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CASA DE JOSÉ DE A
PROGRAMA EDIT
Lnagino um Tauá bem longe, um Tamboril per-
dido, sei lá que mais perto seja um Quixadá desses
cheio de pedras ...- Vem, noite antiquíssima e idênti-
ca /.. ./ Com as estrelas lantejoulas rápidas / No
teu vestido franjado de infinito / - diria Pessoa
num dos mais belos poemas da língua lusa; e ali a
casa, grande, e os compadres meus, um vento leve,
dizem-no Aracaty, assim mesmo com "ipsilone", é um
vento muito velho; naqueles mundaréus onde o as-
sunto é sempre um "será que vai chover, compa-
dre?" -e Lustosa, senhor e proprietário de todas as
histórias, a todos nós, de antigamente, as do Amazonas.

UM GOVERNO SÉRIO

Um governo responsável, houvesse nestas


terras, já teria baixado um decreto-lei, uma medida
provisória, qualquer coisa assim: Art. 1 º - Lustosa
da Costa, esse sobralense da Paraíba, fica proibido
de trabalhar a partir desta data. Art. 2º - São-lhe
asseguradas todas as condições, etílicas inclusas,
para que o referido cidadão bote em papel e tinta
todos os causas destas terras, verdadeiros e inven-
tados porque isto, de verdadeiros, de inventados,
não tem a menor importância, mesmo porque os
que ele inventar, com certeza um dos nossos o rea-
lizará ou já está prestes a cometê-lo, porque aos
nossos sempre é possível realizar uma façanha bem •
maior e mais nutrida, aqui e alhures, do que a ante-
rior. Cumpra-se.

DOM

Poucos têm o dom. Lustosa da Costa tem.


Sob prosa leve, um senso de humor à inglesa, a
capacidade de rir em primeiro de si mesmo, - e as
cartas, o epistolar, gênero que Lustosa cultiva como
poucos, onde parece escrever para a eternidade.
Outro dom do memorialista Lustosa é a capacida-
de de despintar a maldade do mal. Por mais brabo
que seja o pistoleiro, por mais reaça o político-co-
ronel, por mais devasso o clérigo, sob Lustosa, o
retrato de cada qual estará a ressaltar o eterno-
fugaz do humano: a graça e a leveza do momento.

Pessoa: Dois Excertos de Odes,


in: de Álvaro de Campos.
Pinçar, eis a essência do escrito lustoseano nesse
mar de banalidades. Talvez que a vida valha - diz-
nos o causo causeiro em riso aberto.

A CABECEIRA

Não vamos mais ao Amazonas. Ali funda-


mos o Acre, fundamos Manaus, enfrentamos a selva
e do nosso sangue o sangue da ferrovia Madeira-
Mamoré, que dizem corre vermelha, nem corre mais,
é tudo sucata, mas ali os nossos, uma epopéia .por
escrever. Hoje os eldorados são o Sul-maravilha,
Brasília, outras paragens, mas sempre lá a presepada,
a cearensidade a sobressair em tino e manha. Lustosa,
o retratista.
O alpendre em Fortaleza - o meu pelo me-
nos é assim - uma rede apenas, um televisor e um
controle remoto, como se ele, o controle, quem con-
versasse, eu com ele, conversássemos, pra lá e pra
cá, pobre controle! - porque os coronéis nem o so-
mos mais, a redução do espaço e tempo, onde alpen-
dres convívio não.
E a viagem? Claro que o sertão é cidade, hoje.
O causo matuto é o causo urbano. Leonardo Mota é
o mesmo Lustosa da Costa pra quem acredita nessas
coisas, com todo o respeito, Monsieur Kardec. Lustosa
nos devolve o alpendre e toda a fauna mágica, como
se fosse.

GÊNERO

Não sei o que os portugueses de Portugal ou


os da lusofonia em Angola, neste mundo sem frontei-
ras, da Internet, dirão deste nosso linguajar lustoseano.
Um "manera, fulano", assim mesmo, escrito e pro-
nunciado leve, com "e" aberto, tal qual dizemos por
aqui. E não deveria estar aspeado, como se fosse, e
é, do verbo maneirar? De maneira alguma. Isto é o
nosso: alma e alpendre - Compadre, será que chove
mesmo? - disto somos: chão e terra. Lustosa da Cos-
ta faz literatura. De qualidade, um livro de cabeceira.

SOARES FEITOSA
Fortaleza, novembro99
mundo todo são vários: fundem-se as ruas da
Você, Lustosa, é inesgotável falando da Europa, as poltronas dos aviões, os salões de fes-
erra. Você falando de Fortaleza, Sobral, e tas, as redações dos jornais, os corredores do
r parte do Ceará, do seu passado e do seu Congresso, Veneza, Sobral, Brasília...
vivido, você é cinema ambulante. (Carlos Augusto Viana)
(Caio Porfírio Carneiro)
Rache o Procópio! é um livro saboroso,
Rache o Procópio! é um manual da arte que deve ser degustado com todo o apetite e toda
de contar estórias. É assim a mais recente produ- a voracidade do olhar. É um exercício de inteli-
ção de Lustosa da Costa, coletânea de crônicas gência ler o que é bem escrito, o que nos remete
cada qual melhor do que a outra, culminando com à magia machadiana com os seus eufemismos
a anedótica conversa que dá título ao livro. mortais: "aprovado no vestibular de geologia do
Discípulo de Milton Dias, de Moreira campo santo", "a cobradora implacável", "Mor-
Campos, ou de Mario Lago, Chico Anísio e al- reu de que? De solidão? Do desencontro com a
guns outros excelentes causeurs, Lustosa se apri- vida?". "É melhor envelhecer do que morrer" É
mora em seu estilo chistoso, mantendo o interes- um livro de saberes, do mundo, e para o mundo".
se do leitor numa constante. (R. Leontino Filho)
(Blanchard Girão)
Lustosa aprendeu, no seminário, a ler os
Lustosa da Costa é um desses eleitos: clássicos e isso ajudou-o no seu ofício de jornalis-
nele, a composição constrói efeitos que a lingua- ta e escritor. Creio que as gerações posteriores à
gem comum não consegue produzir, uma vez que de Lustosa, Paulo Elpídio, Hélio Barros, Lúcio
é manipulada de forma diferente, de onde trescala Brasileiro, a geração dos ativos e participantes
o novo - depósito de inquietações e perplexida- quarentões, não possui o mesmo estofo cultural
des humanas. daqueles que, nos seminários ou em colégios tra-
A leitura de Rache o Procópio! aponta- dicionais, aprenderam a ler e a estimar escritores
nos um texto que prima pelo trabalho artesanal da da craveira de Eça de Queirós, Ramalho Ortigão,
palavra. A linguagem direta, simples e correta (o Camilo Castelo Branco, Machado de Assis e
autor é daqueles que se rendem à beleza do Por- Graciliano Ramos.
tuguês bem escrito, talvez por ver na literatura Nas Cartas do Beco percebe-se de ime-
também um instrumento de aprendizagem). diato, o reflexo dessas leituras, não só pela cita-
Ler Rache o Procópio! é sobretudo, mer- ção dos autores, mas, principalmente, pela estru-
gulhar numa multiplicidade de seres e de coisas, tura do texto feito à maneira de cartas, como o
exercício de múltiplas sensações. É reencontrar fez magistralmente Eça de Queirós, através do
Manuel Bandeira, o nosso "tísico profissional" ou seu alter ego Fradique Mendes.
o prosaísmo do Beco da Piedade. Nesse livro, o (Carlos d 'Alge)

UFC
CASADEJOSÉDEALENCAR
PROGRAMAEDITORL\L
COLEÇÃO ALAGADIÇO NOVO

COORDENADOR
Antônio Martins Filho

CONSELHO EDITORIAL
Francisco Carvalho
Joaquim Haroldo Ponte
Geraldo Jesuíno da Costa

CAPA
--
Assis Martins

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Carlos Alberto A. Dantas
Lustosa da Costa

Como •
me torne1
Sexagenário

UFC
CASA DE JOSÉ DE ALENCAR
PROGRAMA EDITORIAL
1999
Ao amigo José Sarney,
na iminência dos seus
venturosos setenta.
APRESENTAÇÃO

Estão aí algumas crônicas, já publicadas em livro, outras,


não. São espécie de antologia de páginas que me agradaram e
agradaram a terceiros. Para estes, vivemos. Rubem Azevedo Lima,
legenda do jornalismo brasileiro, revisor da imprensa carioca no
tempo em que um dos colegas de ofício era Graciliano Ramos, se
ofereceu para corrigir algumas delas. Outras foram acrescentadas
sem passar por seu crivo. Sem sofrer melhorias que ele impôs às
primeiras.
Não digo quais para me beneficiar da confusão. E da in-
dulgência dos leitores que, há décadas, me favorece. Se alguém
amar algumas dessas páginas, dar-me-ei por recompensado e feliz.
Para isto, vivo. LC.

Fortaleza, novembro de 1999.


SUMÁRIO

A RUA SENADOR PAULA ONDE VI O MUNDO, VEZ PRIMEIRA 13


MENINO EM SOBRAL 16
DECEPÇÃO ELEITORAL 17
ERA SOBRAL E CHOVIA 18
A PRIMEIRA PROFESSORA 20
PRESTÍGIO FUNCIONAL 22
CABOELEITORALEAIGREJA 24
BAIRRISMO DE SOBRAL 25
OS MITOS DO MEU TEMPO 26
A MATRIARCA EM PARIS 28
AOS OITENTA ANOS NO CAMPO DE BATALHA....................................29
ELE FICOU ME DEVENDO............ .... .... ......................32
Passeando em Sobral com os olhos de ontem 34
ITINERÁRIO DA SAUDADE 36
O DIVINO BALZAC 39
TOU NUINHA E OS FRADES ESTÃO EM CIMA ( ou: "As Missões") 41
A DEFESA DA MORAL 41
AFUGADOPADREIVAN 44
AS GLÓRIAS DO BISPO 44
QUANDO D. JOSÉ ESTAVA DE BOM HUMOR 47
HISTÓRIAS DE SEMINARISTAS 49
EU ERA COMUNISTA E NÃO SABIA. 50
OCÃODESÃOBENEDITO 53
OPADREPALHANO 55
JOSÉ SABÓIA, O OUTRO PATRÍCIO 58
COLUNA DA HORA 60
CHICO MONTE, O ÚLTIMO CORONEL 61
DONDON PONTE 64
Sinapismo 64
UMA MULHER COM O CABELO NA VENTA 66
O PAIOL DAS CANGALHAS..................................................................68
O FIM DO VELHO SONHO DE SER UM BISPO COMO NOS
VELHOS TEMPOS 71
O ESTUDO E O AMOR 72
NA DÉCADA DE CINQÜENTA 74
ACIDADEDAMINHAADOLESCÊNCIA 76
SONHANDO COM MESSEJANA 78
ÚLTIMO SALÃO 80
ERA TEMPO BOM 80
QUANDOERASÓCIODEDEUS 81
SAUDADES DA GAZETA 83
ESCREVER, UM VÍCIO 84
DECOMIDASEBEBIDAS 88
O VELHO IAPC 88
QUASE PIGMALIÃO 91
VERSATILIDADE 92
QUANDO IA SER DEPUTADO 95
FOI HÁ VINTE ANOS 98
IN ILLO TEMPORE 101
QUANTO ME FALTOU 103
CADERNODOREPÓRTERPOLÍTICO 103
GARANTIADEFIDELIDADE 107
EMPREGOPÚBLICONOCEARÁ 108
UMQUARTODESÉCULO 110
REPETIR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
VINTEECINCOANOSDEPOIS 112
A PRAIA DE IRACEMA 113
OBAIRRODEJACARECANGAQUECONHECI 116
O SAGÜI QUE VIROU CARVÃO 119
As pernas alvíssimas dos marujos 119
Vaia na primeira minissaia 119
Uma penosa imolada 120
Pula' Pula' 121
APRESENTAÇÃO DE LOUVAÇÃO DE FORTALEZA 121
NEMCAMÕESFOICAPAZDEMESALVAR 123
EUEOTCU 125
AGAGUINHANAPRAÇADOFERREIRA 125
QUESAUDADESQUETENHODOCIGARRO! 128
QUANDO IA SER PUBLICITÁRIO 130
PORQUENÃOFIQUEIMILIONÁRIO 132
SEMCUMPRIMENTONEMPAGAMENTO 133
OTEMPO,ESSEINIMIGO 134
MINHA AMIGA, A GARRAFA 136
20 ANOS DE BRASÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
AS TRAGÉDIAS DE 31 DE MARÇO 140
MORRIENÃOSABIA 141
DOIS CAJAZEIRENSES EM LISBOA 141
VIVENDONASAUDADE(OU JÁ FUI BOM NISSO) 143
UM SUSTO 146
CAMISAS POR CHAMPÃ 146
TANTO POR NADA 147
MEUCARDIOLOGISTA 148
RÉVEILLONEMPARIS 148
DEMICRONOVONOCYBERESPAÇO 151
PERDI A CONTAS DAS GAFES QUE COMETI 153
OQUANTOMELHOREI 155
LNROÉQUENEMFILHO 157
COMO SÃO SÁBIOS OS VENDEDORES DE RAPADURA 1 159
UMA BISAVÓ 161
CORAGEMDEQUÊ? 162
UMA PALAVRA DE ALENTO 164
SAPATOS NOVOS 165
MUSA DA DÉCADA DE 70--RECUERDOS DE SOBRAL-
RECUERDOS DO RIO 166
MICRO É QUE NEM CASAMENTO 167
VERGONHA DA ORIGEM 169
ELITEEMPARIS 171
TELEFONE EM PARIS I 72
ANDO COM SAUDADES DO VELHO MUNDO 17 4
MIA COUTO 175
NEM NOME DE PRATO 17 5
SEMPRE UMA FESTA 17 5
CAÍ FEIO 176
SAUDADESDAANTIGATVCEARÁ 176
TURISTA SEM DISSIMULAÇÃO 179
TEM MAIS É DE MOSTRAR 179
APROVEITAR 180
MOROSO NO PAGAMENTO 180
APRENDI TUDO ERRADO 180
A GABOUCE DEVIA SER OUTRA 18 1
O LUXO 181
SEMFAZERNADA 181
ÍNDIA 182
SARAMAGO 182
BEBENDO POR PROCURAÇÃO 183
ESTEREÓTIPOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 83
COMO EM PARIS 183
AGRADECIMENTO 184
IA A SOBRAL 184
LIVRO EM PARIS 185
MULATAS OU MALETAS 185
ETELVINONAÍNDIA 186
QUALIDADE DE VIDA, NEM A ALDEOTA TEM 186
CLOACA 187
COTAS 187
PORQUELOGOCOMIGO,SENHOR? 187
ALASKA 189
Crise 189
UM AMARAL SINGULAR l<x)
VALE A PENA CHEGAR AOS 100 ANOS? 191
Voto em 1966 192
Cumpre agradar os amigos 192
HÁ TRINTA ANOS 193
CANE TABIC 194
O PRAZER DE LER 195
O desrespeito ao livro 195
Viajarnem sempre é cultura 195
O AMOR E A IDÉIA DE JANTAR 196
UMAFESTADEAMIGOS 197
NOAPRES-MIDIEMBRASÍLIA 197
O CAMINHO DA UNIVERSIDADE 198
BOA MOÇA 198
O PADRINHO: MEU PAI 198
SEMCONFUNDIRASCOISAS 199
COMEMORAÇÃO 199
COISA DE POBRE 200
SEM RANCOR 200
MIMOS DE NATAL 200
A FALTA QUE ELE ME FEZ 201
Um novo cidadão 201
Não pergunto sem solução 202
Calvados 202
OJORNALMEDISPENSOUDEAPRENDERADANÇAR 202
SEXAGENÁRIO 204
PORQUE SESSENTA 205
OBRIGADO, MEU DEUS 1 205
A RUA SENADOR PAULA ONDE VI O MUNDO,
VEZ PRIMEIRA

Minha vida começa na rua Senador Paula (hoje avenida D.José).


Que foi a primeira em que tive de mim notícia. (Claro que me lembro da
noite em que cheguei a Sobral, 17 de setembro de 1942, e de haver
dormido sobre um colchão estendido no chão da casa alugada ao Chico
Neves, vizinho à bodega do Solon Vasconcelos. Foi só.) O mundo mes-
mo apenas me apareceria depois no sobrado do Bispo, hoje sede do
Museu D. José, na rua Senador Paula, posteriormente promovida à ave-
nida Dom José. Ali abri os olhos para a vida. Foi onde nasceu o Paulo.
Onde morreu o primeiro Elcias Lustosa. Era 1942, lembro-me, vaga-
mente, (ou me contaram depois? inventei?) de ver lá em baixo, na rua,
multidão (tenho impressão de que todos de uniforme) de trabalhadores
da SENTA, que iam escapar da seca no Amazonas.

Espancamento

Não fazia calor como hoje, porque ainda não existia muita rua
asfaltada. Havia ficus de benjamin à vontade, ensombrando a cidade.
Tinha eu de sete para oito anos. Estava sentado, num final de tarde, a
uma janela do primeiro andar do sobrado que dava para a casa de "seu
Capote", na rua Deolindo Barreto, numa enorme cadeira de madeira,
tipo avião.
De repente, vi e nunca pude esquecer. Gritos, um tropel de
gente. Dois soldados se esforçam para recolher um bêbado. Ele resiste.
Grita. Quando dois soldados tentam detê-lo, foge. As autoridades O es-
pancam com seus sabres. Já há sangue no chão empoeirado. O bêbado,
porém, não se deixa prender tão facilmente. Continua seu espancamento
até que Walter Andrade (vinha chegando do sítio, a cavalo, de botas
altas, chicote à mão, à porta de sua serraria), intervém. Aos gritos, man-
da que os soldados parem a violência e libertem o preso, na base do
"sabem com quem estão falando". O bêbado valente resistira à prisão e
aos lanhos dos sabres dos soldados, que empapavam sua camisa de suor
e de sangue. Uma inquietante agonia agitava meu coração. Quando os
policiais atenderam à ordem de Walter Andrade e libertaram o quase
preso, sai de cima de meu coração o peso de enorme pedra.

13
Outros vizinhos

Na varanda do sobrado de frente, vi, algumas vezes, a enérgica


matriarca dona Ana de Figueiredo Paula Pessoa, que dava gritos nos
vaqueiros, fumava charuto e cujo marido nunca saía de casa. Ou já
morrera?

Desfile dos "pracinhas"

Certa manhã de muito sol, numa varanda dos altos do sobrado,


estendemos uma toalha amarela em cujo território esplendia uma rosa
ruborizada sobre a qual apoiei o cotovelo. Foi no dia em que chegaram da
Itália os pracinhas sobralenses que haviam participado da II Guerra Mundial.
E desfilaram pela rua em carro aberto. Lembro-me de ter ido depois, com
meu pai, à casa do José Leôncio de Andrade que recebia, vivos, os filhos
de volta da Europa.Um tinha seu nome. Um homônimo. O outro, o Miranda.
Aquele que, preso como comunista nos sombrios tempos de Dutra, quase
leu toda a Comédia Humana, de Balzac, no cárcere.

Presença da morte

Naquele casarão, uma empregada doméstica que trabalhava


conosco se envenenou. Engravidara, sem querer. Tentou abortar, in-
gerindo "garrafadas" (remédios matutos) que verificou vãos. E por
isso, tomou veneno e morreu. Antes, porém, atroou o silêncio cavo
da madrugada com seus gritos desesperados, até que foi soltar o último
suspiro na Santa Casa de Misericórdia. Ali, como já disse, a Morte
ainda nos visitou, levando o primeiro José Elcias, que andou
aparecendo nos sonhos e pesadelos posteriores do Bispo D. José.
Morreu antes do fim da II Guerra Mundial, de infecção não devida-
mente identificada e devido à falta de penicilina. Os antibióticos ainda
não haviam chegado ao Ceará. Mal acabou de expirar, meu irmão
Alberto indagou de "seu" Costa:
"Papai, será que posso beber o resto do guaraná dele?"
Referia-se ao guaraná champagne, o qual, a esse tempo, se
comprava especialmente para os doentes.

14
Ratos insones

Pela madrugada, ouviam-se passos nas escadarias de madeira.


Muitos diziam que era a alma penada de um negro que fora enforcado
nas proximidades, por haver esfaqueado seu proprietário. Meu pai não
acreditou, foi ver. Tratava-se de ratazanas que despencavam do alto das
escadas centenárias, do primeiro andar para o térreo.

Cinema

Dali saí para assistir, no Cine-Teatro S.João, ao primeiro filme de


minha vida, na companhia do cartorário Edson Almeida que se fazia
acompanhar do Luiz Carlos Barreto. Voltei dormindo, nos braços do primeiro.

Os vizinhos

Lembro-me de cadeiras na calçada e cordiais cumprimentos


ao vizinho de lado, Eurípedes Ferreira Gomes, então um velhote de
cabelos grisalhos, bem cuidados e que parecia de bem com a vida.
Em frente a ele, morava o grande cirurgião da cidade, Guarany
Montalverne, pai de Ronaldo, com quem, às vezes, ia às aulas no
Educandário de S. José, à praça do S. Francisco, onde estudávamos.
Ao lado deles era a casa do promotor José Gil de Carvalho, pai do
Gilmar, o prosador. De frente a ele, o professor Luiz Jácome Filho, à
janela, atento ao movimento da rua, amparava o queixo com o lenço,
temendo que caísse. Outro era o solteirão rico Waldemar Lira. Mais
adiante, a casa de Ivone e Adauto Araújo, bons amigos de meus pais.
O consultório do Cláudio Amaral, cujas obturações eram sempre
adiadas, não terminavam nunca. A casa apalacetada do Walter Araújo
cuja mulher Cristina não dispensava boa conversa com as irmãs e
amigas ao cair da tarde. Todos os dias. Mesmo nas intempéries. Certa
vez, esperou, na calçada, sombrinha em punho porque chuviscava,
que elas aparecessem com as novidades. E o Colégio Sant' Ana, das
moças, portanto de acesso proibido aos marmanjos. Vizinho, a Cape-
la Rosa Gatorno onde eu ajudava o padre Expedito Lopes, depois
Bispo de Garanhuns, a celebrar missa.

15
Um casal soturno

Ficava esquina com o estabelecimento e a morada de um padei-


ro que cortava, uma espécie de cano à mão, a massa das bolachas. A
gente o via, sombrio, silencioso, de olheiras, ao lado da mulher de mele-
nas cinzentas desgrenhadas, naquela espécie de cave, ao lado da capela
de Rosa Gatorno e não sei porque engendrava tenebrosas fantasias a seu
respeito. Às vezes, eu ia comprar pão e bolachas mais adiante na Padaria
União do seu Mercídio Gonçalves.

Literatura, bebida e quase um amor

Quase defronte era a casa de Dalva e Agenor Rodrigues em cuja


estante travei conhecimento com Somerset Maugham, Oscar Wilde e
Aldous Huxley. Ali tomei o primeiro pileque. Também conheci uma moça
gordinha, do interior, de pele macia como a carteira de plástico com que
me presenteou. Foi um namoro que não se consumou apesar do mimo.
Por culpa de minha paralisante timidez e porque ela viera comprar o
enxoval do casamento e o noivo logo apareceu. Fez muito bem em ficar
com ele que foi prefeito, várias vezes. Eu nem síndico de prédio me elegi
até hoje. ( 1997)

MENINO EM SOBRAL

Ainda me vejo cavalgando um cavalo velho rumo à escola. Saía


de casa, descendo uma várzea ornamentada de vegetação nativa, em que
proliferavam mata-pastos e beldroegas, mofumbos e marmeleiros. Tomava
a estrada de terra batida, por onde trafegava, uma vez por outra, algum
carro. Na temporada das chuvas, com dificuldade, desviava-me dos
atoleiros. No verão, dos buracos. E lá ia, cabeça tão cheia de pensamentos
que, às vezes, detinha o animal, sem querer, ou lhe reduzia a marcha, em
seu caminhar entre cercados e fileiras irregulares de juremas e sabiás. Ali
e acolá, um pau-branco espargindo brancura pelas flores que eram muitas.
Adiante, cruzava um córrego que somente nos invernos mais intensos
ficava cheio, impedindo a passagem de veículos. Como era agradável às
crianças esse banho, em que se deixavam arrastar, uns poucos metros,

16
na correnteza pacífica! Oiticicas antigas, talvez centenárias, debruçavam
sua sombra sobre o regato - sombra escura de árvore escura, crescida no
úmido e envelhecida pelo beijo das águas passantes e boêmias.
Depois, ganhava a estrada real, pedregosa e ressequida, em meio
a descampados onde o gado erguia um olhar vazio de esperança, para
cidade já próxima, até encontrar, em toda sua lúgubre aparência, o mata-
douro - prédio esguio, cinzento, em torno do qual corvejavam, em vôos
preguiçosos, espaçadas levas de urubus, tingindo o céu de azul cinza.
Chegava, enfim, à estação de trem, à altura da Santa Casa, à
cancela rodoviária, e logo estava dentro de Sobral. Era bem cedo,
mas já podia ver as primeiras casas abertas, aquele murmúrio
precocemente cansado dos lugarejos, os velhos de pijama na calçada,
jumentos que carregavam, penduradas em cada cangalha, quatro pipas
de madeira para transporte de água. Uma grande pasmaceira em tudo!
Rumava, então, para casa, deixando para trás a alimária passada de
anos, umidade e suor.
Em período de estudo, ia diretamente para o colégio, onde ouvia
e prestava atenção a qualquer coisa, menos ao que dizia a professora...
A sineta tocava. Se era hora do recreio, merendava o pão com
doce. Se fim de aula, debandava, normalmente só. Costumava sair entre
os últimos, sem correria ou atropelo, com algum amigo mais chegado,
raramente alguma amiga. Aproveitava a ocasião para falar de coisas
grandes, distantes mundos de romance e fantasia, por onde vagava a
imaginação irrequieta e abrasada de idéias.
Voltava para casa, sol ainda a pino, muita fome e um desejo
louco de amainar o tempo. Vinha-me aquela vontade de pegar a espin-
garda, caçar nos vaus ou nas grotas, de ir pescar carás e enguias, de dar
longas caminhadas por sobre a areia branca, solta e fina, na qual era
gostoso assentar o pé inquieto de meus nove anos. (08/08/93)

DECEPÇÃO ELEITORAL

Entre meus guardados, tenho a cartilha do ABC com o registro


manuscrito - por minhas garatujas - de que comecei a estudar no
Educandário S.José, de Sobral, a 2 de maio de 1943, portanto, com
menos de cinco anos. O folheto tem o título "Carta de A-B-C por Landelino

17
Rocha", pobre edição da Typografia "Guarany"" de Recife. O estabele-
cimento escolar situava-se na antiga praça do S. Francisco, hoje penso
que Francisco Monte, no local onde atualmente funciona a Teleceará, e
era da ex-freira Honorina Passos, irmã do vigário geral da Diocese, mons.
Olavo Passos, gente da Viçosa, muito amigos lá de casa. Tanto assim
que foram padrinhos dos dois Elcias Lustosa, o que faleceu criança no
prédio do Museu Diocesano onde moramos e o outro, hoje diretor do
Espaço Cultural da Câmara. O único defeito dos dois era serem da UDN.
Não posso jamais esquecer a noite em que nos foram visitar e a uma
pergunta de dona Dolores, Honorina respondeu:
"Estou tentando engolir a pílula amarga da eleição do marechal
Eurico Dutra". Não prestou, não. Foi o maior bate-boca.
Dona Dolores era radical em política desde os tempos de
integralismo em Cajazeiras em que rebateu, de público, pregação de Otá-
vio Maia. Seu sobrinho, o falecido governador da Paraíba, Antônio Mariz,
me contava que seu tio, já velhinho, costumava lembrar o desafio da
atrevida professorinha da terra do padre Rolim.
Claro que nem tudo foram desavenças entre elas. Recordo a
visita que nos fez, mais tarde, quando da morte de Elcias e o pranto
desatado com que abraçou minha mãe, irmanadas ambas na mesma dor.
Memória não me falta
Guardo, comigo, outros documentos da infância o que devo à
minha mãe. Na certa, sonhava ela com aquelas reportagens sobre os
começos dos que se tornaram grandes homens. Bem que começo tive. O
resto é que não foi esses balaios todos. Mas a papelada está aqui para o
caso de a Presidência da República me cair no colo.

ERA SOBRAL E CHOVIA

"A tarde bruscamente fez-se clara. Porque já cai a chuva minu-


ciosa. Cai ou caiu. A chuva é uma coisa, que certamente ocorre no
passado" .(Jorge Luís Borges).
O Dário Castro Alves que me perdoe o plágio do título de seu
livro Era Lisboa e chovia, que curto de montão. Como bom nordestino,
amo a chuva. Ela está impregnada em meus sentidos e em minha memó-
ria desde os longes da infância.

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Ainda hoje sinto, nos costados, chuva fina e persistente que nos
perseguia no açude Mocambinho, em Sobral - onde hoje se situa a fábri-
ca de cimento - que sangrava. A vida era risonha e franca. Tanto que eu,
menino tímido, arriscava as mãos nas gratas e locas de pedra, para capturar
muçuns e carás.
Recordo, ainda, de banhos de chuva tomados com meu pai, nas
ruas da cidade. A água despencava lá de cima dos jacarés do sobrado do
Bispo e escorria, pressurosa, pela coxia das calçadas, ávida do rio Acaraú.
Adolescente, uma tarde estava passando pela Praça da Boa Vista.
O céu de repente, não mais que de repente, como diria o poetinha, ficou
escuro. Da terra se desprendia cheiro forte, carregado de expectativa
d' água, de fecundação, de erotismo. Alguém dizia na tarde úmida: "o
açude de dona Arolisa está pra arrombar". Décadas depois me disseram
que ela não tinha fazenda nem açude. Por que esta frase ficou pairando
nas recordações? Talvez fosse o açude do Júlio Coelho, funcionário do
IAPC, marido de dona Gláucia Aragão. A chuva desabou com força -
em pingos grossos, "de cruzado", como dizia meu pai - antes que eu
pudesse chegar à casa na Praça do S. Francisco.
Pela vida, agora, gosto de ver a chuva cair, lá fora, eu com nariz
espremido contra a vidraça. De ouvir seu arruído sobre o telhado.
Um dia destes, entrei numa gelada, por não atentar para as con-
dições de vida do interlocutor. Estava numa loja fazendo compras quan-
do a água começou a cair. Disse à funcionária que me atendia do meu
deslumbramento com a chuva. Ela não mostrou o mesmo entusiasmo.
Quando estranhei, explicou o porquê:
"O senhor não gostaria, se tivesse de atravessar um quilômetro
de barro do ponto de ônibus até sua casa."
O ex-senador Passos Porto, na quadra chuvosa de Brasília, hos-
pedou, certa vez, um prefeito do interior de sua Sergipe que vinha à
capital. Para a clássica peregrinação pelos ministérios. Todo o dia, desci-
am para a garagem e tomavam o carro rumo à garagem do Senado, onde
se apeavam quer chovesse ou fizesse sol. Finda a temporada, o bom
Passito perguntou ao prefeito o que achava da vida de senador? O matuto
foi sucinto: "é boa porque senador não se molha".
A maioria das pessoas quer ir para a chuva, mas não quer se
molhar. São assim as mulheres dos homens de vida muito intensa e bem
sucedida, que, por isso mesmo, não têm tempo para a família. Elas ado-

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ram as mordomias do sucesso. Não desejam, porém, pagar por elas
preço algum. E não há almoço de graça, advertem os americanos. É
assim a humanidade. Ocorre que a vida tem sua tabela de preços, suas
cobranças, e, raramente, é careira e injusta. Ela simplesmente cobra.
Agora ou depois. É pagar. Sem tugir nem mugir. Aliás, espernear bem
que pode. Ninguém jamais o conseguiu. ( 17 /03/91)

A PRIMEIRA PROFESSORA

Cabeçudo como um anão de Velasquez (como diria Nelson


Rodrigues), lá vou eu pro primeiro dia de aulas, vergado ao peso de uma
bolsa de caixeiro-viajante que pertencera a meu pai. Não sigo diretamente
à escola, e, sim, à casa da diretora (dona Honorina Passos) sob cuja asa
devo tomar o caminho do colégio, o Educandário S. José. Sinto que me
aguarda mundo hostil, diverso, inóspito. Quem há de me salvar da ruína
total, logo o descubro, é a professora, dona Dalva, mãe, supermãe, nossa
senhora, abrigo antiatômico, guarda-chuva no temporal. Pois ela foi tudo
isso para mim, menino amedrontado e receoso de enfrentar universo dife-
rente do que até então conhecia: livros, solidão e companhia de adultos.
Hoje indago se não foi graças às mulheres de minha vida, portadoras todas
do leite da ternura humana de que falava Dickens, que se tomou inviável,
em mim, a sobrevivência de qualquer tipo de amargor ou azedume.
Mas nem sempre o mundo foi assim perfeito. Um dia ele desabou.
Havia um rival em minha vida. Vinha buscar a bem-amada (minha e dele)
pra casar. Lembro-me bem do caderno amarelo (a capa feita de envelopes
grandes, usados pela repartição de meu pai) sobre o qual fazia um
"exercício", que, segundo a pedagogia da época, se chamava Imitação de
Caligrafia. As letras ficaram molhadas, borradas até se apagarem, confusas
em meio às lágrimas que derramava copiosamente. Chorava que dava
pena! Foram feitas démarches, gestões (meu pai tinha certa influência no
colégio e a professora era pobre, muito pobre). O certo é que escapei da
orfandade ... ou melhor dizendo, ela fora adiada. Marcou-se o casamento
para dezembro e a mestra continuou a me estender o peito donde jorrava
tanta ternura até o fim do ano letivo. Fiquei eu, ficou ela.
Passou o ano, a professora casou, engravidou, botou filho no
mundo, eu cresci, aprendi, nos portais do colégio, verdades elementares

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da vida, fumei escondido o primeiro cigarro e, um dia, viajei. Maravilha
das maravilhas, sabem vocês onde ia?
A Viçosa, cidade do meu amor, daquela mestra-quase-mãe (des-
culpem os analistas!). E lá fui eu, cheio de ansiedade, confrontar o pas-
sado com o presente, tentando extrair do passado alguma beleza que
este, eventualmente, tivesse esquecido de me mostrar. Se fui buscar
beleza, só encontrei decepção. Minha amada era agora pobre criatura
cujos dentes a rapadura e o mau açúcar haviam feito cariar e enegrecer.
Seu asseio, tanto quanto o do local, era pouco, no chão batido onde
rolava uma criança nascida de sua traição a mim. Mirei meu rival, ma-
gro, dentadura igualmente maltratada e pensei seriamente no mau negó-
cio que ela fizera, trocando-me por aquilo ...
Adeus às ilusões! Botei pedra e cal em cima de minha saudade.
Percebi, vez primeira, quão traiçoeira é a memória. Poe confete e con-
feito no que passou e foi bom, distribuir "glamour" sobre as coisas preté-
ritas, só para aumentar o desgosto e a desdita do reencontro. Mas nem
todo esse sofrer adiantou ou me corrigiu a mania de redourar o passado.
Anos depois, barba feita, coração por fazer, amei. E, amando,
gastei a sola dos sapatos passando, muitas vezes por dia, pela rua Joa-
quim Ribeiro, na esperança de avistá-la à janela. Por ela, consumi, tími-
do e silencioso, conhaque e quinado (bebia-se isto àquele tempo). Talvez
até cachaça pois é imbatível o fígado dos tempos do primeiro amor. Fui
acometido de esperanças violentas e desesperos mortais. Até que veio o
"não". Empatara romantismo incipiente, fígado igualmente incipiente,
disponibilidade igual; e o resultado era este. Ao criar coragem para che-
gar perto da amada, ali na Praça 5 de Julho, na alameda atrás da Igreja
do Rosário, ouvi dela:
"Não. Não podia. Era comprometida. Não usava aliança, mas
era comprometida. Namorava um rapaz que morava fora e ia fazer
concurso pro Banco do Brasil".
A esse tempo, meu sonho menor era a Presidência da República
e estava sendo preterido, atropelado por uma larva, uma expectativa de
bancário.
O tempo passou. Enquanto me doíam coração e cotovelo, an-
dou muito devagar.
Depois, correu a mais não poder. O concurso do banco não se
realizou. O amor era mofino e geográfico. Mudamos ambos da cidade.

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Assim também o sentimento. Anos mais tarde encontrei-a. Revi aquele
rosto adorado, analisando as sardas que lhe povoavam a face morena
(era morena, mas tinha sardas a valer!). O nariz arrebitado, um vago ar
suburbano que antes me escapara e, surpreso, só soube lhe dizer desas-
tradamente:
"Maria Helena, como é que pude ser tão apaixonado por você?"
Nunca, até então, fora tão descortês com uma mulher. Poucas
gafes lamentei como aquela.
Em verdade, em verdade hoje vos digo. Não houve, propria-
mente, intenção de grosseria. O que aconteceu foi o choque com a atroz
traição da memória que, pérfida como cobra, mente que nem camelô.
Diante desse último ocorrido, fiz solene promessa, vã talvez, de
não mais volver o pensamento à primeira namorada nem ao amor passado.

PRESTÍGIO FUNCIONAL

Seu Costa foi gerente do IAPC (Previdência Social dos


comerciários) em Sobral. Durante treze anos. Compeliu muita gente a se
fazer segurado. Isso desagradou, na ocasião, os que tiveram de pagar
contribuições. E os fez muito felizes, anos depois, quando puderam
aposentar-se e garantir velhice tranqüila. Um dos beneficiários foi
Gaudêncio Carvalho que, agradecido, de vez em quando, no dia de rece-
ber os proventos, lhe levava um queijo.
Em 1956, meu pai decidiu voltar a Fortaleza para dar melhor
educação à família. Foi nomeado Diretor dos Serviços Gerais do IAPC.
na capital, por seu compadre, o Ministro do Trabalho, Parsifal Barroso.
Ficou como substituto outro bom amigo nosso, Jader Ribeiro Parente
(o Jader Pé-de-Fogo, apelido que ele e os irmãos ganharam porque,
durante algum tempo, usaram meias vermelhas que o pai, Diogo Ribeiro
Parente, lhes comprara por serem mais baratas. Mas não é isso o que
interessa).
Pois bem, no último mês de nossa permanência na cidade, apa-
receu, na agência, o Gaudêncio com seu pequeno queijo, envolto em
papel pardo. Meu pai, instintivamente, estendeu a mão para recolher o
presente. Ele se desviou e o entregou ao Jader. Seu Costa, bem-humorado,
o advertiu:

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"Gaudêncio, não fui demitido, não. Fui promovido".
O outro, com feroz pragmatismo, ponderou:
"Mas o gerente agora é o Jader."
Não vi Judith Sendy nas fotografias da festa com que Luiz Frota
Carneiro homenageou a crônica social dos anos cinqüenta. Nem se falou
na Maura Barbosa, de O Povo, nem em Bayard, do Correio do Ceará.
Bayard se chamava José Calazans Pires. Era solteiro e com-
prava telefones, como forma de fazer poupança. Sua crônica se limita-
va a narrar, em duas a três linhas, o acontecimento social e depois dizer
que estavam presentes" O Sr. e Sra., Fulano de Tal e noiva etc e tal.
Uma comprida relação que ocupava toda a coluna. Só. Em certa edição,
ao lado do rol de presenças, publicou a foto do patrão, Eduardo Campos,
com legenda. Como ele não houvesse comparecido, lamentava a
ausência ao acontecimento narrado. Não era mal, no entanto. Só ofendia
a comida que comia. Ficou, todavia, uma fera quando Lúcio Brasileiro
trouxe sua coluna pro jornal. Era uma parada enfrentar concorrente tão
brilhante. Estava numa calorosa tarde de sábado, na velha redação de
Unitário e Correio, quando ele entrou, baixinho, muito bem
encadernado num paletó croisé azul marinho, fulo da vida, furioso,
fumando numa quenga. Nem o percebi. Quando lhe perguntei como ia,
respondeu feroz:
"Vou bem. O jornal é que não".
Seria algo contra mim? Não podia ser. Indaguei porquê e ele
detonou a injúria: "Está entrando até veado, aqui."
Fiz de conta que não percebi seu despeito. Não passei recibo.
Respondi-lhe bem-humorado:
"O sol nasceu pra todos."

A esse tempo (ou foi antes? Não estou certo), pelas manhãs dos
dias úteis, havia congestionamento de trânsito, abalroamentos, batidas
de automóveis na rua Costa Barros. Eram dezenas de fortalezenses, bem
sucedidos, que paravam, de repente, seus carros, empenhados em dar
carona a Eutimio Moreira, colunista social de O Povo, em transportá-lo
escassos quarteirões adiante, até o Fórum, onde tinha cartório. Um dia,
não se sabe porquê, atribuíram-lhe calores tardios por moçoilas em flor
que povoavam o café soçaite e ele perdeu a coluna. Deixou de ter sua
banca na feira das vaidades. Dia seguinte, aqueles motoristas que se

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matavam para levá-lo, não mais o viam, parado, à esquina, à espera do
ônibus. Passavam ao largo.
O mesmo aconteceu ao pernambucano Tavares Miranda, comu-
nista e grande poeta antes de se tomar rei da sociedade de S. Paulo. Era
feliz e dormia em alcova de cetim. Pintava e bordava. Casava e batizava.
Um dia, grassou na Folha de S. Paulo a febre da juventude. Ninguém
mais confiava em ninguém com mais de trinta anos. Sua redação encheu-
se de focas, a ponto de se dizer que se alguém jogasse uma daquelas
bolas grandes de plástico no local, ela jamais cairia, amparada pelo focinho
de tais bichos. Assim, a Folha fez o que fazem muitas empresas quando
um de seus funcionários chega aos trinta anos de serviço: presenteiam-
no com uma bandeja de prata e um pontapé na bunda. Tavares nem
bandeja recebeu. Só o bilhete azul. Foi catapultado, de repente, pro
anonimato. Morreu, um dia desses, varado de saudades da fama e do
prestígio perdidos. Sic transit gloria mundi.

CABO ELEITORAL E A IGREJA

No último ano em que morei em Sobral, entrei, de cabeça, na


campanha eleitoral de Acácio Aguiar que queria passar de tesoureiro
a presidente do Centro Estudantil Sobralense contra o outro candidato,
Gerardo Aguiar Mendes. A favor de quem, não sei porque cargas
d' água, ficou o colérico padre José Ignácio Mendes Parente, professor
do Colégio Sobralense, que chegou a ir à nossa casa me pressionar.
Na hora agá "apelou", em face das ligações de meu pai com o
clero sobralense.
E na sua presença, nós três no amplo sofá de jacarandá antigo,
("seu" Costa adorava móveis antigos, entalhados), em que estávamos
sentados, perguntou:
"Você não mudaria nem que seu pai mandasse?"
Disse que 'não" e felizmente, "seu" Costa respeitou minha de-
cisão. O sacerdote saiu, fumando numa quenga e, dia seguinte, em aula
que ministrava no Colégio Sobralense, me criticou com veemência. Teve,
porém, na hora pronta resposta do Moacir Sobreira Filho, seu aluno e
irmão do Narcélio, meu colega de Seminário Franciscano: "Pois eu não
acho isso do Lustosa, não", disse o altivo moço.

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No auge da campanha, Gerardo fez acusações ao desempenho
de Acácio como tesoureiro, obrigando-me a mim, seu ghost writer, a
escrever resposta num panfleto em que dizia: "aplicou-me o epíteto de
ladrão que só a ele cabe e bem se ajusta". Evidentes exageros de disputa
eleitoral. Ignoro em que deu a campanha pois estava de mudança para
Fortaleza. Só sei que tive de sustentar os atos embora não fosse nem seja
corajoso. Como sempre, fazendo das tripas coração.

BAIRRISMO DE SOBRAL

Eça se dizia um pobre homem de Póvoa de Varzim. Não sou


Eça, não escrevi Os Maias e tenho pena. Apenas posso dizer, também,
que não sou universal, sou municipal. Não sou nacional, sou de Sobral.
Sobral de antigamente, que conheço de velhos jornais, de livros, da me-
mória de seus filhos.
Nesse tempo, Moacir Silva terminava seu artigo "O invisível"
publicado em A Ordem de 3 de outubro de 1919 e assim o datava:
"Sobral, domingo 21 de setembro, entrada de primavera".
A santa terrinha tinha primavera e, segundo o falecido Paulo
Sanford, filho de um americano que trocara Nova Iorque pela Serra de
Meruoca, a Petrópolis sobralense em fins do século passado, ali se dizia:
Le monde marche et Sobral aussi.
Seus jornais registravam que o carnaval fora fraco no Rio. Em
Sobral, ao contrário, estava no auge, atraindo muitos visitantes, vindos
de Fortaleza.
A capital ironizava o bairrismo da cidade. É que o desenvolvi-
mento do Ceará veio do interior para Fortaleza. Quando Sobral era febril
entreposto do comércio, Fortaleza se espreguiçava ao sol, desértico areal.
Quando esta superioridade acabou, ficou a nostalgia da época
em que era a capital cultural, social e econômica do nordeste do Ceará,
tinha força política para impor a construção de estrada de ferro só pra si,
ligando-a ao Oceano Atlântico; exportar bispos, formados em Roma,
presidentes de províncias, senadores, médicos diplomados em Paris pro
resto do Brasil.
Os fortalezenses descontavam em ironias. Chamavam-nos
"Estados Unidos de Sobral" e diziam que nossa língua corrente era o

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inglês. Durante a guerra, quando as fortalezas voadoras defendiam os
ares nordestinos contra a ameaça nazista, falavam em que reivindicáva-
mos "Sobral voadoras".
Tudo porque Sobral não é uma cidade qualquer. Distingue-se
das outras. Pode não ter o Sena, como Paris, mas é banhada pelo Acaraú.
Tem seu Arco de Triunfo, assentado, sabem onde? No boulevard Pedro
II. Isto explica muita coisa.
Há, porém, diferenças. Uma delas, o calor insuportável à tarde,
amenizado à noite, quando os pernilongos varam calças jeans como se
fossem de voile. Nem todos, contudo, reconheciam a inclemência do
clima. Dolores Marinho de Andrade, da aristocracia da terrinha, organis-
ta da Igreja do Rosário, à tardinha, à janela de sua casa na rua da Aurora,
punha sua pele de raposa sobre os ombros, tal o frio que sentia. A esta
hora, soprava a brisa do Aracati-açu.

OS MITOS DO MEU TEMPO

Sou do tempo em que havia três instituições sagradas no País,


além da Igreja Católica. Eram as Casas Pernambucanas, as forças arma-
das e o Banco do Brasil. Entre os pobres e a classe média, quem sonhava
encarreirar os filhos pensava em vê-los militares ou bancários. Também
padres, embora a opção sacerdotal já estivesse menos prestigiada.
Meu pai foi caixeiro dos Lundgren, os proprietários de "As
Pernambucanas", e morreu falando maravilhas da organização empresa-
rial germânica. Não só ele. O Brasil todo. Naquela época, havia quem
dissesse que, para um aglomerado humano passar a ser considerado
cidade, precisava ter, pelo menos, uma Igreja, um cabaré (a zona) e uma
loja de "As Pernambucanas". Atualmente, vemos, desolados, parte do
grupo empresarial minguar, encolher que nem pneu furado, tendo até de
recorrer à concordata. É pena. Trata-se de mais um mito de minha infância
que se esfarela, se desfaz.
Uma das carreiras de maior futuro era a militar. Claro. Tratava-
se de emprego certo, com status e velhice segura. Hoje é o que se vê.
Capitães habitam favelas no Rio. Outros pilotam táxis. Sem falar nos que
se alugam a bicheiros pra comer, sobreviver. Por toda a parte, os milicos
estão numa pindaíba de fazer dó. E, pro futuro, ainda querem morder

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suas aposentadorias. O que os espera à frente é ainda mais negro. Na
matriz, o Banco Mundial e o FMI simplesmente pretendem acabar com
as forças armadas dos países periféricos. Não teríamos mais Exército,
Marinha nem Aeronáutica. Seríamos assim feito a Costa Rica.
Bancário, então, nem se fala. No interior, o funcionário do Ban-
co do Brasil era um rei. Um príncipe em que estavam de olho todas as
moças casadouras da cidade. Partidão raro tava ali: tinha posição social,
salário elevado, aposentadoria confortável. Nem parece hoje em dia em
que está sendo jogado no olho da rua pelo governo e pintado como
marajá, apontado como parasita pelos meios de comunicação.
Conto mais uma vez: quando adolescente, fui mordido por uma
dessas paixões incuráveis da idade. O objeto desse amor era morena e
tinha sardas no rosto. Recém-saído do Seminário, morria de timidez.
Não tinha coragem de abordá-la. Nutria paixão ilimitada e inconfessada.
Tudo, porém, caminha prum desfecho. O certo é que, um dia, fiz das
tripas coração e fui, de qualquer jeito, a seu encontro, no footing da
avenida. Que decepção! Com sorriso brejeiro nos lábios, me descartou.
Não podia. Não podia, porque era comprometida com outro. Masoquis-
ta, quis saber quem era o felizardo, meu rival. Eu não o conhecia, expli-
cou. Morava noutra cidade. Sua profissão: estudava pro concurso do
Banco do Brasil. Que humilhação! Eu, que entre os menores sonhos,
alinhava o de ser Presidente ou Papa, era derrotado por uma larva, uma
expectativa de bancário.
Tem mais.
o
Costumo ainda contar caso de dona Alice Rodrigues de Sou-
za, uma vitoriosa: conseguira colocar dois filhos no Banco do Brasil.
Além disso, ninguém podia ser mais bairrista do que ela, na cidade. O
mundo começava e terminava em Sobral. E nos filhos. Uma vez, estava
particularmente eufórica com o êxito funcional de um deles. Dizia à amiga,
Alaíde Sobreira:
"Meu filho, o Toim, estourou de letra... "
A outra quis saber o que isto significava. Alice explicou:
"Já foi A, B, C, D, Z. Não tinha mais letra pra ser promovido.
Aí o fizeram fiscal do Banco..."
Quando terminou o esfuziante contentamento, lembrou-se de
indagar da outra:
"E seu filho, o Narcélio, como vai?

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Alaíde, muito modesta, respondeu:
"Ele é inspetor do Banco Central. .. "
Dona Alice olhou-a intrigada, sem entender direito o significado
do posto. Não resistiu e perguntou:
"Banco Central, Banco Central? Tem agência em Sobral?"
A outra explicou que não. Não tinha. Dona Alice, então, sentenciou:
"Se não tem agência em Sobral, não deve ser importante, não..."
Ignorância ousada

Anos atrás, na rotina da cobertura jornalística do Congresso,


pintou uma colega nova, muito competente e desenvolta. A certa altura
da conversa com um personagem, este falou em Pedro Aleixo, presiden-
te da Câmara em 1937, vice-presidente da República, impedido pelos
militares em 1969, ex-líder da UDN, ex-ministro da Educação. A moça,
sem qualquer inibição, perguntou:
"Quem foi Pedro Aleixo?"
Como a recriminasse brandamente por não conhecer figura de
primeiro plano da história contemporânea, saiu-se com a escusa da idade:
"Não é do meu tempo."
Tinha certa razão. Também não havia nascido quando um tal
Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil e não posso alegar isto. Nem
quando Jesus Cristo nasceu, pregou e morreu na cruz. Nem por isto,
posso ignorá-lo. O que falta a muito coleguinha é informação. É conheci-
mento de história. Tem muita gente pelaí, deitando regra, que nunca leu,
sequer, os livros do Hélio Silva. Não falo nem das obras do Gilberto
Freyre, do Sérgio Buarque de Holanda, do Florestan Fernandes.
Se você quer ser jornalista, tem que ler. E ler muito. Muito em-
bora haja casos de quem, com a audácia dos ignorantes, meteu as caras e
foi em frente. Sempre há dessas exceções para contrariar as regras que
nos ensinaram.

A MATRIARCA EM PARIS

Dona Dolores cruzou o Oceano e chegou às margens do Sena.


Ao deixar o Charles de Gaulle me confidenciou que realizou sonho da
década de quarenta quando residia em Sobral. Apareceu a oportunidade

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de turismo na Europa, por conta duma viagem a Roma, os amigos João
Dias e a Neuza foram, "seu" Costa, porém, não quis. Ou não pôde. A
matriarca do Beco da Piedade enfrenta as peregrinações parisienses com
um pique de me dar inveja. Será que chego lá com a mesma disposição'?
Levo-a a jantar no "Le Train Bleu que Luis Bunuel considerava um dos
lugares mais bonitos do mundo. Conta que costumava comer ali, numa
mesa que dá pra chegada e partida dos trens da Gare de Lyon. Quero
imitá-lo. "Estão todas ocupadas", informa o garçon, alegando: "O
espetáculo é o mesmo em todo o restaurante." Não creio que ele tenha
1 ido as memórias do diretor de" A Bela da Tarde". Por isso, eu o perdôo.
E vou ao rango noutro canto do salão, que a convidada merece. Afinal,
não é todo o dia que tenho mãe em Paris, não.

AOS OITENTA ANOS NO CAMPO DE BATALHA

Felizes os valentes, os que aceitam, com ânimo


semelhante, a derrota ou as palmas.
JORGELuís BORGES

"Meninos
Uns marmanjos cinqüentões,
Calvos, vividos, usados
Mas resguardando no peito
Essa alvura de garoto,
Essa fuga para o mato,
Essa gula defendida
E o desejo muito simples
De pedir à mãe que cosa,
Mais do que nossa camisa,
Essa alma frouxa, rasgada."
(Carlos Drummond de Andrade)

Seu Costa conheceu dona Dolores em Cajazeiras da Paraíba


onde terminei nascendo. Sou o único paraibano da extensa ninhada. Ela
era professora primária, famosa por sua caligrafia e uma das fundadoras
da revista Flor de Liz.

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O país, então, praticamente se dividia entre integralistas e co-
munistas. O integralismo os aproximou. Depois do malogro do putsch
de 1938, eles já casados, a camisa verde dele terminou saia dela, rude
metáfora do que foi o fascismo caboclo.
Depois de algum tempo em Fortaleza, meu pai foi nomeado ge-
rente do IAPC em Sobral, onde nasceu a maioria dos Lustosa da Costa.
Em nossa casa, foi ressuscitada a Academia Sobralense de Letras. Lá o
Grupo Cênico Sobralense encenava peças. Ele escrevia e editava o boletim
"O Reino de Cristo" da Congregação Mariana de Moços. E ficava
orgulhoso de contabilizar a quantidade de chapéus eclesiásticos, sobre a
mesa, pertencentes aos muitos padres que iam nos visitar, conversar
fiado, contar fofocas de sacristia. Por isso, o dr. José Sabóia, líder da
UDN, o chamava de "monsenhor Costa".
Dona Dolores era e é desafeiçoada de tarefas domésticas, no
cumprimento das quais era ajudada por "seu" Costa que trabalhava em
casa. Uma vez, eles foram a Fortaleza, de trem. Vendo sua falta de jeito
com um dos filhos recém-nascidos, em contraste com o desembaraço do
marido, Paulo comentou:
"Papai é uma verdadeira mãe materna."
Recebeu, como benção de Deus, o emprego no Ministério da
Fazenda, que somente deixou por força da expulsória. Sempre trabalhou
fora, o que lhe fez muito bem. Vassourite jamais foi seu forte. Não
nasceu para desempenhar tarefas de governanta que nunca pode ter.
Nem de empregada doméstica. Mulher forte da Escritura, jamais nos
lembraremos dela tremendo os lábios nas emoções fáceis das comemo-
rações familiares nem preparando comidinhas gostosas. Quando, um dia
desses, o Brito ironizava a ausência da cozinheira, a refeição que faria,
matou, na fonte, qualquer esperança do genro:
"Você pode até comer algum jantar pago por mim, nunca feito
por mim."
Chefe de numerosa tribo, ao lado de "seu" Costa, preparou os
filhos para o jornalismo, a vida pública, o magistério, o País. Hoje, nos
seus firmes e ativos oitenta anos, não desfalece na execução do projeto a
que se impôs. Está sempre a cobrar, dos mais jovens, a conclusão da
tese de doutorado ou a estimular os netos no caminho da Universidade.
Assim fez comigo, o filho mais velho. Se nada fiz na vida, ela
não tem culpa. Bem que tentou. Condescendeu, porém, em muito, com

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minha preguiça para os números. Toda vez que precisava de que eu
fosse à lojinha de dona Iracema Pompeu, à padaria do Gonzaga Melo, à
farmácia do João Dias, ali na antiga rua da Aurora, pra comprar linhas,
biscoitos, remédios, eu ia. Antes, porém, negociava:
"Vou, se a senhora fizer meu dever de aritmética."
Crescido, em nada melhorei. Na época devida, entrei na Facul-
dade de Direito. Era o jeito. Não sonhava com vitórias no foro. Jamais
pensei em ser advogado. Queria sair bacharel em ciências jurídicas soci-
ais do outro lado da linha de produção universitária para ser procurador
autárquico, "marajá" àquele tempo, o que logo aconteceu.
Quando entrei em nossa Salamanca, já estava na moda, escre-
vendo para o rádio, jornal e, logo depois, comparecendo, toda a noite, à
tevê. O jornalismo era meu destino, meu fado. A dona Dolores cabia,
assim, acender uma vela em seu santuário pedindo aos céus me provessem
do saber jurídico que me faltava, ocupado que me encontrava, após as
aulas, nas noitadas de generoso uísque, sorvido no restaurante do Ideal
Clube. O certo é que saí da Faculdade tão virgem em ciências jurídicas
quanto quando entrei. Por isso, "seu" Costa me chama "doutor de vela",
porquanto diplomado à custa de promessas e orações maternas.
Leitora atenta e vigilante, sempre reclama quando escrevo sobre
as mulheres com quem sonhei, a morte ou sobre o oceano de bebida que
hei consumido e ainda consumirei. Roberto Aurélio, quando morou em
Paris, ainda não era o primoroso cronista dos tempos atuais. O certo é
que tropeçou em carta que lhe enviou. Erro besta, de distração. Na volta
do correio, recebeu uma gramática e um dicionário, tão implacável é seu
policiamento do vernáculo.
Por isso mesmo, formou todos os treze filhos, em uma ou duas
faculdades. Vitoriosa em tal empreitada, motor de proa de seu clã, bata-
lha, hoje, para que saiam as teses de Clélia e de Fred, torce por novo
êxito literário de Isabel, se empenha para que os netos estudem.
Ao lado de seu Costa, é a provedora. Isto porque o maior salário
é o dele e ela sempre tem com quem o repartir. Ora é a família dum
amigo, outrora próspero, que ficou pobre e recebe a cesta básica. Um
parente, afligido por angústias materiais a quem acode. Ou um filho,
cheio de êxitos intelectuais, e de dinheiros curtos, que precisa de ajuda
pra comprar o carro. Os mendigos batem à sua porta, todas as sextas.
Tem sempre algum dinheiro em espécie, para os mais eloqüentes, que

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sabem pintar melhor a miséria de sua condição, ou farinha do Camará
pro mingau, pro pirão. O tempo e a relativa folga, depois de criados os
filhos, só lhe ampliaram a generosidade efetiva e racional.
É bom envelhecer, assim, lúcida, prestante, profícua, liderando
seu clã do alto da gávea de um telefone que não pára de tocar. E que,
com freqüência, lhe traz problemas que encara com intrepidez: "A vida
seria até monótona sem eles." Quando me preocupo com o impacto de
tais desafios sobre sua saúde, brinca:
"Eu vejo tudo isto como se fosse um filme." Deve de ser grato,
também, olhar pra o caminho trilhado e lembrar que jamais se deixou
abater pela adversidade nem se deslumbrou com a sega dourada do que
plantou. (Junho de 1994)

ELE FICOU ME DEVENDO

São 14:45 na casa da rua da Barão de Aracati, 670, em Fortale-


za. O velho senhor fatigado, depois da caminhada na praia, da refeição,
cabeceia de sono, ante a tevê. Quando sua companheira lhe recomenda
dormir, aquiesce, sem resistência, e vai pro quarto, trocar de roupa, para
o repouso. O secretário, a última pessoa a vê-lo vivo, ao passar, percebe
que ele se observa diante do espelho, segundos antes de escutar o baque
surdo de seu corpo, quando o coração se lhe despedaça.
Não consigo que a cena se apague de minha mente. Ela me
persegue obsessivamente.
Fico indagando, a mim mesmo, sobre o que viu, ou que procura-
va ver, no derradeiro instante, antes da visita da Indesejada das Gentes.
Tentaria perscrutar, nos próprios olhos, a aproximação da Morte
ou isto não é possível pois ninguém admite que ela vem chegando, mesmo
quando a Parca já está, junto ao leito, para nos alistar em seu macabro
rebanho? O que procurou ver, diante do espelho, naquele momento?
As grandes pedras do calçamento, que alumbraram os olhos de
menino do sertão, na Praça da Estação em Fortaleza, quando, vez pri-
meira, pisou seu chão, acompanhando os pais na aventura da cidade
grande? O velho prédio da Assembléia Legislativa, onde, guri de doze
anos, fazia mandados para velhos imponentes, de longas barbas, que
depois descobriria serem os donos do poder? Reveria o caixeiro que

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lutava para sustentar a família numerosa e, nas horas vagas, empolgava
terceiros com oratória inflamada nas reuniões da Fênix Caixeiral, da
Congregação Mariana, nos comícios políticos? A moça, conhecida no
interior da Paraíba, em fase de luta política que os uniu por idealismo,
seria, depois - segundo seu rude senso de humor - por degeneração em
romantismo, sua fiel e forte parceira durante 57 anos?
O primeiro filho que transportava agarrado às costas, na garupa
do cavalo, a caminho do sítio no Mocambinho, com quem tomava banho
de chuva, em Sobral, recebendo ambos, sobre a cabeça, as bátegas d' água
que os "jacarés" do sobrado do Bispo despejavam lá de cima e em quem,
por algum tempo, enganosamente, sua vaidade enxergou o menino prodígio
que jamais foi e que não pôde, homem maduro, exilado na Gália moderna,
recolher seu último suspiro, fechar docemente seus olhos? Os relativos
sucessos da prole numerosa que se espalharia pelo mundo afora? Em suma,
será, indago, de novo, sem esperança de resposta, que divisou, por sobre o
ombro, a sombra da Morte que o convocava, que o vinha buscar? Por
mais que o pergunte, aquele átimo de tempo em que se mirou, ante o
espelho, será sempre uma carta que se não abriu, um segredo que se não
revelou, um mistério que levou para o túmulo, onde foi dormir literalmente
junto com os pais, à sombra dos mangueirais de Messejana.

É noitinha na rue de Vouillé, no quinzime em Paris quando o


telefone toca. O amigo médico, cheio de rodeios e delicadezas, tenta
mascarar a notícia fatal. Avisa que meu pai não está bem, que o quadro é
gravíssimo. É fácil perceber o que houve, de fato, embora doa-me aceitá-
lo. Fico firme, por instantes. É preciso. Recebo uma visita e não é justo
partilhar, com ela, minha dor.
Vou ao quarto das crianças. Sara me segue e me pergunta o que
foi. Informo-lhe que de Fortaleza me dizem que seu Costa está mal, quando
de fato já sou órfão, sua sombra já não me segue, não mais me protege.
"Sara, teu avô foi embora. Pra sempre."

Começa a batalha para embarcar, de volta aos penates, agora


desfalcados. Terminamos eu e o irmão mais moço conseguindo os últi-
mos lugares no avião depois da aventura de chegar ao Aeroporto Charles
de Gaulle, avenidas de acesso interditadas, o porão de bagagens já fecha-
do, o aparelho a ponto de partir. Cansativa e estafante viagem nos espera,

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Rio, Recife, João Pessoa, Natal, Fortaleza. Enfim, chegamos. No velório,
estreito, nos braços, o pranto convulso de minha mãe viúva, que emerge
de lá do fundo de sua dor:
"Eu vou ficar só", é seu gemido.
Digo-lhe que não. Não estará jamais sozinha, pois a acompanha-
rão sempre a sombra do companheiro, findo apenas em seu invólucro
material, o amor da descendência e o bem-querer dos muitos a quem
jamais faltou sua solidariedade efetiva e generosa. Logo, a intrépida mulher
se recompõe para iniciar o noviciado da solidão, partilhada com os muitos
que a amam e tanto lhe devem. No cemitério de Messejana, já recomposta,
acompanha filhos, netos e amigos, entoando cantos religiosos, enquanto
lanço a primeira pá de terra e flores sobre o jazigo que guarda os restos
mortais daquele que me deu a vida e que, em 85 anos de passagem sobre
o planeta, se chamou Francisco Ferreira Costa. E que, agora, dorme
profundamente, como disse o poeta, à sombra do mangueiral nos sítios
onde viveu e amou Iracema, a virgem dos lábios de mel.
Seu Costa foi embora, me devendo. Sem quitar dois compro-
missos. Visitar Sobral comigo, conforme acertáramos num almoço do
Marina - de que tanto gostava. E esperar pela festa de 60 anos de casado.
Como também prometera. Aliás, como nos prometêramos. Eu lhe pedia
sempre esperar até lá, 1997. E, por minha vez, temerário, garantia ficar
vivo até lá.
Escrevo, numa madrugada desolada do inverno parisiense, no
primeiro Natal de minha existência, sem a presença física e espiritual de
meu paL.
Passeando em Sobral com os olhos de ontem
Na manhã, quase madrugada, insone, passeio pelas ruas de Sobral,
com os olhos de ontem. Vou até a praça do Siebra onde moram três
professoras, Alzira Madeira, Laís Rodrigues e Jacira Pimentel, que,
naturalmente, dormem.
Nos meus tempos de menino, para chegar à casa de dona Alzira,
passava por uma bodega pouco sortida e quase nada freqüentada, numa
esquina de calçada altíssima, dando pra concorrente, situada mais abaixo
e melhor provida de mercadorias. Uma delas parecia ser do irmão do seu
Solon Vasconcelos, que possuía outra mercearia lá pras bandas da Praça
da Boa Vista, em frente à casa do Chico Romano da Ponte.

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Com ela, estudaram alguns irmãos. Um deles, certa vez, ao vol-
tar pra casa, indagou de dona Dolores:
"Mamãe, por que é que dona Alzira bate com a régua em minha
cabeça, dizendo: 'que coisa rude!'?"
A julgar por seus êxitos posteriores, a professora errou de
diagnóstico.
Quando transitava por ali, rumo do Colégio Sobralense, o amplo
espaço em que a prefeitura, posteriormente, implantou avenida arborizada,
era deserto, açoitado pelo sol inclemente, com algumas efêmeras poças
d' água, porque, a esse tempo, chovia em Sobral. Numa esquina ficava o
grupo escolar Professor Arruda. Na outra, situava-se a casa do vereador
udenista, José da Mata, negro retinto, sempre muito elegante, em seus
ternos brancos. Solteirão irredutível, presidia o clube dos artistas, em
cuja biblioteca ia fartar minha fome de livros para inquietação de meu
pai, pois o dono da casa não era chegado a afeições femininas. Morava
com a irmã, Semiramis, que fabricava gostosos sequilhos e que viria a
morrer queimada. A lamparina, que lhe alumiava o quarto, pegou fogo
na rede, nos punhos da rede em que dormia.
No quarteirão, defronte ao da professora Alzira Madeira, estava
o sobradinho do José Custódio, advogado provisionado, pai do jornalista
Stênio Azevedo, que tomava conta das misses, ao tempo em que este
concurso era de responsabilidade dos "Diários Associados".
Na esquina do lado de cá, morava Huet Arruda, cujos filhos, aos
meus olhos de menino tímido, superprotegido, eram cães em figuras de
gente, inimigos de todas as vidraças da cidade. Hoje se converteram em
cidadãos úteis, prestantes, a barriguinha dos cinqüenta despontando, as
primeiras cãs denunciando a passagem deste canalha, o tempo. Era vizinho
do irmão, Clodoveu, grande advogado, ex-juiz, ex-secretário de justiça,
aliado do dr. José Sabóia, chefe da UDN, com quem, às vezes, se atritava
tremendo caga-raiva, conhecido ainda por sua intemperança verbal.
Num desses janeiras desolados, de céu muito azul e incerteza
quanto às chuvas, de repente divisou, no horizonte, nuvem promissora
que podia muito bem desfazer-se lá sobre sua fazenda nas Caraúbas, tão
carecida de água. Gritou por Huet para que viesse à porta partilhar, com
ele, a novidade e a expectativa. O irmão tardou. Quando apareceu, só
pôde ouvi-lo, aos berros, dizendo tudo quanto era nome feio contra a
nuvem que, para sua frustração, passara ao largo.

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Clodoveu não se entibiava diante de nenhum interlocutor. Quando
um de seus convivas, na imensa "barraca" de conversa da porta de sua
casa, zombou de sua potência, chamou, aos gritos, a mulher que estava lá
dentro, aviando o café, sem se perturbar com a presença do Bispo:
"Romélia, vem aqui dizer: nós não demos uma, ainda nesta
madrugada!?
Era hipocondríaco até dizer chega. Falava tanto na morte que,
quando morreu, houve quem, a princípio, não acreditasse. Vivia tirando
a pressão. Como sua casa tivesse fundos correspondentes com a do
médico Guarany Mont'Alverne, seu comensal, mandou abrir buraco no
muro, pelo qual pudesse passar o braço, para que, nas horas de angústia,
soubesse a quantas andava sua saúde.
No dia do falecimento, outro de seus amigos, presença diária no
papo de fim de tarde, Júlio Álvaro Coelho, saiu correndo pra sua casa.
Lá, banhado em prantos, abraçou o defunto deitado numa rede que de-
sabou com o peso de ambos.
Disso tudo me lembro enquanto perambulo por estes locais, tão
povoados de histórias. É quando começam a caminhar, na avenida de-
serta, três senhoras. Uma delas, Dadá, filha do cirurgião Guarany
Mont' Alverne, casada com o banqueiro Paulo Pierre, indaga:
"Lustosa, o que está procurando aqui, a estas horas?
Respondo-lhe:
"O passado. O passado!"
Não seja por isso. Parece dizer. E me aponta uma de suas com-
panheiras de andanças matutinas, Conceição Vasconcelos, uma das minhas
professoras no curso primário do Educandário S.José, de dona Honorina
Passos.

ITINERÁRIO DA SAUDADE

Não consigo dormir na madrugada abafada de Sobral. Decido


sair do hotel. Chamo meu pai morto e, em sua companhia, cumpro o
itinerário da saudade. Percorro as ruas que percorríamos há muito tem-
po, detendo-me diante das casas que habitamos entre as décadas de 40 e
de 50, do prédio onde se instalara a Fábrica Santa Catarina, de que foi
proprietário, o local em que ficava o Cine-teatro Rangel, onde Ouvi, en-

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cabulado, vibrante discurso seu, em altas vozes, porque orador de antes
dos tempos do microfone e do alto-falante. Seu Costa vai comigo, con-
forme combináramos meses antes.
Sua sombra e sua memória me seguem quando contemplo o que
resta do casario antigo que, no meu tempo de criança, parecia tão alto e
imponente e que hoje vejo tão acanhado. Encolheu até diante da dimensão
em que os retinha a saudade de adulto.
Andamos pela Avenida Senador Paula, hoje D. José. Passamos
pelo sobradão do Radier Frota. Em frente à casa comercial que foi de
Chagas Barreto onde, às vezes, era mandado a fazer compras. Paro
ante a antiga residência de Dalva e Agenor Rodrigues, pais de Hélio,
meu colega e amigo. Aqui conheci Oscar Wilde, AI dous Huxley, Erich
Maria Remarque. Chorei até babar a gravata, que ainda não usava,
lendo Servidão Humana de Sornrnerset Maugharn. Aqui tornei o pri-
meiro pileque.
Adiante é a capela de Rosa Gatorno, anexa ao Colégio de
Santana, onde estudaram minhas irmãs. Na igrejinha, ajudei, muitas
vezes, o falecido D. Expedito Lopes - assassinado, posteriormente, por
um padre a quem chamara ao cumprimento de seus votos - a celebrar o
santo sacrifício da missa.
Reencontramos, em sua casa apalacetada, aos noventa anos, o
comerciante Valter Araújo, hoje viúvo. Foi casado com Cristina, que,
durante mais de seis décadas, manteve roda de conversa na calçada,
com as irmãs e amigas. Gostava tanto do papo que, certa tarde de
chuva, esperou, sombrinha em punho, as parceiras para saber todas as
novidades do dia.
Valter, há décadas, fechou as portas de seu armazém de tecidos,
na praça José Sabóia. Até um dia desses, qual patético personagem de
Gabriel Garcia Marquez, andava pra cima e pra baixo, pelas ruas, avenidas
e praças da cidade, seguido por seu ex-auxiliar, Abelardo Lopes e Silva,
que conduzia os livros de caixa do estabelecimento. De quando em vez,
paravam e os folheavam na nostalgia dos negócios dantanho.
Este Abelardo - já desaparecido - de que falo, era um que me
dava de presente duas moedas de cruzado, oitocentos réis, quando ia
ao IAPC tratar, com meu pai, de financiamento imobiliário, naquele
tempo um negócio da China, porque ainda não havia correção monetária.
Este dinheirinho eu torrava logo no bar do Cascatinha, consumindo

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três saborosíssimos sorvetes de 250 réis, que ainda hoje não me saem
da memória gustativa. Já falei tanto nisso que a impressão que muito
leitor deve de ter é que ele me presenteou com uma sorveteria, me deu
logo a Kibon.
Transitamos diante das portas do velho sobrado do bispo, hoje
sede do Museu Diocesano, do qual "seu" Costa era uma espécie de
animador cultural do Grupo Cênico Sobralense, que abrigou a sessão de
ressurgimento da Academia Sobralense de Ciências e Letras. Foi onde
moramos logo que chegamos a Sobral.
No velho casarão, pela madrugada, ouviam-se passos apressa-
dos sobre o assoalho das escadas. Diziam que era a alma penada de um
escravo, enforcado no local. Meu pai foi conferir: era nada. Apenas o
álacre footing das ratazanas nos descampados da noite.
Ali, uma das empregadas domésticas engravidou. Tomou não sei
quantas "garrafadas" para abortar e nada. Terminou bebendo formicida.
Ainda hoje retenho, nas ouças, os gemidos com que atroava o cavo
silêncio da madrugada até que foi levada a morrer na Santa Casa.
Nesse tempo, chovia em Sobral. Tomávamos banhos de chuva,
na calçada. Era delicioso receber na cabeça o despencar da água lá de
cima, das bicas em forma de jacarés do sobrado, depois seu pressuroso
escorrer, ávida do rio Acaraú.
Não tivemos tempo de rever a desmantelada serraria que foi
do Walter Andrade, situada em diagonal à segunda casa em que resi-
dimos e ainda mantinha a aparência de cinqüenta anos atrás. Não sei
porquê, ela me lembrava a tenda do ferreiro de As Grandes Esperan-
ças, de Charles Dickens. Não passamos na casa apalacetada do coro-
nel Antônio Mont' Alverne, construída em 1918, com seu inalcançável
pé-direito, altura esta destinada a garantir a ventilação do suntuoso
imóvel. Nem de dar uma olhadela na sua sala de visitas, conservada
pela viúva Marfisa, tal qual ele a deixou em 1928, quando morreu
atropelado no Rio, e ainda hoje é assim conservada pela filha Rute.
Nem pudemos ir também à sala de visitas da residência do doutor
Juvêncio Andrade, pai do cônego Egberto, ver aqueles móveis de
estilo austríaco que sempre me encantam.
Fui a Sobral, na companhia de "seu" Costa, como combinára-
mos num almoço de domingo, no restô do Marina, que ele tanto gostava
de freqüentar. Houve um porém. Na estrada, logo ao deixar a cidade,

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falo pelo telefone, do carro, para a família em Paris e os meus já não
podem ouvir a voz alegre, otimista e ensolarada do patriarca que me
acompanha apenas na saudade. Nem pode ele testemunhar este
esplendoroso milagre da tecnologia.
Por isso, digo aqui em Paris, com mais uma razão, um novo
motivo, em Brasília ou onde quer que esteja: Sobral não é uma cidade. É
uma saudade, chorando baixinho dentro de mim.

O DIVINO BALZAC

Todos os dias, um seminarista era escolhido para dormir no So-


brado do bispo, pomposamente denominado Palácio Diocesano de Sobral,
e ajudar a celebrar a missa. Para muitos, correspondia a uma noite de
terror. Para o anfitrião, era uma das maneiras de controlar o Seminário.
Os rapazes morriam de medo das sabatinas de D. José, severíssimo em
matéria de cultura. Sem falar nos mosquitos, vorazes, mais vorazes que
em qualquer parte do mundo, que consumiam o sangue do futuro padre.
Sobressaltados, às quatro horas da manhã, os seminaristas sentiam D.
José passar por debaixo de suas redes, rumo ao banheiro, fazer a barba e
as abluções. Às cinco, vinha despertar o acólito.
Dom José adorava dar incertas no seminário. Dono de tudo,
entrava sem avisar na sala de aulas, jogava o professor pra escanteio,
continuava a preleção - tinha vaidade de pegar o bonde andando - ou
interrogava os alunos.
Certa manhã, interrompeu a aula de literatura do segundo ano. O
professor ficou a um canto, mudo, inútil, sem saber o que fazer com as
mãos. Dom José queria aferir o grau de leitura dos futuros sacerdotes,
seus autores prediletos. Um apontava o padre Manuel Bernardes. O outro,
frei Luís de Sousa. Um terceiro chegou a citar longos trechos de A Vida
de Jesus, de Plínio Salgado.
"E você?", perguntou a um dos seminaristas, de olhar brilhante
e reconhecida inteligência:
"Quem é seu autor preferido?"
"Balzac".
O bispo fez que não ouviu. Disfarçou a surpresa e deu a dica:
"É Bernardes, frei Luís de Sousa ou Plínio Salgado?"

39
O rapazola, sem entortar caminho, manteve sua preferência:
"É Honoré de Balzac".
E como se não bastasse, acrescentou:
"Balzac, excelência. É divino".
O bispo deixou a sala, danado da vida, deixando, no ar, a ameaça
de sanções tenebrosas que nunca se efetivaram. Muitos anos depois, o
leitor de Balzac, o grande poeta Oswaldo Chaves, foi por ele ordenado
padre. Na hora decisiva de tomá-lo sacerdote ad aeternum, o bispo, que
não esquecera o incidente, lembrou:
"Espero que, doravante, seu divino seja outro..."
Dom José tinha suas implicâncias gratuitas. Uma delas era o
padre Luizito Dias Rodrigues, o último dos sacerdotes, ordenado por ele
em 1958. Funcionou algum tempo como seu secretário, sem entusiasmar
o chefe. Muito moço, não tivera tempo de ler todos os livros conhecidos
do bispo. Certa ocasião, para testá-lo, dom José perguntou:
"Já leu Humboldt?°
"Não, excelência."
"Que padre véi burro', murmurou o bispo a seus botões.
"Conhece Bossuet?"
"Não, excelência."
O bispo sussurrou outra expressão de seu descontentamento.
Todo o santo dia, era a mesma provação pro padre Luizito. Não
acertava uma. Até que lhe aconteceu a oportunidade de se sair melhor,
em que pensou, afinal, haver caído nas graças do bispo. Falava-se de
Virgílio e, na reiterada perseguição ao pupilo, o bispo atacou:
"Lembra-se da Eneida?"
Pe. Luizito tinha o seu Virgílio na ponta da língua. E, com segu-
rança, desfiou o arma virumque cano até que o bispo dissesse o seu
"basta". Dom José, como se estivesse só, lançou a apreciação sumária,
num julgamento implacável:
"Boa memória, mas péssima pronúncia."

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TOU NUINHA E OS FRADES ESTÃO EM CIMA
(Ou "As missões")

Quando era pequeno, ainda havia "missões". De frades. Frades


capuchinhos, preferencialmente, que se detinham três, quatro dias, uma
semana, numa cidade, fazendo pregações, salvando almas do fogo do
inferno. Os sermões eram verdadeiro exercício de terror. A semeadura
do pânico. Os sacerdotes faziam prédicas tão ameaçadoras, falando do
castigo do inferno - o Satanás, naquele fogaréu, espetando os pecadores
na ilharga, no traseiro, com seu aguilhão de ferro em brasa - que quase
todo o mundo se rendia. Amigados pediam o casamento. Pagãos requeri-
am o batismo. Pecadores suplicavam o perdão.
As missões eram, também, acontecimento social, oportunidade
de rever e reencontrar amigos e parentes. Inclusive os que moravam fora
da cidade e a ela acorriam para pleitear a benção do Senhor, ministrada
pelos pregadores.
Milton Dias costumava contar que, na iminência da chegada dos
santos padres à sua cidade, uma sertaneja assim se queixava ao marido
da falta de roupa adequada para assistir à festa religiosa:
"Estou nuinha e os frades estão em cima".

A DEFESA DA MORAL

Quando foi feito bispo de Sobral, em 1916, D. José Tupinambá


da Frota passou a mover guerra sem quartel contra o sexo, fora dos
limites do código civil e da bênção da igreja, o carnaval, o tango nos
clubes e o coco nos subúrbios. Topou, de cara, com o juiz municipal,
Clodoveu Arruda, quando passou a combater a prostituição e pedir "sa-
neamento radical contra o meretrício". O magistrado que não tinha, como
o sacerdote, voto de castidade, via nas prostitutas, vindas das classes
mais humildes, "válvula de segurança" da sociedade pela maior
tranqüilidade que conferiam às moças de famílias", menos assediadas
por noivos e namorados, desde que atendidos na "zona".
Em seu jornal Correio da Semana, fundado, dois anos depois e,
ainda hoje existente, ele ia fundo "contra o tango e o fox-trote, filmes
que ensinam o lenocínio e o adultério, revistas, folhetos e romances

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obscenos, a inércia da autoridade em punir incorrigíveis Dom-Juans, a
residência de decaídas em quase todas as travessas da cidade".
Reconhecia, porém, algumas derrotas. E a culpada era a tecnologia.
O progresso, a serviço do pecado. Responsabilizava, então, "esses
cobiçados automóveis, as tantas casas de pasto, lanternas elétricas que
permitem a alguns galgar muros e telhados pelas misérias que nos
envergonham e aviltam" (17/12/1920). Por aí dá pra ver como era perigosa
e, ao mesmo tempo, excitante a vida sexual de nossos avós.
Mulheres de mangas curtas ou vestidos decotados não podiam ir
à igreja, não recebiam a comunhão nem podiam pensar em ser madri-
nhas de batismo ou crisma. As filhas de Maria sofriam o diabo naquele
calorão. O vestido era de mangas compridas e as meias iam até os joelhos.
Tinham de usar combinação que cobria até três quartos do braço, por
baixo do vestido. As moças da sociedade achavam logo saída para
satisfazer à vaidade, sem correr o risco de ir pro inferno. Inventaram
"manguitos", uns canudos de pano, às vezes do tecido do vestido, às
vezes não, com que escondiam os braços, quando no interior do templo.
À saída, se descobriam, fugindo do calor infernal.

Carnaval

A primeira batalha perdida pela igreja sobralense, no fim da


década de vinte, foi contra o Carnaval. A festança era tão animada que
atraía, de Fortaleza, caixeiros-viajantes, importante categoria social onde
as boas famílias recrutavam genros. D. José e seus padres ameaçavam
não ministrar o sacramento da comunhão a quem caísse no pagode.
Ninguém perdia folia tão animada, mesmo se arriscando a entregar a
alma ao diabo.
Na década de quarenta, ainda peguei a expulsão, das fileiras da
Congregação Mariana de Moços, do posteriormente "rei" de cera de
carnaúba, Raimundo Machado, porque dançara o Carnaval com a mulher.

A beata

Não foi a única derrota do bispo. Houve, ainda, o caso da


diretora da Pia União das Filhas de Maria, moça de virtudes tão excelsas
que, autorizada por dom José, mantinha, em casa, gabinete espiritual

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para dar consultas gratuitas, a fim de evitar que ovelhas se
tresmalhassem. Era tal o respeito de que desfrutava que, certa vez, lhe
coube o encargo de preparar sertanejo, bronco de espírito, mas forte
de compleição física, para o ingresso no seminário. Em meio ao
apostolado, a carne falou mais alto. E a beata, ao invés de colocar o
jovem cristão na senda do Senhor, encaminhou-o para a cama. Casa-
ram-se às pressas e se mudaram da cidade.

Piedoso

Teve mais. Um devoto, comerciante de aspecto desmazelado,


não faltava à missa diária e era assíduo à mesa da comunhão. Quis o
azar, porém, que, pro vexame do bispo, o santo varão morresse em
pleno campo de batalha. Sabem onde? Em leito não abençoado pela
santa madre nem protegido pelo código civil.

Documento

Numa grande empresa, todos se recreavam com as funcionárias.


O diretor-presidente, seus dois genros e gerentes. Um deles se descuidou
e a moça apareceu grávida. Quando nasceu mais um brasileiro, o avô foi
na companhia da jovem mãe à presença do presidente, reclamar seus
direitos. O chefão ainda tentou defender o genro. Calou, porém, quando
o avô lembrou a semelhança física entre o pai e o menino:
"Doutor, só vendo: o menino, é igual a ele. A cara dele é um
dicumentu ..."

Conforto

O patrão se sentia mais vigoroso, ao amanhecer. Por isso, mal


tomava o cafezinho de pé, ia abrir os portões da empresa. Como madruga-
va, tinha espaço para passar na casa de uma operária que só trabalhava no
expediente da tarde. Tanto amiudou as visitas que a mulher, de nascença
aristocrata e rica proprietária, decidiu enviar-lhe um presente. Mandou o
motorista deixar, na casa da outra, de manhãzinha, toalha de linho, xícaras
de porcelana, bule de prata. Se queria tomar café, ali, que o fizesse com o
maior conforto possível. Ele escorraçou o portador com sonoro palavrão.

43
A FUGA DO PADRE IVAN

Na atmosfera de repressão e carolice da cidade, certa manhã


uma notícia explodiu lá em casa, com o estampido de escândalo. Tremendo
escândalo. O vigário de Coreaú, padre Ivan Carvalho, roubara uma moça
por quem se apaixonara e fugira, com ela, a cavalo, rumo de Parnaíba.
Foi alcançado no alto da serra da lbiapaba, pelos irmãos da moça, a
quem botou pra correr, com o argumento de seu revólver. Três meses
depois, desfez o casamento. Voltou a Sobral, com aquela cara vexada de
pecador malsucedido. Ao sabê-lo lá em baixo, encabuladíssimo à porta
do sobrado diocesano, D. José foi buscá-lo e o acolheu, com um beijo na
face, sem uma recriminação. Ainda o conheci, suspenso de ordens,
soturno e triste, como fiscal do Colégio Sobralense até que organizou a
vida conjugal e foi viver em Camocim.

AS GLÓRIAS DO BISPO

Dom José Tupinambá, bispo-conde de Sobral, chefiou a Igreja


Católica na região noroeste do Ceará, durante mais de cinqüenta anos,
deixando realizações no campo da saúde, da educação, da preservação
da memória nacional que ainda hoje lhe são úteis. O grande teocrata
tinha justo orgulho de sua formação intelectual, de par com isso, acredi-
tava firmemente em que a Igreja Católica detinha o monopólio dos in-
gressos no céu e colocava a liturgia acima de tudo.
Foi considerado por seus colegas a maior organização filosófica
e teológica do clero brasileiro, ao voltar de Roma, laureado pela Univer-
sidade Gregoriana.
"O Tupy ensina melhor teologia dogmática do que o cardeal
Billot, da Universidade Gregoriana", era o julgamento do cardeal dom
Sebastião Leme.
"É a maior organização metafísica do Brasil", dizia o padre João
Gualberto. O Ministro das Relações Exteriores da Itália cumprimentou
seu colega brasileiro quando de sua formatura em Teologia e Direito
Canônico, o que levou muita gente a pensar em seu ingresso na
diplomacia. Não quis. Preferia ser o primeiro em Sobral, a ser o segundo
ou o terceiro no Vaticano.

44
Ao retornar à terra natal, viu, com desgosto, que o lugar estava
ocupado, firmemente ocupado, pelo doutor José Sabóia de Albuquerque,
bacharel de Olinda, juiz de direito, chefe político, industrial riquíssimo
que não demonstrava a menor intenção de abandoná-lo.
A rivalidade entre eles durou a vida inteira e rendeu uma metáfo-
ra ao bispo:
"A torre de minha igreja estará sempre acima do prédio do fórum".
A Catedral da Sé de Sobral está erguida sobre modesta colina,
acima do prédio da prefeitura, onde despachava o juiz.
Ele se gabava de seus conhecimentos musicais, de ser capaz de
captar, no ato, um sustenido desafinado. De seu latim, de brigar por
causa de um "i" breve ou longo na palavra "totius".
Poucos anos após voltar a Sobral, chega à cidade o tenente Tobias
Coelho, conterrâneo, residente no Rio, que fazia praça de seu maçonismo
e que, num boletim ao público, criticara "as idéias retrógradas de dom
José" e se referira "a seu jesuitismo que conseguira, por pistolão, afastar
do cargo de vigário aquele que a ele faz jus" (dom José era protegido e
primo de dom Jerônimo Tomé da Silvã, bispo primaz do Brasil, a quem se
deveu a criação da diocese de Sobral). Dom José desafiou-o ao debate
público, no Teatro S. João:
"Dei-lhe a liberdade de escolher a língua que preferisse: portu-
guês, espanhol, italiano, latim e alemão".
Dom José amava as insígnias do posto e a liturgia. Era um
espetáculo vê-lo entrar na catedral, de batina roxa com cauda, erguida
por um seminarista, coberto de arminho, portando a pesada cruz
peitoral de ouro, vistoso anel de dedo que os fiéis deviam beijar,
genuflexos, enquanto os sinos bimbalhavam, festivos, saudando o
acontecimento.
Em tais ocasiões, manda a liturgia que o vigário e o sacristão
estejam a esperá-lo à porta, com a caldeirinha de água benta, para que
ele possa aspergir a entrada do templo. O vigário, padre Domingos, nunca
estava a postos. O bispo, aos gritos, reclamava:
"Igreja sem vigário e sem sacristão".
Nessas ocasiões, anunciava a demissão do sacristão, Eduardo,
ameaça que jamais se concretizava.
Demorou, certa ocasião, um dia inteiro, resmungando. Porque,
ao passar pela igreja do Menino Deus, à noitinha, flagrara Monsenhor

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Olavo Passos infringindo uma regra da liturgia. É que a bênção do
Santíssimo Sacramento pode ser ministrada com ostensório, se solene.
Se simples, com âmbula. Na bênção solene, o oficiante deve estar vesti-
do com capa de asperge quando for erguer, para a adoração, o ostensório
com a hóstia grande. Basta-lhe, porém, estar de roquete e estola no caso
de ser a benção simples, com âmbula e hóstia pequena. Ao ver que
Monsenhor dera a benção solene, sem ostensório, sem capa, passou o
resto da noite se queixando:
"O santo padre Olavo desmoraliza minha diocese".
Dia seguinte, no almoço com padre Correia Lima, voltou a se
lamuriar:
"Donde menos se espera ... "
Até morrer, em 1959, se gabava de não haver uma só igreja
protestante em sua diocese. Os "crentes" eram escorraçados pela vee-
mência de sua oratória ou, em caso de necessidade, pelas pedradas de
seus fiéis.
Já no fim da vida, não mais resistia à instalação do Lion's Clube
de Sobral. Um grupo de leões chegou mesmo a convidá-lo para sua
instalação na cidade. À certa altura, para lisonjeá-lo, um de seus inte-
grantes disse:
"Porque afinal quem manda na cidade é o senhor.
"Mando, nada", respondeu. "Quem manda é a Chica Agosti-
nho. Fecho o cabaré dela na quarta e ela o reabre no sábado".
Apesar disso, sua força política ainda era muito grande. A ela se
atribuiu a não instalação, em Sobral, do Batalhão de Engenharia do Exér-
cito, localizado finalmente em Crateús. Alegou a defesa da moralidade
da família sobralense contra a implantação do estabelecimento.
No fundo, temia a chegada à cidade de elite de forasteiros sobre
os quais não exerceria qualquer ascendência.
Nas missas, em te-déuns, bênçãos do santíssimo, facilmente se
impacientava com as falhas dos ajudantes. Isto no tempo do apogeu da
liturgia, em que os ofícios religiosos eram belos e sofisticados espetáculos
cênicos e de indumentária. A um deles, que lhe entregou o turíbulo, por
trás, resmungou, a respeito da solenidade do ato:
" Por trás, só se dá clister".
Nada tão grave, aquele tempo, que a ordenação de um padre ad
aeternum. Ainda sim, nesses momentos, se permitia desabafos. Foi

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quando da ordenação de Austregésilo Mesquita, hoje bispo de Ingazeira.
Deu vexame antes de indagar:
"Juras obediência a teu bispo?"
Ao mesmo tempo, resmungava:
"Não pergunto. Não pergunto. É uma farsa".
Terminou por fazer a indagação.
Depois explicou que ainda se encontrava traumatizado com o
padre Francisco Sancho, que abandonara a diocese, para ir morar no
Rio, sem sua autorização:
"Naquela hora, estava vendo os olhos do padre Sancho". (31/10/93)

QUANDO D. JOSÉ ESTAVA DE BOM HUMOR

Dom José Tupinambá da Frota, que gostava de assinar D. José,


bispo-conde de Sobral, nem sempre estava mal humorado, ranheta, não.
Tinha, também, seus instantes de descontração, seus momentos de bom
humor. Uma manhã de sol, estávamos na calçada de casa, quando ele
despontou, na sacada da janela do sobrado, onde morava, chamado Pa-
lácio Diocesano, com o pupilo, padre Palhano, que vinha de debelar
problema gastro-intestinal. O antibiótico começava a chegar ao Brasil e o
bispo se permitiu o trocadilho:
"O Palhano esteve doente, sarou, tomando penicolina ... "

Comerciário durante muitos anos, irmão marista, de pouca cul-


tura, o padre Benedito Maia ordenou-se velho, de poucas letras, tudo
fazia pra agradar ao bispo que, de cinco em cinco anos, exigia exame de
madureza em teologia moral, Dogmática, Liturgia e Direito Canônico, a
fim de manter o clero atualizado. Maia compensava suas limitações com
o esforço de agradar. Num determinado dia, dom José perguntou:
"Padre Bené, o senhor poderia celebrar a santa missa com ca-
chaça, ao invés de vinho?"
Maia nem hesitou:
"Se V. Excia. mandar, eu celebro".
Seu secretário particular, Valdemar Albuquerque, tudo fazia para
amenizar o mau humor do bispo. Num almoço ruim - o que, aliás, era
rotina no Palácio - D. José, só de mal, indagou:

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"A carne está boa, Valdemar?"
"Está ótima, excelência".
"Pois, então, coma, Valdemar".
Noutra oportunidade, dizia:
"Quando eu morrer, quero que plantem uma bananeira em cima
da minha cova".
"Pra quê, dom José", perguntou Valdemar.
"Para dar banana pra todo o mundo, Valdemar. Pra uns, uma penca".

Monsenhor Gonçalo Eufrásio de Oliveira, filho de Ubajara, era


mulato entroncado, de voz fanhosa, sardônico. Aplicava apelidos gros-
seiros, até cruéis, aos alunos do Colégio Sobralense, principalmente os
de cor escura. Estes sofriam o diabo em suas mãos.
Um deles não agüentava mais as ironias e as humilhações, que lhe
eram infligidas. Durante a argüição, não acertou urna, de tanto nervosis-
mo. Para exasperá-lo, o padre, pegando na própria carapinha, indagou:
"E isso aqui? Pelo menos isso, você sabe o que é?"
Desesperado, o estudante partiu pra retaliação:
E cabuçu...
Foi "velho cabuçu" o apelido que os estudantes botaram no padre
pela semelhança de seu cabelo com o ninho daquelas abelhas silvestres.
Mesmo no trato com as senhoras, não mudava. Certa feita, Dêa
Capote, com inteira boa fé, perguntou:
"Padre, por que o senhor está coxeando?"
Respondeu no ato:
"Uma mulher jamais perguntou a um homem porque ele está
caxingando..."
Muito pobre, comprou na loja do Liberato urnas meias verme-
lhas, porque eram mais baratas. Foram dedurá-lo ao bispo por estar
usando meias privativas de cônego, de Monsenhor.
Quando pintou no Palácio, D. José, imprudentemente, o interpe-
lou a respeito. Ele, erguendo um pouco a batina, blefou:
"D. José, por acaso estou de meias encarnadas?"
Vexado, o bispo pôde apenas responder com outra pergunta:
"Você não sabe que sou daltônico?"
Encontrando o bispo, certa manhã, depressivo, lastimando a
indisciplina do clero, tentou consolá-lo, assim:

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"D. José, os padres não obedecem nem aos dez mandamentos,
quanto mais às ordens do bispo".
Ele hesitava em aludir aos chifres dos fiéis do sexo masculino.
Quando oficiava a missa na capela de S. Vicente de Paulo, vizinho ao
prédio dos Correios, irritava-se porque os homens ficavam do lado de
fora do templo, conversando, fumando:
"Entrem, entrem na casa de Deus. Vão entrando. Quem não
puder entrar de frente, entre de lado ... "
Durante certo tempo, respondeu pelo internato do Colégio
Sobralense. A noite, no centro do pátio, era colocada lata vazia de que-
rosene que funcionava como mictório e poupava esforço de vigilância
sobre os alunos.
Quando um deles, desavisado, começava a usar a lata, ouvia-se
a voz fanhosa do padre, berrando nos descampados da noite:
"Mija, de tabela, fi duma égua. Mija de tabela. Deixa eu dor-
mir. ..". (21/06/92)

HISTÓRIAS DE SEMINARISTAS

Estudei em seminário de frades alemães. Primeiro em Tianguá,


depois em Campina Grande. Não queria ser padre. Se dei o cano em
Deus, foi porque a família era grande e o ensino deles bom e barato.
Passado tanto tempo, acho engraçado a relação de ex-seminaristas com
o alto e com suas memórias. Taí o Antônio Carlos Martins Melo. Esco-
lheu ser juiz federal justo em Campina Grande, pertinho do Seminário de
Ipuarana, na Lagoa Seca, de que fomos alunos. O outro foi João Teixeira
Guimarães,o "Cuscus" da Serra da Meruoca. Depois de passar para a
reserva do Exército, decidiu residir em Campina Grande. E comprar sítio,
nos fundos do prédio do Convento em que todos estudarmos. De lá, eles
dois mais o Ary Jansen Branco, outro colega vindo de Santarém,
telefonaram, terça de Carnaval, e deflagraram em mim profundo proces-
so recessIvo.
De novo fui aquele adolescente que fugia dos esportes para se
refugiar no prazer dos livros de aventuras de Karl May. Que, uma vez,
na prova de matemática, o professor-frade flagrou, com um livro entre
as pernas, como se estivesse colando. Tava pescando, nada. O que não

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queria era deixar, por um instante sequer, nem o da duração da prova, as
emoções de Quo vadis? Curtia o romance que me empolgava. Ante o
papo saudosista, deu-me vontade de rever o enorme casarão que abrigou
minhas fantasias, meus sonhos, minhas inquietações aos 16, aos 17 anos.
Pra quê, pensei depois, se eu não há muito tempo deixei de ser aquele?
Só se for para ter saudades minhas. Antônio Carlos, que, no Seminário
de Tianguá, chamávamos "Tatais", não sei bem porquê, é poliglota e
começou a fazer carreira no Banco do Brasil, carreira frustrada em 1964
por suas simpatias esquerdistas. Quando voltei a vê-lo em 1967, no Rio,
morava pertinho, ali na Domingos Ferreira, eu na Avenida N. Sra. de
Copacabana. Era, então, ligado a uma senhora que, em crises de ciúme.
costumava deitar à banheira cheia d' água aparelhos de tevê, de rádio, de
sons, o ferro de passar roupas, discos, o diabo a quatro. Chegava o
nosso Antônio Carlos a seu apartamento no Edifício Master e encontrava
toda aparelhagem doméstica em exercício de mergulho. A esse tempo,
profissionalmente encontrava-se exilado numa agência no Meyer, região
remota, por perseguição política. Também por isso tivera de vender o
carro. Como eu detestasse dirigir, era quem pilotava meu fosca azul claro
por todo o Rio. Assim, graças a ele, pude conhecer a antiga cidade
maravilhosa.
Uma terça-feira de Carnaval de 1968, encontramo-nos num bar
da rua Santa Clara. Bebemos. Falávamos alto como bons cearenses. Em
determinado momento, discutíamos a Divina Comédia. E ele, em flu-
ente italiano, começou a declamar o poema imortal. Neste instante, en-
trou no local Milton Dias. O grande cronista pensou com seus botões:
"Quem são estes dois malucos que, numa terça-feira de Carnaval cario-
ca, debatem Dante Alighieri?". Ao me ver, sentou-se à mesa e brindou-
nos com seu papo vivaz, colorido, inteligente.

EU ERA COMUNISTA E NÃO SABIA...

Não costumo ir à missa. Não me tomem porém por ateu, por


alguém de mal com Deus, como acontece a muitos ex-padres ou a ex-
seminaristas. Nada disso, é que estudei quatro anos e meio no seminário.
Assistia à missa, todo o santo dia. Aos domingos, duas vezes. Estou,
portanto, remido. Tenho largo crédito nas mãos do Senhor.

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Um dia destes, fui ao Mosteiro de São Bento, aqui em Brasília,
assistir à missa de domingo: cantada. Canto gregoriano. Vi muito coroa,
na platéia, acompanhando a missa, em latim. Eram ex-seminaristas. O
que nos levava lá? O remorso de havermos dado o cano em Deus? De
não lhe termos consagrado a vida? Realmente, não sei dizer. Sei, porém,
que adoro rever a Escola Apostólica São José em Tianguá, no alto da
Serra da Ibiapaba, percorrer seu pátio solitário, o dormitório idem, as
salas de aula, o campo de futebol, a casa do motor da luz.
Tão gostosa nostalgia não me impede de lembrar também os
momentos menos agradáveis dos dois anos que estudei ali e que me
valeu, um dia desses, descompostura de um colega daqueles anos, revol-
tado porque não glamurizei o passado, não vi apenas encantamento no
que passou.
Ali no pátio externo, o coração na mão, ouvimos todos o jogo do
Brasil versus Uruguai. Fiz muitas promessas a Deus para que o Brasil
fosse campeão. Tenho a impressão, porém, de que algum menino uru-
guaio cobriu meu lance, por isso o Barbosa engoliu aquele gol do Gighia
e nós perdemos. Ficou, na boca e na alma, o sabor avinagrado daquela
derrota das cores nacionais.
Os frades alemães, vindos da humilhação da guerra, liam as cartas
que escrevíamos e que recebíamos. Nada lhes escapava. Uma vez
reclamei da comida. Sabem os leitores como é famélico o adolescente,
dum modo geral? O certo é que, na aula de Geografia, dava pra notar a
irritação do padre Reitor, frei Celestino Knob. Eu nem me tocava. Não
sabia, não podia imaginar que tudo se devia a mim. À certa altura, ele me
repreendeu diretamente por reclamar da comida que talvez não tivesse
igual em casa. Eu, que a este tempo, era um fedelho atrevido, me levantei
no ato pra dizer:
"Não é igual, porque é melhor".
O padre subiu nas tamancas. Fumando numa quenga, apoplético,
expulsou-me da classe aos berros:
"Comunista! Comunista! Comunista!"
Eu era comunista e não sabia.
Saí da sala de aula, chamando o professor de "tedesco", como
se fosse a suprema ofensa.
Um colega desses tempos, a quem nunca mais vi, foi Guimarães,o
Cuscus, filho da Meruoca que tinha criação clandestina de galinhas e

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coelhos, em sociedade com o falecido Os mundo de Souza e com o Félix
Eduardo de Souza, o "Gato Félix", com a cumplicidade da cozinheira do
colégio. Depois, entrou no Exército. Um dia desses, o Nivardo Melo me
contou que, depois de passar para a reserva, ele se mudou pra Campina
Grande. E vive num sítio, em Ipuarana, vizinho ao prédio do Seminário
Maior, onde estudamos. Quem me explicará por que fez isso? Foi morar
junto à fonte da saudade? Remorso por não haver sido padre? Ou quer,
simplesmente, a ilusão de recuperar a juventude perdida? Não sei. Jamais
vou sabê-lo.
Enfim, férias. O caminhão misto do "Cajazeiras" (já havia o do
pai Walfrido Salmito?) passou lotado. Eu queria chegar, de qualquer
maneira, naquele dia a Sobral. Veio outro caminhão. Não havia lugar
junto ao motorista. Só lá em cima, na carroceria, em cima da mercado-
ria. Na minha ansiedade, na pressa de voltar pra casa, joguei a mala lá
em cima e fui. Não sabia o que me aguardava na descida da serra, onde,
às vezes, para segurar o caminhão ou o ônibus, era preciso amarrá-lo
numa das árvores mais fortes que margeavam a estrada. Nunca tive
tanto medo na vida. Claro, ainda não havia asfalto. A estrada era estreita,
lá em baixo o abismo me olhando como se me chamasse, me atraísse.
Agarrava-me à corda que amarrava a carga até as mãos doerem, tal o
receio de cair. Não caí. Cheguei vivo a Sobral.
Quem me chamou a seu apartamento para me dizer que eu não
dava pra agente de Deus aqui na terra foi frei Silvério Cavalcante
Albuquerque, um aristocrata pernambucano que amava os bons perfu-
mes e que era um gentleman de Deus. Até um dia desses, era bispo de
Feira de Santana. Recriminou-me, em termos brandos, a continuada
indisciplina, mostrando que não tinha vocação para procurador do Céu.
Fê-lo de maneira tão elegante e gentil que ainda hoje dele me lembro,
com carinho. Enfim, era (é) um príncipe.
Há algum tempo, tive em mãos o guia de educação sexual, edita-
do pela Igreja Católica, na Áustria. Pelas ilustrações, pude perceber que,
apesar do frio e da religião, os católicos austríacos andam muito inventivos.
Um amigo me acrescentou que eles falavam ali, com toda naturalidade,
de masturbação. Que tremenda mudança! Lembro-me de como ela nos
era pintada, na adolescência. Para os frades alemães, fazia mal à saúde.
Podia levar à cegueira.No mínimo, à loucura. Do ponto de vista de vida
eterna, era pecado mortal. De modo que, além do castigo imediato, aqui

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na terra, você ainda teria de expiar o erro, a eternidade inteira, penando
nas caldeiras de Pedro Botelho, isto é, naquele calorão do inferno, muito
pior que o do Iraque, durante o bombardeio ocidental. E pensar que tudo
aquilo era um equívoco, hoje totalmente revisto. Mas agora, pra quê
Isto é hora?

O CÃO DE SÃO BENEDITO

O atual Papa, João Paulo II, tem, seguramente, um mérito: o de


haver ressuscitado o Diabo. Ele andava desaparecido e fazia muita falta.
O Cão é essencial ao equilíbrio do mundo, como as cobras, os sapos, os
escorpiões. Se o Capiroto não existe, tudo é possível. E até Deus perde
muito de seu prestígio. Imaginemos que não mais houvesse demônio
nem inferno. Corresponderia, na outra ponta, a não existir sua antinomia:
Deus e a bem-aventurança do céu. O polonês Wojtila foi positivo. Não
hesitou. Pôs o Tinhoso na ordem do dia. Fez muito bem.
Uma das primeiras notícias que tive das reinações de Lucífer foi
em Sobral, na década de 40. Não vou dizer, por gabolice, que o cão era
nosso. Que era, porém, da diocese de Sobral, era, porque pintava e
bordava em São Benedito.
Ele aparecia apenas numa residência daquela cidade serrana.
atucanando a paciência da família que ali morava. Era geralmente casei-
ro como os gatos. Era também um cão bairrista porque, tirante duas a
três sortidas a Sobral, Fortaleza e até o Rio, continuou ali por tanto
tempo aprontando das suas que tiveram de destruir o imóvel. Pintava
tanta assombração no pedaço que este não serviu, sequer, para abrigar
uma empresa de economia mista.
O Cão de S. Benedito começou por ser piromaníaco. Brincar
com fogo era seu forte. Que grande incendiário ele se tornou!
De repente, não mais que de repente, vestidos e ternos pegavam
fogo na solidão do guarda-roupa. Ninguém percebia nada até que o cheiro
de queimado impregnasse o ambiente e todo o mundo fosse ver os
estragos. Noutras vezes, a colcha da cama aparecia queimada exatamente
na forma de um pé humano. O fogo destruía as bonecas das meninas da
casa. O então vigário, padre Coutinho, depois bispo auxiliar de Sobral,
lembra que, na casa mal-assombrada, abriu uma gaveta que fumegava.

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Queimava por combustão espontânea (ou diabólica?). Estava o nosso
santo padre lendo o Breviário quando arrancam justo a página que estava
lendo e a jogam no chão. Uma mão invisível fizera tudo aquilo.
O Cão era sedentário. Algumas vezes, porém, abria exceção.
Por exemplo quando os donos da casa, fugindo às suas estrepulias, se
mudaram para Sobral. Mal se instalaram na nova moradia, ouviram uma
voz diabólica e zombeteira dizer:
"Vim a pé, mas cheguei primeiro".
Eles foram, certa vez, a Fortaleza, a passeio. Estavam postos em
sossego no bonde da Light quando o banco de madeira em que estavam
sentados começou a arder.
Numa viagem ao Rio, hospedaram-se no Hotel Glória.
À tarde, quando faziam o footing no centro, suas malas pegaram
fogo, com tudo o que continham.
Tão logo o casal retornou a S. Benedito, o Cão voltou às suas
travessuras na terrinha. Ele não era apenas de tocar fogo nos objetos,
não. Era também um grande brincalhão. Um cão moleque. De virar
panelas no fogão. De mexer quadros na parede. De movimentar móveis
na sala e nos quartos.
Pior, porém, ocorreu num jantar da família. O cão ficou percor-
rendo o prato de canjica, com o dedo, com tanta rapidez que esparramou
a comida sobre a toalha, depois sobre o rosto e a roupa dos presentes.
De outra vez se divertiu, dançando. Tirou a dona da casa para
dançar. E quase a mata de cansaço, pois o parceiro invisível a impeliu a
dançar, durante quatro a cinco horas, sem parar, sem intervalo, sequer,
para beber água.
Estou contando estas histórias, ouvidas na infância, porque ouvi
falar de um pesquisador que está escrevendo sobre a cidade de S. Bene-
dito, sem citar o Cão da década de 40, que tanto deu o que falar na Serra
da Ibiapaba. Ele precisa descobrir porque o Capiroto fez tantas diabruras
por lá.
Há uma versão antiga, que atribui as danações do Cão a castigo
do céu. O dono da casa vivia amasiado, porque casado de papel passado
e escritura assinada, com uma amazonense que continuou em sua terra,
quando ele concluiu a aventura na selva. Somente anos depois, os filhos,
já homens feitos, quando ela morreu, pôde casar no civil e no religioso,
no Ceará. O Cão os perseguia porque viviam em adultério, em pecado.

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Um amigo, pesaroso diante da dissolução dos costumes moder-
nos que afligem a todos nós, respeitosos de Deus e temerosos do demônio,
lamenta que não haja um Cão, como em S. Benedito, para atormentar
cada pecador:
"Há tanta amigação no mundo de hoje que não há cão suficien-
te. O inferno não dá vencimento".
Foi bom ressuscitar o Cão. Ótimo será sua multiplicação, a ser-
viço da virtude. (13/08/89).

O PADRE PALHANO

Ao entrar na vida solitária e rabugenta de dom José Tupinambá


da Frota, o seminarista José Palhano de Saboia a encheu de luz e calor.
Foi o filho que o Bispo não teve. Começou por melhorar a mesa do
chamado Palácio Diocesano - que era frugalíssima - trazendo-lhe frutas
importadas, trazidas da capital. Sua alegria de viver espantava as som-
bras do soturno sobrado onde se abrigava dom José. Levava-o a passear
de carro, de avião, quando o via triste, melancólico.
Palhano era assim uma espécie de filho único. Por sua causa, o
Bispo não hesitava em destituir um professor do Seminário. Aliás, ele
foi ordenado sacerdote praticamente em casa, depois que foi despedido
do Seminário da Prainha, em Fortaleza, por viajar, todo o fim de semana,
a Sobral, sem licença dos superiores.
No interesse de sua carreira porque o queria doutor, seu bispo
auxiliar, seu sucessor, mandou-o estudar em Roma. De madrugada, aos
prantos, ralado de saudades, batia à porta do ausente, chamando-o:
"Zé da Palha, acorda. Acorda, está na hora."
Para sossego de seu coração, Palhano logo voltava à
terrinha, ao seu automóvel de luxo, à sua potente motocicleta, às
acrobacias aéreas.
Muito inteligente e inquieto, não gostava de estudar. Por isso,
pouco demorou na Universidade Gregoriana onde deixou mostra de sua
versatilidade. Dom José enviou peças de artesanato e café para um
cardeal, seu velho conhecido. Ao saber que o destinatário se encontrava
em baixa no Vaticano, Palhano mandou o presente para outro, mais na
moda, mais prestigiado pelo Papa.

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Dispunha do dinheiro que queria. Tesoureiro das riquezas da
Diocese, era ele quem distribuía seus cargos e suas honrarias. Largo e
generoso, sua camioneta estava sempre à disposição da pobreza com
quem gostava de conversar e conviver, para transportar convalescente
de volta pra casa, parturiente à maternidade, noivos aos pés do altar. Em
seu avião, carregado de doces e bombons para agradar as crianças.
Gostava de levar as moças bonitas das cidades vizinhas para ver o céu de
perto. Quando o padre-voador descia de sua máquina, vestindo elegante
macacão, fazia disparar os corações femininos.
Era adorado. A matutada chegava a dizer que ele, uma vez,
recusara ser Papa porque não quisera ficar longe dos amigos. Da próxi-
ma, porém, não escapava. Teria de deixar a terrinha, ir pra Roma chefiar
a Igreja Católica. Simpaticíssimo, nenhum inimigo mantinha a cara
fechada, quando se defrontava com seu sorriso.
Não era de surpreender entrasse na política, indispondo dom
José com um velho aliado, Chico Monte, sogro de Parsifal Barroso. Foi
candidato à prefeitura de Sobral em ruidosa campanha eleitoral de que o
País teve notícia e que valeu ao Bispo - no fim da vida - humilhante
inspeção do Arcebispo de Fortaleza, dom Antônio de Almeida Lustosa.
Passava, em seu jeep, em frente ao sobrado de Chico Monte, agredindo-
º e a intimidade familiar. O veterano político queria reagir, como de seus
feitio e tradição. Era, porém, contido pelos seus, achando que a
provocação tinha o objetivo de levá-lo à violência e à derrota da candida-
tura Parsifal Barroso ao governo do Estado.
Palhano ganhou. Dom José, que sempre fizera política partidá-
ria, pôde saborear seu último triunfo, presidindo almoço em homenagem
ao novo prefeito. Logo depois, morreu.
Palhano, que não conhecia limites, não podia habituar-se à disci-
plina dos novos Bispos. Terminou excomungado por haver processado
dom Valfrido Vieira, pena esta somente levantada na proximidade de sua
morte, quando da passagem do Papa João Paulo II, por Fortaleza.
Entreteve polêmicas homéricas em que não hesitava em aludir
ao homossexualismo de seus superiores, zoofilia e roubo de seus colegas
de batina, adultério da mulher de seus adversários. Mantinha um
jornalzinho, modelar nessa linha.
Quando ia mais odiosa e odienta a polêmica com o padre Sabino
Loyola, suspendia a programação musical de sua Rádio Tupinambá para

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lançar, no ar, edição extraordinária do jornal falado, anunciando a
internação, em hospital de saúde mental de Fortaleza, do contendor:
"Acaba de sair, amarrado na carroceria de um caminhão, com
destino ao Asilo de Porangaba, o padre Sabino Loyola."
No mesmo diapasão, na Rádio Educadora, o adversário replica-
va num trocadilho de mau gosto:
"Palhano fedeu como seminarista, fede como padre e como
deputado federá."
Inventou-se a esse tempo, historinha que bem demonstra odes-
conforto da cidade, com o destempero verbal de seus padres. O jornalis-
ta José Maria Soares, doce criatura, então diretor da Rádio Iracema de
Sobral, teria comentado:
"Só tenho medo de que o monsenhor Fontenele queira vir para a
Rádio Iracema."
Era outro sacerdote famoso por suas cóleras.
Ao tempo dessa briga, Palhano pregava o boicote à rádio do
Bispo, dirigida pelo padre Sabino:
"Não ouçam rádio que fale mal de padre."
Padre Palhano, cassado, como deputado federal, por Castello,
tantas inimizades semeara, foi residir no Rio onde se formou em Direito.
Logo que pôde, voltou a Sobral, às polêmicas, aos divertidos banhos
de saúde no Quebra, paradisíaca propriedade na serra da Meruoca. E
à política.
Seu Costa foi seu amigo, até morrer. Certa vez, levou-o ao
hospital para uma hemodiálise. No caminho, ele se queixou a meu pai de
solidão:
"Pra você ver, Costa, como são as coisas. Eu, que tive tantas
mulheres, morro sozinho."
Minha mãe, que vinha no banco de trás no carro, repreendeu-o.
Ele se desculpou, alegando não se lembrar de que ela estava presente. O
galante padre morreu dias depois. Seu enterro foi uma consagração.
Festa que gostaria de ter presenciado. A cidade, inteira, o levou à derra-
deira morada, lembrando seu charme, seus encantos, sua alegria de vi ver,
perdoando-lhe os arrebatamentos e as paixões que suscitara.

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JOSÉ SABÓIA, O OUTRO PATRÍCIO

Se houve rivalidade que durou a vida inteira, foi entre o juiz dr.
José Sabóia de Albuquerque e o bispo dom José Tupinambá da Frota.
Eram dois bicudos que não se beijavam. Dizem que a ciumeira
começou em 1908, quando o padre retornou de Roma, laureado e explo-
diu, quatro anos depois, ao lançar loteria em favor das obras da Santa
Casa, que o juiz mandou a polícia apreender, chamando seu responsável
de contraventor pelo jornal Pátria, da família.
Em muita cousa se identificavam, principalmente no bairrismo.
Por isso o bispo se rendeu ao rival, para sua mortificação, no comecinho
da década de 1920. Teve de recorrer ao prestígio de seu irmão, Vicente
Sabóia, junto ao Ministro das Relações Exteriores, a fim de não ser
transferido para a diocese de Uberaba.
Por sua vez, convidado para integrar o Tribunal de Justiça pelo
Presidente do Estado, o sobralense Moreira da Rocha, José Sabóia res-
pondeu brincando: "Aceito, se o Tribunal vier para Sobral".
José Sabóia ( 1 871-1950) formou-se pela Faculdade de Direito
de Recife. Ainda jovem estudante, salvou a vida de dois náufragos do
navio "Bahia" em que viajava e que, à noite, colidiu com o " Piabanha",
gesto de bravura que lhe rendeu calorosas homenagens.
Juiz de 1892 a 1936, reinou absoluto na cidade até que foi apo-
sentado compulsoriamente por dispositivo inserido na Constituição do
Estado, com o objetivo expresso de afastá-lo do cargo e esvaziar-lhe a
tremenda influência política que exercia na região.
Casado com dona Sinhá Sabóia, filha do falecido doutor Paulinha,
falecido no Rio como deputado federal, neta do senador Paula Pessoa,
"o senador dos bois", durante cinqüenta anos foi o homem mais impor-
tante de Sobral. Enfeixava o poder econômico porque era dono da fábri-
ca de tecidos e de 16 fazendas de gado no Ceará e Piauí, herdadas do pai
e do sogro. E o poder político porque controlava, com mão forte, a
justiça, gozando a segurança da vitaliciedade de magistrado e o Partido
Republicano Conservador, depois PSD, e, por fim, a UDN da zona norte
do Estado.
Esteve quase sempre de cima, até mesmo no curto período de
Franco Rabelo, apesar de seu pai haver sido vice-presidente do Estado,
no primeiro período em que o comendador Nogueira Accioly foi alçado

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ao poder. Conheceu a oposição depois da eleição de Menezes Pimentel
ao governo do Estado, em 1935, decidida na Assembléia Legislativa pelo
Smith and Wesson de seu ex-liderado, Chico Monte, que passou a ser,
desde então, até o fim do Estado Novo, dono da bola e das camisas em
Sobral. Antes, seu partido, o PSD, sofrera violenta resistência do bispo e
do clero, que o chamava, dos altos dos púlpitos e no silêncio dos
confessionários, de partido sem Deus.
Menino, presenciei a última polêmica que, apoiado pelos genros
Plínio Pompeu e José Maria Alverne, Sabóia travou com o bispo e o
padre Sabino Loyola, pelo Correio da Semana. Ele lançara seu velho
aliado, o desembargador Faustino de Albuquerque, candidato ao gover-
no do Estado pela UDN, sustentando sua candidatura contra muitas ad-
versidades. D. José foi fundo na campanha do PSD que lançara o general
Onofre Muniz Gomes de Lima, brandindo, contra o outro candidato, o
anátema de ser apoiado pelos comunistas, apesar de arquiconservador e
ex-presidente do Instituto Brasil-Estados Unidos. No auge da briga, o
bispo escreveu artigo, sob o título "Por que vês tu o argueiro no olho do
teu irmão e não vês a trave no teu?". José Sabóia foi ao juiz Floriano
Benevides e conseguiu ordem para publicar, no Correio dez Semana,
jornal da diocese, resposta sob o título "O meu anticlericalismo".
Os céus, porém, não acudiram o candidato do bispo. José Sabóia
fez cabelo e bigode. Elegeu o amigo do peito governador, fez do genro
Plínio Pompeu senador, do outro genro suplente e a maioria da bancada
federal da UDN. Morreu no poder, como sempre vivera. Não pôde,
porém, por ter sido enterrado no Rio, usar o caixão de cedro, de árvores
plantadas por ele no sítio Pedra Furada, na serra da Meruoca, que expe-
rimentava, para constrangimento do carpinteiro, que o fabricara.
José Sabóia sempre teve relações difíceis com a imprensa de sua
terra. Ele sempre foi implacável com os jornalistas que "não conheciam
seu lugar". Quando rompe o século XX, está em guerra com Álvaro Ottoni,
de A Cidade. Mais tarde, Vicente Loyola, de O Rebate, teve de depor
perante ele, moribundo, apesar de atestado médico, fornecido por seu
irmão, Massilon Sabóia, dando-o como inválido, o que teria apressado sua
morte. Cordeiro de Andrade, o romancista de O anjo negro, foi por ele
colocado diante do dilema: fechar O Debate ou ir para a cadeia. Preferiu se
mandar, levando, pela vida afora, até à morte precoce, a amargura do
exílio. Deolindo Barreto foi outro que o desafiou até seu trucidamento.

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O doutor José Sabóia era mestre em colocar apelido nas pessoas,
o que seguramente não lhe aumentava sua popularidade. Tinha também
muito humor. Não gostava de que lhe batessem freqüentemente à porta do
escritório da fábrica. Quando isso acontecia, repetidas vezes, queixava-se:
"estou que nem rapariga nova. Todo mundo bate na minha porta".
Nos últimos dias de vida, no Rio, recebeu a visita de um amigo
que, para animá-lo, o achou bem disposto e saudável. Reagiu, com iro-
nia: "eu sei que você morreu bem melhorado "
Ante as limitações alimentares que o médico lhe impôs, indagou,
então, do irmão Massilon:
"Será que posso comer, pelo menos, capim?"
Certa vez, quando lhe disseram que o deputado Egberto
Rodrigues, parente de sua mulher, porquanto bisneto do Senador Paula,
andava espalhando que ele era "bananeira que não deu cacho", saiu-se
com essa:
"Não tenho tempo a perder com recalques de nobreza arruina-
da". (25/01/87)

COLUNA DA HORA

Lembro-me dos azulejos do escritório da Fábrica de Tecidos


Ernesto Deocleciano e de uma camioneta em que se transportava seu
proprietário, o juiz aposentado e chefe da UDN, José Sabóia de
Albuquerque. Era um carro de luxo, aparentemente com madeira de lei
no exterior. A mim,que era do partido adversário, o PSD, constituía
sempre - apesar de tudo-, uma emoção ver apear-se do veículo o velho
patrício. A Praça do Dr. José Sabóia tinha uma coluna da hora em cujo
andar térreo se abrigava um bar. Ali, aos domingos, ia comprar uma
cerveja para meu pai. Distraído como era, e sou, caí, deixei cair a garrafa
que se quebrou e cortei um pouco o lábio superior, privando o autor de
meus dias de sua brama. Naquela praça, durante algum tempo registrava-
se o footing das moças casadouras, passeando, e nós, marmanjos, de pé,
conversando fiado, fumando, de olho no olhar de alguma delas. Lembro-
me de que ali funcionava o alto-falante da Rádio Iracema, naquele sobrado
que foi pensão, foi residência da Maria e da Margarida Napoleão, em
cujos baixos estava a farmácia de ambas. Uma noite, meninos, eu ouvi,

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estava na praça com amigos, e tocou "Velha valsa, valsa amiga, tão
boêmia como seu cantor". E também "Suburbana, que estás por trás da
veneziana, vem sorrir nessa canção". Por que estas músicas ainda ressoam
em meus ouvidos, quatro décadas depois?

CHICO MONTE, O ÚLTIMO CORONEL

Chico Monte foi o último dos "coronéis" da política cearense.


Filho de família tradicional, não quis estudar. Preferiu cuidar das fazen-
das que o pai lhe deixou e que não eram grande coisa em termos
econômicos. Abriu caminho a ponta de faca e a golpes de astúcia, rumo
à Câmara dos Deputados e à conquista do governo do Estado, por inter-
médio do genro Parsifal Barroso. Foi o primeiro deputado federal a morrer
em Brasília, vítima das provocações dos adversários que o agrediam,
tentando fazê-lo reviver a tradição de violência, o que, no fim da vida, no
auge do prestígio, só lhe seria prejudicial.
Costumava dizer diante de algum crime de morte envolvendo
correligionários: "é hora de enterrar o morto e absolver o que matou."
Para ele, o político devia temer fama de rico, conquistador e
valente. Do abonado, todos querem tirar dinheiro. O conquistador assus-
ta maridos, pais e irmãos. O que possui fama de brigão sempre encontra
quem queira testar sua valentia, desafiá-lo prum desforço.
Chico começou a vida pública como cabo eleitoral do chefe
conservador, doutor José Sabóia, juiz e dono da fábrica de tecidos da
cidade, eterno rival do bispo, dom José Tupinambá da Frota, por cujo
partido se elegeu vereador à câmara municipal.
Em 1922, os conservadores estavam "debaixo". Os democratas
conseguiram a nomeação de um tenente de polícia, Castello Branco -
famoso por botar cangaceiros pra correr no Cariri - a fim de conter suas
tropelias e arruaças. Uma semana depois, Chico agride adversários polí-
ticos, na praça principal de Sobral, numa ensolarada manhã de domingo.
A líder democrata, Dondon Ponte, dona do Hotel do Norte, concita o
delegado a prendê-lo. Castello hesita. Ante notícia de nova provocação
de Chico, Dondon lança, à face do hóspede, o desafio fatal:
"Se o senhor não tem coragem, me dê sua farda e vista minha
saia, que prendo o homem..."

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Castello Branco vai ao encontro do desafiante e é por ele mortal-
mente esfaqueado no baixo-ventre, ao final de um duelo de feras, travado
lealmente em praça pública.
Absolvido, Chico, dois anos depois, é acusado de ser um dos
executores do jornalista democrata Deolindo Barreto, inimigo jurado de
José Sabóia, trucidado no início dos trabalhos da principal sessão eleito-
ral de Sobral.
Com a democratização do País após a revolução de 1930, busca
espaço próprio e decide ser deputado estadual contra o antigo chefe.
Em 1935, na Assembléia Legislativa, sua argumentação é decisi-
va para a tumultuada eleição indireta do novo presidente do Estado,
Menezes Pimentel, em face da indecisão de dois colegas:
"Se o doutor Pimentel perder, um de vocês sai daqui pro ce-
mitério e eu pra cadeia." Catequista tão convincente não ia perder
seu latim. Pimentel se elegeu e ele afirmou prestígio político em todo
o Estado.
Depois da queda do Estado Novo, para surpresa e irritação da
aristocracia da cidade, elegeu-se membro da Assembléia Nacional Cons-
tituinte onde não deu um pio, como, aliás, aconteceu em sua longa
trajetória parlamentar. A não ser quando se exasperou ante a virulência
de ataques do comunista Trifino Correia ao presidente Eurico Outra e,
ágil, como um felino, saltou sobre várias poltronas, palavrões na boca e
faca na mão, para sangrar o atrevido.
À essa época, querendo irritar um adversário, Paulo Sarasate,
jornalista e intelectual, espalhou, perante os jornalistas do Palácio
Tiradentes, que, na bancada cearense, havia três analfabetos:

"Eu, meu compadre João Adeodato e o Paulo Sarasate."

Em 1950, voltou à Câmara trazendo o genro Parsifal como com-


panheiro de bancada. Logo rompeu com o governador eleito, Raul Bar-
bosa, que lhe prometera e não lhe dera o controle da Secretaria de
Agricultura. Timbrando no falar sertanejo, garantia:
"Vou esperar, por ele, quatro anos, lambendo rapadura por trás
do toco da aroeira."
A tocaia não seria tão sofrida porquanto se filiou ao PTB do
Presidente Getúlio Vargas, assegurando o controle de posições federais.

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Quatro anos depois, Raul disputou e perdeu a cadeira senatorial para
Parsifal Barroso, logo a seguir, nomeado Ministro do Trabalho de Juscelino
Kubitschek.
Seu aliado Carlos Jereissati lhe trouxe então de presente, dos
Estados Unidos, um revólver a gás, explicando assim sua utilidade:
"Chico, quando você for agredido, dá um tiro no agressor e ele
fica caído, desacordado, permitindo a retirada."
Ele não estava pelos autos e respondeu assim:
"Sair, nada. Vou lá e costuro ele de faca."
Seus projetos não se esgotariam, porém, na reeleição à Câmara
e na presença do genro no ministério.
Em 1958, Virgílio Távora armou esquema imbatível para se ele-
ger o chefe do executivo estadual, prometendo fazer, de Chico ou al-
guém indicado por ele, vice-governador. Depois dum torneio de negaças,
avanços e recuos, este, porém, levou o eixo da sucessão estadual para o
sítio "Monte", na serra da Meruoca, e arrebatou a govemança do Estado
para Parsifal Barroso. Quando Távora, finda a campanha, se queixou
aos jornais de ter sido derrotado pela força dos dinheiros federais do
DNOCS, ironizou:
"O Virgílio chora que nem bezerro desmamado..."
As coisas, porém, haviam mudado. Chico era deputado federal,
há quinze anos. Convivia com os poderosos do país. Não se locomovia
mais na burra de estimação, que o doutor José Sabóia tanto ironizava,
mas em moderno avião particular. Fizera da filha única, Olga, primeira
dama do Estado. Ocorre que, em Sobral, o Bispo, que sempre o apoiara
contra o outro ilustrado patrício, agora se encontrava em trincheira
diversa, patrocinando a eleição do pupilo querido, padre José Palhano
de Sabóia, à prefeitura do município, sua base de sustentação desde
1947. Este e outros inimigos caprichavam nas provocações, nas
agressões, nas calúnias, para levar o velho coronel de volta à violência
costumeira e, agora, à derrota nas urnas. Para assegurar a vitória, ele,
que jamais levara desaforos pra casa, era obrigado a se conter, em seu
terreiro, em sua cidade, e isso lhe arrebenta o coração bravio e indomável
na solidão da nova capital da República, na metade do governo que
conquistara e não veria terminar.

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DONDON PONTE

Sinapismo
Ele e ela
(comédia em I ato)

- Casalzinho amoroso.
Iam juntinhos, mas não de braço, como disseram. Cada qual
respondia melhor. Ele foi primeiro e disse que aqui não havia partido
rabelista e ela disse que o Correio da Semana entrava muito na política.
Aí ele disse que Deolindo não falava mal dos padres, em geral, e nem
do padre Leopoldo em particular, apenas tirava prosa que ele é muito
prosista, foi. Ela disse: Deolindo vai todas as noites no hotel e nunca
falou de ninguém.
Agora, Lopes, nos diga: o que é mais admirável nesse colóquio,
a ingratidão dele para com as rabeias ou o amor dela para com o padri-
nho? K. Listo (A Ordem de 26/05/1924, ironiza depoimento de Dondon
Ponte em favor de Deolindo Barreto Lima, movido pelo padre Leopoldo
Fernandes, diretor do Correio da Semana e eleitor exaltado de Belizário
Távora, derrotado na disputa pela presidência do Estado por Justiniano
de Serpa).
Menino ainda, conheci Dondon Ponte, sentada numa cadeira de
balanço, na calçada do Hotel do Norte, apaziguada pela idade, em seus
fervorosos ódios político-partidários.
A cidade inteira celebrava seus ditos espirituosos, seus desafo-
ros, sua coragem. Eram citadas com admiração as respostas que dava
aos hóspedes pretensiosos que procuravam seu estabelecimento. Viúva
de Cosme Ponte, enfrentou, com desassombro, inimigos poderosos. Na
República Velha, dava a maior força ao partido democrata. E ao jornal A
Lucta de seu aliado político, Deolindo Barreto Lima. Por cortar o cabelo
à la homme, por fumar em público seus charutos, por seu falar
desabusado, Dondon causava escândalos a seu tempo, na cidade.
Rabelista rubra, inimiga jurada do doutor José Sabóia e de Chico
Monte, dela se conta que, ao vê-los passar à frente de sua pensão, vestidos
com a opa de irmãos do santíssimo, acompanhando a Procissão dos
Passos, comentou, referindo-se a Jesus Cristo:
"Oh, homem bom pra ter irmãos ruins..."

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Nery Camelo, em Viagens na nossa terra assim a viu: "Usa
cabelos cortados à escovinha. De atitudes desassombradas. Dizem que,
quando sai à rua, leva sempre um revólver dentro da bolsa e um punhal
à liga. Temida pela sua mordacidade. Espirituosa e comunicativa, sua
palestra constitui o melhor passatempo para os hóspedes. Mesmo para
aqueles que não podem dormir à noite com as muriçocas ... "
A propósito, um alemão se hospedou no Hotel do Norte. A noi-
te, nada de conseguir pegar no sono, perseguido pelos pernilongos de
picada mais funda que broca de perfurar petróleo. Queixou-se à hospe-
deira, que lhe recomendou apagar a luz para afastar os mosquitos. O
hóspede atendeu à sugestão. Não obteve resultados. As muriçocas volta-
ram a atacá-lo, com redobrado vigor. Ele percebeu, além disso, a presen-
ça de vaga-lumes no quarto e falou:
"Dona Dondon, piorrou. Eles estão a atacarrrr, agorrra de
lanterrrrna..."
Defensora da ecologia, ficava furiosa com qualquer dano causa-
do às árvores. Certa vez, acompanhou, com muita atenção, todo o
minueto de jovem casal de namorados que se aconchegava debaixo de
um fícus benjamim, próximo ao hotel. Lá pelas tantas, levada pelo hábi-
to, a mocinha arrancou um galho de árvore e passou a morder-lhe o talo.
Foi o bastante para ela sair com quatro pedras na mão na direção da
namoradinha:
"Ótimo, minha filha. Coma esse galhinho que é muito bom para
lombriga e é o que você tem e muito".
Pelo que se vê, não tinha papas na língua. Desmontava qualquer
um. Foi o caso de um cliente de origem modesta que voltara do Rio,
próspero e cheio de riquififes. Ao café, começou a reclamar que não
havia salame, bacon e outras ingresias. Ao ouvir as queixas, ela ali nas
buchas, lhe desmanchou a pose:
"O que é que está falando, hein, seu Zé Chinelinha?"
"Nada, nada não, dona Dondon', respondeu, assustado, o hós-
pede, já devolvido a seu natural, pela pontaria do apelido maldoso.
Outro cliente voltou para o hotel exasperado. Fora desfeiteado,
no curso de uma discussão de que não se saíra bem. Ficou remoendo o
fato, andando dum lado pro outro, dizendo:
"Porque eu sou é homem. Não sou de trazer desaforo para casa,
porque sou é homem. Eu sou é homem".

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Depois de certo tempo, ante tantas reafirmações de sua virilida-
de, Dondon não se conteve e perguntou:
"E havia alguma dúvida a respeito?".
O próprio Nery Camelo narra que ela se recusou a se deixar
fotografar, com pergunta irônica:
"Então, você está fazendo coleção de animais antediluvianos?"
Ao longo dos dez anos de existência de A Lucta, Dondon, o
Hotel do Norte, seus hóspedes, geralmente viajantes comerciais, estão
sempre aparecendo no jornal. Daí as ironias do jornal da família Sabóia
de Albuquerque à sua amizade com Deolindo.
Involuntariamente, conforme contei antes, precipitou uma tra-
gédia a 7 de março de 1922, à hora do almoço, quando lhe chegaram
notícias das estripulias de Chico Monte. Ela instou o chefe do desta-
camento policial, tenente Antônio Castello Branco, seu hóspede, a
pôr paradeiro naquilo. O tenente acabou por atendê-la e foi morto.
(11/01 /87)

UMA MULHER COM O CABELO NA VENTA

Para bem entender Olga Monte Barroso é preciso conhecer seu


pai, Chico Monte, o último dos coronéis, homem público que conquistou
o êxito, à base da violência física e da esperteza política.
Olga foi o filho homem que ele não teve. Daí ter sido sempre
bravia, desaforada, autêntica. Nunca levou desaforo para casa. Enfren-
tou sempre, de peito aberto, o perigo, o adversário, a ameaça.
Por se mostrar assim franca e leal, incapaz de dissimulação, os
jornais exploravam e muito a ascendência que exercia sobre o marido e
que seria, no entanto, menor, muito inferior à de sua sucessora, Luíza
sobre Virgílio Távora. Sem falar que ela era dona dos votos do marido,
que, quando disputou, sem a proteção do sogro, cadeira de deputado
federal pelo Partido Democrata Cristão, foi fragorosamente derrotado
apesar de seu prestígio junto à elite intelectual católica.
O jornalista Sebastião Nery costuma contar haver visitado For-
taleza, a serviço de A Tarde. No táxi, ao deixar o aeroporto, puxou
conversa com o motorista dizendo que vinha entrevistar o governador. O
chofer foi logo dizendo:

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"Que nada! Fale com dona Olga, que é quem manda no governo."
Diz ele que, já ali no carro, definiu o título de sua reportagem
publicada em Salvador e, posteriormente, transcrita, nos jornais do Cea-
rá. O secretário do governo, jornalista Temístocles de Castro e Silva, lhe
endereçou o seguinte telegrama:
"Volte a Fortaleza para morrer."
Nery respondeu num sucinto despacho:
"Não volto". E ficou nisso.
Nos tumultuados dias de setembro de 1961, Olga foi ao quartel
da 1 O." Região Militar libertar o auxiliar do marido, Temístocles de Cas-
tro e Silva, ali constrangido por haver defendido, em artigo assinado no
jornal O Estado, a posse pura e simples do vice-presidente, ante a renún-
cia de Jânio Quadros. Empossado João Goulart, muitos dos oficiais
rebelados foram dispersos país afora, transferências que geraram ódio
mortal. Sentimento que foi responsável pelo posterior seqüestro de Parsifal,
quando, após assistir à posse do general Portugal Tavares, no comando
do IV Exército, em Recife, foi transportado à força para Caruaru, onde o
deixaram sozinho, a pé, às margens da estrada.
Durante o governo Parsifal Barroso, os jornais andaram lotados
de notícias de contrabando de café, distribuído pelo sistema de cotas, a
moageiras existentes ou não e, embarcado, depois, por intermédio de
agentes da economia informal para as Guianas, para o exterior. Um dos
mais notórios muambeiros da terra, para tomar a vida mais fácil quando,
nas proximidades das cancelas de fiscalização da Secretaria da Fazenda,
bradava, a plenos pulmões:
"Passagem pro café de dona Olga!"
Por conta disso, depois do golpe militar de primeiro de abril de
1964, ela respondeu ao IPM do café, presidido pelo major Egmont, filho
de velho amigo e correligionário de seu pai, o ex-presidente da assem-
bléia legislativa do Ceará, Joaquim Bastos Gonçalves. Magoada, humi-
lhada pelo zelo revolucionário do outro, não se conteve. Endereçou-lhe
bilhete que Egmont leu, perante as câmeras da TV Ceará:
"Egmont, dona Maria Alice, sua mãe, é uma santa. Você, po-
rém, é um grandíssimo fdp!".
A última vez que tive o privilégio de sua companhia foi numa
viagem de Brasília para Fortaleza. Sentei-me a seu lado, porque gostava
de ouvi-la contar seus "causos" e os "causos" do pai. Percebendo meu

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pânico infantil lá nas alturas, providenciou logo o remédio: "Quer uís-
que? Eu trouxe."
Ofereceu-me o cantil, matou minha sede e contou do projeto de
escrever a biografia do pai, começando por historinha que bem definia sua
ética, seu estilo. Na juventude, Chico Monte presenciou briga feia. Terminada
em morte dum dos contendores. E na fuga do sobrevivente. Quando a
polícia chegou e o interrogou sobre o destino do matador, deu-lhe orientação
errada. Para dificultar sua ação e facilitar a vida do fugitivo.
É que depois de tais ocorrências, sua filosofia era esta:
"Primeiro, vamos enterrar o morto. Depois, tratar de absolver
o vivo."
Olga Barroso foi personalidade polêmica e talvez estas mal
traçadas linhas reacendam paixões adormecidas. É a homenagem que
não posso deixar de prestar a esta sobralense bravia, que era muito gente.
Olga era ainda uma mulher com cabelo na venta.

O PAIOL DAS CANGALHAS

Muitas pessoas têm enorme facilidade de transpor a distância


que existe entre a realidade e a fantasia. Saem duma pra outra como
quem faz um parágrafo. Uma termina porque a outra começa e prosse-
gue, audaz, sem que ninguém a atropele ou lhe ponha freios. O que
mergulhou nela, o fez tão confortavelmente que nem percebe que se
afastou da realidade objetiva. Sua fantasia é sua verdade, verdade tão
sua, tão própria, que a ela não tem acesso o comum dos mortais. Quem
vive assim, neste espaço de sonho e imaginação, às vezes se irrita quan-
do os outros não entendem, vêem mentira quando o que há apenas é
fantasia, criatividade, imaginação.
À Sobral do meu tempo não faltavam empolgados barões de
Munchausen, contadores de "causos", e que geralmente haviam sido
protagonistas, nos quais ficava difícil, senão impossível, distinguir o que
era fruto exclusivo da imaginação ou apenas glamourizado por ela.
Um deles foi o lendário Messias Ponteies. Havia quem não acre-
ditasse numa história de seu repertório em que ele, depois de penar fome,
durante quarenta dias, no meio do mato, acordou e meio estremunhado,
percebeu, então, que se encontrava diante de um rio de coalhada, ladeado

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por ribanceira de cuscuz. Tinha, de fato, acontecido. A ele. Por conta de
suas narrações fabulosas, um grupo de sobralenses, que se encontrava
em Fortaleza, decidiu pregar-lhe uma peça, armar-lhe uma cilada. Contar-
lhe história que superasse todas as de sua lavra. Quando ele chegou à
roda, na porta do hotel da rua Senador Pompeu, um conterrâneo foi
encarregado de lhe contar:
"Seu Messias, você não sabe o que acaba de acontecer, aqui na rua.
Estou ainda pasmo. Pois bem, vinha ali das bandas da estação da estrada de
ferro um caminhão em disparada quando, sem que ninguém pudesse esperar,
surgiu em sentido contrário, em alta velocidade, uma motocicleta. A única
coisa a fazer era tapar os olhos com as mãos para não ver a desgraceira, a
tragédia. Sabe, porém, o que aconteceu? O cara da motocicleta foi em frente,
subiu ao motor, passou por cima da cabina, da carroceria e saltou lá adiante,
prosseguindo, imperturbavelmente seu caminho".
Ele deu uma risadinha murcha, como se tivesse sido derrotado,
logo, porém, retomou ao seu natural e deu a volta por cima, perguntando:
"Sabe quem estava na moto? Quem era o motociclista?"
"Não", respondeu o outro.
Ele, então, brincando com o suspensório, todo ancho, reintegra-
do em sua força, revelou:
"Era eu".
Antônio Frota Cavalcante foi menino para a Amazônia, onde
chegou a comandante de navio e donde trouxe algum dinheiro e muitos
"causos". Era forte em histórias de sua mocidade, principalmente em
caçadas no antigamente chamado "inferno verde".
Contava que, certa vez, se viu sozinho, no meio da floresta,
diante de onça bravia. Cadê a espingarda? Ficara longe. Cadê a faca?
Não tinha. O que tinha mesmo era um quicé de picar fumo, uma faquinha
de menino. O jeito era arregaçar a camisa e ir à luta. Avançou contra a
fera, dando-lhe uma facada na testa com tanta força que, de repente, se
viu lançado por trás do animal que urrava, fazia força descomunal e ele
segurando-a firmemente pelo rabo, até que a onça fugiu, sangrando,
descascada, deixando-lhe o couro inteiro às mãos.
Doutra vez, não correu sangue, dado o seu bom coração e talvez
graças à eloqüência da besta. Iam ele e seu cachorro, na selva, quando
avistaram outra onça que, preguiçosa, dormitava ao afago do sol matutino,
ao lado das crias. Não teve dúvida. Aquela estava no papo. Fez pontaria

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e se preparava para o tiro fatal quando o animal acordou, deu um salto e
se pôs, de joelhos, numa clareira, implorando:
"Seu Antônio Frota, pelo bem de dona Dragomira, não me mate
que tenho três filhos para criar".
A súplica lhe pareceu tão comovida e comovente que ele baixou
a espingarda, pigarreou e, emocionado, comentou com o cão:
"Nunca tinha ouvido onça falar."
O cachorro confirmou:
"Nem eu".
Uma vez, já de retorno a seus pagos, deixou ele, no gavetão da
mesa da sala da casa da fazenda, uma dúzia de ovos e um saco de milho.
Demorou a voltar. Quando apareceu, abriu a casa, ouviu uma piadeira
sem fim e nada de identificar donde vinha o ruído. Até que abriu a gaveta
e dela saiu uma dúzia de pintos, encandeados com a luminosidade, todos
com uma asinha inclinada pruma banda, por conta da exigüidade do
espaço em que o haviam nascido e de que ele libertara.
Campeão de reminiscências da Amazônia e doutros lugares por
onde passara, era o juiz, depois desembargador e glória da magistratura
cearense, Amaud Ferreira Baltar.
Juiz de Sobral, gostava de transmitir a seus jurisdicionados ima-
gens da riqueza do coronel Feitosa de Tauá, onde trabalhara. E narrava:
"O coronel Feitosa é rico, tão rico que, às terças-feiras, sai de
sua fazenda uma tropa de trezentos burros do pé preto. Já na sexta,
despacham mais trezentos burros, todos do pé branco".
Um homem do povo, que ouvia, empolgado, a narrativa, riu. O
juiz o percebeu e ficou bravo:
"Está rindo de mim? Não acredita na palavra do juiz?"
O cara se explicou:
"Acreditar, acredito, doutor Baltar. Só estava aqui imaginando
comigo mesmo como era o tamanho do paiol das cangalhas".

70
O FIM DO VELHO SONHO DE SER UM BISPO
COMO NOS VELHOS TEMPOS

Fui seminarista. Não dei no couro, porém, para funcionário do


sobrenatural, agente do Céu aqui na terra. Foi ruim. Porque, afinal, meu
sonho é (sempre foi) ser bispo de Sobral. Não desejava outra coisa na
vida. E olhem que não seria desses bispos moderninhos, incrementados,
camisa aberta ao peito, braços nus, calça jeans, chinela japonesa, não.
Queria ser como o bispo conde dom José Tupinambá da Frota, com
muita pompa e circunstância, cheio de pesadas correntes de ouro,
arminhos, muito roxo, o pessoal me beijando a pedra do anel, de joelhos,
como era naquele tempo. Seria bispo indulgente, muito indulgente com
as mulheres bonitas no confessionário. Principalmente as pecadoras.
Minha irmã Lúcia costuma lembrar que, em seu testamento, o
padre José de Alencar, senador e pai do romancista, confessa que, em
virtude da fraqueza da carne, gerou não sei quantos filhos. Se fosse por
Fortaleza, teria povoado o Ceará, sozinho...
Não julguem, pelo meu sonho frustrado, que a igreja abria a
guarda para tais liberalidades. Não. Havia, de quando em vez, surtos
severíssimos de austeridade. Um bispo, nomeado pro Ceará, chegou a
Fortaleza, determinado a dar um "basta" em todos os arranjos dos padres.
Teriam de observar, daí em diante, religiosamente, o voto de castidade,
casar as "comadres" e nada de fazer sexo. Perturbado, apavorado com
as novas ordens, um sacerdote quis saber dele:
"Excelência, nenhumazinha pro salute?"
"Não", negou o bispo, inflexível.
Aliás, quando começava o ano no seminário de Sobral, dom
José ia conhecer os novatos. Queria saber donde eram, filhos de quem, o
que haviam lido. Um ano, notava-se o evidente desconforto de um dos
seminaristas diante do interrogatório do bispo. Quando chegou sua vez,
dom José perguntou:
"E você é filho de quem?"
Sem saída, o rapaz respondeu:
"Sou herdeiro do padre João Alves."
O bispo teve pressa em sair dali.
Os padres, até algum tempo atrás, tinham o direito de contratar
empregadas domésticas de idade que lhes cuidassem dos achaques

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quando velhos. Os bispos exigiam que elas, as "canônicas" como se
chamavam, tivessem, no mínimo, 40 anos (àquele tempo, as
quarentonas eram velhas. Já haviam, há muito tempo, encostado as
chuteiras). Por isso, um deles, espertinho, como quem não quer nada,
consultou o superior:
"Excelência, posso ficar com duas de 20?"
Pra encerrar, conto "causo" parecido, história piedosa, edificante,
dessas que levarão a mim e aos leitores aos caminhos do céu.

Um velho padre estava pra morrer em Mossoró, onde sempre


vivera. O bispo encarregou um jovem sacerdote, cheio de vigor, com
saúde de touro premiado- como diria Nelson Rodrigues a fim de
prepará-lo para a vida eterna. O moço era eloqüente, era inflamado.
Falou ao colega das belezas do céu, das recompensas que Deus reserva
aos justos, da eternidade, cheia de bem-aventurança e de encanto que o
aguardava. Entusiasmou-se tanto que chegou a ter vontade de morrer
para usufruir logo de tais graças.
O velho sacerdote, melancólico e silencioso, assim que teve es-
paço, murmurou: "Está certo. Mas Mossoró é tão bonzinho..."

O ESTUDO E O AMOR

Cursei a Faculdade de Direito por duas razões. Não havia, à


época, bons cursos de literatura nem de Ciências Sociais, em Fortaleza.
E, depois, por que queria ser, como terminei sendo, procurador de
autarquia, cargo que pagava muito bem. Lembro-me perfeitamente da
inveja que tínhamos dos procuradores do IAPC, autarquia de que meu
pai era gerente em Sobral, que ganhavam nota preta.
Preparei-me no cursinho do professor Eleazar Teixeira,
oportunidade em que conheci Paulo Elpídio de Menezes Neto, que,
desde então, se tornaria um de meus melhores amigos. Tirei o 16º lugar,
eu que nunca fui muito aplicado. Lúcio Brasileiro se gaba de ter ficado
em terceiro lugar, ele que não quis, porém, ir até o fim, atrás do canudo
de papel. Juro, porém, que a faculdade não me causou dano algum.
Talvez porque haja cumprido o curso namorando na cantina, nas esquinas,
nas salas de cinema. Saí dela tão virgem em Ciência Jurídica como

72
entrei. E no dia em que deixei de ser procurador do Ipase, doei todos os
meus livros técnicos. Daí porque nunca tive coragem de usar o rico anel
de chuveiro com que dona Dolores me presenteou, quando me formei.
Quando me submeti ao vestibular da Faculdade de Filosofia do
Estado, em 1969, só tinha em mente paquerar. Saía da redação do Cor-
reio do Ceará e do Unitário, de que era Editor-chefe, diretamente para
o exame e quase me machuquei. Até mesmo em português. Não sabia o
que era catacrese, anacoluto, parequema, sinédoque. Figuras inúteis que
só nos servem em tais ocasiões. O que me salvou foi redação. Tirei,
acho, 5,5. Raspei o travessão. Meu amigo Matos Dourado ficou com
7,5 ou 8,5. Depois do batente, lá ia às fatigantes e sonolentas aulas,
naquelas cadeiras duras. Não demorei ali dois anos.
À essa época, namorei Maria Helena, que era jovem e virgem
como acontecia àquele tempo. Todavia, ousada o suficiente para manter
romance escondido da vigilância da sua mãe, com um descasado com
quem trocava enternecidos e intermináveis beijos à sombra das mangueiras
da praça do aeroporto. Certa manhã de domingo, que dor, vi-a na praia,
ao lado do aviador por quem me trocara. Doeu, daquela vez doeu. Passei
recibo. Não escondi a dor de cotovelo. Não me acudiu uma pontinha,
sequer, de amor próprio. Depois casou e o marido dela fugia, à noite,
refugiando-se nas ondas do rádio-amadorismo.
Depois, ainda a perigo e a fim de me dar bem com as colegas,
fiz o primeiro vestibular da Unifor. Para ciências econômicas. Eu,
Dorian Sampaio e Danilo Marques. Estes movidos apenas por
irrefreável curiosidade científica. Queriam ser Mário Henrique
Simonsen, o Celso Furtado, o Delfim Neto, daqueles tempos. Como
as moças não pintaram - hospitaleiras, acolhedoras e rapidamente,
como sonhava - tranquei matrícula e fui cantar noutra freguesia. Dorian
e Danilo, desestimulados, também encostaram as chuteiras mal o jogo
começara. Vejam os leitores que brilhante carreira acadêmica teria
feito se as moças me tivessem sido propícias, nas diversas faculdades
que cursei...

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NA DÉCADA DE CINQÜENTA

Nos anos cinqüenta, Fortaleza era a capital dos clubes elegantes.


Havia dezenas deles, alguns suntuosos, contrastando com a miséria ge-
ral, todos com clientela, origem e justificativas as mais diversas. De
acordo com os maledicentes, tal exibição de luxo se devia às sobras dos
dinheiros federais vindos para a realização de programas contra as secas.
Outros, de língua ainda mais comprida, atribuíam aquelas sedes
maravilhosas ao resultado do contrabando de cera de carnaúba e de
algodão, tão freqüentes naquele tempo.
O certo é que, àquela época, em que poucos iam ao banho de
mar e não havia boates, dançava-se a valer nos salões do Náutico, nas
tertúlias (assim se chamavam as festas dançantes dos clubes) do Ideal,
do Líbano, do Iate, dos Diários, do Iracema, do Comercial. Os bancári-
os se divertiam na AABB. Os milicos no Clube Militar.
A diáspora de Massapê ia ao Massapeense que teve seus instan-
tes de glória, graças ao prestígio político e à expressão empresarial de
seus integrantes. Chegou até a receber a visita de Jacinto de Tormes,
então refinado colunista social da capital do País, o Rio, e uma Miss
Brasil, o que, naquele tempo, significava muito. A de Quixadá ao
Quixadaense, a de Iguatu ao lguatuense.
Existia até clube familiar, como o ASFAXIM, acho que era
este nome, a Associação que reunia as famílias Aguiar, Ximenes,
parentes e afins.
O Náutico Atlético Cearense era fortaleza da classe média e
bastião dos bons costumes. Ostentava a sede mais luxuosa, possuía o
maior número de sócios, comerciantes médios, funcionários,
profissionais liberais. Tinha muito prestígio. Seu presidente era mais
importante que muito Secretário de Estado. Sua diretoria deveria,
posteriormente, fornecer líderes civis ao golpe militar de 1964. Era
composta de puritanos, ativíssimos na defesa da moralidade. Ali só
entrava casal. Esclareço: neste tempo, casal era homem e mulher. Só.
Além disso, precisavam estar casados, de papel passado, na Igreja,
escritura passada em cartório. Sem isso nada feito. Em nome da moral
cristã, a diretoria não hesitou em solicitar ao senador Olavo Oliveira
que abandonasse seus salões porque, desquitado, não era casado
legalmente com a moça com quem vivia. Estávamos longe, muito longe

74
do divórcio. E em verdade, em verdade vos digo, graças a seu olho
vivo, muita virgindade não foi ceifada pela concupiscência dos mais
sôfregos e, por isso, nunca será devidamente louvada.
Mesmo os casados, nos salões alviverdes, tinham de andar na
linha. Já contei, mil vezes, a história daquele casalzinho enamorado que
dançava aconchegado em seus salões. Um diretor vigilante se tocou e
chamou-lhes a atenção. O rapaz explicou, então, candidamente, que era
recém-casado, estava em lua-de-mel, dançava com a mulher. O Catão
não deu moleza, não. Pôs termos aos arroubos apaixonados com a
indagação sutil:
"Não tem cama em casa, não??
O Ideal Clube, bem mais liberal, era capaz de receber até casais
que se haviam juntado, sem as bênçãos da Igreja, nem o "ciente" naquele
tempo em que não havia ainda o divórcio, como espécie de sofisticado
antro da corrupção...
Vocês vão dizer, lá vem o Lustosa com histórias de Sobral. Esta,
agora, tem razão de ser. Na década de trinta, acho que foi em l 934, o
Ideal retribuiu homenagem do Grêmio Recreativo Sobralense, o Palace
Clube, com festa em sua sede, ainda localizada no bairro das Damas.
Sabem como veio trajada a diretoria do clube da Princesa do Norte?
De casaca.
Daquela festa, ficou na memória registro da animação dos
sobralenses numa frase:
"O José Maria Montalverne trocou de camisa, quatro vezes."
Durante muitos anos rolou, na cidade, que senhora das mais
respeitáveis de seu quadro social se apaixonou por um colar. Foi, várias
vezes, ao joalheiro, namorar a preciosidade. Sonhava com ele.
Até que, nas proximidades do Natal, o joalheiro, abelhudo, lhe
confidenciou que se tranqüilizasse, não mais perdesse o sono, pensando
na peça, porque ela seria sua. O marido já encomendara. Só faltava vir
buscar. Ela ficou esperando.
Segundo as fofocas daquele tempo, no baile do reveillon do Ideal,
ela, mortificada, viu o colar, tão desejado, esplendendo no colo da outra.
Que diziam ser amante do marido.
A rapaziada de classe média adorava ir ao Maguary, presidido
pelo sobralense Egberto de Paula Rodrigues, herdeiro de dezenas de
milhares de hectares de terra na zona norte. De seus quadros, saiu uma

75
Miss Brasil, Emília Correia Lima, por sinal, nascida em Sobral. Claro,
não era este o maior atrativo pra moçada. O que eles amavam era o
centro do salão, o chamado "miolo" do clube onde se curtiam, sem res-
trições, porque a diretoria se lixava pros amassos dos casais.
O porteiro era "seu" Manuel. Pra conquistar seu coração, basta-
va saudá-lo, dizendo-lhe o nome:
"Boa noite, seu Manuel!"
Ele escancarava o riso de maus dentes e permitia o ingresso.
O Comercial Clube, que produziu uma miss Fortaleza de muito
charme, Irineide Silveira, realizava suas "tertúlias" nas manhãs de do-
mingo a que os rapazes compareciam devidamente trajados de paletó e
gravata e as mulheres de longo, naquele calorão. O Edilmar Norões e o
hoje professor universitário Luciano Gaspar, então cronistas sociais, eram
mortos e vivos lá.
Ao meio-dia, o Norões, que era também locutor da Rádio Verdes
Mares, anunciava que a orquestra tocaria o Hino Nacional, para que todos
se pusessem de pé. Logo após, o presidente José Cláudio Oliveira soltava
o gogó, numa oração patriótica porque, com freqüência, estavam presentes
o Governador do Estado e o Comandante da Décima Região Militar. O
clube era tão importante que distribuía até títulos de Cidadão Cearense.
Um de seus diretores andava muito enxerido, atirando-se pras
associadas mais jovens, certo de estar fazendo furor. Zéclaudio resolveu
cortar-lhe as asas. No dia de seu aniversário, mandou o verbo, saudando
o evento. E encheu a boca de primeiro cinqüentenário, de meio século,
dos cinqüenta anos que o outro estaria fazendo. Não se sabe se a
propaganda negativa, no tempo em que cinqüenta anos eram muito tempo,
contiveram os ímpetos do árdego colaborador.

A CIDADE DA MINHA ADOLESCÊNCIA

Lembro a Fortaleza do final de 1955, quando aportei à rua


Rodrigues Júnior, 380, de frente à mercearia do Francisquinho que, todo
o santo dia, ia namorar a ex-mulher cujo retrato mantinha em lugar de
honra no estabelecimento. Dormia, ali, à noite, sozinho, quando, às quin-
tas-feiras, ia secretariar as sessões do Náutico. Uma madrugada, ouço
um ruído na vidraça quebrada. Era um ladrão que tentava entrar. Le-

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vantei-me rapidamente, acendi a luz, peguei um facão que ficava debai-
xo da rede em que dormia e abri a porta. O quase-assaltante saiu. Não se
assustou com os meus gritos nem com a arma que brandia, afastando-se,
sem pressa, da calçada da casa em frente.
Não havia, ainda, televisão. Nem poluição. O trânsito era ralo.
Assim as pessoas colocavam as cadeiras na calçada, à tardinha, antes de
ouvir a "Ave Maria" de Gounod, na PRE-9, para um balanço das
novidades do dia.
Na Praça do Ferreira havia a Coluna da Hora antiga, em torno
da qual se formavam muitas rodas de conversa, e o Abrigo Central, à
cuja sombra, de dia, comprava jornais do Rio e, de noite, depois do
expediente na Gazeta de Notícias, ia comer um pedaço de Souza Leão
ou de Luís Felipe com refrigerante, antes de ir pra casa.
Os vendedores de peixe, de cuscuz, de miúdos de porco ou boi,
lançavam pregões de suas mercadorias no silêncio das manhãs.
Éramos formais, muito formais. Íamos aos clubes, de paletó e
gravata, em plena manhã de domingo. Só assim trajados podíamos en-
trar no Cine Diogo ou assistir às aulas na Faculdade de Direito.
O sexo não era risonho nem franco. A moçada de hoje, criada com
a tranqüilidade da pílula e o conforto dos motéis, precisa saber que, naquele
tempo, não havia uma coisa nem outra. Quando um cidadão ia adquirir
camisa-de-vênus, chegava à farmácia em horas mortas, esgueirando-se pelos
cantos. E só fazia o pedido, murmurando-o entre dentes, a caixeiro do sexo
masculino. Não tinha coragem de fazê-lo se fosse mulher que o atendesse.
Fazer sexo, porém, era uma festa nas grandes pensões dos subúrbi-
os, a Margot, freqüentada pelas mais altas autoridades do Estado e do país, a
Gaguinha, a Lei la. No centro, eram mais modestas mas nem por isso menos
animadas. Quase todas tinham orquestra com mais de doze integrantes. Eram
aNena, a Graça, a América, a Fascinação, a Cristalina, a Império, a Oitenta.
As prostitutas eram conservadoras ao extremo, repelindo, em altas vozes e
deliberado escândalo, qualquer proposta menos ortodoxa.
Tudo isso acabou. O amadorismo venceu o profissionalismo.
Àquele tempo, não. As moças, que queriam conhecer o sexo antes do
casamento, sofriam toda espécie de vexames. Os namorados levavam-nas
aos chamados "chatôs". Eram casas de cafetinas, geralmente sujas, que
recebiam casais. Ou visitas masculinas para as quais vestiam meninas pobres
com fardas da Escola Normal a fim de tomá-las mais atraentes à freguesia.

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Os mais abonados contratavam carros de praça dos postos Mazini,
Nove ou Pará e tomavam o rumo da Praia do Futuro, então sítio ermo,
distante. Lá, o motorista ficava sentado numa pedra fumando, olhando
as estrelas, enquanto o casal se curtia no banco traseiro do automóvel.
É claro que a moça, além de correr o risco de ter de, eventual-
mente, bater à porta de uma "fazedora de anjos", com todos os ônus daí
decorrentes, ainda ficava falada. Quando o chofer passava em frente à
sua residência, se sentia na obrigação de informar ao passageiro:
"Aí tem uma moça que dá."
Sem falar na chantagem que outros rapazes, inteirados de sua
liberalidade, faziam:
"Você saiu com o Fulano. Se não quiser sair comigo, conto a
seu pai."
Ainda assim, apesar dos riscos e percalços, ninguém deixava de
transar, não.

SONHANDO COM MESSEJANA

De quando em vez, sonho com nosso antigo sítio de Messejana,


onde hoje se situa a Porciúncula e que meu pai torrou, depois de voltar-
mos a Fortaleza, para educar a filharada. É dor de cotovelo que não sara.
Ali, durante muito tempo residiram seus pais, Chico Bento e dona Vitalina,
com quem, às vezes, passava férias.
Revejo-me, menino solitário e tímido, debaixo da mangueira cen-
tenária que espalhava sombra amena e frondosa sobre a casa que habitá-
vamos. Quase posso sentir, debaixo do pé cinqüentão, a areinha fofa,
macia e branca que pisava, andando pelo sítio povoado de mangueiras,
cajueiros, pés de jatobá, de murici, de sirigüela.
O calçamento de Messejana era, então, longe, muito longe de
Fortaleza. Os ônibus - que tomávamos na Praça dos Voluntários - velhos
e maltratados, demoravam uma vida para chegar. Deles, descíamos diante
do sítio de Rosa, solteirona, biruta que tinha mania de limpeza. Para
matar a solidão, falava só, enquanto se escondia por trás de nuvens de
poeira, varrendo seu terreiro. Às vezes, descompunha, dizia nomes feios
contra galinhas que atrapalhavam seu trabalho. Para chegar à entrada de
nosso sítio, passávamos pela bodega do Oliveira, que me dava bombons

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coloridos. Àquele tempo, era um bom pedaço de areal que, diziam, se
tornava perigoso, à noite.
À época (à gente sempre acha bom ou pensa que achou bom o
tempo que passou) a inflação ainda não desmoralizava nosso dinheiro.
Meu avô ganhava pouco ou quase nada com sua aposentadoria do IPEC.
Hosames, outro tanto, no escritório de despachante de outro tio, seu
irmão, Luiz Costa. Suponho que quem segurava as pontas era Dagmar,
tia e amiga, professora em Cajazeiras, com o reforço de Abigail, que
tinha bodega na Rua General Sampaio e que tantas vezes carinhosamen-
te ali me acolheu. Dagmar adorava preparar doces exóticos e fazer bolos
de carimã. Eram caprichadas as festas que promovia em honra de Nossa
Senhora, com as meninas que criava ou vizinhas, vestidas de anjo.
Com muita garra, manteve, durante tempos, o jornal Âncora,
onde conheci o grande poeta Francisco Carvalho, Manuel Aguiar Arruda,
Aida Miranda entre tantos outros. Não esqueço os domingos em que o
grupo de Âncora se reunia lá embaixo do mangueiral. De vez em quan-
do, era necessário sacrificar mais uma galinha pela chegada de conviva
inesperado. Não havia álcool. Eram tempos de sobriedade.
A grande aventura de menino era ir até o final do sítio, à casa de
um preto velho, José Pinto, nosso morador. Lembro que seu terreiro era
muito limpo. Quando aparecíamos lá, mandava tirar cocos. Como era
bom beber água de coco, depois comer aquela laminha gostosa!
Íamos à missa no Convento dos Capuchinhos. Aos 16 anos,
depois de deixar o Seminário, acho que estava distante de Deus, como
acontece em tais transes. O certo é que, ao entrar na capela, não fiz a
genuflexão de praxe, o que deixou meu avô, a quem acompanhava, muito
magoado. Na vila, pontificava o vigário Padre Pereira, em guerra vã
contra os namorados que escolhiam, justo a calçada de sua igreja, para a
troca de carinhos mais ardorosos.
Não me lembro de um banho na lagoa, aquela em que Iracema,
vinda do Ipu - que caminhada! -, fazia suas abluções. Sei porque me
contaram que aí, quase morri afogado. Felizmente, escapei para contar a
história e lamentar a destruição da lagoa. Meu coração bate como cora-
ção do menino que, há muito tempo, eu fui, quando revejo seus sítios,
cheios de mangueiras, coqueiros, pés de sirigüelas e procuro, em vão,
em mim, a criança que fui e que se perdeu ao longo do caminho! Ah!
Messejana, que bom pedaço de minha vida vivi em teu chão!

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ÚLTIMO SALÃO

Enquanto esteve casada com Eduardo, Chiquita Gurgel manteve


o último salão da sociedade cearense, liberal, generoso, desinteressado.
Ela recebia todo o mundo que lhe parecia inteligente e de bom gosto.
Acolhia, de preferência, jornalistas, poetas, pintores, boêmios, cada qual
mais "duro" que o outro.
Certa vez, a instâncias de Lúcio Brasileiro, hospedou o entalhador
Batista que, a este tempo, ainda não era famoso e se chamava Eugênio
Carlos, tal qual o padre o batizara. Viera a Fortaleza vender quadros do
amazonense Raimundo Andrade e títulos do Panorama Palace Hotel. O
pai dele era amigo de Assis Chateaubriand dos tempos do Recife. Talvez
por isso, aparecia muito na revista O Cruzeiro, que decantava suas faça-
nhas amorosas em Hollywood, pra onde se mandara, a fim de se especi-
alizar no teatro de Shakespeare. Fizera algumas pontas em filmes e
voltara à Pátria com a glória de haver roubado a mulher ao John Carradine,
mãe do Kung-Fu, o que culminou em escandaloso "affaire" judicial.
Lembro-me de que, após um dia de boas vendas e carta da Mady,
seu grande amor, o galã convocou a mim e ao Lúcio pra encarar umas
perdizes no restô do extinto San Pedro Hotel. Fizera amizade com o maítre e
descobrira, perdidas, empoeiradas sem maior consideração na adega, algumas
garrafas de Saint Émilion. Fomos, assim, à guerra santa. Só me lembro de
que, às páginas tais, Eugênio se ergueu da mesa e, com voz tonitruante,
acordou o hotel inteiro, interpretando Ricardo III, em bom inglês californiano.

ERA TEMPO BOM

Aírton Rocha e Tarcísio Tavares lançaram, na TV CEARÁ, o


programa "Perfil da Cidade", de que participei junto com Lúcio Brasilei-
ro, Frota Neto, Giácomo Mastroiani, Mago la Martins, Hermínio Castelo
Branco, o bom MINO, sob a batuta do Guilherme Neto. O patrocinador
foi o Grupo J. Macedo. Comecei provocando o padre Arquimedes Bru-
no que, então, pintava como pioneiro da Teologia da Libertação:
") senhor é comunista?"
Cometi o erro de não preparar a tréplica. O certo é que fiquei
com cara de tacho quando ele me respondeu:

80
"Só pensa que sou comunista quem tem prisão de ventre mental."
Lúcio tentou entrevistar Chiquita, que, atordoada pelo uísque ou
pelo vallium ou pela mistura dos dois, desmaiou ante o fogaréu dos
refletores e não respondeu a seu questionário proustiano.
Logo refeita, ela comandou belíssima recepção em nossa home-
nagem, com a presença de Olga e do governador Parsifal Barroso e tout
le monde. O uísque jorrou como as águas do rio Acaraú, na temporada
das chuvas. Não me sai da memória o tom vitriólico com que o romancista
João Clímaco Bezerra, naquela memorável noite, analisava poemas
febrilmente eróticos da dona da casa.
Tempos depois, ali foi sagrado "Sir" o então cronista social Klinger
Mota, segundo rígido protocolo trazido da Inglaterra pelo coronel Emílio
Burlamaqui. O agraciado velou, a noite inteira, antes que a anfitrioa
pousasse pesada espada sobre seus ombros, o que o deixava muito inqui-
eto ("Cuidado, grande dama!" murmurava, a cada instante). Muitos
estávamos fantasiados. Eu, inclusive, fui de saiote escocês de tweed.
Também apareceu Frota Neto, então ativo na caça a forasteiras e nati-
vas, tanto assim que um brioso marido teve de afastá-lo, certa noite, à
força, do amasso com sua cara metade, bela morena de olhos verdes,
pela qual andávamos todos apaixonados.
Vale a pena recordar boas coisas. O salão de Chiquita Gurgel foi
uma delas.

QUANDO ERA SÓCIO DE DEUS

Confesso: quando comecei a ter certo êxito no jornalismo, quis


subornar Deus. Pensava em ganhar dinheiro e o fiz de sócio. Dava dez
por cento do que ganhava à Igreja de S.Francisco, situada em Sobral,
sob responsabilidade dos capuchinhos. Lembro-me de estar, uma vez,
no balcão do Banco de Crédito Comercial, ali esquina com o velho
prédio da Assembléia, fazendo transferência de dinheiro. Cláudio
Castelo, que passava, ao me ver, entrou no banco. Ao saber do
pagamento do dízimo, brincou: "Queres ganhar o céu com o dinheiro
da iniqüidade?"
Desisti de ficar rico e dissolvi a sociedade. Passei a investir o
dízimo em uísque nas noitadas do restaurante do Ideal Clube.

g1
Não nego, porém, que ainda hoje alguns dos meus negócios com
a Providência Divina parecem comerciais. Dou esmolas mais generosas
quando ganho um dinheiro que não esperava, alcanço alguma vitória,
vivo momento prazeroso.
Noutros casos, a esmola constitui investimento. Dou aos pobres
esperando receber de Deus retribuição generosa. Diretamente ou através de
meus filhos. Em suma, quando faço o bem, estou sendo interesseiro, propondo
ao Céu negócio que seja bom para mim, que remunere o investimento.

Old Parr seria melhor


Frank Sinatra quis levar no caixão uma garrafa de Jack Daniel.
Deus queira que quando eu bater as botas já funcione aqui em Brasília o
forno crematório. Prefiro ser cremado. Quando souberem do ocorrido,
os amigos bebam o que restar do meu Old Parr. Ou o muge que estiver
sobrando em minha adega. Nada de ir a cemitério, nada de choradeira.

Otimismo compassivo
Jantava uma vez com a caçula do Beco da Piedade, a historiadora
Isabel Lustosa, no restaurante do Hotel Ouro Verde. No tempo em que se
tinha coragem de ir ao Rio e se freqüentava o Ouro Verde. Estavam lá o
então presidente da CNI, Albano Franco, e a mulher. Ao sair, ele se despediu,
com um aceno discreto e cúmplice. Atalhei a indulgência de que não precisava:
"Alto lá, Albano, é minha irmã!
Coisa muito mais confortadora me aconteceu no trabalho de
minha filha, na embaixada americana. Um vadio abalroara seu carro,
quando da visita do Clinton. Nesses casos, a vítima fica a pé um bocado
de tempo e ainda arca com o pagamento da franquia. Por isso, eu a
levava à embaixada, todos os dias. Na portaria, um dos seguranças lhe
perguntou se eu era seu marido.
Teve melhor. Um dia desses, entro num restaurante português
com ela. O colega Jorge de Oliveira, um alagoano com bom rastro na
grande imprensa, no seu canto, à espera de mesa, me olha meio feliz,
meio desconfiado. Apressei-me em desfazer-lhe o otimismo compassi-
vo, porque estes coroas são cheios de expectativas ridentes: "Deixa de
otimismo. É minha filha". Só assim, tranqüilizado ou já despido de
inveja, ele vem me abraçar.

82
Aproveitar o restinho de ano

Quando a gente dá fé, passou mais um ano. Já estamos cami-


nhando para o segundo semestre. Daqui a pouco terminam 98, 99 e
estamos no ano 2000. Antigamente, nem sentia a passagem do ano. Agora,
na boquinha dos sessenta, como dói.

SAUDADES DA GAZETA

Foi na extinta Gazeta de Notícias que tive o primeiro salário.


Pouco, mas o primeiro ganho com os miolos. Escrevendo.
Era independente, o jornal. Nada querendo do governo, dava
um prejuízo brabo que o sócio majoritário, Olavo Euclides Araújo, cus-
teava, vendendo quadras da terra pras bandas da Água Fria, hoje Bairro
Edson Queiroz. Até que não pôde mais e passou a empresa adiante.

Outro de seus proprietários era Antônio Brasileiro, matuto sagaz


e viajado de Caucaia, que implicava com a crônica social. Daí Luís
Campos, o chefe da redação, de brincadeira, haver batizado de Lúcio
Brasileiro a Newton Cavalcante, que, então, estreava no gênero.
O terceiro sócio era José Afonso Sancho. Lembro-me de que,
no primeiro dia, me mandou escrever nota contra a COFAP, que
incomodara um padeiro de Porangaba. Redigi-a rápido, como de hábito,
e ganhei sua aprovação.
Entre os freqüentadores da redação, à noite, estava um médico
amazonense, Vinícius Gonçalves (era assim que se chamava?), que era
assíduo e se gabava de fumar vinte charutos por dia. Outro que aparecia
era o poeta Rogaciano Leite, às vezes, depois de copiosas homenagens a
Baco. Eu o acompanhava, inquieto, coração na mão, grimpando a precária
escada que levava ao empoeirado sótão onde se situava a redação. O
velho prédio era na rua Senador Pompeu, o mesmo onde meu pai vira,
em meio à multidão de curiosos, morto, a cabeça inclinada sobre a
mesa, seu fundador, Antônio Drumond, abatido a tiros.
O editorialista era G.S. Nobre a quem, adolescente curioso,
crivava de perguntas sobre tudo e sobre todos, o que ainda faço, hoje,
quando o procuro no Instituto do Ceará.

83
O repórter policial era Jonas Sampaio, o "Galeguinho", que só
vibrava com desgraça muita e chegava desolado quando a safra era escassa:
"Apenas uma tentativa de homicídio", às vezes se queixava.
Entusiasmava-se com as grandes tragédias que galgavam as
manchetes, como um desastre de trem, com dezenas de mortos.
Uma das novidades da redação era a presença feminina, a de
Adísia Sá, que, às vezes, assinava suas crônicas, sob o pseudônimo de
Moema. Repórter credenciada junto à Assembléia, uma vez ouviu do
deputado Wilson Gonçalves a pergunta:
"Adísia, este Lúcio Brasileiro é sério?
Cortou o papo, com rispidez:
"Não estou entendendo, deputado!"
De início, eu traduzia do espanhol telegramas da agência noti-
ciosa INS.
Depois, escrevia tópicos que, à época, se chamavam sueltos,
publicados logo abaixo do primo-editorial do Nobre, em que defendia
minhas causas da época: a criação do curso noturno da Faculdade de
Direito e do Departamento de Provocação de Chuvas. Arabá Matos,
Didi, Telmo Freitas, o Cirandinha, Manuel Lima, o fotografo, Yôyô, o
gerente, mestre Feijão, o chefe da oficina, são nomes de que me lembro
da equipe da velha Gazeta de Notícias.

ESCREVER, UM VÍCIO

Escrever, para mim, é compulsão. Escrever me libertou da timi-


dez. Escrever me pôs em contato com o mundo o que nem sempre é
fácil, oralmente.
Adolescente, desforrava-me da solidão, produzindo três ou quad-
tro artigos por dia. Para nada. Não havia quem publicasse.
Certa vez, muito na moita, achando que ia abafar, enviei carta ao
suplemento literário de Unitário, oferecendo minha cooperação. Se não
me engano, equiparava-me a João Clímaco Bezerra, Stênio Lopes, Otacílio
Colares e outros cobras da época. Chegava até (vejam a audácia') a
solicitar remuneração financeira por meus escritos. Fiquei aguardando.
O certo é que estava de férias, em nosso inóspito sítio, às mar-
gens do açude Cachoeira, em Sobral, quando meu pai, ao final do ex-

84
pediente, de volta ao lar, descendo da charrete em que se transportava,
me jogou o pacote de jornais de domingo, dizendo:
"Veja a vergonha que você me faz passar..."
Era o Jairo Martins Bastos que, na edição dominical de Unitá-
rio, fazia a maior gozação com o pretensioso correspondente. Levava,
na maior troça, o menino do interior que sonhava escrever no mesmo
jornal dele, no suplemento literário que saía àquele tempo.
Era empregado da secretaria do Náutico Atlético Cearense,
quando passei no vestibular para a Faculdade de Direito. Precisava con-
tinuar trabalhando, durante o dia, para garantir a subsistência.
Sabem o que fiz? Fui até o todo-poderoso superintendente
dos "Diários e Rádios Associados", Eduardo Campos, pedir sua ajuda.
Para campanha pela fundação do curso jurídico noturno. Ele, com a
maior boa vontade, prometeu apoiar meu pleito. Pediu-me escrevesse
a respeito.
Mal acabei de comer meu bife com ervilhas e alface, no pequeno
restô da Loja de Variedades, me mandei pro escritório do clube em que
trabalhava. Ali, enquanto não voltavam os outros funcionários, escrevi,
velozmente, dois tópicos que logo deixei na redação dos "Associados",
num velho e desmantelado casarão da Rua Senador Pompeu a que, de
quando em quando, estou retornando, nos meus sonhos. Dia seguinte,
deslumbrado, experimentei a emoção de ver um deles, publicado, logo
abaixo do primo-editorial do Correio do Ceará, escrito por Murilo Mota
que, àquele tempo, fazia furor.
Quando apareci no jornal para agradecer ao Manuelito, ele me
indagou à queima-roupa: "Quer trabalhar comigo?"
Temerariamente, impus condições, lembrado das ironias do J airo:
"Só se não for no jornal, nem de dia."
Aparentemente, ele não se deu conta da minha petulância, pois
concordou:
"Pois não é no jornal, nem de dia. É pra escrever a 'Crônica
do Ceará.'"
Quase caí pra trás de emoção. Afinal, iria substituir, aos 19
anos de idade, um profissional do nível de Blanchard Girão, que trocara
a "Ceará Rádio Clube" pela "Rádio Dragão do Mar", recém-fundada
pelo PSD.

85
A "Crônica do Ceará" tinha o impacto de uma bomba, lida, ao
meio-dia, na mais poderosa emissora da cidade, pela possante voz de
João Ramos.
Lá sentei praça. Além do editorial, escrevia textos apaixonados
(andava sempre apaixonado naquele tempo), lidos entre uma e outra canção
romântica, interpretada por Guilherme Neto, seresteiro e amigo de fé.
Logo depois, Eduardo Campos me convidou para trabalhar, tam-
bém, em Unitário. O secretário do jornal, o sobralense Felizardo
Montalverne, andava brigado com Oscar Pacheco Passos, que produzia
solenes e pachecais comentários políticos no outro jornal "Associado".
Viu, em mim, o concorrente para o inimigo. Deu-me todo o prestígio,
fazendo-me logo titular de uma coluna, "Resenha Política" que susten-
tei quente, apaixonada, alvoroçada até o ocaso da classe política de 1964.
Meu pai escreveu, num esboço de memórias que deixou, haver ficado
emocionado quando, no ônibus, de volta pro almoço, viu as pessoas
abrirem o jornal, indo logo à terceira página, para me lerem. E que logo
um deputado, seu colega de colégio e seu contemporâneo que o esnobava,
voltou a falar com ele. Essa coluna era praticamente lida em "Estas são
confidenciais", meu programa na emissora, na hora do almoço, que
também tinha seus ouvintes.
Veio a TV CEARÁ. Mais uma obra pioneira de Assis
Chateaubriand. Houve tempo de preparação de pessoal para o novo
veículo. Era uma programação local, difícil, dada a precariedade de equi-
pamento de que saíram milagres. Principalmente na dramaturgia.
Cumpri curso, ministrado por Péricles Leal, para produtor de
programas que, a esse tempo, se denominava realizador. Ao final, houve
prova. Apresentei uma novelinha, um caso especial, como se diz hoje,
baseado na morte de Sprandell pelos fascistas, cujo chefe ele assassina-
ra, extraído do meu livro predileto de então, Contraponto, de Aldous
Huxley.
Pessimista, não acreditei no meu trabalho. Tanto assim que, no
final, escrevi, na gíria da especialidade: "Escurecimento sobre a carreira
de realizador."
Era engano meu. Passei. Não aceitei o lugar porque pagava pouco.
Taí uma experiência que ainda faço, que ainda hoje me tenta.
Na tevê, tornei-me responsável pelo programa "Política, quase
sempre", de debates políticos, quase sempre de grande impacto, porque

86
eu não tinha muito juízo, felizmente, e não existia outra tevê, na cidade.
O Renato Aragão satirizava as personagens das entrevistas em seu
programa "Política, quase, quase". Participei, ainda, do "Telejornal Crasa",
jornal vivo, dinâmico, feito por jornalistas que sabiam o que estavam
dizendo e não bonecos bem penteados e otimamente encadernados, como
se vêem hoje em dia.
Veio a eleição de 1966. Apesar de Eduardo Campos ser homem
do golpe militar, tive, inventado pela amizade de seu vice na rádio e na
tevê, Rômulo Siqueira, programa de televisão, intitulado "Perspectivas
Cearenses", para falar ao eleitorado. Não me elegi, porém. Tive tantos
votos que me pareceram uma condecoração.
Depois, fui Editor Chefe de Unitário e do Correio do Ceará,
posto de que saí, demitido estrepitosamente após haver escrito artigo
violento contra o Governador do Estado e o Reitor da Universidade que
estavam concluindo mandato. Dizia, a propósito, à época, ter sido atro-
pelado por um féretro. Aliás, dois, para ser preciso.
Neste período, o diretor comercial, por incrível que pareça, era o
Guilherme Neto, cuja amizade foi preciosa para enfrentar um ou dois
terremotos sentimentais que me acometeram. Ele escrevia gostoso, lem-
brando-me o estilo do Fernando Lobo, cronista e compositor de "Chuvas de
Verão." Adotava dois pseudônimos, o de Ivan Sodré e outro, deliberadamente
suburbano, de lvanise Santos. Eu andava demasiado prolífico, de modo que
desapropriei os dois. Escrevia adoidado. Ele, às vezes, copidescava minhas
crônicas. Muitas delas melhoraram muito e andam por aí fazendo algum
sucesso, graças a ele. Gostava de escrever, assinando principalmente Ivanise
Santos. O que levou o Geraldo Fontenele a me mandar, de gozação, carta
anônima, facilmente identificável, até pelo portador, o soldado Herculano
que trabalhava no Palácio da Luz, perguntando por que não me definia
como Oscar Wilde ou como uma das Catarinas da Rússia que acolhia, em
seu leito democrático, metade da Guarda Imperial.
Nos "Diários Associados", cumpri a parte mais importante de
minha vida de homem de imprensa. Porque, quando me transferi pra
Brasília, a fim de ser repórter de O Estado de S. Paulo, Oliveira Bastos
me confiou uma coluna política diária no Correio Braziliense, o mais
importante órgão da cadeia jornalística. Nele, falava mal do regime militar,
o que me fez conhecido na Corte. Houve até quem achasse que dei
alguma contribuição para o desmoronar da ditadura.

87
O VELHO IAPC

De repente, me vejo menino, de cabeça grande, ainda sem ócu-


los, martelando furiosamente nas máquinas do IAPC, repartição de que
meu pai era agente. Escrevia para revistas infantis. Fazia encomendas de
jogos e cadernos e livros à Cia. Editora Melhoramento. Fazia cartas para
avós e tios. Era prolífico até dizer chega. Recordo o contínuo, o
Carneirinho, que, parece, depois morreria assassinado. O Júlio Álvaro
Coelho, marido de dona Gláucia, se coçando, de costas, na coluna da
sala e me contando histórias picantes. Era pai do José Augusto Aragão
Coelho, fiscal, que, uma tarde, depois de me irritar muito, me levar às
lágrimas e ao desespero, me presenteou com um livro Ali-babá e os
quarenta ladrões. De Dona Judilita Borges Monte, mãe do Zémonte,
amizade que passou de pai para filho. Da Maria Célia Mendes. Da
Carmindinha Pimentel. Do Clever Rocha, hoje seresteiro e cantor. E
dos fiscais que apareciam, como o Edson Milbourges Ponte, pai desse
médico de sólida reputação mundial, o Edson. De uma passagem do
presidente do IAPC, depois senador Henrique La Rocque, em compa-
nhia de seu chefe de gabinete, Neiva Moreira, que iam, por terra, a S.
Luís do Maranhão, terra natal de ambos.
Meu pai morava no prédio onde funcionava a repartição, o que
era praxe naquele tempo. Assim, residíamos sempre em casarões, como
o sobrado do bispo, hoje Museu Diocesano. A casa logo atrás. E a de
esquina da Praça do S. Francisco onde foi, depois, a sede do Educandário
S.José, então de propriedade de dona Dinorá Tomaz Ramos.

DE COMIDAS E BEBIDAS

O primeiro restaurante de que me lembro ter freqüentado, com


assiduidade, já empregado da Ceará Rádio Clube e do Unitário, foi o
"Central", ali na Floriano Peixoto, quase Praça do Ferreira, de proprie-
dade do Alfredo Gurgel. Corado, mais pro forte, meio barrigudo, sem-
pre de camisa de linho branco por fora da calça, cheio de histórias da
Amazônia e de carteado, era bom anfitrião. Ia muito lá com Geraldo
Fontenele e Narcélio Limaverde. Ficou famosa a história dum "vale" que
fiz em seu caixa para ir jantar no Ideal. E também o grande número de

88
amigos a quem pedi que o procurassem, quando me mudei pro Rio em
fins de 1966, pra quitação de pequena dívida que ali deixara.
Antes, a gente ia muito ao Drink Bar, de Irene, urna funcionária
dos Correios. Ficava ali na General Sampaio, esquina com a Praça Clóvis
Beviláqua, em diagonal com a sede da Gazeta de Notícias e da Rádio
Uirapuru. Ali, num atentado que rendeu manchetes, atribuído pelas vítimas
ao deputado Cincinato Furtado Leite, quase foram mortos a tiros Iranildo
Pereira e Clóvis Lacerda que sustentavam o PSD de Santana do Cariri.
Logo começava a andar pelo Lido, freqüentado pelo Lúcio Bra-
sileiro, que residia em frente, no Iracerna Plaza Hotel. E pelo "Tony's",
do Figueiredão, de enorme pança, ar bonachão, ali vizinho.
Quando me tornei responsável pela coluna "Resenha Política"
(o título não fui eu quem escolhi), o Central já se mudara para a Avenida
Beira-Mar, com o nome de Copacabana. Descobri que muitos de meus
personagens podiam ser encontrados descontraídos, soltos, no restau-
rante do Ideal Clube. Principalmente os deputados do PSD, PTB, depois
PTN, que apoiavam o governo Parsifal Barroso. Os udenistas, por motivos
que jamais descobri, eram mais caseiros, saíam pouco. Fiz, do local meu
reduto e ataquei, com tal intensidade, sua lagosta à baiana e seu uísque
escocês que, certo fim de ano, tive de bater às portas do banco, pedir
dinheiro emprestado pra quitar meus "vales".
Airton Napoleão lera que Antônio Maria, às vezes, escrevia a
crônica na pérgula do Copacábana Palace, e ficara impressionado com o
fato. Num sábado à tarde, mandou vir a máquina de escrever para que,
numa mesa do restaurante, eu produzisse minha coluna. Não deu certo.
A esse tempo, o restô se encontrava a cargo dum casal de judeus
húngaros, os Navratill, que aportaram ao Ceará com urna filha solteira, a
bela Hanna, pela qual muitos de nós andávamos perdidamente
apaixonados. Oriel Mota gastava, no local, seus subsídios de deputado
estadual, à espera de um olhar que jamais foi seu e, sim, de um aviador,
pois, a esse tempo, as moças viviam de olhos postos no céu.
Corno pagava minhas contas, possuía desembaraço para dizer o
que me dava nas ventas. Não gostei duma refeição e aproveitei um
artiguete para dizê-lo, com bom humor. Contava da exígua porção de
camarão que me fora servida e da pesquisa vã que empreendi, em meio
ao arroz, ao molho, às batatas, para encontrar algum crustáceo. O velho
Karell Navratill quebrou a cabeça, tentando entender a ironia.

89
Era, então, jovem e não me apraziam apenas os prazeres da
mesa. Certo jantar, noite alta, céu risonho, como na velha canção, uma
moça, que se achava ao lado, com parentes e aderentes, deu pra flertar
comigo. Pois bem, a loura, pois se fizera loura com ajuda da botica, veio
à minha mesa. Logo depois estava em meu carro, a caminho da então
desolada praia do Náutico.
Quando chegou a oportunidade de explicitar-lhe minhas aspira-
ções óbvias, fingiu surpresa, fingiu enlouquecer, não sei mesmo o quê. E
saiu, gritando:
"É a carne. É só a carne."
Talvez supusesse a ingênua donzela que a houvesse levado,
naquele horário e tão prazerosamente, à solidão salobra da praia, atrás de
peixe, de camarão, de lagosta. Não sei. Nunca o pude entender.
Depois, a casa ficou sob a responsabilidade de José Curi, que
encostara o alaúde com o qual esperava ganhar a vida em Fortaleza e
logo se fizera amigo de todos. Ele é que nem a cigarra da fábula, sem um
teto de seu e não apenas por conta do amor das cartas. O coração é
grande demais.
Basta contar que, durante algum tempo, se dedicou ao forneci-
mento de marmitas. O negócio até ia bem. Ele alegava, porém, não
querer estragar a comida que sobrava, que não era vendida. Assim deci-
diu matar a fome de alguns pi vetes que faziam ponto perto de seu trabalho.
No começo, eram cinco, seis. Depois uma multidão de crianças pobres à
espera da refeição. Claro que o negócio foi pro brejo.
Quando publiquei Fortaleza, meu amor, pedi ao fotógrafo que
captasse o Curi, em ação no comando do restô do Ideal. Pra minha
tristeza, ele não entendeu. Não quis. Por isso, o livro só traz retrato de
uma personalidade, a do Francisquinho, que morava de frente a nós, na
rua Rodrigues Júnior, aquele bodegueiro desquitado que, todo o dia, ia
namorar a ex-mulher.

Freqüentava também, aos sábados, o armazém do Genésio


Queiroz, na Sena Madureira, levado pelo José Júlio Cavalcante. Lá bebia
o uísque do rei do açúcar com o herdeiro Edson - que ainda não era o
empresário de prestígio nacional, mas já prometia - os genros Ney
Rebouças e Eduardo Leite. Também aparecia o poeta Otacílio Colares.
Às vezes, saíamos dali pro almoço no restô do Náutico.

90
Tempos depois, o uísque dos sábados era à beira da piscina da
casa hospitaleira de Irene e Cláudio Martins, onde nos entretínhamos,
assistindo à costumeira polêmica do dono da casa com o bardo Otacílio
Colares. Ou, então, chez Milton Dias, na rua Coronel Ferraz, Praça da
Escola Normal, onde o grande cronista e doce amigo era vizinho de si
mesmo, pois morava parede e meia com a mãe.
Diarista era, nos crepúsculos, no restaurante do Savanah Hotel,
na Praça do Ferreira, com Danilo Marques. Em 1966, na disputa duma
cadeira de deputado federal, tive, porém, de fazer sacrifícios. Um deles:
deixar o uísque do crepúsculo pra sair com Mauro Benevides, em sua
camioneta Rural Willys, rumo ao subúrbio mais remoto, em busca de
votos. Ele detestava bebida e eu, que precisava de seu apoio, contenta-
va-me com o indigesto Campari. Não se esgotavam aí minhas humilha-
ções. Ao fim de nossas preleções eleitorais, o dono da casa, geralmente,
nos oferecia refrigerante quente pois, pobre como Jó, não tinha geladei-
ra. Mauro então passava a bola adiante: "Não quero, não, compadre,
porque estou empachado. Mas o doutor Lustosa aí é doido por Fanta."
Lá me cabia consumir a beberagem. A tais sacrifícios nos leva o povo.

QUASE PIGMALIÃO

Dei um duro danado pra comprar meu primeiro fusca. Um can-


didato a deputado me contratou para fazer sua campanha. Isto é: bolar
jingles, mandar gravá-los, escolher cartazes, escrever discursos, ensiná-
lo a fazer a devida leitura, o diabo a quatro. Lembro-me dele, no fundo
da rede, tentando pronunciar, em vão, o nome de Getúlio Vargas (ele,
não sei porquê, não dizia o i), da peça oratória que lhe escrevera. Virei-
me em dez pra juntar o precioso dinheiro, destinado a me motorizar.
Logo espalharam que o meu Fusquinha havia sido presente de Carlos
Jereissati, enquanto o Dauphine de Lúcio Brasileiro saíra da bolsa de
José Dias Macedo. Que nada! Infelizmente, não era verdade. Fora um
dinheiro suado, espremendo os miolos.
A inveja, porém, não ficou nisso. Deixei o carrinho no estaciona-
mento do restô do Ideal, ali debaixo da janela do cassino, e fui prestar
minhas homenagens a Baco. Quando me dispunha a voltar pra casa,
percebi que um malvado riscara, com um prego, indelevelmente, o capô

91
do veículo com dúvidas (aliás ele não nutria dúvidas, tinha era certezas)
sobre minha masculinidade. O que fazer? Nada.
Durante a campanha eleitoral, findos o namoro e as aulas na Facul-
dade, lá ia à casa apalacetada de Raul Carneiro, na Avenida Santos Dumont,
onde se reunia a corte de Carlos Jereissati. Depois que este se inteirava das
novidades do dia e despachava com o último correligionário, levava-o, no
meu fusquinha riscado e amarrotado, pra sua morada, na Tristão Gonçalves.
No peito e na raça, ele enfrentou a confederação das oligarquias
que receavam seu aparecimento, como força de renovação, e a ascensão
de Adail Barreto, tido como esquerdista, ao governo do Estado. Definiu
a vitória na capital com seu excelente (e inesperado) desempenho na TV
CEARÁ. Os que lhe viram a fala, lembram do seu gesto com as duas
mãos na direção do ventre, como querendo mostrar a tentativa de
açambarcar o Estado pelas correntes políticas tradicionais, agrupadas na
chamada "União pelo Ceará".O eleitorado o entendeu. Espalhou-se que
Álvaro Costa e eu havíamos bolado a apresentação que lhe rendeu a
vitória. Nada disso. É certo que ele treinou o programa conosco. Seus
efeitos especiais, como o gesto para condenar o "acórdão"", constituíram
surpresa até pra nós. O mérito assim foi só dele.
Que nem o do professor Morais, que Danilo Marques levou ao
nosso escritório e de Dorian Sampaio, para o promover de segundo su-
plente de vereador a deputado federal, doze anos depois. Toda a tarde,
ele ia nos pedir temas, sugestões e treinar sua apresentação no vídeo.
Aproveitou e melhorou várias propostas nossas, rejeitando, porém, mi-
nha idéia de dar um passeio no elefante do Jumbo (que vinha de ser
inaugurado em Fortaleza) pela Avenida Beira-Mar. Vamos ser justos.
Suas falas foram sempre melhores do que as do nosso roteiro. Conquis-
tou, assim, três mandatos consecutivos.

VERSATILIDADE

O pessoal da UDN do doutor José Sabóia costumava aludir à


extrema versatilidade dos eleitores de Chico Monte, do velho PSD. Para
ilustrá-la chegavam a contar a história de uma senhora, cabo eleitoral
pessedista, que, no fim do dia da eleição, se apeava da camioneta Dodge
do líder, arrebentada. Fatigada da maratona:

92
"Que diabo. Pra outra o compadre Chico Monte não me pega.
Estou arriada, estou morta".
E contava:
"De manhã cedo, votei na Meruoca. Na hora do almoço, votei
no Jordão. E, agora, estou chegando do Patriarca onde também tive de
votar. Estou arrasada".

"O pessoal votaram ... "

Os pessedistas de Santana do Cariri, Paes de Andrade e Iranildo


Pereira, à frente, contavam, no passado, a saga de correligionário, exila-
do no Crato por razões políticas que, numa eleição, correndo todos os
riscos, decidiu subir a serra pra votar. Não se deixara intimidar pelo
poderio dos Furtado Leite, Hildo e Cincinato, da UDN. Penou até en-
contrar uma camioneta que quisesse transportá-lo. Aconteceu que, no
meio do caminho, por azar, o carro deu o prego. Empacou que nem
jumento ruim. Nada de sair do lugar. Já era tarde quando o tenaz cidadão
conseguiu burra emprestada em cujos costados chegou à cidade. À seção
eleitoral. Quando se apresentou ao presidente de mesa, este pegou seu
título, examinou-o com cuidado, conferiu a foto com a feição do candidato
e só então foi procurar seu nome na lista respectiva. Lá descobriu, pra
escândalo seu, que o moço já votara. Deu-lhe a maior bronca:
"Você já votou. Quer votar outra vez? Quer fraudar a eleição?
Não sabe que votar duas vezes é crime? Posso prendê-lo em flagrante".
O pobre do eleitor saiu dali, murcho, frustrado, agradecido a
Deus de não ver o sol quadrado. À saída, um amigo lhe perguntou:
"Como é? Ainda conseguiu votar?".
Apontando, com o queixo, o interior da sessão eleitoral, respon-
deu, fulo da vida: "O pessoal votaram ... "
Na Pátria Velha, em Guaramiranga, o velho Chico Linhares, a
cada eleição, amargava um desgosto. Não obtinha, como outros chefes
políticos do interior, a consagração da unanimidade pros seus candida-
tos. Tudo por conta da teimosia, da birra dum tal Ismael Pordeus (não
era o historiador) que votava contra ele. Aconselhado por amigos, na
proximidade de certo pleito, convocou os préstimos de um certo Luizinho
Batista, catequista capaz de converter o incréu mais renitente. A ele
coube, assim, presidir a sessão eleitoral e mostrar, então, a validade de

93
seus métodos persuasivos. A sala estava repleta quando chegou Pordeus.
Chamado em voz alta pelo secretário, soltou o título sobre a mesa e foi
cascavilhar os bolsos, à procura dos óculos. Quando os encontrou, quan-
do os enganchou sobre o nariz, o título havia desaparecido. Foi a maior
discussão: "Deixei aqui. Não deixou. Alguém roubou. O senhor está me
chamando de ladrão? Me respeite. Não sou homem de duas conversas",
era o que se ouvia do bate-boca. E nada de reaparecer o título. Tudo
parecia resolvido quando o dissidente mete a mão no bolso da calça e
saca dele a segunda via do título de eleitor. Por esta, Luizinho não
esperava. Pálido de espanto, decepcionado, frustrado, só pôde estender
a mão à palmatória, murmurando:
"É, um homem prevenido vale por dois".

Em campanha, o candidato é o otimista profissional. Tem de


acreditar em suas possibilidades. Pra persuadir os outros. Se não está
convencido da própria vitória, como convencerá os eleitores?
Deu-se o caso que Vicente Gomes Parente, vulgo Pipiu, militan-
te político desde os tempos de Franco Rabelo, cansou de pedir votos
pros outros. E se perguntou:
"Por que não eu?"
A resposta foi o lançamento de sua candidatura a uma cadeira na
Câmara Municipal de Sobral.
A decisão foi calorosamente recebida pelos amigos. Pela família
numerosa e ilustre, então, nem se fala. Toda ela se comprometeu com o
candidato. Pra votar e não só isso, suar a camisa, trabalhar. Era natural
que, em pouco, se considerasse vitorioso, eleito. Os pré-vitoriosos são
generosos. Certo crepúsculo, depois de tantas homenagens colhidas na
rua, voltou pra casa e disse pra mulher:
"Estou eleito. E eleito folgadamente. Se você quiser, pode votar
naquele seu primo candidato, para ele não fazer feio nas urnas".
Veio a eleição. O primo ganhou. Pipiu só teve um voto: o seu.
Zé-de-Sales não era apenas aquela figura folclórica dos oficiais
de Justiça de Fortaleza: com unhas enormes feito o Zé-do-Caixão, pés
compridos, intermináveis, terno escuro, camisa clara, gravata roxa, cha-
péu de madeira compensada.
Era também um filósofo. O nosso Barão de Paranapiacaba ca-
beça chata. O Rochefoucauld cearense. Dizia: "Armador baixo é econo-

94
mia de corda. E urubu não come mato". Ou, então, sentenciava: "As
lagoas do Ceará não tomam água porque são propriedade privada"".
Além de frases, alimentava projetos, um deles encanar o vento
da serra de Maranguape pra amenizar o calor que fazia em Fortaleza.
Pra viabilizá-lo, urgia eleger-se vereador. Candidatou-se. Foi à luta. Gastou
a sola do sapato no centro e nos subúrbios. Percorreu toda a capital,
distritos inclusive. Uma canseira. Trabalhão de candidato a deputado
federal. Veio a eleição. A apuração. Ele todo apetrechado, aparelhado
para registrar a vitória, em detalhado mapa, com espaço para cada uma
das urnas de Fortaleza. Aconteceu, porém, o que não se podia prever. O
desastre. Os eleitores se esqueceram dele. Firme na apuração, Zé-de-
Sales não arredava pé de seu posto nem pra beber água. Ia anotando,
zero, zero, zero. Os mesários perguntavam-lhe, de brincadeira:
"Quer que some?"
Já eram duas horas da tarde. Nenhum voto lhe aparecera. Ele
firme, na vigília. Um amigo, olhando o mapa, pontilhado de decepções,
se ofereceu pra substituí-lo:
"Zé, vá almoçar. Enquanto você almoça, fico em seu lugar, ano-
tando os votos." E continuou escrevendo zeros no mapa.
Mais tarde quando lhe perguntavam pelo resultado do pleito, não
dava o braço a torcer. Respondia, contristado:
"Não tive nem 400 votos".
Não estava mentindo. De fato, não recebera quatrocentos votos.
Apenas 18. (17/01/93)

QUANDO IA SER DEPUTADO

Ocorreu-me em 1966 a aventura eleitoral. Repórter político,


pretendi passar de espectador a ator, a protagonista. Com a coragem e a
cara. Hão de querer saber por que não quis começar do começo, não
sonhei com uma cadeira na Assembléia Legislativa, na Câmara de Vere-
adores. Simplesmente, pelo medo da proximidade do eleitor, da pressão
da clientela miserável. Nada me aterrorizava mais que a perspectiva de
acordar com um louco amarrado à porta de casa, para eu internar de
qualquer maneira, e sabia que este era um dos desafios do cotidiano de
vereadores e deputados cearenses.

95
Obtive a mais calorosa solidariedade dos colegas de imprensa.
Deram-me notas simpáticas, elogios, torcida. Dois deles se encarrega-
ram.do livro de ouro, arrecadaram dinheiro para a campanha. Um outro,
Dorian Sampaio, no segundo mandato de deputado estadual, fez
dobradinha comigo, ele que, no pleito anterior, votara no homem mais
rico do Ceará, José Dias Macedo. Graças a seu prestígio, recebi votos
no interior, não, porém, o suficiente para me eleger.
Levou-me a Aracati. O que podíamos, porém, fazer ali contra
Abelardo Costa Lima, que continua a ser o dono das bolas e das camisas
e que, àquele tempo, disputava votos com outro descendente de família
tradicional, Ernesto Gurgel Valente?
Sem falar que integrávamos uma sigla maldita, o MDB, que
amedrontava o eleitor dos pequenos aglomerados urbanos. Aliamo-nos
a um enfermeiro, Mário della Rovere, líder populista que se dizia des-
cendente direto dum papa. Sei apenas que, no primeiro comício de que
participei, ousei denunciar:
"O Abelardo costuma dizer que não se incomoda com o que o
Dorian e o Lustosa falam. Acha que o povo do Aracati é como um
cachorrinho, que vai correndo se ele o chamar, estalando os dedos."
A coisa pegou. Pegou tanto que fui o candidato a deputado
federal mais votado na cidade.
É claro que nem tudo eram flores. Chegamos a um distrito
perdido cujo nome não resistiu ao olvido e não houve quem quisesse nos
acolher. Trepamos a um caixão de querosene e discursamos um pro
outro. Lembro-me de assim saudar o companheiro que havia sido expul-
so do programa de propaganda eleitoral gratuita na televisão porque se
metera a fazer gracinhas com as forças armadas, chamando-as de "Helenas
Rubinsteins da democracia": "Dorian Sampaio, pugilista da democracia,
boxeur da liberdade." Fomos e voltamos sem um aperto de mão de
qualquer dos moradores do lugarejo.
Dorian havia sido bem votado em Uruburetama, terra de Florinda
Bulcão. Levou-me lá com ele. Era praxe que os candidatos subissem a
serra, a cavalo. Há séculos, não montava. Tive de fazê-lo. A cavalgada
saiu da porta da casa de nosso candidato a prefeito, João Galdino. Eu,
candidato ao mandato mais importante na disputa, o de deputado federal,
não saí do lugar. O cavalo conhece o cavaleiro. O meu, ciente das
deficiências de quem o tentava guiar, empacara. Não havia jeito de fazê-

96
lo andar. Era situação que não se podia admitir. Dorian voltou pra mo
dizer. Fiz das tripas coração e usei o chicote. Galopamos. Medo era o
que não me faltava, mas o ginete não desconfiou. Rendeu-se e nos
emparelhamos ao restante da comitiva. Cada vez que o cavalo, numa
descida, pisava em falso, o coração queria-me sair pela boca. Quando
sua pata escorregava numa grota, numa loca, lá embaixo esperavam-me
as fauces aterradoras do abismo. Ia, porém, em frente, sonhando com
as paradas para descansar as partes mais sofridas do corpo, chupar laranjas
da serra, deitar no friozinho do chão de cimento do alpendre das casas.
No meio da subida, ocorreu-nos ir à casa do Gabrielzinho, influente
cabo eleitoral. No pleito anterior, não tivera qualquer problema em votar no
Macedo. Como Dorian mudara de parceiro - quanto mudara! - se desobrigou
de apoiar seu companheiro de chapa. Vendera os votos ao Wilmar Pontes.
(O Wilmar negociava a compra em termos estritamente monetá-
rios, sem qualquer concessão ao romantismo. Acertava, por exemplo, a
aquisição de votos pelo equivalente a cem mil dólares. Aí o cabo eleitoral
acrescentava um "porém". Queria saber das nomeações que ele arranjaria,
das posições estaduais, das verbas públicas que conseguiria. Wilmar,
então refazia tudo, poupando-se aborrecimentos:
"Ao invés de cem mil, dou-lhe duzentos mil dólares com a con-
dição de você nunca mais me procurar."
Não sei se as palavras eram estas. O que ele queria era resumir
o acordo a dinheiro e não ficar devendo qualquer obrigação política ao
cabo eleitoral e ao lugarejo que habitava.
Pois bem. Gabrielzinho nos recebeu meio sem jeito, desconfia-
do. Sentamos no alpendre, jogando conversa fora. Era um papo
descozido que não ia nem voltava, não saía do lugar. O que ele queria
era ver-nos pelas costas. Nós, porém, estávamos famintos. Não havia
onde comer nas redondezas. Dorian, desembaraçado, cobrou:
"Não se come nessa casa, não?"
O anfitrião explicou que não nos esperava, não o havíamos avi-
sado, não sabia que vínhamos almoçar. Estava desprevenido.
"Qualquer coisa serve", insistiu Dorian.
Gabrielzinho resmungou algo, a respeito duns preás.
"Que viessem os preás", rogou Dorian.
Cozidos, n'água e sal, por um ex-correligionário, sem nenhum
intento de agradar, imaginem como ficaram os preás!

97
Lembro-me de que, por baixo da modesta mesa de refeições,
havia intenso e desenvolto tráfego de cães e galinhas. Ainda quis encarar
o rato do mato. Não deu. O que fazer? Enquanto Dorian conversava
animadamente,joguei, com discrição, os bocados que me couberam, aos
pés, onde os cães domésticos os devoraram com valentia. Contentei-me
com pedaços de batata doce.
Só de mal, pra agravar meus padecimentos, de quando em vez
Dorian indagava:
"Está bom o preá, jornalista? Não se encabule, não. Mais um
pedacinho."
E tascava mais preá em meu prato.
Na volta, tentei descer de bicicleta. Foi pior, muito pior. Mais
arriscado. Afinal, não havia freios que agüentassem. O jeito foi, humil-
demente, voltar ao cavalo que, de longe, silencioso e zombeteiro, teste-
munhava minha rendição.
O bom e generoso povo de Uruburetama, berço de Florinda
Bulcão e de outras glórias cearenses, compreendeu a extensão de meu
holocausto hípico e procedeu, nas urnas, com justiça, ao ressarcimento
de minhas angústias, meus penares e minhas assaduras.

FOI HÁ VINTE ANOS

Ainda não era democracia. Tanto assim que fuzilavam


comunistas, a torto e a direito. "Suicidavam" presos políticos. Retornara,
contudo, a liberdade de imprensa. E já se podia, também, falar contra a
ditadura militar em praça pública. Por isso, para ajudar a restauração da
democracia, há vinte anos, aceitei ser candidato a suplente de senador
pelo MDB. O candidato era Chagas Vasconcelos, orador de uma espécie
de populismo rural, que trocara a reeleição certa à Assembléia, pela
aventura cívica. Manteve-se, durante a campanha, com imperturbável
bom humor, lembrando, em todas as reuniões, sua Santana do Acaraú e
prometendo cantar no comício de encerramento da campanha, realizado
em Maranguape, o que, realmente, fez.
"Isso rende?" me perguntou um pragmático. Nada. Era apenas
o exercício da cidadania. Abrir a boca e os pulmões pelo que achava
causa justa, a volta da democracia. Sabia que não íamos, não podíamos

98
ganhar. Deixei-me levar pelo fascínio das causas perdidas, capricho que
não abandonei de todo.
Achando que abafava, dirigi logo telegrama ao patrão, Júlio
Mesquita Neto, anunciando o feito. Não sabia que a luta pela liberdade
era privilégio do dono. Como resposta, veio ordem para demissão imedi-
ata de O Estado de S. Paulo, que Carlos Chagas, meu superior imediato,
contornou, com habilidade mineira. Continuei no batente. E só nos fins
de semana, rumava para a campanha.
Pegava então a camioneta Alvorada, do Nenen, amigo de Cha-
gas Vasconcelos, e ganhava o sertão.
Em Poranga, num comício friorento pela manhã, uma
professorinha, carinhosamente, entoou "Parabéns para você". Estava
eu chegando aos quarenta anos.
Durante o comício de Sobral, na praça Dr. José Saboya, o sau-
doso Paulino Rocha anunciou o nascimento de minha filha, Sara, naque-
la tarde. E a nova brasileira foi saudada com palmas da multidão.
Em discurso no Mucuripe, mandei brasa no governo, com vee-
mência. Surpreso, Paes de Andrade telefonou para colegas de bancada
em Brasília anunciando: "Temos um novo Chico Pinto: o Lustosa". Chico
havia sido cassado pela veemência (muito justa) com que condenou o
facínora Augusto Pinochet.

Falamos à multidão naquela Praça da Matriz de Viçosa do Ceará.


Na mesma noite, teríamos de ir a outro comício em Tianguá. Pediram-
me ir à frente para segurar o povo. Não o deixar dispersar-se. Fui em
frente e foi aquela pauleira. À época, a revista alemã Der Spiegel falara
de possível crime de corrupção do todo-poderoso ministro Golbery do
Couto e Silva e era sobre isso que falava quando chegou Chagas
Vasconcelos. Que brincou: "Aqui em Tianguáestarevistaé muito lida".

Ao saber da contundência de minhas falas, o secretário do


presidente Figueiredo, Heitor de Aquino, mostrou surpresa: "Mas o
Lustosa nos trata tão bem aqui". De fato, quando ouvia, em Brasília,
por dever profissional, os homens do governo, eu não lhes
desfechava tiros nem lhes disparava libelos. Comunicava-me com
a urbanidade necessária.

99
O bom humor não nos abandonou jamais. Nem sequer quando
Chagas nos levou a Miraíma e Cruxati, então remotos distritos de Itapipoca,
de acesso poeirento, em precárias estradas de piçarra. Para espancar o
sono, terminávamos entoando hinos religiosos. E estando Mauro
Benevides a bordo, bem se vê que a coisa era séria:

"No céu, no céu


Na santa glória um dia,
Com a Virgem Maria,
No céu. no céu com minha mãe estarei..."
Mauro cobrava:
"Dr. Lustosa, a segunda voz."

Não me lembro de jamais haver encontrado esta segunda voz,


que ficava por conta do Chagas, do Barros Pinho, do Carlos
Vasconcelos. Talvez do Paes de Andrade. Ou não? Porque Paes
preferia, com voz empastada, recitar-nos página inteira de Eça de
Queiroz, sobre um dos milagres de Jesus. Ou então as frases finais de
O Crime do Padre Amaro. Às vezes, nos entretínhamos em debates
sobre o autor de Os Maias. Mauro, depois, intervinha para mostrar
quão afinado era com Os Lusíadas, com Luís Vaz de Camões. Chagas
brandia sonetos do pe. Antônio Tomaz. Creio que o poeta Barros
Pinho atirava com a própria pólvora. Noite alta, céu risonho, cabelos
brancos do pó da estrada, famintos, encaramos um resto de multidão
sonolenta (ou apática?) para a qual discursamos, e, depois, um capote
(galinha d' Angola), preparado com carinho, mas frio, gelado pelo atraso
do comício, pelo adiantado da hora.
E o Chagas: "Vou terminar derrotado e viciado em conhaque".
Terminou o comício em Maranguape, cantando.
Durante toda a caminhada, fazia piada:
"Depois dessa campanha, fico desempregado e viciado em
conhaque". É que, às vezes, afinava a garganta com um drinque. E não
tinha ilusões quanto ao resultado da eleição.
Que ano maravilhoso! A sensação de estar dizendo a verdade,
correndo risco para denunciar a ditadura. Verdadeira psicoterapia de
multidão a que me submeti. Não há dinheiro que pague o prazer que
experimentei.

100
É claro, depois de haver haurido "a poeira balsâmica de nossas
estradas" - para usar expressão do Dorian Sampaio -, peguei o restinho
das férias e me mandei a Paris, a fim de consumir o pato numerado de
"La Tour d 'Argent".

IN ILLO TEMPORE

A cidade, que amo e de que falo tanto, não mais existe a não ser na
recriação de minha nostalgia. A geografia mudou. Já não há mais centro da
cidade, reunindo o governo, a prefeitura, a Catedral da Sé e o comércio.
Tudo se dispersou. Também as pessoas se espalharam, emigraram ou já
foram estudar a geologia do campo santo. O que remanesce são fragmentos
dispersos que vamos juntando, segundo nossas próprias e saudosas carências.
Passeio, sozinho, pelo antigo centro, pela Praça do Ferreira,
pelo antigo "quarteirão de sucesso" da cidade. Não mais encontro aquelas
personagens que o povoavam e coloriam, paquerando. Ou batendo
papo, o pé encostado à parede das lojas, dos cafés, das livrarias. Não
acho quem procuro. Talvez por isso mesmo reveja Fortaleza com os
olhos da saudade e busque o reencontro nas coisas de ontem Como os
outros nos vêem.
Como diz a velha canção: "É no espelho do meu quarto e no
olhar das mulheres que vejo a minha idade". Sempre penso comigo
mesmo quando vejo uma contemporânea e a acho tão acabadinha, tão
envelhecida: "O que será que ela está pensando de mim?" Mas não são
apenas as mulheres que nos enxergam, com os anos que temos. Os
marmanjos, também.
Algum tempo atrás marquei encontro com um amigo, à porta
do antigo Iracema Plaza Hotel. Ele atrasou-se e precisei partir. Ao chegar,
depois da hora, indagou do porteiro por mim. Sabem a resposta do
maldito?
"Era um senhor gordo, de óculos e de cabelos brancos?"
Fora assim que ele me vira.
Ou então acontece que você deixa um aparelho de som pra
consertar. No dia seguinte, telefona pro técnico para saber do resultado:
"Sou aquele rapaz que esteve ontem de manhã aí e deixou um
som pra consertar."

101
Há um silêncio embaraçoso do outro lado do fio, até que o técni-
co põe ordem no raciocínio e os pingos nos ii:
"Rapaz, não. Quem esteve aqui foi um senhor gordo, de óculos,
cabeça quase toda branca."
Pedro Nava costumava dizer que o primeiro sinal de que você
está envelhecendo consiste em achar os contemporâneos velhos. Quan-
do encontro aquele colega e o acho tão chochinho, tão envelhecido, na
iminência de virar sexagenário, logo me dou conta de que somos da
mesma idade e vou ao espelho em busca de consolação ou sofrimento.
É como sempre digo. O mesmo acontece às mulheres de nosso
tempo, as desejadas, as tesudas de trinta e tantos anos atrás. Tanto as
que nos deram bolas e nós, aí, pensamos, como pude querer tanto a
titular de tanto pé-de-galinha, daquelas pelancas, aquela flacidez? Quan-
to as que nos esnobaram, vingamo-nos em pensamento: pra que aquela
pose toda, tanto orgulho, para terminar - aliás nem terminar, pois é só
depois do meio-dia - no estado em que se encontram? Bem feito.
Não nos acontece, como disse no comecinho, refletir sobre o
que elas, eventualmente, estão achando de nós. Aí só me ocorre aquela
história cruel, atribuída ao padre Pita, ao final de sermão sobre a vaidade
humana. Depois de esbravejar contra tal pecado, o santo e riquíssimo
pastor pretendeu fulanizar, personalizar sua fala numa das senhoras pre-
sentes à missa na Igreja de Santa Filomena. Voltando-se para os fiéis
presentes, convocou uma das senhoras que havia sido miss, na década
de trinta, a se levantar:
"Dona Ivone, apresente-se."
Ela se adiantou e ele começou a expor sua tese da vaidade humana:
"Taqui, dona Ivone. Foi Miss Ceará. Foi considerada a mulher
mais bela do Estado. Foi fotografada para a revista O Cruzeiro Foi
desejada pelos homens. Invejada pelas mulheres. Agora prestem atenção
a este caquinho, ao estado a que ficou reduzida."

102
QUANTO ME FALTOU

Hão de perguntar porque, tendo sido o candidato mais votado do


MDB na capital e tendo recebido tantos votos em Aracati e Uruburetama,
não fui eleito. Respondo já.
Candidato pobre não se elege no Nordeste. Pois bem. Meses
depois, estava no Rio, num lindo sábado de sol, bebericando meu gim
com água tônica, na pérgula do Copacabana Palace, com o jornalista
Orlandino Rocha, de O Cruzeiro. Ao ouvir minha história, ele quis saber:
"De quantos votos precisavas para ser eleito?"
Respondi no ato:
"De quinze milhões de cruzeiros."
Se tivesse aquele dinheiro para comover "colégios" eleitorais,
dominados por sobas do interior, a história seria outra.

CADERNO DO REPÓRTER POLÍTICO

Não posso passar diante do velho prédio da Assembléia Legislativa


do Ceará, sem me deixar assaltar por fundas nostalgias de meus primeiros
tempos de repórter político. Como já contei, o secretário de Unitário,
Felizardo Montalveme, estava de mal com o Oscar Pacheco Passos,
circunspecto comentarista do Correio do Ceará, também jornal da cadeia
"associada". Suponho que, por isso, me deu a maior força em seu jornal,
fazendo-me titular da coluna "Resenha Política". Diz-me a consciência
e o Lúcio Brasileiro tem a bondade de o registrar, de quando em vez, que
não me saí, de todo mal, da empreitada.
Como sempre gostei de velhos, logo deles me fiz aceito. Adora-
va ouvir histórias de Filemon Teles, ricaço do Crato, sempre elegante-
mente vestido de branco, de permanente bom humor, contemporâneo
das polacas no Rio e do esplendor da libra esterlina. Do "tenente" Edson
da Mota Correia, revolucionário de 1930. De Guilherme Gouveia, matuto
rico da Granja, em cuja residência todos haviam lido Eça de Queiroz,
que, na tribuna da Casa, nervoso, atropelava as palavras e o próprio
discurso. Morreu pobre. Precisou do seguro social do emprego público
para sobreviver, no final de honrada existência. De Barros dos Santos,
sarcástico, duro, sempre de temo branco impecavelmente passado, com

103
o qual, se dizia, passava toda a semana. Uma vez, contrariando os
hábitos caseiros, aceitou convite para jantar no restô do Ideal, em minha
companhia. Não deu certo porque um colega bêbado e ressentido invadiu
nossa mesa e passou o tempo todo agredindo meu convidado. Nesse
tempo, cheguei ainda a ser amigo do Valdemar Alcântara, um dos "cardeais"
do PSD, o que foi considerado uma façanha, àquele tempo, porque o
austero homem público tinha cara fechada e nenhuma preocupação de
agradar. Na intimidade, era bom papo, irônico, bem- humorado.
Quem me municiava a coluna, cedinho, era o telefonema de
Wilson Roriz, líder do governo, um político de muito faro para assuntos
polêmicos, defensor da criação do Estado do Cariri. De tarde, ia conferir
suas informações com as dos udenistas Barros dos Santos, Edson da
Mota Correia, Guilherme Gouveia, Filemon Teles, José Napoleão, Moa-
cir Aguiar, Edival Távora, Cincinato Furtado Leite, Aquiles Peres Mota,
do pessepista Pontes Neto, do republicano Péricles Moreira da Rocha,
do integralista Pio Sampaio.
De noite, assinava o ponto no restô do Ideal. A bancada da UDN,
na oposição ao governo Parsifal Barroso, circulava pouco. Quem muito
aparecia, nos restôs do Náutico e do Ideal, eram os pessedistas, Vicente
Augusto, ainda hoje muito encontradiço no último, Stênio Dantas, Ernâni
Viana, Murilo Aguiar que, depois dos segundos drinques, começava a tocar
violino imaginário ou cantava comigo cânticos religiosos. Era preciso ouvir-
nos, na madrugada, encharcados de uísque e de Drambuie, cantando:
"No céu, no céu, com minha mãe estarei/ na santa glória um dia..."
Ou então: "A 13 de maio, na Cova da Iria/ Nos céus aparece a
Virgem Maria".

No Ideal, quem passava sempre apressado, ninguém sabia por-


quê nem pra quê, vindo do cassino, era Péricles Moreira da Rocha, líder
do Partido Republicano que sonhava ser prefeito da capital. Como o
fora, oito anos, o irmão Acrísio que, às vezes, também descia de lá para
conversar conosco, gostava de lembrar os tempos em que fora atleta,
jogador de futebol, queria lhe apalpássemos os músculos, para que vís-
semos o quanto ainda eram rijos. "Pekin", a certa altura, proclamava-se
convencido da vitória: "Se for só este pessoal, Murilo Borges, Moura
Beleza, Zé Cláudio, Mário de Assis, estou eleito. Só perco se aparecer
algum japonês, algo assim totalmente diferente." Não foi nenhum orien-

104
tal que desbaratou seu populismo, e, sim, um general, de oratória modes-
ta, Murilo Borges, vitorioso nas urnas daqueles tempos de excitação
esquerdista. Ele substituiria, no posto, outro militar, o general Cordeiro
Neto, que, na ditadura do Estado Novo, instituíra a "lata", trabalhos
forçados para presos, em construções do governo.
O jornalista Temístocles de Castro e Silva, homem forte do
governo, chegava mais tarde e sempre mandava abrir mais um litro de
bom "scotch" para matar a sede dos colegas menos afortunados.

No plenário da velha Assembléia, ouvi, estarrecido, um deputa-


do defender, com a cara mais lisa do mundo, o veto que o governador
Parsifal Barroso apusera a projeto de sua autoria, devidamente aprova-
do, graças a seu empenho. Verdadeiro filicídio.

Na casa, havia o grupo de deputados chamados "independen-


tes", que vivia de chantagear o Governo, a cada votação importante,
exigindo empregos, arame farpado, carros oficiais, até dinheiro. A coisa
era tão escandalosa que incomodou minha proverbial tolerância com os
erros alheios. Um de seus integrantes, homem de maus bofes e boa
pontaria, ficou fulo da vida com minhas críticas e subiu à tribuna da
Assembléia para dizer que ia me fazer engolir o jornal.
(Felizmente, a esse tempo, ainda não trabalhava no "Estadão"...).
Não tive dúvidas. Saí dali direto para a redação da Ceará Rádio Clube, onde
me esbaldei, em carta endereçada ao presidente da Casa, Franklin Chaves.
Levei a ameaça na troça. Denunciei o autor da ameaça como querendo me
matar, tal a quantidade de toxinas de tinta usada na impressão do jornal.
Disse, ainda, que, desde criança, perdera o medo de alma quando tomei o
lençol de uma ama que me pretendera assustar. Depois fui ao encontro de
Dorian Sampaio, para lhe dizer que tinha medo, é certo. Mas jamais poderia
deixar de ir à Assembléia, dia seguinte. Se deixasse de ir, nunca mais teria
condições de botar os pés ali. Ele me emprestou o revólver, o que me deu
certa segurança. Andei um ano com aquele trambolho, à cintura. O que
faria mesmo com ele, no caso de ser agredido? O pior é que, à noite, ao
entrar no W.C. do restô do Ideal, deparei-me com o valentão. Não dava,
não deu pra recuar. Fui à sessão da Assembléia, dia seguinte, sem alterar a
rotina. Estou, aqui, vivo pra contar a história. Ele já morreu. E não devia
ter a boa pontaria de que se gabava. Vi-o, poucos anos depois, desferir cinco

105
tiros seguidos, do plenário, sobre um deputado que ocupava a tribuna e que,
providencialmente, se agachou, sem ser atingido.

Existia refinamento literário no mundo político. A esse tempo,


na residência do governador Parsifal Barroso, reuniam-se amigos, auxili-
ares, cortesãos em animada roda de conversa. Numa certa noite, houve
verdadeira tertúlia literária a que estavam presentes os secretários de
Estado, Paes de Andrade, Figueiredo Correia e o general José Góis de
Campos Barros, todos fazendo de conta de que ainda não sabiam que
seriam exonerados, dia seguinte. Rezam outras versões que somente o
general Góis tinha certeza de que seria demitido. Tanto que, a horas tais,
declamou poesia, relativa à traição de Judas, ante o anfitrião. Quando
amanheceu o dia seguinte, estavam os três no olho da ma.
O recrutamento de funcionárias do Legislativo se fazia pelos
melhores critérios estéticos. Tanto assim que ali tive três namoradas.
A primeira, uma lady, refinada companhia que me honrou em alguns
acontecimentos sociais a que estivemos presentes. A outra nem tanto.
Tratava-se, porém, de menina boníssima. Noiva de outro, dona, porém,
dum coração amplo, capaz de abrigar nós dois confortavelmente. Já a
terceira suculenta senhora, de grandes olhos úmidos, cheios de delicioso
e sensual espanto. Vivia muitos amores, apesar das limitações do códi-
go. Além disso, acha tempo pra ser uma artista, uma literata. Ou
pensam vocês que nossos encontros, nos altos do Jalcy Avenida, eram
só matéria, sexo, volúpia? Se pensaram, estão muito enganados. Ela
levava, na bolsa, caderno de espiral em que anotava poesias alheias de
que se agradara e as que perpetrara e me fazia ouvir, nos intervalos.
Senhora de má memória, no entanto. Digo isso e provo. Anos
depois, ao revê-la, nas escadarias do novo prédio da Assembléia, percebi que
não mais sabia meu nome. Trocou-o por outro, o que me deixou mortalmente
humilhado. Quedei murcho de decepção. Teria o outro protagonizado alguns
daqueles saraus eróticos? Foi o que primeiro me ocorreu. Depois, modesto,
perguntei a meus botões: meu desempenho terá sido tão pálido que ela
olvidou o parceiro? E olhem que vivia eu meus fogosos vinte e poucos
anos. Hoje, na quietação dos cinqüenta, não tenho mais meios eficazes de
lhe reavivar a memória. Acho, porém, que a generosa senhora devia, de
quando em vez, pelo menos dar uma olhadela em seu fichário, para não
esquecer o nome dos parceiros dantanho. ( outubro de 1988)

106
GARANTIA DE FIDELIDADE

Maria Helena foi namoro, cheio de sobressaltos, à sombra das


mangueiras da praça do Aeroporto Pinto Martins, do qual já falei aqui.
Eu, solteiro de segunda mão. Ela, filha de professora que, em sonetos
bissextos, exaltava a pureza dos lírios e condenava a lascívia das rosas.
Não podia dar certo. Não deu. Antes, porém, que a dura realidade mo
mostrasse, investi tudo naquele amor que me trazia, desassossegado e
em festa, o coração. Até que, um dia, ela me trocou por um solteiro de
fato. No domingo, vi-a na praia, aninhada nas pernas do aviador que a
paquerava. Ela, com quem na sexta trocara beijos tórridos. Doeu, como
doeu. Vocês pensam que fui inglês, tive fleugma e comportamento dig-
no? Nada. Não tive a menor classe. Do telefone do restô do Ideal passei
recibo, esbravejei, insultei, agredi, de puro despeito e total frustração.
A moça casou. Até que, um dia, ainda morava em Fortaleza com
o marido, me telefonou. Não sei pra quê, a propósito de quê. Não entendi
nem me esforcei por isso. Depois se mudou. Deixei de pensar nela.
Supunha-a muito feliz, assistindo, em casa, às novelas das seis, à espera
do escolhido. Enganei-me. Não era. Um dia voltou. Direto pros meus
braços, morta de arrependida de não haver casado comigo. De sua
cegueira na época. De seu erro irreparável. Era o que me dizia e com tal
convicção que me senti o escolhido dela e de Deus praquele resgate. O
único, é claro. Aquele com quem, de fato, devia ter casado.
Por acaso, lhe caiu da bolsa a agenda telefônica. Confesso, olhei-
a. Meu nome estava ali, não o nego. Meninos, eu vi. Ao lado, no entanto,
de outros amores dos tempos em que o namoro esbarrava em certos
limites. Fiquei sem saber se começara por mim ou por mim terminara a
revisitação da leal menina aos antigos fãs.
Uma tarde - quando, sinceramente, se lamentava de não haver
casado comigo - ficou patente, mesmo que não o disséssemos com pala-
vras, que, a esta altura do campeonato, se fosse possível rever a Histó-
ria, reescrever o passado, eu estaria com ela. Seria seu marido. Talvez
ricamente ornamentado. Ela, rapidamente, se deu conta da situação tal
como se afigurava, no momento, e inteligente como era, garantiu:
"Se eu tivesse casado contigo, não te trairia, não."
É claro que não. Concordei porque sou bom e esta bondade
consiste, em certos casos, em não discordar das mulheres, mesmo da-

107
quelas a quem um só marido é muito pouco porque amor demais têm pra
dar. Maria Helena estava tentada a reescrever sua biografia, a mudar a
História, ou somente a nossa História. Por que não o fazer, por inteiro?
Tomei resolução. Aceitei-a tal como então se propunha: minha, somente
minha, na revisão conveniente do pretérito.

EMPREGO PÚBLICO NO CEARÁ

Conta o incorrigível blagueur monsenhor Quinderé que João


Felipe, ainda moço e pobre, chegou ao Rio, com carta do coronel Bizerril
Fontenelle pro marechal Floriano Peixoto, pedindo emprego de enge-
nheiro. Depois de ler a correspondência, o presidente disse ao portador
não haver vaga. Ante seu ar desconsolado, refletiu um pouco e decidiu:
"Vou nomeá-lo Ministro da Viação. O lugar está vago". Dito e feito. João
Felipe se houve tão bem que veio a se tomar uma das glórias da enge-
nharia nacional.
Tempos depois, o condestável da República era Pinheiro Ma-
chado. Presidente do Senado, pintava e bordava. Era o dono da bola e
das camisas, principalmente nos tempos em que o viúvo, Hermes da
Fonseca, se consolava da perda da mulher, nos braços da jovem Nair de
Teffé. Um senador, fã de Ruy Barbosa, se espantava, certa vez, na
Câmara Alta, que um analfabeto, um chucro, que não sabia nem colocar
os pronomes, tivesse tanta força. Um colega lhe lembrou:
"Ele pode não empregar bem os pronomes, mas emprega muito
bem os sujeitos".
Era fim de governo no Ceará. O PSD perdera, devendo ceder o
poleiro à UDN. A cada revezamento, era hábito, àquela época, criar
empregos para amparar os amigos. As leis eram boladas, cuidadosamen-
te, para que não houvesse desvios, nem traições. Quase continham o
retrato 3x4 dos beneficiários. Estava em gestação um desses "inventári-
os" na Assembléia Legislativa do Estado. Numa sala discreta, cardeais
do PSD e da UDN faziam os últimos cálculos, os derradeiros acertos pra
que não se registrassem furos. Nem preterições. Tudo muito justo,
verdadeiramente eqüànime.
Um deputado, renomado professor, vestal na Assembléia, não
fora aquinhoado. Jamais aceitaria participar da operação. Temia-se que o

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fervoroso e ativo moralista, se soubesse da conspirata, botasse a boca no
trombone, pusesse tudo a perder. Como, nestes e noutros casos, pinta
sempre um espírito de porco, alguém o informou de que se tramava. Ele
nem hesitou. Apesar de acidentado, pulou do leito, pegou as muletas e se
mandou pro velho prédio da Assembléia. Ali, ao preço de muito sacrifício,
galgou os dois lances da íngreme escada. Fremente de indignação,
empurrou a porta do gabinete da conspiração e, dali mesmo, bradou:
"Celerados! Celerados!"
(A esse tempo, ainda se usava a palavra celerado).
Os outros se voltaram, surpresos, encabulados. Baixaram a ca-
beça. Não esperavam jamais a interrupção, tal o estado de saúde do
puritano, que era grave, menos grave, porém, que seu amor de pai.
Ele, aos berros, prosseguiu na condenação:
"Celerados. Vocês são iguais a ladrões públicos. Num Estado
arrasado, como no Ceará, ainda criam empregos milionários, arruinando
as finanças". Depois de concluir o inflamado sermão aos colegas silenci-
osos, com a sensação do dever cumprido, foi refazer-se da emoção no
cafezinho. Logo chegou ao mesmo local-dos inventariantes, esperta ra-
posa da UDN, o Zé Napoleão, que, depois de reclamar um cafezinho,
sem olhar pra ele, murmurou:
"Ingrato".
Como a vestal se voltasse, o "inventariante", ainda fitando um
ponto à frente, não o interlocutor, prosseguiu:
" Você é um ingrato, Renato".
Ante a curiosidade do outro, agora o fitou, para explicar:
"Enquanto você estava no hospital, sem poder se locomover,
seus colegas aqui se preocupavam com você. Até já haviam proposto a
criação de um lugar de taquígrafo pro seu menino, o Antônio."
O puritano soltou a xícara sobre o pires e ponderou:
"Mas o Antônio não sabe taquigrafia".
"Besteira", atalhou o outro. E o tranqüilizou:
"Aprende! Ora, um menino inteligente como ele".
Vergado ao peso do amor paternal, a vestal se rendeu.
Graças à sua compreensão, os quadros da Assembléia ganharam
taquígrafo operoso e competente.

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UM QUARTO DE SÉCULO

Vai, aqui, o que quis dizer, no Othon, aos diplomados de 1962


pela Faculdade de Direito do Ceará e não pude, seja por causa do uísque,
que já me engrolava a voz, seja pelo microfone, que não a reproduzia.
Pois é, vinha no avião, com a prole, quando Sara me indagou:
"Pai, como é que tu vais comemorar vinte e cinco anos de advogado, se
não és advogado?"
Realmente, sou um estranho no ninho. Cursei Direito, apenas
porque não havia boa faculdade de Literatura ou de Ciências Sociais, na
época. E porque queria ser procurador de autarquia, emprego de marajá,
à época, o que fui, logo depois que concluí o curso. Por isso, fiquei até
encabulado com a nota do Edilmar Norões, falando da turma de 1962
como do Lustosa da Costa. Afinal, cumpri o curso na escadaria da velha
faculdade,já apaixonado pelas mulheres e pelo jornalismo político. Graças
a Deus, não pus a perder causa de ninguém. Isso já me conforta.

Época

Somos do tempo em que camisa-de-vênus era palavrão. O único


veado famoso da cidade era pobre. Era o Zé-Tatá, sobralense, dono de
bordel e conhecido por sua valentia pessoal. Não havia pílula nem motel.
Esperávamos, à calçada do Cine Diogo - onde só se podia entrar de paletó -
o desfolhar das muitas anáguas em que se escondia o corpo feminino. A
nudez ainda era de causar o deslumbramento de Manuel Bandeira. Por isso,
era o tempo da brecha, no pé de escada do Anexo da faculdade, onde
ficavam alguns voyeurs, de olho nas pernas das colegas. Havia, ainda, muitas
pensões alegres nas ruas centrais, onde as meninas dançavam com os fregueses,
antes e depois de atendê-los. A Margô, freqüentada por desembargadores e
até por João Goulart, como vice-presidente da República, ficava no subúrbio.
Aos domingos, poucos iam à praia. O chique mesmo era freqüentar as
chamadas tertúlias dançantes dos clubes grã-finos, de paletó.

Tempo

Os formados de 1962 comemoraram 25 anos. Aliás, trinta de


conhecimento, de convivência. Estava eu mui conformado com a data.

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Na missa, o padre Gotardo falou de um quarto de século. Era comigo.
Doeu. Doeu, sim, porque você agüenta vinte e cinco anos. Agora, um
quarto de século pesa sobre você como um rochedo.

Os vitoriosos

As festas de reencontro são cruéis por quanto excludentes. Reú-


nem os vencedores, cada qual a conferir seus troféus com os dos outros.
Não comparecem aqueles a quem a vida não sorriu, os que ficaram pela
estrada e, naturalmente, os que a parcajá convocou. É duro, porque injusto.

Virgens

Àquele tempo, só se assistia às aulas de paletó. Fumar em clas-


se, nem pensar. As colegas eram geralmente virgens. Algumas, mais
avançadas, sofriam a sanção da maledicência e do assédio redobrado dos
rapazes. Se fora de um, tinha de ser de todos. Os homens viviam as
contradições do machismo nordestino. Forcejavam para que as namora-
das não mais fossem virgens. Quando o conseguiam, delas se despedi-
am, com freqüência, depreciando-as. Apaixonados por alguma colega
mais moderna, de cuja condição usufruíam, enciumavam-se de não te-
rem sido pioneiros. Tão complicado era o universo masculino nordesti-
no. O amor era difícil àquele tempo. Como tínhamos a saúde dos vinte e
poucos anos, amávamo-nos onde podíamos. Junto aos muros, atrás de
igrejas, nos táxis, até em salas de cinema e elevadores. Nossos verdes
anos e a compreensão das parceiras compensavam a falta de motéis. A
natureza, às vezes, pregava peças. Ah! A incerteza, o medo e a angústia
de recorrer aos fazedores de anjos.

REPETIR

Houve quem propusesse amiudar os encontros. Reunir a turma


todo o ano. Não sei se será possível. Falou-se, porém, na festa dos
próximos vinte anos e Celeste propôs que se realizasse no andar térreo.
Provavelmente, não iríamos querer enfrentar tantos lances da escada,
como agora. Farei o possível para estar presente. Vou me empenhar, em

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primeiro lugar, em estar vivo. Depois, em me manter em condições de
vir, pelos meus próprios pés. Foi bom o reencontro. Rir, cantar, dançar,
jogar bolinhas de papel nos outros, restituídos, por instantes, só por
instantes, à atmosfera e à convivência de um quarto de século atrás. De
tudo, resta uma certeza vulgar: já tive 25 anos. E era bom. Nunca mais
terei de novo 25 anos e é uma pena. Há pouco, porém, que extrair o
possível do iminente cinqüentenário.

VINTE E CINCO ANOS DEPOIS

Uma das decisões de que mais me orgulho foi haver aceito o


desafio de Dorian Sampaio para ressuscitarmos, juntos, o Anuário do
Ceará. Ele acabava de ter seu mandato e seus direitos políticos cassados
e eu fora estrepitosamente demitido do posto de Editor-Chefe do Unitário
e do Correio do Ceará. O empreendimento surgiu como um desafio,
numa hora difícil.
Apesar das condições adversas, conseguimos reunir, num mutirão
de boa vontade, o então governador César Cais, que nos instou e muito
nos ajudou a melhorar a qualidade material da obra; empresários que nos
forneceram elementos sobre suas empresas; e historiadores que, direta
ou indiretamente, nos municiaram de dados.
Do ponto de vista pessoal, foi tarefa prazerosa. Enquanto tra-
balhamos no livro, ganhei rico dinheirinho que me permitiu passar, todo
o ano, dois meses na Europa, e contraí o gosto pelo estudo da História
do Ceará. Melhorei, em muito, meu conhecimento da economia da
terra. Cada vez que folheio aqueles exemplares, dou-lhes mais valor.
Eles são e serão sempre referência inescapável a quem pretender escrever
a história administrativa e empresarial do Estado. Tenho certeza de que
a edição de 1973, de mais de novecentas páginas, ainda vai ser reco-
nhecida por nossos pesquisadores. Foi aquela em que mais me empenhei
porque, sem avisar ao sócio, decidira morar em Paris. E a equipe?
Tudo gente do nível dum Milton Dias, F. S. Nascimento, Guilherme
Neto, Marcelo Costa, Gilmar de Carvalho, Ângela Borges, Roberto
Aurélio, Ricardo Rodrigues.
O duro, naquele tempo, era o problema da impressão. Como me
irritava o Luiz Esteves com sua mesa apinhada de provas tipográficas,

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fotografias, faturas, encomendas, dois telefones pendurados no pescoço,
administrando o caos na mais perfeita lucidez!
Vinte e cinco anos depois, registro: ele tanto demorava a entregar
quanto a cobrar. E, afinal, bancou o empreendimento. Confiou em nós.
Não lhe demos um só níquel adiantado, inclusive porque não tínhamos.
Bom e correto Luiz Esteves, que Deus o conserve por muitos e muitos
anos, com suas pilhas de provas, papéis, seus inúmeros telefones e seu
inalterável bom humor!
Paris, abril de 1995.

A PRAIA DE IRACEMA

Quem for a Fortaleza não pode deixar de dar um pulinho na


Praia de Iracema. Por mais que conheça a cidade e o próprio local,
vai ter uma surpresa. Pra melhor. Ela está linda. Muito mais do que
antes. Perdeu o Lido. Ganhou um espigão. Não tem mais o Panela.
Surgiram, contudo, dezenas de outros restaurantes. Conheço alguns.
Se você for saudosista, dê uma voltinha pelo Estoril onde não
encontrará ninguém conhecido. A não ser, os seus, os meus fantasmas.
Se a saudade for renitente, pare pra tomar uma cervejinha. Geralmente,
ela vem quente. Pra comer ostras, o lugar certo é a Praia dos Meus
Amores, do Getty's, da saudosa Sandra Gentil. Se estiver a fim de
encarar uísque de boa procedência, passe no La Bohême, de Ignês
Fiúza. Vá, ali, às segundas, pra ver a turba passar, os mais animados
que vão curtir O Pirata.
Curta, pelo menos, um pôr de sol na Ponte Metálica. Passeie,
depois, por aquelas ruas de nomes de índios, dos bravios antepassados,
com seu casario antigo pintado de novo. Vá bater pernas, sem pressa,
mãos no bolso, ar basbaque de turista, pelo seu calçadão, ouvindo o
bramir do oceano contra o quebra-mar, o paredão de pedra que pretende
contê-lo, ameaçar-lhe a liberdade.
A primeira vez que fui à Praia de Iracema, não me lembro. Só
sei porque me contaram. Devia ter de três para quatro anos de idade.
Meu avô, o "major Piano", Crispiniano Figueiredo Lustosa, viera de
Cajazeiras, na Paraíba, onde nasci, com tio Antônio. Fomos todos jantar
no Ramon que não existe mais, há muito tempo. Sem que seu "Costa" e

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Dona Dolores percebessem, Antônio me pôs nas mãos um copo de
cerveja que entornei, gostosamente. Aí não parei mais.
Adolescente, recém-chegado de Sobral, ia, às vezes, ao Tony's
Bar, do gordo e pachorrento Figueiredão, vizinho ao extinto lracema
Plaza Hotel. Não posso esquecer certa manhã de domingo em que a
orquestra tocava alto, muito alto, "Esmeralda"", história de tremenda dor
de cotovelo. Praguejava o perdedor:

"Vestida de noiva, com véu e grinalda


Lá vai Esmeralda casar na igreja
Deus queira que os anjos não cantem pra ela
E na capela seu vigário não esteja."

Logo que entrei no jornalismo, tornei-me amigo de Lúcio Brasi-


leiro, privilégio de que continuo a desfrutar. Saíamos, juntos, quase todas
as noites. Não havia muitas opções. O principal, quase disse o único,
restaurante da cidade era o Lido, do Charles d'Eva, situado em frente ao
prédio do Iracema Plaza Hotel, entrando no mar com suas paredes
açoitadas infatigavelmente pelo oceano exasperado. Foi onde aprendi a
comer ostras frescas e participei de almoço que o Brasileiro ofereceu ao
pintor Antônio Bandeira, então morando em Paris.
Marcamos encontro ali, certa noite de domingo. Acontece que,
no meio do caminho, havia outro carro cujo dono zombou de minha
distração e de minha lerdeza. Era na avenida Dom Manuel. No intuito de
provar-lhe o contrário, acelerei, ultrapassei-o pela contramão, de maneira
tão desastrada que, ao frear ante outro veículo, capotei. Meu anjo da
guarda, que, às vezes, se distrai, principalmente no que diz respeito às
mulheres, estava vigilante e atento, como um escoteiro, uma bandeirante.
Assim não sofri um arranhão. O Zéqueiroz, a cujas portas aconteceu o
acidente, ajudou-me a desvirar o fusquinha, todo amarrotado que fui
deixar em casa. Me piquei, de táxi, pro Lido onde o Brasileiro papeava
com Celso Nunes, do qual me contam que pilotou o automóvel, com
toda segurança, até depois dos noventa e lá vai pedra.
Estava escrito que outras emoções me aguardavam naquela noite.
Conversávamos os dois quando chegou um deputado estadual do PSD,
que vinha de ser nomeado Secretário de Polícia e pediu licença pra se
abancar à nossa mesa. Concordamos. Era um cara alinhado.

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Conversa vai, conversa vem, disse-lhe estar pensando em me
candidatar a deputado federal. Entre goles de água mineral, ele não
conteve o entusiasmo. Me deu a maior corda. E apoio. Prometeu-me
ali, no ato, oitocentos votos. Nem mais nem menos: 800. Gratuitos.
Eu não precisava ir nem lá. Ele me traria o boletim eleitoral, com os
resultados. Agradeci, comovido. Era minha noite de sorte, apesar da
virada do carro.
Pois não ficou nisso.
Como soubesse que, no final do ano, terminaria o curso de Di-
reito, ofereceu-me um lugar de consultor jurídico de sua Secretaria.
Não terminariam aí as emoções daquela noite.
O parlamentar, que era também fazendeiro, estava mais ge-
neroso do que nunca. À certa altura, me presenteou com uma bezerra.
Uma bezerra de verdade, com quatro patas, dois chifres ainda
incipientes, cabeça, tronco e membros. Que estava, na fazenda, às
minhas ordens.
Suponho que o Brasileiro, mortificado, ouvia o ressoar das
espórtulas que a largueza do parlamentar lançava no pires do colunista
político, esnobando o cronista social.
Naquele ano, não fui candidato. Se fosse, teria, no mínimo, aque-
les oitocentos votos.
Ao me diplomar em ciências jurídicas, fui logo nomeado procu-
rador do IPASE, lugar que Carlos Jereissati, pouco antes de morrer,
pediu ao Jango e que Os ires Pontes, depois, tirou do mocó do Palácio do
Planalto para a notoriedade das páginas do Diário Oficial da União.
Resta-me a bezerra. Se ela era parideira e eu, tão sortudo quanto
naquela noite, deve ser mãe de numeroso rebanho de minha proprieda-
de, lá pras bandas do Jaguaribe.
Nem sempre, porém, na Praia de Iracema, a Fortuna me bafeja-
va assim. Também ali experimentei revezes. Depois duma festa, fomos
ao Estoril. Pedi um filé. O Brasileiro, um caldo de peixe. O meu
pedaço de carne veio duro, duro, como pedra. Lutei inutilmente contra
sua rijeza. Perdi. Reclamei ao garçom. Ele, resoluto e pragmático,
resolveu, na horinha, o problema, anunciando: "Vou buscar uma faca
mais amolada".

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O BAIRRO DE JACARECANGA QUE CONHECI

Adolescente solitário, nos fins de semana, à tarde, tomava o


ônibus da empresa do Oscar Pedreira, na Barão do Rio Branco (ou ia a
pé?), rumo da Praça do Liceu, na Jacarecanga. Fazer o quê, não sei.
Talvez turismo, pra conhecer a cidade. Passava pela mansão Itapuca, de
Alfredo Salgado, construída com material importado da Europa, que
olhava com olhos deslumbrados. Descia naquela leitaria, esquina com
Guilherme Rocha, localizada próxima à casa do radialista Paulino Rocha
pois, a este tempo, bebia leite e coalhada. Ainda não se inventara o
iogurte. Olhava a prontidão do quartel do Corpo de Bombeiros que inte-
ressava menos pela rotina dos soldados do fogo que pelo fato de ser o
local onde se guardavam em prisão especial os doutores, gente importan-
te que não podia ir para a Cadeia Pública, feita só pros pobres. O silêncio
das salas do Liceu, que era ainda a grande instituição de ensino do Ceará
e só acabaria com a fundação da Universidade Federal. Quase todos os
seus mestres viraram professores universitários e não tiveram substitutos.
Os alunos do Liceu eram uma rapaziada valente, que tomava parte em
manifestações políticas e quebrava os ônibus do Oscar Pedreira, quando
a Câmara de Vereadores elevava o preço das passagens.
Gostaria de conhecer o Bom Pastor, que acolhia as moças de
virgindade perdida e tentava recompô-la, através de preces e de recolhi-
mento. Claro que era impossível. A Escola de Aprendizes de Marinheiros,
com a brancura intocada de seus muros, não pichados nem mesmo nas
campanhas eleitorais. O Asilo dos Velhos, encargo do Torres de Melo.
Havia belas casas apalacetadas, as de Florival Seraine, Brasil Pinheiro,
Thomaz Pompeu Sobrinho, Luiz Morais Correia, avô do deputado Carlos
Virgílio, Pedro Sampaio e principalmente as da família de Pedro Philomeno
Gomes, filho e genros. O antigo fabricante de cigarros de Sobral se tomara
disparado o homem mais rico do Ceará. Dono da fábrica de tecidos e de
redes São José, responsável pela plantação racional de caju e pela construção
do primeiro hotel de praia, o Iracema Plaza Hotel, não ganhara tanto dinheiro
brincando. Ao contrário, tinha por ele muito respeito.
Dele se contava que tomou, uma vez, carro de praça no centro,
rumo da fábrica. Ao chegar, perguntou ao motorista qual o preço da
corrida. Ao ouvir que custava vinte e cinco cruzeiros, estrilou. O chofer,
então, tentou desmontar sua choradeira, dizendo-lhe:

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"Seu filho, Chico Philomeno, não acha caro. Porque me dá
uma nota de cinqüenta e me manda guardar o troco."
Sem saber o que dizer, saiu-se com esta:
"É que ele tem pai rico. Eu, não."
Um de seus operários encontrou, no pátio da fábrica, nota de quinhentos
mil réis que, àquele tempo, equivalia a um bom dinheiro. Veio-lhe entregar e
ficou esperando a gorjeta. Nada. Despedindo-o rápido, Pedro disse:
"Vá andar mais, para ver se o sô acha mais dinheiro. Isto é lá
dinheiro que se ache. É muito pouco."
Um de seus capatazes era chamado, com freqüência, à Polícia,
para responder a acusações de defloramento. Pedro recriminou-o:
"O sô está faltando muito. O sô está querendo mudar minha
fábrica? Minha fábrica é de tecidos, não é de menino, não."
Doutra feita, para estimular os operários que trabalhavam numa obra
de construção civil, na fábrica, disse-lhes naqueles tempos de guerra fria:
"Trabalhem direito, sôs, que, quando o comunismo vier, tudo
isto será de vocês."

Viciado no trabalho, Pedro Philomeno Gomes tinha um genro,


Acrísio Moreira da Rocha, duas vezes prefeito de Fortaleza, que não
cultivava a mesma devoção. Até tentou, sim, bem que tentou. Chegou
mesmo a adquirir moderno consultório odontológico. Aconteceu-lhe com-
prar, ao mesmo tempo, possante motocicleta em que gastava os dias,
passeando. Anos depois, feito alcaide, doou o consultório, ainda todo
embalado, à Casa do Estudante.
Mais tarde, Acrísio não deixava o fundo da rede quando ia à
fazenda, por dinheiro nenhum do mundo. Adquirira moderno binóculo,
através do qual observava o movimento do gado. Dizia-se que, com
preguiça de contar as reses que negociava, vendia-as por minutos. Um
comprador, certa vez, convidou-o a dar uma cavalgada para olhar as
vacas, Acrísio recusou-se terminantemente a acompanhá-lo:
"Se é você quem vai comprar, por que tenho de ver o gado?"
Quando prefeito, era acusado de passar meses sem ir à sede da
Prefeitura nem despachar. Um secretário, Nilo Porfírio Sampaio, imita-
va, com perfeição, sua assinatura, que deitava nos atos oficiais, poupan-
do o prefeito do labor caligráfico. Voltemos, porém, a seu Pedro e ao
folclore que inspirava.

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Meu jegue, não!

Era na década de 1950 em Fortaleza. Àquele tempo, a utopia


comunista estava arrebanhando adeptos. Conta-se, a propósito, que um
botador d' água por ela se deixara seduzir e, nas folgas do trabalho de
venda da mercadoria a domicílio, desenvolvia seu apostolado.Neste fim
de tarde em que ocorreu a história que ora conto, mais uma vez, tentava
fazer a cabeça de um compadre, momentaneamente desempregado,
enquanto seus três jumentos roíam a escassa grama das alamedas da
Praça Fernandes Vieira. Olhando pra casa de Pedro Philomeno, dizia:
"Seu" Pedro possui centenas de casas. Pra quê? Pode morar
em mais de uma? Quando o comunismo vier, fica com a sua e distribui
as outras com os necessitados. O Oscar Pedreira, iria aonde com tantos
ônibus? Fica com o seu e dá os outros pros seus motoristas."
Fez uma pausa. O compadre olhando, cúpido, os três jegues que
retouçavam a relva seca, perguntou, de súbito:
"E quem tem três jumentos? Distribui dois com os mais
carecidos?"
O compadre teve bastante presença de espírito para liquidar,
logo, a quimera distributivista do outro:
"Compadre, nessa questão de comunismo, jumento não toma
parte, não..."

Ali, no Jacarecanga, tive eu a primeira namorada. De sua casa,


saía pro restô do Ideal Clube. Quem me pegava, em seu desmantelado
jeep, vindo de idêntico expediente sentimental no Monte Castelo, era o
jornalista Dário Macedo que iria declamar, pra mim, versos de Vinícius
de Morais. Ele tinha especial preferência por "A Moça do Miramar." Eu
lhe matava a sede. De tempos em tempos, interrompia sua interpretação,
pra chamar o garçom:
"Rodrigues, um uísque pra mim. Um rum pro Dário."
Lúcio Brasileiro acha que a discriminação etílica feria meu com-
panheiro desses minúsculos saraus como uma punhalada e a ela se deve-
ram tantos arranca-rabos que tivemos, ao longo de nossa convivência.
Não sei se ele preferia rum mesmo ou se era a bebida que eu estava em
condições de lhe oferecer naqueles tempos vasqueiros.

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O SAGÜI QUE VIROU CARVÃO

O folclore da Praça do Ferreira está a merecer um livro. Taí um


tema para Blanchard Girão, depois de publicar Sessão das quatro. Con-
tei, um dia desses, a história da galinha que caiu do restaurante do Hotel
Excelsior e foi despedaçada a pontapés pela turba-multa divertida, alegre,
brincalhona, impiedosa. Nem sempre, porém, a multidão de desocupados
que ali fazia ponto foi tão cruel. Aconteceu de um sagüi, vindo não se
sabe de onde, talvez do mesmo Hotel, pular dali, feito a galinha, sobre
fios elétricos nos quais ficou se equilibrando, enquanto alguém chamava
os bombeiros. Os populares o observavam, silenciosos, até que ele tocou
no poste e foi carbonizado. Um oh! de consternação saiu da boca de
todos, quando os despojos do macaquinho foram ao chão.

As vaias no sol

Na Praça do Ferreira, o sol foi vaiado, após muitos dias de chu-


va, sem aparecer. Quando deu as caras, estremunhado, entre nuvens
cinzas, recebeu aquela vaia.

As pernas alvíssimas dos marujos

Vaia também sofreram uns quatro marinheiros suecos que enten-


deram de passear no local, de bermudas e tênis. Naquele tempo, ninguém,
nem marmanjo, andava mostrando as pernas na rua. Então aquelas pernas
brancas, isentas de qualquer banho de sol, chamaram a atenção da molecada
que passou a seguir os marujos, aos gritos e apupos.

Vaia na primeira minissaia

Vaia feia também levou a primeira moça de minissaia. Atrás de


suas belas pernas, a multidão, estupidamente, vaiava e a seguia. A garo-
ta, apavorada com os gritos e com a perseguição, homiziou-se na então
Casa Parente, o velho magazine que vem de desaparecer, da rua do
Barão do Rio Branco.

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Uma penosa imolada

Wilson Ibiapina me avisa que o diretor de teatro Aderbal Freire


está em Brasília. Convoca o Inácio de Almeida para almoçarmos com
ele. Foi um encontro nostálgico e prazeroso. À certa altura, os dois
primeiros me contaram o estranho episódio,já relatado aqui, ocorrido na
década de sessenta na Praça do Ferreira, de uma galinha que fugira do
Excelsior Hotel e foi despedaçada, a pontapés, ao cair na rua Major
Facundo. Eram jovens e permaneciam muito tempo naquele local. Pude-
ram testemunhar o surpreendente acontecimento.
A penosa- esclarecem-me eles - estava na dispensa do restau-
rante, no primeiro andar. De repente, se aproxima da janela e se depara
com um mundo que nunca dantes pudera ver do galinheiro. Havia muita
gente lá embaixo caminhando, como jamais vira no quintal da casa em
que fora criada. Automóveis que passam. Música da loja de discos. E a
galinha, abobalhada com aquele mundo movimentado, colorido, musical,
quer participar dele. E vê que basta se lançar da janela lá embaixo para se
integrar à realidade tão atraente. É bem verdade que não aprendeu a
voar. Mas é tão perto. Ela se rende à tentação e se lança lá de cima rumo
ao solo. Não contava, porém, com duas cordinhas negras que ficavam
entre a janela e o chão. Eram os fios de iluminação elétrica sobre os
quais caiu e nos quais ficou pendurada. Oscilando. Agora, sim, a galinha
sente medo de morrer. É aquele balanço, tangido pelo vento. Embaixo,
as pessoas a descobrem e a observam e gritam. É a vertigem de olhar o
chão que a atrai. E cada vez mais forte lhe parece o vento que ela se
entrega ao destino e salta lá de cima. De repente, mal cai no chão, sofre
o primeiro ataque. Alguém a chuta com toda a força, no rumo do grupo
de pessoas. Estas disputam o direito de chutar a galinha. E o fazem. E ela
sangra. E se rasga. E de repente, ao chute mais forte, as vísceras saem
do corpo. Ela agoniza sob novos chutes, até que morre numa poça de
sangue. O último flagrante de sua vida foi a alegria de um rapaz magrinho,
de baixa estatura, que lhe deu o derradeiro e mais forte pontapé e ficou
rindo, feliz, realizado, encostado à parede do hotel, olhando a calça suja
de sangue e dando gargalhadas. Foi nos anos sessenta. Aderbal e Ibiapina
viram o massacre.

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Pula! Pula!

Também não vi, mas soube do caso do cara que subiu à torre da
TV Ceará para se suicidar. Embaixo, começou o aglomerado. E as pes-
soas, sôfregas, por emoções fortes, passaram a pedir o suicídio: "Pula,
pula!" Foi, inicialmente o grito de um só que surpreendeu os presentes
antes que todos, uníssonos, passassem a reclamar pressa no desfecho.
Pula logo!
Um rapaz, de pasta de executivo, olhou o relógio e reclamou
impaciente: "Pula logo, senão não vou poder assinar o ponto". Foi quan-
do o suicídio se consumou. Talvez para que o outro não perdesse o dia
de trabalho.

APRESENTAÇÃO DE LOUVAÇÃO DE FORTALEZA

Estou em Paris, sonho de toda uma existência. Moro na rue de


Vouillé, no quinziême. Entro, porém, no meu edifício por uma ruazinha
que a Mairie de Paris teve a gentileza de batizar com o nome de Santos
Dumont. Começo da semana, segunda, fez frio, caiu granizo, caiu neve e
o dia terminou com um lindo sol instalado no céu. Amanheci, neste dia tão
vário, diante do meu Pentium, reescrevendo páginas sobre a cidade amada,
embalado pelo cantar de um passarinho no terraço, dando pra rue Brancion,
onde uma rosa vermelha esplende em toda a beleza primaveril.

Leitores indulgentes, como Neno Cavalcante e Edmo Linhares,


em Fortaleza; e Paulo Pestana, em Brasília, me sugerem, há muito,
enfeixar em livro minhas crônicas semanais. Rendo-me. Tenho pensado
num título: Louvação dos encantos de Fortaleza, a loura desposada do
sol, porque reuniria páginas perpassadas de saudade e de amor, que escrevi
sobre minha aventura na capital cearense. Cheguei à cidade em fins de
1975 e dela saí quase vinte anos depois, com saudades, sem sacudir o pó
das sandálias. Muito pelo contrário, pois só levava de Fortaleza boas
recordações na bagagem.
Convidei B lanchard Girão para prefaciá-lo. De interesseiro que
sou. Afinal, ele escreveu, em livro que há pouco publicou, tanta coisa
boa a meu respeito, que eu gostaria de lhe ouvir a repetição. Porque

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termina alguém acreditando e quem ganha com isso é minha imagem.
Pros outros, chamei o Dorian Sampaio, o Milton Dias e o Frota Neto,
movido pela mesma motivação interesseira.
Blanchard é uma alma cheia de cordialidade e ternura. Já expli-
co a razão de seus exageros em relação a mim e que muito me como-
vem. Nem pensem que não curto as referências que ele me fez. Gosto
muito e as mostrei, todo feliz, à filharada. Fui seu substituto na PRE 9
e muito me honro disso. Anos depois, era Editor-Chefe do Correio elo
Ceará e do Unitário e ele tivera o mandato e os direitos políticos
cassados pelos militares. Pra ganhar o pão de cada dia, andava pelos
subúrbios do jornalismo. Dava forma literária às reportagens publicitá-
rias que a Eme Socorro fazia no Norte do País. Era um desperdício
Um trabalho quase braçal. O Correio estava sem cronista, desde o
desaparecimento do Caio Cid. Pra melhorar o jornal, sugeri que
Blanchard o substituísse, com sua prosa apurada, do agrado de muitos
de nós, havia muito tempo. Eduardo Campos, apesar de um dos líderes
dos acontecimentos de 1964, não levantou qualquer objeção. Não fiz
nenhum favor ao cronista como, erroneamente, ele pensa e escreve.
Foi ato de esperteza conquistar um grande profissional pro jornal que
dirigia e que ninguém se lembrara de acolher. Era, decerto, um brasileiro
exilado no próprio País por motivos políticos. Ele passou a escrever
páginas suaves, poéticas, de bom gosto, como todos esperávamos. Não
fui, assim, nenhum herói a desafiar a situação e não fiz nenhum grande
obséquio ao colega.
Quem ganhou foi o Correio elo Ceará. E isto qualquer pessoa
reconhecerá, ao ler os exemplares daquela fase. Nesse tempo, suponho
haver dado ainda algum estímulo aos estreantes José Augusto Lopes e
Leda Maria. Apenas porque identifiquei neles suas potencialidades e tenho
sobejas razões para crer que não me equivoquei. Não fosse eu, mais
cedo ou mais tarde, alguém terminaria vendo os talentos de ambos.
Luiz Carlos Aguiar, quando esteve aqui, jantando conosco no Le
Grand Café Capucines, sugeriu que eu fizesse o lançamento nos salões
do Ideal Clube, em cujo restaurante passei (passo ainda) tantos bons
momentos de minha vida. Dessa vez, vou trair o Náutico Atlético Cearense,
do qual fui empregado e onde tenho lançado outras obras. Só me mortifica
um pouco é que, graças a Deus, tenho lá, na sua presidência, outro
amigo, o Stênio Carvalho Lima.

122
No silêncio das madrugadas, reescrevo as páginas sobre acida-
de amada e seus personagens no meu Pentium. Só não encontro aquela
que escrevi sobre a morte do Dário Macedo, "Estão chamando minha
turma", que o Edson Filho achou muito pessimista. Vou pedir os bons
ofícios da Soninha Pinheiro para localizá-la. Qualquer dia, eu as mando
de volta, uma obra à procura de um editor.
Não é um livro sobre os sete pecados da capital. Estes são encargos
do Luciano Diógenes. Como o Santo Ambrósio da lenda, mencionada
por Eça, que não quis ver o câncer que corroía o seio da mulher que
amava, eu também só vi os encantos ensolarados da cidade amada. Não
faltará quem, com autoridade maior, denuncie suas mazelas. Fiquei com
a parte do elogio, da louvação.
Foi bom reler e reescrever algumas destas páginas e, assim,
mergulhar naquele tempo que passou e do qual só quero lembrar as boas
coisas vividas. Vou fazer força pra estar vivo até o lançamento (e depois
dele também) em que desejo reunir o maior número de pessoas queridas.
Até aquelas a quem o Marcelo Linhares se refere, dizendo que "há trinta
anos não saem de casa."
Paris, abril de 1995.

NEM CAMÕES FOI CAPAZ DE ME SALVAR

Manhã de 15 de março de 1985. Repórter da sucursal de O


Estado de S.Paulo, dou plantão junto ao Hospital de Base, onde Tancredo
Neves foi operado. Ali madruga Mauro Benevides, presidente do PMDB
cearense, convidado pelo presidente eleito para comandar o Banco do
Nordeste. Pergunta-me o que vou pleitear do novo governo. Respondo
que nada. Aliás, interessa-me apenas a presença no Conselho de
Administração do Banco do Nordeste, a que sempre, por diversas razões,
fui ligado e que me permitiria visitar Fortaleza, em suas reuniões trimestrais.
A remuneração não era lá grande coisa. Ao que me lembre, mal dava pro
hotel. Ele, prestimosamente, se prontifica a me indicar. Agradeço e volto
ao trabalho. Rolam dias, semanas, meses e nada de eu ser eleito. Na
terceira cobrança, Benevides me sai com esta:
"Doutor Lustosinha, descobri que aquele emprego não serve
pra você, não ... "

123
Por outras vias, terminei chegando lá e ficando por seis anos.
Quando Itamar Franco tomou posse, Mauro indicou o novo presidente da
instituição, o Melo, que, logo depois, me telefonou para informar que um
cara comprara centenas de milhares de ações só pra ser conselheiro. Queria
porque queria meu lugar. (Só a mim acontecem tais coisas !). À noite, vou
a jantar, em homenagem ao colega Francisco Baker, secretário de imprensa
da Presidência da República. Mauro, ao me encontrar, pergunta se sei dos
perigos que rondam meu posto. Digo-lhe que sim. Anuncia, porém, que
falou, sério, ao Melo, a meu respeito. Citou até Camões:
"Pedi a ele todo engenho e arte pra você continuar no banco."
Não continuei.
Devo, porém, dizer que este negócio de conselheiro não é bom
pra pobre, não. Por causa de minha eleição, "seu" Costa logo perdeu o
direito ao cheque garantido ("o conterrâneo") que usava, há bem vinte
anos. Assim como o cunhado e dois irmãos, todos funcionários
concursados do BNB.
Não nego, porém - seria insincero fazê-lo -, que experimentei
certo conforto como integrante do Conselho de Administração do Banco
do Nordeste. O negócio foi o seguinte. Meu dinheiro encurtou brutal-
mente nos tempos de Collor. O preço do caviar e do escocês, se não
aumentou, não baixou um centavo. Andava vendendo a alma. Como sou
cara escancarado, todo mundo ouvia minhas lamúrias. Uma vez, queixava-
me de tais percalços em reunião do Conselho, quando o Célio, advogado
do banco, me restituiu a moral de antigamente.
"Mas você é banqueiro."

Foi com emoção que me certifiquei de que, como integrante do


Conselho, era banqueiro. Tanto quanto o Amador Aguiar, do Bradesco,
com a vantagem suplementar de que ainda estou vivo, balindo, e ele não.
Quanto o O lavo Setúbal. O Walter Moreira Sales. Era demais pro meu
pobre coração. Confesso: me emocionei. A coisa, de repente, melhorara
substancialmente. Desci as escadarias do prédio-sede do BNB, pisando
firme, com passadas de proprietário. Era banqueiro e não sabia.

124
EU E O TCU

Quando assumi lugar no Conselho de Administração do Banco do


Nordeste, contei a história daquele milionário paulista, nascido no Ceará,
Luís Campeio, que, pra atender ao Lúcio Brasileiro, aquiesceu em indicar
seu nome pra compor órgão idêntico no Banco do Estado do Ceará. Longe
estava ele de prever que o BEC seria rigorosamente pilhado, saqueado e o
ricaço teria seus bens declarados indisponíveis e ficaria impedido de se
ausentar do território nacional, tudo por conta de traficâncias de terceiros a
que esteve alheio. Veio o governo Itamar e saí do Conselho.

Um dia desses, toco o telefone da rua pra casa e Raquel, inquie-


ta, me fala de intimação do Tribunal de Contas da União, para que explique
porque o BNB não aplicou recursos de, pelo menos, 5% do FNE no
Piauí e na Paraíba, conforme preceitua a Constituição. Tudo sob ameaça
de penas da lei.
Logo o TCU em cujo corpo encontro três a quatro amigos dos
mais prestantes e leais com que Deus me aquinhoou!
Disse-lhes que o BNB, decerto, não financiou projetos naqueles
Estados porque não houve solicitação.
Agora podem me colocar ante o detetor de mentiras, o pau-de-
arara, um concerto de harpa paraguaia, um programa de tevê do Sílvio
Santos, podem me impor qualquer outro suplício que, ainda assim, não
direi mesmo do porquê daquele crime. Sou inocente do sangue desse
justo.Jamais pedi a qualquer gerente do banco que aviasse o empréstimo
dum cigarro a quem quer que seja. Nem que sequer financiasse uma
plantação de canapum.

A GAGUINHA NA PRAÇA DO FERREIRA

Certas pessoas, no relato de suas histórias, costumam nos desti-


nar o papel de desgraçado ou de vilão. Por que cargas d' água se acham
no direito de nos designar, mesmo hipoteticamente, para que assumamos
uma desgraça, uma infâmia? É sinal de que nos querem mal, mesmo em
ficção. Em seu imaginário. Eu jamais chegarei a um amigo para lhe propor
diálogo, começando assim:

125
'Se, por acaso, tu estivesses com AIDS."
Tem gente, porém, que o faz com a maior naturalidade. Um dia
desses, falava-se sobre pena de morte. Eu era (sou) contrário. Ao ouvir
meus argumentos, um parlamentar apelou:
"E se uma filha tua fosse seqüestrada?"
Aí não me contive. Contra-ataquei no ato:
"Por que não a tua?"
Outro faz a mesma proposta:
"Vamos supor que estás na UTI, desenganado e..."
Você tem mais é que jogar bruto na volta:
"Por que não és tu que estás na UTI, sem mais qualquer
esperança?"

Às vezes, nem se trata de proposta de tal gravidade. No entanto,


incomoda. Desagrada. Uma bela senhora contava, em encontro recente,
episódio constrangedor que protagonizara com o marido, num bar em
Paris, agredidos ambos por um bêbado importuno. Para contar o fato,
sugenu:
"Faz de conta que eras o bêbado, Lustosa..."
Recusei imediatamente. Não queria que me considerassem um
chato, nem mesmo representando. Nem como ator.
"Seu" Costa, que parecia apeado da condição de marajá, volta a
me pagar o rango no restô do Ideal. É ali que vejo gente de cuja companhia
careço. Um fã, acho que juiz ou promotor no Crato, se aproxima para dizer
o quanto apreciara minhas crônicas. Fico radiante embora com o pé atrás
pois sei quanto o brasileiro é avaro em matéria de elogios. Quase sempre,
quando os profere, é pela metade. Com a trava de um "até", um "contudo",
um "porém". Talvez pelo receio de parecer puxa-saco. Interesseiro.
Homossexual, sei lá. Pois bem, esta figura se aproximou da mesa com intenção
de ser gentil. À certa altura, no entanto, colocou a clássica restrição:
"Estou dizendo isto mas não preciso de você para coisa nenhuma..."
Senti que ia continuar, pois o tom era crespo, áspero, agressivo.
Como se estivesse arrependido por me elogiar. Interrompi-o para altear
bandeira branca. Nem ele me elogiaria mais, o que não pedira. Nem me
agrediria, o que não desejava. Felizmente, ele se mancou. É horrível essa
dificuldade que as pessoas têm de bater palmas pros outros. Homem,
então, é pior. Fica cheio de dedos quando se trata de aplaudir outro

126
homem, com medo de que o tomem por veado. É engraçada tal
insegurança.

O mais importante, porém, vem agora. Adoro rever Fortaleza,


que faz parte de meu passado. Sou aquele cara nostálgico, que, estando
ali, vai, todos os dias, à Praça do Ferreira, atrás não sei mais de quê. Que
compra jornais no Bodinho. Que procura, em vão, amigos e conhecidos.
O centro é outro, a cidade é outra, eu mesmo sou diferente. Já não
sou aquele adolescente, "foca" da Gazeta de Notícias que depois da aula
na Escola de Comércio Carlos Carvalho, do trabalho no jornal, ia conversar
junto à Coluna da Hora, lanchar no Abrigo Central. Por isso quase não
encontro ninguém. Sigo, à procura de uma Fortaleza, que só existe em
minha saudade, de personagens que não mais freqüentam o centro porque
envelheceram, não saem mais de casa. Não têm mais o que fazer ali.
Insisto, porém, em reencontrar a cidade perdida nos desvãos da memória.

Às vezes, sucede-me dar de cara com reminiscências daquele


tempo. Nostálgico, empreendia mais urna vagabundagem de turista, quando
respeitável senhora me aborda.
"Sou a Irinete, não se lembra?"
"Lembro, sim. Irinete Alves Cabral, a Gaguinha", respondi-lhe.
Perguntei o que estava fazendo e ela revelou que lia muito.
"O quê?" quis saber, curioso. Ela, então, contou:
"Acabo de ler Os Sertões, de Euclides da Cunha."
Não resisti à pergunta:
"Gaguinha, vais fazer vestibular?"
Não, não vai. É que, na idade madura, passado o tempo dos
calores e dos amores, se deu ao hábito da leitura.
Ali estava a Gaguinha, vinda dos longes da década de sessenta.
Das brumas dos tempos repressivos, anteriores à revolução sexual.
Era dona de famosa "pensão", sortida de muitas moças que nos pro-
piciavam impetuoso culto à Vênus mercenária. Seu nome aparecia
muito nos jornais, segundo ela, quando cobrava os avultados "vales"
de alguns jornalistas e eles, em represália, reclamavam a ação da
Polícia contra a exploração do lenocínio. Guarda também outras
recordações da imprensa, bem mais amenas, por sinal, pois nela
recrutou a grande paixão de sua vida.

127
Os mais novos não sabem de quem se trata. Nem podem. A
dona da "pensão alegre" mais luxuosa da cidade, afastada pessoal e
profissionalmente das lides, é, agora, grave senhora, que freqüenta os
clássicos e fala do sucesso dos filhos.

QUE SAUDADES QUE TENHO DO CIGARRO!

Deixei de fumar há bem quinze anos. Não pensem os leitores,


porém, que me converti num cruzado contra a nicotina, um daqueles
chatos que ficam tirando o cigarro da boca dos outros, para salvá-los do
câncer. Nem tampouco me tomei um virtuoso. Um militante da BACOVI,
Barreira Contra o Vício, do Baltazar Barreira.
Larguei o vício pelo seguinte: medo de morrer. Foi, no entanto,
separação amigável, sem rancores, sem ficar falando mal do ex-compa-
nheiro. Porque, afinal, só me ficaram boas recordações do prazer que o
cigarro me proporcionou. Não posso lutar contra os que continuam fu-
mando porque recordo, sempre, que agredi muito interlocutor ou
interlocutora com as baforadas do meu "Charm".
Foi em Sobral, naturalmente, que fumei o primeiro cigarro, às
escondidas, no enorme porão da casa da rua Maestro José Pedro, onde
residíamos. Era um "Zig-Zag" da Manufatura de Cigarros Araken, in-
dústria cearense. Não achei nada bom. Ficou-me apenas o gosto de papel
queimado na boca. Aí percebi que o vício, em sua estréia, fica sempre
aquém das expectativas que criamos em tomo dele, das fantasias com
que o enfeitamos.

Quando passei a fumar, às claras, já era metido a besta, razão


porque optei pela marca mais cara, a do Colúmbia, de sabor adocicado,
a carteira ilustrada por uma caravela. Como vivia de mesada, no bolso
da camisa portava carteira de "Globo" (cinco letras de sucesso), de
preço bem mais barato. Reservava-a para os filões, os que fumavam
mas nunca traziam cigarros. Lembro-me, por essa época, de haver
travado relações com o primeiro cigarro americano, chegado à cidade
de contrabando, suponho. Foi um "Camel" comprado no " Bar da
Antártica", ao lado do concorrente "Cascatinha." Ambos não mais
existem. São apenas saudade.

128
Meu primeiro emprego, em Fortaleza, foi na Gazeta de Notí-
cias. A folha, comandada por Olavo Euclides Araújo, independente e
desabusada, tinha seus fãs. Um deles, o médico amazonense Vinícius
Gonçalves. Ia lá, todas as noites, bater papo, sempre de charuto na boca.
Gabava-se, para nosso espanto, de fumar vinte deles por dia.
Logo depois, repórter político, freqüentava o restô do Ideal. Às
vezes, quem descia do cassino, onde jogava, era o ex-prefeito Acrísio
Moreira da Rocha, cujas primeiras conversas costumavam agradar. Ele
falava, falava, falava e quando ia acender um Hollywood sem filtro no
outro, punha a mão na boca do interlocutor para não ser interrompido.
Muito tempo depois, tive escritório vizinho ao ex-governador
Plácido Castelo. Pois bem, o homem que chegara a lugar tão alto na vida
pública virava um menino, ante o vício. Fumava no banheiro, escondido
de médicos e filhos.
Fumei muito, fumei desbragadamente e foi muito prazeroso fu-
mar durante tanto tempo. Tem mais: vou-lhes confessar. Ainda hoje sonho
que estou fumando. Primeiro, resisto à tentação. Depois me rendo
gostosamente a ela, dizendo a mim mesmo: a gente morre de qualquer
jeito por que, então, não fumar?
Quando acordo, fico na maior dúvida: vou ao pneumatologista
ou ao analista?
Parei. Hão de dizer ante fumante tão voraz:
"Que força de vontade!"
Foi nada. Foi medo mesmo. Da primeira e única vez em que me
hospitalizei por conta dum susto do coração. E olhem que quando, no
Instituto do Coração, a médica Maria Helena começou a examinar a
maçaroca de radiografias, perguntei-lhe inquieto:
"Como é? A coisa está muito preta?"
"Por quê? Você fuma muito?"
"De sessenta a oitenta cigarros por dia."
"Pois nem parece."
Vocês pensam que isto me tranqüilizou? Nada. O medo era tal
que pare1.

Fui logo a seguir ao encontro do médico Hélio Magalhães,


cardiologista que trabalhava com Adib Jatene. Decretou-me intervenção

129
cirúrgica na aorta. (Como vêem, os cirurgiões cardiovasculares há muito
andam de olho em mim, brandindo seus afiados bisturis). Perguntei-lhe se
podia esperar. Disse-me que sim. Podia. Ainda hoje ando fugindo deles.
Mas não era disso de que queria falar. Dez anos depois, o grande
profissional deu-me a honra de ir lá em casa. E para que o prazer fosse
maior veio com outro pernambucano, o gentil-homem Marcos Vilaça.
O médico tinha sede. Dessedentamo-nos juntos. Mais: ele lan-
çava-me, desafiador, baforadas gostosas de seu "Hollywood"", matan-
do-me de inveja. Ainda assim resisti.

Era tudo o que tinha a dizer sobre o tabaco. Parece matéria paga
da Souza Cruz, mas nem é. É que não tenho autoridade, não posso falar
mal de quem sempre me fez boa companhia, me proporcionou prazer
por tanto tempo.
Que saudades ainda tenho do cigarro!

QUANDO IA SER PUBLICITÁRIO

Demitido do lugar de Editor-Chefe de Unitário e do Correio do


Ceará, fiquei três a quatro meses sem prefixo. No desvio. Não me afligi
mais porque do ponto de vista material ouvi palavras solidárias e decisivas.
Foi de Elano de Paula e Walder Ary, fundadores do grupo Master-Incosa
para cuja união de alguma maneira contribuíra em seus primórdios, que
se apressaram em me assegurar: "Pode ficar tranqüilo que você não vai
baixar de padrão de vida, não."
Apesar de contar com amigos deste naipe, fui à luta. Associei-me a
Dorian Sampaio para editar o Anuário do Ceará e pra fazer publicidade.
Propaganda não era nosso forte, como os leitores logo poderão ver. À cata
de clientes, batemos, certa tarde, às portas da indústria de "Produtos Raphael",
uns empresários da zona norte, do Marco ou do Mocambo, que, na capital,
vendiam galinhas, ovos, produtos feitos à base de carne de porco.
Em nossa batalha, contávamos os acontecidos do dia a Danilo
Marques, que gostava de ironizar a atuação teatral de Dorian, no esforço
de conquistar aquela conta. Inventava, então, que o ex-vereador, ex-
deputado, ex-diretor de jornal chegara a imitar, na sala da presidência do
grupo, um bem nutrido porquinho que, aflito, fugira, por muito tempo, do

130
facalhão do açougueiro e que só a ele se rendera, por fim exausto, sob
uma condição:
"Mate-me se eu for me tornar um produto Raphael".
Não foi, exatamente, assim, embora todos conheçamos as quali-
dades cênicas do sócio que, em tempos de jovem, chegou a fazer teatro.
Lembrei-me, porém, dessa fase de nossas existências, vendo, aqui, em
Paris, o outdoor dos produtos Noblet. Um porquinho se debulha em
lágrimas, enquanto uma menina procura consolá-lo:
Pleure pas grosse bête, tu vas chez Noblet.
A cada vez que me pilho, sem ter o que fazer, passeio no
Boulevard Saint Michel, no Quartier Latin, ou nos Champs Elysées. Os
filhos me questionam se não me canso, se não enjôo do programa. Que
nada! Ir ali, pra mim, constitui sempre novidade. É como se fosse sem-
pre a primeira vez.
É claro que vivi, noutros locais, emoção mais funda. Talvez por
mais rara. Foi, em certo crepúsculo, num verão distante, em Veneza, ao
entrar no ambiente majestático da Praça de São Marco, quando ali se acendiam
todas as luzes da cidade dos doges. Ou, então, aquela outra experimentada
quando, em 1974, pela primeira vez, pus os pés na Catedral de Westminster
e caminhei, por cima da lápide do túmulo de Isaac Newton. Emocionado,
ainda consegui brincar com Antônio Lúcio Carneiro:
"É mesmo o Newton? Aquele da maçã?"
Era.
Isso, porém, não me impede de sentir saudades das caminhadas
matinais pelo centro de Fortaleza, deixando-me acariciar pelo vento do
Aracati, ao entrar na Praça do Ferreira, vindo pela Floriano Peixoto,
depois de passar na sapataria do Citó e na joalheria do Pedro. De parar
em "A Leão do Sul" pra tomar um caldo de cana com sabor de antiga-
mente. Comprar jornais na banca do Bodinho. Perguntar pelo livreiro
aposentado Luís Maia, que saiu de Fortaleza para Recife, ou pelo poeta
Alcides Pinto, que trocou a cátedra universitária pela criação de bodes
em Santana do Acaraú. Rever o velho prédio da Assembléia onde fui
repórter e vivi tão bons momentos. Passear pela Praça dos Leões. No
finzinho da tarde, procurar o banco dos "velhos" na Praça do Ferreira,
dando pra Farmácia Oswaldo Cruz. Enfim, saio, pelaí, tentando recolher
pedaços de mim mesmo, espalhados ao longo do caminho.

131
PORQUE NÃO FIQUEI MILIONÁRIO

Quando morei no Rio, fiquei um ou dois meses no desvio. Os


donos da firma em que trabalhava pensavam que estavam ricos. Não
estavam. Quando deram fé, faliram. A empresa foi à garra e eu perdi o
meu fim-de-mês garantido. Airton Rocha, amigo prestante, um dia me
telefonou com a solução. Descobrira o caminho das pedras. Íamos ficar
ricos, muito ricos. Já eufórico, fui a seu encontro. Ele me desvendou a
rota da fortuna: a importação de arroz do México. Era um negócio da
China. Seríamos milionários em pouco tempo. Saí dali pisando firme,
olhando de cima o comum dos mortais a quem não ocorrera idéia tão
brilhante. No "Antônio's" bebi uma boa Tuborg, por conta dos gloriosos
dias futuros. Da iminente prosperidade.
Caí, porém, na besteira de consultar um empresário sobre a
mina, a jazida que descobríramos. Fui ter com Elano de Paula, com-
positor de "Canção de Amor', o primeiro grande sucesso de Elizete
Cardoso, irmão de Chico Anísio. Contei-lhe que ia ficar milionário,
em pouco tempo. Ele quis saber como. Disse-lhe que iríamos importar
arroz do México. Negócio lucrativo, seguro, como não existia outro.
Em que ninguém pensara.
Ele, então, perguntou:
"Vocês têm dinheiro?"
Escapara-nos tal detalhe. Não tínhamos.
Implacável, ele quis saber mais:
"Vocês têm o arroz?"
Era outra ninharia com que não nos preocupáramos. Não possu-
íamos o nobre grão.
Ele, então, concluiu brutal:
"Então, o que vocês têm é uma idéia. Idéia, todo mundo tem."
Aí, está, contado, em síntese, porque não fiquei milionário com
a importação de arroz do México.
Há, porém, outras fórmulas igualmente venturosas de fazer for-
tuna. Ao jornalista Sabino Henrique acudiu uma. Amigo desvelado lhe
apontou o caminho dos milhões: plantar urucum. (Admiro a abnegação
dessas pessoas, que, tendo, em mãos a receita da riqueza, ao invés de
usá-la em proveito próprio, passam-na a terceiros. Isto, sim, é que é
verdadeira amizade).

132
Por algum tempo, o arguto homem de imprensa viveu a euforia
de milionário. Tinha um sítio. Quarenta e cinco hectares de boa terra,
pras bandas de Paracuru e o plantou, todinho, de urucum. Já se conside-
rava o rei do urucum. Via-se filmado no "Gente que faz" do Bamerindus,
em meio às suas plantações. Imaginava-se homenageado pela Organiza-
ção Mundial de Saúde pela propagação do corante natural, pelo combate
indireto que, assim, movia ao câncer. Contemplava, em pensamento,
toneladas de sacas de urucum, no porto do Mucuripe, indo pra Hollywood
maquiar os peles-vermelhas dos filmes, temperar e colorir a macarronada
dos gringos, o arroz dos milhões de chineses, de japoneses. Venderia
colorau para todo o mercado norte-americano, europeu, pra gregos,
troianos e goianos.
Só não lhe ocorreu insignificante detalhe, em meio a seu sonho
de grandeza: a chuva. O urucum precisa tanto d' água quanto nós, huma-
nos e desbotados. Ele não sabia disso, de que precisava, como todo
agricultor - vá ser ele rei do urucum ou plantar uvas no Ipu - de chuva,
das bênçãos de São Pedro. Como de hábito, houve seca no Ceará. O
certo é que o plantio todo gorou. Ele não tirou, de seus quarenta e cinco
hectares, um cacho de urucum. Uma lata de colorau. E ainda teve de
encarar a postura glacial do Banco do Nordeste, uma casa bancária sem
nenhum apreço pelos sonhos, pelos delírios dos clientes.
Com tanta adversidade, como é que a gente pode virar milionário?

SEM CUMPRIMENTO NEM PAGAMENTO

Em fins de 1967, morando no Rio, trabalhei no Diário de Notí-


cias na reportagem política, ao lado do austero e conservador Maurício
Vaitsman. O jornal já não era mais a respeitada folha de Orlando Dantas
que o deixara em invejável situação financeira, com dinheiro em caixa
para construção de nova sede e proprietário da revista O Mundo Ilustra-
do, adquirida ao Geraldo Rocha.
Muito pelo contrário. O filho, João Dantas, logo pôs os pés pelas
mãos e jogou tudo fora. Se jornalista já é um bicho insuportavelmente
mascarado, vocês imaginem o dono do jornal, principalmente filhinho de
papai que, para chegar a tal situação, tivera apenas o trabalho de nascer.
Era o caso do herdeiro. Um bobo. Na campanha eleitoral de 1960, con-

133
venceu-se de que seria primeiro-ministro, mentor, dono do governo. A
muito custo, o máximo que Jânio Quadros lhe arranjou foi emprego de
embaixador itinerante junto aos países do Leste.
Quando trabalhei no Diário de Notícias, já estava falido. No
entanto, quando descia no elevador na companhia de algum
funcionário, não se dignava dirigir-nos o olhar. Não nos
cumprimentava. Nem nos pagava.
O encarregado de nos dar um "vale" esporádico e de nos levar
na conversa e, decerto, aos outros credores, era o mineiro Severo Pi-
nheiro da Fonseca, que, malgré tout, conseguia ser benquisto.
Claro que a incompetência e a pose de João Dantas levaram ao
naufrágio o Diário de Notícias que quando chegou a cair em suas
desastradas mãos era um dos melhores e mais respeitados jornais do Rio
de Janeiro.

O TEMPO, ESSE INIMIGO

"Ontem foi-se. Amanhã vem apressado.


Hoje parte, sem parar num assunto:
Sou um foi, um será e um é cansado.
No hoje, no amanhã, no ontem, junto mortalha e fraldas, sendo
assim forçado a sucessões presentes de defunto"
(Raquel, quem disse isto?)
Há certo gosto em observar a arcana
Areia que resvala e que declina e, a ponto de cair, se apinha com
uma pessoa que é toda humana. (Jorge Luís Borges, O Relógio de Areia)
Não é relógio porque os há por toda parte e são meus senhores.
Vivo de olho em seus mostradores. Vivo apressadamente, portanto. E
sofro, como sofro, a sensação de tempo perdido, a todo instante! O
tempo perdido em conversas que não enriquecem, em companhias que
não enobrecem, em contatos que não acrescem. Fico com pena de não
estar escrevendo minha novela. De não haver caprichado mais no que
escrevi. De não ler tanto quanto devia. Tenho, aliás, medo de morrer
sem ter lido muitos livros que ainda não conheço. E sem haver entregue
ao mundo o livro que jaz em mim. Como a estátua se encontra no már-
more, ansiando pelo cinzel do artista.

134
Contei inúmeras vezes, mas repito sempre, pois, como Nelson
Rodrigues, sou flor de obsessão. Tive um relógio que durou em meu pulso
o espaço de um amor. Infeliz como pedra de esgoto, mal-atado, muito mal
pelo Código Civil, amei. Amei uma criaturinha mais moça que eu, de mais
simples alma e a Deus agradeço. Ela foi água fresca na sede, agasalho no
frio, conforto do oásis no deserto. Eu andava precisado, como andava.
Muito lhe devi e devo naqueles tempos inóspitos. A moça, porém. Era
noiva e o noivo, intolerante. Sabem o que fez, movido pelo despeito, pelo
ciúme? Certa madrugada, contratou um caminhão, um piano, um pianista,
um cantor e se mandou para a casa de (nossa) amada. No silêncio e na
bruma, feito Cyrano de Bergerac, fez o seresteiro cantar, dez, vinte vezes,
"Nono mandamento". Aquele tempo quase não passavam carros e a voz
acusadora agredia o silêncio: "Você traiu o nono mandamento, o nono da
nossa lei". E terminava, cretinamente, pedindo "consolação para um, feli-
cidade para dois". Não era, porém, disso que ia falar.
Há indícios de que ela me amava. Enchia-me de presentes. O pai
operava na área de importação. Sem qualquer burocracia, o que, às vezes,
o punha em dificuldades compreensíveis até à incompreensível aduana.
Ela foi ao lote de mercadorias dele e dali tirou um Mondaine que me deu.
Usei-o, durante o tempo feliz de nosso complicado amor.
Teve pior: pouco antes de trocar o Senado pelo Tribunal de Con-
tas, Henrique de La Rocque me chamou a um canto para me dar um
relógio "que marcasse minhas horas de felicidade". Disse-me ele com
carinho de tio. Foi um vexame. A relação, aqui, era naturalmente outra.
Não usei o presente. Morria de vergonha, porém, de quem me dera. E
passava pelo saudoso senador, escondendo o pulso para que não pensas-
se que desprezara seu presente. É que a gente já anda tão sobrecarrega-
do de responsabilidades e de objetos que quando se pode livrar de umas
ou de outros, nem hesita. No tocante a relógios, é fácil. Inclusive porque
o vizinho sempre anda com um, em que você espia pelo rabo de olho.
Quando somos jovens, temos em relação ao tempo a impaciência
de credores. Estamos sempre querendo que ele corra. Para que chegue logo
o carnaval, a Semana Santa, as férias de julho, o São João, então depois dos
"bros", o tempo voa. Até o Natal. Até o réveillon. Quando damos fé, estamos
um ano mais velhos. É quando passamos a nos portar como devedores.
Embalamo-nos na esperança de que o Banco esqueça o dia do vencimento
da promissória. Ou, então, passamos a pleitear prorrogação.

135
Ainda hoje sou dos apressados, reconheço minha culpa, minha
máxima culpa. Nem posso recriminar os outros. Nos tempos em que
trabalhávamos juntos, Guilherme Neto costumava me perguntar porque
vivia tão sofregamente: "Tens muito medo de morrer'. O quanto, po-
rém, se perde em amar tão depressa, beber tão rápido, ler e viver corren-
do, ao invés de curtir mais, usufruir mais cada oportunidade de prazer.
Inclusive porque ela pode não se repetir. Para que, então, andar tão
velozmente atrás das voltas do relógio?
É o que tenho vontade de dizer a essas meninas de hoje, Raquel
e Sara, em particular, que nutrem desejo tão intenso de se despedirem,
logo, desses tempos amenos e leves. Para que tanta pressa em deixar de
ser criança? Para que a angústia de ir logo à frente, chegar logo à
faculdade, formar-se, ingressar cedo na rotina do trabalho ou na frustra-
ção do desemprego? Para que trabalhar tão cedo? Dar duro pelo pão de
cada dia, casar? Agüentar marido que, muitas vezes, somente produz
desgosto e roupa suja? Limpar cocô de neném. Chegar logo à idade da
gente e ficar com bruta vontade de negar? Ah! Peçamos ao tempo que
maneire, ao relógio, que está certo, não pare, mas que, pelo menos, não
voe. Peraí, não curti a vida como devia, como merecia, uma outra opor-
tunidade, sim, porque somente, agora, aprendi a amar, a beber, a viver, e
quando não me resta tanto e a cobradora implacável, senão está às portas,
avança a passos largos?

MINHA AMIGA, A GARRAFA

Um dia desses, Paulo José, ao se servir de uísque, lá em casa,


se deteve, observando o copo em que servi, baixo, sólido e amplo: "Isto
é que é gostar de beber e de dar de beber". Não gosto de copos altos nem
finos para o uísque. Estes têm de ser baixos e entroncados. Precisam ter
por onde se lhes pegue como as mulheres, onde se encham as mãos.
Estou longe, porém, de ser bom bebedor. Primeiro, pela sofreguidão
com que vou ao copo. Lúcio Brasileiro e Guilherme Neto sempre se
disseram impressionados com a rapidez com que enfrento o scotch. José
Hugo Machado, cearense de Lisboa, brinca: "Tu és dos que não podem
ver copo cheio". Além do mais, gosto de uísque com muito gelo, o que
lhe desfigura o bouquet. Curto e curto muito gelo se dissolvendo no

136
dourado do uísque. Quem consome, porém, assim, não tem paladar
requintado. Por isso mesmo, quando o Brasileiro, certa vez, para me
homenagear com carinho fraterno, abriu um Royal Salute, protestei: "Não
mereço". Como ele sabe que humildade não é o meu forte, quis saber
por quê. É que uísque de qualidade deve ser servido puro. Sem gelo.
Comporta, no máximo, água fresca da Irlanda, bebida em separado, após
cada gole. Agora, com quatro, cinco pedras de gelo, vira sangria, garapa.
É a mistura que me permito.
É fundamental que o gelo venha de água limpa, filtrada e que
não seja tocado pelas mãos de ninguém. Porque muito barman não se
manca. Não tem educação social nem formação profissional e, por isso,
coloca pedras de gelo com as mãos, em nosso copo. Sabe Deus onde,
antes, pusera as mãos.
Fernando Sabino conta que, em bar de luxo, em Nova York,
vendo cidadão ansioso por se relacionar, meter o dedo no gelo de seu
uísque, indagou: "O senhor é brasileiro? O outro, mais que depressa,
continuou e perguntou: "Como é que o senhor descobriu?" O cronista
lhe explicou: "Porque só o brasileiro faz a porcaria de mexer com o dedo
o gelo do uísque... "
O uísque deve ser sorvido em companhia leve, longe dos sectári-
os, dos fanáticos, dos obsessivos, dos que querem prolongar, na mesa do
bar, o expediente do trabalho ou problemas profissionais. Dos que
pretendem impor-nos sua opinião. Dos que falam muito alto, por
exibicionismo, por falta de educação. Cumpre, pois, buscar companhias
leves, saudáveis, que privilegiem o lado ameno da vida. Cuja conversa
tenha sal, senso de humor, que te enriqueça, que não te jogue no colo
problemas e dramas. Certa vez, um bom bebedor de uísque estava a um
canto do bar, fugindo de companhias, quando lhe indagaram o porquê da
solidão. Explicou: "O uísque está muito caro. Não posso desperdiçá-lo
na companhia de chatos". É a lei fundamental, é o primeiro mandamen-
to, exigência sine qua non: fuja do chato como o bode da chuva, o diabo
da cruz. Há dias, fiquei em pânico diante da perspectiva de que um
desses me viesse, no bar, baixasse no meu centro e desfizesse uma roda
que era toda harmonia, toda bom caráter, toda alto-astral. Mais cuidado,
portanto, com os que têm contas a ajustar com a vida, os que guardam,
lá dentro, como animais de estimação, suas mágoas e suas frustrações e
somente querem, do álcool, liberação. São pessoas atormentadas que

137
apenas sossegam quando jogam seu tormento sobre os outros que nada
têm a ver com isto. Ao longo dos anos, tenho bebido tonéis e sempre em
boa companhia. Desde o primeiro pileque, em casa de Agenor Rodrigues,
com Hélio, filho do anfitrião já falecido, Antônio Rangel e Oswaldo Rangel.
Todos os copinhos de vodka (nacional, bem se vê) num jantar no Kremlin,
com Flávio Marcílio, uísque no Palácio de Westminster, com o presidente
da Câmara dos Comuns, Sarney e Accioly Filho. Bom champã com
Thomaz Coelho, no La Tour D'Argent, e com Norton Macedo e Ary
Kffuri, no Maxim's. A cachaça de Chico Caldas, em Viçosa, com Tarcísio
Tavares e o abstêmio Arialdo Pinho. O álcool não me torna valente nem
arruaceiro. Não me leva a meter a mão no decote das mulheres dos
amigos. Nem a dizer grosserias que não diria, sóbrio. Torna-me, porém,
mais romântico, dá-me o desejo de curtir música sentimental, nostálgica.
O álcool me tem sido boa companhia, na euforia das comemorações, nos
instantes crepusculares em que a gente saca que a vida está feia e não dá
para agüentar. Aí, então, você vira um pouco de Deus. Decreta, por
conta própria, morte interina, provisória, mergulhando na garrafa os
gnomos, os duendes, os fantasmas que o perturbam. Mais tarde, acorda
e vai à luta, com um Vallium número dez ou Old Parr de boa origem.
Ninguém pode considerar-se definitivamente infeliz ou totalmente perdido.
Tem, sempre, possibilidades de ganhar o reino dos céus.

20 ANOS DE BRASÍLIA

Quando publiquei Fortaleza, meu amor, Carlos Eduardo brin-


cou: "Pai, depois de Sobral do meu tempo, Fortaleza, meu amor, vai
ser' Brasília, minha namorada?"
Não sei o que respondi ao caçula. O certo é que Deus me confe-
riu o privilégio de amar as cidades em que vivi. Delas não saí tangido
pelos cobradores nem pelo meirinho, graças a Deus, e, sim em busca de
mais espaço para desenvolver meu trabalho.
Em 1974, havia comandado, ao lado de Dorian Sampaio, três
edições do Anuário do Ceará, uma delas que esperava, comigo mesmo,
fosse a última, de quase mil páginas. Ganhávamos bom dinheiro e desen-
volvíamos razoável trabalho de pesquisa, além de nossa presença na
tevê e nos jornais. De repente, achei que andava à procura de algo mais,

138
aquela confortável rotina ia-me levar à estagnação e decidi me picar,
sem nada avisar ao sócio. Antes, passei uns meses em Paris, num apar-
tamento de sexto andar na rue de Montparnasse, sem elevador, pra me
desarmar, não chegar tão chucro à capital da República.
E foi, no segundo dia de dezembro de 1974, numa segunda-
feira, que desembarcamos no aeroporto internacional de Brasília, onde
Gláucia, então casada com Fernando César, nos esperava com um bouquet
de lindas rosas. Fernando já me conseguira, com Carlos Chagas, lugar na
sucursal de O Estado de São Paulo e apartamento provisório onde me
alojar, do qual involuntariamente "expulsei" outro que se tornaria também
excelente amigo, Sérgio Chacon. Já lá vão vinte anos. Os Mesquitas
precisaram de I4 anos para descobrir que eu não servia. Assim "caí
com toda a equipe, quando Chagas deixou o suave comando. Tão ameno
que uma das colegas daquele tempo, Hebe Guimarães, que passou longa
temporada na Europa, quis-nos reunir numa festa das "viúvas de Chagas",
para a qual obteve adesão pressurosa de quantos trabalharam com ele
naquele tempo.
Quando tentava morar em Brasília, sobreveio o golpe. Lembro-
me de haver escrito vários artigos contra a sedição e a gorilada, que
foram assinados por Alberto, irmão já falecido, à época jornalista
conhecido na capital. Por conta disso, ele entrou no chamado IPM do
Arcebispo, instaurado contra os que, como dom José Newton, se
haviam pronunciado em defesa da legalidade, através dos microfones
da Rádio Nacional. Dez anos depois, assisti à interminável agonia da
ditadura militar, à eleição é à morte de Tancredo Neves e à deposição
de um presidente, acusado de corrupção (lembro, a propósito, haver
levado Carlos Eduardo a ver o plenário do Senado convertido em
Tribunal. Naquele instante, em que lá entramos, discursava o austero
Antônio Mariz).
Em Brasília, no tempo do Oliveira Bastos, escrevi coluna no
Correio Braziliense ao qual devi (e devo) a divulgação de meu nome na
Corte. Aqui se criaram meus três filhos da segunda ninhada, a primogênita
Raquel, já cursando escola superior, ganhando seus trocados como
professora de inglês; a bela Sara, iluminando, com seu sorriso, os
crepúsculos de domingo do Gilberto Salomão. Fiz muitas amizades - o
que sempre acontece onde quer que vá. Liguei-me tanto à cidade, embora
costume dizer que moro mesmo é no Congresso, na Câmara e no Senado,

139
e não no Plano Piloto - que só a trocaria, hoje em dia, por Paris, o que
ora faço. E assim mesmo temporariamente. É tal a afeição que lhe voto.
Só me falta, agora, perpetrar o livro sobre a capital que ainda
não conheço bem, circunscrito que tenho vivido ao mundo político. Vou
saber do Carlos, como o batizo: Brasília, meu xodó ou Brasília, meu
maior amor? Afinal, em seu chão passei o período de tempo mais com-
prido de minha existência. ( 12/03/95)

AS TRAGÉDIAS DE 31 DE MARÇO

Foi num 31 de março ( quantas desgraças públicas e particulares


acontecem neste dia fatídico!) que me hospitalizei vez primeira. Nos dias e
noites intermináveis da UTI, os medicamentos mexem com a cabeça da
gente. O certo é que, um dia, neurastênico, me irritei com o que achei
barulheira de alguns visitantes, pedi papel e caneta para escrever artigo
contra o hospital. Sapateei, esbravejei, reclamei. Fiquei brabo. Ao deixar o
hospital de base, pedi desculpas aos médicos que tão carinhosamente me
haviam tratado. Um deles, o paraibano Aluísio Franca, nem se surpreendeu
e explicou porquê: "O Aliomar Baleeiro, quando presidente do Supremo,
quis sair daqui, nuzinho, tal qual veio ao mundo e não deixamos. Perguntou:
não tem habeas corpus? Respondi-lhe que não. Então ele se conformou,
ficou." Em Paris, em idêntico lugar, também dei meus vexames e clamei
por uma mulher. Sabem qual o nome de mulher que me veio aos lábios,
mais cheio de pontos que estudante aprovado em vestibular, enfaixado, o
próprio S. Sebastião de Sobral, no Salpetriêre? O de Sara, minha filha.
Que exemplo edificante! Que pai d' égua, pai modelo, pai profissional! Até
eu me surpreendo com minhas virtudes. Por isso é que digo, em verdade
vos digo: qualquer dia saio santo revel. Vou canonizado sem saber. Nem
mesmo querer. Às vezes, até eu me surpreendo com as reservas de
santidade que escondo, que guardo em mim.

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MORRI E NÃO SABIA

Quando vou entrar no novo restaurante de comidas do Medi-


terrãneo, "Abajour da Adi", um conhecido que degusta seu cachimbo
na calçada, para não perturbar os outros fregueses, me cumprimenta e
como há muito não me vê, me dá pêsames pelo "falecimento do nosso
querido Lustosa da Costa na Europa." Está comovido e explica porquê:
"Gostava muito do Lustosa." Aceitei e agradeci os cumprimentos. Po-
dia haver-lhe dito que realmente andei raspando o travessão em Paris,
mas escapei graças à perícia de seus cirurgiões. Ia, porém, desmobilizar
a compunção e o sentimento do amigo. Sem jeito, calei, para não o
decepcionar, preferindo continuar morto a seus olhos. Logo, porém,
dele me despedi e entrei no restaurante sobrevivente de mim mesmo.
Olhei-me no espelho para conferir se era eu mesmo quem me olhava,
se continuava vivo. Por segurança, telefonei para casa a fim de saber
de Raquel se eu ainda era gente ou alma do outro mundo. Ela garantiu
que estou vivo, não gostou do engano do cara, estranhou porque não
protestei jurando que não morri. Dei-lhe as razões acima. Fiquei, de
certa maneira, encabulado de estar vivo, decepcionando o outro. O
cara mostrava tal sentimento que não achei justo tirar-lhe o motivo da
emoção, como que puxar a cadeira em que estava sentado. Também
resisti à tentação de sentir saudades de mim Apenas admiti permanecer
defunto para ele, a seus olhos, embora constrangido no papel. No
entanto, reintegrado em minha existência física, fui ao rango e com tal
disposição que me convenci, definitivamente, de que não morrera, apesar
das versões em contrário.

DOIS CAJAZEIRENSES EM LISBOA

Vinha de passar pelo restô Martinho das Arcadas, onde se realiza-


ra sarau em homenagem ao centenário de Fernando Pessoa, e de assistir a
um concerto ao ar livre, em frente ao Teatro de Dom Carlos, por conta de
Santo Antônio, padroeiro de Lisboa. O bar do Tivoli Jardim- já encerrara
atividades. Decidi tomar a saideira no restô do Hotel Tivoli, no último
andar, com aquela vista esplendorosa da capital portuguesa. Ao me aproximar
do balcão do bar, ouço alguém se despedir de dois amigos, dizendo:

141
"Renan Miranda, editor de O Globo".
Muito na minha, dirigi-me, discretamente, ao barman, reclamando
meu scotch.
O colega, no entanto, queria papo e me interpelou:
"E você, quem é?"
"Não sou ninguém, não", respondi, com hipocrisia, com falsa
modéstia, tentando me esquivar do papo.
Ele insistiu, tenaz:
"Você não escrevia 'Lustosa da Costa Informa', no Correio
do Ceará?
Quase caí para trás. Ele continuou:
"Trabalhei com o Dorian Sampaio, na Gazeta, e com o Costa,
em O Povo".
Ante minha admiração, lembrou que havíamos sido contempo-
râneos na Faculdade de Direito do Ceará:
"Terminei em 1964 e fui o orador da turma. Trabalhei em Reci-
fe, no Diário de Pernambuco, na Veja e, agora, estou no Globo".
Perguntei-lhe:
"Como é que sendo nós cearenses nunca nos encontramos em
Fortaleza?"
Ele negou fosse cabeça-chata.
"Nasci em Cajazeiras, da Paraíba".
Foi demais. Puxei da carteira de identidade para provar que
também deixara o umbigo enterrado em Cajazeiras. Não pude, assim,
por força de tantas coincidências, recusar atender a seu convite para
esticada, madrugada adentro, em "A Parreirinha de Alfama", onde fomos
ouvir o fado de dona Argentina. Valeu a noite.
Ao chegar a Lisboa, liguei para Tarcizo Azevedo, ex-dono do
Sandra's e do Dunas, que está tentando montar resto cearense, em
Lisboa, na Rua do Salitre, bem pertinho do hotel em que me hospedo.
Ele me informa que o administrador geral do Banco do Brasil, Emílio
César Burlamaqui, nos quer oferecer jantar em "O Escorial", onde já
passei um final de ano, alguns tempos atrás. Quando me defrontei com o
anfitrião, perguntei-lhe se tinha parentesco com o coronel Emílio Roriz
Burlamaqui. Ele confirmou:
"É meu primo. Me hospedei muitas vezes em seu apartamento
no Rio, quando ele morava na Rua Santa Clara".

142
Quando lhe indaguei onde morava, respondeu que no bairro das
Amoreiras.
"Rua Amoreiras, nº 80? Vizinho do José Hugo Machado?"
Ele confirmou. E aí pude ver o quanto o mundo (ou Portugal?)
está ficando pequeno para os nordestinos.

VIVENDO NA SAUDADE (OU JÁ FUI BOM NISSO)

O bilhete Brasília-Roma me sai por CR$ 26 mil. I mil 187 d6la-


res. Como sempre, desço primeiro em Lisboa, para ir chegando à Euro-
pa, aos poucos. Naquele chão de meu bem-querer, arrancho-me no Tivoli
Jardim. A diária de casal custa 1.900 escudos, mais ou menos 40 dóla-
res, pois a "verdinha", a "alface" está valendo 47 escudos.
Mal deixo a mulher e as malas no apartamento, ganho o bredo.
Vou bater pernas na Avenida da Liberdade, no Rossio, no Chiado.
À noite, no Cassino do Estoril a sorte me bafeja. Não acho justo,
porém, desfalcar a Pátria-mãe. Volto à roleta pra devolver o apurado.
Quando o consigo, apodera-se de mim a idéia de jantar. Opto pelo restô
do cassino.
Folheio o cardápio. Simpatizo com o pato estufado. Recorro ao
maítre pra que me explique como é tal prato. Ele é categórico no esclare-
cimento:
"Pato estufado é pato estufado".
Dissipam-se as dúvidas. Para que o tal pato estufado desça,
redondinho, peço um tinto, o Conde de Santar, ao preço de 200 escudos.
O garçom me empurra, goela abaixo, aguardente velha de Penafiel,
gororoba que nos queima a garganta e a algibeira, pela qual nos cobra
130 escudos, a dose. Somos cinco à mesa, a conta chega a 2.130.
Dia seguinte, tomo o trem pra Queluz. Quero rever o palácio
onde nasceu e morreu Pedro I (o Pedro IV deles). Depois, almoçar no
restô "Cozinha Velha", ali instalado. A esse tempo, como vedes, os pre-
ços eram baratíssimos e o português era bom, não queria ser europeu,
tratava-nos com carinho fraterno e se deslumbrava com as primeiras
novelas da Globo. Em suma, não nos olhava com o pé atrás, como
penetras, intrusos, não hostilizava o brasileiro como parece fazer hoje
em dia, pra agradar aos sócios ricos do Mercado Comum.

143
Como era obsequioso o português! Passeava pelas ruas de
Amadora, numa radiosa manhã de sol. Quando a fome chegou, entrei, por
acaso, numa farmácia e indaguei o funcionário por um restaurante onde
pudesse fartar o bandulho com arroz de mariscos, bom como o do "Solar
dos Presuntos", às portas de Santo Antão ou do "Solar de S. Pedro", na
praça do Mercado de Sintra. O ajudante de farmácia, solícito, pressuroso,
gentil, saiu de seus cuidados, veio até a calçada pra me orientar.
Apontando um largo, dois quarteirões adiante, me perguntou:
"O senhor está a ver aquele sítio à frente?"
"Estou", foi o que pude responder.
"Pois não é lá".
Calei-me indeciso, à espera de que prosseguisse.
Ele, então, me deu a dica:
"Quando o senhor passar daquele largo, vai encontrar a estátua
de um cavalheiro, de costas. É logo ali".
Segui seu conselho. O estadista luso estava de fato de costas
para quem ia, como eu.
Fui ao "Nevada". Comi como um abade e encharquei-me do
Bucellas, o velho, e bendisse o Deus que criara o arroz de mariscos e os
ajudantes de farmácia.
Ao então presidente Sarney ocorreu episódio interessante quan-
do, ao lado de Marcos Villaça, fazia a ronda das livrarias, numa sexta-
feira, último dia útil de sua temporada lusitana. Perguntou por um livro.
Não havia, na casa, naquele instante. Gentil, o gerente se prontificou a
consegui-lo. O Presidente lamentou porque viajaria domingo.
E indagou, com derradeira esperança:
Vocês fecham, aos sábados?"
Prontamente, o livreiro negou:
" Não fechamos. Presidente".
"Como?" Sarney perguntou, surpreso.
Foi a vez do anfitrião explicar:
"Não fechamos porque não abrimos".
Hélio Matos, que foi secretário de Hugo Napoleão, participou
de interessante seminário de sua especialidade, realizado nos salões do
Tivoli da Serra, localizado em Sintra, com esplêndida visão de seus
choupais. Fez amizade com outro brilhante colega. Que, ao final do
encontro, quis lhe dar o endereço, mas estava sem cartão de visitas.
Escreveu, então, à mão:

144
"Nome: Joaquim Manuel Pereira
Endereço: Rua dos Ciprestes, nº 60
Telefone: não tem."
Deixamos Lisboa, com saudades. Vamos a Paris. Mais precisa-
mente, ao pato numerado do "La Tour d'Argent".
O maftre quer saber o que bebemos. Pedimos champã. Que
marca? Indaga. Norton Macedo nem hesita:
"O melhor".
Peço-lhe modos, parcimônia, sem muita convicção. O certo foi
que o divino licor rolou como as águas do rio Acaraú nos tempos em que
chovia em Sobral. Como o pato 551.978. O vinho me desata a língua.
De repente, desvenda um francês fluente que jazia em mim e que não
conhecia. Aí falo com o patrão, Claude Terrail. Pergunto-lhe se posso
roubar cinzeiros. Ele não responde. Sorridente, vira as costas, dando-nos
autorização. Volta a conversar conosco. Pergunta por lbrahim Sued. Digo-
lhe que também escrevo em jornal, mais precisamente em O Estado de
São Paulo. Quer saber de Jorge Guinle.
Brinco:
"É aquele miúdo playboy brasileiro?"
Foi uma noitada inesquecível. Éramos seis à mesa. Pagamos 2
mil e quatrocentos francos.
Fomos a Roma e vimos o Papa.
Antes disso, pesa-me confessá-lo, temo que a Folha de São Paulo
o saiba e aí estou perdido e mal pago. Porque jantamos com o Giulio
Andreotti, aquele que, segundo o vigilante jornal paulista, está metido em
grandes maracutaias, até beijava a face dos chefes da Máfia. Pois bem,
comi de seus pirões do Emílio Colombo, presidente do Parlamento
Europeu. Que o intrépido jornal paulista não saiba de tais mordomias, é
o que, todo o santo dia, peço a Deus.

145
UM SUSTO

Há onze anos, num 31 de março ( quanta coisa ruim tem aconte-


cido neste dia!), me apareceu em casa um mala sem alça, um chato tão
desagradável que, por o aturar, não o mandar embora como devia, mi-
nha pressão subiu. Foi lá pro 26º andar. Supus ter sofrido enfarte do
miocárdio. De repente, estou na UTI, imobilizado, sem poder receber
visitas, cheio de tubos no braço e no nariz. Aí você pensa que aconteci-
mento como aquele jamais lhe poderia suceder e, no entanto, lhe suce-
deu. A vítima é você quando bem podia ser o outro. Os outros.
É certo que fui tratado, como príncipe, no Hospital Distrital de
Brasília. E do lado de fora, pela solidariedade dos amigos que foi fervorosa.
Me pelava de medo de morrer. Andava com os nervos à flor da
pele. Havia, acho que ainda há ali, um padre velhinho, padre Brusco,
capelão do Hospital. Pode ter sido impressão minha ou fruto do medo, não
sei. Achei que o sacerdote botava os olhos compridos na minha direção,
imaginando-me presunto iminente, possível freguês de extrema-unção que
ele devia encaminhar, o quanto antes, pro reino dos céus. Um dia, como
ele me olhasse muito, fiquei brabo da vida e mandei-o àquele lugar.
Igual ao que fiz com o Eurico Rezende, então governador do
Espírito Santo, que, ao me encontrar, foi logo perguntando:
"Então, andaste fazendo vestibular pra eternidade?"
Como vocês podem notar, não morri. Não era minha hora e
ainda um bocado de scotch a consumir. Não tenho, porém, leitores, o
direito de tomar o tempo de vocês com recordações de hospital. Vamos a
outras lembranças.

CAMISAS POR CHAMPÃ


Uma vez, estava em Paris e era dezembro. Fazia compras na
Galeria Lafayette, com o ex-reitor Paulo Elpídio, colega de pré-vestibu-
lar e meu amigo desde então. Andava atrás de umas camisas com etique-
tas francesas. Não achei. À certa altura, me dei conta de que não andaria
com as etiquetas pro lado de fora das camisas para açular a inveja
alheia e de que os colarinhos europeus são muito altos e incômodos pros
gogós de cabeças-chatas. Desisti. Era crepúsculo de 31 de dezembro e
tinha sede. Propus, então, a Paulo: "Vamos beber estas camisas?"

146
Ele se rendeu fácil à minha proposta. Fomos, então, à cantina
de Monsieur Krautner, no Boulevard Montpamasse, esquina com ator-
re, executá-la. Sentamo-nos na varanda envidraçada, para não deixar
de ver Paris passar. Paulo pediu champanhe. "Aqui? A estas horas?
Não é possível", diz o garçom. Não vira ninguém até então pedir ostras
e champanhe naquele local, naquela hora. E alinhou severos argumen-
tos contrários ao atendimento de nosso pleito. Depois de ouvi-lo, Paulo,
então, engrossou:
"Será necessário fazer um requerimento ao gerente?"
Ao ouvir falar no patrão, o garçom, furioso, foi lá dentro.
Deblaterou com o superior hierárquico, repetindo as razões do veto.
Perdeu. Fulo da vida, veio atender-nos. Pedi um litro de champanhe. Pra
nos humilhar, ele fez questão de enfatizar o preço.
"É exatamente esta", confirmei.
Resmungando, ele nos trouxe o bom champanhe e aquelas sucu-
lentas, deliciosas, sensuais ostras que se comem em Paris, enquanto o
Paulo filosofava:
"Se fosse na Inglaterra, eles nos teriam pedido mil desculpas,
diriam que não sabiam como nos atender, iam aprender, voltássemos no
próximo ano, nem pagaríamos nada. Agora, não, não dava. Não sabiam
como fazer".

TANTO POR NADA

Fui ao Sara Kubitschek, um dos mais famosos hospitais brasilei-


ros. Lá o chão é tão limpo que dá vontade de você dormir ali naquele
friozinho gostoso. À entrada do prédio, um pano imenso, grosso como
de rede, funciona como tapete, escabelo. É tão limpo que o Wilson Ibiapina
achou que não era para ser pisado. Entrou, esgueirando-se. Lá você é
chamado à consulta através de aparelho de tevê. É examinado pelo menos
por três médicos. Faz um exame caríssimo, a chamada tomografia, além
de mil radiografias. Sem falar numa sessão de choques elétricos na perna,
que levei sem estar mais na ditadura nem ser preso político. Depois de
tanto eu onerar o contribuinte, veio um fisioterapeuta e resumiu meus
males: "Sua espinha vertebral tem cabelos brancos". Era explicou - a
fadigado material. O desgaste natural do uso. Fiquei até com remorso de

147
ter custado tanto ao contribuinte, para tão reles resultado, tão
decepcionante diagnóstico - um mero bico de papagaio. Causado pela
idade. Pior, na casa do sem ter jeito. É ir com ele até o fim. Se doer,
aspirina. Analgésicos. Não carecia hospital tão bem aparelhado, tanto
médico qualificado, tanto exame para um simples problema de coluna. E
para que me receitassem Melhorai.

MEU CARDIOLOGISTA

Meu médico de Brasília, o gaúcho Adir Prates Flores, que estu-


dou no México ao tempo em que a Cidade do México abrigava
avançadíssimo centro cardiológico, é, principalmente, um otimista. Como
já escrevi aqui, no dia em que eu for embora, há de dizer: "Morreu, mas
estava bonzinho".
Além de seu alto-astral, convive com meus hábitos, meus vícios,
meus defeitos, sem querer fazer de mim outro Lustosa. Ou São Lustosa.
Aceita minha sede pelos rouges, meu amor pelos bons queijos. Não exige
que tenha silhueta de sílfide nem que ande, todos os dias, sem destino,
dez quilômetros. Pergunto-lhe quanto devo viver, bebendo o que bebo,
fazendo as extravagâncias que faço e aí obtenho sua resposta. Cala quando
lhe indago se estes que não se fazem restrições, não aceitam fazer
sacrifícios, ficam-se pelando de medo quando chega a hora, quando a
Indesejada das gentes se aproxima. É um médico. Não um diretor espiritual,
um reformador moral. Quero dele apenas me diga por onde vou terminar
indo como vou. Quero que me aceite tal qual sou e serei. Não aquele ser
ideal. Este não precisaria do médico.

RÉVEILLON EM PARIS

Houve tempo em que a Europa era perto. Tão próxima que eu


visitava Portugal todos os anos, o que era doce ao meu coração. Ali era
tratado como príncipe. Dizem que isto mudou e se mudou, lamento-o
deveras. A vida era tão fácil, que podia também visitar a França, com
freqüência. O saudoso Freitas Nobre, cearense de São Paulo, líder do
MDB, vendo meu gosto por Paris, me indicou "Le Grand Hotel de Suez",

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no 31 do boulevard Saint Michel, ali no quente do Quartier Latin, onde
hei ficado, vez primeira, em 1976, pagando oitenta e um francos (a diária
hoje deve orçar por oitenta e um dólares). É pouso que tenho recomen-
dado a muitos amigos e que, por isso mesmo, virou endereço de cearense
em Paris. A localização é privilegiada. Você fica na rive gauche, a um
passo do Sena, da Notre Dame, da Sorbonne, em meio aos célebres
cafés da cidade. Claro, o estabelecimento não tem luxo. E a exigüidade
do seu elevador levou Paes de Andrade a uma crise de claustrofobia.
A primeira vez em que me abriguei, sob seu teto, o proprietário,
Pierre Lemagat me recomendou um apartamento de fundos, dando pra
rue Saint-Jacques, para me poupar da brouhaha, isto é, da algazarra do
Boul Mich. Ora, foi justo o que me atraiu. Se estivesse querendo repou-
so, calma, ia para a Serra de Santo Estêvão. Ou iria fazer retiro espiritual
no Colégio dos Salesianos de Baturité. Queria mesmo era a brouhaha, o
mundo passando e eu o vendo passar do Café de Cluny.
Foi, no Le Grand Hotel de Suez que, certa madrugada, a Providên-
cia Divina me mandou Papai Noel antecipado sem que tivesse eu colocado
os sapatos à porta do apartamento e eu não fui capaz de perceber, de recolher
a dádiva. Estava posto em sossego, prestes a dormir, quando bateram à
porta. Levantei-me, surpreso. Não esperava ninguém. Quanto mais visitas,
sem aviso. Abri. Sabem quem era, leitores? Duas louras dessas que fazem a
alegria dos espelhos, como diria Nelson Rodrigues, dessas belas nórdicas a
quem apetecem, no verão, os negros e os mestiços. Apesar de ciente disto,
sabem o que fez aqui o panaca? Nem lhes abriu, inteiramente, a porta, como
se fazia mister. Apenas, por ela entreaberta, murmurei, trêmulo, confuso:
"Não é aqui, não."
Foi aí que Deus percebeu que eu não merecia as moças. Man-
dou-as cantar noutra freguesia.
Ali, pertinho na rue des Écoles, assisti a um show em que o cara
fazia amor numa rede, pendurado lá em cima, perto do teto. Coitado, era
feito jumento de lote, diria, ao saber do acontecido, lá em Sobral, o dr.
Ramos presidente da Academia de Letras da cidade. Era obrigado a fazer,
por profissão, o que só tem graça por lazer. Enquanto o rapaz, sobre
nossas cabeças, dava duro para cumprir o dever, eu cá com meus botões,
ficava pensando sobre como reagiria o público brasileiro em tal transe.
Se o show fosse aqui, garanto que muita gente ia ficar revoltada. Ia ver,
naquele tesão todo, ofensa pessoal. Uma agressão. Torceria para que o

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casal desabasse lá de cima. O cara não desse conta da moça. Todos,
porém, acompanhamos, atentamente, o esforçado rapaz e soltamos um
"uff' aliviado quando, afinal, deu conta do recado.
Eram fins de 1977 e vinha da Inglaterra. Aportei no modesto
hotelzinho. Ary Kfuri, Norton Macedo e Santos Filho, que haviam alu-
gado limousine presidencial, iam ali me buscar para alegres deambulações
pela chamada Cidade Luz. Numa delas; lancei, literalmente, meu primeiro
livro... às águas do Sena. Eu, no carrão, me sentava no banquinho do
ajudante de ordens. Chique pra valer.
Uma noite, eles foram me pegar para o Réveillon do Maxim's.
Lá fui àquele templo do consumismo, entre novos ricos do mundo intei-
ro, orientais lindíssimas com jóias que me encandeavam. Era eu prova-
velmente o único dos presentes, de smoking alugado.
Quando entramos, sentimo-nos, a princípio, intimidados.
Descontraímo-nos quando o garçom falou espanhol. Pressuroso, lhe co-
loquei, no bolso, cinqüenta francos, para que o champã rolasse, em nos-
sa mesa, como as águas do Acaraú na estação das chuvas. Naquele
tempo, dez francos ainda eram muita coisa. Foi meu presente para o
violonista que tocou "As time goes by" e "Fascination".
Pois bem. Nós - que, de início, estávamos meio mal feitos de
corpo, sem jeito - nos soltamos e terminamos, para espanto dos nativos,
puxando, nos salões, cordão de carnaval, do qual participavam Beki Klabin
e Hosmany Ramos (o cirurgião plástico que virou bandido). Eu, em fran-
cês macarrônico, suplicava, em vão, ao maestro, que tocasse "Cidade
Maravilhosa".
Doce e elegante velhinha, vendo minha euforia, se aproximou.
E, galantemente, deitou-me sobre a cabeça confetes que trazia num copo.
Eu, bicho do mato, sem nada entender, lancei o conteúdo do meu copo
sobre ela. E o "champã" manchou a linda pintura de seus cabelos azuis.
Desapontada, ela voltou para sua mesa, para sentar junto ao marido.
Não levava raiva porque não identificara maldade nos meus olhos, no
meu gesto. Só ignorância.
Uma tarde, fui à Place de Tertre passear. E lá terminei me ren-
dendo à cantada de um daqueles projetos de Picasso, estudantes de pintura,
e me deixei retratar. Quando vi o resultado do trabalho, francamente não
gostei. E o disse. Achei-me muito lânguido. Reclamei ao pintor: "Está
muito maricon ... "

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Ele, no ato, devolveu a pelota:
"No tiengo culpa."
Doutra feita, estava no Café Cluny, em manhã ensolarada. Um
bêbado dormia na calçada, na coxia. O sol forte o acordou. De repente,
se deu conta de que estava diante do café. E viu a todos nós, ali senta-
dos, tomando nosso chá, nosso vinho, e se irritou. Desfechou então o
que lhe pareceu supremo insulto:
"Capitalistes! Capitalistes!"
Só pude exclamar espantado, ante o riso dos presentes:
" Moi, capitaliste?"

DE MICRO NOVO NO CYBERESPAÇO

Deixem-me dizer que não sou ligado a gadgets, como alguns


amigos. No apartamento do Luciano Diógenes, por exemplo, se acotove-
lam oito a nove aparelhos de tevê, outro tanto de aparelhos de som,
gravadores e computadores. Que nem Wilson Ibiapina, outro colecionador
de quinquilharias eletrônicas, é uma espécie de Jacinto de Tormes, digo,
de Senador Pompeu, em matéria de acumular conquistas da tecnologia.
Eu, não. Não me apego a tais novidades. Em máquinas. Pior.
Nunca tive até hoje um relógio e vivo sem tal adereço muito bem. Jamais
pensei em adquirir um telefone celular. Quem teria tanta urgência em
ligar para mim? Meu carro não tem som nem rádio, mas nem por isso
deixa de me levar aonde quero, aonde preciso.

Sem tevê em cores

Nos primeiros tempos de Brasília, nossa empregada doméstica


estranhava que o irmão dela possuísse um big televisor em cores e nós
apenas uma pequena tevê preto e branco. Foi quando comprei um apa-
relho de grande porte. Que estava capenga, com quase vinte anos nos
couros. Aceitei sugestão de Sara para doá-lo. Rebolar no mato, como
dizemos na terrrinha.

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A economia do desperdício

A quem? Pensei nos porteiros. Qual deles quereria tão arcaico


presente? Iam considerá-lo um acinte. O telão de um deles era muito mais
caro que o nosso melhor aparelho. Com a facilidade de compra, através do
crediário, nos primeiros meses do Real, quem iria querer um aparelho de
tevê de vinte anos de idade e funcionamento? Felizmente, Sara lembrou
antiga criada que mora, com crescente número de filhos e netos, num arrabalde
miserável, numa de nossas cidades satélites, e foi lá deixar o presente.

O complexo do Paulo

Ex-reitor Paulo Elpídio vi via muito satisfeito com seu computa-


dor. Que, para gente de nosso tope, é uma máquina de escrever metida a
besta. E que, através da Internet, nos aproxima dos amigos distantes.
Passaram, porém, a lhe pôr complexo de inferioridade. A pressão do
consumidor. Em derredor, amigos e colegas indagavam:

"Quantos megahertz tem teu micro?"


Ele respondia: "cem".
O outro nem disfarçava o desprezo. Pisava em cima:
"Pois o meu tem duzentos".

Aí o Paulo promoveu o up-grade. Uma prótese em sua máqui-


na, a fim de lhe aumentar a potência para 200mhz.

Superior, ao menos nisso

Ele caiu na besteira de confessar tal fraqueza, numa prazerosa


noite em que, há pouco, nos encontramos na capital. Jurei a mim
mesmo ficar superior a ele. Ao menos no setor de informática. Assim
adquiri (ainda não descobri para quê) um 233 mhz. Ia até mandar um
e-mail tripudiando sobre ele com minha transitória vantagem. Mas o
Reitor ainda não havia voltado ao Rio. Falei em passageira superiori-
dade porque, em seis meses, minha poderosa máquina estará antiga,
de cabelos brancos, pedindo substituta, dada a velocidade da acelera-
ção histórica.

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O lixo moderno

A gente ouve falar no lixo de cidades como Nova Iorque ou


Tóquio em que encontramos aparelhos de tevê, computadores, até pia-
nos de cauda esperando a coleta do Serviço de Limpeza Pública. Estamos
a caminho disso. Inclusive porque consertar um som, um liquidificador,
um ferro elétrico é totalmente antieconômico.

Velho?

O que, então, fazer com meu Pentium 60, adquirido em Paris


em fins de 1994 por mais de três mil dólares. Por quanto ele o queria? O
vendedor, fingindo encabulamento, olhando de lado, murmurou:
"Uns cem dólares".
O quê, homem? Por este preço, ele fica no quarto da emprega-
da, servindo nas emergências. E também para eu não ter saudades da
máquina tão prestante, embora no começo meio arisca, recordo, pela
qual já me afeiçoara e a quem dão tão pouco valor.

PERDI A CONTA DAS GAFES QUE COMETI

Segundo o dito popular, em boca fechada não entra mosca. Tem


mais: nem dela sai besteira. Quantas gafes já cometi, em minha vida, só
por falar o que não devia? A loquacidade e a pressa foram mães delas.
Por isso, é melhor manter a boca fechada. Daí decorrem duas vantagens:
você não engorda nem diz tolice.
Lembro-me de que, certa vez, de férias em Fortaleza, fui
incumbido por seu Costa de pedir a casa da Rodrigues Júnior, que
estava alugada, porque íamos trocar Sobral pela Capital. Ele me
advertiu, várias vezes, para o fato de que o inquilino era muito mais
novo que a mulher. Prestasse bem atenção para não dar mancada.
Vacilo. Felizmente quando cheguei lá, a dona de casa não estava
presente. Fiquei descansado. Descontraí-me. Ao lado do locatário, de
cabelos e bigodes negros como a asa da graúna, sentava-se sua avó,
doce velhinha, cheia de cãs. Falando pelos cotovelos, à certa altura
da conversa, fiz referência à septuagenária:
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"Com licença, aqui, de sua avó .
Foi a vez do dono da casa me advertir:
"Não se trata de avó. É minha mulher".
Vocês pensam que melhorei com os anos? (Aliás, ninguém me-
lhora nada com o tempo. Perde tudo, inclusive a vida. Depois, falo sobre
esta ilusão de que, como os vinhos, somos cada vez melhores, com o
correr dos anos). Fiz foi piorar. Era março de 1964, véspera do golpe.
Estava na entrada da Câmara quando divisei Guerreiro Ramos. O soció-
logo era suplente de deputado federal em exercício. Conhecia sua obra e
sua vida. Pra mostrar isto, perguntei:
"O senhor foi integralista até que ano?"
Ele quase engole o charuto. E a mim, também.
Anos depois, pensei em escrever sobre a Legião Cearense do
Trabalho, do Severino Sombra, e da vinculação do clero ao integralismo.
Sabem pra quem toquei o telefone, pedindo depoimento? Imaginem! Pra
outro integralista arrependido, dom Hélder Câmara. É claro que o santo
varão se saiu com quatro pedras na mão. Tinha toda razão: pra que eu ia
ressuscitar justo o capítulo ensombrado de sua brilhante biografia?
Outro dia, fui tomar uísque com Lúcio Alcântara e a filha Daniela,
arquiteta. Disse-lhe que o Wilson lbiapina não viria, apesar de convidado,
porque ia levar a filha, Flávia, pra casa. E acrescentei:
"Ele não veio porque a Flávia é muito nova e talvez não tivesse
o que conversar com Daniela".
A arquiteta ficou braba:
"Ora, Lustosa, a gente se rala, se mata de estudar pra se formar
cedo, pra ser chamada de velha!".

No aeroporto de Brasília, o Ministro da Justiça, Petrônio Portella,


que era muito vaidoso e também muito gentil, agrada meu filho Carlos
Eduardo, então com seus dois anos e num dia de muita simpatia.
Correspondeu aos agrados do senador piauiense e lançou-se em seus braços.
Petrônio, muito vaidoso, informou: "Toda criança é louca por mim".
Eu, sem qualquer necessidade, aparteei: "Ele é assim com
todo mundo".

Ainda no aeroporto, o então Ministro do Exército, Sylvio Frota,


que andava sonhando com a Presidência da República, me cumprimen-

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ta. E logo lhe falo de sua raiz sobralense, sobre o que ele não tem muito
a dizer, pois morou pouco tempo na Princesa do Norte. Entende de
contar a discussão havida numa Câmara Municipal de Mato Grosso em
que alguém argüiu contra determinada obra pública a lei da gravidade.
Eu, sôfrego, imprudente, cortei-lhe o barato:
"E um vereador apresentou projeto revogando a lei da gravidade?"
Era. Mas devia ter deixado o fim para o narrador.
Anos depois, em Paris, passeando pelos Champs Elisées, encon-
tro o ex-ministro Jutahy Magalhães, que perdera a eleição na Bahia. A
certa altura, a título de autoconsolo, comenta: "Graças a isso é que posso
estar assim, tão à vontade, passeando em Paris". Não me custava nada
ficar calado. Sabem os leitores o que respondi?
"Pois encontrei, nesse instante, o Teotônio Vilella Filho, que
nem precisou perder a eleição para vir a Paris ... "
Wilson Ibiapina conta que o avô, Pedro Ferreira, historiador da
Serra Grande, nunca respondia à primeira pergunta que lhe faziam.
Mesmo correndo o risco de parecer surdo, esperava que ela fosse repeti-
da. Ao neto, explicava:
"Quando você ouvir uma pergunta a primeira vez, medite. Fi-
que pensando nas respostas que pode dar. Prefiro parecer surdo a res-
ponder logo da primeira vez".

O QUANTO MELHOREI

Nunca cheguei a jogar o sorvete na testa, inclusive porque, no


meu tempo de menino, ele vinha em taça de metal. Pelo menos, no bar
Cascatinha, em Sobral, não havia as casquinhas de hoje.
Ao longo dos anos, devo confessar, evoluí muito. Já sei até abrir
gaveta de bagagem de avião. E sozinho. Aprendi isso depois que entendi
que push, ali escrito, não me recomendava puxar e, sim, premer, pressi-
onar. Ainda não sei abrir, devidamente, aquele saquinho de plástico que
contém os talheres. Também, não se pode ser perfeito. Não se deve
aprender tudo duma vez. Senão, perde a graça. Não nos resta mais nada
a acrescentar, em matéria de conhecimento, de curiosidade a satisfazer.
O ex-reitor Paulo Elpídio Menezes Neto costuma dizer que
somente encontrou alguém pior que eu, em matéria de coordenação

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motora, o ex-governador Parsifal Barroso. Este, até pra fechar a porta
do carro, fazia-o da maneira mais desajeitada, mais complicada possível.
Como ia dizendo, sem intenção de humilhar vocês, tenho melho-
rado muito. Sei até ligar o aparelho de televisão. Só não sei é ir atrás da
imagem quando ela vai embora, nem da cor, quando ela foge do vídeo.
Passei por maus momentos. No tempo em que viajava pro exte-
rior, acho que foi em 1972. Passei noite de cão no King Minos Hotel, em
Atenas. De calor sobralense. Ou senegalês. Tudo porque não soube ligar
o ar-condicionado do apartamento. Só dia seguinte o descobri, o que não
me adiantou mais nada.
É certo que não sei ligar o CD player pra ouvir os discos laser.
Cantos gregorianos. Isto, porém, ocorre até com gente mais moça. Um
dia destes, no avião, o Wilson me contou que o filho dele foi passar
temporada nos States. Antes de viajar, passou-lhe uma série de instruções
sobre como manipular os aparelhos eletrônicos da casa. E ia perguntan-
do: "Está entendendo, pai?". Mesmo quando não compreendia, o nosso
Aragão dizia: "sim", temendo apenas que o mestre o submetesse a teste
e o pegasse na mentira. Raquel não teve tais cuidados, ao viajar. Espera-
rei por ela, pra ouvir meus discos.
Quando morava, sozinho no Rio, vivi instante de desespero. Queria
até morrer. Sabem por quê? Porque a pia da cozinha do apartamento
entupira. Deu-me aquele desespero que me acomete quando sou obrigado
a encarar os pequenos desafios do cotidiano. Danilo Marques, que
presenciou minha angústia, elegeu-a como símbolo de minha incapacida-
de de resolver problemas menores. Quando me vê, semblante preocupado,
tenso, indaga:
"A pia entupiu?"
Pode ser Q.I. baixo. É que também houve salto tecnológico
vertiginoso. Taí a xerox. Sou do tempo da prensa manual para copiar
documentos. A cópia saía, naturalmente, borrada da rudimentar máquina
existente na Fábrica Santa Catarina, em Sobral. Agora, a xerox reproduz
centenas de cópias, num abrir e fechar de olhos. Sem falar que o telefone
engole uma delas, por segundos, e logo a remete pra Tóquio, Los Angeles
ou Sobral. Pra mim, é milagre. Continua a ser milagre.
E o telefone? Sou dos que ainda falam alto, ao telefone, quando
recebe chamada internacional, lembrando o tempo em que a gente queria
fazer-se ouvir, através do Atlântico.

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LIVRO É QUE NEM FILHO

Não vale a pena levar nada muito a sério. Nem nós mesmos.
Quem se leva muito a sério, perde o sense of humour. Corre o risco de
se tornar chato. A propósito, dizia eu a um companheiro de bar que,
quando jovem, li os livros certos, na presunção de que ia ser alguma
coisa na vida. Logo, porém, percebi o quanto me enganara. Ele supôs
que eu estivesse brincando. Riu muito, lembrando Alvaro Moreyra:
"Um dia acreditei na vida. Ela, em mim. Depois, desandamos a rir um
do outro..."
De quando em vez, a gente é dado a um balanço existencial.
Olhar o que ficara pra trás.
Filhos, pelos quais respondo, tenho quatro. Livros quase dez,
se incluídos os Anuários do Ceará, editados em parceria com Dorian
Sampaio. Árvore só me lembro de haver plantado uma. Foi ali em
frente ao Hospital Militar no sesquicentenário de Fortaleza quando o
alcaide era o Fialho.
Na vida, porém, já me meti em cada uma. Eu mesmo quando
volto a cabeça pro passado, tomo susto.Um dia desses, a Suzana Ribei-
ro, numa das missas de sétimo dia a que vou, quando estou em Fortale-
za, me perguntou se havia sido proprietário de "A Invernada". Pensei em
título de livro. Em propriedade de algum irmão ou cunhado. Até que ela
me esclareceu que se tratava do sítio do cardiologista Luiz Carlos
Fontenele, ali no Coité, perto da estância do José Macedo. Aí me lembrei
de que já me acontecera a inacreditável aventura de ter sido dono de
sítio. Foi quando apareceu o Luiz Carlos e me livrou de tal responsabili-
dade e até hoje lhe sou grato por isto.
Já me imaginaram de botas compridas (com medo das cobras,
claro, embora o Hélio Barros garanta que os ofídios só nos picam, nos
mordem quando se sentem ameaçados, quando têm medo de nós. Meu
Deus, como é que eu vou chegar perto de uma cascavel e perguntar
qual a expectativa dela em relação a mim?), caminhando no mato,
estabelecendo relações de trabalho com os campônios, voltando à cidade,
com o carro lotado de macaxeira, ovos, galinhas caipiras, verduras,
frutas? É ocorrência tão antiga, tão paleontológica quanto certos casa-
mentos bestas que você faz e que é como se nunca houvessem nos
acontecido, como se tivessem sido protagonizados por terceiros. Por

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isso, tive de buscar esta recordação nos desvãos, nos sótãos
empoeirados da memória.
Tudo isto de árvores e sítios me vem à mente porque o Neno
Cavalcante e o Edmo Linhares, em Fortaleza, e o Paulo Pestana, em
Brasília, entre outros amigos, me cobram mais um livro. Enfeixar,
num volume, estas conversas pra boi dormir. Quer que elas deixem
de ser couves do amanhecer. Que se eternizem num livro de crônicas.
Sei, não. Será que vale a pena? Antes devo saldar compromisso
assumido comigo mesmo, de escrever romance, versando aspectos
da saga sobralense. Posso dizer mesmo que, há muito, ando grávido
desta obra. O parto está tão demorado quanto de mula. Para me
estimular, meu tio, Oscar, o historiador da Igreja Católica, garante
que, um dia, sai, e sai a jato. Deus o ouça a ele que é seu funcionário
graduado. Assim o espero. Isto não quer dizer que não me venha a
render, porém, à sugestão.
É que tenho publicado muita coisa, apressadamente, sem que
houvesse razão para tal correria, tanta agonia. É que vivo tão rápido que
o Guilherme Neto costuma perguntar se tenho muito medo de morrer.
Às vezes, amigo de fé, identificando notórias falhas de acabamento em
minhas obras, me adverte disso. Como meu ex-professor, o padre-poeta
Oswaldo Chaves, lá de Sobral.
A gente, porém, não se emenda. Inclusive porque livro é que
nem filho. Quando nasce, você pode até achá-lo feinho. Depois se acos-
tuma. Termina por amá-lo e não querer mais perceber seus defeitos.
Taí, inicialmente, o caso de Sobral do meu tempo, preguiçoso
como costumam ser livros de jornalistas, reunindo, sem maiores cuida-
dos, páginas de memórias, crônicas, pesquisa histórica, artigões sobre a
cidade em que vivi a infância e parte da adolescência. Até a foto de capa
saiu errada. Quem notou a falha da montagem foi o engenheiro Oswaldo
Rangel, colega, acho que do curso primário, no Educandário S.José, de
dona Honorina Passos, como o irmão Antônio, oftalmologista, na noite
do lançamento em Sobral. Este enjeitadinho me tem proporcionado
grandes, indizíveis alegrias.
Quando conheci Jorge Amado em casa de Roseana Sarney, ele
me disse: "Li seu livro e gostei. O James, também." E acrescentou: "Ali
há material para quatro a cinco romances." (Foi o que também disse
Blanchard Girão, ao escrever sobre Clero, Nobreza e Povo de Sobral.

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O que me cobrava, muito antes disso, o saudoso Juarez Barroso, não sei
bem porquê. O que exigem de mim sempre que me encontram José
Rangel e Tarcísio Tavares, entre outros amigos.)
Depois, um amigo gaúcho, René Domeles, me avisou que, por
conta dele, sou citado no Aurélio, segunda edição. Não sosseguei senão
quando folheei as mil e tantas páginas do dicionário e ali encontrei seis
referências ao livrinho. Voltei-me, então, pra ele e agradeci-lhe, contrito,
o prazer que já me proporcionou, com remorsos, como se lhe pedisse
perdão do pouco caso em que, durante muito tempo o tive, antes do
reconhecimento alheio.

COMO SÃO SÁBIOS OS VENDEDORES DE


RAPADURA!

Quando me pediram para falar de 1994, só pude dizer que o


acontecimento mais triste, deste e de outros anos, se passou no âmbito
familiar: foi a partida de meu pai. Ele se foi e restou um consolo: saiu de
cena sem sofrer e sem infligir sofrimento aos outros. Deus o poupou do
que mais temia: a humilhação da invalidez. Da dependência física ou
financeira. "Seu" Costa morreu de repente, na plenitude de sua alegria,
de seu otimismo, de sua lucidez A gente sabe que vai acontecer,
inexoravelmente. Apesar de esperar, de temer, por muito tempo antes, o
ocorrido nem por isso dói menos. Aproveitei muito a convivência dele,
nos últimos tempos, recolhi seus "causos", registrei suas recordações
sobralenses, razão porque não me ocorreu, em momento algum, me re-
criminar por não lhe haver dado assistência. Ainda assim, machuca.
Passado o impacto, é que a gente sente a pancada. A dor de saber que
nunca, nunca mais ouviremos suas histórias, sua risada, sua tosse.
Jorge Luís Borges costumava dizer: "Meu pai morreu e está
sempre a meu lado. Quando quero escandir versos de Swinburne,
faço-o, dizem, com a voz dele." Lá em casa, somos mais prosaicos.
Ninguém da família freqüentou Swinburne. Lembro meu pai, em
circunstâncias mais banais, porque herdei sua tosse ruidosa, quase
disse escandalosa.
Ele nunca leu "Rei Lear" de Shakespeare mas gostava muito de
contar as histórias de sertanejos abastados que precipitavam a própria

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sucessão, antecipando a herança dos descendentes e terminavam a vida,
na miséria, na mendicância. Era o que temia e de que Deus o poupou. Nas
memórias que começou, fala da ajuda literária que lhe dei na educação da
numerosa prole, nunca financeira "porque nunca precisei", conclui
orgulhosamente. Ao contrário, envaidecia-se de me pagar o almoço dos
domingos no Marina ou no restô do Ideal e queria que bebesse o uísque de
qualidade, nunca de marca mais barata para lhe poupar despesa. E também
de entrar com alguma contribuição pras campanhas eleitorais dos filhos.

Imaginem os leitores a áfrica que foi viajar, em temporada de


festas, de Paris para Fortaleza. Embarcamos eu e Fred, depois de todos
os passageiros. O bagageiro já fechado. Atordoado, ouço um vizinho,
guri duns 16 anos, dizer que descende de família cearense. Quando acordo,
quero saber direito sua história. Como Ivone Araújo, matriarca sobralense,
amiga de dona Dolores, pergunto logo: "Quem é seu avô?" Ele é
Bernardo, neto de Maria Teresa, minha colega de francês, em tempos
idos e vividos que se divertia muito com minha dificuldade de pronúncia
e do grande tisiologista Gilmário Mourão Teixeira que trocou o consultório
em Fortaleza por um posto importante na Organização Mundial de Saúde.
Lembro que, numa manhã de sábado, de sol, tomei, no bar do extinto
Savanah, gim tônica com ele, o ex-reitor Valter Cantídio, os saudosos
José Carlos Ribeiro e Newton Gonçalves. O garoto mora em Bruxelas
onde o pai é diretor da Coca-Cola e vai pro Rio, curtir os avós.

Na Varig, a moça que me atende tem, no tom da voz, cadência


familiar. Intrigado, a certa altura, não resisto. Pergunto-lhe de quem é filha.
Diz que é do Wilson Machado. Então! Foi meu colega de PRE 9 quando
me pediu o apresentasse a Carlos Jereissati para ser candidato a vereador
pelo PTB, depois deputado estadual, pelo MDB. Neste tempo, Carolina
não era, sequer, uma aura de desejo no olhar de seu pai cuja casa
freqüentávamos, depois do Telejornal Crasa, para comer arroz de pequi,
quando Lúcio Brasileiro era assediado por fundas nostalgias gustativas.

Debaixo da marquise do Palácio do Comércio, ao lado da pri-


meira agência do Bancesa, enquanto compro rapaduras de Cascavel pra
minha sobremesa em Paris, sou abordado por uma velhinha que me
pede esmola e com sorriso triste no canto da boca me revela que até

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aquela hora não comera nada. Está com fome. Derreto-me em senti-
mentalismo. Penso logo em minha mãe - que tem praticamente a sua
idade - e que nunca viveu provação igual porque sempre teve, graças a
Deus, oportunidade de trabalhar. Não sou como aquele pão-duro que se
diz socialista e nega esmola aos pobres por não querer atrasar a marcha
da Revolução. Não, não vou esperar tão laborioso parto da História.
Prefiro remediar aquele problema momentâneo, pagando o almoço da
conterrânea. O vendedor de rapadura sentencia:
"É melhor poder dar que precisar pedir."
Como são sábios os vendedores de rapadura de minha terra!

UMA BISAVÓ

Não é noite. Já não é mais manhã. Fui mais moço, podem crer.
Talvez nem o aparentasse. Quando assumi meu primeiro emprego na
secretaria do Náutico Atlético Cearense, uma das funcionárias, Frassinetti
me indagou: "O senhor já tem uns 27 anos?". A danada me sapecava,
exatamente, uma década a mais. Tudo por conta do ar taciturno, austero,
de ex-seminarista, os óculos, o paletó escuro.
O tempo passou na janela. Por dentro, você até pode nem notar.
Mas se se detém, se você presta mesmo atenção, aí você sente. Não só
no espelho de seu quarto. E no olhar das mulheres. Também na maneira
com que o tratam.
Foi aquele domingo de voltar mais cedo da Praia do Futuro. Vinha
a sós, imerso em meus pensamentos, quando, à altura da esquina do Náutico,
duas suburbanas, sumariamente despidas, pedem carona. Você,
delirantemente otimista, começa a sonhar que vai se dar bem. Uma delas
põe a cabeça dentro do carro e formula a desastrada pergunta:
"Tio, o senhor podia nos levar ao centro?"
Claro que não. Se queriam realmente que as levasse, mesmo que
fosse só isso, deviam primeiro aprender a tratar a gente. Uma mentirinha
galante, consoladora, teria pegado bem. Se me injuria de "tio" que vá a
pé. No máximo, de buzu.
Tem coisas, porém, que são inevitáveis. De que não é possível
escapar. É quando você dá de cara com seu nome, na coluna "Há trinta
anos" de O Povo, entrevistando o governador Miguel Arraes no programa

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"Política quase sempre" da TV CEARÁ. Quando já não tem filho de
amigo na relação dos aprovados no vestibular. (Quem está passando, agora,
são os netos). Quando a porta do elevador se abre, e lhe dão preferência
para sair. Quando você é apresentado a um jovem profissional. nem mais
pergunta: "quem é seu pai?" vai logo querendo saber o nome do avô.
Sabem o que me aconteceu, na última vez em que fiz isso? Foi na S.
Raimundo onde fora ver o Régis Jucá. Pois a moça, uma médica, doutora
Marilena, respondeu que era neta. Sim, neta de um antigo companheiro de
uísque, de noitadas do fim da década de sessenta, Zé Raimundo Gondim.
Tem pior.
O pior mesmo me aconteceu, um dia desses, ao folhear página
do DN GENTE da Soninha Pinheiro. De repente, não mais que de re-
pente, deparo-me com foto de respeitável senhora, ainda gloriosa ruína
que ali comparecia como bisavó. E que, em tempos idos, fora minha
Julieta, sendo eu Romeu, minha Virgília quando era Brás Cubas.
Ainda guardava resquícios da beleza antiga mas era bisavó. Eu
amara, outrora, uma moça que, hoje, possui bisnetos. Considerei-me, de
alguma maneira, uma virtualidade de bisavô.

CORAGEM DE QUÊ?

Quando estava no exterior, Zé Bonifácio Câmara me enviou


cartão-postal exaltando a coragem de me operar do coração em Paris.
Fiquei matutando comigo mesmo sobre se merecia a homenagem. Acho
tão engraçado este tecido de equívocos que se vai enroscando em torno
de minha biografia. Não sabe ele o quão covarde sou. O medo que senti.
Durante os quinze anos em que andei fugindo do bisturi. Antes. Depois
da operação, quando me vi mais cheio de pontos que estudante aprovado
em vestibular, é que me dei conta de sua gravidade, do abismo que pulei.
É verdade que, passado o evento, devo reconhecer que não carecia ter
tido tanto medo, não. Mas tive.

Não sou valente. Não tenho, como dizia meu pai, coragem de
mamar em onça. Ocorre que, quando ia fazer qualquer exame, os médi-
cos assumiam tal ar de pânico que quis saber a razão. Eles foram claros;
se ficar, o bicho pega. Se fugir, também. Asseguravam que carregava

162
uma bomba atômica no peito, bomba que podia explodir a qualquer
momento. Isto nos outros já é grave, vá lá na gente. O negócio era
resolver logo. Por que, porém, aqui na França e não em Fortaleza, com o
Régis, tendo dona Dolores por perto?
Não dava. Tinha um trabalho a executar em Paris. E a tempora-
da de estudos dos filhos no Velho Mundo. Você não é só você, sua bolsa,
seu livro, seu copo de vinho. É você e suas circunstâncias. Tinha de ser
em Paris. Não fui tão destemido assim, como pensa o Bonifácio, em
enfrentar a solidão de um hospital estrangeiro. É que no seu colégio de
cirurgiões havia uma voz brasileira, acatada, a me socorrer. Era o médico
brasiliense, Leonardo Esteves Lima, com experiência de dez anos em
trinchar corações alheios. (Ele me levou a seu chefe, Prof. Iradj
Gandjbakhch, que, um dia desses, esteve em todas as folhas do mundo,
como tendo realizado uma operação sem abrir o peito do paciente. Façanha
que o discípulo repetiu logo depois em Brasília. Por que não esperei por
ela7). Por isso, fui. E, felizmente, voltei. Estou aqui, contando a história.
Outra vez foi um deputado estadual que subiu à tribuna da As-
sembléia Legislativa para me ameaçar de engolir o jornal em que escre-
vera algo que lhe desagradara. Que devia fazer diante do valentão? Deixar
de freqüentar o Poder Legislativo? Mudar de cidade? Trocar de profissão?
Morrendo de medo, voltei lá no dia seguinte. Ele esbravejou de novo
desaforos da tribuna e ficou por isso mesmo. Por causa disso, durante
um ano inteiro, eu andava com um revólver no cós, arma que o Dorian
Sampaio me emprestara. Serviria para quê? Para jogar na cabeça dele se
me agredisse? Talvez só pra isso.

Esta fama que termina me acompanhando decorre de fatos


consumados, diante dos quais tive de me curvar. Em 1966, quis passar
de testemunha a protagonista. De repórter político a deputado. Não tinha
um tostão no bolso ou no banco. Nem apoio de ninguém importante. A
não ser os amigos. Fui o candidato mais votado do MDB a deputado.
Não me elegi por falta de combustível. Da vil pecúnia para comover o
eleitorado interiorano. Diante de tal brilhareco, houve amigos que me
exaltaram a intrepidez. O destemor. A ousadia. Que nada!
Como jornalista, estava habituado à rotina do vereador. Do de-
putado estadual. Que acordavam, com um "doido" amarrado à porta,
vindo, de jipe, do interior, para ser hospitalizado de qualquer maneira.

163
Ou que tinha de aviar uma intervenção cirúrgica urgente. O enterro a
pagar. Tudo que explodia no peito, na mão do despachante, digo do
vereador, do deputado e ele tinha de resolver sozinho. Encarar. (Não foi
coragem coisa nenhuma). Só por isso, fui logo candidato a uma cadeira
na Câmara dos Deputados - para ficar longe das bases, da realidade
eleitoral, hoje o confesso.

UMA PALAVRA DE ALENTO

Contei, aqui, a história do meu benfazejo Barão de Münchausen,


um cara que, quando cheguei em Brasília, me ofereceu trabalho que
equivaleria a seis meses de salário de O Estado de S.Paulo. Apesar de o
conhecer, acreditei. E foi bom. Andava meio duro. Embalado nessa
promessa fui à luta. Descobri outras fontes de renda que não aquela,
nascida apenas da vontade de agradar, sem maior compromisso com a
realidade. Sábado, tive o prazer de reencontrá-lo na ronda das livrarias.
Quando lhe disse que, no segundo semestre, iria à luta para complemen-
tar os ganhos, de pronto, me ofereceu excelente emprego de bom fim-
de-mês, meio expediente, trabalhando para um velho conhecido e para
fazer aquilo de que gosto. Com que facilidade, ele me resolveu o proble-
ma! Passei, graças a ele, ótimo fim de semana.

É claro que a promessa e o emprego ele os esqueceu, ao tomar o


carro. Ao encontrar outro conhecido. Fez-me bem, porém, devo confes-
sar. Gosto de suas mentiras alvissareiras. Quando falei no lançamento de
meu romance, ele se prontificou a me ajudar. E foi logo dando o nome de
colegas a quem devo procurar, amigos que poderão ser úteis. Ao final,
terminei por lhe agradecer a boa vontade e o encorajamento. Depois refle-
tindo, vi que se tratava de pessoas a quem conheço, há mais tempo de que
ele. Meus amigos. Ele bolou, porém, o lançamento duma forma tão cheia
de boa vontade e inteligência que saí do papo duplamente feliz. Com a
mobilização de minhas afeições e a esperança de elevar o padrão de vida.
Há certas pessoas que nos presenteiam, com tanta simpatia e
generosidade, com o que já é nosso, que nem o percebemos na hora. E a
eles ficamos agradecidos. Sabem multiplicar e fazer render nosso capital
como ninguém.

164
Um amigo ia comprar um carro popular para a filha. Ao encon-
trar um conhecido rico, disse-lhe de tal intento. O outro o dissuadiu e o
convenceu a adquirir um carro de melhor qualidade. (Jamais conheci rico
que me desse dinheiro. No máximo, idéias.) Afinal, a moça só lhe dava
gosto. Vinha de concluir mestrado no exterior com brilho. Estava na idade
casadoura. Um automóvel melhor era carro de representação. Essencial.
Como o meu amigo alegava estar sem dinheiro, lembrou que, em junho,
ele receberia parte do décimo terceiro salário. Perguntou se tinha ações da
Telebrasília a torrar. Um saldo do fundo de investimentos 157. Cozeu-o,
com competência, na própria banha. O certo é que terminou o papo
persuadido a dar um veículo de melhor qualidade à herdeira. E como na
fábula da divisão dos camelos de Malba Tahan, mais do que isto, dotado
dos meios para tanto. Pelo menos na avaliação otimista do outro.
Assim fui eu.
Quando deixei este amigo mendaz e gentil, parti melhor de vida e
de estado de espírito. É sempre melhor de que dar de cara com alguém
que vai azinhavrar o resto de teu dia. E também acontece.

SAPATOS NOVOS

Crônica se presta a muita coisa, às vezes. O que pode interessar,


por exemplo, aos leitores, contar-lhes que abri dos peitos e comprei um par
de sapatos? No entanto, o cronista tem o descaramento de tomar o precioso
tempo de vocês, para lhes falar de acontecimentos tão chãos. Pois bem, os
sapatos novos me constrangem os pés. Estão apertados. Sabem os leitores
por quê? Porque a indústria de calçados importa modelos da Europa que
não têm a ver conosco. Os nossos antepassados próximos estavam até um
dia desses trepando em pé de pau na África ou correndo, descalços, os
Peris e as Iracemas por nossas campinas. Como podemos, assim, ter pés
finos, educados como os da gente do Velho Mundo, que anda calçada
desde os tempos dos Césares? Ou mesmo antes?

165
MUSA DA DÉCADA DE SETENTA

Ando relendo crônica do comecinho de 1970 que escrevi sobre


uma senhora que morava naquela rua, ao lado da antiga 25 Circunscrição
Militar, pegada ao prédio da Secretaria de Polícia, com quem, às vezes,
conversava, saindo do Edifício Pajeú onde trabalhava (ali era a Ceará
Rádio Clube) a caminho do centro. Foi uma "Carta do Beco" escrita assim:
"Tenho uma namorada. Minha namorada se chama Justina. Os
cabelos de minha amada são brancos, muito brancos. Às vezes parecem
lilás. É muito vaidosa minha namorada. No escandaloso azul da tarde, ela se
põe à calçada. Cadeiras na calçada são o fraco de Justina. Quando nos
vemos, os olhos brilham de alegria e ela fica tão jovem. É perfumado, sabe a
banho recente, a fino sabonete o beijo de Jus tina. Quando ela senta à calçada,
a rua se transfigura. Porque ela põe 'boas noites' e 'eu e tu', manjeronas e
alecrim imaginários na Rua Sena Madureira. A cabeça branca fita o longe e
ela olha o infinito, bêbada de ternura, de sonho, de fantasia. Tem uma alma
jovem, tecida da melhor alegria da primavera esta namorada que a tarde me
desvenda e é sua prenda mais rica. Foram muitos os janeiras que viveu, mas
ela só lembra os bons. Uma mulher de muito amor parece-me esta Justina."

RECUERDOSDESOBRAL

Pego a capa do caderno em que escrevi em 1947 as páginas de


meu diário. Vejo que o adquiri na Comercial Gráfica de Luiz Aquino &
Cia., na rua Menino Deus, 106 ou Domingos Olímpio, 25, porque era
uma tipografia e papelaria situada na esquina.

RECUERDOS DO RIO

Entre os meus guardados, encontro um anúncio de jornal do


programa Informe Especial da TV Tupi em que Murilo Melo Filho, Pedro
Gomes, Luiz Viana (assim assinava suas reportagens o ex-deputado
Prisco Viana, que logo depois teve de mudar de nome, na Bahia, ao ser
nomeado secretário de imprensa do governador Luiz Vianna), Cícero
Sandroni, Lustosa da Costa, sob a direção de Heron Domingues. Foi em
julho de 1967 quando entrevistamos o ministro Delfim Neto.

166
FUGIR PARA ONDE?

Num encontro com amigos, eles alinham os assaltos de que eles


ou familiares foram vítimas em Brasília. Paulo José sentencia: "Sob este
aspecto, Brasília já era". De fato, a capital era aquele paraíso da classe
média, poupada dos pobres, todos eles antigamente conformados em
morar nos guetos em derredor. Ocorre que, por demagogia, um
governador distribuiu centenas de milhares de lotes de terrenos de graça,
multiplicando o número de miseráveis, sem quaisquer esperanças de
emprego, no cinturão em torno da novacap. São desesperados, que,
tangidos pela fome, roubam uma arma e começam a buscar a solução.
Para onde devo ir? Para Fortaleza? Aí também a insegurança reina. Voltar
para Sobral? Quando me lembro de que ali Rosamaria e Edward Dias
foram assaltados, na porta, em plena manhã de um domingo recente,
vejo que mudar não é a solução.

LEMBRANDO A CABEÇA DE
MARIA ANTONIETA

Como é mesmo o nome daquela professora universitária cearense


que, cumprindo bolsa de estudos em Paris, foi ao campo e lá lhe deu
vontade de preparar galinha à cabidela, o coq au vin lá deles, à brasileira?
A primeira providência consistiu em estrangular a penosa, ante o horror
dos nativos que se mostraram escandalizados face à brutalidade da cena.
Diante do ataque de frescura dos gauleses, ela "apelou": "Pior foram
vocês, que decapitaram sua Rainha." Calou-os.

MICRO É QUE NEM CASAMENTO

Não sei se lhes falei que o meu novo micro deu problemas. E
quando o computador, no primeiro, segundo mês não se acerta com a
gente, é que nem casamento. Acabar logo para evitar maiores dores-de-
cabeça. O que adquiri, com dois meses, ficou cheio de manhas, manias e
negaças. Não queria nada. Propus ao vendedor a restituição da máquina
emburrada. Hesitou, claro. Ameacei denunciá-lo ao Procon e ele terminou

167
por me devolver o dinheiro. Depois, um amigo me advertiu de que essas
máquinas modernas vêm lotadas de caprichos, dão sempre quiproquós.
Vou torcer para que a nova não seja assim complicada.
Bom, vou tentar a convivência com o meu ACER de quem o
vendedor disse ter um design arrogante. Ele queria falar de design arrojado
e lhe saiu arrogante. O que se há de fazer?

TUDO NOVO

Há vinte anos me ocorreu a segunda aventura eleitoral. Fui com-


panheiro de chapa senatorial de Chagas Vasconcelos, que trocou uma eleição
garantida para a Assembléia, para emprestar seu nome à campanha eleitoral
do MDB. Foi momento prazeroso de nossas vidas. De psicoterapia de
multidão. De encher o peito e soltar o grito, há tanto tempo estrangulado
na garganta, contra a ditadura. Claro que não podíamos ganhar contra a
força. Como nunca me abandonou certo fascínio pelas causas perdidas,
entrei de cabeça na campanha e a Deus, por isso, agradeço.
Um dia desses revi Chaguinhas. Ambos daquele tempo para cá,
tivemos o peito aberto pela curiosidade dos cirurgiões cárdio-vasculares.
Ele duas vezes. Escapamos.
O coração, antes disso, impôs-lhe novidades. Casou de novo. E,
no aeroporto, encontrei o Chagas que passaria uma noite em Brasília.
Por isso, embarcava com a mulher e dois herdeiros (herdeiros de quê?)
para a nova capital, a fim de assistir a um julgamento em tribunal superi-
or. E, se tempo tivesse, voltaria no mesmo dia à santa terrinha. Tal é o
xodó com a nova família que fundou.

EMPREGO

No Iguatemi revejo Maria do Carmo Rangel e a mãe, Celeste.


Falamos de Sobral, dos filhos e dos empregos que têm e terão. Maria do
Carmo conta que o desencanto da juventude é tal que a filha, Daniele, no
dia seguinte à formatura em Direito, comentou:
"Mãe, ontem eu era uma esperança da Pátria. Hoje me converti
num problema social".

168
TERRINHA BOA, A NOSSA

Falta-me autoridade para falar sobre o assunto, eu que sou exila-


do voluntário. Como, porém, a coerência não é o forte de jornalista, lá
vou eu em frente. Todos me falam
Do Ceará e de seus atrativos. Uma amiga costuma dizer que
"toda mulher cearense termina por conseguir trazer o marido para Forta-
leza. Mesmo as pobres", acrescenta. Foi o seu caso. Após enviuvar,
trouxe o segundo marido para a terrinha. Castello costumava dizer que o
"Exército do Ceará" não dava generais porque eles pleiteavam ficar sempre
em Fortaleza, alternando-se entre a Décima Região, a Circunscrição Militar,
o CPOR, o GO e o 23" BC. Ao final, terminavam passando para a reserva,
para não se despregarem do solo natal.
Há quem diga que o Everardo Maciel está submetendo a exame
de títulos e de competência profissional os funcionários da Receita Fede-
ral que querem ser lotados em Fortaleza, tal a afluência de candidatos.
Não querem sair

Taí uma atividade em que ninguém sabe a hora de sair de cena.


A do político. Não diria que se trata de vício incurável mas que é difícil
de largar, é. Fica em ação até que o eleitorado decrete, várias vezes, sua
caducidade. Às vezes, não aceita o primeiro revés. Pede confirmação às
umas. Talvez porque todos querem ser longevos como o foram Tancredo
Neves e Ulysses Guimarães. Como são Leonel Brizola e Franco Montoro.
É raro o cara ter a humildade de Aureliano Chaves, ao perder a eleição
para Presidente da República e reconhecer:
"O eleitorado cansou de mim.

VERGONHA DA ORIGEM

Até os australianos nutrem orgulho de seus antepassados. Exi-


bem, vaidosos, os prontuários dos avós, forçados, como eram chamados
então. Ladrões, assassinos, falsários. Pois, afinal, a Austrália era colônia
penal da Inglaterra.
Não recebemos, logo, a fina flor da aristocracia portuguesa. Afinal,
o ouro demorou muito a ser descoberto. Veio, porém, até gente boa entre

169
os primeiros colonizadores lusos. Ainda assim morremos de vergonha
de nossas raízes. De primeiro, todos nós, mestiços, que havíamos lido
algum livro, nos considerávamos franceses exilados nos trópicos.
Atualmente, queremos ser descendentes de anglo-saxões. De
passageiros do "Mayflower". É a maior palhaçada. Até as palavras são
assim travestidas.
Por exemplo, inventaram uma complicada história para explicar
a etimologia da palavra baitola. Ela se deveria a um inglês, homossexual,
funcionário da Light que fornecia luz e energia e explorava o serviço de
bondes. Ao falar da bitola dos trilhos, pronunciava "baitóla". Não tem
nada disso. Quem leu Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, viu
que "baito" era a residência secreta de homens, onde adolescentes se
preparavam para a maturidade, local e convivência que favorecia práti-
cas homossexuais.

PICI

Inventaram que PICI vinha das iniciais de Post of Comand (PC),


em inglês, por conta da presença dos americanos na Base Aérea de Fortaleza,
quando da II Guerra Mundial. À essa época havia nascido também a palavra
forró, vinda defor all (para todos), nome de bailes dados por eles. Cocorote
seria a rota do Cocó. Ora, Rachel de Queiroz conta que em 1927 seu pai
era dono do sítio, onde depois se instalou a Base e que se chamava Piei.
Forró vem de forrobodó. Cocorote é sinônimo de coque, piparote na cabeça
e sempre denominou o bairro. Nada tão nosso.

Novidade, para quê?

A cada instante, a publicidade nos mostra a modernidade e as


inovações técnicas dos carros. Para que isto? São vantagens que nem
sempre nos servem de grande proveito. Tanto me faz andar no modelo
europeu ou coreano mais moderno quanto no antiquado Lada soviético.
O carro, de fato, não pode ser utilizado segundo o prospecto. A propa-
ganda. Porque o congestionamento do trânsito não permite. Porque o
código proíbe. Andamos de automóvel quando nos podíamos locomover
em veículo de tração animal. Há muito em Paris a velocidade dos carros
equivale à das carruagens dos tempos de Napoleão.

170
Transporto-me no meu Santana como andava no primeiro fus-
ca. A única vantagem é que nesse carro de agora posso usar ar condi-
cionado. O que é bom para quem é calorento como se estivesse na
menopausa. E se livra desses panfletos de propaganda comercial que
você é obrigado a receber, em toda parada do automóvel.
Tem gente que gasta os tubos para possuir carro de luxo, símbo-
lo de status, prosperidade, sex-appeal. Eu, não. Quero carro para me
levar e trazer ao destino sem dar prego nem entrar em pane. Prefiro me
endividar com minhas viagens.

Micro mais moderno

Um dia desses, a instâncias de minha filha e colaboradora Ra-


quel, comprei um novo computador de 233 megahertzs. Para quê? Para
nada. De nada me valem sua modernidade e sua velocidade. Uso-o, na
maior parte do tempo, apenas como moderna máquina de escrever. De
quando em quando, é que mando recado para outros velhotes pela
Internet. Mal dou conta de sua potência e de sua velocidade.

Home page em Portugal

Vejam que beleza: posso ser lido em Portugal, na Home Page do


escritor angolano José Félix, que ali reside. Seu endereço: http://
www.terravista.pt/mussulo/1701/Meu e-mail é Sobral@essencial.com.br

ELITE EM PARIS

São 19 de janeiro de 1995 em Paris. Vou à apresentação do


início do filme "Fronteiras", de Noilton Nunes, marido de Regina Paiva,
amiga de Isabel Lustosa, que vem de publicar livro neste ano da graça de
1998 sobre Euclides da Cunha. É na embaixada brasileira. Lá, o dono da
casa, embaixador Carlos Alberto Leite Barbosa, me informa ser Outra
Leite Barbosa, do Ceará. "O Tasso, que é Barbosa, sabe disso".
Depois de alguns uísques, deparo-me com uma lourona que, ao
saber de minha origem, revela haver sido casada com um jornalista
cearense. Completo:

171
"Só pode ter sido com o Venelouis Xavier Pereira".
Claro que acertei.
Ela se encontrava a seu lado quando o falecido diretor de O Estado
foi acordado por agressores, familiares de um personagem que ele atingia
com suas críticas. Está casada com bisonho mineiro de Corinto e garante
ser dona (?) de boutique em Paris, onde reside há dez anos. Vem mais
uísque e, de repente, estou conversando com um sul-africano, de
nacionalidade inglesa, que conhece Sobral pois morou na cidade da Granja,
pesquisando a ocorrência de ouro. É muito para meu pobre coração (ainda
não operado) cearense, pelo que tomo o primeiro táxi de volta para o lar.

Somente sonhos
Ando doido de vontade de voltar à Europa. E não é só para
comprar meu Paco Rabane que está acabando. É para, em primeiro
lugar, ver a Expo 98 em Lisboa, passear de bonde em suas ladeiras,
comer no antigo Convento Mariano, hoje York Mansion.

Nos arredores
Quando voltar à França, quero almoçar no Le Manége, em Saint
Germain en laye, arredores de Paris, consumir ali sua salade campagnarde
e seu côte de bouefà la moelle, como fiz lá várias vezes. Uma vez, eu e
Carlos Eduardo. E depois passear pelo seu castelo e pelas ruas, em ma-
nhã de sol. Vou pegar, como fazia, o ônibus 89 na rue Brancion, esquina
com Vouillé, e seguir até o Jardim de Luxemburgo. Ali descerei pelo lado
direito, passando pela Sorbonne e pelo "le Grand Hotel de Suez", em
que tantas vezes me hospedei, indo até a Notre Dame.

TELEFONE EM PARIS

Quando Fernando César indagou, de um conhecido, meu telefo-


ne em Paris, ele respondeu, cheio de despeito:
"Liga para o Informador Popular de lá, que eles sabem".
Foi ironia. Mas vã. Porque como eu tinha telefone em meu nome,
quem quisesse, de fato, me encontrar, bastava ir ao computador do Cor-
reio e lá me identificaria o número do aparelho bem como o endereço da

172
residência, situada na rue de Vouillé com Brancion, em cima do Banco
Nacional de Paris. Ou o Minitel, um computador doméstico, simples que
atende a este tipo de demanda.
O apartamento, que alugamos, era razoável.
Dispunha, porém, de um terraço de igual tamanho, no qual Carlos
Eduardo, às vezes, jogava futebol com amigos.

Um casal solidário

Dei-me bem com todo o mundo que conheci em Paris. Peque-


nos e grandes. Gregos, troianos e goianos. Gostava do porteiro do pré-
dio. Topou com minha cara. Tornou-se meu amigo. Foi ele quem teve a
iniciativa de ir à Telecom ligar meu telefone, sem que eu pedisse, só
porque simpatizou com minha cara ou viu a extensão de minha dificulda-
de. O que lá é raro. Mais tarde, quando passei pelas mãos do cirurgião,
sua mulher veio me dizer que rezou pelo êxito de minha cirurgia cárdio-
vascular. Nunca vi casal trabalhar tanto. O dia inteiro, suando a camisa.

Romênia

Não sou o poeta Luciano Maia, mas pretendo (também) conhe-


cer a Romênia. Primeiro para rever em Bucareste o embaixador Jerônimo
Moscardo de Souza, que me cobriu de atenções em Paris e me tomou a
vida ali mais agradável, para mim e para os meus. Fui convidado a par-
ticipar do Congresso "La Latinité: lavenir dún passé", a se realizar na
cidade universitária de Cluj-Napoca. Ficarei hospedado no Hotel
Transilvânia. Vem cá, leitor: não foi na Transilvânia que nasceu o Conde
Drácula?

Quebradeira, a rotina

Os dinheiros é que estão curtos. Ano passado fui a Lisboa e a


Cancun e, quando voltei, estava arruinado. Tive de vender um aparta-
mento foleiro que tinha em Fortaleza. Agora nada tenho mais a vender.
A não ser a pena. E não tem quem compre. Sem falar que ninguém usa
mais pena, caneta nem Bic. É computador.

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Hábitos

Aos domingos, acordava cedo, como sempre, enquanto em casa


todos dormiam, e ia até Abbesses de metrô. Subia até a Place de Tertre,
ainda com pouco movimento. Nem sabia se o violoncelista alemão, na-
quele canto da praça que dá para o Museu Salvador Dali, já havia come-
çado a tocar.
Bebericava meu muge com um amigo querido. Informei-o de
que os garçons franceses ficam furiosos quando chamados com um "psiu",
que eles acham que só se deva usar com os cães. Meu amigo, ao pedir a
segunda garrafa, proferiu seu "psiu" e levou sua bronca. Outra bronca
certa: interromper fila para fazer pergunta, no Correio, na polícia, no
banco, o que constitui hábito bem nosso.
O francês cultiva o mau hábito de se assoar à mesa de refeições.
De comer na rua com toda a desenvoltura. O vício do cigarro entre os
adolescentes. Mas bonito é todo mundo, no metrô, lendo. Livro ou jornal.
Até os mendigos.

ANDO COM SAUDADES DO VELHO MUNDO

Quero voltar a Lisboa, saindo de Fortaleza pelas asas da TAP, e


não apenas para ver a Expo 98. Pretendo mais. Sonho convidar o casal
João Almino a jantar no York House, à rua das Janelas Verdes, depois de
tomar um drinque em seu bar. Jantar sob as palmeiras de seu jardim, nas
noites de verão, em mesas brancas e impecáveis, ou ali tomar o pequeno-
almoço ao som do canto dos pássaros, envolvi do por perfumes nos quais
se misturam as essências das flores e da maresia que chega do Tejo. No
antigo Convento dos Marianos. Não me atrevo a querer me hospedar lá,
como já fizeram Graham Greene, John le Carré, Marguerite Duras, José
Régio. O quarto individual tem o preço mínimo de 25.500 escudos. Tudo
isso está prometido nos folhetos de propaganda, de onde chupei essa
literatura toda.

174
MIA COUTO

Na ronda das livrarias dos sábados revejo o ministro Nelson


Jobim, que diz sofrer do mesmo mal que me acomete: presentear os
amigos com os Contos Abensonhados, do moçambicano Mia Couto.
Lembra que fui eu quem lhe apresentou o livro do Rosa africano.

NEM NOME DE PRATO

Vou ao cantinho do Faustino, verificar se ele aceitou a sugestão


do psicanalista Roberto Nóbrega Teixeira, de batizar com o meu nome
seu fricandó de cordeiro. Nada. Decepção. Nunca fui nada na vida. Nem
inspetor de quarteirão nem síndico do meu prédio. Passageiro do Ita.
Nem prato de restaurante. Aí cobrei minha vingança. Ao invés de recorrer
aos seus dotes de grande cozinheiro, pedi-lhe uma lagosta ao natural.
"Não estas do fundo dofreezer", ainda recomendei. Decepção dele. Pra-
zer meu, que curti lagosta fresca, como há muito não fazia. A dificuldade
residiu em pagar a conta. Velho problema dos pobres: briga para pagar
conta. Tal problema jamais embaraça um rico.

SEMPRE UMA FESTA

À noite, paro na calçada de La Nuit e assisto à festa de todas as


noites da Praia de Iracema. Ali a pobreza não dá as caras. Só aparece a
face rica, bonita, bronzeada da "loura desposada do sol". É gente que
não acaba mais. Como as fisionomias não se repetem, fico sempre curi-
oso de saber para onde vão.
Passo no La Bohême e revejo, juntos, dois caras alto-astral, de
bem com a vida, a quem encontrar é sempre a certeza de um instante
prazeroso. São Luizinho Cysne, da melhor cepa, e Marcello Feitosa,
filho do ex-deputado Januário, este nascido como eu em Cajazeiras da
Paraíba e que conheceu meu avô, o "major" Piano de "A Nortista",
Crispiniano Figueiredo Lustosa.

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CAÍ FEIO

Tenho uma teoria segundo a qual as quedas, tanto as físicas


quanto as morais, são para a mocidade. Na velhice elas devem ser evita-
das. As físicas, porque a recomposição demora. As morais, porque não
há tempo para que os contemporâneos as esqueçam.
Até o último dia 1 O, aos 59 anos, jamais quebrara ou luxara
braço ou perna. Na manhã daquele dia fatal, depois de sacar dinheiro na
agência do Banco do Brasil da Monsenhor Tabosa, escorreguei ao sair e
caí apoiado na mão esquerda que trinquei. Desmunhequei feio e voltei a
dar despesa ao Sarah Kubitschek, um dos melhores hospitais do mundo
na especialidade. Fosse nos Estados Unidos e ia receber indenização.
Batuco essas notas vadias com o dedo indicador da mão direita. Pior que
nos tempos de criança, quando, com dois dedos de cada mão, maltratava
as pesadas máquinas do IAPC escrevendo, escrevendo sempre.
Lembro-me do maior traumatologista de Sobral, Antônio Félix
Ibiapina cujos métodos drásticos o converteram num craque da especia-
lidade, apesar de ser apenas barbeiro e capador de cavalos. Doíam no
coração os lancinantes urros e gemidos dos eqüinos, ao perderem a
virilidade. A coisa era tão impressionante que um caixeiro quebrou o
braço. Os amigos o socorreram. Quando ouviu o nome de Antônio Félix,
para cuja barbearia estava sendo levado, escapou deles, fugiu para nunca
mais voltar. Preferiu ficar troncho ou maneta a correr riscos.

SAUDADES DA ANTIGA TV CEARÁ

Pelo que me mandam dizer do Ceará, o ex-secretário de Co-


municação, Ciro Saraiva voltou à moda, comandando a Tribuna do
Ceará. Jornalista é assim. Nunca encosta as chuteiras. Está sempre
retornando. Em entrevista concedida a Lúcio Brasileiro ele restaurou
a verdade histórica. Registrou, como já o fiz, que Luciano Diógenes
foi o primeiro diretor de jornalismo da TV Ceará, substituído, a seguir,
por Wilson Ibiapina, que também pintava na telinha e fazia o maior
sucesso. As mulheres afluíam, em multidões ávidas, ao então chama-
do Bairro da Estância, para conhecer o nosso William Bonner cabeça-
chata. Os invejosos e os desafetos espalharam, à epoca, que nem todas

176
elas voltavam tão felizes de lá porque esperavam encontrar um galã
da estatura dum campeão de basquetebol norte-americano e não acha-
vam. O que se sabe é que, logo depois, o nosso herói preferiu o espaço
da TV Tupi, no Rio. Depois, o da TV Globo, em Brasília, onde brilhou
até um dia desses.
Bons tempos da TV Ceará, da cadeia associada. Prestigiava-se o
talento local. Não só no jornalismo. Também no setor de novelas que
chegaram a conquistar prêmios internacionais. Hoje, tudo é padroniza-
do. Não sobra espaço pro sotaque da gente. Pra vida inteligente, a não
ser a que existe entre Rio e São Paulo
Depois, apareceu o Telejornal Crasa, patrocinado pela empresa
de Clóvis Rolirn e apresentado, ao vivo, por jornalistas profissionais que
podiam até falar bobagens, mas sabiam o que estavam dizendo, ou mes-
mo lendo. Éramos João Ramos, Aderson Brás, Augusto Borges, Wilson
Machado, Lúcio Brasileiro e eu. Quando saí, em 1966, para o desafio
das umas, ficou o Pádua Lopes encarregado da área política.
Lembro-me de que a equipe visitou Sobral para receber home-
nagens do prefeito Cesário Barreto. Todos nós fornos chamados ao pal-
co de um grande salão (Era um clube? Um cinema, Zémaria Soares?
Onde era?), e ali aplaudidos.

Outras vezes, íamos comer arroz de mariscos chez Wilson Ma-


chado e ouvir canções românticas de Francisco Petrônio. Urna noite, fornos
estraçalhar caranguejos em Maraponga ( só ali os havia, vindos, corno hoje,
de Parnaíba). Lúcio queria, por fina força, que o Cirênio Cordeiro, seu
convidado, tivesse a veia poética e a cultura do Otacílio Colares, o vate,
que, este às vezes, nos brindava com sua cintilante conversa.
A televisão, apesar da pobreza de meios materiais, era criativa.
Chegou a ganhar prêmios internacionais com atores cearenses interpre-
tando peças teatrais de autores da terra.
Não foi diferente a estréia do Brasileiro, que inventou de submeter
a "socialite" Chiquita Gurgel ao chamado "questionário proustiano" que
até hoje não descobri o que vem a ser. Atordoada pelo fogaréu e o calor
dos refletores, a grande dama desmaiou por causa do vallium ingerido, do
scotch ou dos dois somados. Isto não impediu que, a seguir, nos ofereces-
se um festão, com a presença do Governador do Estado, em que o uísque
jorrou corno as águas do rio Acaraú em temporada de chuva.

177
Lúcio costuma dizer que abandonei atividade tão prestigiada e
tão rendosa por causa do patrulhamento do então deputado Pontes Neto,
que me interpelou:
"Então, aderiste ao Zémacedo?"
Não sei se foi por isso que saí ou porque andava entusiamado
com o programa de entrevistas" Política quase sempre" e o" Telejornal
Crasa ", na televisão, a coluna em Unitário, lida, na Ceará Rádio Clube,
sob o título "Estas são confidenciais."
Lembro-me ainda do ex-presidente Juscelino Kubitscheck de-
pois do golpe de 1964, sendo entrevistado em "Política quase sempre".
Já não era mais o "enfant gaté "da empresa. Ficou praticamente sozi-
nho, na sala do diretor artístico, Guilherme Neto, com o Ésio Pinheiro
(suponho), numa tremenda maçada porque a emissora, única no Estado,
não possuía maior preocupação com horário.
À certa altura da espera, tentando ser engraçadinho, falei pro
futuro entrevistado:
"Presidente, minha mãe não tem culpa nenhuma nisso."
Ele, que estava sentado pacientemente, levantou os olhos aper-
tados em minha direção e esboçou sorriso contrariado, dando a entender
ter precisa consciência de que os tempos haviam mudado.
Sucesso mesmo foi a aparição do ex-prefeito Acrísio Moreira da
Rocha com sua tremenda cara de pau. Ele passava dia e noite, no carteado,
no cassino do Ideal. Isto não constituía segredo pra ninguém. Transmiti-
lhe, assim, pergunta dum telespectador:
"O senhor é jogador profissional?
Ele soltou um risinho altaneiro, auto-suficiente pelo canto dos lábios.
E respondeu que não. Não era. Nunca fora. No seu tempo, ainda não
havia profissionalismo. Quando jogara futebol pelo Maguary Esporte Clube,
era amador. Não ganhava nada. Como pelas características do programa,
não havia tréplica, passei-lhe outra questão. E ele saiu cantando vitória.
É do que ora me recordo, aqui no frio primaveril de Paris. Isto,
porém, se encontra muito melhor contado e mais documentado no livro
A televisão no Ceará, preciosa coletânea de dados, que o Gilmar de
Carvalho reuniu sob o estímulo do Ciro Saraiva, então Secretário de
Comunicação do Estado do Ceará.

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TURISTA SEM DISSIMULAÇÃO

Quando morei em Paris, ia a restaurantes de turistas. Nada dessa


bobagem de ir a lugares que só os nativos freqüentam. Isso é besteira
muito grande. Sou ou não sou forasteiro? Turista? Claro que sim. A quem
engano, pretendendo ser outra coisa. Por acaso sou parisiense? Nada. Ia
mesmo era pro Procope, Le Pied de Cochon, La Coupole, Le Fouquet's.
Nos três primeiros, não gastava muito mais do que num restaurante popular
de Brasília. Nesse tempo, o álcool estava suspenso, então a refeição saía
por uns vinte dólares por cabeça. Em tais restaurantes.

TEM MAIS É DE MOSTRAR

Há uma história clássica de bazófia masculina em Brasília.


Um cara esteve muito tempo de olho na coleguinha de trabalho. Nada.
Rezou, penou, insistiu, até que um dia, ela, cansada ante seu peditório
ou por falta do que fazer, aquiesceu no encontro. Pois bem. Lá se
foram. Chegados ao local onde deveria ocorrer o corpo-a-corpo, a
discreta donzela só fez um pedido ao futuro parceiro: o absoluto si-
lêncio. Não dizer a ninguém que ela fora sua. Foi a vez do rapaz, ele
arrenegou. Assim, não queria, não. "Se não pudesse espalhar a con-
quista, de que ela lhe valia?". Assim nada se passou entre os dois que
ele pudesse, depois, contar aos amigos. Foi do que me lembrei quando
um conterrâneo, mais ou menos da minha idade, mas ainda lotado de
sonhos na área, me mostrou seu carro novo, de vidros fumê. E explicou
porque o ensombrado das janelas: "Se eu descolar uma gatinha esperta,
jeitosa, posso andar com ela por toda a parte que ninguém vê".
Chamei-lhe a atenção para sua burrice. Na idade em que se encontrava,
não podia querer o segredo para uma conquista: "Se conquistares
mesmo um brotinho assim, não deves só abrir as janelas do carro.
Tens mais é de alugar o papa-móvel para mostrar do que ainda és
capaz. Escancarar".

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APROVEITAR

Encontro um colega jovem, muito jovem, de óculos de professor,


barba e bigode, escondendo a idade. Advirto-o para o prejuízo: "Nada de
ocultar a mocidade. Tens de mostrá-la e vivê-la, inclusive porque ela
passa muito rápido. Quando você der fé, ela terá ido embora. É aproveitar."

MOROSO NO PAGAMENTO

Afinal, paguei um dinheiro que devia ao Antenor Barros Leal.


Sou-lhe grato. Não é nem pela estóica paciência com que aguardou o
acontecido. E, sim, por não se haver rendido à tentação de me dar con-
selhos. De não gastar tanto. De pensar na velhice. De arranjar outra
fonte de renda. Ou, então, mui justamente podia ter-me perguntado:
"Por que não me pagaste ao invés da temporada lisboeta? Por que foste
a Cancun sem haver liquidado a dívida para comigo?". Não o fez e sou
grato a Deus por merecer tal tipo de amigo.

APRENDI TUDO ERRADO

O idioma devia ser outro. Assim que pude, levei os filhos para
um banho de civilização na Europa. Passamos um ano em Paris, durante
o qual eles aprenderam o idioma no Curso de Civilização Francesa da
Sorbonne e no Lycée Montaigne. Sem falar em que percorreram treze
países, mochila às costas. Pensei haver feito um grande investimento.
Quando voltei, o Itamaraty não mais exigia francês no seu exame e o
quente era estudar espanhol. Eu lhes pusera à disposição uma língua
aristocrática e literária, quando importante, agora, é o idioma do Mercosul.
Aí soube que muitos anos-luz à frente, Leda Maria mandara sua Raquel,
logo, para uma temporada no Japão.

180
A GABOLICE DEVIA SER OUTRA

Como todo pai, gosto de contar minha vantagem. Uma delas, a


de que aos 17 anos já trabalhava. Na Gazeta de Notícias e na secretaria
do Náutico. Hoje gosto de me gabar de que as duas filhas têm emprego e
cursam faculdade. (E ficam danadas da vida quando a juventude de
Brasília é toda retratada como um bando de moços desocupados, que
quebram carros e puxam fumo).
Uma é funcionária da Embaixada dos EUA. A outra, da Repúbli-
ca do Myamar. Lugares que conquistaram, por conta própria.
Afinal, fui educado na religião do trabalho, achando que todo o
homem deve ganhar o pão (e o uísque) de cada dia com o suor de seu
rosto. Descubro, a essa altura dos acontecimentos, que também estou
anos-luz ultrapassado. Daqui para a frente, o que se há-de valorizar será
o ócio. O trabalho ficará a cargo do robô e do computador. O trabalho
vai desaparecer até como valor moral.

O LUXO

Um dia desses, esteve aqui em casa o embaixador Jerônimo


Moscardo de Souza. Ele atalhou minha inquietação, alertando-me para o
valor do luxo: "A França ainda hoje vive das extravagâncias de Luís XIV.
O Egito das pirâmides". Realmente, o que perdurou daquele tempo foram
as pirâmides, seus túmulos luxuosos ou os palácios franceses. Monumentos
que os governantes erigiram a si mesmos, à sua vaidade. Tudo então
absolutamente inútil, desnecessário.

SEM FAZER NADA

Como ficarei eu - habituado a acordar cedo, por maior que haja


sido o pifão da véspera; acostumado, até bem pouco, a deixar filho em
colégio, a abrir o prédio da Câmara dos Deputados - se souber que terei de
passar o dia inteiro sem nada fazer? Que farão, de seu tempo, os homens
do novo milênio? Dedicar-se-ão vinte e quatro horas à ociosidade?

181
Há quem diga que apenas 20% da mão-de-obra válida terá ocu-
pação no próximo século. Um outro futurólogo é mais drástico: "Só have-
rá dois tipos de emprego em breve: guia turístico e babá de velho rico".

ÍNDIA

Fui à Embaixada da Índia no Sete de Setembro lá deles. Os


garçons cumpriam sádico desfile com bandejas de coca e de guaraná.
Não entendi nada até que me disseram ser proibido tomar bebidas espiri-
tuosas no Dia da Independência e no aniversário da morte de Ghandi. Lá
não me pilham mais em tais comemorações. Fui, porém, lá de novo para
o delicioso jantar típico que o Embaixador e sra. Ishrat Aziz ofereciam
pela despedida de Mr. & Mrs. Ujahgar Singh

A partida de Kewal e Mr. Ujahgar Singh. A promessa que ela fez


voltar ao Brasil, com o primeiro salário do filho (dado à família, segundo o
costume nacional). Saiu lavada em prantos e deixou muitas amigas chorosas.
No discurso, ao final do jantar típico, o diplomata fez questão de citar
apenas nosso nome, como dos amigos que fizera no País. Tem gente que
por onde passa deixa marca positiva, um rastro bom. Assim foi este casal
indiano que talvez nunca mais teremos o prazer de rever.

SARAMAGO

José Saramago é unanimidade nacional no Brasil. Pensei em


sugerir-lhe viesse morar aqui. Depois, não. Seria a vulgarização do mito.
Lembrei Brigitte Bardot, quando era a mulher mais sexy do mundo, a
artista mais badalada do universo. Arranjou namorado brasileiro, que a
trouxe para o Brasil, a fazer-nos inveja com tão glorioso troféu. Passou
uma temporada em Búzios. No começo, aquela sensação, a perseguição
dos paparazzi. O deslumbramento dos nativos. Daí a pouco o cansaço
da admiração. A fadiga dos deslumbrados. Uma certa raiva de ter-se
prostrado diante do ídolo. E passou-se ao inverno. Certo despeito. Algum
ressentimento. Quando ela chegava aos cantos, murmurava-se: "Lá vem
a chata da Brigitte? Não vai mais embora, não?"

182
BEBENDO POR PROCURAÇÃO

Quem quer me achar, me acha. O português de Arganil, Rosário


Dias, telefona para dizer que guarda um aguardente de sua terra, com
algumas décadas em suas mãos. Como nos seus 97 não mais cultua
Baco, ele quer que eu o faça. Por procuração.
Em 1970, fui à Europa vez primeira. No avião, a colônia lusa,
residente em Fortaleza. Um deles se apresenta, é Orlando Dias Branco.
Digo-lhe que Guilherme Neto me falara muito bem de Ivens, seu sobrinho.
Que está ao lado. Viajo entre eles, o da Casa das Rendas, o Alexandre
Vidal, o Bicho, da Casa Bicho. Em Lisboa, sou homenageado por eles com
almoço no Automóvel Clube e os deixo frustrados. Requeriam-me um
discurso e me furtei a tal encargo. Não sou bom de gogó. Senti que ficaram
desapontados. De noite, Manuel Dias Branco me levou a uma casa de
fados. Ele consumia seu S.João, tinto da região de Bairradas. Eu e !vens
nos empenhamos num campeonato e quase demos conta de um litro de
aguardente 1920. Éramos jovens naquela época e tínhamos muita sede.

ESTEREÓTIPOS

Tão obsoleto quanto as cegonhas. Tão instrutivo quanto papo


de disc-jockey. Tão divertido quanto humor de guia turístico.

COMO EM PARIS

Faço de conta que estou em Paris e peço caneta e lápis ao "Tatu",


amigo garçom, do "Colher de Pau", da Praia de Iracema, e recordo a
mais recente gafe que cometi. Estava num sarau sobralense com direito à
música erudita no piano e à presença de talentoso poeta que também
canta. Este declamou poemas de autores que amo e cantou baixinho
músicas de que gosto o que foi suficiente, ao lado do generoso scotch para
que me entusiasmasse. Podia ter ficado de boca fechada onde não entra
mosca. Nem comida e bebida que engordam. Sabem os leitores o que fiz,
vibrando com tal companheiro. Virei- me para sua mulher, uma gentil
moça e arquiteta de profissão e assim o elogiei: "Pode não ser bom marido

183
mas é uma grande presença na noite." Ela, moça de fina educação,
naturalmente, não passou recibo da bobagem. Maior quando me dei conta
de que o vate jamais se inscreveu no partido dos amigados, atualmente
nem bebe mais, sorvendo somente inocentes licores caseiros. Apenas,
como poeta e boêmio ama a noite, é freguês da madrugada, gosta de
declamar, a desoras, poemas para outros boêmios, como fez naquela noite.
Que diabo de direito tinha eu para formular tão extemporânea hipótese?

AGRADECIMENTO

Como fui feliz lendo Quo vadis? no Seminário. Ou quando acom-


panhei o romancista alemão Karl May em suas aventuras pela savana
americana, e de Winnetou, pelo México, pelo Turquestão? E de mergu-
lhar na sociedade francesa retratada por Honoré de Balzac? Deslumbrar-
me com o faiscante jogo verbal de O Retrato de Dorian Gray e das
peças teatrais de Oscar Wilde? Chorar, feito um bobo, com Servidão
Humana? Fazer farras com Carlos Eduardo, João da Ega, o Cruges em
Os Maias? Passear com Jacinto de Tormes em Paris? E o divertimento
de ler As Farpas de Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz? Como fui feliz
lendo Arco de Triunfo, de Erich Maria Remarque? As memórias de Miguel
Torga e a magia da ficção e do estilo de José Saramago? E Machado de
Assis, que nos reserva surpresa e novidade em cada releitura? E a grande
a prazerosa descoberta de Jorge Luís Borges, aos 50 anos?

IAA SOBRAL

Perdi o avião para Sobral e até achei bom. Era manhã de muita
chuva. Já imaginaram quanto o bicho ia balançar? (Os leitores sabem
que viajo, tomando conta do avião. A qualquer catabi, balanço, preocu-
po-me. E fico furioso com a displicência dos outros. Só eu com aquela
responsabilidade toda. O pior foi um dia desses, quando o piloto do Boeing
deixou a cabine e veio passear nos corredores do avião. O que agravou
minha responsabilidade e meu pânico. Isto não se faz). Os pessimistas
costumam dizer que monomotor já sai na emergência. Um só motor é a
iminência da panne. Os otimistas garantem que eles não caem. Pla-
nam. E voam sempre próximo à estrada real onde podem pousar, em
caso de necessidade.

184
LIVRO EM PARIS

Deus me tem proporcionado tanta coisa boa. Taí o lançamento de


Louvação de Fortaleza, em setembro de 1995, nos salões da Unesco em
Paris. Como podia sonhar com isso? Pretendia fazê-lo numa livraria
portuguesa da rue du Sommerard - que freqüentava- mas o editor Martins
Filho bateu pé e não concordou. Reclamou o concurso do Embaixador
Jerônimo Moscardo de Souza e lá se foi este conterrâneo organizar a festa.
Que constituiu régio presente. O salão cheio. Compareceram não só muitos
amigos professores que estudavam na capital francesa como os embaixadores
ligados a Jerônimo. O embaixador Carlos Alberto Leite Barbosa. O da
Argentina, Torres Aguero. A de Honduras, simpática Sônia Mendiela de
Bardaroux. A Encarregada de Negócios do Peru, Maria AI varado de Diaz.
O do Chile, escritor Jorge Edwards. O de Portugal, José Antônio Moya
Ribera. O de Angola, Domingos Van Dunem. O da Guiné Bissau, Leonel
Sebastião Vieira. A da Costa Rica, Maria de Los Angeles Sancho Barquero.
O chileno Jorge Edwards, antigo secretário de Pablo Neruda, ficou intrigado
com a expressão do padre Pita, usada para mostrar a decadência física de
uma fiel de sua paróquia: "Foi Miss Brasil, desejada pelos homens, invejada
pelas mulheres. Eis como está. Vejam este caquinho". Ele queria saber de
Jerônimo o que significava caquinho.

MULATAS OU MALETAS?

Rezam as lendas que d. Pedro II sofreu acidente em Petropólis.


Quando chegou ao Rio, um jornal registrou sua vinda, apoiado em
duas maletas. Reclamaram da folha o erro de revisão. Dia seguinte, o
mesmo veículo corrigiu o lapso, dizendo que o Imperador voltara à
Corte, sustentado por duas mulatas. Ninguém mais pediu correção do
erro, temendo desgraça maior. Foi o que me aconteceu quando contei
da gafe que cometi a respeito do poeta que jamais se inscrevera no
partido dos amigados e que até deixou de beber, sorvendo apenas
inocentes licores caseiros. Caiu o "nunca" foi da agremiação dos
amancebados e quem não prestou atenção ao contexto pode haver
entendido justo o contrário do que quis dizer. Mas não vou explicar
muito, não, senão a coisa piora.

185
ETELVINO NA ÍNDIA

Eduarda Dorazi (uma Pompeu de Souza Brasil, que foi diplo-


mata brasileira, como a irmã Stela Frota Neto, antes de casar com
diplomata italiano) me conta da presença de Vida, paixão e morte de
Etelvina Soares em exposição de livros, ora realizada em Nova Delhi:
"Fui controlar nos recortes de jornais que preparei para te mandar
junto com as fotografias. A feira se chama 'World International Book
Fair' e é organizada de dois em dois anos pela National Book Trust.
Já são 25 anos - 13 vezes - em que o evento acontece. O melhor
stand estrangeiro, pelo que pude ver no domingo, é aquele organizado
pela França. Que vergonha, a Itália não participou. O Brasil contava
com um stand pequeno, mas muito digno. E o que é melhor, o teu
livro estava lá no meio!!!"

Você saber que tem um leitor esperando para ver o que você
escreveu. E se você não tiver acertado o ponto? Não estiver inspirado
Não lhe fornecer biscoitos finos como Oswald Andrade requeria "A
frustração do outro". E a sua? É que nem o cozinheiro cujos quitutes não
agradam ao freguês, ao consumidor.

QUALIDADE DE VIDA, NEM A ALDEOTA TEM

Há um espaço de mar à vista na varanda do apartamento de


minha mãe, localizado quase em frente ao extinto Clube Líbano Brasilei-
ro. Às vezes, fico ali a desfrutar a paisagem e o vento raro. O local,
porém, é da AABB e este clube vai ser vendido para dar lugar a espigões.
A nesga de oceano - aquele magro quinhão dos verdes mares bravios que
me regalam os olhos - vai desaparecer. E o apartamento ficará sem
ventilação, sem o afago da brisa do Aracati. Isto na Aldeota, sinal de que
nem os mais aquinhoados defendem a qualidade de vida.

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CLOACA

Aliás, ali na calçada da rua Silva Jatahy, durante o Fortal, hospe-


daram-se vários grupos. Muitas tribos. Ali se aboletaram, comeram,
beberam, fumaram, dançaram, satisfizeram às suas necessidades fisioló-
gicas. Na rua, transformada numa cloaca. E a gente nutre a ilusão de que
tal calamidade só acontece nas ruas de La Paz, em Nova Delhi ou em
Luanda. Esquece-se que o Haiti é aqui.

COTAS

É claro que defendo o direito das minorias. Que eles devem ter
voz. Precisam ser escutadas. Não sou muito simpático, porém, ao siste-
ma de cotas para favorecê-las. Isto de nomear uma mulher para cada
homem que for apontado para o Supremo Tribunal Federal pode gerar
precedentes perigosos. Por que não indicar, proporcionalmente, um gay?
Um dono de jornal previu que o terceiro sexo, em breve, será o primeiro,
razão pela qual ele já foi à frente, como batalhão precursor da mudança?
E os negros ficarão sem um representante na Alta Corte? E os zarolhos,
vesgos, não terão vez? E os manetas? Por que não teremos um Ministro
do Supremo com um só braço? Os gagos? Os fanhos? São minorias que
devem ter seu espaço naquela casa que o Moacir Aguiar costumava
chamar, em seus discursosna velha Assembléia, de Pretório Excelso.
Entra uma, entram várias mulheres no Supremo, porque haverá
uma lei estabelecendo o sistema de cotas? Não seria um absurdo excluir
as lésbicas que, em breve, serão o segundo sexo? Os gagos não terão sua
vez? E os xifópagos?

POR QUE LOGO COMIGO, SENHOR?

Há certas coisas que você pensa que só acontecem aos outros.


Quando acontecem a você, é aquele Deus nos acuda, aquela surpresa
doída como se você estivesse isento de tais danos, dessas mazelas.
Quando você que se considera o tal no seu trabalho, pela com-
petência, pelo bom relacionamento, pelo prazer com que desempenha

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sua tarefa e é demitido, estrepitosamente. Fica no olho da rua, sem
jornal nem tevê que o acolha, que o empregue. Você se pergunta: como
isso pode acontecer justo a mim? Eu devia estar livre de tais percalços.
É assim quando você, de repente, é passado para trás por uma
mulher, você que se considerava o gostoso, que achava que era o dana-
do, que podia fazer e acontecer, se danar quando bem entendesse e
estava livre de tais riscos. De repente, o corneado é você. Como dói.
Ou então quando você vai ao médico e ele diz que você vai entrar
na faca. Ou se entrega ao bisturi ou o coração lhe estoura e é tudo tão rápido
que você nem sentirá passar para o andar de cima. De repente, você está de
peito costurado na solidão da UTI, se perguntando: "Por que comigo"?
Deus lá em cima deve de estar respondendo: "Por que não com
você? Por que você seria indene de tais problemas? Por que seu empre-
gador o deixaria a salvo de pontapé na bunda? Por que ficaria livre de
chifres, de cirurgias?
Você é um ser humano qualquer, sujeito a fragilidades, a erros, a
quedas. Como todos os outros. Sua vaidade é que lhe deu impressão diversa.
Falsa como tudo o que nosso orgulho produz, engendra, inventa.
Só quero elogios
Um dia desses recebi carta que logo percebi amarga, fel puro. Por
covardia, por comodidade, pedi ao Wilson Ibiapina para lê-la. Uma tremenda
agressão. Nem a olhei. Passei batido. Eu lá quero saber disso. Tratava-se de
um pobre diabo, morto de inveja do vidão que levo, dos amigos que tenho,
da coisas boas que a vida me proporcionou e lhe negou. Coisas pequenas, é
certo, que fui buscar, que não herdei, que conquistei sozinho. O que eu
posso fazer para remediar isso? Ir viver a vida mesquinha dele é que não
vou. Inclusive porque não resolveria nada. Seria apenas mais um infeliz na
praça, raspando suas chagas com o caco de telha, feito Jó.
Sou que nem Costa e Silva. Contam as lendas que, depois de designado
para suceder a Castello na Presidência, o marechal foi almoçar na sede do
Jornal do Brasil. A certa altura do campeonato, a proprietária, Condessa
Pereira Carneiro, velha espertíssima, prometeu ao futuro Presidente julgar os
atos de seu governo, com isenção, com imparcialidade. Costa e Silva protestou:
"Com imparcialidade, não, Condessa. Quero é todo dia editorial
a meu favor e retrato na primeira página".
Não sou marechal mas alimento tais sonhos.

188
Alaska

Marido de professora - foi traído por menino de 13 anos nos


EEUU, que nela fez um filho - envergonhado com o chifre, fugiu para o
Alaska. Se cada cara corneado decidir mudar para tão longe do lugar do
crime, haverá congestionamento de estradas. E o Alaska sofrerá proble-
mas de superpovoamento.
Tudo, porém se deve a uma questão de publicidade. Este caso
foi divulgado, ao vivo e em cores, pela televisão do mundo inteiro. Assim
não há quem agüente. Quando você é como, mas só um vizinho abelhudo
sabe, vá lá. Ou então o pessoal do seu prédio de apartamentos. Mesmo o
da rua. O que desespera é quando todo o bairro toma conhecimento. A
cidade. O mundo, quando se trata de noticiário da tevê. Ao vivo e a
cores. Via Embratel. Não dá para agüentar. O jeito é fugir para as geleiras
do Alaska para lá esfriar a cabeça. Ou então fazer como aquele personagem
de Manuel Bandeira. Ao acabar de ser chifrado no último bairro do Rio
para onde ia se escafedendo a cada traição da mulher, matou-a a facadas.
Mas o homicídio é antiestético. Quem vale sujar as mãos em sangue?
Lembro a propósito o livro de Vargas Llosa - O elogio da ma-
drasta- em que se conta história parecida.

Crise

Meu Pentium andou em crise existencial e fiquei órfão da


informática, morrendo de solidão. O máximo que ele me concedia era
gravar as bobagens que ia escrevendo. Só. Só podia ser macumba
pois vírus não era. As pessoas, a quem recorri, ao encarar o proble-
ma, prometiam voltar dia seguinte e terminavam não mais aparecen-
do, nem para receber o dinheiro do trabalho. Senti-me isolado da
informática, algo perdido e sem objetivo na vida. Como terminar a
publicação sobre Régis Jucá, que tinha de mandar para o Lúcio Brasi-
leiro fazer a: revisão e o Cláudio Pereira, a edição? E as tolices que
eles amontoam, toda a semana, que me fazem tão feliz, que se o
Pádua sabe, corta logo o salário, deixando-me como remuneração o
prazer do contato com os leitores.

189
UM AMARAL SINGULAR

Um dia desses conversava com Leonardo Mota Neto, à porta da


livraria, sobre as vicissitudes que vivemos e ainda viveremos e ele me dizia
ter tido notícias de minha temporada européia através da coluna do Gilberto
Amaral. Como falássemos de sua amizade solidária e eu o chamasse o
Lúcio Brasileiro do Cerrado, Leo observou: "O Gilberto nunca deixa a
gente se afogar. Quando estamos lá embaixo ele vem e nos levanta."
Lembrei-lhe, a propósito, que, quando fui hospitalizado em 1981
com suspeita de enfarte de miocárdio, a primeira providência dele foi ir à
Caixa Econômica Federal pagar a prestação do apartamento que estava
atrasada. Para, no caso de eu bater as botas, a família ter assegurada a
herança do imóvel.
Desde que nos conhecemos, tem sido assim. Prestigia-me ainda
em sua coluna com excessos de generosidade. Ele é um coração cheio de
largueza. Desmedido. Há quem o critique por isso. E por citar os poderosos
da cidade, do País. Claro, se ele é o cronista da Corte podia falar de
quem? Afinal, ajudou a mudança da capital para onde veio quando casou,
tendo tido JK, amigo e correligionário de seu sogro, como padrinho de
casamento. Foram assim seus começos.
Gilberto é aquele amigo estilo Sarney, capaz de se prejudicar
para não prejudicar um amigo. Sua coluna é povoada de Presidentes,
ministros, senadores, milionários porque é entre eles que circula. Você
pode, porém, encontrar lá também notícia da moça que lhe serve café na
Câmara ou do contínuo do Comitê de Imprensa. É assim o Amaral em
sua generosidade.
E tem delicadezas, eu que o diga! Que nem a Ethel Xerez, no
seu "ABC de Fortaleza". Esta para publicar, procura minha melhor foto,
às vezes, de antigamente, com os cabelos negros como a asa da graúna,
o que me deixa feliz e com uma bruta saudade de mim daquele tempo.

Minha medicina preferida


Ou desse remédio é que o coroa gosta

Leio, na revista de S. Paulo, nota sobre "Goles recomendados":


"Há algum tempo os médicos recomendam drinques diários, no fim da
tarde, para prevenir problemas de coração". Se for vinho tinto, então,

190
é quase a segurança de imortalidade. Não vêem os franceses como
custam a morrer?! Apesar de se esbaldarem no consumo de croissants
amanteigados, filé mignon com molho béarnaise, seguido por queijo
camembert, só morrem em último caso. Têm a maior dificuldade em
tomar o rumo do cemitério. Graças aos bons rouges que entornam,
todo o santo dia. Que fazem bem ao coração, sustentam os médicos, e
evitam a gripe. Há muito tempo sabia disso e há décadas é assim que
cuido de minha higidez física. Sempre à luz mortiça dos crepúsculos
nunca de dia, sol a pino. Entro no bar como quem ingressa no ambula-
tório médico, no consultório do clínico, do cardiologista. Quando vou
me abastecer na loja de venda de bebidas é como se fosse à farmácia.
E convenhamos: é muito melhor comprar o bom Balantines que Vallium
12. Isto é que é remédio. O mais é dar lucro às multinacionais da
indústria farmacêutica.

VALE A PENA CHEGAR AOS 100 ANOS?


Fima despertou com o toque de uma pesada e
quente mão. Abriu os olhos e viu a mão bronzeada de seu
pai apoiada sobre sua coxa, como uma tartaruga. A mão
era velha e grossa, com unhas amareladas. Tinha vales e
colinas e era repleta de veias azuis, com manchas de
pigmentos e esparsos tufos de pêlos. Por um momento entrou
em pânico. Então percebeu que se tratava de sua própria
mão (Amós Oz, "FIMA").

Quando chegou aos 50, Zé Hugo Machado ficou em crise. E


fitava, desolado, a própria mão para identificar, nela, vestígios da passa-
gem do tempo. Creio que já passou outra data redonda e não fui infor-
mado de como se comportou. Terá se habituado à mão sexagenária?
Falo isso a propósito do casal amigo que indaga se já voltei a
beber e como confirmo, me recrimina. Acham eles que posso morrer.
Argumento como o senador Vieira: "Quase todos os amigos que deixa-
ram de beber, morreram." Adoro este querido mundo que habito e que me
prodigalizou tanta coisa boa. Cumpre-me indagar: será que, daqui pra frente,
continuará a ser tão prazeroso? Por outro lado, se deixo de tomar meu
vinho, ler meus livros, que interesse vou ter de me demorar aqui embaixo?

191
Informo a estes amigos que lá em casa o povo é meio longevo.
"Seu" Costa é que se precipitou e inventou de partir aos 85, todavia, na
plenitude da razão, graças a Deus. Dona Dolores está nos 82 e vai longe.
Pergunto-me sempre: será que tenho competência para viver bem tanto
tempo? Você tem de saber se vale a pena, pondera o Paulo Elpídio. Será
que valeu a pena para o senador Plínio Pompeu chegar aos 102 anos em
Sobral, sobrevivendo aos descendentes?
Airton Monte quer a maravilhosa possibilidade de viver para sempre
livre da ferrugem corrosiva da velhice? Tudo bem. Vivo um século com
saúde mas vou conversar com quem? Quem quererá escutar minhas lorotas

Voto em 1966

A próxima eleição será eletrônica, computadorizada. Quando


disputei a deputação federal, em 1966, ainda se utilizava, no interior, a
cédula individual que o eleitor levava de casa para depositar na urna.
Não podia ser identificada, sob pena de quebrar o sigilo do voto
que era assim anulado. Por isso, nas campanhas, mocinhas maliciosas,
funcionando de astutos cabos eleitorais, pediam ao eleitor mais ingênuo
para ver suas cédulas, ou "chapas" como eram chamadas. Ao verifica-
rem que eram do candidato adversário, costumavam fingir alegria e beijá-
las, de tão felizes que ficavam, deixando no papel a marca do batom.
Para botar o voto a perder.

Cumpre agradar os amigos

Um amigo não se entusiasmou com a idéia de editar livro de


homenagem ao Regis Jucá desdenhando tal tipo de homenagens. Se fosse
a uma instituição, vá lá, admitiu. Não penso assim. Estou noutra e muito
feliz. Por isso discordo. Primeiro, porque adoro puxar o saco dos amigos
enquanto vivos. Quando podem ouvir nossos elogios, saber do bem que
lhes queremos, da admiração que lhes temos. Escrever-lhes comovido
necrológio não adianta nada nem me faz feliz. Além do mais, por que iria
eu homenagear a Faculdade de Medicina? O Hospital de Messejana?
Uma instituição? Curto é gente. O médico que bebe comigo, ouviu meus
patéticos receios de entrar no bisturi, agüenta ouvir estoicamente minhas
velhas histórias.

192
HÁ TRINTA ANOS

Estava em Brasília quando do golpe de primeiro de abril de 1964,


que mergulharia o País numa longa noite de horror e de sombras. Tentava
transferir-me para a capital. Escrevi muitas matérias naqueles dias agitados,
que eram lidas na Rádio Nacional com a assinatura de Alberto, irmão mais
moço, pioneiro do cerrado e jornalista atuante. Eu, recém-chegado, não
conhecia ninguém.Nem era conhecido. Conforme revelei antes, por causa
disso Alberto foi indiciado no chamado IPM do Arcebispo, dom José
Newton, entre os que defenderam a manutenção da legalidade.
Mas os acontecimentos se passavam no Rio. A História trans-
corria lá. As comunicações eram difíceis. O catarinense Lenoir Vargas se
perguntava, assustado:
"Será que se esqueceram da gente?"
Esqueceram nada. Vieram logo as cassações de mandatos e
de direitos políticos. Recordo o pranto desatado de Nely, mulher de
Crisanto Moreira da Rocha, embora fosse ele, como suplente,
beneficiário das sanções. Um deputado pernambucano, Murilo Costa
Rego (era este mesmo o nome?) protestou, da tribuna, quando o
presidente em exercício, Afonso Celso (ou era Lenoir Vargas?), leu a
primeira lista de cassações. Intrépido, ele concluiu sua fala citando
"O Defunto" de Pedro Nava:
"Olhem bem pra minha cara
E pra de vocês também."
Lino Braun, suplente do PTB gaúcho, ganhou o mandato com a
cassação de colegas. Todos os dias, ia ao gabinete do diretor geral da
Câmara, Luciano Brandão, pra se certificar de que ainda era deputado.
"Luciano, estou achando que isso acaba logo. Não vai durar."
O que ele não queria era ouvir (mas ouvia) do interlocutor:
"Acaba, não. Vai durar."
Jamais poderíamos supor que aquilo fosse continuar. Mas conti-
nuou e o pior viria depois. Tempos de brutalidade, ignorância, arrogân-
cia, grosseria, delação, censura, tortura.

193
CANETA BIC

Sou aquele caso típico de que falava Cândido Mendes de Almeida,


o da "contemporaneidade do não coetâneo". É certo que ando moderno,
uso o computador. Até já naveguei nas águas da Internet, tendo os filhos
como comandantes da nau. Agora, quanto à escrita, prefiro a manual. É
quando o pensamento se solta, persegue elegâncias, as boas maneiras.
Primeiro, escrevo à mão. Depois é que passo tudo para o Pentium. Nada
tão contraditório.

Em matéria de caneta, prefiro a Bic preta. Ah! Se fosse um


Manuel Bandeira, não celebraria as três moças do sabonete Araxá,
não. Cantaria as virtudes da Bic. Com ela, geralmente escrevo macio.
Ela desliza sobre o papel. Macia, obediente, dócil, quase voluptuosa,
bom adjutório da inspiração. Tem mais: a Bic desinventou o sexto man-
damento: "Não roubarás". Sim porque nos aliviou do pecado. Você
rouba uma Bic e ela custa tão barato, vale tão pouco que você está
inocente, de alma branca, leve sem pecados, pode até comungar. Ruim
é quando você leva uma dessas canetas que se dão de presente ao
chefe ou ao patrão que valem uma fortuna e cujo surripiar pode levar a
ferros, ao calabouço. A Bic, não. Lembro-me de quando era Conselheiro
do Banco do Nordeste, (banco rico nos bons tempos inflacionários!) e
saía das reuniões com uma, duas, até três canetas, (dessas de trinta
centavos a unidade) colocadas sobre a mesa de reunião que, por
descuido, (seria descuido ou roubalheira?) guardava automaticamente
no bolso interno do paletó. O pessoal deve de ter pensado: como é que
um cara fala de vida tão boa e tão luxuosa em sua coluna e está rapinando
uma ou duas míseras Bics? Se o Tribunal de Contas descobre isto, me
chama à colação, vai-me exigir a restituição do que afanei. Sem
remorsos. Porque o roubo da Bic não está proibido nas tábuas da lei
que Moisés recebeu. Não há nada ali que se refira à apropriação indébita
de tal instrumento de escrever.

194
O PRAZER DE LER

Gosto muito de dividir com os amigos o prazer da descoberta de


um bom autor. De presenteá-los com livros.
Confesso, porém, que me desagrada emprestar livros. Geralmente
ninguém os devolve. Mesmo quando você vai à casa do cara que está com
livro de sua propriedade, à mostra na estante. Ele, porém, não se manca de
restituir o que é seu. E, às vezes, é bem precioso. Um dia desses, um
amigo me pediu emprestado romance de que lhe falara bem. Tentei
embromar, ganhar tempo, ver se ele se mancava e o adquiria em qualquer
livraria mas foi em vão. Terminei lhe entregando o pedido, muito sem
gosto, sem vontade, sem ter a certeza de que ele me será devolvido. Fiquei
pensando: se ele ganha tão bem, o livro se encontra à venda em todas as
livrarias, por que não o comprou? Só lhe servia o meu?

O desrespeito ao livro

Outro temor que me assalta é quanto ao tratamento que ele pode


dar ao volume, se mo devolver. Espero que ele não o risque, não dobre
suas páginas, não o deixe ao alcance dos rabiscos de filhos e netos, não
escangote a capa etc. e tal. A jornalista Célia de Nadai emprestou livro a
uma colega que o devolveu cheio de cabelos, riscado, sujo de manteiga.
Protestou contra aquela falta de respeito. A outra explicou que, quando
lia, havia tal processo de interação entre ela e a leitura que tudo acontecia.
Célia, então, expressou sua indignação: "Pois deixe esse processo de
interação para os seus livros. Não para os meus."

Viajar nem sempre é cultura

Viajar é muito bom. Principalmente para quem, diferente de mim,


quer se instruir e não apenas lotar o bandulho de arroz de mariscos e
Bucelas Velho. Sou, porém, um pobre homem da Praça do S.Francisco
de faróis baixos. E cujos apetites, com os anos, estão subindo.
Aliás, não há certeza de que viajar ilustre, instrua, tome alguém
culto. Se isso fosse rigorosamente verdadeiro, comissário de avião
era todo erudição. O Paulo Elpídio, com muito mau caráter,

195
diagnosticou, um dia desses, o nenhum aproveitamento que um
conhecido fizera de longa e recente temporada no exterior: "Os burros
também vão a Paris". Será? Quando revejo as crônicas de viagens
que perpetrei e as comparo às de grandes autores, baixa em mim
insuportável complexo de inferioridade. Eles viram tanta coisa. Eu
baixei a vista pro meu prato e pro meu copo e quase ali comecei e
concluí minha experiência turística.

O AMOR E A IDÉIA DE JANTAR

"Um amigo chega à boate, põe-me as mãos sobre os ombros (ele


em pé e eu sentado) e pergunta: "Meu amigo, eu estou bêbado e com dor
de cotovelo. Se eu comer, o que é que passa: o pileque ou a dor de
cotovelo?", respondi, fiado em experiências anteriores: "Quem tem dor-
de-cotovelo, mesmo, não come." (Antônio Maria)
O grande Eça, de A Cidade e as Serras, desmente esta afirmati-
va. Lembremos o amor de José Fernandes por Madame Colombe, a
piranha que o deixou arrasado. A vítima conta que "tarde, muito tarde,
quando já se cerravam com estrondo as cortinas de ferro das lojas, surdiu,
de entre todas estas confusas ruínas do meu ser, a eterna sobrevivente de
todas as ruínas - a idéia de jantar".
Em Portugal, o grande cronista da atualidade, Miguel Esteves
Cardoso, nos coloca na situação que muitos de nós já vivemos, diante
de uma dessas vítimas natas que nos desfiam suas mazelas e misérias.
"Chega um infeliz ao pé de nós e diz que não sabe se há de ir
beber uma cerveja ou matar-se. E pergunta, depois de ter feito o inventá-
rio das tristezas das últimas 24 horas: E tu? Sempre bem disposto, não?
O que é que se pode responder? Apetece mentir e dizer que nos morreu
uma avó, que nos atraiçoou uma namorada, que nos atropelaram a
cadelinha ali na estrada de Sines.""
Isto lembra aquele cara que gosta de se queixar dos chifres da
mulher. O que você pode dizer? Que é isto mesmo? Que você também
carrega tais adereços? Realmente, é muito embaraçoso.
Um milico às direitas
Um milico, desses que não bebe, não fuma, anda religiosamente
dez quilômetros, sofreu enfarte do miocárdio e quase se foi dessa para melhor.

196
Pois fui ao médico e ele me disse que minha função hepática é boa. Normal,
apesar dos tonéis de uísque, vinho e champã que já sorvi, aqui e alhures. O
ácido úrico está normal. E completou: Coitada de tua mulher. Não fica viúva
tão cedo. Pois esta é, pelo menos, a conversa do médico.
Consoladora para quem não tem vontade de viver pela metade.
Meia vida. Andar trafegando pelaí cheio de limitações. Correndo feito
um babaca. Deixando para amanhã o uísque que pode consumir hoje.
Já estou chegando à idade canônica. Do respeito que nos votam
as mulheres, não mais o desejo. Ou a esperança do desejo. Já não fumo.
Se me despeço de Baco, o que vai ser da vida?

UMA FESTA DE AMIGOS

Foi linda a festa que reuniu "la crema de la crema" da cidade, no


Ideal, por ocasião do lançamento do No aprés-midi de nossas vidas. O
único problema foi interromper a concessão de autógrafos para os
discursos. Deixou muita gente frustrada na fila. Mas também não saudar
os presentes, seria mal.

NO APRÊS-MIDI EM BRASÍLIA

O saldo, porém, foi uma festa em meu coração. Recordo aquela


observação de Acrísio Moreira da Rocha, duas vezes eleito prefeito de
Fortaleza, falando sobre suas vitórias eleitorais: "Pensar que o cara acor-
da, faz a barba, toma banho, veste a roupa, penteia o cabelo, sai de casa,
entra na fila, só para votar no Acrísio."
Foi o que me ocorreu na noite de autógrafos aqui na Câmara dos
Deputados. O cara se largar de casa, para a Praça dos Três Poderes no
final da tarde, encarar o problema de estacionamento cada dia mais
irritante, a chuva que caía forte, descobrir o Espaço Cultural da Câmara,
para ali adquirir meu livro, esperar meu autógrafo, constitui uma glória.
Afago no meu superego. Merecer isso aqui e em Fortaleza. Às vezes, até
na sede da Unesco em Paris. Na Embaixada do Brasil em Portugal. É
benção de Deus a Quem agradeço.

197
A CAMINHO DA UNIVERSIDADE

Eleazar Teixeira, professor do meu cursinho e do Paulo Elpídio


apareceu na noite do Ideal. Lá se vão 36 anos que nos apontou o cami-
nho da Faculdade que cursamos, mal e porcamente.

BOA MOÇA

Tive uma namorada, na Faculdade, que dividia os encantos


comigo e com o tenaz fauno que era o professor de "Introdução à
Ciência do Direito", Heribaldo Costa. A boa moça me abriu as portas
do segundo ano. Nunca pude captar "Introdução à Ciência do Direito"
(mais precisamente de abrir o compêndio) e foi ela quem me ajudou a
passar. Nunca fui assaz agradecido à generosa protetora. Deve de
estar pelaí, administrando justiça, defendendo o Direito. Grande
bacharela!
E Heribaldo era severíssimo. Na sala de aulas. Acho que o
ingresso de paletó era obrigatório. E nem se podia pensar em fumar.

O PADRINHO: MEU PAI

Eu já estava noutra. Era colunista político de Unitário e não me


saía mal. No segundo ano, Flávio Marcílio, que vinha de deixar a cadeira
de governador e reassumira a cadeira de Direito Privado Internacional,
ao fazer a chamada, logo me reconheceu: "É você, Lustosa?"
Gostava muito de Carlos Jereissati, que era muito atencioso
comigo. Dava-me a maior atenção nas conversas noturnas que tínha-
mos da casa de Raul Carneiro até a sua, na Tristão Gonçalves. Como
eu tinha interesse em ser procurador de autarquia, o que terminei sendo,
por influência dele e de Ozires Pontes - nesse tempo, emprego público
ainda não era palavrão - ficou a impressão de que ele seria meu padri-
nho. Claro que não foi. Compareceu, doente, abatido, à sala cheia da
Faculdade de Direito para me prestigiar e por isso lhe fiquei grato. Mas
quem me acompanhou até o Reitor para receber o diploma foi, natural-
mente, "seu" Costa.

198
SEM CONFUNDIR AS COISAS

Graças a Deus, nunca misturei as coisas. Tenho um conhecido


cujos filhos são, cada um, afilhado de um patrão que teve, de um patro-
cinador político de sua carreira. É loucura. Não se pode misturar família
com ligações políticas que, às vezes, são duradouras, outras não, são
passageiras e mutantes.

COMEMORAÇÃO

A turma de 1962 da Faculdade de Direito vai comemorar 35


anos de formatura. Infelizmente, não poderei estar aí. Leorne Belém,
orador de nossa turma em cujo discurso havia referência ao "olhar nu-
blado das mães", me representará.
"Seu" Costa me chamava "doutor de vela". Porque, a cada dia
de prova, dona Dolores acendia uma vela ao santo de sua devoção para
que me provesse do saber jurídico que me faltava. Entre o trabalho, o
namoro e o uísque do Ideal, o Direito ia pro espaço.
Não tenho porque debitar minha ignorância aos professores, à
Faculdade, ao fato de estudar "à noite", não. Não aprendi de preguiça,
de desleixo, de burrice.
Da mesma maneira, não fiquei rico. Ninguém me passou para
trás, atrasou minha vida, me prejudicou. Foi incompetência. Não enri-
queci ainda porque não me empenhei, não dei duro para isso, não me
interessei. Oportunidade até me ofereceram.
Continuo liso, correndo atrás dos cartões de crédito, vendendo,
um dia desses, um apartamentozinho fuleiro para me livrar das despesas
com viagem a Portugal e ao México.
Ainda não precisei dar o golpe em ninguém, graças a Deus. Nem
requerer autofalência. E tem dado para pagar os compromissos. Um
conhecido, de quarenta anos, me observa: "Desde que te conheci, tem
sido assim, sendo apertado para pagar os papagaios."
É isso aí. Só que ninguém me arrebatará a vida boa que tive, as
viagens que empreendi, o uísque que consumi, as mulheres que amei, os
amigos que me têm curtido, os livros que hei publicado. Olhando bem,
fazendo balanço sumário, eu sou é rico. Milionário. Duma riqueza que
ninguém confisca.

199
y

COISA DE POBRE

Vejo no restaurante disputa entre dois cavalheiros para ver quem,


dentre eles, paga a conta. Só faltam brigar. Diagnostico logo: "Isto é coisa
de pobre: brigar para pagar conta. Duvido que algum rico faça isso."

SEM RANCOR

Não estou em idade de guardar rancor de ninguém. Não se trata


de bondade ou de virtude, não. É auto-estima, defesa de mim mesmo.
Quando nasceu alguém neste mundo para merecer o meu ódio? Ainda
não apareceu. Ódio pesa muito na bagagem, oxida o resto dos seus
pertences, trava o seu coração. Não, não está com nada ter raiva.
Claro, você não é santo, tem seus momentos de mau humor, se
aborrece, explode mas logo esfria. Não vai ficar remoendo. Curtindo aquela
chateação. Naturalmente, depois de certa idade, cumpre evitar pessoas
que o irritam, aborrecem, lhe fazem mal. Nada de aturar quem nos
empobrece, nos estraga o dia mal. E há gente assim. Fugir delas é preciso.

MIMOS DE NATAL

Um cara me encontra: não sei o que faço para te mandar um


uísque no Natal. Engraçado, o Imposto Predial me localiza, a Receita
federal sabe onde me cobrar. Quando alguém quer uma nota na coluna,
facilmente me acha. Só encontra dificuldade em me mandar um mimo.
Por que não apela para o Sedex, a Vapex, a Transbrasil, o moleque de
recados? Engraçado, né?

A FALTA QUE ELE ME FEZ

Tive de trocar de micro. Passei uma noite sem tal companhia.


Ele dormiu fora de casa para efeitos de transferência de arquivos. Como
me fez falta! Você fica sempre esperando algum recado, vindo do Frota
Neto, em Washington. Da cunhada dele, Maria Eduarda, em Nova Delhi.

200
Do Mia Couto, em Moçambique. Do Germano de Almeida, em Cabo
Verde. Dos amigos do Ceará. Sem falar nos mundos que nele se escon-
dem e vamos pouco a pouco desvendando. O Pentium vira uma espécie
de vício, de dependência como deve de ter sido o rádio-amador do tem-
po dos nossos pais e avós.

Fiquei com saudades do computador velho, não vou negar. No


começo nossas relações foram difíceis, depois, não. Casamento quase
perfeito. Teria sido melhor se eu procurasse mais o entender. Não o fiz.
Ainda assim ele deu duro por nós dois. Por nossas relações. Em Paris,
onde o comprei, descobri a navegação na Internet. Raquel adquiriu pas-
sagem aérea, através do Minitel, dando apenas o número de meu cartão
de crédito. Pude ler, de véspera, no sábado, a edição do DN Gente de
domingo. Que sensação engraçada. Principalmente isto foi fantástico para
aquele adolescente sobralense que ficava, segunda-feira, meio-dia, espe-
rando a chegada dos jornais de domingo da capital à agência distribuido-
ra do José Osmar Albuquerque.

Confesso, depois de ler no micro, ainda hoje vou ao jornaleiro


comprar o Diário para ver como saiu minha matéria porque ainda sou
aquele cara ligado no papel. Até para corrigir o texto. Preciso imprimi-lo.
Só aí identifico com mais freqüência o que devo corrigir, alterar.
E, apesar de gostar tanto dos meus e-mails, ainda aguardo o
porteiro, ansioso, todas as tardes com a correspondência. E fico ligando
para a portaria do prédio onde moro a fim de saber se o carteiro já
passou, se as cartas foram selecionadas, se estão subindo. Sou o ultimo
dos caras que ainda escreve cartas e adora recebê-las.

Um novo cidadão

Meu filho caçula Carlos Eduardo chegou à maioridade. E numa


ansiedade bem nossa, bem do clã, todo o dia batalha por todos os docu-
mentos que lhe dêem atestado de cidadania. É um mundo bem diverso
do meu o que o aguarda. Claro. Acabo de perpetrar uma bobagem. Um
lugar-comum. O universo em que viveu meu pai também era muito dife-
rente daquele em que viveu meu avô. É bem verdade que a aceleração
histórica é muito mais intensa do que nos dois períodos. Ah, isto é.

201
Não pergunto sem solução

Vejo meu livreiro preocupado. Claro, é a crise. Não lhe pergunto


nada porque presumo as razões e não tenho como afastá-las. A gente só
deve fazer certas indagações quando tem a resposta, saída, solução. Por
curiosidade, pode até parecer sadismo. Certo prazer em saber do aperto
alheio. O ideal é você só perguntar quando, ao ouvir a resposta, tem
condições de resolver o problema, de aviar a saída.

Calvados

Lúcio Brasileiro conta que começou a gostar de uma cerveja por


que ela entra numa história que o encantou. Também me deixei fascinar
por calvados, aguardente de maçã da Normandia porque era a bebida em
que se amarrava Ravic, herói de O Arco de Triunfo, de Erich Maria
Remarque, livro de minha preferência por muitos anos. Somente fui sorver
tal bebida no bar do hotel em Zurich, em 1970, em companhia do Cláudio
Santos, que integrava nosso ônibus de turismo.

O JORNAL ME DISPENSOU DE APRENDER A


DANÇAR

Primeiro que tudo, devo dizer-lhes que nem sempre tive 59 anos,
estive na iminência de me tomar sexagenário, como ora me ocorre. Não.
Já fui moço. Até recém-nascido, em Cajazeiras. Depois a Vida fez de
mim o que quis.
Era um menino velho triste e encabulado em Sobral. Adolescen-
te, cheio de complexos, encabulado, cortava caminho, mudava de rota
para não passar junto às rodas de conversa na calçada. Tinha fundo
desgosto. Não sabia dançar, o que me distanciava dos bailes e das moças.
Sofria com isso. Como todo o tímido, era muito orgulhoso. Tinha a vaidade
de haver lido Contraponto, de Aldous Huxley, e precisava me sentir
superior aos outros, na convivência daqueles ingleses aristocratas, ricos e
cerebrais. Já me encontrara em O Retrato de Dorian Gray e me
encantara com a faiscante ourivesaria verbal de Oscar Wilde. Publicara
jornais de duração efêmera que não resolveram meu problema.

202
O primeiro emprego foi na Gazeta de Notícias, ao me mudar
para Fortaleza. O que, porém, me fez bem à alma e à cabeça foi a coluna
política de Unitário. Ela constituiu minha salvação. A comunicação com
o mundo. Eu era, afinal, alguém e muito jovem. Deu-me status para
circular na cidade, e, depois, na sociedade, sem a paralisante timidez da
adolescência. Tirou-me até o mortificante complexo de não saber dançar.
Tinha leitores. Meu pai registrou, em seus escritos
memorialísticos, sua vaidade ao ver, no ônibus, em que ia para o trabalho
ou voltava dele, que os leitores de Unitário abriam logo o jornal na
terceira página, atrás da "Resenha Política". Havia, sim, quem gostasse
daquelas notas soltas, descomprometidas, cheias de malícia própria e
alheia. Porque muita vez me fiz porta-voz de intrigantes. Porque tinha
muito pouco juízo. E nem sei se criei tal bicho.
O jornal também me tirou da fossa, da tristeza. Estava no Rio,
longe da família, dos amigos, do bar do Ideal depois de uma eleição
perdida e do desfazimento de uma relação matrimonial que, há muito,
acabara. Escrevia furiosamente. E um dos colegas do escritório em que
trabalhava, de José Ayler Aguiar Rocha, onde me empregara seu irmão
Ayrton, Wilson Rianelli, levava minha produção para a Tribuna da Im-
prensa, em cujas páginas Carlos Lacerda ainda escrevia. Uma manhã de
sol, ao sair de casa, à avenida Nossa Senhora de Copacabana, para o
trabalho que era próximo de meu apartamento no Edifício Copamar,
adquiro o jornal do "Corvo" na primeira banca. E, trêmulo, deslumbra-
do, encontro, em sua primeira página, assinado, meu artigo "A crise na
universidade". Passei noutra banca, temendo que fosse trote. Comprei
outro exemplar. Também nele estava minha prosa. Um terceiro para
conjurar qualquer brincadeira. Não era brincadeira, não era trote. Estava
eu lá, onde Lacerda publicava suas catilinárias. Ao chegar ao escritório
da Pronews (assim se chamava a empresa de José Ayler) fui saudado
com palmas pelos colegas de trabalho.
Por isso, abomino colegas dizerem a propósito da profissão dos
filhos: "Deus queira que não desejem entrar nessa profissão desgraça-
da". Jamais diria isso. Não vou induzi-los ao jornalismo (Raquel trocou
Biologia por Comunicação Social, este ano) embora eles me vejam sem-
pre cercado de jornais. Compro seis aos sábados e sete aos domingos e
os tresleio. Eles, também. E não posso me queixar do ofício que exerço,
que nos permite a ilusão de que lutamos por melhorar o mundo, tomá-lo

203
mais justo, menos mentiroso, menos hipócrita. E que me deu status, me
dispensou de aprender a dançar e me pôs em contato com dirigentes do
País. Até do mundo. Não tenho porque maldizer o que faço.
Inclusive porque sou um daqueles privilegiados. São os que amam
o que fazem e, por isso, não cansam no ofício. É-me leve o fardo de
escrever. Escrevo rápido. Há quem goste de minha prosa. Minha mãe,
por exemplo. E tenho até outros leitores. Alguns que há décadas lêem
essa conversa para boi dormir. E gostam.

Por mim, necessito do leitor, do ouvinte. Quando não me quise-


rem mais no jornal, tentarei uma estação de rádio. Escreverei nos muros,
nas paredes. Preciso comunicar-me com o semelhante. Através do jornal.
De cartas. De mensagens, através da Internet. O diabo a quatro.
Amigos se preocupam com o que consideram minha violência
contra os vendilhões da pátria. O crescido partido dos Silvérios dos Reis.
Confesso: este receio, que inspiro nos amigos de que possa sofrer repre-
sálias dos poderosos, me faz bem. Não é bravata, não. Longe disso. É
uma espécie de consolo, de conforto. Porque nos agrada saber que assim
somos vistos por eles. O pior era se estivesse dando notinhas em troca de
passagens aéreas ou almoços em restaurantes de luxo. Tomando dinheiro
de empresários para favorecer seus negócios. Felizmente, não é o caso.
Graças a Deus, meu caso é de loucura puramente cívica. E se ela ainda
arde, 44 anos depois que escrevi com as iniciais L.C. um artigo no Correio
da Semana, de Sobral sobre a ascensão de Café Filho à presidência da
República, devo erguer as mãos para os céus e agradecer ao Senhor, por
esta graça. (1997).

SEXAGENÁRIO

Bem que não queria ser sexagenário. Não era o que queria.
Nunca pensei chegasse a tanto. A alternativa, porém, era fatal. Quem
não quer envelhecer, morre. Por isso me conformei. Até o fim do ano
ingressarei nessa categoria sexy. Não é nada confortável. Bem menos
ruim, creio que vocês também concordam, que estar morando na cidade
dos pés juntos.

204
PORQUE SESSENTA

A gente, não se sabe bem porquê, dá o maior valor às datas


redondas. Breve, pois, farei sessenta anos de peregrinação sobre a terra
e verifico que, pelo menos, a metade foi boa. Foi ótima. A vida me deu
tudo o que pedi e mais alguma coisa. Tirou-me o que me pesava e podia
me arruinar e, assim leve, passei a trafegar pelas estradas do mundo.
Tenho mais é que agradecer a Deus, todos os dias, de joelhos, o que a
vida me prodigalizou. Até agora foi prazerosa. Nem queria que
melhorasse. Basta continuar como vai. É o que peço ao Senhor.

OBRIGADO, MEU DEUS!

Agradeço ao Senhor pelos filhos que tive, pelos livros que li, pelos
livros que publiquei, pelas amizades que fiz, pelas mulheres que me amaram,
pelo scotch e pelo rouge que bebi, em quantidades industriais. Pela saúde
de que desfrutei. Pela bem sucedida meia-sola feita no coração em Paris.
Em suma: muita gente me leu e houve até quem gostasse do que escrevi.
Algumas mulheres me amaram. Os garçons foram sempre atenciosos.
Os amigos, corteses. Bebi este divino licor destilado na Escócia, estes
rouges maravilhosos, saídos dos vinhedos franceses. Que mais poderia
querer da vida?

205
A gota tomou conta do meu pé esquerdo e vai abrindo
seu caminho, subindo, de modo que mais dia, menos dia, baterá
à porta do coração; não me queixo, pois penso em todo o roast-
beefque comi, em todo o bordeaux que bebi, e acho que valeu a
pena... (Alessandro Barbem, Boa Vida e Guerras Alheias do
fidalgo Mr. Py le)

207
COLEÇÃO ALAGADIÇO NOVO
1. IRACEMA-José de Alencar-Edição fac-similada; UFC -- 1983.
2. FORTALEZA E A CRÔNICA HISTÓRICA - Raimundo Girão -- UFC- 1983.
3. TEMPOS HERÓICOS - Esperidião de Queiroz Lima- Reedição da 2ª parte do livro ANTIGA
FAMÍLIA DO SERTÃO- UFC- 1984.
4. AS VISÕES DO CORPO-Francisco Carvalho - UFC- 1984.
5. CONTOS ESCOLHIDOS - Moreira Campos -- 4 Edição -- UFC, 1984.
6. DEZ ENSAIOS DE LITERATURA CEARENSE- Sânzio de Azevedo- UFC- 1985.
7. O NORTE CANTA-Martins d' Alvarez 2 Edição - UFC - 1985.
8. TIBÚRCIO- O GRANDE SOLDADO E PENSADOR Eusébio de Sousa - Edição Especial
UFC-1985.
9. O CRATO DE MEU TEMPO- Paulo Elpídio de Menezes - 2" Edição -- UFC-- 1985.
10. BUMBA-MEU-BOIE OUTROS TEMAS - Lauro Ruiz de Andrade -- UFC - 1985.
11. CANTO DE AMOR AO CEARÁ-Artur Eduardo Benevides -- UFC 1985.
12. MUNDO PERDIDO - Fran Martins -- 2 Edição - UFC- 1985.
13. ILDEFONSO ALBANO E OUTROS ENSAIOS-F. Alves de Andrade - UFC - 1985.
14. POEMAS ESCOLHIDOS-Cruz Filho-UFC-1986.
15. REFLEXÕES SOBRE AUGUSTO DOS ANJOS-Antônio Martins Filho -- UFC- 1987.
16. GUSTAVO BARROSO-SOL, MARESERTÃO-EduardoCampos- UFC- 1988.
17 EXERCÍCIOS DE LITERATURA- Francisco Carvalho- UFC- 1989.
18. POESIAS- 2 Edição -Filgueiras Lima - UFC- 1989.
19. A RECEPÇAO DOS ROMANCES INDIANISTAS DE JOSE DE ALENCAR Ingrid
Schwambom - UFC - 1990.
20. LITERATURA SEM FRONTEIRAS -Coordenadores: Helmut Feldmann e Teoberto Landim
- UFC- 1990.
21. UFC & BNB -- Educação para o Desenvolvimento - Antônio Martins Filho - UFC- 1990.
22. IMPERIO DO BACAMARTE-Joaryvar Macedo -2' Edição- UFC- I 990/1992.
23. O MUNDO DEFLORA,- Angela Gutiérrez -- UFC- 1990.
24. CRONICAS DA PROVINCIA DO CEARA- Manuel Albano Amora -- UFC- 1990.
25. APOLOGIA DE AUGUSTO DOS ANJOS E OUTROS ESTUDOS- F.S. Nascimento
UFC - 1990.
26. ESPELHO DE CRISTAL- Wilson Fernandes -- UFC- 1 990.
27. MEDICINA MEU AMOR- CONTOS E CRÔNICAS -José Murilo Martins -- UFC- 1991.
28. O TERRITÓRIO DA PALAVRA -- MEMÓRIA & LITERATURA - Carlos d' Alge-
UFC-- 1991.
29. METAFÍSICA DAS PARTES-Carlos Gildemar Pontes -- UFC- 1991.
30. REINCIDÊNCIA- Cláudio Martins --UFC-- 1991.
31. CONCEITOS & CONFRONTOS - Heládio Feitosa e Castro -- UFC- 1 991.
32. DESCRIÇÃO DA CIDADE DE FORTALEZA-Antônio Bezerra de Menezes Introdução e
Notas de Raimundo Girão -- UFC - 1992.
33. NOTURNOS DE MUCURIPE E POEMAS DE ÊXTASE E ABISMO Artur Eduardo
Benevides -- UFC - 1992.
34. NOVOS ENSAIOS DE LITERATURA CEARENSE- Sânzio de Azevedo - UFC-- 1992.
35. SECA, A ESTAÇÃO DO INFERNO- Teoberto Landim -- UFC- 1992.
36. FORTALEZA DESCALÇA - Otacílio de Azevedo -- UFC-- 1992.
37. CRONICA DAS RAIZES-Francisco Carvalho -- UFC-- 1992.
38. A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO CEARÁ- O POVOAMENTO- Vinícius Barros
Leal -- UFC- 1993.
39. FORMAS E SISTEMAS DE GOVERNO- ITINERÁRIOS E QUESTIONAMENTO-André
Haguette (Organizador) - UFC- 1993. .
40. HISTORIA ABREVIADA DE FORTALEZA E CRONICAS SOBRE A CIDADE AMADA-
Mozart Sariano Aderaldo -- UFC- 1993.
41. ANDANÇAS E MARINHAGENS -- Linhares Filho -- UFC- 1993.
42. TEMPOS E HOMENS QUE PASSARAM À HISTÓRIA- Tácito Theophilo -- UFC- 1993.
43. POESIAS INCOMPLETAS-Antônio Girão Barroso -- UFC- 1994.
44. FICÇÃO REUNIDA - Durval Aires, Dimas Macedo (Organizador). - UFC- 1994.
45. OCEU E MUITO ALTO-Lembranças-Blanchard Girão- UFC- 1994.
46. SONATA DOS PUNHAIS-Francisco Carvalho - UFC -- 1994.
47. MAR OCEANO -- Fran Martins - 2 edição - UFC 1994.
48. SEARA -Luciano Maia -- UFC - 1994.
49. MEUS EUS- Pedro Henrique Saraiva Leão - UFC- 1994.
50. A PADARIA ESPIRITUAL- Leonardo Mota- 2 edição Introdução e Notas de Sânzio
de Azevedo -- UFC- 1994
51. CANTIGAS DOCORAÇÃO-Heládio Feitosa e Castro- UFC- 1995.
52. PROSA DISPERSA- Newton Gonçalves - UFC- 1995.
53. O OUTRO NORDESTE- Djacir Menezes - UFC- 1995.
54. LEITURA E CONJUNTURA- Dimas Macedo- UFC 1995.
55. LOUVAÇÃO DE FORTALEZA - Lustosa da Costa- UFC- 1995.
56. TEXTOS E CONTEXTOS - Francisco Carvalho- UFC- 1995.
57. NOVOS RETRATOS E LEMBRANÇAS -Antônio Sales -- UFC 1995.
58. MARÉ ALTA - Yolanda Gadelha Theophilo -- Imprensa Universitária - 1995.
59. TEORIA DA VERSIFICAÇAO MODERNA- F.S. Nascimento -- UFC- 1995.
60. ELOGIO AOS DOUTORES E OUTRAS MENSAGENS-Antônio Martins Filho- UFC- 1995.
61. COISAS IMPERFEITAS. (Escritos de Filosofia da Ciência) - José Anchieta Esmeraldo e Rui
Verlaine Oliveira Moreira- UFC-1996.
62. SITUAÇÕES E INTERPRETAÇÕES LITERÁRIAS -Pedro Paulo Montenegro - UFC- 1996.
63. MEMORIAS DE UM CAÇADOR DE ESTRELAS - Rubens de Azevedo- UFC 1996.
64. OS CAMINHOS DA UNIDADE GERMANICA- Paulo Elpídio de Menezes Neto- UFC- 1996.
65. NO MUNDO DOS TREBELHOS- Ronald Câmara - UFC - 1996.
66. NADA DE NOVO SOB O SOL- Lúcia Fernandes Martins - UFC- 1996.
67. DIMENSÕES ESPIRITUAIS DA ESPANHA & OUTROS TEMAS- José Newton Alves de
Sousa -- UFC- 1996.
68. POESIA COMPLETA-Aluízio Medeiros - UFC - 1996.
69. ÁGUAS PASSADAS -Olga Stela Wouters - UFC 1996.
70. CONCEITOS DE FILOSOFIA - Willis Santiago Guerra Filho - UFC 1996.
71. RESGATE DE IDEIAS-Estudos e Expressões Estéticas- Vianney Mesquita- UFC- 1996.
72 A RUA EO MUNDO-Fran Martins -- UFC-- 1996.
73 MEU MUNDO É UMA FARMÁCIA -- José de Figueiredo Filho _- UFC- 1996.
74. A PADARIA ESPIRITUAL E O SIMBOLISMO NO CEARA - Sânzio de Azevedo -
UFC - 1996.
75. HISTÓRIA ABREVIADA DA UFC- Antônio Martins Filho -- UFC 1996.
76. O ESPANTALHO -- Pedro Rodrigues Salgueiro -- UFC - 1996
77. A GRAMATICA DOPALADAR - Antepasto de velhas receitas - Eduardo Campos -- UFC.
78. RAIZES DA VOZ -Francisco Carvalho -- UFC - 1996.
79. MISCELÂNEA - de garoto sertanejo a médico cardiologista - Heládio Feitosa e Castro--
UFC-1996.
80. REPASSE CRÍTICO DA GRAMÁTICA PORTUGUESA -- Martinz de Aguiar -- UFC- 1996.
8I. FURIAS DO ORACULO: uma antologia crítica da obra de José Alcides Pinto -- UFC- 1996.
82. TRES DIMENSOES DA POETICA DE FRANCISCO CARVALHO-Ana Vládia Aires Mourão
- UFC- 1996.
83. NO MUNDO DA LUA-Martins D'Alvarez-UFC-1996.
84. NOVELO DE ESTÓRIAS - Hilda Gouveia de Oliveira -- UFC- 1996.
85. AS QUATRO SERGIPANAS-Padre F. Montenegro - UFC- 1996.
86. POEMAS DA MEIA-LUZ- Hamilton Monteiro- UFC- 1996.
87. REBUSCAS E REENCONTROS -Linhares Filho - UFC- 1996.
88. ALENCAR, O PADRE REBELDE-J.C. Alencar Araripe- UFC- 1996.
89. RITMOS E LEGENDAS - Martins D' Alvarez-- UFC- 1996.
90. O RETRATO DE JANO- Paulo Elpídio de Menezes Neto - UFC- 1996.
91. ROSTRO HERMOSO-Luciano Maia- UFC-1996.
92. REFLEXÕES MONÍSTICAS SOBRE GEOGRAFIA E OUTROS TEMAS- Caio Lóssio
Botelho - UFC - 1996.
93. ATRAVÉS DA LITERATURA CEARENSE-Crítica- Florival Seraine- UFC- 1996.
94. VIRGÍLIO TÁVORA: SUA ÉPOCA-Marcelo Linhares - UFC- 1996.
95. O INQUILINO DO PASSADO -Eduardo Campos - UFC- 1996.
96. POESIA REUNIDA-Otacílio Colares - UFC- 1996.
97. PALIMPSESTO & OUTROS SONETOS - Virgílio Maia- UFC- 1996.
98. MISSISSIPI -- Gustavo Barroso -UFC 1996.
99. PORTUGAL E OUTRAS PÁTRIAS- Os mundo Pontes - UFC 1996.
100. AS TRÊS MARIAS- Rachel de Queiroz- UFC- 1996.
!OI. DONA GUIDINHA DO POÇO-Oliveira Paiva- UFC- 1997.
102. ESCADARIAS NA AURORA-Artur Eduardo Benevides - UFC- 1997.
103. QUIXADÁ & SERRA DO ESTÊVÃO-José Bonifácio de Sousa- UFC- 1997.
104. CANÇÃO DA MENINA Angela Gutiérrez- UFC- 1997.
105. O SAL DA ESCRITA-Carlos d'Alge- UFC-1997.
106. MATHIAS BECK E A Cia DAS ÍNDIAS OCIDENTAIS: o domínio holandês no Ceará
colonial- Rita Krommen- UFC- 1997.
107. MENINO SÓ-Jáder de Carvalho -- UFC- 1997.
108. UMA LEITURA ÍNTIMA DE DÔRA, DORALINA-A lição dos manuscritos - Italo Gurgel
-UFC-1997.
109. FICÇÕES- Martins d' Alvarez- UFC- 1997.
110. PRÍNCIPE, LOBO E HOMEM COMUM - (Análise das idéias de Maquiavel, Hobbes e
Locke)- Rui Martinho Rodrigues -- UFC- 1997.
111. GEOGRAFIA ESTÉTICA DE FORTALEZA- Raimundo Girão -- UFC- 1997
112. CARTAS E POEMAS AO ANJO DA GUARDA-RitadeCássia- UFC-1997.
113. RIO SUBTERRÂNEO- José Costa Matos - UFC- 1997.
II4. ADOLFO CAMINHA: Vida e Obra - Sânzio de Azevedo- UFC- 1997.
115. POEMAS DO CÁRCERE E ÂNSIA REVEL-Carlos Gondim - organização e introdução de
Sânzio de Azevedo -- UFC- 1997.
116 RIMAS -José Albano - UFC - 1997.
117. VOZ CEARÁ- Stella Leonardos -- UFC 1997.
118. GIRASSÓIS DE BARRO- Francisco Carvalho -- UFC 1997.
I19. AS CUNHAS - Milton Dias-- UFC-- 1997.
120. FORTALEZA: VELHOS CARNAVAIS Caterina Maria de Saboya Oliveira
UFC -- 1997.
121. NÓS SOMOS JOVENS- Fran Martins -- UFC- 1997.
122. TRIGO SEM JOIO (seleção de poemas)- Otacílio de Azevedo -- UFC- 1997.
123. UMA CEARENSE NA TERRA DOS BIITE SCHÔN- Regine Limaverde- UFC -- 1997.
124. O PACTO ( Romance)- Stela Nascimento- UFC- 1997.
125. A POLÍTICA DO CORPO NA OBRA LITERÁRIA DE RODOLFO TEÓFILO-João Alfredo
de Sousa Montenegro - UFC - 1997.
126. IMAGENS DO CEARA-Herman Lima- UFC -- 1997.
127. EDITOR DE INSÔNIA E OUTROS CONTOS-José Alcides Pinto - UFC - 1997.
128. A CAPITAL DO CEARÁ-Geraldo da Silva Nobre UFC 1997.
129. MEMÓRIA HISTÓRICA DA COMARCA DO CRATO- Raimundo de Oliveira Borges-
UFC -- 1997.
130. CORPO MÍSTICO & OUTROS TEXTOS PARA TEATRO-Oswald Barroso -UFC 1997.
131. AS VERDES LÉGUAS - Francisco Carvalho - UFC- 1997
132. AUTORES CEARENSES - Joaquim Alves - UFC- 1997.
133. IMAGINANDO ERROS -José Anchieta Esmerai do Barreto, Rui Verlaine Oliveira Moreira
(organizadores) -- UFC - 1997. _
134. O POETICO COMO HUMANIZAÇAO EM MIGUEL TORGA -Linhares Filho -UFC- 1997.
135. DOIS DE OUROS -Fran Martins -UFC- 1997.
136. AUTA DE SOUZA - Jandira Carvalho -- UFC - 1997.
137. NO APRÊS-MIDI DE NOSSAS VIDAS -Lustosa da Costa - UFC-- 1997.
138. MAR VIOLETA, VIOLETA MAR- Fabiana Guimarães Rocha- UFC- 1997.
139. NÃO HÁ ESTRELAS NO CÉU -- João Climaco Bezerra- UFC-- 1997.
140. SONETOS CEARENSES (poetas cearenses)- Hugo Victor --UFC-- 1997.
141. IRACEMA - José de Alencar- UFC- 1997.
142. PIREU IDA E VOLTA & OUTRAS CRONICAS -Fran Martins - UFC- 1997.
143. UMA CHAMA AO VENTO - Braga Montenegro -- UFC - 1997
144. O DISCURSO CONSTITUINTE/Uma Abordagem Crítica - Dimas Macedo -- UFC- 1997.
145. A ESCRITA ACADEMICA (Acertos e Desacertos) -- José Anchieta Esmeraldo Barreto e
Vianney Mesquita- UFC-- 1997.
146. A ESTRELA AZUL E O ALMOFARIZ: Exercícios de poesia e metapoesia -- Horácio
Dídimo -- UFC-- 1998.
147. RUA DA SAUDADE (POESIA) -Eduardo Fontes - UFC-- 1998.
148. REMINISCÊNCIAS - Monsenhor José Quinderé- UFC -- 1998.
149. A INSTITUIÇÃO NOTARIAL NO DIREITO COMPARADO E NO DIREITO BRASILEI-
RO - Regnoberto Marques de Melo Júnior -- UFC -- 1998.
150. CRÓNICAS DA MOCIDADE NO CEARÁ Pires Saboia - UFC - 1998.
151. MÃO DE MARTELO E OUTROS CONTOS - Astolfo Lima Sandy - UFC - 1998.
152. A NOITE EM BABYLÔNJA E OUTROS RELATOS AO ETERNO - Poesia Artur Eduar-
do Benevides - UFC- 1998.
153. ESTRELA DO PASTOR - Romance - Fran Martins - UFC - 1998.
154. A BORBOLETA ACORRENTADA-Contos-Eduardo Campos-UFC-1998.
155. HISTORIA ABREVIADA DE LA UFC-Antonio Martins Filho-UFC-1998.
156. GRACILIANO RAMOS-Reflexos de Sua Personalidade na Obra-Helmut Feldmann-
UFC-1998.
157. OS CAMINHOS DA MUNICIPALIZAÇÃO NO CEARÁ-Uma Avaliação- André
Haguette e Eloísa Vidal (Organizadores)-UFC-1998.
158 O CRUZEIRO TEM CINCO ESTRELAS-Romance-Fran Martins-UFC-1998.
159. MÉDICOS ESCRITORES E ESCRITORES MÉDICOS DA UFC- Geraldo Bezerra da Silva
- UFC - 1998.
160. A VOLTA DO INQUILINO DO PASSADO - Segunda Locação - Memórias - Eduardo
Campos - UFC - 1998.
161. O LIMO E A VÁRZEA- Poesia - Regine Limaverde - UFC- 1998.
162. TERRA BARBARA - Poesia - Jáder de Carvalho - UFC - 1998.
163. A GUERRA DOS PANFLETOS - História - Waldy Sombra - UFC - 1998.
164. ROMANCE DA NUVEM PÁSSARO - Poesia - Francisco Carvalho - UFC - 1998.
165. NQTÍCIA DO POVO CEARENSE- História - 2' Edição - Yaco Fernandes - UFC - 1998.
166. A ULTIMA TESTEMUNHA - Romance - Elano Paula - UFC- 1998.
167. A INVENÇÃO DO DISCURSO AMBIENTAL - Ecologia - Eduardo Campos - UFC- 1998.
168. URBANIDADE E CULTURA POLITICA-(A cidade de Fortaleza e o liberalis-
mo cearense no século XIX)-José Ernesto Pimentel Filho-UFC-1998.
169. PEDRAS DO ARCO-ÍRIS OU A INVENÇÃO DO AZUL NO EDITAL DO RIO -Poesia-
Barros Pinho-UFC-1998.
170. CONTAGEM PROGRESSIVA-Reminiscências da lnfãncia-Memórias-Caio Porfírio Car-
neiro-UFC-1998.
I71. RACHE O PROCÓPIO' - Crónicas-Lustosa da Costa-UFC-1998.
172. O VENDEDOR DE JUDAS - Contos - Tércia Montenegro - UFC - 1998.
173. A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA-Ensaios -José Filomeno de Moraes Filho - UFC- 1998.
174. ALMA DE POETA - Poesia- Eduardo Fontes - UFC - 1998.
175. ESTUDOS TÓPICOS DE DIREITO ELEITORAL - Ensaios - Napoleão Nunes Maia Filho
- UFC- 1998.
176. SALA DE RETRATOS - Poesia - Marly Vasconcelos - UFC - 1998.
177. A CONCHA IMPOSSÍVEL - Poesia - Napoleão Maia Filho - UFC - 1998.
178. RASGANDO PAPÉIS - NJemórias - Tacito Theophilo Gaspar de Oliveira - UFC - 1998.
179. CRATO: LAMPEJOS POLITICOS E CULTURAIS - História - F. S. Nascimento -UFC- 1998.
180. NA TRILHA DOS MATUIÜS - Contos - José Costa Matos - UFC - 1998.
181. NADA NUEVO BAJO EL SOL- Novela- Lúcia Fernandes Martins - UFC- 1998.
182. GENTE NOVA - (Notas e Impressões) - Crítica - Mário Ljnhares - UFC - 1998.
183. TEMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO E TRIBUTARIO - Napoleão Nunes Maia
FiIho - UFC- 1998.
184. O GUARANI ERA UM TUPI?-Sobre os romances indianistas O Guarani, Iracema,
Ubirajara de José de Alencar-Ingrid Schwamborn-UFC-1998.
185. A PRESENÇA DA POESIA NO MUNDO DOS NEGOCIOS - Antônio Martins Filho -
UFC-1998.
186. NORTE MAGNÉTICO - Poesia - Sérgio Macedo - UFC - 1998.
187. REVOLUÇÃO POR CONSENTIMENTO - Valores ético-sociais do empresariado União
pelo Ceará político - 1962/C1C-1978- José Flávio Costa Lima - UFC - 1998.
188. CANTO IMATERIAL - Poesia - Vanderley Moreira - UFC - 1998.
189. POR UM FIO- Contos - Sandra Maia - UFC - 1999.
190. ERA UMA VEZ - Poesia- Karl a Karenina - UFC- 1999.
191. O PORTAL E A PASSAGEM - Poesia - Beatriz Alcântara - UFC- 1999.
192. POÇO DOS PAUS - Romance - 2 Edição - Fran Martins - UFC- 1999.
193. CAPISTRANO DE ABREU - Biobibliografia - José Aurélio Saraiva Câmara UFC - 1999.
194. UNIVERSIDADE- Caminho para o desenvolvimento - José Teodoro Soares - UFC - 1999.
195. PONTA DE RUA - Romance - 2 Edição - Fran Martins - UFC- 1999.
196. MELANCHOLIA - (Antologia) - Sociedade de Belas Letras & Artes Academia da ln-
certeza - UFC - 1999.
197. TEATRO- (Teatro Completo de Eduardo Campos)-VOL 1-Eduardo Campos - UFC - 1999.
198. TEATRO -(Teatro Completo de Eduardo Campos) -VOL II- Eduardo Campos - UFC - 1999.
199. Para uma FILOSOFIA da FILOSOFIA (Conceitos de Filosofia) - Willis Santiago Guerra
Filho - UFC- 1999.
200. CAMINHOS ANTIGOS E POVOAMENTO DO BRASIL - 3 Edição - J.Capistrano de
Abreu - UFC- 1999.
201. O GUARANI - José de Alencar - Romance - (Volume I)- UFC- 1999.
202. O GUARANI - José de Alencar - Romance - (Volume II) - UFC - 1999.
203. CARLOS BASTOS TIGRE- O Guardião das Árvores (Centenário) - Ilka Tigre/
Organizadora - UFC - 1999.
204. NORDESTE MISTICO-Império da Fé - Ensaio sobre manifestações da religiosidade
popular, no folclore e do sincretismo religioso do Nordeste - Vi]ma Maciel e Célia
Magalhães - UFC - 1999.
205. ROTEIRO BIOGRÁFICO DAS RUAS DOCRATO-J. Lindembergde Aquino- UFC- 1999.
206. BRASIL, A EUROPA DOS TRÓPICOS - 500 anos rumo à Civilização Trópico-Equato-
rial- Caio Lóssio Botelho - UFC - 1999.
207. VOZES DO SILÊNCIO- Poesia- Cecília Bossi - UFC -1999.
208. ESTÂNCJA CEARENSE - Poesia - Márcio Catunda - UFC- 1999.
209. A SHORT HISTORY OF THE FEDERAL UNJVERSITY OF CEARÁ (UFC)-Antônio
Martins Filho -- UFC- 1999.
210. O ELEFANTE E OS CEGOS -José Anchieta Esmeraldo Barreto, Rui Verlaine Oliveira
Moreira (Organizadores) - UFC- 1999.
211. MANIPUEIRA - Contos - Fran Martins - UFC- 1999.
212. REENCONTRO-Contos- Glória Martins- UFC- 1999.·
213. LOUVADO SEJA TAMBÉM O PEIXE (crônicas)- Ciro Colares - UFC-- 1999.
214. A LEI 4.320-COMENTADA AO ALCANCE DE TODOS (Direito Financeiro)- Afonso
Gomes Aguiar - UFC - 1999.
215. DIREITOPROCESSUAL-QUATROENSAIOS-NapoleãoNunesMaiaFilho-UFC-1999.
216. CANTOS DA ANTEVÉSPERA- Sânzio de Azevedo - UFC- 1999.
217. NOITE FELIZ (Contos)- Fran Martins - UFC - 1999.
218. O PRANTO INSÓLITO - Eduardo Campos - UFC - 1999.
219. PALAVRAS AOS QUE AINDA OUVEM (Discursos)- Raimundo Bezerra Falcão -
UFC- 1999.
220. LUSO-BRASILIDADES - NOS 500 ANOS - Dário Moreira de Castro Alves - UFC- 1999.
221. FEITOSAS - GENEALOGIA - HISTÓRIA - BIOGRAFIAS -Aécio Feitosa- UFC- 1999.
222. CANUDOS - Poema dos Quinhentos - Carlos Newton Júnior - UFC- 1999.
223. PER SONAS - Notas de Um Bibliófilo Cearense - José Bonifácio Câmara - UFC - 1999.
224. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: Em busca da operacionalização - Manoel do
Nascimento Barradas (Organizador) - UFC - 1999.
225. COMEÇAR DE NOVO: Romance-Elano Paula- UFC- 1999.
226. COMO ME TORNEI SEXAGENÁRIO- Lustosa da Costa- UFC - 1999.
lt
MPRtM$A
UNIVERSITA'RIA
Impressão e Acabamento
Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará
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