Janeiro: Horizontal, 2004.

210
perdão, nos sentimentos inculcados pela fé católica (e por todas as demais
religiões) ao homem. Sem esta dor – a mesma dor que Cristo teria sofrido na cruz
– como pode um ser humano saber o que se passa na alma de uma pessoa?
Como pode ter uma compreensão verdadeira do indivíduo? Como pode ter a
pretensão de produzir um belo texto literário?
Ainda conforme o crítico, o que atrai em Machado é tão somente “o
aticismo158 castiço do estilo, a anatomia impassível de paixões burguesas”. Aquilo
que para Bressane é uma falha, a crítica literária aponta como umas das principais
características da beleza do texto machadiano, ou seja, a capacidade da concisão,
do poder de síntese, da descrição precisa e objetiva das situações ou de
personagens. É o “lápis do caricaturista que desenha homens com uma precisão
impressionante e atinge o ponto central das mais ocultas deformidades”.159 Os
estudos de Astrojildo Pereira, Silviano Santiago, Roberto Schwarz e John
Gledson, também já demonstraram que Machado foi um fiel relator das
contradições da sociedade brasileira do século XIX, cuja ideologia liberal escondia
uma realidade baseada em relações escravocratas e de favores. 160
Bressane assegura que o cético Machado não sentiu os nobres ideais
católicos “que em nossos dogmas nobilitantes e confortadores têm um manancial
inesgotável”. O resultado é que o escritor “não vibrou e por isso não faz vibrar”.
Tais ideais estão baseados na fé em Cristo, na remissão dos pecados, na vida
eterna. São estas as fontes inesgotáveis da sabedoria e que somente os crentes
podem assimilar e transpor para a experiência literária. Do contrário, a obra
literária não atinge a sua plenitude, por deficiência de seu autor ou por falta de
conhecimentos religiosos que ele demonstra. É o que ocorre com os livros de
Machado, que “entretêm, mas não elevam, ensinam a língua, mas não tornam
mais homens, não atingem a finalidade última da arte na acepção mais elevada do
termo”.

158
Aticismo: “Estilística, retórica. Estilo próprio aos escritores áticos e que se caracterizou pela
concisão da linguagem”. Cf. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva,
2004.
159
MOOG, Vianna. Heróis da decadência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p.80.
160
GLEDSON, John. Machado de Assis, ficção e História. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p.98.

211
O crítico literário católico lamenta que Memórias póstumas “sejam
refertas de cruas minúcias pecaminosas e que com Quincas Borba e Dom
Casmurro formem uma trilogia indefinível, merencóreo poema cujo refrão
tenebroso é a fatídica palavra insculpida pelo esqueleto que Goya faz surgir do
sono sepulcral: ‘Nada’. [...] Os livros de Machado de Assis resumbram gélido
pessimismo nascido, em parte, da impossibilidade de desvendar os mistérios que
o cercam, o que já é mais uma angústia para o espírito atribulado”. 161

Bressane estaria a exigir de Machado uma literatura cristã que


reverenciasse e homenageasse Deus e a sua igreja, que fizesse voto de louvor à
fé e à ressurreição. Esta seria a verdadeira, a boa literatura. Mas o romancista
brasileiro pratica singelamente a literatura pagã ou secular que não se preocupa
diretamente com as coisas da religião. Os personagens de Machado não
debatem a existência ou presença de deus, não porque estejam convencidos,
assim como está Latapí Sarre, de que deus está entre eles, manifesto em tudo de
bom e generoso que os rodeia;162 o que ocorre é que a “presença/ausência” de
deus não é determinante para o curso de suas trajetórias. Se há um
entrelaçamento entre literatura e teologia, e é isto que a teopoética busca
demonstrar, ele pode ser localizado na existência dos temas teológicos nos textos
literários. Isto é, deus, fé, igreja, pecado, sofrimento, culpa e perdão - temas
fundamentais da teologia - estão presentes na escritura pagã. É isto que a teologia
oferece à literatura, e o escritor, por sua vez, trata tais temas de forma positiva ou
negativa ou ainda como um absurdo, mas eles estão presentes em sua obra.163

4. Homens (e mulheres) de pouca fé

Logo no primeiro capítulo de Memórias póstumas, ao tratar do óbito do


autor, Brás recorda que tanto nas Memórias quanto no Pentateuco, os autores
contam a sua morte. A diferença entre elas é que Moisés a colocou não no intróito,
161
BRESSANE.Op.cit. p.16.
162
SARRE, Pablo Latapí. La clave de la metáfora. In: Revista Processo, 23 dez. 2001. México:
2001. Disponível em: <http://www.proceso.com.mx/hemerotecaint.html?arv=126822>. Acesso em:
17 dez. 2005.
163
MANZATTO. Op.cit., p. 66.

212
mas ao final. Brás se compara a Moisés e seu relato ao antigo livro das leis. Mais
do que soberba, é possível considerar que o paralelo com as Escrituras tem como
intenção a banalização do livro sagrado e revela uma “satisfação maligna de
rebaixar e vexar, de anunciar que os desplantes do narrador não vão se deter
diante de nada, que não ficará pedra sobre pedra.164
Brás morre de uma idéia fixa: inventar um remédio que aliviasse a
melancólica humanidade. Para conseguir a patente, usa em falso o nome do filho
de deus. O resultado pretendido era “verdadeiramente cristão”. Na intimidade
confessa: pretendia mesmo era o lucro e a fama. Quando delira, Brás assume a
forma de um livro, que imobiliza completamente seu corpo, idêntico ao fenômeno
que a medicina moderna identificou como paralisia do sono.165 O livro é a Suma
Teológica, de S. Tomás.
Quando do nascimento de Brás, o seu tio, padre Ildefonso, prognostica
que o menino será cônego ou bispo. O tio cônego fareja no sobrinho não uma
vocação, mas uma carreira.166 As orações que sua mãe lhe ensina são inúteis ao
“menino diabo” que, com o perdão do pai, ora quebra a cabeça de uma escrava,
ora faz de besta o negrinho Prudêncio. Dá mais ouvido às estórias eróticas
contadas por seu tio João do que à austeridade do tio cônego, este um “espírito
medíocre” e subalterno, preocupado tão somente com o lado externo da igreja.
Adolescente, com dezessete anos, apaixona-se pela cortesã Marcela,
um sentimento semelhante ao “efeito do primeiro sol na criação bíblica”. Quando
vai estudar direito em Coimbra, imagina que poderia ser bispo, desde que este
cargo lhe trouxesse uma posição superior qualquer. De volta ao Brasil, participa
do enterro de sua “santa mãe” e depois descansa na chácara da Tijuca. Volta,

164
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2000. (Coleção Espírito Crítico), p.21.
165
“As alucinações relacionadas ao sono e a paralisia do sono podem ocorrer simultaneamente,
produzindo uma experiência, em geral terrível, de ver ou ouvir coisas incomuns e ser incapaz de se
mover. Tanto as alucinações relacionadas ao sono quanto a paralisia do sono duram de alguns
segundos a alguns minutos e terminam espontaneamente. Ambos os fenômenos (imagens mentais
vívidas e atonia dos músculos esqueléticos) supostamente resultam da intrusão de elementos
dissociados do sono REM na vigília”. Ver mais em: PSIQWEB.Transtornos primários do sono.
Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/dsm/sono2.html>. Acesso em: 10 jan. 2006.
166
FAORO, Raymundo.Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4. ed.rev. São Paulo: Globo,
2001, p.498.

213
segue para a Corte, após ouvir uma misteriosa voz que lhe sussurrou as palavras
da Escritura (At, IX, 7): “Levanta-te e entra na cidade”;167 lá estaria a sua salvação:
uma cadeira na Câmara dos deputados, a fama e o reconhecimento público. O
casamento com Virgínia, filha do Conselheiro Dutra, tornaria apenas mais rápida a
sua trajetória política.
O casamento, entretanto, não acontece, Mas Virgínia torna-se sua
amante. O romance com Virgília, embora contrariasse as normas legais, morais e
sociais não se constituía nem em crime e nem desonra para Brás. Virgília, casada
com Lobo Neves, era um “diabrete angélico”, amante do outrora “menino diabo”.
Se Brás acredita que Virgília amava-o por “vontade do Céu”, nem por isso deixava
de relativizar as virtudes católicas da mulher: ela é apenas um “pouco religiosa” e
prefere ir à igreja em dia de festa, mas só se encontrar algum lugar vago em uma
tribuna.
Para resguardar a segurança do romance, Brás adquire uma casa, que
abre para os dois a expectativa de um mundo novo. Era ela um santuário, o
infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, em suma, uma “habitação dos
anjos”, sem leis, sem instituições, um só mundo, “a unidade moral de todas as
cousas”.
O humanitismo, filosofia criada por Quincas Borba e da qual Brás se
torna adepto, seria também, no futuro, também uma religião, “a única verdadeira”,
distinta do cristianismo, pois este “é bom para as mulheres e os mendigos”. As
demais religiões têm o mesmo defeito do cristianismo: “orçam todas pela mesma
vulgaridade ou fraqueza”. Se por princípio tal filosofia é adversa ao catolicismo,
nem por isso o seu fundador deixa de buscar nas passagens bíblicas a metáfora
para os acontecimentos do presente. Assim, quando a irmã de Brás impõe-lhe o
casamento com Nhã-loló, sobrinha de Cotrim, Quincas Borba exclama: “Compelle

167
Saulo foi o nome de batismo do apóstolo Paulo. Ele entrou na história a partir do relato de sua
conversão: ele havia recebido autorização do sumo sacerdote, em Jerusalém, que era a maior
autoridade religiosa entre os judeus, para prender e torturar os cristãos que se encontravam em
Damasco. Quando ele se aproximava da cidade, "uma luz do céu brilhou ao seu redor e, caindo
por terra, ouviu uma voz que dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? Ele perguntou: Quem és
tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus a quem tu persegues; mas levanta-te, e entra na
cidade, onde te dirão o que te convém fazer".

214
intrare”, sem deixar de provar que o apólogo evangélico “não era mais do que um
prenúncio do humanitismo, erradamente interpretado pelos padres”.168
O cunhado Cotrim é o empresário capitalista que ficou rico
contrabandeando escravos e tornou-se fornecedor da Marinha (por influência de
Brás quando deputado). Embora mandasse com freqüência escravos ao
calabouço “donde eles desciam a escorrer sangue”, Cotrim não deixava se ser
uma boa pessoa, e prova disso é que era tesoureiro em uma confraria e pertencia
a diversas irmandades. Este mesmo caminho foi traçado por Brás Cubas.

5. Considerações finais

Do ponto de vista literário, o relato contido nas Memórias póstumas


caracteriza com propriedade a estrutura da sociedade brasileira do século XIX. A
forma escolhida por Machado para a narrativa - a volubilidade do narrador –
corresponde à realidade histórica daquele período. Esta aproximação mimética
entre ficção e realidade configura a redução estrutural pela qual o texto histórico
transforma-se em texto literário.169
No que se refere ao objeto deste estudo, constata-se no conjunto da
atuação dos personagens que há um progressivo processo de decomposição da
fé, há um mundo sem deus e sem pecado, isto porque “Deus não só está mudo,
senão que se ausentou do destino dos homens”.170
É possível dizer que na escritura de Machado não há espaço para
qualquer sentimento de culpa quando os personagens transgridem as normas
legais, sociais, culturais, morais ou religiosas. O autor “dá muito pouca relevância
à questão da culpa – num reformador como ele, talvez quisesse chocar, dando às

168
“Compelle intrare. Obriga-os a entrar. Expressão de Cristo (São Lucas, XIV, 23) referindo-se
aos convidados para o festim. Aplica-se à insistência de alguém em procurar fazer outrem aceitar
algo cujo valor desconhece”.
169
CÂNDIDO, Antônio. “Dialética da Malandragem”. In: O Discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993,p.33.
170
FAORO. Op.cit., p. 434.

215
leitoras, na contestação à ordem estabelecida, à moral vigente, uma sensação de
normalidade”. 171
Pelos motivos, razões e fundamentos expostos, o estudo buscou
elementos que indicam a existência de um real confronto entre o texto literário e a
pregação teológica, ou seja, um campo de tensão que desobriga os personagens
a obedecerem aos ensinamentos religiosos, estejam eles contidos nos Dez
mandamentos ou no index dos Pecados capitais. O que Machado apresenta,
como síntese da experiência de Brás, é um simples nada, terreno ou eterno, sem
Deus ou piedade, sem culpa ou necessidade de perdão. Sobressai-se no texto
machadiano, e em particular nas Memórias póstumas, a crítica à Igreja, a
manipulação pela fé e a descrença na ordem divina, que pressupõe o perdão a
tudo. 172

171
FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre
psicanálise e literatura. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p.94.
172
PIZA, Daniel. Machado de Assis: um gênio brasileiro. São Paulo: IOESP, 2005, p.15.

216
LITERATURA E
(DES)CONSTITUIÇÃO DO
SAGRADO

CLAUDEMIR FRANCISCO ALVES

217
LITERATURA E (DES)CONSTITUIÇÃO DO SAGRADO
Claudemir Francisco Alves
PUC Minas – Faculdade de Letras/UFMG

Não é sem causar perplexidades que, nos últimos decênios, vem se


assistindo a uma atenuação dos interditos filosóficos que pairavam sobre a
religião. Em um ensaio publicado no final dos anos 90, o sociólogo Zygmunt
Bauman afirma que as tentativas de enquadrar a religião em uma definição,
freqüentes na modernidade, atualmente mostram-se mais “sensatamente
consciente[s] da tendência das definições a esconder tanto quanto revelam e
mutilar, ofuscar enquanto aparentam esclarecer e desenredar”173. Bauman afirma
também que a impossibilidade de a “rede lingüística” não esgotar a totalidade da
experiência humana é um postulado cada vez mais aceito (não raramente, de
modo acrítico) e, freqüentemente, tem-se recorrido a termos como “inefável” ou
“indizível”, que, há bem pouco tempo, não se esperaria encontrar em abordagens
antropológicas, psicológicas, sociológicas ou filosóficas que buscassem discutir a
religião correspondendo ao “ideal científico”.
Embora continue sendo necessário, no que diz respeito ao modo como
a religião é tratada atualmente, evitar qualquer asserção universalizante, cuja
sustentabilidade seria duvidosa, pode-se relacionar essas mudanças com outras
mais amplas que atingem conceitos fundamentais, como o de razão e de ideal de
racionalidade científica, que a modernidade se ocupara em erigir, segundo os
quais qualquer expressão religiosa seria mera superstição. O fato é que as
condições gerais da cultura ocidental contemporânea têm acrescentado
dificuldades àqueles que insistem em entender essa experiência humana.
Persiste, apesar das muitas tentativas de resposta, a pergunta pelo que
distinguiria o sagrado de outros aspectos da cultura e que relação haveria entre
estes e aquele. Encontram-se os que dissolvem a questão em traços universais,
transcendentais e definitivos de modo que o sagrado se torna algo tão abstrato e
controverso que deixa de ter qualquer aplicação. Mas há também os que

173
BAUMAN. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.205.

218
particularizam esse conceito a ponto de reduzi-lo a um conjunto de crenças ou de
práticas específicas.
É construindo uma via entre esses extremos que a noção de sagrado é
discutida no presente texto, partindo do fato de que, na pós-modernidade, assiste-
se a um recrudescimento do fascínio pelo sagrado, experimentado pelo senso
comum, mas também pelos pensamentos filosófico e científico. Pretende-se
relacionar as mudanças na percepção do sagrado – que, há não muito tempo, fora
tratado como algo absoluto, totalmente diferente do humano – com os tempos
atuais em que ele aparece como um imanente objeto relacional. Constata-se que
tanto no primeiro caso como no segundo subjaz a idéia do sagrado como um
princípio ordenador ou um ponto de orientação, algo a partir do qual é possível
localizar-se existencialmente no tempo e no espaço físico-sociais, mas esse
aspecto comum não impede a ocorrência de distintos desdobramentos em um e
outro modelos.
Deseja-se destacar, como elemento de comparação com a atualidade,
uma atitude epistemológica que se caracteriza pela confiança no conhecimento
produzido pelo sujeito, na experiência como critério da verdade e na razão como
medida de todas as coisas. A circunscrição dessa atitude em um período histórico
oferece alguma dificuldade, pois pode ser encontrada desde o início do que,
comumente, se chama de “Idade Moderna” até os dias atuais e constitui
pressuposto de várias correntes e sistemas filosóficos. De qualquer modo, importa
dar visibilidade ao fato de que as pretensões de objetividade e de esgotamento do
real são vistas atualmente com maior desconfiança e com uma consciência mais
nítida de que – dada sua inerente e inevitável narratividade – todo conhecimento
é, antes de tudo, uma construção e uma postulação sobre a realidade. Nenhum
conhecimento pode escapar à fabulação operada pela linguagem, do mesmo
modo que sua historicidade e contingência não lhe permitem ser neutro ou
alcançar imparcialidade.
Torna-se, pois, relevante rever uma certa tradição de estudos sobre o
sagrado conformada por Durkheim174, Otto175 e Eliade176 no início do século XX,

174
DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.

219
com o intuito de avaliar de que maneira a experiência contemporânea afeta a
própria compreensão do sagrado. Com efeito, pode-se deduzir da leitura desses
autores que sagrado é o que, colocando-se fora da história e da cultura e
pretendendo-se objetivo, real e absoluto, se apresenta como princípio organizador
da existência humana. É o que distingue tempos no tempo e espaços no espaço,
atribuindo-lhes um caráter diferenciado e elevando-os a um estatuto ontológico
superior, em oposição a outros tempos e espaços considerados comuns e
corriqueiros. O sagrado, pretensamente estável e permanente, seria, então,
considerado, por quem nele crê, capaz de dar legitimidade ao modo de
organização da sociedade em que está inserido e de garantir a identidade que
permite a tal grupo dizer, de um espaço físico socialmente ordenado, “nosso
mundo”, distinguindo-o do que se acredita não poder ser assim denominado.
Um modelo como esse, que eleva o sagrado à ordem do eterno, da
certeza, da verdade única e unívoca e do que protege do caos, defronta-se,
inevitavelmente, com um modelo caracterizado pela pluralidade, como é o
contemporâneo, em que a própria idéia de realidade entra em crise e passa a não
coincidir “necessariamente com aquilo que é estável, fixo, permanente, mas tem a
ver com o acontecimento, o consenso, o diálogo, a interpretação”177. O tempo e o
espaço não são mais considerados diferenciáveis nem por uma característica
intrínseca e essencial, nem pela manifestação de uma força misteriosa que lhe
imprima um caráter distinto. Fala-se, com maior freqüência, em tempos e espaços,
cujo caráter especial (transitório) incorpora-se às convenções de um dado grupo
social. O sagrado passa a ser paradoxalmente concebido como contingente,
relativo e não como absoluto.
Para analisar mais detidamente alguns desses aspectos que apontam
para uma modificação na maneira como o sagrado é vivenciado atualmente,
elege-se, como objeto de análise, a forma como o sagrado é representado em
obras literárias. É necessário ressaltar que não se entende com isso que um texto
literário represente especularmente a cultura em que foi produzido, o que suporia

175
OTTO, Rudolf. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992.
176
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
177
VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D’Água, 1992. p. 17.

220
uma posterioridade do texto em relação a ela. Ao contrário disso, o texto ficcional
pressupõe sua própria situação comunicacional. Como afirma Stierle178 , o ficcional
não se deixa corrigir pela experiência do mesmo modo que não se deixa transpor
para o conhecimento, desligando-se de sua ficcionalidade. Além disso, a própria
unidade formal de uma obra de ficção constitui uma relação específica, não
imediatamente transponível nem passível de generalizações lineares. Ao contrário
de uma posição naturalista e realista que se fundamenta na expectativa de uma
paridade bipolar e unívoca entre o signo lingüístico e uma realidade, concebe-se o
texto, aqui, como um “arranjo configurante”179 que une uma sucessão de eventos,
transformando-a numa totalidade. Tal totalidade, entretanto, só é inteligível por
estar ligada a um sistema simbólico, cujas contingências históricas e culturais
constituem uma espécie de contexto, o qual pode ser idêntico ou distinto nos
momentos da produção e da recepção da obra.
Assim, os textos literários tomados a seguir, não são entendidos como
espelhos da “realidade” que constitui o objeto deste estudo. Eles não se limitam a
refletir as contingências do modo como o sagrado é atualmente percebido, mas
são uma reprodução (no sentido de que produzem uma outra vez) dos fatos em
sua tessitura. O ato narrativo – como, ademais, toda linguagem – é uma
postulação prévia sobre os fatos narrados, pois não se limita a concatená-los; ao
configurá-los, os interpreta, avalia e, desse modo, os constitui.
É com tal concepção da complexa relação entre o texto literário e suas
múltiplas referências que aqui se propõe, primeiramente, a releitura de Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar180 . A intensidade dramática desse texto – em que é
narrada a história de um jovem, filho de uma família de ascendência árabe,
imigrada para um ambiente predominantemente cristão – é devida, primeiramente,
à escolha cuidadosa de cada palavra, numa composição em que a narrativa e o
lirismo se misturam. Em meio a uma profusão de imagens e metáforas, um
narrador convulsivo e impetuoso deixa entrever os acontecimentos que envolvem

178
STIERLE, Karlheinz. Que significa a recepção dos textos ficcionais? In: LIMA, Luiz Costa. A
literatura e o leitor. 2.ed.rev.ampl. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 119-171.
179
RICOEUR. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v.1. p.106.
180
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3.ed.rev. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

221
essa família, ao mesmo tempo revelando-os e ocultando-os. Essa atmosfera de
mistério que envolve o leitor – desafiado a perseguir evidências apenas
nuançadas e a construir, de conjectura em conjectura, a compreensão dos
acontecimentos – persiste mesmo ao final da seqüência narrativa e é reforçada
por comportamentos ritualísticos dos personagens, pelos sermões em que
predominam as anáforas e o tom profético, e pela recorrência de temas míticos,
como a ordem, o caos, o incesto. Reforça-se esse misticismo pelo arcaísmo a que
também o título do livro remete, no qual estão implicadas, simultaneamente, as
idéias de precariedade e de originalidade primordial. São numerosas as
referências ao Alcorão e à Bíblia, merecendo particular destaque a
intertextualidade do romance com a parábola do filho pródigo e as demais
parábolas da misericórdia, que ressaltam a alegria do reencontro de algo já
considerado perdido. Bem cedo, porém, o romance se distancia dessas parábolas,
pois o discurso do personagem e narrador André, que define a si mesmo como
ensandecido e demoníaco, parece conduzir o leitor (os críticos literários inclusive)
a entendê-lo – em relação aos “textos sagrados” – como uma profanação.
Em Lavoura arcaica, o sagrado coincide com a idéia de um princípio
ordenador teleologicamente orientado, que se formula na concepção de uma
dupla determinação que tudo afetaria: pressupõe-se que todo ser tem uma
natureza a realizar e está determinado em sua origem e em seu destino.
Distinguem-se, contudo, duas formas de relacionamento com essa ordenação
universal. Para Iohána – o pai –, a conformidade com a ordem que ele enxerga
presente em tudo é condição para a sabedoria, a felicidade e a imortalidade.
Percebe-se que, para Iohána, é possível decidir entre viver ou não em
conformidade com essa determinação natural, desde que se saiba que nenhuma
infringência aos princípios da natureza ficará sem castigo: há ineludível
pagamento para toda insubmissão. Também André – o filho – tem uma concepção
de destinação. Para ele, no entanto, não há aprendizado possível na conformação
à ordem concebida pelo pai. Ao contrário, a determinação na origem implica
também a determinação no destino, logo não pode haver liberdade e, daí ele
conclui, nem responsabilidade pelo que lhe sucede. A obediência à lei, longe de

222
ser condição para a sabedoria, para a felicidade e para a imortalidade, produz
exatamente o efeito contrário do que propõe: as “leis [de Deus] são a lenha
resinosa que alimenta a constância do Fogo Eterno”. Esses dois modos diversos
de relação com o sagrado que se delineiam levam à constituição de escalas de
valores morais distintas. Enquanto Iohána apresenta a transcendência, a
universalidade e a inexorabilidade dos princípios que ele julga garantirem a ordem
natural e das relações humanas, André põe em pauta as demandas do indivíduo.
A compreensão da noção de sagrado que pode ser identificada em
Lavoura arcaica, pela evidenciação das diferenças e inter-relações entre o modelo
do pai e o modelo do filho, segundo os quais tal noção se configura, contribui para
entender as mudanças contemporâneas, em que não há mais uma oposição
simples e evidente entre sagrado e profano, mas sim um sagrado plural, em que
os princípios religiosos e éticos são postos em diálogo com exigências
particulares.
André não deseja se estabelecer radicalmente fora dos valores
familiares ou negá-los completamente. Não é à destruição dos princípios que
André visa, mas sim à sua flexibilização e a mostrar que a verdade do pai convive
com outras verdades. O discurso de André não é niilista. Constrói uma realidade
paralela: a sua realidade. Parece coerente afirmar que há no romance não o
confronto entre o sagrado e o profano, mas entre os modos distintos de pai e filho
pensarem dever ser a relação com o sagrado, com os princípios que eles julgam
fundamentar a ação e a existência.
Não é possível considerar profano o discurso de André, pelo menos se,
com esse termo, se entende uma supressão do sagrado. Todo seu discurso está
marcado por figuras religiosas. Mesmo se o conteúdo é a blasfêmia, ainda assim
(e por isso mesmo) a fala do personagem permanece no âmbito do sagrado, em
que se distinguem o bem e o mal, sadio e doentio, deus e o diabo. André não
representa o profano numa contraposição ao sagrado do domínio paterno, mas
sim uma outra concepção de sagrado. Ele não se coloca fora do âmbito do
sagrado, mas representa uma proposição que não se define como o “totalmente

223
outro”, absolutamente distinto do profano. Antes, constitui-se como um sagrado
relacional, referido às necessidades de quem a ele recorre.
Não é mais o sagrado das antinomias e antagonismos presentes em
definições como as de Otto, Durkheim e Eliade: sagrado e profano, real e irreal,
bem e mal, certo e errado. Tornaram-se tênues as fronteiras entre esses pares de
conceitos, colocando em questão a validade de semelhantes categorias. No
modelo proposto pelo personagem André já não há um conjunto de categorias
binárias que tudo resolvem pelo princípio do terceiro excluído (bem ou mal, certo
ou errado, construtivo ou destrutivo etc.); o equilíbrio dual cede lugar à pluralidade:
“a realidade não é a mesma para todos”181; ao contrário, é “modelável nas mãos
de cada um”182.
Expressa-se, em Lavoura arcaica, o difícil equacionamento entre o uno
e o múltiplo. O sagrado do pai arroga para si a unicidade: coincide com o infinito e
o eterno; coloca-se fora de todo condicionamento cultural, fora do tempo e do
devir. Qualquer coisa que se apresente como diferente dessa unicidade é
considerada não apenas como diversidade, mas como dissidência e representa
uma ameaça. Seguir a lei é legitimar uma visão de mundo, uma moral, um sistema
simbólico; não segui-la é mostrar a fragilidade desse sistema, sua impossibilidade
de fundamentação, é deslegitimá-lo. O filho torna-se execrável aos olhos do pai,
porque, em última análise, mostra a fragilidade do modelo deste. Aos olhos de
André, porém, o modelo do pai só é execrável porque se impõe sobre os demais
membros da família, arrogando para si o status de verdade única. O sagrado de
André não tem prerrogativa de absoluto. Propõe-se como um modelo entre outros.
Só não pode conviver com o monismo do pai.
Algo bem distinto pode ser encontrado em Centúria – cem pequenos
romances-rio, do italiano Giorgio Manganelli183. Trata-se de um conjunto de cem
contos com extensão de pouco mais do que uma página. A ação concentrada e
abreviada e personagens apenas tracejados transferem a atenção para as

181
NASSAR. Lavoura arcaica, p.166.
182
NASSAR. Lavoura arcaica, p.44.
183
MANGANELLI, Giorgio. Centuria; cento piccoli romanzi fiume. Roma: Rizzoli, 1979. (Trad. bras. por
Roberta Barni: Centúria; cem pequenos romances-rio. São Paulo: Iluminuras, 1995.)

224
lacunas, o silêncio, a esquiva e a reticência. Poder-se-ia afirmar mais
propriamente tratar-se de uma antinarrativa em que se valoriza não a capacidade
de contar histórias ou o seu conteúdo, mas sim o “gesto” pelo qual são narradas,
um certo procedimento com a linguagem e uma determinada maneira de concebê-
la. O postulado central da obra de Manganelli é a convicção de que toda obra
literária oferece, em primeiro lugar, a linguagem. Trata-se da invenção (ou
destruição) de estruturas narrativas por meio de deslocamentos e de distrações
calculadas em que diversos procedimentos são empregados para afastar
constantemente do tema a atenção do leitor, eludindo a comunicação direta e
evidenciando a artificialidade do universo de palavras que é o texto. Tal
perspectiva traz implícita a convicção de que, não apenas a literatura, mas todo
texto, toda formulação lingüística é ficcional: “a artificialidade do discurso humano
toca todas as coisas, as deforma e adorna”184.
Um outro importante pilar da obra manganelliana é a recusa ao
logocentrismo, isto é, à expectativa nutrida pelo senso comum – mas também por
certas tradições dos pensamentos filosófico e científico – da existência de uma
relação direta e natural entre a linguagem e o sentido; de que há uma realidade
que cumpriria o papel de lastro da linguagem, garantindo-lhe valor. O que se
aceita corriqueiramente como verdade é apenas a eleição arbitrária de um
artefato, construído segundo regras estabelecidas pela lógica, que ao invés de
revelar uma propensão natural do ser humano para a verdade, se apresenta
apenas como atribuição de maior valor a determinados aspectos dados como
certos por um assenso coletivo. Para Manganelli, ao contrário da
incompreensibilidade, da solidão e da loucura com que os “defensores do logos”
ameaçam os que se põem fora de tal assenso coletivo, trata-se de ampliar a
noção de realidade atribuindo valor também ao que escapa à ordem do sentido.
O sagrado que surge na obra de Manganelli traz as marcas do embate
com essas questões. É fruto de uma realidade e de uma linguagem intensamente
problematizadas. A maneira como a experiência religiosa é figurada em Centúria
se põe na contramão daquilo que tradicionalmente seria considerado sagrado por

184
MANGANELLI. La letteratura come menzogna. Milano: Adelphi, 1985. p. 18.

225
situar-se fora da história e da cultura, por pretender-se um princípio objetivo, real e
absoluto de organização da existência humana. Diferentemente de uma urdoxa
(opinião primordial) ou de um princípio suficiente de legitimação e de proteção da
ordem, o sagrado se torna imanente, relativo e incapaz de constituir uma ontologia
de tempos e espaços a partir dos quais seria possível obter orientação. O homem
manganelliano vive no caos do movimento permanente e não sente necessidade
de pontos fixos ou de tempos especiais. Não há realidade paradigmática com que
se conformar, caindo no vazio, em razão disso, qualquer pretensão à verdade.
Parece emblemática a centúria Quatro em que se narra a história de um
homem que havia descoberto a prova irrefutável da existência de Deus, mas,
depois de sair de casa para ocupar-se com os afazeres do cotidiano, percebe que
esqueceu partes da exata formulação da demonstração. Ainda que da
argumentação resultasse algo inatacável e “indiscutivelmente verdadeiro”, a
verdade – ou a descoberta de Deus – estava irremediavelmente perdida já que era
“impossível de se fixar numa fórmula inesquecível”.
Na impossibilidade de legitimação de qualquer verdade, postula-se a
“fundamental inexatidão do universo”. Nada havendo além de acordos provisórios
e desconfiáveis, lugares e tempos que se pretendam absolutos não podem ser
senão “uma estação de trânsito para o nada”. Incapaz de oferecer a orientação e a
estabilidade prometidas, o espaço sagrado pode ser substituído por qualquer
outro, como se narra no conto Oitenta, em que um guardião de banheiros públicos
considera seu mictório como “uma igreja e a si próprio oficiante”. A
autoconsciência produzida no banheiro não encontraria paralelo em nenhuma
igreja, pois ali o homem não pode mentir ou deixar de se reconhecer “criatura,
trânsito de alimentos, perecedouro”. Ao contrário, o lugar que se propunha
sagrado – forte, significativo, “realmente existente”, revelador de uma “realidade
absoluta”, como definido por Eliade − é apresentado como falso e enganador.
As centúrias manganellianas desenham uma crise da noção de sagrado.
Este cede seu lugar a marcos imanentes, provisórios e substituíveis. Não há
princípio orientador nem legitimação extrínseca para que se postule a verdade;
nada há que se possa pretender estável pondo-se fora das regras da linguagem e

226
do discurso que tudo permeia e tudo contamina com sua contingência e
relatividade. Nem por isso os personagens manganellianos aspiram a novas
tábuas de valores que recoloquem o desejo de uma existência dotada de sentido.
Em suma, Centúria e Lavoura arcaica apresentam diferentes maneiras
de vivência do sagrado que parecem coexistir atualmente. Centúria apresenta um
momento em que o sagrado não é mais postulado senão como definitivamente
perdido e impossível de ser resgatado sem o recurso à falsificação, à mentira e à
enganação. Nada há que possa se colocar fora das contingências cotidianas. Não
há realidade sem a cicatriz indelével da linguagem. Não há verdade que escape à
arbitrariedade do discurso.
Distintamente, em Lavoura arcaica, o domínio paterno parece coincidir
com a forma como o sagrado foi tradicionalmente entendido, com sua pretensão
de universalidade e necessidade, mas no conflito entre André e Iohána, o sagrado
deslocou-se do centro, cedendo esse lugar para o indivíduo. Não são mais os
princípios decididos heteronomamente, mas cada qual nomeia para si o que deve
ou não ser tomado como valor. Ao invés do solilóquio e do monismo que
preconizam a sacralidade da fazenda, da casa, da mesa, da família, André
contrapõe a afirmação de que são “também coisas do direito divino, coisas santas
os muros e as portas da cidade”. É, assim, reposto o sagrado, mas agora
revestido de relatividade.
Resta saber se esse sagrado – estilhaçado e despojado de suas
referências ontológicas em semelhantes noções – não representa a dissolução de
si mesmo.

227
A VIRTUOSA GRAÇA DA
REFLEXÃO PELA HUMORÍSTICA
GRAÇA DA CONTESTAÇÃO:
MOACYR SCLIAR E SEUS
PROFETAS

TONY ROBERSON DE MELLO


RODRIGUES

228
A VIRTUOSA GRAÇA DA REFLEXÃO PELA
HUMORÍSTICA GRAÇA DA CONTESTAÇÃO: MOACYR SCLIAR E
SEUS PROFETAS

Tony Roberson de Mello Rodrigues (UFSC)

Perguntar é desafiar o absurdo185.

Iniciei o presente trabalho com a leitura prazerosa de uma coletânea de


contos do escritor Moacyr Scliar186 . Ao ler (e reler) o livro percebi que muitas das
histórias apresentam-se sob a tríade da religião, da ficção e do humor, dentre elas
o conto Os Profetas de Benjamim Bok, ora em análise enquanto discurso
teopoético.
Considerando a Teopoética como “[...] análisis literários efectivados por
medio de uma reflexión teológica y de um diálogo interdisciplinario posible entre
Teologia y Literatura”187 , parto do princípio de que:

a) o gênero ficcional do texto analisado não apenas reflete o estilo do


autor como também propicia trabalhar temas nem sempre palpáveis da condição
humana, como o sentimento e simbolismo religiosos;

b) o humor empregado em Os Profetas de Benjamim Bok não apenas


reflete o humor judaico característico da obra de Scliar, como também confronta
os elementos do discurso religioso contido no texto e, a partir de então, fomenta a
reflexão sobre este discurso;
185
SCLIAR, Moacyr. A Condição Judaica; das tábuas da lei à mesa da cozinha. Porto Alegre,
L&PM, 1985, p. 10.
186
SCLIAR, Moacyr. Melhores Contos, 4ª edição, São Paulo, Global, 1996.
187
FERRAZ, Salma. Teopoética: los estúdios literários sobre Dios. In: Revista de Divulgação
Cultural, nº. 86, ano 26, Blumenau, Santa Catarina, FURB, 2005, p. 15.

229
c) são a ficcionalidade e o humor empregados na estrutura que
possibilitam a reflexão séria do tema religioso.

Para melhor ilustrar tais conceituações, faz-se necessário primeiramente


apresentar um resumo do conto e, a partir deste ponto, entrelaçar religião e
literatura na análise realizada. Confesso, entretanto, minha expectativa em
analisar um conto cujo escritor não apenas respeito, por ser um dos maiores
contistas da literatura brasileira contemporânea, como também admiro, pelo
prazer que a leitura de sua obra propicia. Porém, cabe agora cumprir o chamado e
colher a inegável benesse do aprendizado.
Os Profetas de Benjamim Bok apresenta a história de Benjamim Bok,
“[...] um homem pequeno e magro, calvo e de nariz adunco, muito feio – e ainda
por cima vivendo a crise da meia idade – e também sofrendo de úlcera gástrica
[...]”, por demais angustiado com a situação em que se encontra: espíritos de
profetas bíblicos do Antigo Testamento, sem nenhum memorando ou aviso prévio,
possuem-lhe o corpo para pregar contra a iniqüidade humana.
Tais possessões geram não apenas angústia, como as mais variadas
confusões para Benjamim que ao longo do texto é várias vezes definido – tanto
pelo narrador como por personagens da história – como um homem com quadro
emocional abalado, na maioria das vezes associado à idéia de revolta e loucura:
nervoso, revoltado, meio louco, perturbado, calado, de sono agitado e maluco são
alguns exemplos dessa associação.
O interessante é que o quadro psicológico do personagem serve não
apenas para mostrar sua exclusão, mas principalmente para realçar a postura de
não questionamento dos outros. No começo do texto, Benjamim intercala durante
conversas uma voz esquisita, fala palavras em hebraico, mas Paulina não sabe
que o marido “[...] jamais aprendera hebraico [...]” porque não pergunta sobre isso.
Tal qual os pais de Benjamim, que “[...] não faziam questão disso [...]”. Quando o
profeta Ezequiel fala pela boca de Benjamim no episódio da churrascaria, “[...]
ninguém estranhou a sua esquisita intervenção [...]” porque, na frase anterior,

230
Benjamim “[...] era considerado meio louco [...]”, ao passo em que, na frase
posterior, “[...] a ninguém ocorreu ligar a expressão com a profecia de Ezequiel
[...]”. Sua incompreensão, inclusive, perdura até o final do conto, pois “[...] ninguém
o compreendia, nem mesmo o jovem psiquiatra que o tratava [...]”. Ou seja, a
loucura de Benjamim – que o leva ao hospício – se deve, em grande parte, à não
reflexão dos outros sobre seu problema.
O não questionamento é explorado, porém, não apenas como status
quo das personagens, mas também como pano de fundo para Scliar lançar, já no
início do conto, um dogma para ser debatido: a possessão espiritual como obra
demoníaca.
Além da voz rouca, das falas em hebraico que ninguém entende – e
cuja língua Benjamim não aprendera - o autor reforça, na relação conflituosa entre
Benjamim e os profetas ao longo da narrativa, a condição de possessão espiritual.
Para ilustrar cito duas passagens:

a) “Dois profetas tentavam tomar posse dele ao mesmo tempo [...]


amaldiçoavam-se, disputando o escasso espaço interior do pobre
Benjamim Bok [...] pés calçados de sandálias pisavam-lhe as vísceras,
gritos ressoavam-lhe no crânio”. (p. 204, 205)

b) “[...] quando os profetas se apossavam dele, quando falavam por sua


boca, ele não sofria; tornava-se então uma carcaça oca, uma espécie de
armadura que os espíritos utilizavam.” (p. 206)

Caracterizada a situação da possessão, cabe lembrar agora o caráter


diabólico comumente atribuído às possessões espirituais. Em O Diabo no
imaginário cristão188, o pesquisador Carlos Nogueira apresenta uma lista com 17
manifestações enumeradas por teólogos medievais para identificar a possessão
diabólica, das quais cito uma:

"5. Quando se exprimisse em grego, latim ou outro idioma que jamais


houvesse aprendido, ou lesse, escrevesse, cantasse musicalmente e
realizasse outras coisas que não se lhe houvessem sido ensinadas."
(p.57)

188
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. O Diabo no imaginário cristão. Bauru, SP, EDUSC,
2002.

231
No conto, entretanto, são profetas e não demônios que possuem o
corpo de Benjamim. E não apenas em uma língua a qual este não havia aprendido
(cois´dudêmo?), mas principalmente por comunicar-se em hebraico, a língua
falada por profetas bíblicos, utilizada na própria composição da Bíblia e vista
dentro do judaísmo como língua sagrada189, ou seja, Scliar utiliza o sagrado para
realçar o diabólico.
Talvez uma ironia do autor – afinal a possessão dantes diabólica
poderia ser compreendida agora (pelo possuído e pelo leitor) como uma
convocação divina. Ou teria Scliar, por exemplo, a intenção de mostrar que o
caráter diabólico da possessão pode estar relacionado ao autoritarismo do
possuidor perante o possuído - que não recebe nenhum fax ou sonho prévio, é
possuído e pronto – e que a palavra divina poderia sim ser diabólica enquanto
autoritária e opressiva?
Eis um questionamento cujo alento se encontra no próprio conto,
quando se percebe que o inferno de Benjamim está em ser possuído. E, para que
não restem dúvidas sobre o que o chamado divino representa para o protagonista,
lembremos quando ele “agarrou a mão da mulher: por que não posso ser como os
outros, Paulina? Por que não posso levar uma vida normal?” (p. 203). O próprio
Benjamim confessa: “O que eu queria era me livrar destes profetas.” (p. 206).
Não obstante, a preferência divina de possuir ao invés de revelar
(normalmente ocorre a revelação aos profetas bíblicos), talvez queira assegurar a
Deus o repasse de Sua palavra, o que nos mostra com humor que, para
Benjamim, o dogma do “livre-arbítrio” resume-se em optar ou não por repassar a
palavra de Deus, desde que a repasse.
Irônico sim. Tanto quanto o episódio em que Benjamim, ao ir para o
hospício, encontra-se com outros “loucos”:

“Na clínica psiquiátrica, Benjamim ficou conhecendo o homem que


recebia o Espírito Santo [...] Conheceu também a mulher em que Buda
se encarnara uma vez [...] E o mulato em que baixavam santos, e o
estudante que recebia Zeus. Todos sofriam. Só o homem de barba e

189
REEBER, Michel. Religião: termos, conceitos e idéias. Trad. Luiz C. M. Guerra. Rio de Janeiro,
Ediouro, 2002, p. 107.

232
longos cabelos parecia tranqüilo – ele não estava possesso, ele era
Jesus Cristo.” (p. 205)

Preciosismo de minha parte ou não, insisto em comentar que o “era” em


“ele era Jesus Cristo” aparece grafado em itálico. Crendo que tenha sido assim
redigido pelo autor, esse pequeno detalhe me parece fazer total diferença em se
tratando da serenidade do Jesus internado. Perceba-se que “todos sofriam” e que
“só o homem de barba e longos cabelos brancos parecia tranqüilo.”
Todos os que sofriam – incluindo Benjamim – parecem ter consciência
da coabitação de seu “eu” (espírito próprio) com outros “eus” (outros espíritos).
Por outro lado, não seria exagero considerar que o destaque em itálico do “era”
queira realçar que a certeza de ser Jesus Cristo não permite ao interno a
consciência do seu próprio “eu”, mas a do “eu” incorporado.
Onde há a certeza, não há espaço para dúvidas e, assim, para
questionamentos, apenas a tranqüilidade. Aos conscientes de si, entretanto, resta
o sofrimento. Ou seja, é a consciência de nós mesmos que nos traz o sofrimento,
e é na ignorância do não questionamento, da não consciência, que reside “a
limpidez daquele olhar, o esplendor daquela face.”(p. 206)
É ainda com muita ironia que Scliar possibilita a fala do Jesus internado,
pois quando Benjamim confessa a este que o invejava (pela paz de espírito),
Jesus responde sorrindo: “Se é o meu lugar que pretendes [...] desiste. O filho de
Deus é um só. Eu.” Haveria aqui uma ironia preocupada apenas em realçar a
graça da situação – afinal o dogma da unicidade de Jesus enquanto filho de Deus
é apresentado sob uma fala individualista por aquele que se acredita o próprio
Jesus –, ou haveria também um convite para confrontarmos tal dogma com o
discurso de que também somos filhos de Deus?
Uma outra ironia importante é o momento em que Benjamim, ao
perceber que sua pele está ulcerada (pelos remédios que tomava no hospício),
teme estar “como Jó”, mas ao lembrar-se que Jó não é profeta “suspirou aliviado”.
Ora, não haveria de ser uma ironia gratuita o fato da úlcera de pele parecer
problema menor que a possessão de Benjamim por mais um profeta? Tal

233
incoerência – uma inversão de valoração dos problemas – me parece proposital,
com o intuito de realçar justamente o lembrar-se de que Jó não era profeta.
Uma certeza explicitada por um recurso de inversão não poderia passar
impune: se Benjamim tivesse lido o Corão (a bíblia muçulmana), provavelmente
suspiraria de angústia, não de alívio, haja vista que, no Corão, Jó é profeta sim190.
O que nos convida a refletir, mais uma vez, sobre a necessidade de se repensar
certezas, dogmas e demais verdades. Religiosas ou não, aliás.
O caráter diabólico da possessão divina, a serenidade pela ignorância
de si mesmo, a fala individualista sobre o dogma da unicidade e mesmo a
preocupação com Jó (ao invés das úlceras) representam uma estratégia de
inversão, recurso analisado pelo teólogo alemão Karl-Josef Kuschel em Os
Escritores e as Escrituras191 ao estudar o poema Incidente Lamentável de Bertold
Brecht, onde

“Paródia, sátira e inversão irônica das perspectivas são os recursos para


a auto-encenação estilística. Pois os vestígios religiosos e bíblicos [...]
192
servem apenas para a promoção irônica e exagerada do festejado ,
cujo desencanto se dará assim de maneira ainda mais eficiente, sob a
forma de um desmascaramento.” (p. 21)

Ou seja, “autodesmascaramento da religião por meio da linguagem

religiosa” (pg. 21). No caso de Scliar, porém, a inversão de perspectivas parece

chamar o leitor para a reflexão da religião, não para seu desmascaramento. Afinal,

não seria a religião algo a ser desmascarado, mas repensado sempre que

necessário, desmascarado necessita ser o processo de dogmatização pelo não

questionamento a que não apenas princípios religiosos, como também políticos,

190
Ibid, p. 50 e 205.
191
KUSCHEL, Karl-Josef. Os Escritores e as Escrituras. Trad. Paulo Soethe. São Paulo, Loyola,
1999, p. 21.
192
Trata-se do “Deus festejado”, amigo de Brecht que sobe em um palco para fazer um
pronunciamento, conforme narrado no poema e analisado por Kuschel em Os Escritores e as
Escrituras.

234
filosóficos, enfim, existenciais, são submetidos, a começar nas perguntas caladas

em casa, na escola (ou universidade), na vida religiosa ou no trabalho.

A importância da contestação em Os Profetas de Benjamim Bok


aumenta ao assinalarmos que o próprio Scliar a apresenta como característica da
cultura judaica em A Condição Judaica193 :

“Questionar faz parte da condição judaica. É próprio do judaísmo não


aceitar as coisas simplesmente porque elas têm atrás de si o peso da
autoridade, e neste sentido os próprios profetas são exemplos
eloqüentes. Raramente a História viu questionadores tão atrevidos e tão
corajosos como os profetas bíblicos, modelos de todos os reformadores
sociais.
Como seus antepassados bíblicos, o judeu da Diáspora fazia perguntas.
E como não fazê-las? Em qualquer lugar era um estranho, via as coisas
com olhos de estranho – portanto, olhos indagadores. Olhos que não
deixam de ver o que está certo e o que está errado, o que é justo e o
que é injusto, o que é bom e o que é mau. (O que depois se vai fazer
com respostas, é outro papo. Tirar proveito da situação? Lutar para
mudá-las? É outro papo). ” (p. 9, grifo meu)

O autor, aliás, assinala nesse livro não apenas a contestação como


também o humor da cultura judaica. Ao comentar a obra do escritor Scholem
Aleichem, Scliar observa que Aleichem “[...] é o primeiro grande representante
literário do humor judeu, este humor peculiar do perseguido, que é uma defesa
contra o desespero; um humor agridoce, melancólico, um humor de meio-sorriso,
não de risos.” (p. 43)
Sobre a contestação, o questionamento, a reflexão, complemento
apenas que deveriam ser inerentes à condição humana, não apenas judaica.
Quanto ao humor judaico, porém, este humor do meio-sorriso, parece-me existir
na agridoce medida o tempero certo que transforma as gargalhadas da ignorância
no meio-sorriso reflexivo. Um sorriso que se abre até o ponto melancólico em que
o homem se dá conta de que está diante de algo que não pode controlar, ou frente
a uma injustiça, ou perante algo que não pode responder, ou sob um regime que
anseia por destituir, ou seja, um meio-sorriso irônico de um lampejo esclarecedor,

193
SCLIAR, Moacyr. A Condição Judaica, 1985.

235
ainda que este o esclareça da própria ignorância. Muito superior a um riso
interminável que nos "livra" de pensar.
Com a explanação até aqui organizada, percebe-se na ficção e no
humor o solo propício para debater o discurso religioso, e não apenas como
característica do estilo de Scliar. A ficção permite trabalhar o caráter irreal que o
discurso religioso lança sobre nossa existência (anjos, espíritos, deuses,
demônios, planos espirituais etc).
O humor, por sua vez, quebra a prepotência do dogma estabelecido e,
ao invés de confrontar o que era imposto como certo, permite a graça da reflexão
sobre algo possível. Ou seja, a religiosa, virtuosa graça da reflexão se dá pela
graça (humorística) da contestação. Talvez por isso o escritor Umberto Eco nos
apresente, de forma tão saborosa, o poder da comédia, do humor, no livro O nome
da rosa194.
O humor e a contestação presentes (ambos como meio-sorriso, não
como gargalhada) no conto Os Profetas de Benjamim Bok apresentam, a meu ver,
um esboço de resposta a uma das perguntas levantadas pela Teopoética: “Cuáles
serían los criterios estilísticos para um discurso teológico dentro de la Literatura
del siglo XX?”195.
Pensei em analisar também as gargalhadas do conto, ou seja, as
relações visíveis entre esse texto de Scliar e as Sagradas Escrituras, afinal a
maioria dos personagens apresenta nomes bíblicos (principalmente de profetas do
Antigo Testamento) e há várias citações diretas e indiretas de passagens bíblicas.
Preferi, porém, explorar o meio-sorriso, aquilo que não se dá, mas se permite
descobrir. Questão de escolha. Afinal, o artigo necessitava de um rumo.
Antes de encerrar o artigo, gostaria de salientar – como curiosidade – as
constantes interrogações de amigos e familiares sobre a real função de meu
estudo ou, em outras palavras, “pra que serve isso, afinal?”. Tal questionamento
fez-me lembrar de reflexões minhas recentes, sobre a angústia que por vezes
povoa meu espírito quanto à utilidade com a qual precisaria preencher trabalhos

194
ECO, Umberto. O nome da Rosa. Trad. Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade, 34ª
edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
195
FERRAZ, Salma. Teopoética: los estúdios literários sobre Dios, 2005, p. 15.

236
acadêmicos, diálogos cotidianos, planejamentos de carreira, estudos e mesmo um
poema que eu escreva ou sonho que suspire.
Em resposta aos outros – e a mim mesmo – encerro com considerações
do pensador alemão Friedrich Schiller em A Educação Estética do Homem196 , no
qual Schiller refere-se - já no século XVIII - à liberdade de que o espírito humano
necessita, necessidade tão atual quanto historicamente renovada:

"[...] a arte é filha da liberdade e quer ser legislada pela necessidade do


espírito, não pela privação da matéria. Hoje, porém, a privação impera e
curva em seu jugo tirânico a humanidade decaída. A utilidade é o grande
ídolo do tempo; quer ser servida por todas as forças e cultuada por todos
os talentos. Nesta balança grosseira, o mérito espiritual da arte nada
pesa, e ela, roubada de todo estímulo, desaparece do ruidoso mercado
do século. Até o princípio de investigação filosófica arranca, uma a uma,
as províncias da imaginação, e as fronteiras da arte vão-se estreitando à
medida que a ciência amplia as suas." (p. 25, 26)

Schiller acreditava e buscava a arte que liberta. O que Scliar me parece


conseguir com um estilo que esclarece porque liberta, e liberta porque sorri.

196
SCHILLER, Friedrich. A Educação Estética do Homem. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki.
São Paulo, Iluminuras, 1989.

237
O DESERTO DE DEUS E O
SERTÃO DOS HOMENS:
GUIMARÃES ROSA E O
DESERTO DO SINAI

NELSON DE SENA FILHO

238
O DESERTO DE DEUS E O SERTÃO DOS HOMENS: GUIMARÃES
ROSA E O DESERTO DO SINAI

Nelson de Sena Filho


Centro Universitário de Caratinga

Este texto pretende dar início a uma discussão sobre as semelhanças e


as diferenças entre duas epifanias desérticas, sendo uma, a divina revelação
sinâica, base da aliança mosaica e a outra, profana, realizada nas veredas do
“Grande Sertão”, palco do pacto entre um sertanejo e o Diabo. Relatada no Êxodo
bíblico, a primeira manifestação assinala o advento da chamada “aliança
mosaica”, na qual, “o povo, como um todo, aceitou a fé no Deus único e
abandonou para sempre os deuses”197 . Realizada no deserto, torna-se assim,
base da tradição ocidental, seja em seus aspectos filosóficos e morais ou
históricos e geopolíticos. A segunda manifestação, relatada em “Grande Sertão:
Veredas”, fala de um pacto realizado no sertão que pode ser considerado “como
uma alegoria da institucionalização da Lei, expressa pelo primeiro pacto ou
contrato social, firmado na história primerva da humanidade... pode ser entendido
como uma visão romanceada da lei fundadora”.198

Alguns estudiosos já chamaram a atenção para as semelhanças e as


discrepâncias entre estas duas narrativas, dentre os quais podemos citar,
MARTINS199 (1968) e FLUSSER200 (1969), que escreveram poucos anos depois
da publicação do romance de Rosa. O ensaio de MARTINS, escrito para servir de
introdução ao livro “Travessias Literárias” de Mary L. Daniel, afirma existir uma
similaridade inegável, entre as duas “travessias”, a saber, a de Riobaldo com seu
“povo” pelo Liso do Suassurão e a de Moisés pelo deserto. MARTINS chega a ver

197
KAUFMANN, Yehezkel. A Religião de Deus. São Paulo. Editora Perspectiva. 1989. p. 231.
198
BOLLE, Willi. Grandesertão.Br. São Paulo. Duas Cidades – Editora 34. 2004. p. 154.
199
MARTINS, Wilson. “Guimarães Rosa na sala de aula”. In. DANIEL. Mary. L. João Guimarães
Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio. 1968.
200
FLUSSER, Vilém. Guimarães Rosa e a geografia. Kriterion: Revista de Filosofia. Belo
Horizonte: UFMG, v.10, n.3, p. 275-278, 1969.

239
uma similaridade entre dois episódios centrais nas duas historias: quando Moisés
recebe as tábuas da lei e quando Riobaldo está prestes a atravessar o referido
Liso. Na passagem bíblica, Iahweh, do alto de uma montanha, diz a Moisés para
que fixe os limites de onde o povo não poderia passar, pois seria firmada uma
aliança entre Deus e o povo hebreu. Moisés sobe sozinho e recebe então o que
seria conhecido como “decálogo”, base da “Aliança Mosaica”, a saber os
mandamentos que expressavam a vontade de Deus, os juízos, que regulariam a
vida cotidiana e as ordenanças, que regulariam a vida religiosa. Estes preparativos
eram necessários para um projeto ainda mais ambicioso: a conquista da terra
prometida e a adoração de um único Deus, âmago do decálogo e base da aliança.
Nesta travessia pelo deserto, o povo se prepararia para uma nova vida, baseada
agora num pacto com Deus:

Se ouvirdes a minha voz e guardades a minha aliança, sereis para mim


uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é
minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes, uma nação santa.
201
Êxodo, 19: 05 .

Com Riobaldo acontece algo que mostra uma similiradidade enorme.


Quando ele faz um pacto (?) com o Pai do Mal, o Tendeiro, num local chamado
Veredas-Mortas, houve (como o fogo do Sinai) uma manifestação milagrosa da
natureza, um “tornopío do pé-de-vento – o ro-ró girado mundo a fora, no dobar,
funil de final, desses redemoinhos... o diabo, na rua, no meio do redemunho”202
(ROSA, 2001. Citado daqui em diante “GSV”). Após o pacto, Riobaldo (como
Moisés) assume verdadeiramente a liderança do grupo. E antes de iniciar sua
travessia pelo Liso (deserto) em direção a vitória final (Terra Prometida), Riobaldo
tem necessidade de um momento seu, no alto de uma pedra (montanha?) onde
refletiria sobre as extraordinárias coisas (milagres?) que faria para admiração de
todos:
O que eu carecia era de uns instantes sempre meus, para estribar meu
uso. Era a primeira viagem saída, de nova jagunçagem; e as
extraordinárias cousas, para que todos admirassem e vissem, eu estava

201
BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2ª ed., São Paulo, Paulinas, 1985.
202
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 437.

240
em precisão de fazer. E vi um Itambé de pedra muito lisa; subi lá.
Mandei os homens ficassem em baixo, eles outros esperavam... tinham
me dado em mão o brinquedo do mundo (GSV. p. 455).

Comparando este dois episódios, MARTINS, afirma que o objetivo


principal deste momento chave do romance rosiano é “erguer um paralelo com a
travessia do deserto pelos judeus”203. Este paralelo é também um dos destaques
do artigo de FLUSSER, “Guimarães Rosa e a Geografia” publicado em 1969, na
Kriterion, Revista de Filosofia de Belo Horizonte.
Após discorrer sobre a revelação ocorrida no Sinai e que resultaria
na cosmovisão fundamental do mundo ocidental, o autor afirma que Guimarães
Rosa, teria se preocupado em responder como se daria tal revelação não no
deserto, mas na geografia sertaneja, nos sertões das Gerais. Esta nova revelação
seria marcada pelos seguintes fatores204:

Revelação do Deserto (local Revelação do Sertão (local do ser


abandonado pelo ser) abandonado)

Iahweh: aquilo que foi, é e será Nonada: não ao nada, não há nada e no

nada.

Revelação do ser enquanto Deus Revelação do ser enquanto diabo

Deus é “aquele que é” O diabo é aquele que teima ser

Este Deus é aquele que cria Este ser seria aquilo que aniquila

Se desdobraria numa história sacra Se desdobraria em estórias do diabo.

Outras considerações poderiam ser feitas a partir destas duas


narrativas, em seus mais variados aspectos. Até mesmo as noções de sertão e
deserto, que são semelhantes em suas origens, mas falam de paisagens
diferentes, poderiam servir de paralelo a estes dois espaços tão díspares e tão
próximos. Segundo GALVÂO, a palavra sertão indicaria, já na África e mesmo em

203
MARTINS. 1968, p. XXX.
204
Baseado em FLUSSER, p. 277.

241
Portugal, não “a noção de deserto (aridez, secura, esterilidade) mas sim... de
interior, de distante da costa”.205 Outra possibilidade seria, de que, de De-Sertum,
(o que sai da fileira, o que deserta), surgiria desertanum, para “indicar o lugar
desconhecido para onde ia o desertor”.206 Ainda segundo VICENTINI, daí surgiria
certum, “vocábulo que aponta sempre para um sítio oposto e distante de quem
está falando”. Seja como for, diferenciados conceitualmente, o sertão e o deserto
formam uma das mais impressionantes representações construídas, “que
condensa uma pluralidade de significados, um entremeado de imagens fugidias e
associações apenas entrevistas”207 .
A travessia do Êxodo pode ser considerada como marco inicial da
“religião israelita”. É com Moisés que “aparece o contraste entre a fé de Iahweh e
o paganismo”,208 numa ¨revolução monoteísta”, base de toda a teologia e de toda
metafísica da civilização ocidental. O Êxodo foi “um ato se separação e de
resistências políticas; mas também foi, e acima de tudo, um ato religioso”,209
responsável pela transformação de um povo nômade e tribal na congregação dos
“Filhos de Deus”, escolhidos para se tornarem uma “Nação eleita”, numa
“Assembléia”, que mais tarde resultaria na Eclésia (assembléia) dos Cristãos.
A travessia que Riobaldo realiza pelo sertão é “humana,
demasiadamente humana”, sendo, tanto exterior (pelas estradas da vida terrena)
quanto interior, (pelo “roteiro de Deus”), percorrendo sempre o “miolo mal do
sertão” (GSV, p. 40), que se transmuta em uma grande metáfora geográfica.
Retirando fragmentos desta Geografia real, o autor desloca, desmonta e
recompõe livremente a sua travessia neste sertão, que metamorfizado, ao mesmo
tempo em que “está dentro de nós”, é também “do tamanho do mundo”. Este
sertão é o terreno da eternidade e da solidão, um lugar da memória, com
existência simbólica, atemporal e ageográfica, onde se fala, segundo o próprio

205
GALVÂO. Walnice N. O Império de Belo Monte. São Paulo. Editora Fundação Perseu Abramo.
2001.
206
VICENTINI, Albertina. O sertão e a literatura. Sociedade e Cultura. Goiânia: Editora UFG. N. 1,
v. 1, p. 41-54, jan./jun. 1998.
207
SENA, Custódia Selma. A categoria Sertão: um exercício de imaginação antropológica.
Sociedade e Cultura. Goiânia: Editora UFG. N. 1, v. 1, p. 18-28, jan./jun. 1998.
208
KAUFMANN, Yehezkel. A Religião de Deus. São Paulo. Editora Perspectiva. 1989. p. 222.
209
JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de janeiro. Editora Imago. 1995. p. 41.

242
Rosa, a língua de Goethe, Dostoeviski e Flaubert. BOLLE210 (1998) afirma que
esta linguagem inventada do Grande Sertão reapresentaria a construção da
cidadania através da energia da linguagem.
O sertão de Riobaldo seria o lugar do estranho, da perplexidade, do
demoníaco, do sagrado, ou seja, o lugar próprio do ser humano. O deserto de
Moisés seria o lugar da redenção, da ordem no caos, da manifestação de Deus.
Os dois são locais de travessias dantescas, no sentido existencial, onde o ser
humano, como Jó é posto à prova.
Para BOLLE, (2002)211, o sertão é uma forma de pensamento, que como
um médium dissolvente, possibilita, a transformação de uma imagem que se
configura como uma imagem arcaica, no sentido de que se trata de camadas
míticas e mitoligizantes do texto em uma imagem dialética ou histórica, dotada de
teor político e histórico. Como um intérprete dos sonhos coletivos, ele traduziria as
imagens arcaicas em dialéticas, tornando-as legíveis enquanto informações
históricas. Seguramente pode-se fazer esta mesma afirmação para aquela
travessia do Deserto do Sinai e, ainda, com mais força, constatada a
preponderância de imagens e arquétipos quer povoam toda a imaginação
ocidental. A própria idéia de que no Monte Sinai se celebrou “un pacto religioso...
entre los hebreos y Yavé... su vida como nación estaba colocada…bajo la
autoridad de Yavé, y los cimientos de la unidad nacional de establecieron”,212 é a
base pela qual toda a cristandade se assentou, com seus conceitos de “Eclésia”,
“monoteísmo” “redenção” etc. O tema do deserto faz parte de uma tradição
cultural milenar, sendo visto como o local onde sagrado e o profano se digladiam.
Também é o local do silêncio e da reflexão permanente.
O deserto é um local rico em simbologias, um local freqüentado pelos
animais (reais e míticos) que assombram os homens que se atrevem a desafiá-lo.
Por isso o deserto é um local de refúgio e de expiação e sua travessia tende,
quase sempre, a metamorfoses profundas naqueles que se aventuram por ele. O

210
BOLLE, Willi. O pacto em Grande Sertão: Veredas- esoterismo ou lei fundadora. Revista USP.
São Paulo, n. 36, p.26-45, Dezembro-Fevereiro, 1997-1998
211
BOLLE, Willi. Representação do povo e invenção de linguagem em grande Sertão: Veredas.
SCRIPTA. Belo Horizonte, v. 5 n. 10, p. 352-366, 1º sem. 2002.
212
RATTEY, Beatrice. Los Hebreos. México. Fondo de Cultura Economica. 1992. p. 39.

243
sertão de Guimarães Rosa se aproxima deste deserto e suas metáforas. Em sua
famosa entrevista a Günter Lorenz, Guimarães Rosa se define como sendo “um
homem do sertão, fabulista por natureza”, um sertão que seria o “terreno da
eternidade e da solidão, onde o interior e o exterior já não podem ser separados”,
onde “o homem é o eu que ainda não encontrou o tu”.213
Tanto no Deserto do Sinai como no sertão de Riobaldo a imensidão da
solidão das paisagens infinitas se encontra e se confunde com solidão do ser
abandonado e assombrado pelos deuses e demônios internos. BACHELARD,
falando sobre a imensidão destes dois espaços afirma que “é por sua imensidão
que dois espaços – o espaço da intimidade e o espaço do mundo – tornam-se
consoantes. Quando a grande solidão do homem se aprofunda, as duas solidões
se tocam se confundem”214. Riobaldo afirma que o sertão que está em toda parte
é também “sem lugar”, mas ao mesmo tempo está dentro da gente: “sertão: estes
seus vazios”. No sertão de Riobaldo estas duas grandes solidões realmente se
confundem. Este sertão é o espaço do deserto do homem humano. Talvez por isto
os naturalistas já falassem da solidão do sertão.
De fato, alguns dos naturalistas viajantes que aqui passaram se
impressionaram com o sertão de Riobaldo, como, por exemplo, o repórter francês
FERDINAND DENIS, o zoólogo J. B. Von SPIX e o botânico C. F. P. MARTIUS
que deixaram relatos preciosos sobre a solidão e a complexidade dos sertões das
Gerais. DENIS, que aqui viveu entre 1816 e 1831 afirma que, esta região, o sertão
de Minas Gerais, apresenta “tão vastas solidões” e “pobres aldeias... nenhuma
instrução... numa palavra, uma profunda indiferença por tudo que existe além de
sua solidão”.215 (DENIS 1980). SPIX E MARTIUS, que atravessaram o sertão
mineiro em 1818, falam perplexos de uma região que ora apresenta um sol
causticante que já havia ressecado o verde viçoso da vegetação, com uma
atmosfera quente, leve e seca, e que ora apresenta “uma das mais bonitas regiões

213
Citado pelo próprio Guimarães Rosa em sua famosa entrevista a Günter Lorenz, em Rosa, João
Guimarães, Ficção Completa em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
214
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p 124
215
DENIS, Fedinand. Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 384.

244
que conhecemos no Brasil”216 (SPIX e MARTIUS, 1976), um buritizal, com uma
“linda mata de palmeira”, em pleno deserto. “O Sertão é o sertão”, afinal, o “sertão:
estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa ainda encontra”.
Estas imagens fugidias e entrelaçadas das travessias desérticas são
difíceis de se compreender, pois escondem em si “as formas do falso”, já que uma
das representações simbólicas do deserto é a de exprimir “metaforicamente a
passagem de uma situação de desgraça para uma situação de felicidade”.217
Assim foi com o Moisés guiando seu povo até a terra prometida, assim foi com
Cristo no deserto da Judéia quando foi tentado pelo diabo e assim foi com
Riobaldo pactário das Gerais.

Nos desertos ocorrem provações infindáveis, mas, ao vencedor cabe


uma grande vitória, seja ela a terra prometida, seja a vingança que move uma
vida. A travessia, o êxodo, as imagens recorrentes, as epifanias divinas ou
diabólicas (ambas agindo como mitos fundantes), os mesmos pactos
sobrenaturais resultam na mesma busca de sempre: vencer a solidão do deserto e
vencer a solidão da existência humana. Mas entre a aliança mosaica e o pacto de
Riobaldo surge uma profunda diferença: a aliança bíblica deveria ser revigorada
por um holocausto contínuo, que como elemento tipológico, prefiguraria um
acontecimento futuro e decisivo, a saber, a revelação e o sacrifício de Cristo, que
realizaria o holocausto perfeito. Da aliança moisaica surge a necessidade de um
sacrifício perfeito que apontaria, tipologicamente para Cristo. O Deus-Homem
cumpriria e realizaria o holocausto eficaz, pleno e eterno do qual o de Moisés era
apenas uma pálida figura.

O pacto de Riobaldo, que ocorre também pela busca da vitória, é ao


contrário daquele, um pacto com o inimigo maior daquele que traz a redenção. E
como seu pacto é com o “Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o
Galhardo, o Pé-de-Pato...” (GSV, p.55), a sua “vitória” não pode mesmo ser
completa: Embora Riobaldo tenha ganhado a batalha contra Hermógenes, ele

216
SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil. 1817-1820. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, 1981, 3v. p.73.
217
GIRARD, Marc. Os Símbolos na Bíblia. São Paulo. Editora Paulus. 1997. p. 577.

245
assiste a morte de Diadorim dos seus amores e ainda perde sua alma para o
diabo. “Deus é paciência. O contrario, é o diabo” (GSV, p. 18). Deste segundo
pacto, nasce, segundo GALVÂO, a culpa, a de ter “vendido a alma ao diabo e
assim ter levado o amigo (Diadorim) à morte”.218 Numa aliança a culpa apontava
para uma redenção futura, mas trazia em si um livramento provisório. No pacto
dos sertões, o resultado é a angústia da culpa que atormenta. Sartreana, humana.
A primeira aliança é feita entre e para homens e deuses. O segundo pacto, o
sertanejo, é feito entre e para aqueles que após a longa travessia de descobrem
apenas “homens humanos”, afinal “o diabo não há! É o que eu digo, se for... existe
é homem humano. Travessia” (GSV, p. 624). Por isso o fogo é a marca do
primeiro pacto e o frio o do segundo. Se, São Tomas de Aquino é o intérprete do
primeiro, Nietzsche é o do segundo.

Explicando a relação da primeira revelação com o advento maior que a


realizaria, o escritor do livro de hebreus219 afirma: “possuindo apenas a sombra
dos bens futuros, e não a expressão própria das realidades a lei é totalmente
incapaz... de levar a perfeição”. Ou seja, a lei e os acontecimentos do Sinai, eram
apenas uma sombra do grande acontecimento do calvário. Sombra é a tradução
da palavra grega, “skia”, que indica a sombra projetada por qualquer objeto,
criando uma imagem opaca da realidade. Refere-se ao esboço ou à sombra criada
pelo objeto que é a realidade. Indicava também uma prefiguração tipológica de um
acontecimento que desvendaria o primeiro (CHAMPLIN, 1985220).

No caso do romance rosiano, as comparações com a travessia do Sinai


funcionam apenas como uma imagem, um esboço opaco, um símbolo dentre
outros, que indicaria o rumo da “verdadeira” revelação que foi a epifania
demoníaca. Mesmo recorrendo à várias matizes restaria uma impossibilidade: a
geografia sertaneja não foi de todo descoberta, e ao contrario da tipologia bíblica,
nenhuma revelação futura seria capaz de sua mais completa tradução. Afinal

218
GALVÃO, Walnice N. As formas do falso. São Paulo. Editora Perspectiva. 1986. p. 132.
219
Citação retirada da Bíblia de Jerusalém, 1985, Livro de Hebreus, Capitulo X verso 1. (p. 2252)
220
CHAMPLIN. Norman Russel. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. 5ª ed.,
São Paulo, Milenium, 1985.

246
trata-se de um espaço que, ao mesmo tempo em que “está dentro de nós”, é
também “do tamanho do mundo”.
O resultado final, qualquer que seja a tentativa de se aprofundar nesta
geografia sertaneja, ainda sempre será de incompletude, da busca de um espaço
que está, ao mesmo tempo dentro da gente e em todo lugar. De um espaço, que
afinal, é a própria travessia de todos aqueles que são “homens humanos” nesta
perigosa travessia. Atravessar este sertão que, mais que um lugar abandonado, é
o lugar do ser abandonado, é como atravessar o deserto do Sinai bíblico. No
sertão também ocorre uma revelação, só que motivada agora por uma epifania
demoníaca, que, para Rosa seria apenas um pretexto para provocar uma nova
revelação do ser e “substituir a revelação cansada e profanada da tradição do
ocidente”.221

“O senhor tolere, isto é o sertão”... O senhor sabe: o sertão é onde


manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier,
que venha armado!... vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que ainda
não sei. Um grande sertão! não sei. Ninguém ainda não sabe. “O
sertão é grande ocultado demais.”

221
FLUSSER, Vilém. Guimarães Rosa e a geografia. Kriterion: Revista de Filosofia. Belo
Horizonte: UFMG, v.10, n.3, p. 275-278, 1969.

247
A VOZ RITUALIZADA DA NARRATIVA
ROSIANA

MÁRCIO ARAÚJO DE MELO

248
A VOZ RITUALIZIDA DA NARRATIVA ROSIANA

Márcio Araújo de Melo (UFMG)222

Se há algo que se pode afirmar, de imediato, em relação aos contos


“São Marcos” e “Corpo Fechado”, de Sagarana (1984), parece ser o conhecimento
de orações fortes, seus usos e feitos por parte de seu autor. O que significa dizer
que Guimarães Rosa entendia (era iniciado?) o que se poderia chamar de artes
do sortilégio; prova que deu ao longo de sua obra ao criar personagens que
lidavam com a bruxaria. Para ficar apenas em algumas feiticeiras, citamos: Ana
Duzuza (Grande sertão: veredas); Dô-Nhã (Noites do Sertão); Mãitina (Manuelzão
e Miguilim); Nhá Tolentina, Sá Nhá Rita Preta e Cesária Velha (Sagarana). Além
disso, bem antes, Rosa já havia feito em Magma, de 1937, no poema, “Reza
Brava”, a descrição de um ritual de magia. Nele são mencionadas as sete ave-
marias retornadas, a oração de São Marcos e Santo Amâncio, oração da cabra
preta (“faca espetada na mesa”), oração de Rio Jordão223, Oração das Estrelas224
e o nome de Santa Helena; como também a hora (“meia-noite”/hora morta), a
pronúncia e o ritual exatos para que as rezas obtenham os efeitos desejados225.
De Magma (1997) se transcreve um fragmento do poema “Reza Brava”:

Três pratos ponho na mesa,


para mim, para minha Santa Helena,
e para você, quando chegar...
222
Doutor em Literatura Comparada pela UFMG, professor da Universidade Federal de
Uberlândia.
223
Câmara CASCUDO (2001 p.450) faz referência à oração como sendo “uma das preferidas pelos
cangaceiros, bandoleiros, ladrões armados, usando-a ao pescoço e confiados inteiramente na
impunidade que o ‘breve’ lhes daria”. Veja a mesma fórmula na oração de S. Marcos e S. Amâncio:
“com 2 te vejo com 5 te ato e te prendo, o sangue eu te bebo o coração te parto crava-se a porta
da rua e oferece em intenção das 3 almas errantes dos 3 caboclos índio, quingú i quínpirique
igongazebin” RAMOS (1942 p.271). Ainda, para referência, se lê em “Cara de Bronze”: “E encontro
com gente-ruim: ladrão jagunço, desordeiro, cangaceiro? — Rezo a reza do Meu Rio-Jordão”.
(2001a p.156)
224
Compare a oração das Estrelas recolhida por Câmara CASCUDO (2001 p.451) com o poema de
Guimarães Rosa: “... se estiver bebendo, não beberá. Se estiver comendo, não comerá. Se estiver
conversando, não conversará. Se estiver dormindo, não dormirá enquanto não vier falar-me”.
225
Arthur RAMOS (1942 p.271) faz lembrete “deve haver muita fé e só deve rezar ella nas segunda
feira e sexta a meia noite que ninguém veja, precisa haver muita coragem e força de vontade e
quando estiver a rezar 10 minutos ante colocar na mesa um prato com 10 grão de sal comum e
meio cálice de espírito de vinho e acende-se, e com a mesma faca que se reza a oração e vae se
mexendo até se apagar o liquido”.

249
Três vezes chamarei, três pancadas lhe darei!...
A primeira, na testa, para que você lembre,
a segunda, no peito, para que você sofra,
a terceira, nos pés, para você caminhar...
Se estiver comendo, pare,
se estiver conversando, cale,
se estiver dormindo, tem de acordar...
A meia-noite já vem chegando,
e é hora boa para rezar.
Vou queimar pólvora, vou traçar o sino,
vou rezar as sete ave-marias retornadas,
e depois a reza brava de São Marcos e São Manso,
com um prato fundo cheio de cachaça
e uma faca espetada na mesa de jantar.
(MA pp.111/112)

Não parece, pois, restarem dúvidas de que Guimarães, como árduo


pesquisador da cultura popular, conhecesse todos elementos envolvidos nesse
cerimonial, mesmo que em nenhum momento de “Reza Brava”, de “São Marcos”
ou de “Corpo Fechado” apareçam as orações na íntegra, mas apenas recortes e
fragmentos, que ao longo das narrativas podem ir se moldando para formar a
cena. E ainda é válido mencionar que outras estórias, para não se desdobrar
muito, como “Conversa de Boi”, de Sagarana, “Uma estória de amor”, de
Manuelzão e Miguilim e “Buriti”, de Noites do Sertão ajudam a compor esse
hipertexto rosiano. São as orações fortes, para fechar o corpo ou para se adquirir
qualquer benefício, que vão coser esse entrelaçamento de narrativas.
Relacionar os textos rosianos não é novidade, Angel RAMA (1978, p.74)
comenta que São Marcos “vale como uma profecia sobre a sua futura obra
literária”, e, ao estudarem esse conto, UTÉZA e RASSIER (1997, p.147) fazem
referência, em nota de rodapé, que “Guimarães ROSA já utilizara tal ‘oração sesga’
num dos poemas de Magma”. Mas é com Maria Célia LEONEL (2000) que essa
leitura se constitui de forma sistemática, pois, ao pensar esse livro de poesia como
gênese da obra de Guimarães Rosa226, a autora vai correlacionar o poema “Reza
Brava” com o conto “São Marcos”. A crítica também coteja outras narrativas —
“Corpo Fechado”, “Buriti”, “Campo Geral” e Grande Sertão —, no que tange, salvo

226
Pode-se conferir também o breve ensaio, mas bem frutífero, de Jeane Mari Sant’Ana Spera,. “A
poesia em Magma em contos de Sagarana”. In: Seminário Internacional Guimarães Rosa: Veredas
de Rosa. Belo Horizonte: PUC Minas, CESPUC, 2000, pp.295/298

250
as particularidades, ao uso da mesma oração (“São Marcos”); do mesmo ritual
(“Corpo Fechado”); do mesmo objetivo (“Buriti”); do sobrenatural (“Campo Geral” e
Grande Sertão: veredas).
A leitura de LEONEL enfoca a auto-intertextualidade que parte dos
poemas de Magma para as narrativas de Sagarana; deste modo, a preocupação
da autora se constitui no processo de criação, mas não em lidar com esses
elementos que reiteram temas das narrativas. Tanto é que LEONEL (2000,
pp.198/199) expõe que:

O sobrenatural é ponto temático fundante na obra de Guimarães


Rosa, constituindo uma das bases da sua poética e os trabalhos
sobre esse aspecto chegam hoje a um número bem avantajado.
Como, no que se refere especificamente à magia, a quantidade
de vezes em que ela surge na obra não é tão grande, o interesse
dos estudiosos é menor. (...) O rastreamento desse ponto — a
magia na obra de Guimarães Rosa — é estudo a ser
aprofundado.

Aqui há uma distinção entre o sobrenatural e o mágico, que a autora de


Magma e gênese da obra faz, de maneira rápida e sem explicação, mas que
ilumina essa correlação temática entre os textos rosianos e a necessidade de seu
estudo. Pois, antes de qualquer coisa, as estórias de Guimarães Rosa se
entrelaçam e se constituem nesse tecido infinito, que tem na imagem reverberante
do redemoinho sua metáfora maior: “o diabo na rua no meio do redemoinho”.
Aliás, não se deve acreditar que seja gratuito — em um ficcionista como Rosa —
que a entidade transeunte de um redemoinho reiterado seja exatamente o Diabo.
Na pesquisa de Walnice GALVÃO (1983, p. 418), se lê a respeito desse estribilho
como um dos grandes motes da narrativa, funcionando como ícone da estória de
Riobaldo: o certo e o incerto.

O diabo na rua no meio do redemoinho, epígrafe do livro, ritornelo


que surge e ressurge a intervalos no seio do texto, texto-súmula
que o narrador compôs para si mesmo como um extrato (tanto no
sentido de “tirado de” como de “concentrado”) de toda a sua
experiência de vida, é a imagem-mor que fixa essa concepção,
por um lado, e por outro todas as imagens da coisa dentro da
outra. O Diabo, algo concretizado e corporificado no meio de algo

251
móvel envolvente como o redemoinho, é a imagem-mor do certo
no incerto.

Assim, se põe à mostra na obra rosiana a necessidade de estar ciente


do que essas preces representam temas recorrentes e de como elas funcionam
enquanto orações de encanto na obra. Refletir acerca dessas orações e rituais é
algo complexo, que acaba por forçar um recorte, assim, objetiva-se demonstrar
como Rosa compõe os contos “São Marcos” e “Corpo Fechado” utilizando-se das
rezas e cerimoniais como tema principal. Até porque não se pode negar que os
títulos das duas narrativas de Sagarana, já de primeira mão, dão esse tom ao
leitor, mesmo que não se saiba — pela ampla possibilidade de leitura — o que há
de significado em: “São Marcos” e “Corpo Fechado”. Em Música de feitiçaria no
Brasil, Mário de ANDRADE (1963, p.34) conta que, por um interesse antropológico,
se sujeita a participar de um ritual de “fechamento do corpo”:

Ora depois de ter entrado muito na intimidade dos meus dois


mestres, na última sexta-feira do ano, que embora fosse dia par
era sempre muito propício pras coisas de feitiçaria, eu resolvi
“fechar meu corpo”, cerimônia das mais importantes do catimbó.

Essa história se desenrola ao longo de várias páginas, em que Mário vai


informando, questionando e analisando os elementos desse ritual complexo, no
qual vários ingredientes, mesmo que contraditórios, aparecem. No entanto, a
impressão mais saliente e durável é uma conexão entre o cerimonial, a música e a
poesia:

É impossível descrever tudo que se passou nessa cerimônia


disparatada, mescla de sinceridade e charlatanice, ridícula,
religiosa, cômica, dramática, enervante, repugnante,
comoventíssima, tudo misturado. E poética. Hoje, passados os
ridículos a que me sujeitei por mera curiosidade, o repugnante
não insiste em minha recordação, me sinto apenas tomado de
lirismo ante aqueles cantos e mais cantos incessantes ouvidos do
natural. (ANDRADE, 1963 p.34)

Apropriando-se não só da experiência de Mário com suas sensações


mescladas e suas misturas indivisíveis, mas, sobretudo, do que lhe resta: “lirismo”

252
e musicalidade, compara-se o ritual de fechar o corpo ao próprio ato narrar de
Rosa. Assim, mais do que nomear ou se apossar dessas temáticas para suas
estórias, o autor de Grande sertão:veredas elabora narrativas em ritual, ou seja,
um jogo dramático e complexo que interpõe todas as peças enigmáticas no texto.
Elas são fragmentadas e colocadas para ocuparem um lugar no texto/ritual, como
se tudo entrasse para se constituir em um sortilégio ao longo do texto. Por isso, é
preciso compreender como cada artefato se articula com seus pares e adquire sua
função na narrativa, como se fosse um objeto mágico do ritual de feitiçaria, com
que o bruxo/autor e o leitor precisam lidar. Caso esse ritual (narrativa?) não se
componha de forma apropriada não se obterá o êxito necessário desejado, como
ocorre com, na estória contada pelo narrador de “São Marcos”, os meninos de
Calango-Frito e sua mandinga para com o professor:

Uma barbaridade! Até os meninos faziam feitiço, no Calango-


Frito. O mestre dava muito coque, e batia de régua, também;
Deolindinho, de dez anos, inventou a revolta — e ele era mesmo
um gênio, porque o sistema foi original, peça por peça somente
seu: “Cada um fecha os olhos e apanha uma folha no bamburral!”
Pronto. “Agora, cada um verte água dentro da lata com as folhas!”
Feito. “Agora, algum vai esconder a coisa debaixo da cama de
Seu professor!...”
E foi a lata ir para debaixo da cama, e o professor para cima da
cama, e da lata, e das folhas, e do resto, muito doente. Quase
morreu: só não o conseguiu porque, não tendo os garotos sabido
escolher um veículo inodoro, o bizarro composto, ao fim de dia e
meio, denunciou-se por si. (SA p. 243)

A preocupação de Guimarães Rosa com esse texto/ritual é notável em


sua carta a João Condé, na qual ele dá uma explicação, uma confissão, uma
conversa a respeito da obra Sagarana. A língua será tratada como um elemento
que se multiplica em outros, que se mistura numa porção mágica, em que cada
coisa exerce uma função. Para tanto, é preciso que as palavras ganhem estados e
estatutos diferentes e diversificados para que possam exercer seu papel na
narrativa. Na missiva ao editor de Sagarana, comenta Rosa que:

... gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria
aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul

253
Eluard: ...“o peixe avança nágua, como um dedo numa luva” ...
Um ideal: precisão, micro-milimétrica.
(...) Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João
Condé, realizar é que são elas...): além dos estados líquidos e
sólidos, porque não tentar trabalhar a língua também em estado
gasoso?! (SA, p.07)

A precisão “micro-milimétrica” de cada elemento da língua em seus três


estados confere a Rosa esse texto/ritual, onde se combinam todos os ingredientes
possíveis. Desse modo, a ineficácia da água vertida pelos garotos do Calango-
Frito não cumpre todo o efeito desejado, mas ensina ao narrador da estória — um
tal João/José — que há possibilidades de se quebrar um feitiço, como também
confirma a existência desse meio malvado de obter a vingança, o que ao longo da
narrativa será de suma importância. Noutro caso análogo — que cumpre a mesma
função frente à narração e ao narrador —, “Sá Nhá Rita Preta”, lavadeira e
cozinheira de José/João, caiu, de repente, sentada no chão, agarrada às duas
mãos em seus pés, sentindo fortes dores, e só se recompõe, após várias
tentativas, quando se lembrou de mandar alguém pedir perdão à feiticeira de
nome “Cesária Velha” de uma desfeita anterior. As formas de quebrar o encanto
desses feitiços acabam por se repetir no sortilégio feito ao narrador, que o
desmancha através da oração forte e depois negocia a paz com João Mangolô.
LÉVI-STRAUSS, em Antropologia estrutural (1991, p.194), ensina que a
eficácia nas práticas de magia implica, necessariamente, no crédito de algumas
situações: 1) a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; 2) a crença do
doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro;
finalmente, 3) “a confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam à cada
instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se
situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça”. Essas três
personagens — feiticeiro, enfeitiçado/desenfeitiçado e “espectador” — envolvidas
no ritual da magia não cessam de pronunciar suas vozes ao longo dos contos
rosianos, demarcando seus lugares e valores como que numa cerimônia.
Confiar na pronúncia de uma oração sesga, no fechamento do corpo,
em patuá, ou em fórmulas mágicas, faz parte, por assim dizer, de uma condição
que extrapola e rompe com a individualidade de cada um para se completar na

254
presença de todos. Prova disso, como todos do Calango-Frito, é o narrador de
“São Marcos”, que parecia não acreditar em feiticeiros, mas acabava por ser “o
pior de todos” (SA p.242), pois além de manter um arsenal de recursos contra
feitiço e intempéries do cotidiano, também oculta seu nome verdadeiro227 para
evitar possíveis bruxedos e decora a oração de São Marcos. Com Manuel Fulô de
“Corpo Fechado”, há de se pensar também que após um ritual de fechamento do
corpo, ele consegue vencer seu medo e enfrentar, com êxito, Targino, se tornando
o novo valentão de Laginha.
Não há apenas a necessidade da crendice dos atores envolvidos no
processo de magia. Para seu bom êxito, a bruxaria carece de se constituir de uma
complexidade de objetos, dos quais, como numa alquimia, o cerimonial deverá se
cercar, como, por exemplo, na mandinga dos meninos contra o professor; ou em
cerimonial mais elaborado, o fechamento do corpo de Manuel Fulô. Os artefatos
são expostos ao coletivo228, mas há a interdição da presença de estranhos ao rito.
Assim, a estória convoca seu leitor a depreender os componentes envolvidos no
ritual de feitiçaria e a interpretá-los, mas, ao mesmo tempo, também lhe nega o
direito de assisti-lo, mantendo seu poder mágico ao não narrar a cerimônia na sua
totalidade. De maneira que não é gratuita a omissão do ritual, mas a garantia de
sua sacralização, garantia essa também posta em dúvida, já que o feiticeiro surge
“cínico e sacerdotal”, ou retomando a fala irônica de Mário de ANDRADE (1963,
p.34) a respeito da cerimônia vivenciada: “mescla de sinceridade e charlatanice”.
No texto de Guimarães Rosa se lê:

Aí, de chofre, se abriu a porta do quarto-da-sala, onde os dois


davam suas vozes, e o Antonico das Pedras surgiu, muito cínico

227
Para outro exemplo, em “Corpo Fechado” o feiticeiro possui vários nomes: “Toniquinho das
Águas”; “Antonico das Pedras”; “Antonico das Águas”; “Antônio curandeiro-feiticeiro”; “Antonico
das Pedras-Águas”.
228
Como curiosidade etnográfica, vale mostrar que os objetos, ressaltados por Mário de ANDRADE
(1963, p.35) quando do seu ritual de fechamento, lembram os arrolados em “Corpo Fechado”: “A
mesa servia de altar, e sobre a toalha branca muito limpa estava a “princesa”, uma vasilha rasa,
que é uma espécie de ara do ritual. Ao lado dela se ajuntavam as marcas, objetos cerimoniais:
cachimbos, maracá pequenote de madeira, óleo, água-benta e “cauim”. O que chamam de cauim
às vezes é uma beberagem feita de jurema. Atualmente, não sei se por desagradável de beber ou
por dificuldade de confecção a bebida de jurema é frequentissimamente substituída pela aguinha
santa que passarinho não bebe”.

255
e sacerdotal, requisitando agulha-e-linha, um prato fundo,
cachaça e uma lata com brasas. E Manuel Fulô reapareceu
também, muito mais amarelo ao povo Veiga, funebremente:
— Podem entregar a minha Beija-Fulô p’ra o seu Toniqinho das
Águas, que ela agora é dele...
Então eu me sobressaltei, e umas mulheres choramingaram,
porque o dito equivalia a um perfeito legado testamentário. Mas
os dois donos da Beija-Fulô tornaram a fechar-se no quarto, com
o prato fundo, as brasas, a agulha-e-linha e a cachaça, e ainda
outros aviamentos. (SA p.297/98)

No poema “Reza Brava” e em “São Marcos”, alguns elementos são


dados ao leitor, mas ele será convidado a participar, juntamente com as outras
personagens, como espectador de um ato em que lhe cabe o lugar da crendice,
para que, como diz LÉVI-STRAUSS (1991, p.194), se instaure um “campo de
gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e
aqueles que ele enfeitiça”. Assim, em nenhum momento há o pronunciamento
completo da Oração de São Marcos ou de algum ritual, mas apenas trechos e
fragmentos, que funcionam como palavras/objetos, verdadeiros artefatos mágicos
que provam o caráter neófito dos narradores, e mantêm a imagem do sagrado
como algo ocultado, que só deve ser usado no momento correto. Ainda assim, a
eficácia do processo é novamente colocada em questão, já que em “Reza Brava”,
há o retorno do marido, no entanto, morto; e em “São Marcos”, José/João precisa
negociar a paz com Magalô mediante pagamento.
Cada palavra tem seu lugar no texto e cada narrado prepara o instante
seguinte para se completarem ao final. Por isso que esses contos rosianos são
mais que narrativas mágicas, são estórias que enfeitiçam e que rompem com as
fronteiras estabelecidas entre o quê e o como se conta. Esse ato acaba por
ritualizar o texto, em que o bruxedo fica além das páginas, convidando a um
adentrar-se na leitura rumo ao desconhecido. Um bom exemplo para se pensar
essa situação seria João Mangolô, que ao longo de “São Marcos” — de todos
feiticeiros do Calango-Frito — ganha um destaque especial devido ao poder de
seus bruxedos e às zombarias que “José/João” lhe fazia, classificando-o de:
“velho-de-guerra, voluntário do mato nos tempos do Paraguai, remanescente do

256
‘ano da fumaça’, liturgista ilegal e orixá-pai de todos os metapsíquicos por-perto”
(SA p.247).
Além dos qualitativos atribuídos, o seu sobrenome (alcunha?) corrobora
ainda mais seu estado e profissão. Mangolô está registrado no “Dicionário musical
brasileiro” de Mário de Andrade (1989 p.301) como “dança da família da mana-
chica”; e no Dicionário AURÉLIO (1990), como de provável origem africana e
significa “feijão-de-porco”. Ainda consta: mangalaça e mangalaço,
respectivamente, 1) “vadiagem, mandrice, vagabundagem” e 2) “vagabundo,
vadio, tunante, biltre e patife”. Também se precisa fazer referência ao termo
tanglomanglo que significa; 1) “malefícios atribuídos a feitiços ou feiticeiros,
bruxedo, sortilégio”; 2) “azar; infelicidade” 3) “caiporismo”; tendo como variante:
tangolomango, e salientar que tango (de origem africana) significa “pequeno
instrumento e dança executada por esse instrumento”. Deve-se também explorar o
verbo mangolar ou mangonar: “ter mangona, vadiar, preguiçar, mangonear”.
Bariani ORTÊNCIO (1983, p.263), em seu Dicionário do Brasil central, registra os
termos: 1) mangano como “feiticeiro poderoso, respeitado e considerado como
gente de outro mundo, que possuía poder mágico e desafiava o céu, a terra, o ar,
até o sol”; 2) mangalaço como “sujeito sem préstimo, ordinário” e 3) mangongo
como “sujeito enjoado, antipático”. Por fim, vale anunciar mangoça ou mangofa:
“zombaria” e que o verbo mangar significa “rir, ridicularizar”. Ora, desse
arrolamento dos inúmeros significados que se completam, num ritual das palavras,
percebe-se bem a chacota de “José/João” frente a Mangolô:

— Ó Mangolô!
— Senh’us’Cristo, Sinhô!
— Pensei que você era uma cabiúna de queimada...
— Isso é graça de Sinhô...
—... Com um balaio de rama de mocó, por cima!...
— Ixe!
— Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe?
“Primeiro: todo negro é cachaceiro...”
— Oi, oi!...
— “Segundo: todo negro é vagabundo.”
— Virgem!

257
— “Terceiro: todo negro é feiticeiro...”229 (...)
— Ó Mangolô!: “Negro na festa, pau na testa!...” (SA p.245)

Além de conhecedor das inúmeras possibilidades significativas do termo


mangolô, o narrador irá chamar seu adversário de “cabiúna queimada”, o que
mostra seu bom entendimento relativo à flora — como se poderá ver no decorrer
da narrativa — relacionando a imagem do negro ao dessa árvore de cor preta e
queimada. Nilce Sant’Anna MARTINS (2001, p.89), em seu O léxico de Guimarães
Rosa, não registra o termo mangolô, mas dá à cabiúna o significado de: “árvore da
família das leguminosas cuja madeira é aplicada para vários fins; jacarandá-preto.
// Do tupi kawi’una, ‘mato verde-escuro’”. Já o AURÉLIO (1990) registra — além
das informações botânicas já referidas — cabiúna como “negro desembarcado
clandestinamente no Brasil, após a lei de repressão do tráfico africano”. Também
não se pode deixar de declarar que o narrador descreve o feiticeiro como um
Preto “horrendo” e marcado por um defeito (“banguela”), retomando assim uma
das imagens que tanto ajudou a reconhecer o feiticeiro/a ao longo da história
religiosa ocidental. Pode-se ler em Jean PALOU (1988, p.15), segundo o qual um
profano reconhece um feiticeiro através de sinais distintivos, que “variam de um
país para outro e mesmo de uma província para outra. Um defeito físico (olhos
vermelhos e lacrimejantes, mancha de vinho, olhar perturbado) é freqüentemente
um dos critérios mais empregados” para o reconhecimento.
Assim, parece claro, nessa fecunda Babel de Guimarães Rosa, a
interminável rede de significados que vão se construindo a cada termo locado na
narrativa. São postas, desta forma, as palavras como elementos que instauram a
realidade, fazendo da nomeação o estado das coisas. A alcunha e o aspecto físico
de João Mangolô, por exemplo, lhe impõem uma realidade da qual — no ritual do
escrito — cumpre seu lugar, o que equivale a dizer que mais que um
sobrenome/apelido e características, Mangolô adquire uma identidade, que unida
aos outros itens, forma a cena/cerimonial, que será de extrema importância para
se compreender os futuros acontecimentos. É válido expressar também que o

229
- Em Grande sertão: veredas (2001, p.554), se lê que “Ara, para obrar bom feitiço, que valha,
diz-se que só mesmo negra, ou negro”

258
leitor fica interditado — como no cerimonial de fechamento do corpo — de alguns
elementos do ritual da narrativa, os quais ele não percebe por inteiro, mas que vão
sendo anunciados aos poucos no ato da leitura.
A linguagem estará pronta para instituir o real — como no encanto da
cegueira preparada pelo feiticeiro do Calango-Frito e nas palavras do Targino ao
convidar Manuel Fulô ao duelo pela Maria das Dores — como também para
desrealizá-lo pela magia da pronúncia da oração de São Marcos e Santo Amâncio
e do ritual de fechamento do corpo. Nos dois casos, a palavra será veneno e
remédio, causa e conseqüência do movimento das personagens. Até porque,
como se pode ver, tanto João/José como Manuel Fulô fazem discursos de
heroísmo frente a situações que ainda não se cumpriram ou que acreditassem
possíveis. A ambigüidade desses discursos pode ser vista nos termos de DERRIDA
(1991, p.15) em A farmácia de Platão:

Esse phármakon, essa “medicina”, esse filtro, ao mesmo tempo


remédio e veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda
sua ambivalência. Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa
potência de feitiço podem ser — alternada ou simultaneamente —
benéficas e maléficas.

São falas que antecedem ao ponto principal da estória, mas que já lhe
realizam de alguma forma o que — pela palavra proferida — irá também instaurar
a sua cura. O mesmo se poderia falar dos títulos, que, a priori, parecem não dizer
nada ou pouca coisa, mas fazem parte central da resolução (veneno/remédio) da
querela entre as personagens. Em outras palavras, a solução das intrigas que
foram instauradas acontece pela via de rituais que se manifestam desde o início
nos títulos dos contos: fechar corpo e a oração brava.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
ANDRADE, Mário de. Música de feitiçaria no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1963.
ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Coordenações Oneyda Alvarenga e
Flávia C. Toni. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: Ministério da Cultura; São Paulo: EDUSP,
1989.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1988.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.

259
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: 1990.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “O certo no incerto: o pactário”. In: COUTINHO, Eduardo F.
(Org.), Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
LEONEL, Maria Célia. Magma e gênese da obra. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
MARTINS, Nilce Santa’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 2ª ed., São Paulo: EDUSP,
2001.
ORTÊNCIO, Waldomiro Bariani. Dicionário do Brasil Central. São Paulo: Ática, 1983.
RAMA, Angel. Os primeiros contos de dez mestres da narrativa latino-americana. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
RAMOS, Arthur. A aculturação negra no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1942.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Record/Altaya, s/d.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
ROSA, João Guimarães. Magma. Desenhos de Poty. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998.
ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no pinhém. 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001a.
SPERA, Jeane Mari Sant’Ana. “A poesia em Magma em contos de Sagarana”. In:
Seminário Internacional Guimarães Rosa: Veredas de Rosa I (1998: Belo Horizonte). Belo
Horizonte: PUC Minas, CESPUC, 2000, pp.295/298.
UTÉZA, Francis & RASSIER, Luciana Wrege. Sagarana: Marcos São Marcos. In: Nonada:
Letras em revista. Nº 01, Ano 01, Porto Alegre: Faculdades Integradas do Instituto Ritter
dos Reis, 1997.

260
BIPOLARIDADE E
ANTAGONISMOS: O SAGRADO
E O PROFANO EM O PAGADOR
DE PROMESSAS

LOURDES KAMINSKI ALVES

261
BIPOLARIDADE E ANTAGONISMOS: O SAGRADO E O
PROFANO EM O PAGADOR DE PROMESSAS

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)

O Pagador de Promessas (1960), de Dias Gomes é, talvez, a peça que


trouxe maior reconhecimento ao dramaturgo, sendo apresentada, pela primeira
vez, no dia 29 de julho de 1960, no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo,
sob a direção de Flávio Rangel. Essa peça conferiu ao dramaturgo prêmios
importantes, no Brasil e fora do país, denotando a importância da mesma. Peça
que, segundo o próprio autor, o colocaria por inteiro, desvelando sua vivência,
certezas e incertezas, visão de mundo, angústias, enfim, o que tinha sido
represado em sua mente, num processo angustiante de gestação desenvolvido
principalmente nos anos da década de 1950.

No processo de construção final da peça transparece a pesquisa


realizada pelo dramaturgo, em Salvador, trazendo à tona o problema do
sincretismo religioso, o que confere ao texto força e autenticidade. A peça
apresenta o elemento nacional sem perder o caráter universal assentado,
principalmente, no perfil do herói.

A trama narra a tragédia de Zé-do-Burro, personagem protagonista que,


em pagamento de uma promessa feita num terreiro de candomblé, já que em sua
cidade natal não havia uma igreja de Santa Bárbara, percorre sete léguas com
uma pesada cruz a fim de depositá-la em Salvador, junto ao altar da santa. No
terreiro de candomblé, havia uma imagem de Iansan, que no sincretismo católico-
africano representa Santa Bárbara, santa esta salvadora do seu burro Nicolau.

A personagem Zé-do-Burro ao chegar em Salvador, se defronta com a


resistência de Padre Olavo que, defendendo a ortodoxia cristã, não admite a
promessa. O conflito desenvolve-se de acordo com uma lógica inexorável e o

262
encadeamento rigoroso das cenas conduz ao desfecho trágico. A peça tem sua
ação ambientada em Salvador e marca fatos de uma época atual. Apresenta-se
dividida em três atos, sendo os dois primeiros atos divididos em dois quadros cada
um. Semelhante à tragédia antiga, a ação desenrola-se do lado de fora, em
espaço aberto, o que nos remete a pensar, que no caso do ambiente da Grécia
antiga, tal peça se passaria em frente a um palácio, índice do poder dos reis. Na
peça do dramaturgo brasileiro, a ação dramática desenrola-se em frente à igreja,
remetendo já para a tipificação do conflito unificador da peça. No primeiro ato tem-
se, então, a descrição do cenário.

A unidade espacial, a praça, funciona como um índice do espaço


urbano, insinuando o deslocamento da personagem de seu ethos cultural. O
primeiro quadro apresenta o prólogo em que se fica conhecendo as personagens
Zé-do-Burro e Rosa num diálogo em frente à igreja fechada, onde as personagens
esperam para depositar a cruz no altar.

No segundo quadro, ou episódio, são apresentadas as primeiras e mais


significativas personagens oponentes a Zé-do-Burro: a Beata, o Sacristão e o
Padre Olavo, que discutem sobre o gênero e os propósitos da promessa realizada
a Santa Bárbara/ Iansan. Estes representam, ao modo da tragédia antiga, os
agôns, porém, ao invés do conflito marcado pelas lutas sagradas tem-se o
contraste entre o reconhecimento da religião afro-brasileira e a fé da igreja
católica:

Padre - Você fez mal meu filho. Essas rezas são orações do demo.
Zé - Do demo, não senhor.
Padre - Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo
homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus. E
230
não sabe se caminha para o céu ou para o inferno. (p. 62)

230
Todas as citações ilustrativas do texto dramatúrgico utilizadas no presente artigo referem-se a
GOMES, Dias. O Pagador de Promessas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

263
Na peça, os contrastes evoluem, no sentido de adensar a tensão entre
outros aspectos contrastantes, como à luta entre os valores do espaço urbano e
do espaço rural e arcaico que caracteriza o perfil do herói Zé-do-Burro.

Conforme se desenrola a ação dramática surgem personagens como


Mestre Coca e Secreta. Todas essas personagens ressignificam a voz do antigo
coro da tragédia clássica, agora, representadas pelo elemento popular e também
a figura do mensageiro da tragédia grega, aqui representada pelo repórter:
Repórter - Lá está ele... Parabéns! O senhor é um herói. Zé – Herói?/ Repórter - E
dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber. O senhor vai ficar famoso. (p.
85)

No terceiro ato, aparece o mestre do coro (corifeu na tragédia antiga),


representado na voz do mestre da roda de capoeira, seguido pelas demais vozes
do coro. Apresentam uma cantiga de ritmo triste acompanhada pelo som do
berimbau, lembrando que na Antigüidade dos povos toda palavra poética estava
relacionada com a musicalidade, ou acompanhada por um instrumento musical,
por meio de jogral, ou da representação.

O êxodo conta com a presença em cena de todas as personagens,


marcado pelo acontecimento patético, a morte da personagem e a redenção do
herói morto sendo carregado pelo povo com a cruz para dentro da igreja. Paralelo
às máscaras da tragédia antiga, o herói deitado sobre a cruz com os braços
estendidos atinge o público pela emoção e pela compaixão. O herói trágico
aparece individualizado por uma máscara em relação ao grupo das pessoas
comuns que a carregam e assim como na tragédia antiga, a máscara integra a
personagem trágica numa categoria social e religiosa bem definida, a dos heróis.
A máscara faz da personagem a encarnação de um desses seres excepcionais
cuja lenda, fixada na tradição heróica cantada pelos poetas, constitui para os
gregos do século V uma das dimensões do seu passado longínquo e acabado,
que contrasta com a ordem da cidade.

264
A linguagem da peça, diferente do tom solene da linguagem da tragédia
antiga, faz transpirar a vida popular rica em regionalismos, expandindo-se num
diálogo espontâneo e comunicativo, de grande carga géstica e eficácia cênica.

A unidade de tempo está marcada cronologicamente pelo período de


um dia. A ação dramática tem início com a chegada de Zé-do-Burro e Rosa em
frente à igreja, muito cedo. A cidade está dormindo, no entanto, ouvem-se, no
silêncio da madrugada os sons distantes dos atabaques de um candomblé.
Graças aos efeitos da sonoplastia, que é também conteúdo no teatro moderno,
observa-se a presença dos sons da cultura afro-brasileira, marcando todo o ritmo
da peça. O ritmo da capoeira constitui-se em símbolo agônico do fim trágico do
protagonista; a ação dramática chega ao final quando o sino da igreja começa a
tocar as “Ave-marias”.

Marcando ou reforçando os antagonismos presentes no texto, tem-se no


projeto da sonoplastia da peça uma função significativa para o som do sino da
igreja e os sons dos atabaques na praça; ritmo e imagem que representam
antagonicamente seu desfecho trágico.

A fábula compõe-se das três partes clássicas do teatro: a peripécia em


que o padre não permite à personagem Zé-do-Burro pagar sua promessa; o
reconhecimento que se dá quando o protagonista descobre que naquele espaço
(urbano) é enganado e humilhado; o acontecimento patético em que Zé-do-Burro
não cede ao padre, ainda que tenha que pagar com a própria vida, acontecimento
que remete ao caráter dos heróis trágicos.

Nesse sentido Hegel, lembra que, “quando os heróis trágicos são


representados sucumbidos pelo destino, a sua alma regressa a eles mesmos
como se dissesse assim seja”.231 Assim, o homem dilacerado pelo destino ainda
que perca a vida, não perde a liberdade, sendo esta confiança em si que lhe
permite, na dor, manter e pôr à prova a calma e a serenidade. A atitude inflexível
do protagonista, ancorada pelo caráter íntegro de Zé-do-Burro faz recair a

231
HEGEL, G. W. Friedrich. Estética. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Nova Fronteira, 1999, p.
175.

265
simpatia sobre o indivíduo isolado em face da poderosa organização da igreja,
munida de todos os argumentos e de toda a lucidez racional. Mesmo buscando a
conciliação, ela não parece fazer jus às expectativas de sabedoria e tolerância, em
face do indivíduo simples e frágil, no seu desespero solitário e na sua fé ingênua.

As próprias concessões propostas acabam confirmando a intolerância.


Segundo Sábato Magaldi essa intolerância se erige na peça, “em símbolo da
tirania de qualquer sistema organizado contra o indivíduo desprotegido e só”232.
Dias Gomes constrói uma personagem capaz de conduzir os espectadores a
viverem e sofrerem o destino de Zé-do-Burro, identificando-se com ele e com sua
humilde grandeza, sentindo exaltadas as suas próprias virtualidades humanas,
podendo ser visto nesta perspectiva uma função catártica do teatro
contemporâneo.

No choque entre as mentalidades díspares do herói e dos habitantes do


mundo urbano, revela-se e se expõe, nitidamente, o mundo do protagonista. Não
é entendido por ninguém, nem entende nada do que ocorre:

Zé - Moço, eu acho que o senhor não me entendeu. Ninguém ainda me


entendeu...
Repórter – O diabo foi o senhor ter escolhido um dia como o de hoje.
Sábado. Amanhã é domingo, o jornal não sai. (p. 91)

O herói mantém a dignidade, apesar da perspectiva, inicialmente


humorística, abandonada na medida em que a substância humana de Zé-do-Burro
se afirma e sobrepõe aos aspectos risíveis do seu ajustamento aos padrões
culturais da cidade. Neste aspecto, ele se afasta do perfil de certos heróis trágicos,
a exemplo de Antígona de Sófocles, cuja substância humana é construída no
espírito nobre e autêntico de uma princesa, filha de Édipo e sobrinha do rei,
representante da pólis e do espaço urbano.

Este deslocamento classifica a tragédia individual do herói como


tragédia social, pois ela decorre da falta absoluta de comunicação entre o mundo
primitivo de Zé-do-Burro e dos habitantes citadinos. O protagonista entra em

232
MAGALDI, S. Aspectos da dramaturgia moderna. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 78.

266
choque com todos os habitantes da cidade: senhoras religiosas, prostitutas,
rufiões, jornalistas, negociantes interesseiros, delegados e padres, cujas falas ele
não consegue compreender. Zé-do-Burro não sabe raciocinar nos termos
universais e abstratos da cidade, agindo com o sentimento e com a intuição. A
personagem vive num estágio mágico-mítico.

Por isso, a promessa feita pelo protagonista adquire o sentido de um


negócio. A palavra transforma-se no objeto. Segundo o pensamento mágico-mítico
a palavra dada é parte de Zé-do-Burro, selando um trato, conduta que só se
realiza no mundo arcaico da personagem. A promessa, fato concreto, resiste a
qualquer argumento dialético e envolve o herói integralmente, já que é parte dele,
mas essa integridade não é possível no mundo urbano. A atitude da personagem
Zé-do-Burro, em especial sua persistência em cumprir a promessa, analisada no
nível da significação, tomando a acepção de Barthes, expressa-se no “nível da
função como o núcleo ideológico que manterá a direcionalidade da trama”.233 Na
condição de situação proposta à personagem, a promessa revela-se carregada de
significância, verticalizadora das relações analógicas que delinearão a definição
do conflito. Uma compreensão do fenômeno da promessa no imaginário popular é
crucial na apreensão de todo o mecanismo desencadeador da atitude do
protagonista.

Na acepção de Oliveira “a promessa é um rito presente na construção


do imaginário religioso e apresenta-se no universo das representações e práticas
do catolicismo popular como elemento de explicação da função social dessa
234
prática” . Ao propor uma definição de catolicismo popular, como berço para as
práticas de devoção populares, o autor traz à tona sua propriedade de ser
acessível a todos os fiéis, sem mediação de especialistas eclesiásticos. A
promessa feita por Zé-do-Burro é significativo exemplo dessa inserção da
personagem no universo das relações informais com o sagrado, aqui posto no

233
BARTHES, R. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. São Paulo:
Vozes, 1973, p. 28.
234
OLIVEIRA, A. P. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo
romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 115.

267
âmbito de uma economia religiosa que reside nas práticas ritualísticas do
catolicismo popular:

Zé - Não, nesse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente


embrulha o santo, perde o crédito. De outra vez o santo olha, consulta lá
os seus assentamentos e diz: - Ah, você é o Zé-do-Burro, aquele que já
me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa.... E tem mais:
santo é como gringo, passou calote num, todos os outros ficam sabendo.
(p. 22- 23)

É possível perceber no texto que compõe a fala da personagem outros


textos que sinalizam para o sentido da promessa em seu mundo primitivo,
revelando o ethos cultural da personagem. Zé-do-Burro dirige-se numa economia
vocabular própria de uma relação de afetividade e intimidade com o santo, na
contra-mão de uma religiosidade anti-ortodoxa. O protagonista coloca a promessa
no espaço de uma relação quase comercial ao atribuir-lhe um caráter burocrático.
Nessa relação, insere-se uma intimidade que pressupõe um “crédito”, podendo
sofrer sanção em descumprimento de códigos internos dessa economia religiosa.
Uma quase dessacralização observada no coloquialismo da linguagem do santo
na fala da personagem, colocando-o no espaço das relações humanas.

Observada por um viés sociológico, de acordo com a acepção de


Oliveira, a promessa compõe-se de um rito ou uma espécie de culto religioso
popular que pode assumir duas prerrogativas distintas:

No catolicismo popular encontramos dois modos básicos de cultos: o


modo contratual e o modo de aliança. O modo contratual é aquele pelo
qual o fiel pede uma graça ao santo, obrigando-se a um ato de culto pelo
qual o santo seja recompensado pela graça alcançada. Sua forma típica
é a promessa. Outro modo de relação, ente o fiel e o santo é o da
aliança. Contrariamente ao primeiro, o que está em jogo não é uma graça
235
determinada, mas uma relação permanente de devoção e proteção.

Diante desses traços do catolicismo popular, como conjunto de


representações e práticas religiosas desenvolvidas pelo imaginário coletivo, a

235
OLIVEIRA, A. P. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo
romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 117.

268
promessa de Zé-do-Burro inscreve-se no chamado modo contratual, pois a idéia
de um possível castigo, no caso de um não cumprimento, transferiu-se para o
imaginário desse homem religioso.

Expressando os antagonismos presentes na peça, o mundo primitivo e


denominado “inculto” do protagonista está impregnado por demônios. E sob a
égide de um catolicismo formalista e elitista, o universo da religiosidade popular
inscreve-se a partir de ritos sincréticos, na contra-mão da ortodoxia metropolitana,
no afã de sublimar as tensões sociais em uma expressividade religiosa de perfeita
intimidade com o sagrado, sem a intervenção direta do clero.

Quanto à preocupação com interpretações aligeiradas, o próprio


dramaturgo assegura:

O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical (...) Zé-do-Burro é


trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual
somente o povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado se coloca,
inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo
236
impacto emocional de sua morte.

A peça não remete apenas para uma forma de violência, ou para uma
região em particular. A personagem de padre Olavo que aparece no texto não é
um símbolo de intolerância religiosa, mas de intolerância universal. A
caracterização desta personagem pode travestir-se de outros significados.

O sagrado é entendido aqui como uma manifestação mítica e


imemorial, incutida na psique do homem religioso, delineado no perfil da
personagem Zé-do-Burro, apresentado como um homem do interior, de olhar
morto e contemplativo, homem caridoso que divide seu sítio com outros lavradores
igualmente pobres, para cumprir uma promessa. Promessa feita no terreiro de
Iansan, espaço “profano”, em oposição ao interior da igreja, local em que Zé-do-
Burro deseja adentrar com a cruz, espaço “sagrado”.

Essa dualidade entre o sagrado e o profano não acontece na tragédia


grega em que o homem é representado em comunhão total com seus deuses.

236
GOMES, D. Dias Gomes: apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 220.

269
Mas, no contexto histórico e estético do mundo contemporâneo é perfeitamente
possível, vindo a instaurar diversas interpretações, ou pelo menos relações de
contradições.

De acordo com T. S. Elliot, “o problema do nosso tempo não reside


apenas na incapacidade de acreditar em certos fatos a respeito de Deus e do
Homem, nos quais acreditavam os nossos maiores, mas na incapacidade de
sentir, para com Deus e para com o Homem, como eles sentiam”. 237

Segundo as reflexões de T. S. Elliot, deixar de acreditar em uma


determinada crença é perfeitamente compreensível, mas desaparecido o
sentimento religioso, perdem o sentido as palavras por meio das quais os homens
se esforçam por lhe dar expressão e isto pode significar a morte.

O texto dramático caracteriza Zé-do-Burro como homem religioso, ao


contrário de Rosa, sua mulher que dá mostras de revolta e cansaço. Esta acusa
Zé-do-Burro de não ter ouvido seu conselho em usar almofadinhas para carregar a
cruz. A contra-argumentação do protagonista acentua-lhe o caráter de homem
religioso e ao mesmo tempo, anuncia a fragilidade da personagem Rosa.

A manutenção das relações entre o protagonista e a mulher revelará


em toda a ação dramática uma dialética que em si já comporta a dicotomia
sagrado-profano. A personagem Rosa é o estereótipo do homem moderno,
facilmente adaptável e incapaz de experimentar a manifestação do sagrado,
inserida em um espaço diametralmente oposto: profano.

Em um mundo em que a homogeneidade espacial inexiste, uma vez


que apresenta quebras, rupturas, Zé-do-Burro, representando os valores do
mundo religioso, pode ser visto como exemplo significativo da tentativa de
reconstrução desse espaço. Seu olhar visionário sobre as coisas que o cercam é
um olhar sacralizado, construído sob signos totêmicos, corporificados por sua
gênese cultural e psicológica.

237
T. S. Eliot. Ensaios de doutrina crítica. Trad. Fernando de Mello Moser. Lisboa: Guimarães
Editores, 1997, p. 68.

270
O valor totêmico talvez possa ser visto como um elemento que
intensifica a (des)personificação da personagem ao minimizar a sua condição
humana. A carga totêmica que sustenta o nome Zé-do-Burro cinge-o de valores
que o aproximam de um vínculo misterioso, que na acepção de Mirceia Eliade
denomina-se hierofania,238 ou seja, o ato da manifestação do sagrado; a
manifestação de algo de “ordem diferente”, de uma realidade que não pertence ao
mundo real, em objetos que fazem parte integrante do mundo “natural”, ‘profano”.
Mirceia Eliade assevera que o homem ocidental moderno experimenta um certo
239
mal-estar diante de formas de manifestações do sagrado. Ao contrário do
homem moderno, o homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o
mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos sagrados. Conforme Eliade
essa tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de
todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última
análise, à realidade por excelência. Dessa forma, parece plausível observar que a
presença do totem, ao suprimir o nome da personagem, ou antes, reduzi-la a um
processo de zoomorfização, presta-se à negação da personagem enquanto ser
histórico capaz de ser ouvido, entendido na sua fé ou se fazer entender como
homem religioso, constituindo-se um dos agôns responsáveis pelo fim trágico do
herói.

238
ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 30.
239
ELIADE, M. Op. cit., p. 18.

271
AS INTERFACES ESPIRITUAIS NA
OBRA DE MANOEL DE BARROS

MARIA APARECIDA FERREIRA DE


MELO SOUZA

272
AS INTERFACES ESPIRITUAIS NA OBRA DE MANOEL DE BARROS

Maria Aparecida Ferreira de Melo Souza (NTE – Três Lagoas-MS)

Notamos na produção manoelina uma projeção arquitetural da palavra


que se expressa num grande tema primordial, a cosmogênese. A nossa pesquisa
rendeu uma descoberta multidisciplinar a qual resultou na dissertação de
mestrado “Manoel de Barros: uma interpretação poética e simbólica das interfaces
espirituais”240 impossível, portanto, de ser apresentada em apenas um artigo.
Apresentaremos, neste texto, de forma sintética o que poderá ser verificado com
maiores detalhes em nossa pesquisa, na íntegra.

Constatamos que Filosofia e Religião unem-se às sensações


experimentais que se enformam em linguagens artísticas, um trabalho em torno
das vozes da origem dos seres, que Manoel de Barros transportou para a poética
e as confirmou nos seus depoimentos concedidos ao jornal O Estado de São
Paulo, na entrevista a José Castello, em agosto de 1996: “Descubro memórias
fósseis. [...] Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o
primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler Vozes da origem [...] da
antropóloga Betty Mindilin”. 241

Considerando-se o testemunho do escritor, partimos do pressuposto de


uma permanente interatividade entre a poesia e as simbologias milenares que se
remetem à gênese do Cosmos e aos temas iniciático-religiosos:

Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil,


ao ouro que trazem da boca do chão.
[...]
Escrever nem uma coisa

240
SOUZA, dissertação de mestrado, texto não estabelecido, UFMS, 2004.
241
Disponível em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/castel09.htm> .Acesso em 30 de julho de
2003.

273
Nem outra –
A fim de dizer todas –
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
242
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.

E, por intermédio das façanhas do personagem Bernardo, a poesia


revela-se repleta de dimensões fantásticas e domínios sobrenaturais:

Bernardo escreve escorreito, com as unhas, na água,


O Dialeto-Rã.
Nele o chão exubera.
[...]
Bernardo montou no quintal Oficina de Transfazer
Natureza.243

[...]
O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-
ninguém. Ele parece com Bernardo.
[...]
Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com ár-
vore. As plantas querem o corpo dele para crescer por
sobre. Passarinho já faz poleiro na sua cabeça.244

[...]
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.245

Ao consultarmos os estudos de Eliade tivemos a oportunidade de


reatualizar a direção da pesquisa sobre os escritos de Barros, em virtude da
valorização que propusemos às análises cosmogônicas, já que os “Entes
Sobrenaturais” desenvolveram uma atitude criadora na imanência do ‘princípio’.
Segundo Eliade, a história “narrada pelo mito constitui um ‘conhecimento’ de
ordem esotérica, não apenas por ser secreto e transmitido no curso de uma

242
BARROS, 1989, pp. 60,61.
243
BARROS, 1989, p. 20.
244
BARROS, 1996, pp.29, 31.
245
BARROS, 1993, p. 97.

274
iniciação, mas também porque esse ‘conhecimento’ é acompanhado de um poder
mágico religioso”.246.

Com esse enfoque, pode-se afirmar que Barros oferece um tratamento


poético aos estados psíquicos, às interpretações míticas e simbólicas. O seu
talento tenta a todo instante aproximar-se de uma verdade, quase divina,
transcendente e pré-existente, que está alhures. Lembra o tocamento à
sacralidade totêmica, desvendando-se por meio dos efeitos de encantamento
mágico, nos quais brota a descoberta do outro. Nessa busca, analisamos a
matéria literária convertendo-se no processo de alteridade, revelando as
mensagens das formas inusitadas e originais propostas pela comunicação artística
do escritor o que nos impulsiona a enfatizar os interesses pessoais do poeta,
quando declara: as “palavras têm espessuras várias”.

Dentre as “espessuras várias” que as palavras da poesia manoelina


assumem em nossa leitura, notamos o personagem Bernardo envolvido com os
mistérios da vida e com o ato de perambular, emblematizando-se no “andarilho”,
aquele que desempenha sua dimensão metafísica, pois os seus sentidos
passeiam, apreendem circunstâncias, transformando-as em processos que
alcançam o amadurecimento emocional e espiritual. A sua evolução aparece no
contato direto com as coisas, uma iniciação semelhante à tradição inciático-
mística, que se configura no Arcano 9, das cartas do Tarô247. Bernardo lembra a
atividade peregrinante nas passagens poéticas expressas do Livro de pré-
coisas248, nas dez seguintes etapas ou ciclos vivenciais: “1. No presente; 2. No
serviço (voz interior); 3. No tempo de andarilho; 4. Um amigo; 5. Na mocidade feito
lobisomem; 6. Retrato de irmão; 7. A volta (voz interior); 8. A Fuga (voz interior); 9.
De alças curtas; 10. Dos veios escatológicos”.

246
ELIADE, 1993, pp. 18-19.
247
Baralho de cartas do Tarô, consultar as pesquisas de Stuart R. Kaplan em Tarô clássico. São
Paulo: Edit. Pensamento, 1995. De acordo com Gebelin, as vinte e duas cartas dos Arcanos
Maiores são um antigo livro egípcio, o ‘Livro de Thoth’ que fora salvo das ruínas dos templos
egípcios. “Thot” era na cultura egípcia, deus Mercúrio, inventor mítico da linguagem, dos
hieróglifos, ou letras. Assim, todos os deuses são letras, todas as letras são idéias, todas as idéias
são números e todos os números são signos perfeitos.
248
BARROS, 1985.

275
Analisando-se os aspectos numerológicos e iconográficos dos
conteúdos emitidos pelo eu narrador, notamos a simbologia do naipe 9: O Ermitão,
e nas dez etapas citadas, o naipe 10, A Roda da Fortuna. Desse modo,
necessitamos inserir alguns dados referentes à Cabala Judaica para que
possamos retirar maior efeito contrastivo da poética de Barros.

O conhecimento cabalístico249, segundo Stuart Kaplan, é um sistema de


filosofia religiosa que trata das concepções místicas de Deus, afirmando que a
criação do mundo segue a linha panteísta, a doutrina que equipara Deus às leis do
universo. Esse refinamento do detalhe simbólico insinua-se no Livro de pré-coisas,
que instiga a decifração semântico-numerológico verificável nos atributos que
recaem no Arcano 10, a Roda da Fortuna250 , embelezando o curso da vida,
quando a natureza reveste-se de marcas demiúrgicas e de procriação. Por
intermédio do Arcano 10, podemos interpretar o movimento do cotidiano, a
caminhada dos ciclos vivenciais que no Livro de pré-coisas ficam indicados, em 10
subtítulos, como anteriormente ficaram mencionados. Na vertente iconográfico-
numerológica do Arcano 9, o Ermitão12, imprime-se a leitura interpretativa, quando
o eu lírico mistura-se ao referencial autobiográfico e à função de alter-ego do
personagem Bernardo. Considerando-se essa fonte de absorção e interação, os
temas da deambulação recaem no sentido peregrinante dos estados de travessia,
viagens subjetivas experienciadas no contato com os objetos. A encenação
poética expõe tanto a participação do poeta como das suas memórias e às do
personagem Bernardo. O resultado é uma simbiose que efetiva a leitura
participativa de um sujeito lírico que se adensa ao imaginário literário.

As características aludidas a Bernardo nos versos citados no início


deste artigo, oferecem aproximações à iniciação espiritual esotérica desenvolvida

249
O conhecimento cabalístico é um sistema de filosofia religiosa que trata das concepções
místicas de Deus, afirma que a criação foi realizada através da emanação e da taumaturgia. A
teosofia da Cabala segue ao longo das linhas panteístas, a doutrina que equipara Deus às forças e
às leis do universo. Há dois livros que tratam das doutrinas da Cabala: O Sefer Tezira e o Sohar
(KAPLAN, 1995, pp. 51,52).
250
A Roda da Fortuna é um emblema iconográfico que dimensiona significâncias interpretativas em
volta de um “círculo” – que confere-se à simbologia da eternidade perdurante; um movimento
contínuo em direção ao progresso e à mudança (KAPLAN, 1995, pp. 98-100).

276
pela “Ordem dos frades menores” fundada por São Francisco de Assis.251. Em
alguns versos, o poeta faz alusão ao santo católico, o que pode ser constatado
capítulo dois de nossa dissertação de mestrado, mais precisamente no subtítulo
“Bernardo e o Tratado das Metamorfoses”, quando analisamos os contrastes
deste personagem com os conteúdos poéticos voltados aos elementos telúricos e
à natureza.

O simbolismo mítico do personagem Bernardo confundindo-se com a


própria natureza e integrando-se aos aspectos da gênese humana, evidencia-se,
na linguagem artística, uma encenação de ambientação pré-histórica, na qual o
homem e a natureza eram um só ente, a matéria. O resultado de tamanha
convergência metafórica repete-se na palavra “comunhão”, entretanto, a
impossibilidade de reaver ou de comungar com o todo universal permite apenas
ao eu poético perceber os vestígios, as sobras de algo remoto. Nesse estado de
contingência, as imagens literárias investem-se nos “andrajos”, trapos de vestes,
roupagens alegóricas que indicam as circunstâncias de um mundo ou de um
paraíso perdido. A agonia que transpassa essa recomposição espacial é um
trabalho que revisita o passado remoto e introjeta-se no eu existencial poético, ao
ser comparado às imagens borradas, pois nelas estão os seres ornados de
“andrajos”. De maneira sugestiva vê-se a tentativa de se efetivar um elo entre o
ser “ninguém” e a “comunhão com o começo do verbo”, cuja analogia emite-se no
“sentido sonoro das palavras”:

Falar a partir de ninguém


Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém

251
São Francisco de Assis é, certamente, o santo que teve maior comunicação, carinho, atenção,
amor para com todas as criaturas. Daí porque é o “padroeiro da ecologia”. Francisco foi fascinado
pela criação. [...] Era tamanha a sensibilidade e a delicadeza de Francisco que ele andava com
respeito em cima das pedras [...]. Recolhia do caminho os vermezinhos, para que não fossem
pisados. [...] Sabe-se que Francisco realmente costumava conversar com os animais.
(HARTMANN, 2003, pp. 32, 64).

277
Faz comunhão com o começo do verbo.252

Percebemos uma preocupação pelas significâncias do “Verbo”, pelo


“Absoluto Divino”, cujas concepções foram transpostas às obras: Livro sobre nada
de 1996 e Retrato do artista quando coisa, de 1998, conforme estes excertos:
“Prefiro as linhas tortas como Deus”253 ; “Experimento o gozo de criar. /
Experimento o gozo de Deus”254.

Percebe-se a proposta demiúrgica da poética de Manoel de Barros,


sentindo uma vontade impulsionante ao gerar as imagens representadas pelas
palavras. Por meio de um princípio de correlações cosmológicas, o poeta é um
verdadeiro Criador, no sentido abrangente do termo. No título da obra publicada
em 1937, Poemas concebidos sem pecado, temos a sensação de relembrar o
nascimento de Jesus, que fora concebido sem pecado, conforme os relatos da
Bíblia. Nas Sagradas Escrituras255 , o Messias fora gerado por Maria sem a união
carnal da atividade sexual, portanto uma natividade de concepção sem pecado.
Os primeiros poemas de Manoel de Barros foram produzidos em meio à pureza, à
virgindade do poeta, que, como iniciante, compara o ato criador poético à
concepção do próprio filho de Deus: sendo um ato de criação no qual se
presentifica a origem dos seres, o Todo.

Ainda sobre as significâncias do termo comunhão, atentemos para o


talento inventivo do poeta nestes estes versos: “não sou sequer uma tapera,
Senhor. / não sou um traste que se preze. / Eu não sou digno de receber no meu
corpo os / orvalhos da manhã.”256 No pequeno trecho temos uma amostra de
como o poeta sul-mato-grossense reconstrói suas leituras em outros contextos e

252
BARROS, 2000, p. 25.
253
BARROS, 1996, p. 39 .
254
BARROS, 1998, P. 21.
255
As Sagradas Escrituras, sobre o mistério da Anunciação: Eis que um anjo lhe apareceu em
sonho e disse: “José [...], não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem
do Espírito Santo. Ela dará a luz um filho a quem porão nome de Jesus” (Bíblia. Mat. 1, 20-21).
256
BARROS, 1998, P.41.

278
formas completamente desalojadas dos textos precursores. Verificamos nos
versos os resquícios de trechos da Missa Católica, cuja simbologia inscreve-se no
ritual da comunhão –, quando o pão e o vinho recebem a ação consagradora do
mistério da fé, uma transmutadora espiritualização que se materializa no corpo e
no sangue do Filho de Deus, simbologia que os fiéis compartilham. O poema
citado alude por meio dos desvios da linguagem parodística os momentos em que
o sacerdote, elevando a hóstia consagrada, tem a reciprocidade do responsório
dos fiéis nestas falas emblemáticas: “Senhor eu não sou digno de que entreis em
minha morada, mas direi uma palavra e serei salvo”257.

Nesse contexto de linhagem sacra, localizamos também, o evento


cristão do Pentecostes que celebra a descida do Espírito Santo, construído pela
habilidade extraordinária de Barros, ao moldar o gênero da menipéia, aos
contextos poéticos demarcados pelo transcurso dos 12 dias que antecederam a
morte do seu avô, que permanecera numa árvore. Os excertos poéticos que
seguem contêm as indicações dos elementos fantásticos, laivos das
reminiscências deixadas pelo avô, que também era um criador de textos, na forma
de cadernos de apontamentos:

Meu avô ainda não estava morando na árvore


[...]
Em 1913, uma árvore começou a crescer no
porão, por baixo do Gramofone.
[...]
O avô foi acordado de repente com os esforços
da árvore para irromper no assoalho da sala.
Escutavam-se também uns barulhos de ferro –
deviam de ser partes do Gramofone que
estertoravam.
No Pentecostes, a árvore e o Gramofone
apareceram na sala.
O avô ergueu a mão.
Depois apalpou aquele estrupício e pôde
reconhecer, com os dedos, algumas reentrâncias
do Gramofone.
A árvore frondara no salão.
Meu avô subiu também, preso nas folhas e nas
ferragens do Gramofone.

257
MISSAL ROMANO, 2000, p. 21.

279
Pareceu-nos, a todos da família que ele estava
feliz.
[...]
Todos olhavam para o alto na hora das
refeições, e víamos o avô lá em cima, flutuando
no espaço da sala com o rosto alegre de quem
estava encetando uma viagem.
[...]
Quatro dias depois de um novo Pentecostes, caiu
sobre o assoalho da sala, onde viviam os outros
membros da família, um ovo! Pluft e se quebrou.
Era um ovo de anhuma.
[...]
Doze dias antes de sua morte meu avô me
entregou um CADERNO DE APONTAMENTOS.
Os pássaros iam carregando os trapos
esgarçados do corpo do meu avô.
Ele morreu nu.
Falam que meu avô, nos últimos anos , estava
sofrendo do moral.
Por tudo que leio nesses apontamentos, pela
ruptura de certas frases, fico em dúvida se esses
escritos são meros delírios ônticos ou mera
sedição de palavras.
Metade das frases não pude copiar por ilegíveis. 258

Como podemos apreciar, nos versos citados o poeta aproveita os


elementos que demandaram as circunstâncias epifânicas ou miraculosas do texto
bíblico, convertendo-os em matéria literária com a ajuda inventiva da ilogicidade
praticada pelo gênero da literatura fantástica. O texto “Atos dos Apóstolos”259
descreve que, no evento de Pentecostes, o Espírito Santo descera quando os
apóstolos “estavam todos juntos no mesmo lugar”. Barros, ao aludir esse contexto,
provoca o avessamento da linguagem textual precursora da Bíblia, cria o efeito
parodístico dessacralizador, e assim profana e intervém com o seu imaginário:

Examinando-se outros efeitos poéticos transmitidos pela sensorialidade


da linguagem onomatopaica, sentiremos a sonoridade emitida pelo “Pluft”, na
queda de um ovo de anhuma. Isso causa situações, emoções de espanto literário,

258
BARROS, 1991. pp.9-13.
259
O relato dos Atos dos Apóstolos, no seu capítulo 2, demarcados nos episódios bíblicos:
“Quando se completaram os dias de Pentecostes estavam todos juntos no mesmo lugar; e de
repente um estrondo, [...] Apareceram-lhes repartidas umas como línguas de fogo, e pousou sobre
cada um deles. Foram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar várias línguas,
conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem.” (Bíblia, 1979)

280
caso remetamos às descrições originais sobre os relatos do Espírito Santo acerca
dos apóstolos. O eu poético referenda essa apropriação do contexto sagrado,
contudo o efeito transformador é originalíssimo e comparece pela linguagem
metonímica de uma paródia. Esse efeito contrastante pode ser obtido no contato
com a leitura textual precursora, que segue:

Quando se completaram os dias do Pentecostes, estavam todos


juntos no mesmo lugar; e de repente, veio do céu um estrondo,
como de vento, que soprava impetuoso, e encheu toda a casa
onde estavam sentados. Apareceram-lhes repartidas umas como
línguas de fogo, e pousou sobre cada um deles. Foram todos
cheios do Espírito e começaram a falar várias línguas, conforme o
Espírito Santo lhes concedia que falassem.260

Outro procedimento comparatista que desenvolvemos refere-se às


influências dos “Sermões” do Pe. Antônio Vieira, que se efetiva em duas obras: no
Tratado geral das grandezas do ínfimo, de 2001, e nas Memórias inventadas – a
infância, de 2003.

Para apreciarmos os contrastes das interfaces dos Sermões do Padre


Antônio Vieira sendo absorvidos e reinterpretados pelos valores dispostos nos
textos manoelinos, é necessário delinearmos quais foram as lições, o aprendizado
e as interferências que se expressaram no texto poético, que ora é transposto de
Memórias inventadas – a infância:

Quando eu estudava no colégio, interno,


Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
__
Corrumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu para decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
__
Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.

260
BÍBLIA, Opus cit , cap.2, vs. 1-4.

281
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão.
__
Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o silêncio
das paredes.

É de se notar que no poema acima, o eu poético envolve-se e declara-


se imerso num processo seletivo de leituras. Confessa ter depreciado os
“romances de aventuras, mal traduzidos e que me davam tédio”. Em contrapartida,
as leituras do Sermão da sexagésima causavam embevecimento, motivação para
o poeta, pois, ao lê-las, havia memorizado 50 linhas do Sermão. O autor do
poema narrativo, ainda muito jovem, já sabia distinguir a qualidade de uma obra,
sobretudo pelas vias criteriosas da tradução, quando a estrutura dos conteúdos
artísticos deveria ser instigante à função da leitura e do leitor. Depois desta
“confissão” do eu-poético, na qual demonstra sua experiência na “parede”,
podemos fazer uma nova leitura do Auto retrato falado, publicado no Livro das
Ignorãças:261

Toda vez que encontro uma parede


ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de
mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes ?
[..]
Fazer o desprezível é coisa que me apraz.
[...]
Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.

261
BARROS, 1993, p. 89.

282
Esperamos ter feito uma provocação por meio desta leitura, na qual
comprovamos que a poética de Barros funda-se numa preocupação pela
cosmogênese; carrega os valores genesíacos que se engatam às reiterações
temáticas e simbólicas, por isso, a figura do Ermitão associada ao desempenho do
personagem Bernardo é sempre próspera, desenvolve-se em meio às
hibridizações dos temas, conteúdos e contextos apresentados nos poemas. O
campo de interação multidisciplinar conjugou-se com incrustações filosóficas,
hagiográficas, e religiosas e por isso, a sua obra converteu-se numa peregrinação
iniciática que explorou os sentidos, as sensações espirituais materializadas ao ato
da escritura literária, integrada à mundivivência dos trajetos e das paisagens do
Pantanal.

283
LITERATURA INSPIRADA –
IMAGENS DO JUDAÍSMO EM
BORGES

GERSON LUIZ ROANI

284
LITERATURA INSPIRADA – IMAGENS DO JUDAÍSMO EM
BORGES

Gerson Luiz Roani (Universidade Federal de Viçosa)

Ao transpor o limiar do labirinto textual borgeano, o leitor inevitavelmente está

condenado a vagar entre as urdiduras e artimanhas de um conceptualismo imanente ao

texto, tendo como “fio de Ariadne” a palavra escrita e a certeza de que a saída só é

acessível aos que vislumbram, nessa tessitura de significantes, a ausência de

casualidade, além da convicção de que a palavra tem um infinito poder, quando

magicamente articulada, de criar outros mundos e uma humanidade outra. Investe-se,

assim, na pertinência de uma abordagem da escritura borgeana à luz de uma invariante

recorrente nessa produção: a presença do imaginário judaico. Cumpre observar, acerca

desta presença de temas, motivos, argumentos, assuntos e imagens judaicas no campo

da Literatura, que a minoria étnica judaica, a comunidade religiosa, ou como quer que

chamemos esta complexa entidade cultural de raízes milenares, tem contribuído,

constantemente, em inúmeros campos da cultura ocidental ao longo dos séculos. No

âmbito da Literatura, essas contribuições também foram sentidas pela amplitude com que

o povo judeu dedicou-se a desdobrar em coordenadas sócio-culturais diversas e - por que

não dizer? - em circunstâncias adversas a sua cultura, uma passional relação com o

livro262.

Isto pode ser identificado no envolvimento que levou o povo judeu a traduzir as

suas tradições religiosas e éticas, mediante a criação de gêneros textuais, os quais

262
ROANI, Gerson Luiz. Literatura e judaísmo. O rosto judeu de Borges. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2003.

285
revelam a pluralidade de faces assumidas pela cultura judaica ao longo dos últimos dois

mil anos: A Bíblia, comentários teológicos e filosóficos sobre a fé hebraica, tratados éticos

normatizadores da vida judaica, escritos místicos e cabalísticos, narrativas épicas, poesia

sacra e profana e prosa ficcional. Com base nessa tradição cultural, inúmeros poetas,

romancistas, dramaturgos e críticos literários de ascendência judaica ou não deram

valiosas contribuições às várias literaturas do Ocidente. Em outras palavras, constata-se

que na obra de inúmeros escritores, em diferentes épocas, a herança cultural judaica

influenciou significativamente as suas realizações artísticas. Sobre essa influência do

imaginário judaico, nos sendeiros ficcionais trilhados pela Literatura do Ocidente, bem

como sobre a necessidade de detectar essa presença judaica em autores expressivos de

diferentes literaturas, assim, escreveu o teórico George Steiner:

“A universalidade modelizante do código das Escrituras durou


sensivelmente mais do que a força da religião. O Deus dos
filósofos e dos leigos iluministas pode ter morrido no século XIX,
mas o Deus da Bíblia e a linguagem e a visão de mundo gerada
por sua presença narrativa continuam formidavelmente vivas e
operantes nos escritos de Thomas Hardy, Thomas Mann, Gide,
Proust. Nós não teríamos os ritmos da prosa de Hemingway sem
os “Eclesiastes”, nem as tristezas dinásticas de Faulkner sem as
“Crônicas” e os “Livros dos Reis”. O mundo de Schoenberg é
bíblico até o âmago e “Fim de Jogo” de Beckett é uma meditação
exata sobre os instrumentos e as finalidades da Paixão”263.

A citação de George Steiner permite vislumbrar que a arte literária do Ocidente

não pode recusar à tradição judaica uma importância inegável. Repudiar o legado judaico

à Literatura, negar que o Judaísmo tenha inspirado e fornecido a muitos escritores

motivos, imagens e temas para a confecção de suas obras empobrece a própria visão da

natureza dialógica do fenômeno literário, em cuja estrutura subjaz uma formidável

263
STEINER, Georg apud ALTER, Robert, KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. São Paulo:
Editora da UNESP, 1997. 725 p.

286
capacidade de “referência desdobrada”, para lembrarmos a bela expressão cunhada por

Paul Ricoeur264.

A cultura judaica legou à civilização humana uma ampla diversidade de

documentos contendo antigas histórias, poemas sacros e profanos, leis, profecias e

narrativas. Nós vivemos com essa tradição judaica durante toda a vida. Isto é, a

linguagem, a cosmovisão judaica, as suas mensagens religiosas e éticas, além das

histórias bíblicas, configuram-se como uma realidade, simultaneamente, estranha e

familiar265. A estranheza e a familiaridade desta presença, pairando como uma sombra

tutelar sobre a cultura do Ocidente, tem levado incontáveis escritores a revisitar o

imaginário judaico, de acordo com justificações criativas e escriturais que ultrapassam os

limites das considerações religiosas inerentes ao corpus cultural hebraico. Com isso,

postulamos que o universo judaico mostra-se como uma das mais importantes fontes

geradoras da criação ficcional de todo o nosso patrimônio literário ocidental.

De acordo com o que vem sendo exposto, em um conjunto de textos do

escritor argentino Jorge Luís Borges, se constata a presença de uma invariante, que, pela

natureza das suas imagens, motivos, argumentos e temas poder-se-ia denominar judaica,

pois o autor dedicou numerosos trabalhos de natureza ficcional ao universo do Judaísmo.

O encantamento de Borges pela tradição cultural judaica pode ser expresso

através de uma pergunta que o escritor, freqüentemente, se colocava: em que a Sagrada

Escritura, o texto hebraico por excelência, difere de outros livros? Diz o artista que na

tradição literária ocidental, não existem textos absolutos. Segundo o artista, por mais

notáveis que muitas obras da Literatura do Ocidente possam ser, elas jamais podem ser

consideradas plenamente acabadas, perfeitas em todos os seus aspectos constitutivos.

264
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa – Tomo III. Campinas: Papirus, 1997. 518 p.
265
ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Op. cit., p. 11.

287
No que concerne à mística judaica, a Sagrada Escritura é um texto absoluto,

no qual nada pode ser obra do acaso. Isso equivale a dizer que por ser ditada pelo

Espírito Santo, a Sagrada Escritura não apresenta lacunas, gretas e fendas. Com

admiração, Borges sublinhava a importância das palavras desde uma perspectiva divina:

“Não há textos absolutos; em todo o caso, os textos humanos não o são. [...] Em um texto

redigido por uma inteligência infinita, em um texto redigido pelo Espírito Santo, como

supor uma desatenção, uma fissura?”266 .

A aproximação borgeana ao universo do Judaísmo foi essencialmente literária

e intelectual, sem inclinação de fé ou mística, mas alimentada por uma insaciável

curiosidade acerca do hermetismo e mistério inerentes às práticas judaicas de escrita e

de interpretação das Escrituras. Não causa estranheza esta valorização intelectual do

imaginário judaico tão perceptível na obra borgeana, pois o ficcionista latino-americano

constantemente afirmou sua admiração pelo povo hebreu como aquele que legou à

palavra escrita e ao livro a dimensão do sagrado. Em inúmeros textos do escritor

argentino, da primeira à última página, os judeus constituem o tema substancial de suas

buscas ficcionais, tanto em sua prosa, quanto em inúmeros de seus versos 267.

A nossa leitura da aproximação de Borges aos textos da literatura hebraica

aponta para a explicitação de dois impulsos ou interesses fundamentais. Em Borges,

subjaz um encantamento acerca da relação dos leitores hebreus com os textos sagrados

e literários fundamentais da cultura judaica, reunidos sob a forma de textos místicos ou

doutrinários, reunidos na Torá (Lei), no Talmud ou sob a forma das poesias dos Salmos e

do Cântico dos Cânticos. Os antigos judeus acreditavam firmemente que tais obras

haviam sido ditadas pelo Espírito Santo, tendo o ser humano como causa segunda. Em

266
BORGES, Jorge Luís. Obras completas de Jorge Luis Borges. 3 volumes. São Paulo: Globo,
1999, p. 304.
267
ROANI, Gerson Luiz. Op. cit., p. 105.

288
tal escritura, a participação humana representa apenas um momento fugaz de uma

ininterrupta tradição circular, em que o escritor cristaliza em signos verbais as eternas

verdades inspiradas pelo Espírito transcendente.

Cumpre observar, ainda, que Jorge Luis Borges tinha consciência da sua

ascendência judaica. Isto pode ser evidenciado em um expressivo número de poemas e

em depoimentos do autor sobre os laços ancestrais que o vinculavam indissociavelmente

ao Judaísmo. Ele se sentia fascinado por pertencer e se inserir numa longínqua tradição

familiar de origem sefardita e marrana, que remontava a judeus portugueses, cujos laços

com a fé mosaica foram quebrados, transformados e abandonados por força das

circunstâncias históricas. Pelo lado materno, dos “Acevedo”, assim como pelo lado

paterno dos “Borges”, o escritor teria herdado o mítico sangue judeu. Essa herança

judaica permanecia inscrita na genealogia familiar e foi tematizada pelo autor em um

singelo poema, “A Israel”, do livro Elogio da Sombra: “Quem me dirá se estás no perdido /

Labirinto de rios seculares/ De meu sangue, Israel? Quem, os lugares / Que meu sangue

e teu sangue percorreram? [...]”268.

Nos versos destacados, Borges celebra a curiosa inquietude sobre as raízes

ancestrais, escavadas e purificadas pelos versos da ficção. A constatação da falência da

memória em restabelecer o que foi esquecido no suceder dos anos, leva o eu-poemático

a advogar para a poesia a tarefa de continuar obstinadamente a dar uma fisionomia ao

passado. Vislumbra-se nesse empenho do eu-lírico uma postura semelhante à de Gaston

Bachelard, segundo o qual, com a explosão da imagem poética, “o passado longínquo

ressoa de ecos e já não vemos em que profundezas esses ecos vão repercutir e

morrer”269.

268
BORGES, Jorge Luis. Op. cit., p. 398.
269
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 2.

289
Borges aproximou-se da cultura hebraica fascinado pelas possibilidades

estéticas que essa assimilação artístico-cultural lhe possibilitava. Sua mirada intelectual

não visou ao étnico, ao doutrinal ou ao ritual, mas a uma dimensão estético-literária

específica, que os textos sacros e poéticos do judaísmo descortinavam diante de seus

olhos de criador. Isso transparece no depoimento destacado:

“Estudei alemão graças ao judeu Heine, fui o primeiro a traduzir


os expressionistas alemães entre os quais a maioria eram judeus.
A leitura de “Golem” de Gustav Meyrick me levou ao meu
encontro, em Jerusalém, com Gershom Scholem e com o
universo da Cabala, fui amigo pessoal de Alberto Gerchunof e de
Cassinos-Asséns, falei sobre Martim Buber e cantei a Baruch
Spinoza e sempre pensei que todos nós- uns mais outros menos,
somos gregos e judeus”270.

Os inúmeros rostos assumidos por Borges em suas produções ficcionais

testemunham, além disso, o estranhamento que o “Outro”, o diferente, causava na sua

cosmovisão artística e existencial, enriquecendo-a notavelmente. Ora, tal estranhamento,

cifrado pela abertura ao ser e aos valores do “Outro”, acabou reunindo e harmonizando,

nos densos fios da tessitura borgeana, a tradição literária do Oriente e do Ocidente.

O fato de vários contos e poemas borgeanos revelarem personagens,

circunstâncias e temas extraídos do universo judaico origina a emergência de expressivas

vozes hebraicas. Tais vozes atestam a sensibilidade com que Borges acompanhou a

trajetória do Judaísmo ao longo destes dois conturbados milênios. A alusão aos nomes

hebraicos de Baruch Spinoza, Baal Schem, Gershon Scholem, Rafael Cansinos Ansés,

Samuel Abramowitz, Heine, Cordovero, Maimônides, Franz Kafka ilustram o rosto judeu

de Borges, assumido com a tenacidade e o júbilo de um apaixonado.

270
BORGES apud SVANASCINI, Osvaldo. Borges y as culturas orientales. Cuadernos
hispanoamericanos, Madri, n. 505/507, pp. 350-351, julho-setembro de 1992.

290
Essas figuras judaicas, que irrompem em inúmeros de seus poemas, foram

cantadas com uma profunda respiração, semelhante àquela dos Salmos. Mas não faltou

nessa interlocução com o Judaísmo um olhar que recorta uma imagem ignóbil e sinistra,

imposta pelas circunstâncias da opressão e da tragédia a que o povo hebreu foi

submetido: “um homem condenado a ser a serpente/ que guarda um ouro infame/um

homem condenado a ser Shylock, / um homem que se inclina sobre a terra/ e que sabe

que esteve no paraíso”271.

Todavia, não foi essa imagem judaica que mais o interessou. No Judaísmo, o

que mais impressionava Borges, do ponto de vista da criação ficcional, era a imagem de

um “homem que é o livro/uma boca que brada desde o abismo/ a justiça do firmamento”,

ou se quisermos, a imagem de um ser humano capaz de regressar sempre da

abominação e da morte, da humilhação e da derrota, capaz de voltar à “violenta luz da

vitória/ belo como um leão ao meio dia”272. Por que essa vitória e essa vitória estão no

exercício contínuo e incessante da inteligência, que consegue elevar-se acima das

inclemências do real273.

Essa vitória, faz-me retomar, aqui, “O milagre Secreto”274, uma magnífica

história do livro Artifícios, no qual é a inteligência criativa que vence a violência e o peso

da matéria. Trata-se da luta entre a herança cultural judaica e a suástica nazista. O

personagem Jaromir Hladík, judeu-checo de língua alemã, vence a violência nazista,

mediante sua angustiada e poderosa imaginação. Julius Rothe, chefe da Gestapo,

condena Hladík à prisão e ao posterior fuzilamento. O escritor judeu faz então o que

muitos judeus fizeram em situações adversas: Chama a Deus.

271
BORGES, Jorge Luís. Op. cit., p. 399.
272
Idem, ibidem, p. 570.
273
LIBERMAN, Arnaldo. Borges, el judío blanco. Cuadernos hispanoamericanos, Madri, n.
505/507, pp. 145-151, julho-setembro de 1992.
274
BORGES, Jorge Luís. Op. cit., p. 567-572.

291
A personagem não invoca Deus simplesmente para pedir o fim de seu suplício,

mas para exigir, que o Criador lhe proporcione mais um ano de vida para que ele conclua

um drama intitulado Os inimigos. Deus atende a súplica de Hladík. Exerce sua

onipotência e, de forma sobrenatural, instala Hladík no espaço do extraordinário e

sobrenatural, no qual o tempo fica paralisado. No momento em que os nazistas vão

disparar os tiros sobre Hladík, o universo se detém e o tempo para. Simultaneamente a

essa detenção do fluxo temporal, o espaço da mente, do sonho da fantasia criadora se

dilata. Os nazistas vão matar Hladík na hora assinalada para a execução, mas na

interioridade da personagem passará um ano entre a ordem do disparo e a bala

assassina. Mentalmente, a personagem acaba a obra e a vida retoma seu sentido

original: o da criação.

No conto “Deutsches Requiem” de O Aleph275, outra história sobre os horrores

do holocausto, outra vez o judeu e o nazista se enfrentam através de suas específicas

constituições ideológicas. Trata-se outra vez da luta entre o intelecto e a violência. Um

dos personagens é Otto Dietrich Zur Linde, subcomandante de um campo de

concentração nazista. O outro é Davi Jerusalém, poeta judeu alemão e representante da

“arte degenerada”. Zur Linde transfigura o horror e a tragédia trazidas pelo nazismo e

Davi Jerusalém representa a civilização ocidental, que tem uma das suas raízes em

Jerusalém, obstáculo que impede a gestação do “homem novo”, que os nazistas julgavam

estar criando: “Eu esperava a guerra inexorável que iria provar nossa fé. Bastava-me

saber que eu seria um soldado de suas batalhas”276. Mediante a leitura desse conto, Davi

Jerusalém pode ser Heinrich Heine, Martim Buber, Franz Kafka, Walter Benjamin e tantos

outros. O velho poeta se suicida depois de ter sido torturado em um campo de

275
BORGES, Jorge Luís. Op.cit., p. 641-646.
276
Idem, ibidem, p. 642-643.

292
concentração: “Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que

já somos sua vítima. [...] que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno” 277.

Para finalizar, as considerações tecidas nesse texto evidenciam a afeição de

Borges pela herança cultural judaica. Os caminhos se bifurcam, conduzindo a um mesmo

lugar: ao labirinto da História, à força de um povo milenar, à Sagrada Escritura como um

poema incessante, à palavra iluminadora da desordem do mundo. É essa palavra que nos

impede de cair nos braços do acaso, pois desprezar a casualidade é uma das lições de

Borges, que como escritor aproximou-se da face judaica que mais lhe serviu para seus

propósitos estéticos: a tenacidade hebraica de buscar o verbo e os sentidos a ele

subjacentes como um itinerário existencial e um projeto ficcional que anos só vieram

confirmar.

277
Idem, ibidem, p. 646.

293
O TEMA DA VIAGEM AO ALÉM E
A DIVINA COMÉDIA: A ESCADA
DE OURO.

MARIA TERESA ARRIGONI

294
O TEMA DA VIAGEM AO ALÉM E A DIVINA COMÉDIA: A ESCADA
DE OURO.
Maria Teresa Arrigoni (UFSC)

“Os diferentes aspectos do


simbolismo da escada estão
todos ligados ao problema das
relações entre o céu e a terra”278

Aqui começa o livro que em árabe se intitula Halmahereig,


que em latim significa ‘ir para o alto’. Maomé o escreveu e deu-lhe
esse nome. Por isso é chamado assim por toda a gente. O livro narra
a ascensão de Maomé, o modo pelo qual subiu ao céu por meio de
uma escada... 279 .

Assim tem início a narrativa do Libro della Scala di Maometto, que


me proponho a percorrer, ao mesmo tempo em que retomo e repercorro
momentos da Divina Comédia, acompanhando a trajetória do peregrino-
personagem-poeta Dante.
A narrativa envolvendo Maomé e a lenda do Mi’raj, segundo Carlo
Saccone, teria tido origem a partir de uma sura do Corão, que diz:

Glória Àquele que raptou de noite o seu servo do Templo


Santo ao Templo Último, dos sagrados recintos, para
mostrar-lhe os Nossos Sinais. Na verdade, Ele é o Ouvinte,
o Vidente (XVIII, 1).280

278 a
Chevalier, J. Geerbrandt, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993, 7 .
ed., p. 378.
279
Tradução minha deste (p. 9) e dos demais trechos citados a partir do volume Il Libro della Scala
di Maometto, Arnoldo Mondadori Editore, 1999, tradução de Roberto Rossi Testa, notas e posfácio
de Carlo Saccone. Agradeço a Fabiano Dalla Bona pelo empréstimo e a Vilma de Katinszky pela
leitura.
280
Saccone, C. “Il mi’râj di Maometto: una leggenda tra Oriente e Occidente”. In: Libro della Scala,
op. cit., p. 178.

295
A obra que serviu de base para essas reflexões é considerada uma
versão apócrifa do original árabe do Libro della Scala, nunca encontrado, segundo
afirma Saccone. É ainda o autor do ensaio sobre o mi’raj que nos remete à
questão levantada pelo orientalista Miguel Asín Palacios [eclesiástico espanhol,
1871-1944], sobre a possibilidade de o escrito árabe poder ser considerado uma
das fontes da obra de Dante. O estudioso espanhol abordou em seus escritos os
dois ciclos lendários que desenvolveram a matéria da viagem de Maomé, sendo
que o mais complexo, o do mi’râj é o que nos interessa mais de perto. Nele está
descrito que:

Maomé foi acordado em sua cama em Meca pelo anjo


Gabriel que, com a ajuda de outros anjos, abriu-lhe o peito e
extraiu o seu coração para purificá-lo na iminência de sua
ascensão ao céu: trata-se de um episódio célebre da vida do
Profeta, retomado sucessivamente por místicos e poetas
muçulmanos em diferentes épocas, e que constitui a base
do dogma de seu ser ‘impecável’ [sem pecado], cuja origem
se encontra em um passo do Corão (XCIV, 1).281

Na versão do Libro della Scala que lemos não está expresso o


detalhe do coração, mas outras partes consideradas nas versões originárias estão
presentes, como a chegada de Gabriel, que diz: “Maomé, você é o mensageiro de
Deus, levante-se e prepare-se: afivele o cinto e envolva a cabeça e o corpo em
seu manto branco, e siga-me pois Deus esta noite quer mostrar-lhe muitos
prodígios de sua potência e muitos de seus segredos”. 282
A partir daí, a viagem do Profeta tem início com Maomé que sobe na
garupa de um animal fantástico, por ele descrito da seguinte maneira: “era maior
que um asno e menor que um mulo, tinha rosto humano, pelos de pérola e crina
de esmeralda, o rabo era de rubi e tinha os olhos mais luminosos que o sol”. E,
continuando, “seus cascos e unhas eram como as do camelo e as suas cores
eram de puríssimo esplendor”.283 Chamava-se Alborak, esse animal, depois
transformado em cavalo alado e conhecido por Burâq, e foi cavalgando nele que

281
Idem, p. 181-182.
282
Idem, p. 18.
283
Il Libro della Scala, op. cit., p. 19.

296
Maomé chegou ao tempo de Jerusalém. Durante o percurso, ouviu vozes que o
chamavam, sem que ele parasse para escutá-las ou as seguisse, mesmo sendo a
terceira uma mulher belíssima, que o convidou a segui-la. Tendo continuado, sem
parar, recebeu do anjo Gabriel a explicação do que havia vivenciado: a primeira
voz “era a lei judaica, e se você tivesse respondido, todos os seus fiéis teriam-se
tornado judeus”; quanto à segunda voz, disse-lhe o anjo: “era a lei dos cristãos: se
você tivesse respondido, o teu povo teria se tornado cristão”; quanto à terceira
voz, da mulher encantadora, vestindo trajes belíssimos, era a “do mundo terreno,
cheio de delícias”. Pelo fato de Maomé tê-la esperado, seu povo teria conforto e
bens materiais, e pelo fato dele ter-se afastado dela, disse-lhe o anjo: “você será
sem pecado, mais do que todos os profetas que até agora existiram e daqueles
que no futuro virão”.284
Ao entrar no templo de Jerusalém, Maomé deparou-se com todos os
profetas, “a quem Deus havia ordenado que saíssem de suas tumbas, reunindo-os
ali para que me honrassem” e após conduzir as orações e receber de todos as
boas novas para seu povo e muitas honras e abraços, Maomé seguiu o anjo para
fora do templo. Em ‘suas’ palavras:

... Gabriel tomou-me pela mão e me conduziu para fora do


templo e me mostrou uma escada que descia do primeiro
céu até a terra em que me encontrava. E aquela escada era
a coisa mais bela que tivesse sido vista. (...) Seus degraus
eram assim: o primeiro era de rubi, o segundo, de
esmeralda, o terceiro, de pérolas cintilantes e todos os
outros de pedras preciosas, cada qual segundo a sua
natureza, trabalhados com pérolas e ouro puríssimo, tão
ricamente que nenhum coração humano seria capaz de
concebê-lo. E estava toda recoberta de seda aveludada
verde, mais resplandecente que uma esmeralda, e
circundada de anjos que a guardavam. E era de tal forma
reluzente que se tinha dificuldade em olhar.285

Ainda segundo Saccone, “a fantasia popular vai acrescentar [à sura]


um particular que vai acender a imaginação de gerações de poetas e de artistas

284
Idem, p. 21.
285
Idem, p. 22-23.

297
muçulmanos de todos os tempos, uma luminosa escada dourada – daí o nome de
Libro della Scala que aparece nas traduções ocidentais da lenda – graças à qual o
Profeta inicia seu ascensus celeste”.286
Acompanhado do anjo Gabriel, pois, tem início assim a viagem de
Maomé, com a subida pela escada de ouro, que o levará através dos oito céus até
o trono de Deus que com suas próprias mãos lhe entregará o Corão, dizendo-lhe:
”Maomé, tome esta revelação do Corão que eu lhe dou e concedo. O livro trata
dos meus tesouros do Paraíso, que superam todos os outros tesouros do
287
universo”. E foi assim que Maomé e Deus ficaram “frente a frente”, sem que
nada houvesse entre eles, “nem anjos, nem homens, nem nada”.
Interrompo aqui momentaneamente a narrativa do mi’râj de Maomé,
para focalizar agora o momento em que o personagem-poeta-peregrino Dante
também percorre uma escada de ouro, embora em outra dimensão de sua viagem
ao além.
Primeiramente, é bom lembrar que a viagem de Dante se articula em
três momentos, em suas passagens pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso.
Seus guias, como sabemos, são Virgílio, até o Paraíso Terrestre, Beatriz, dali para
as esferas do Paraíso até a mais alta, em que São Bernardo o acompanha na
última parte da viagem, na qual Dante tem a fulguração da visão divina em sua
tríplice dimensão de luz.

286
Saccone, C., op. cit., p. 178.
287
Il Libro della Scala, op. cit., p. 85.

298
Dentro al cristallo che ‘l vocabol porta,
cerchiando il mondo, del suo caro duce
sotto cui giacque ogne malizia morta,
di color d’oro in che raggio traluce
vid’io uno scaleo eretto in suso
tanto, che nol seguiva la mia luce. (Par., XXI, 25-30)288

Dante se encontra no céu de Saturno, o sétimo, no qual estão os


espíritos dos contemplativos, dentre eles o de Pietro Damiano. Nos versos
citados289 , ele retoma brevemente o fato de estar no planeta do rei em cujo
reinado se acreditava ter-se realizado a mítica ‘idade do ouro’, período em que a
paz, a operosidade e a prosperidade dominaram o mundo. E descreve com
poucas palavras a escada que se erguia em direção ao céu, da cor do ouro
iluminado pela luz do sol (imagem omitida na tradução citada), tão alta que a vista
não podia acompanhar.
A escada que Dante vê, pois, não é descrita com a riqueza de detalhes
que tivemos na narrativa da viagem de Maomé: as pedras preciosas, a
diversidade de cores, a presença do tecido, fazendo aparecer a nossos olhos um
daqueles ricos mosaicos árabes, quase a resgatar a pureza e a preciosidade do
ouro, simplesmente, despido de outras preciosidades, e igualmente precioso. As
escolhas lexicais do poeta – cristal, cor de ouro, raio, transluz, esplendor, luz,
resplandecer – constroem as imagens contidas nos versos, como apontam
Pasquini e Quaglio no comentário aos versos citados290 .
A escada de ouro, no entanto, não se apresenta aos olhos de Dante
como uma ligação entre o céu e a terra, assim como a viu e percorreu Maomé, e
sim como uma conexão entre o sétimo e o oitavo dos céus do Paraíso. É,
portanto, no caso da Divina Comédia, a escada de ouro unindo dois espaços
celestes, vista e percorrida somente por aquelas almas que já estão no Paraíso e

288
As citações em italiano foram extraídas de: Alighieri, D. Divina Commedia, comentário e notas
de Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Torino, Garzanti, 2004, vol. 3, Paradiso.
289
Dentro da luz cristalina do céu que envolve o mundo e tem o nome do bom senhor [Saturno],
em cujo reinado [idade do ouro] toda maldade cessou, da cor do ouro em que os raios de luz
refulgem, vi uma escada que subia a se perder de vista. Releitura minha destes e dos demais
versos citados.
290
Divina Commedia, op. cit., p. 296.

299
visualizada por Dante pelo fato de estar seguindo um desenho divino, graças ao
qual sua viagem ultramundana se tornou possível.
Diferentemente dessa concepção, a escada de ouro vista e descrita por
Maomé, nos faz pensar no sonho de Jacó: “Eis que uma escada se erguia sobre a
terra e o seu topo atingia o céu, e anjos de Deus subiam e desciam por ela!”
(Gen., 28,12).291
Se a escada de Jacó não foi descrita como sendo de ouro, e não
aparece somente no Paraíso como a de Dante, temos um elo que as aproxima,
pois, pela escada de ouro, Dante viu descer uma infinidade de espíritos
refulgentes, tanto que pensou que todas as estrelas do céu tivessem sido
deslocadas para lá, da mesma forma, embora não descrita em imagens, Jacó viu
os anjos:

Vidi anche per li gradi scender giuso


tanti splendor, ch’io pensai ch’ogne lume
che par nel ciel, quindi fosse diffuso. (Par., XXI, 31-33)292

Nas três narrativas, temos, pois, a presença angelical, embora a luz, o


brilho, o ouro estejam enfatizados somente em duas: seja na luminosidade
resplandecente dos anjos que Maomé narra, seja no brilho fulgurante dos espíritos
que Dante vê. No entanto, a grandiosidade da escada, é quase que implícita, pois,
como afirma Frye, “na escada da visão de Jacó em Gênesis 28, 12, como havia
anjos subindo e descendo por ela, era mais uma escadaria do que uma escada
dessas com pés”.293
No que diz respeito à questão da presença de Deus, novamente a
narrativa bíblica e a árabe convergem para um ponto comum, pois Jacó vê
Iahweh, o Deus de Abraão, que confirma sua proteção a ele e a sua
descendência. Existe uma presença e um contato direto entre Jacó e Deus em
seu sonho, como existe entre Maomé e Deus em sua viagem de subida pela
escada. A diferença está no fato que Maomé narra ter subido fisicamente pela

291
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas, 1989.
292
Vi também pelos degraus descerem tantas almas em esplendor que pensei que todas as luzes
que vemos no céu, daqui [da escada] se difundissem.
293
Frye, N. O código dos códigos. A Bíblia e a Literatura. São Paulo, Boitempo, 2004, p. 193.

300
escada, percorrendo os céus e encontrando os profetas ao longo da viagem,
enquanto no sonho de Jacó, seu corpo permanece deitado com a cabeça sobre a
pedra em que adormeceu. Nesse caso, é Deus que aparece à sua frente: “Eis que
Iahweh estava de pé diante dele...”.
Na narrativa de Dante, cronologicamente posterior seja ao texto
bíblico, seja ao Libro della Scala, o desenvolvimento da viagem se faz mais rico de
detalhes e mais complexo, embora ambas as narrativas que o precederam
possam ser vistas como fontes: comprovada a primeira, confutada e pouco aceita
pela crítica, até hoje, a segunda. No momento em que Dante vê a escada de ouro,
ainda se encontra em sua trajetória em direção a Deus. No próprio canto em que
aparece a imagem da escada de ouro, Dante encontra Pietro Damiano, monge do
século XI, que combateu a corrupção da Igreja e a decadência dos costumes, ao
mesmo tempo em que foi acirrado defensor da penitência e da vida ascética.
Ainda antes de percorrer a escada de ouro, Dante tem um colóquio
com são Bento (480-543), o fundador da ordem beneditina, que conta ao viajante
sua trajetória até o convento de Montecassino, onde terminou sua vida terrena,
durante a qual combateu o paganismo e se dedicou à vida contemplativa. Depois
de ter falado a Dante, são Bento e as almas que com ele estavam subiram num
turbilhão de luz pela escada de ouro. O mesmo fez fazer Beatriz a Dante, que se
encontrou depois de uma fulminante ascensão no oitavo céu, o das estrelas fixas.

La dolce donna dietro a lor mi pinse


con un sol cenno su per quella scala,
sí sua virtú la mia natura vinse;
né mai qua giú dove si monta e cala
naturalmente, fu sí ratto moto
ch’agguagliar si potesse a la mia ala.
(Par., XXII, 100-105)294

É a comprovação de que, textualmente, Dante também, como as


almas do Paraíso, percorreu a escada de ouro em direção ao céu que se
encontrava acima ao de Saturno, e lá chegando, olhou para baixo para rever os
294
Com um simples gesto, a gentil dama me fez subir atrás deles [os contemplativos] de modo a
superar minha natureza [corpórea]. Nunca aqui embaixo [na Terra], onde normalmente se sobe e
se desce, um mover foi tão rápido que pudesse se comparar ao meu voar.

301
céus que já havia percorrido, como que se despedindo com o olhar dos planetas e
dos céus menos importantes em face da aproximação ao Empíreo, sede de Deus,
e meta da viagem.
Antes, porém, Dante ainda vivencia o triunfo de Cristo e a coroação
da Virgem Maria, numa coreografia majestosa que se desenrola a seus olhos no
oitavo céu. Depois disso, Dante enfrenta ainda um tríplice exame: de fé,
respondendo aos quesitos de são Pedro, de esperança, com são Tiago e de
caridade, com são João. Aprovado em todas as instâncias, o viajante encontra
Adão e com ele mantém um colóquio, que abrange inclusive as questões da
língua adâmica, e da expulsão do Paraíso Terrestre.
Só então – e estamos ainda no canto XXVII – Beatriz e Dante sobem
ao nono céu, o Primeiro Móvel, a sede das inteligências angelicais, e Dante tem a
visão de um ponto de luz extremamente forte, envolvido por nove esferas que
giram à sua volta. Repropõem-se na mente de Dante e nos esclarecimentos de
Beatriz os temas da criação e das faculdades dos anjos, da rebelião de Lúcifer. A
ascensão ao Empíreo projeta Dante num mundo de luz absoluta, em que se
encontra a morada das almas abençoadas, definida como ‘rosa’ por analogia a um
anfiteatro em forma de pétalas, também imaginado como um diamante com suas
facetas.
Dante vivencia ainda a visão dos santos, da Virgem Maria, dos
apóstolos, dos anjos e de sua Beatriz, já assumindo seu lugar entre os
abençoados e deixando a são Bernardo a missão de levar Dante à presença de
Deus, não sem antes pedir a intercessão de Maria.
Somente no final da viagem, no canto XXXIII, que encerra sua
viagem ao Paraíso e é o encerramento da Divina Comédia, Dante tem a fulgurante
visão divina na forma de três círculos concêntricos, em que o segundo refletia o
aspecto humano. O êxtase da fulguração impede qualquer outro desejo e
impossibilita qualquer outro pensamento.
Constatamos, pois, que tanto a escada no sonho de Jacó, quanto a
escada de ouro na narrativa de Maomé, mantém a simbologia da ligação céu-
terra, e permitem nos dois casos o encontro direto do personagem com Deus. Na

302
narrativa de Dante, a escada de ouro não une céu e terra, mas um e outro céu,
não coloca o personagem em contato com Deus, mas serve como elemento a
mais na complexa concepção da coreografia do Paraíso tal qual foi ‘vista’ e
concebida por ele.
Outra questão instigante diz respeito aos diferentes êxitos resultantes
do elo céu-terra, que, como vimos, se reflete na simbologia da escada. No caso de
Jacó, Deus, que aparece à sua frente, oferece-lhe a proteção e desenha para seu
povo a predestinação da terra e da benção: “Eu estou contigo e te guardarei em
todo lugar aonde fores, e te reconduzirei a essa terra, porque não te abandonarei
enquanto não tiver realizado o que prometi” (Gen., 28, 15).
Maomé, por sua vez, ao chegar na sede divina, na qual nem o anjo
Gabriel o pôde acompanhar, viu-se separado de Deus por duas cortinas, “a
primeira era de trevas e a outra do esplendor de sua potência”295 . Por detrás das
cortinas, ouviu as seguintes palavras: “hamina harazul bine unzila ylay, que
significam ‘o mensageiro acreditou em tudo o que lhe foi revelado’”. Depois da
longa oração, e das palavras de Deus, Maomé relata que recebeu o Livro de sua
mão e agradeceu a Deus o presente dele recebido, e termina dizendo: “E entre
Ele e eu não havia nem anjos, nem homens, nem nada, a não ser Ele e eu, frente
a frente”.296
E Dante? Ele não recebeu a visita de Deus chegando até ele pela
escada, nem chegou ao céu subindo diretamente por uma escada de ouro
cravejada de pedras preciosas, nem tampouco recebeu de Deus o livro sagrado,
mas enquanto descia e subia, vencendo as agruras de sua jornada no além, tecia
sua obra, que os homens fizeram divina, e que ele deixou como legado para a
humanidade.

295
Libro della Scala, op. cit., p. 84.
296
Idem, p. 85.

303
O CORPO DO DIABO

JONAS TENFEN

304
O CORPO DO DIABO

Jonas Tenfen (UFSC)

1) Introdução

O padre Antônio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga de


Quaresma, narra uma interessante origem para os pecados do mundo; divididos,
inclusive, geograficamente:

Dizem que quando o diabo caiu do céu, que no ar se fez em


pedaços e que estes pedaços se espalharam por diversas
províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam.
Dizem que a cabeça do diabo caiu na Espanha, e que por isso
somos furiosos, altivos, e com arrogâncias graves. Dizem que o
peito caiu na Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de
máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração
sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que
esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que
outros com a mesa e a taça. Dizem que os pés caíram em
França, e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados
no andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com mãos e
unhas crescidas, um caiu na Holanda, o outro em Argel, e que daí
lhes veio – ou nos veio – o serem corsários. Esta é a substância
do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda
que a explicação dos vícios não seja totalmente verdadeira, tem
contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à
sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu
que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal é a língua, ao
menos assim o entendem as nações estrangeiras que de mais
perto nos tratam.

O primeiro raciocínio, quase um acarretamento (usando a linguagem


da semântica) é “o diabo tem um corpo”. Interessante é que ele tem e não tem ao
mesmo tempo; o que é muito mais um silogismo do que um paradoxo. Antes de
um embate no campo da física (discutindo quedas, corpos e movimentos), temos
uma discussão sobre existência. Para algo ter caído na terra da Terra é preciso ter
algo; uma essência que pode ser chamada de corpo, não por cumprir as funções
vitais como se fosse um ser humano, mas pela característica inexorável ao

305
homem de fazer medida para aquilo que quer compreender. Contudo, não há um
corpo porque não há uma forma apenas, isto é, várias formas, vários corpos; foi
humanizado, mas não é humano.
As formas que o diabo assumiu, ou melhor, as representações feitas
dele são temporais e mutáveis. Tanto que, as representações deste são datadas,
localizadas em um espaço-tempo dentro de uma sociedade; épocas diferentes,
diabos diferentes. Quando não se torna possível uma datação plausível da
representação, pode-se fazer o levantamento das influências culturais que tiveram
importante relevância para o feitio desta.
Ideologicamente, é mais interessante não ter forma fixa para o diabo.
Parece que na luta contra o príncipe deste mundo, o cão, o tibinga, o pai-da-
mentira, etc, tudo é permitido, a ética é mais maleável, e são aceitáveis muitas
táticas que não se aplicariam aos iguais, quando muito, semelhantes. Vide Bush
Filho que demonizou Bin Laden e seu séqüito e vide Bin Laden que satanizou
Bush Filho e sua horda.
Neste breve artigo, será feita uma análise sobre o corpo do diabo
sem ao menos ter uma idéia de diabo estabilizada. O imaginário sobre Deus, ao
menos em um meio católico, é relativamente estabilizado com todos os atributos
que se façam a Ele. Na maioria das vezes, as ideologias religiosas têm embates
na relação do crente com aquele que deve ser adorado e não sobre o que e como
é aquilo que deve ser adorado (é discutido se Deus deve ser amado ou temido –
um dos sete dons do Espírito Santo – e não sobre as feições Dele).
De qualquer forma, o diabo é o Mal e suas representações irão
simbolizá-lo dessa forma e muitas vezes como se relacionar com ele. Por essa
razão, como se verá adiante, o ânus do diabo é, em dados momentos bem
definidos, mais importante que sua face.

2) A Queda

Como Erich Auerbach ressalta, no primeiro capítulo de Mimesis297,


sabemos os mínimos detalhes sobre a cicatriz de Ulisses, mas pouquíssimo sobre

297
A Cicatriz de Ulisses. In: AUERBACH, Erich. Mimesis. 2 ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1987.

306
a mula que levou Isaac para ser sacrificado por Abraão. Auerbach faz um recorte
de uma passagem bíblica específica do Antigo Testamento, mas que é prototípico
de toda a Bíblia no que concerne aos detalhes, ou melhor, na falta dele. Deus fez
o mundo, fez o homem a sua imagem e semelhança, mas o que é Deus, ninguém
o entende, que a tanto o engenho humano não se estende298 e a Bíblia não dá
muitas pistas. Ele sequer nos é apresentado em formatos e feições; com exceção
de sarças ardentes e luzes. Ele é aquele que é.
O temor religioso das pessoas a quem Deus se manifesta é
caracterizado pelo medo de vê-Lo, de perder a vida simplesmente por olhar para
Ele. Tal temor teve Moisés (Êxodo 3,6; 19;21; 33, 20-23) e Gedeão (Juízes 6,22).
A face de Deus jamais foi vislumbrada.
A narrativa da Odisséia é interrompida para a explicação sobre a cicatriz
de Ulisses, já a narrativa bíblica não possui interrupções para maiores
explicações. Contudo, é justamente nas minúcias que ocorrem os
desdobramentos. Todos os imperativos que Deus usou ao trabalhar no primeiro
dia estão no singular e, nos outro cinco, no plural. Isso implica em
acompanhamento, alguém para ordenar; não necessariamente a sua negação ou
duplo, mas seu séqüito: os anjos.
Deus hierarquizou suas hostes e seu maior comandante atendia pelo
nome de Lúcifer; nome latino que decomposto significa “aquele que carrega a luz”.
Responsável pelo amanhecer e regente do coro celestial, quis tomar o lugar de
seu criador. Reuniu um terço de todos os anjos e fez uma rebelião. Derrotado, foi
expulso do Céu pela resistência organizada pelo Arcanjo Gabriel: deu-se assim a
queda. Se a atitude de Lúcifer foi uma tentativa de golpe de Estado ou uma
revolução “popular” fracassada são perguntas que nem as minúcias da Bíblia
respondem.
Não há passagem bíblica, no Antigo Testamento, para a queda. Ela faz
parte da tradição (a legenda áurea) que vem suprimir a falta de detalhes nas
narrativas dos primeiros livros como das releituras dadas a estes pelo Novo

298
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. São Paulo: Verbo, 1980.

307
Testamento. De qualquer forma, temos que um terço dos anjos e Lúcifer caíram:
este se transformou no diabo e aqueles nos demônios.

3) O Corpo

A partir das releituras que o Novo Testamento fez do Antigo, a serpente


que tentou Eva já era o diabo em ação. O que, diretamente, não procede aos
dados disponíveis no livro de Gênesis, que trata a serpente apenas como um dos
animais do Éden (Gênesis 3,1: A serpente era o mais astuto de todos os animais
selvagens que o Senhor Deus tinha feito...). A associação do réptil com o diabo,
além da mentira, se dá pela condição de astuta.
Não podemos afirmar que o primeiro corpo do diabo foi o de uma
serpente, pois a queda do homem acarretou a expulsão do casal e a maldição ao
animal (e não a outros): andar rastejando sobre o ventre.
A queda modificou Lúcifer:

Se ele foi tão belo quanto é agora horrível, e depois se


revoltou soberbamente contra o Criador, é bem
justo que agora dele proceda todo o mal do mundo.

Oh! Que grande maravilha não foi a minha


quando eu vi que tinha três faces!
uma na frente, e ela era vermelha; [...]

Debaixo de cada face apareciam duas grandes asas,


proporcionais à grandeza do monstro:
velas do mar não vi de tão enorme grandeza.

O inferno, na viagem realizada por Dante na Divina Comédia, é dividido


em nove círculos com alguns sub-círculos; quanto pior o pecado, mais próximo do
diabo. Na ante-sala do inferno estão parte dos anjos que caíram com Lúcifer, que,
devido a ira, também estão deformados.
Na última região do nono círculo está o diabo mastigando, em cada uma
das bocas de suas três cabeças, os piores traidores da humanidade, por toda a
eternidade (a saber: Brutus, Cássio e Judas Iscariotes). O inferno dantesco vai se

308
tornando menor conforme se aproxima do diabo, assim há pecados que estão
mais longe e pecados que estão mais próximos dele. Além de Lúcifer deformado,
Dante o mostra como traidor, passando a eternidade torturando os seus
semelhantes.
A queda o afastou de Deus e isso o tornou monstruoso; logo, o que
afasta de Deus é feio, desprezível, punível. Tal premissa é discutível, da mesma
forma que é discutível a idéia de belo e de bom para Safo de Lesbos:

Quem é belo
é belo aos olhos
- e basta.

Mas quem é bom


é subitamente belo.

Os versos respondem o que é belo, Mas como definir o que é bom?


No momento em que foi possível representar a imagem de Deus como
homem, buscou-se um ideal de beleza e paternidade, de bondade e justiça, de
sabedoria e cordialidade. Muito mais que criar um personagem, essas
representações criaram um modelo de beatitude. Em relação ao diabo, só há uma
coisa mais numerosa que seus nomes: os formatos do seu corpo. Aqueles que
representam esse corpo amorfo buscam causar medo e desconforto ao
expectador e espectador. Os medos são diferentes em épocas diferentes, o que,
em parte, explica a variedade de representações.
A palavra “diabo”, per si, já carrega uma carga semântica muito forte,
pré-estabelecida. Qualquer imagem, por mais bela que seja, associada ao nome
“diabo” ou “inferno” vai causar um certo desconforto, um receio. É fato que tais
vocábulos entraram também nas feições comuns e mais confortáveis, mas, para
que haja entendimento, o contexto de uso já é estabelecido.

4) A explosão

309
Como citado na Introdução, o padre Antônio Vieira se utiliza da idéia de
que o diabo explodiu na queda e os seus pedaços disseminaram o pecado (o mal)
no mundo. Ainda não existia Espanha, mas a cabeça caiu no pedaço de mundo
que um dia se tornou esse país. A língua rolou para fora da boca, caído onde se
constituiu Portugal e, por contaminação, os pecados dele vieram até o Brasil de
Vieira.
Deus criou o Mal no coração de Lúcifer ou Lúcifer se tornou o Mal? Na
essência, essa é a pergunta “Qual é a origem do Mal?” Em uma perspectiva
inicial, o afastamento, ou melhor, o afastado de Deus é o Mal; contudo nada temos
além de conjecturas sobre o que levou a este distanciamento.
A disseminação dos pecados se deu pelo contato do corpo deformado,
partido aos pedaços, com a terra. E é pelo corpo do fiel que o pecado chega à
alma. Basta lembrar que nenhum dos sete pecados capitais é de ordem
metafísica, todos são físicos ou a sua ocorrência acarreta deformação
(necessitando, assim, do corpo). Pecados de ordem metafísica, como a apostasia
e a heresia, são decorrentes do físico.
É impossível não associar a idéia descrita pelo padre Vieira ao big-bang,
no que concerne uma explosão como origem. Afinal, enquanto uma teoria dá uma
explicação científica à origem do universo, a outra explica a origem do universo
católico: ou a benesse do céu ou a condenação do inferno no pós-morte; e o que
definia isso é a relação do crente, neste mundo, com os pecados.

5) O Ânus

Em que parte do mundo caiu o ânus do diabo? Pelo sermão, o ânus


deve estar entre a Alemanha (onde caiu o tronco) e a França (onde caíram os
membros inferiores). Esta é, naturalmente, uma mera suposição, pois a apólogo
não traz detalhes de que maneira e em quantos pedaços ele explodiu. Agora, que
pecado brotaria do chão em que choveu o ânus?

310
Ao cair, o diabo foi relegado ao inferno. Contudo, continua como
príncipe deste mundo. Logo, há dois lugares onde ele pode atuar: em um
comandando, torturando e em outro corrompendo, aliciando. A tripartição do
espaço da crença (Céu-Terra-Inferno) deve ser herança da cultura helênica.
Agora, a delimitação do campo de atuação do diabo é mais uma das releituras do
Novo Testamento. Tendo em vista, por exemplo, o episódio de Jó, onde satanás
transita pelo Céu e Terra.
Não importou, para toda a Idade Média, a representação que se deu ao
diabo, desde que apresentasse algo feio e com o ânus em relativo destaque. A
feiúra como forma de catequização das massas é feito entre as relações visuais
(afinal, quanto mais feio o diabo, mais bonito Deus-Jesus). O ânus como símbolo
da inversão de valores que o diabo propõe aos humanos. Afastado da cabeça, tais
valores são baixos, mundanos, corporais. O excesso de ânus, em torno de mil,
espalhados pelo corpo do diabo faz parte do imaginário medieval.
Os registros da Inquisição, com toda a desconfiança possível aos dados
recolhidos devido a maneira como eram obtidos, trazem em detalhes como vender
a alma. Um aparte fundamental do ritual para selar o pacto é quando o “vendedor”
(que negocia a alma em troca de poder neste mundo) beija o ânus do diabo.
A maioria das gravuras ou iluminuras foram encomendadas por
aqueles que incendiavam os adoradores e que ditavam a moral. Parte da
perseguição dá-se pela representação, onde o ato de beijar o ânus se configura
como um deboche carregado de inversão de valores: os católicos beijavam o anel
do bispo buscando uma benção espiritual e os adoradores beijavam o ânus do
diabo buscando uma benção terrena. Também queriam causar nojo e repudio
àqueles que entrassem em contato com tal figura; a idéia do quanto que teriam
que se rebaixar ao adorar o diabo é uma idéia que aproxima, ao menos tinha esta
intenção, de Deus.
O pacto atravessa os tempos, mas o ânus não. Parece que a relação
dele como selador de acordos satânicos ficou restrito à Idade Média, enquanto
ainda se buscavam formas de criação e re-interpretação do diabo. O Dr. Fausto
assinou um contrato e Riobaldo “tentou” vender a sua alma gritado em uma

311
encruzilhada, em um dia e local específico. No panteão de crônicas de Veríssimo,
temos Alma, vendo, onde o personagem quer vender sua alma e põe um anúncio
na internet para entrar em contato com o comprador.
Da mesma forma que as formas do diabo mudaram com o tempo, as
relações com ele também.

6) Os Corpos

Como dito anteriormente, nem sempre foi possível representar uma


figura humana e associá-la a Deus para as religiões judaico-cristãs. Acredita(va)-
se que esta representação enfraqueceria Deus e o mesmo princípio se aplica à
sua réplica feita em imagem e semelhança: o homem. Por isso, há muitas
gravuras de corpos humanos com cabeças de animais orando em uma sinagoga.
Ora, é quase indutivo afirmar que se Deus não era representado para
não ser enfraquecido, o diabo passa a ser representado de todas as formas
possíveis e imagináveis para que seja “gasto”. Este ideal de não-enfraquecimento
não é o suficiente para explicar a multifacetação de diabo e não de Deus.
A coletânea de histórias que forma o Antigo Testamento foi, por
muito tempo, mantido como narrativas orais de povos nômades. Os concílios que
criaram o cânone que hoje está encadernado e subscrito pelo título Bíblia
deixaram muitos textos fora, criando uma biblioteca de apócrifos “conhecidos” e
“desconhecidos”.
Naturalmente que as narrativas orais, paralelas ao ensino orientado
pela Igreja, continuaram e prosseguiram. Os povos nômades entraram em contato
com várias religiões e credos diferentes, com formas diferentes de representar (e
nomear) o bem e o mal. Todos as representações para o ser que representa o
Bem foram condensadas e cristalizadas em um nome comum: Deus (o que
explica, por exemplo, a mudança de comportamento de Deus nos dois
testamentos). Já, para o Mal, não houve um nome aglutinante para todas as
representações, por mais forte que possa parecer o nome diabo. Nada determina
mais o ser do que o tempo em que ele está inserido, como nos explica Heidegger.

312
Assim, com a possibilidade de representar o Mal de maneiras diferentes, ou
melhor, na simples possibilidade de representá-lo, ele tende a ser diferente
quando diferente forem os tempos e as relações intrínsecas a este.
A relação com o diabo é, per si, diferente da relação com o mal.
Quem inverte o foco de adoração, beija o ânus, muda o foco do repúdio: Deus
passa a ser o Mal, usando de relativística básica. Agora, não há como mudar o
foco do mal, isto é, aquilo que dever ser combatido ao extermínio,
independentemente do que seja – se é mal, deve ser expurgado. E esta é a
abertura ideológica para demonizar o inimigo; não acarreta uma declaração de
guerra, mas a possibilidade de tê-la.
Se no outro lado do front estiver um igual, como atirar? Como
mandar, permitir aos filhos se alistarem, aceitando que eles vão matar outros
filhos? É impossível lutar contra si mesmo, por isso, a categoria outro é
estabelecida; mesmo assim, o outro ainda se mantém como semelhante, até ser
demonizado (etapa final que elimina muitas barreiras éticas ainda
remanescentes).
O mal sempre foi relativo e o bem nunca deixou de ser.

Referências

AUERBACH, Erich. A Cicatriz de Ulisses. In: Mimesis. 2 ed. rev. São Paulo: Perspectiva,
1987.
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: o inferno. Rio de Janeiro: O. Pierre, 1979.
BÍBLIA SAGRADA. Petrópolis: Vozes; Santuário, 1987
CAMÕES, Luis de. Os lusíadas. São Paulo: Verbo, 1980.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1958.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 14a ed. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1980.

313
RUBEM ALVES: UM DISCURSO
QUE SE FAZ TEOLOGIA DA
BELEZA.

MARIA CELESTE DE CASTRO


MACHADO

314
RUBEM ALVES: UM DISCURSO QUE SE FAZ TEOLOGIA DA
BELEZA.

Maria Celeste de Castro Machado (UERJ)

Ler as obras de Rubem Alves é sempre um prazer muito especial. O


autor não escreve poesia, mas usa a mesma em seu conceito abstrato, que revela
a imanência da beleza presente em todo texto literário.
Construindo seus textos com uma forma poética de qualidade, repleta
de metáforas e plurissignificação, imprime-lhes a beleza teológica de um falar
sobre Deus que remete à linguagem bíblica.
Sobre a linguagem usada no discurso teopoético, Kuschel (1997) expõe:

“Eis, pois, o que se esconde por trás da palavra ‘teopoética’: não


a procura por outra teologia, não a substituição do Deus de Jesus
Cristo pelo dos diferentes poetas, mas a questão da estilística de
um discurso sobre Deus que seja atual e adequado”.

Embora ele renegue a condição de teólogo, sua obra é um contínuo


“falar sobre Deus e sobre os fatos bíblicos”. E nisto reside a grandiosidade de
suas obras, pois elas definem um posicionamento teológico todo peculiar,
idiossincrático, flagrantemente marcado pela Bíblia, sem repetir chavões
religiosos, metaforizando tudo que se refere a Deus e ao sentimento cristão, além
de aproximar-se de outros autores e filósofos, que usam o mesmo recurso,
através da intertextualidade. Ao fazê-lo, instaura-se em seus escritos uma
polifonia, em que o discurso bíblico ganha participação e valor.
Ao analisar Rubem Alves, faz-se necessário reavaliar conceitos, pois ele
se diferencia dos outros artistas que falam sobre Deus, podendo e devendo ser
considerado teólogo, porque seu discurso não é crítica de Deus, nem sobre Deus,
mas consiste numa nova linguagem sobre como se deve amar a Deus, louvá-lo,
senti-lo e vivê-lo.

315
Para que se tenha melhor entendimento desta argumentação, será
estudado o livro Pai Nosso – Meditações, nos capítulos reunidos sob os títulos:
“Meu filho, eu não sei somar...” e “Trilogia: Liturgia, esperança, brinquedo”
O autor recorre, freqüentemente, a outros autores cujo pensamento
sustenta sua própria teologia. É o caso das numerosas citações da fala do
personagem rosiano, Riobaldo.

Como não ter Deus? Com Deus existindo tudo dá esperança;


sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas se não
tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e vida é burra. É o
aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo
facilitar... Tendo Deus é menos grave se descuidar um pouquinho,
pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então a gente não
tem licença de coisa nenhuma...

Este é o uso clássico da intertextualidade pois o autor, usando palavras


e voz de outro, reitera o discurso teológico de Guimarães Rosa com suas próprias
colocações sobre a existência de Deus e a importância de sua presença na vida
humana, para trazer esperança e ordem a tudo. A polifonia do discurso deixa claro
que, também para Rubem Alves, Deus existe e põe ordem e felicidade no caos de
nossas vidas.
Em Entre a Ciência e a Sapiência, encontra-se uma dos mais poéticas
formas de se falar sobre Gênesis e o Paraíso cristão:

Acredito: muitas gravidezes acontecem através do ouvido. Ora, o


que entra no ouvido é a palavra: o Pássaro divino cantou um
canto tão lindo que a Virgem ficou grávida e dela nasceu o Filho
de Deus. Hoje muito se fala sobre anjos e suas funções. Mas
nunca ouvi ninguém se referir aos importantíssimos Anjos
engravidantes, os mesmos que fizeram Sara ficar grávida depois
de velha. Assim, pela mediação de um Anjo engravidante, Deus
Todo-Poderoso empreendeu trazer o Paraíso de novo à terra.

Percebamos como o autor trata tanto do AT quanto o NT, valorando os


dois relatos bíblicos citados e como usa maiúsculas em Filho de Deus, Paraíso,
Anjo e Virgem, denotando acatar como substantivos próprios as personagens e os

316
fatos. As metáforas – “engravidar pelo ouvir” e “Anjo engravidante” – ratificam, de
modo poético, o texto bíblico e o tornam mais próximo de um entendimento
humano.
A linguagem é a base da teologia do autor. Sua construção teológica
trabalha a capacidade da palavra e da linguagem de representar os conceitos
bíblicos.
O livro Pai Nosso: Meditações pode ser considerado um dos mais
representativos de sua teologia e, conseqüentemente, da sua linguagem poética,
tal como a teopoética de Kuschel permite compreender, o que a torna
representativa da Teologia que aqui será intitulada “da Beleza”. Nele aparecem
outras metáforas também basilares para o entendimento de sua teologia: Vento =
Deus; ausência = verdade; presença = ídolos, materialidade; desejo = onde
Deus se encontra.
Ao escrever melancólica e emotivamente sobre a mais importante
das orações cristãs, Rubem Alves impregna seu leitor do mesmo “desejo da
ausência”, revelado pelo Vento que passa e perpassa o corpo do homem “onde
mora o desejo do Vento”, onde está a saudade, a nostalgia daquela ausência. O
livro é um diálogo do homem com Deus através da oração que Jesus ensinou. E é
um tratado teológico em forma poética, que faz dialogarem o teólogo e a Bíblia.
Perceba-se a intertextualidade com o salmo 139 (ALVES, 2004, p.122 ) :

Sem palavras dizem de dívidas pendentes, que eu julgara


liquidadas. E se chamam pelo nome de Deus.
Para onde irei, para deles escapar?
Para onde fugirei da sua presença?
Se subir aos céus, eles lá estarão e o céu se transformará em
inferno...

Ao narrar a passagem em que Sara, mulher de Abraão, engravida, o


autor dialoga metaforicamente com o texto bíblico:

Pois é, lá estava o velho Abraão , construindo o berço de um filho


que morava nos seus sonhos, e que de lá haveria de vir. Quem
diria que os sonhos podem engravidar as velhas? Quem diria que
o Vento pode engravidar as virgens? Era certo que Abraão não

317
morava no mesmo mundo que Sara, embora seus corpos se
tocassem à noite. Abraão morava no futuro e aquele berço era um
fragmento de um tempo que ainda não chegar, prenúncio de
risos, aperitivo de celebrações. Ele via o invisível, vivia no
ausente, pois era lá que viviam seus desejos. Quem come o pão
engorda com o presente. Mas Abraão se sentia grávido com o
futuro: seu pão era diáfano como o arco-íris, fluido como o vento e
tinha o gosto impossível do cheiro de jasmim. Berço, hieróglifo
indecifrável, enigma, poema de um outro mundo...

Com seu simbolismo, ele nos faz “ver” a natureza que canta as belezas
e solicitudes de seu Criador. Ele nos faz sentir o inefável toque da passagem
daquele “vento que sopra onde quer, quando quer”, e nos dá vida. Lê-lo é, ao
mesmo tempo e na mesma intensidade, perceber nossa humanidade e o desejo
de transcendê-la. Quando se lê Rubem Alves, as lições bíblicas abandonam seu
tom doutoral, para assumirem a força do convite a que se pode, mas não se quer,
dizer não...Ou será que se quer, mas não se consegue dizer não?...
Rubem Alves ousa criar metáforas inesperadas, associações
vocabulares inéditas, assim como desmistifica algumas afirmações cristalizadas,
que dificultam a apreensão do profundo sentido espiritual que a Bíblia apresenta.
Alguns o consideram herético por isso. Outros o chamam erótico. Ele diz que
brinca com as palavras como uma criança. E assim deve ser visto: um teólogo que
transgride para significar; um religioso que surpreende para mostrar a verdade; um
artista que embeleza para conquistar pela Beleza.
Portanto, “o semeador saiu a semear” e, quem sabe, os ipês amarelos
engravidar-se-ão de flores, os jardins encher-se-ão de orquídeas, as gaiolas
ficarão vazias. Árvores serão plantadas para o amanhã, as crianças poderão
brincar sem medo, os jovens se amarão com sinceridade, os velhos se verão nos
filhos de seus filhos e todos, juntos, poderão descobrir o rosto para sentir o Vento
que sopra onde quer...como quer...quando quer...

BIBLIOGRAFIA:

ALVES, Rubem. Entre a Ciência e a Sapiência. 13ª- ed. São Paulo: Loyola, 2005.
______. Pai Nosso: Meditações.8ª- ed. São Paulo: Paulus, 2004.
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318
Discurso.São Paulo: Contexto,2004.
KUSCHEL, Karl-Josef. Os Escritores e as Escrituras. São Paulo: Loyola, 1999.

319
Universidade Federal de Santa Catarina
Pós-Graduação em Literatura
Nível: Mestrado e Doutorado

TRAVESSIAS E TRAVESSURAS DO DIABO: O TRÂNSITO


DA BÍBLIA PARA A LITERATURA.

1) Disciplina: Travessias e Travessuras do Diabo: o trânsito da Bíblia para a


Literatura.

2) Professor Responsável: Dra. Salma Ferraz

3) Objetivo: A presente disciplina pretende analisar o desenvolvimento e


atuação do anjo caído no Velho Testamento, sua transformação em Satanás
no Novo Testamento, a experiência de Jó e Satanás, a concepção do Diabo
na Idade Média e sua migração para a literatura ocidental, analisando alguns
textos de autores tais como: Gil Vicente, Goethe, Álvares de Azevedo,
Machado de Assis, Guimarães Rosa, José Saramago, Luiz Fernando
Veríssimo, Rubens Braga, etc.

4) Áreas de Concentração: Literatura e Filosofia

5) PROGRAMA:

5.1 – Literatura e Teologia – Alguns aspectos teóricos


5.2 – Textos teóricos sobre o Diabo.
5.3 - Gil Vicente o Diabo no Auto da Barca do Inferno.
5.4 – Jó, o Diabo e a Teodicéia.
5.5 – Machado de Assis e A Igreja do Diabo.
5.6 - O Diabo na Literatura Brasileira Contemporânea - Walmor Santos,
Rubens Braga, Luiz Fernando Veríssimo.
5.7 – José Saramago e Guimarães Rosa – O Diabo salvador de Cristo e o
Diabo no meio do redemoinho.
5.8 – O Diabo em Milton (O Paraíso Perdido) e Goethe (Fausto)

BIBLIOGRAFIA

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Trad. Alda Sophie Vinga. Portugal: Europa-América, 2001.
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VITO, John de. Trad. Silvia Mariângela Spada. O Apócrifo do Diabo – Toda História
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SOB A SOMBRA DO DIABO. Revista História Viva – Grandes Temas. Edição Especial
Temática n, 12, São Paulo: Duetto Editorial, 2006.

GERAL
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Editorial, Ano I, n. 2, 2005.
ABADÍA, José Pedro. A Bíblia como Literatura. Petrópolis: Vozes, 2000.
ALMEIDA, João Ferreira de. (trad.). Ed. revista e corrigida. A Bíblia Sagrada. Rio de
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322
Universidade Federal de Santa Catarina
Pós-Graduação em Literatura
Nível: Mestrado e Doutorado

1) Disciplina: Maria Madalena: O trânsito/migração do texto bíblico para o texto


ficcional.

2) EMENTA: Maria Madalena nos Evangelhos Canônicos e Apócrifos; sua


representação na pintura Renascentista; a junção errônea feita pelos primeiros
pensadores cristãos entre a mulher pecadora, a adúltera e Madalena; a
concepção de Madalena como deusa odiada pela Igreja Católica; o resgate
moderno de Madalena efetuado pela ficção (Evangelho Segundo Jesus Cristo de
José Saramago, O Código da Vinci de Dan Brown, O Amor de Madalena (sermão
anônimo francês do século XVII), Maria Madalena ou A Salvação de Marguerite
Yourcenar, O romance de Maria Madalena de Jean-Yves Leloup, Maria Madalena
- A mulher que amou Jesus de Margaret George); a trajetória/travessia de uma
suposta meretriz para o posto de discípula amada.

3) Professor Responsável: Dra. Salma Ferraz


4) Áreas de Concentração: Teoria Literária, Literatura Comparada,
Literatura de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira .
5) Número de Créditos:
6) PROGRAMA: A Teopoética proposta por Kuschel; A Teopoética e os
Estudos Comparados entre Teologia e Literatura; Teopoética e Maria de
Magdala; Madalena nos Evangelhos Canônicos; Madalena e os Evangelhos
Apócrifos; a junção de três Marias; Madalena e a pintura Medieval e
renascentista; Madalena na literatura contemporânea; o trânsito do texto
bíblico para o texto ficcional.

7) METODOLOGIA: Aulas expositivas, debates, seminários, grupos de


trabalho. A avaliação final consistirá de uma monografia.

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA
ARIAS, Juan. Madalena - o último Tabu do cristianismo. Trad. Olga Savary. Objetiva: Rio
de Janeiro, 2006.
BOGADO, Anna Patrícia Chagas Bogado. Maria Madalena – O Feminino na Luz e na
Sombra. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
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2003.

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Petrópolis: Vozes, 2004.
GARDNER, Laurence. O legado de Madalena: Conspiração da Linhagem de Jesus e
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Paulo: Geração Editorial, 2002.
GÖSMANN, Elisabeth et alli. Dicionário de Teologia Feminista. Trad. Carlos Almeida
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LELOUP, Jean-Yves. O romance de Maria Madalena – uma mulher incomparável. Trad.
Martha Gouveia da Cruz. Campinas: Verus, 2004.
LEMINSKI, Paulo. Jesus a.C. São Paulo: Brasiliense, 2003.
LELOUPS, Jean-Yves. O Evangelho de Maria-Míriam de Mágdala. Petrópolis:
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MAIA, Márcia. Evangelhos Gnósticos. São Paulo: Mercuryo, 1992.
MESSADIE, Gerard. O Enigma de Madalena. Rio de Janeiro Campus
MORO, Fernanda De Camargo. Arqueología de Madalena. Rio de Janeiro; Record, 2005.
PICKNETT, Lymm. María Magdalena- La diosa prohibida del Cristianismo. Madrid:
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RAMOS, Omar. A escolhida: História da Filha de Jesus e Maria Madalena. São Paulo:
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RILKE, Rainer Maria. L´amor de Madeleine (O amor de Madalena). Trad. Renata Maria
Parreira Cordeiro. São Paulo: Landy,200.
SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Compañía das
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SEBASTIANI, Lilia. Maria Madalena – de personagem do Evangelho a mito de pecadora
redimida. Trad. Antonio Angonese. Petrópolis: Vozes, 1995.
STARDIRB, Margaret. Maria Madalena e o Santo Graal. Trad. Simona Reiser. Rio de
Janeiro: Sextante, 2004
TAFUR, Juan. A paixão de Maria Madalena. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Planeta,
2005.
TAMES, Elsa. As mulheres no movimento de Jesus, O Cristo. Trad. Beatriz Affonso
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TRICA, Maria Helena de Oliveira. Apócrifos –Os Proscritos da Bíblia. São Paulo:
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YOUNCENAR, Marguerite. Maria Madalena ou a Salvação. In: Fogos. Trad. Martha


Calderato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

324

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