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Sefarad

Antonio Muñoz Molina


COMPANHIA DAS LETRAS
Copyright © 2001 by Antonio Muñoz Molina
Título original Sefarad — Una novela de novelas
A presente edição foi traduzida com o apoio da Direccion General del
Libro, Archivos y Bibliotecas do Ministério da Educação, Cultura e
Esportes da Espanha
Preparação Roberto Alves
Revisão Isabel Jorge Cury Carraens da Costa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara
Brasileira do Livro SP Brasil Munoz Molina Antônio Sefarad um romance
de romances / Antônio Munoz Molma tradução Rosa Freire d Aguiar —
São Paulo Companhia das Letras 2003
Bibliografia ISBN 85 359 0357 7
Romance espanhol l Titulo 0321—
000-863
índice para catálogo sistemático i Romances Literatura espanhola
[2003]
Todos os direitos desta edição reservados a EDITORA SCHWARCZ
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Contracapa

Sefarad é o nome bíblico da terra ibérica onde, por mil anos, viveram os
judeus sefarditas, até serem expulsos, na primavera de 1492. A palavra
tornou-se símbolo e metáfora dos exílios, que não foram poucos num século
XX pródigo em totalitarismos, ditaduras e guerras, com milhões de pessoas
deslocadas, perseguidas e desarraigadas.
A odisseia dos judeus é o núcleo desse afresco da exclusão, e seus
personagens centrais, de carne e osso, são Franz Kafka e Milena Jesenska,
Walter Benjamin e Primo Levi, mas a galeria dos retratados é mais extensa,
incorporando os que se exilaram não apenas em terras alheias, como
também na própria alma, por se sentirem excluídos da sociedade, dos
amigos, da saúde, do amor. Todos cruzaram a pior fronteira, como dizia
Kafka, aquela que divide saúde e doença, vida e morte.
Antonio Muñoz Molina (1956), um dos mais premiados romancistas da
Espanha, empreende um vigoroso trabalho de memória ao resgatar histórias
anônimas ou conhecidas de aventuras, frustrações, ódios e amores vividos
por aqueles que parecem ter sido expulsos do paraíso da humanidade.
Para Antonio e Miguel,
para Arturo e Elena,
desejando-lhes que vivam plenamente
os futuros romances de suas vidas
"Sim", disse o oficial de justiça, "são acusados,
todos os que o senhor está vendo aqui são acusados."
"É mesmo?", disse K. "Então são meus colegas."

FRANZ KAFKA, O processo


Sacristão

Fizemos a vida longe de nossa cidade pequena, mas não nos


acostumamos com sua ausência, e gostamos de cultivar sua nostalgia
quando já estamos há algum tempo sem voltar, e às vezes de exagerar o
sotaque, quando falamos entre nós, e usar as palavras e expressões
vernáculas que fomos amealhando com os anos, e que nossos filhos, tendo-
as escutado tanto, mal compreendem. Godino, o secretário de nossa casa
regional — que graças a seu dinamismo entusiasta reviveu após uma triste
letargia —, organiza regularmente jantares de confraternização em que
saboreamos os alimentos e as receitas de nossa terra, e, se nos desagrada
que nossa gastronomia seja tão pouco conhecida pelos forasteiros, assim
como nossa arquitetura monumental ou nossa Semana Santa, também nos
agrada ter pratos que ninguém conhece e designá-los com essas palavras
que só têm sentido para nós. Nossas aceitunas gordales ou de cornezuelo!,
declama Godino. Nossos pãezinhos de azeite, nossos borrachuelos, nossos
andrajos, nossos hornazos de Páscoa, nossa morcela de caldeirão, que é
morcela com arroz, e não com cebola, nosso gaspacho típico, que não tem
nada a ver com o que chamam de gaspacho andaluz, nossa salada de
alcauciles!1 Na sala do Museu do Presunto onde costumamos nos reunir,
nós, da direção, Godino corta guloso uma fatia de pão e antes de afundá-la
no prato de morcela fumegante faz um gesto como que se benzendo e recita
uns versos: A morcela, grande senhora, Digna de veneração.
O dono do Museu é nosso conterrâneo, e costuma se encarregar, como
diz Godino, do catering de nossas comilanças, em que não há um só
produto que não tenha vindo de nossa cidade, nem mesmo o pão, feito no
forno da Trini, o mesmo que continua assando as madalenas mais saborosas
e esses hornazos de Sexta-feira Santa que levam um ovo duro no meio, e
que adorávamos na infância. Na verdade, agora nos damos conta de que sua
massa gordurosa é meio pesada, e embora em nossas conversas
continuemos a celebrar o sabor do homazo, seu formato único no mundo, e
até seu nome que ninguém entende melhor que nós, não conseguimos
terminar uma delas, e sentimos certa pena de desperdiçar comida, como nos
diziam nossas mães, e nos lembramos das vezes, nos primeiros tempos de
Madri, em que íamos pegar na agência da empresa transportadora uns
daqueles pacotes de comida que nos mandavam de nossas casas: caixas de
papelão bem fechadas com fita adesiva e amarradas com cordas, trazendo-
nos de tão longe o cheiro intacto da cozinha familiar, a saborosa abundância
de tudo o que nos faltava e de que sentíamos tanta saudade em Madri: as
linguiças butifarras e os chouriços feitos no dia do abate, borrachuelos
polvilhados de açúcar, homazos, e até mesmo um pote de vidro cheio de
salada de pimentões vermelhos, a delícia máxima que se podia pedir à vida.
Por um bom tempo, o interior tétrico do armário do nosso quarto de pensão
adquiria a penumbra suculenta e misteriosa daquelas despensas onde se
guardava a comida nos tempos anteriores às geladeiras.
(Agora eu digo a meus filhos que não faz muito tempo, quando tinha a
Idade deles, na minha casa ainda não havia geladeira nem televisão, e eles
não acreditam ou, pior, me olham como se eu fosse um homem das
cavernas.) passávamos muitos longos meses longe de nossa casa e de nossa
cidade, mas o olfato e o paladar nos davam o mesmo consolo que uma
carta, a mesma alegria profunda e melancólica que permanecia depois de
falarmos por telefone com nossa mãe ou namorada. Nossos filhos, que
passam o dia pendurados ao telefone, falando horas com alguém que
acabaram de ver um minuto antes, não conseguem acreditar que para nós,
não só na infância mas também na primeira juventude, o telefone ainda era
um aparelho inabitual, pelo menos nas famílias modestas, e que telefonar de
uma cidade para outra, fazer uma ligação, como se dizia não há muito, era
tarefa até certo ponto complicada, que volta e meia exigia fazer fila horas a
fio em postos superlotados, porque os telefones ainda não eram
automáticos. Não sou propriamente um velho (se bem que minha mulher
me diga às vezes que ando envelhecido), mas me lembro de quando, para
falar com minha mãe, tinha de ligar para uma vizinha, e esperar que fossem
avisá-la, enquanto se ouvia o ruído do contador na cabine de madeira da
Telefônica, no posto da Gran Via. Finalmente eu ouvia sua voz e me invadia
uma angústia que, mais tarde, só raramente tornei a sentir, uma sensação de
estar muito longe e de ter deixado minha mãe sozinha, envelhecendo. Nós
dois éramos muito acanhados, aquele aparelho nada habitual em nossas
vidas nos deixava muito nervosos e aflitos pensando no dinheiro que estaria
nos custando aquela conversa em que mal éramos capazes de trocar
formalidades tão corriqueiras como as das cartas: você está bem, não fique
doente, não se esqueça de se abrigar ao sair de manhã, que está fazendo
muito frio. Era feio atrever-se a pedir que nos mandassem um pacote de
comida, que fizessem uma remessa. A pessoa desligava o telefone e de
repente restabelecia-se a distância, e com ela, além da desolação de ir para a
rua num domingo à noite, também o alívio um tanto abjeto de ter concluído
uma conversa incômoda em que não se tinha nada para dizer.
Agora que as distâncias se encurtaram é que vamos nos sentindo mais
longe. Quem não se lembra daquelas viagens eternas no expresso da meia-
noite, nos vagões de segunda classe que nos trouxeram pela primeira vez a
Madri, e nos deixavam moídos de cansaço e falta de sono nos ingratos
amanheceres da estação de Atocha, a velha, que nossos filhos não chegaram
a conhecer, embora um deles, muito pequeno, ou ainda na barriga da mãe,
tenha passado noites difíceis naqueles trens que nos levavam para o Sul nas
férias tão desejadas do Natal, nos dias tão curtos e tão ricos da Semana
Santa ou de nossa festa tardia, que cai no final de setembro, quando os
homens da geração de nossos pais colhiam as uvas, as romãs e os figos mais
saborosos e se davam ao luxo de ir às duas corridas de touros da festa, a do
dia de São Miguel, que a inaugurava, e a do dia de São Francisco, que era o
dia mais esplendoroso, o grande dia, como diziam nossos pais, mas também
o mais triste, por ser o último, e por muitas vezes a chuva de outono tirar o
brilho da corrida de touros e obrigar a permanecerem tristemente cobertos
por lonas encharcadas os poucos carrosséis de então.
O tempo parecia durar mais e os quilômetros pareciam muito mais
longos. Pouca gente tinha automóvel, e quem não queria passar a noite
inteira no trem pegava aquele ônibus que chamávamos A Pavoa, e que fazia
a viagem em sete horas, primeiro pelas voltas e mais voltas da estrada entre
nossa província e o norte, e depois pelos desfiladeiros e túneis de
Despenaperros, que eram como entrar em outro mundo, a última fronteira
do nosso, que ficava para trás, nas derradeiras paisagens onduladas dos
olivais; e depois pelos descampados eternos de La Mancha, tão monótonos
que o sono costumava então unir-se ao cansaço e vencer o corpo doído e a
gente adormecia, e com um pouco de sorte voltava a abrir os olhos quando
o ônibus já estava pertinho das luzes de Madri: a emoção da capital vista de
longe, os telhados avermelhados e acima deles os prédios altos que nos
impressionavam, a Telefônica, o Edifício Espana, a Torre de Madri!
Mas era outra emoção que preferíamos, sobretudo quando começaram a
se desfazer as ilusões quanto à nova vida que nos esperava na capital, ou
quando simplesmente fomos nos acostumando com ela, como a gente
sempre se acostuma com tudo, e à medida que se acostuma vai perdendo o
gosto das coisas e a paixão se transforma em tédio, em fastio, em irritação
oculta. Preferíamos a emoção da outra chegada, a lenta proximidade de
nossa terra, os sinais que a anunciassem, já nem falo dos marcos
quilométricos na estrada, mas de certos indícios familiares, uma venda no
meio do campo, vista da janela do trem ou do ônibus, a terra vermelha nas
margens do rio Guadalimar, e depois as primeiras casas, as luzes isoladas
nas esquinas, quando chegávamos de noite, a sensação de já termos
chegado e a impaciência de ainda não termos chegado, a delícia de todos os
dias que ainda nos restavam pela frente, as férias já começadas e, contudo,
ainda intactas.
Havia na época uma última casa, agora me lembro, onde a cidade
terminava, ao norte, a última casa que se deixava para trás quando se
viajava para Madri e a primeira que se via no retorno, um antigo hotelzinho
com jardim chamado Casa Cristina, e que muitas vezes era o ponto de
encontro das turmas de azeitoneiros, e também o lugar onde a gente se
despedia da Virgem quando sua imagem regressava, no início de setembro,
ao santuário da aldeia de onde voltaria no ano seguinte, na concorrida
romaria de maio, a Virgem para quem em criança íamos rezar nos fins de
tarde do verão.
Talvez nessa época os limites das coisas fossem mais claros, como as
linhas e cores e nomes dos países nos mapas pendurados nas paredes da
escola: aquela casa, com seu jardinzinho, com seu lampião amarelo na
esquina, era o final exato de nossa cidade, e a um passo dali já começava o
campo, sobretudo de noite, quando o lampião brilhava no início da
escuridão, não iluminando-a, mas revelando-a em toda a sua profundeza.
Há alguns anos, dando um passeio com meus filhos ainda pequenos, pois
me lembro de que o segundo ia de mãos dadas comigo, quis levá-los para
verem a Casa Cristina, e no caminho fui contando-lhes que, ao lado dela, o
patrão dos olivais para quem minha mãe e eu trabalhávamos como
azeitoneiros marcava encontro conosco: era inverno, e nós dois
atravessávamos a cidade gelada e no escuro, muito agasalhados, eu com um
gorro de veludo de meu pai e luvas de lã, minha mãe com um xale que a
enrolava toda e cobria a cabeça. Mas fazia tanto frio que minhas orelhas e
mãos ficavam geladas, e minha mãe tinha de esfregá-las com as dela, mais
quentes e mais ásperas, e jogava seu bafo nas pontas de meus dedos.
Emocionei-me contando essas coisas, falando de minha mãe, que eles mal
conheceram, mostrei-lhes como a vida tinha mudado em tão pouco tempo,
pois para eles já era inimaginável que crianças quase da idade deles
tivessem de passar as férias de Natal ganhando uma diária no campo. Então
me dei conta de que havia muito tempo que estava falando e dando voltas
sem encontrar a Casa Cristina, e pensei que de tanto falar a teria perdido:
mas não, eu estava bem no lugar que procurava, a casa é que não estava, já
fazia muitos anos que tinha sido demolida, quando alargaram a velha
estrada para Madri, disse-me o homem a quem perguntei. De qualquer
maneira, mesmo se a Casa Cristina ainda estivesse de pé, a cidade já não
terminaria naquela esquina: tinham surgido novos bairros com prédios de
tijolo monótonos, havia um centro esportivo e um novo centro comercial
que o homem me mostrou com orgulho, como se mostram a um forasteiro
os monumentos mais notáveis. Só quem, como nós, foi embora sabe como
era nossa cidade e percebe até que ponto ela mudou: os que ficaram é que
não se lembram dela, os que, vendo-a dia após dia, foram perdendo-a e
deixando que se desfigurasse, conquanto pensem que eles é que se
mantiveram fiéis, e nós, em certa medida, somos os desertores.
Diz minha mulher que eu vivo no passado, que me alimento de sonhos,
como esses velhos desocupados que vão jogar dominó na nossa sede social
e assistem às conferências ou aos recitais de poesia organizados por
Godino. Respondo-lhe que sou mais ou menos igual, quase um desocupado,
um desempregado de longa duração, como se diz agora, por mais que me
esforce em empreender negócios que não levam a lugar nenhum, em aceitar
trabalhos quase sempre fugazes, e muitas vezes ilusórios e até fraudulentos.
Mas não lhe digo que gostaria de viver de verdade no passado, nele
submergir com a mesma convicção e volúpia de outros, como Godino, que
ao comer morcela de caldeirão ou se lembrar de uma piada ou do apelido de
um conterrâneo nosso ou ao recitar versos de nosso poeta mais famoso,
Jacob Bustamante, fica vermelho de entusiasmo e felicidade, e vive
planejando o que vai fazer na próxima Semana Santa, e contando os dias
que faltam para o Domingo de Ramos, e sobretudo para a Quarta-feira
Santa à noite, quando sai a procissão da qual ele é confrade e também
diretor, "como foi na sua época o insigne Mateo Zapatón, agora aposentado
na Villa y Corte", diz Godino, que embora tenha vivido toda a vida em
Madri conhece pelo nome e pelo apelido um número inusitado de
conterrâneos nossos, e chama todo mundo de ilustre, famosíssimo, insigne,
exagerando esse "gê", à moda da nossa cidade, com tanta força que mais de
uma vez solta um perdigoto ao pronunciá-lo.
É verdade, muitos de nós gostaríamos de viver no passado imutável de
nossas recordações, que parece se repetir idêntico nos sabores de certos
alimentos e de certas datas marcadas em vermelho nas folhinhas, mas não
percebemos que fomos deixando crescer dentro de nós uma distância que as
viagens tão rápidas já não atenuam, e nem aliviam os telefonemas que mal
damos ou as cartas que há muitos anos paramos de escrever. Agora, que
poderíamos ir tão veloz e confortavelmente pela autoestrada em apenas três
horas, é que retornamos cada vez menos. Tudo está muito mais perto, mas
somos nós que vamos ficando pouco a pouco mais longe, embora repetindo
as palavras antigas e forçando nosso sotaque, e ainda nos emocionando ao
escutar os hinos de nossas confrarias ou os versos que de vez em quando
vem nos recitar "o vate insigne por antonomásia", como diz Godino, que o
adula e o admira e ao mesmo tempo caçoa dele, o poeta Jacob Bustamante,
que pelo visto não ouviu os cantos de sereia da celebridade literária e
preferiu não vir para Madri quando era mais jovem. Ali permanece, na
nossa cidade, angariando prêmios e acumulando triênios, pois é funcionário
municipal, tal como outra de nossas glórias locais, o maestro Gregorio E.
Puga, compositor de mérito que tampouco ouviu na sua época esses cantos
de sereia tão desdenhados por Godino: dizem (na verdade, diz Godino) que
o maestro Puga concluiu com brilhantismo seus estudos musicais em Viena,
e poderia ter encontrado trabalho em alguma das melhores orquestras da
Europa, mas que foi mais forte em seu espírito a atração da terra natal, para
onde regressou com todos os seus diplomas de excelência em alemão e com
letra gótica, e onde muito depressa ganhou por concurso e sem esforço o
lugar de diretor da banda de música.
Gostávamos de voltar com nossos filhos pequenos e nos dava orgulho
descobrir que eles se emocionavam com as mesmas coisas que haviam nos
maravilhado na infância.
Queriam que chegasse a Semana Santa para pôr seus trajes pequeninos
de penitentes, seus capuchos infantis deixando o rosto à mostra. Mal
nasciam, nós os inscrevíamos como irmãos na mesma confraria em que
nossos pais tinham nos colocado. Já um pouco mais crescidos, viajavam
ansiosos no automóvel, perguntando, mal saíam, quantas horas faltavam
para chegarmos. Tinham nascido em Madri e já falavam com um sotaque
que não era o nosso, mas sentíamos orgulho de pensar e dizer que
pertenciam à nossa terra tanto quanto nós mesmos, e ao levá-los pela mão
num domingo de manhã pela rua Nueva tal como nossos pais tinham nos
levado, ao pegá-los no colo diante da passagem de um andor para que
vissem melhor o burrico cavalgado por Jesus ao entrar em Jerusalém, ou a
cara verde e sinistra de Judas na passagem da Santa Ceia, sentíamos o
consolo de que a vida se repetia, de que na nossa cidade o tempo não
passava ou era menos cruel que o tempo tão angustiante e agitado da vida
em Madri.
Mas eles foram crescendo sem que nos déssemos conta e para nós
parecem uns desconhecidos, hóspedes ariscos em nossa própria casa,
trancados nesses quartos que são como antros sombrios, de onde às vezes
chegam músicas insuportáveis, cheiros ou barulhos que preferimos não
identificar. Já não querem voltar, e se alguém lhes diz alguma coisa olham-
no como a um velho lamentável, um inútil, como se estivesse ao nosso
alcance encontrar um emprego seguro e decente depois que passamos dos
quarenta e cinco anos. Já se esqueceram de todas as coisas que tanto
apreciavam, a emoção das túnicas e dos capuzes que cobriam seus rostos
como fantasias de histórias infantis (Godino insiste em que a nossa palavra
para dizer capuz é capirucho), o estrondo das trombetas e dos tambores, o
gosto dos puritos americanos que só eram vendidos na Semana Santa,
pirulitos de caramelo vermelho rodeado por uma espiral de açúcar,
comprados na barraquinha daquele homem miúdo que apelidavam
oportunamente de Pirulito, e que morreu há poucos anos, embora para nós,
que o víamos desde criança, ele parecesse tão imutável como a própria
Semana Santa. Também não se interessam mais pelas atrações da festa da
cidade, e é como se só nós, seus pais, guardássemos certa nostalgia e
gratidão pelos modestos carrosséis de alguns anos atrás, as cunicas, como
os chamávamos na infância, como os ensinamos a chamar. Nada do que
gostamos tem sentido para eles, e de vez em quando ficam nos olhando com
pena ou indiferença, e nos sentimos ridículos, vendo-nos através do que
seus olhos veem em nós, gente acabada e velha, a quem não sentem que
devam agradecer alguma coisa, que lhes causa sobretudo irritação e tédio, e
de quem se afastam como querendo se soltar de teias de aranha sujas da
poeira do tempo a que pertencemos, o passado.
Viver nele, no passado, era tudo o que eu mais queria. Mas a gente já
não sabe onde vive, nem em que cidade nem em que tempo, nem mesmo
temos certeza de que seja nossa esta casa para onde voltamos no fim da
tarde com a sensação de estar importunando, embora tendo saído muito
cedo, sem tampouco saber muito bem para onde, ou para quê, em busca de
que trabalho que nos permita imaginar estarmos novamente ocupados em
algo útil, necessário. Num dos últimos jantares da irmandade, por ocasião
da entrega de nossa Medalha de Prata a Jacob Bustamante, Godino me
criticava afetuosamente por eu não ir à nossa cidade na Semana Santa havia
dois anos seguidos.
Eu lhe dava a entender que estava passando por uma fase meio difícil,
com a esperança de que ele, homem de tantos recursos e conhecimentos,
pudesse me ciar uma mão, mas também não pedia a ajuda abertamente, por
orgulho e por medo de perder prestígio a seus olhos. O desânimo, o orgulho
ferido me mantinham mais afastado que outras vezes das atividades de
nossa casa regional, embora procurasse não faltar às reuniões da diretoria e
me mantivesse escrupulosamente em dia com o pagamento das
mensalidades.
Mas ia, da manhã à noite, como ausente de mim mesmo, de um lugar a
outro de Madri, de um trabalho a outro, promessas que nunca chegavam a
se concretizar, encontros que por algum motivo sempre se frustravam,
arapucas incertas que duravam umas semanas, uns poucos dias. Passava
horas esperando à toa ou me apressava para ir a um encontro que se
frustrava por causa de meus poucos minutos de atraso.
Certa manhã, na praça de Chueca, que eu atravessava com o coração na
mão, com o olhar reto para não ver o que acontecia ao redor, o ponto de
venda de drogas, o espetáculo daqueles indivíduos sonâmbulos, homens e
mulheres, com cara de morto e andar de zumbi, de doentes de algo terrível,
encontrei meu conterrâneo Mateo Chirino, que quando eu era pequeno
chamava de Mateo Zapatón, não só por seu ofício de sapateiro, mas
também por seu tamanho, pois era um homem mais alto que a maioria
naquele tempo, e usava, lembro, uns sapatos muito grandes, pretos, de sola
grossa, sapatos imemoriais que ele mesmo deveria levar a vida toda
remendando. Quando o revi, fixei-me nisso, em seus sapatos imensos, que
pareciam os mesmos de não sei quantos anos atrás, se bem que agora
estivessem deformados pelos joanetes. Eu estava com meu terno escuro das
entrevistas de trabalho, com minha maleta preta e minhas pastas: tinham me
aceitado, à guisa de experiência, como vendedor de equipamentos para
autoescolas. Parado no meio da praça de Chueca, com um manto grande,
um chapéu verde de tirolês a que não faltava nem o enfeite de uma pena,
Mateo Zapatón estava observando ingenuamente alguma coisa, como um
aposentado robusto e folgazão, e parecia sustentar-se sobre seus sapatos
pretos como sobre o pedestal de uma estátua ou o cepo de uma oliveira, de
tão enraizado estava no lugar, no bairro de Madri onde agora vivia e dava a
impressão de se sentir tão à vontade como em nossa distante cidade comum.
Seu rosto também era o mesmo que eu recordava, intacto apesar do
tempo: para uma criança todos os adultos são mais ou menos velhos, de
modo que quando ela cresce, e volta a vê-los anos depois, acha que não
mudaram nada, que continuam na mesma idade estática que lhes atribuía,
quando imaginava que as pessoas permaneciam sempre idênticas e sempre
tinham sido assim, e que ela sempre será uma criança e seus pais sempre
serão jovens, sem vestígio de desgaste nem ameaça de morrer. Eu o vi numa
manhã muito fria de inverno, uma dessas ingratas manhãs de trabalho em
Madri em que as fachadas dos prédios têm o mesmo cinza sujo do céu sem
chuva. Eu ia, como sempre, angustiado pela falta de tempo, pela pressa para
não chegar tarde ao encontro com o cliente, o dono de uma autoescola da
rua Pelayo. Tinha cometido o erro de vir de carro e o pouco tempo que teria
para tomar um café, perdi-o procurando onde estacionar nessas ruas
impossíveis, de muito trânsito, gente, travestis não barbeados, meliantes,
drogados, entregadores de tudo, caminhonetes de carga e descarga que
fecham a rua e provocam uma estridência de buzinas que acaba de vez com
os nervos da gente.
Ia atrasado, ia em jejum, tinha deixado o carro tão mal estacionado que
não era improvável que fosse rebocado, mas bastou ver Mateo Zapatón, e o
sabor das lembranças que sua figura me despertava foi mais forte que a
pressa. Tão alto como sempre, espichado, com a mesma expressão mansa
no rosto, o nariz grande e os olhos meio saltados, as" bochechas vermelhas
de frio e saúde, embora já caídas pela idade, o andar tão firme como quando
desfilava de penitente na frente do andor da Santa Ceia, manejando seu
grande varal de diretor da irmandade.
Aquele andor era um dos mais espetaculares da Semana Santa, e o que
mais figuras tinha, os doze apóstolos em torno da mesa com toalha de linho
e Jesus Cristo de pé numa cabeceira, a mão no coração e a outra levantada
no gesto de benzer, e a auréola de ouro em torno de sua cabeça vibrando
com o movimento majestoso das rodas do carro pelas ruas de
paralelepípedo ou ainda de pedra, com a mesma tênue agitação com que se
moviam as chamas das tulipas e a toalha branca sobre a qual estavam o pão
e o vinho para o sacrifício litúrgico. Todos os apóstolos olhavam para Jesus
e tinham diante dos rostos um pequeno foco que os iluminava
dramaticamente com luz branca; todos salvo Judas, que virava a cabeça
num gesto de remorso e cobiça e olhava o saco de moedas de sua traição,
meio escondido atrás de seu assento. A luz que batia na cara de Judas era
verde, um verde amarelado de mau humor hepático, e em nossa cidade
todos sabiam que essas feições que nós, as crianças, odiávamos tanto
quanto as dos bandidos nos filmes eram as de um alfaiate que tinha sua loja
e seu ateliê numa esquina da rua Real, bem perto da portinha de Mateo
Zapatón.
Godino me explicou a história, não sem me prometer que me contaria
outras mais saborosas ainda: as figuras que iam no alto do andor, como
quase todas as da nossa Semana Santa, foram esculpidas pelo célebre
mestre Utrera, segundo Godino um dos artistas mais importantes do século,
que não conseguiu o reconhecimento merecido por ter preferido ficar numa
cidade tão hospitaleira, embora tão afastada, como a nossa. Sendo um
escultor genial, Utrera foi também um tremendo boêmio, e vivia arruinado
de dívidas e perseguido pelos credores, um dos quais, o mais constante e
também o mais prejudicado, era aquele alfaiate da rua Real, que fazia sob
medida as suas camisas com monogramas, seus paletós apertados, seus
ternos cujo feitio era igual ao dos de Fred Astaire, e até as batas folgadas
que Utrera vestia para trabalhar no ateliê. Quando a dívida já alcançava uma
quantia inaceitável, o alfaiate se apresentou no café Royal, onde toda tarde
acontecia o sarau literário e artístico capitaneado por Utrera, e chamou em
público o escultor de sem-vergonha e ladrão, brandindo vagamente na cara
dele o punhado de contas não pagas. Muito digno, pequeno e ereto, como
que embrulhado, de tão elegante, no seu terno à Fred Astaire que não tinha
pagado nem pensava em pagar, o escultor olhou para o outro lado enquanto
garçons e amigos agarravam o alfaiate, de olhos saltados e rosto suando de
raiva, e que acabou indo embora tão de mãos vazias como chegara, não sem
ter apanhado ignominiosamente no chão do café as faturas que caíram de
suas mãos no calor de sua crise de rabugice, como provas valiosas de uma
injúria que, segundo ameaçou, seria reparada nos tribunais. Qual não seria
sua surpresa, me disse Godino, antecipando o desfecho com um grande
sorriso em seu rosto vivo e jovial, quando semanas mais tarde, na primeira
quarta-feira da Semana Santa em que desfilava o novo grupo escultórico da
Santa Ceia (o antigo, como quase todos, tinha sido queimado pelos
comunistas durante a guerra), o alfaiate viu com seus próprios olhos o que
as pessoas apressadas e maledicentes já lhe tinham contado, o que já corria
por toda a cidade, nas palavras de Godino, "como um rastilho de pólvora": a
cara torta de Judas, a cara verde que se afastava do olhar bondoso e
acusador do Redentor para examinar com cobiça um saco de moedas mal
escondido, era seu retrato vivo, extremamente fiel apesar do exagero cruel
da caricatura: aqueles mesmos olhos saltados que olhavam para o escultor
no café como querendo perfurá-lo, ou petrificá-lo, como os olhos da
Medusa", disse Godino, que ao se entusiasmar em seus relatos entoava suas
palavras preferidas: "E o nariz semítico!". Ao pronunciar esse adjetivo
Godino fazia um gesto adiantando o rosto e olhando como deve ter olhado
para o alfaiate ao descobrir seu retrato na figura de Judas, e torcia ou franzia
o nariz, pequeno e um tanto achatado, como se a enunciação da palavra
"semítico" com que tanto se deleitava, a ponto de repeti-la duas ou três
vezes, tivesse a virtude de deixá-lo, a ele também, tão narigudo como o
alfaiate e como Judas, e como todos os carrascos e fariseus dos episódios da
Semana Santa, os judeus que cuspiram no Senhor, como nós, as crianças,
dizíamos nas nossas brincadeiras de andores e procissões: havia nas ruas de
pedra ou de terra batida daquela época outras semanas santas infantis, e
nelas as crianças desfilavam tocando tambores feitos de grandes latas vazias
de conserva, e trombetinhas de latão ou plástico, e até mesmo passeávamos
com andores que eram caixotes de madeira ou papelão, e vestíamos capuzes
de papel-jornal.
Os dois já estão mortos há tempos, o alfaiate irascível e o escultor
boêmio e relapso, mas a brincadeira vingativa de um contra o outro perdura
nas feições grosseiras e ainda iluminadas de verde do Judas da Santa Ceia,
embora haja cada vez menos gente capaz de identificá-las ou de se lembrar
dessas histórias do passado contadas por Godino, não sei se inventando-as
totalmente, de tal forma as embeleza e floreia. Também não haverá muitos
que identifiquem o modelo verdadeiro de outro apóstolo, o são Mateus que
se vira para Cristo entre devoto e assustado, com as sobrancelhas altas
sublinhando o espanto dos olhos, porque é a hora em que seu mestre acaba
de dizer que nessa noite um dos doze vai traí-lo, e todos se assustam e se
escandalizam, fazem gestos pomposos de dignidade ferida, perguntando,
"Mestre, sou eu?", e entre tanto alvoroço ninguém percebe a cara verde e
rancorosa de Judas, nem repara na sacola cheia de moedas que nossas mães
nos mostravam quando éramos crianças, nos pondo no colo quando passava
esse quadro da procissão.
Eu não precisava que Godino me explicasse que aquele nobre são
Mateus, corpo robusto e bochechas vermelhas, era o retrato vivo de Mateo
Zapatón, que teve assim seu instante de glória pública na mesma noite de
Semana Santa em que o alfaiate credor caía no ridículo. Depois de tirar as
medidas de seus ternos na alfaiataria, o escultor Utrera atravessava a rua
Real e encomendava a Mateo sapatos feitos à mão, quando tinha dinheiro
ou perspectivas de cobrar, e nos tempos difíceis lhe levava os pares velhos
para que os remendasse. Mas, ao contrário do alfaiate, Mateo Zapatón
nunca lembrava a Utrera as contas atrasadas, em parte pelo fatalismo um
tanto medroso de seu caráter, que o inclinava a acomodar-se com tudo, e em
parte também porque tinha uma admiração fervorosa pelo escultor, beirando
a gratidão rendida toda vez que o mestre passava pela sapataria e ficava
horas conversando com ele, oferecendo-lhe seus cigarros de fumo suave,
contando-lhe histórias de suas viagens pela Itália e de sua vida entre os
círculos artísticos de Madri de antes da guerra.
"Amigo Mateo", dizia-lhe o escultor, "você tem uma cabeça clássica
que merecia ser imortalizada pela arte." Dito e feito: Mateo nunca chegou a
lhe cobrar nem um centavo, mas deu por cancelada a dívida quando, num
acesso de vaidade e pudor, viu sua cara inconfundível entre as dos
apóstolos, e também o feitio corpulento de seus ombros e aquele gesto tão
seu de olhar de lado, para cima, da altura tão reduzida do banquinho sobre o
qual passava a vida. Sendo ele penitente e diretor da confraria da Ultima
Ceia, podia imaginar honra maior que a de ser incluído entre os comensais?
Cada feição, a atitude inteira do santo evangelista eram de uma fidelidade
inacreditável, a não ser a barba, que o Mateo de carne e osso não usava,
embora, diziam, por pouco não a deixou crescer, o que teria sido um
atrevimento inconcebível naqueles anos de bigodes finos e caras
escanhoadas. A alfaiataria ficava quase em frente de sua lojinha de
sapateiro, mas o alfaiate ofendido, ao cruzar com ele na outra calçada,
baixava a cabeça ou olhava para o outro lado, com o rosto mais verdoso e o
nariz mais semítico do que nunca, e Mateo, como tantos outros, tinha tanta
vontade de rir que tapava a boca para se segurar, e suas bochechas ficavam
vermelhas, mais parecendo as de um boneco de madeira e papelão, desses
que se queimam em Valência na festa de são José, do que as da imagem
piedosa de um evangelista.
Num sobressalto de alegria vi no meio da cidade hostil esse rosto vindo
de minha infância, ligado às recordações mais doces de minha cidade e
minha vida. Em criança, volta e meia minha mãe me mandava à portinha de
Mateo Zapatón, que sem me conhecer costumava me dar um tapinha no
rosto e me chamar de "sacristão". "Puxa, sacristão, desta vez as meias-solas
duraram pouco"; "Diga à sua mãe que não tenho troco, sacristão, que ela me
pagará quando vier." O cantinho era alto e estreito, quase como um armário,
e ficava separado da rua por uma porta de vidro, que Mateo só fechava nos
dias mais rigorosos do inverno. Todo o espaço disponível, inclusive as
laterais da gaveta que ele usava como mesa de trabalho e balcão, estava
coberto de cartazes de touradas e da Semana Santa, as duas paixões do
mestre sapateiro: cartazes pregados com grude, já amarelados pelos anos,
uns em cima dos outros, anúncios de corridas realizadas no início do século
ou na festa do ano anterior, numa confusão de nomes, lugares e datas que
alimentava a erudição charlatã de Mateo, quase sempre cercado pelos
companheiros de tertúlias, com um charuto ou uma tachinha nos lábios, ou
as duas coisas ao mesmo tempo, narrador incansável de feitos históricos e
anedotas do mundo taurino, que ele conhecia muito de perto, pois os
presidentes das corridas de touros costumavam pedir-lhe que servisse
oficiosamente de conselheiro ou assessor. Sua voz ficava embargada e seus
olhos se enchiam de lágrimas quando rememorava diante dos companheiros
a tarde de luto em que viu, de uma arquibancada ao sol na praça de touros
de Linares, o touro Islero investindo contra Manolete. "Ele vai te pegar, não
se aproxime tanto", dizia ter gritado de sua arquibancada, e inclinava-se
como se estivesse na praça de touros e buzinasse com as mãos, fazendo
uma cara trágica de antecipação, revivendo o instante em que Manolete
ainda podia ter se salvado da chifrada homicida, "a chifrada fatídica", como
dizia Godino ao imitar o relato e o susto do sapateiro apaixonado, de quem
sempre me prometia contar uma grande história misteriosa, um segredo
cujos detalhes mais picantes só ele conhecia.
Aproximei-me de Mateo na praça de Chueca e ele me olhou com o
mesmo sorriso largo e bondoso com que recebia os fregueses e os
companheiros de conversas em sua portinha de remendão. Emocionou-me
pensar que me reconhecia apesar dos anos e de tudo o que eu teria mudado
desde as últimas vezes em que nos vimos. Pensei então em outra
circunstância casual que o ligava a minhas lembranças mais antigas e o
transformava, sem que ele soubesse, em parte de minha vida infantil: na
portinha contígua à de Mateo Zapatón ficava a barbearia à qual meu pai me
levava, e onde meu avô também sempre tinha cortado o cabelo e feito a
barba, a de Pepe Morillo, que foi se esvaziando à medida que iam morrendo
os fregueses mais velhos e os jovens adotavam a"moda do cabelo comprido.
Agora sua porta estava tão fechada como a de Mateo Zapatón e a do alfaiate
com cara de Judas, e como a de tantas lojas que havia na rua Real antes que
as pessoas fossem aos poucos se esquecendo de passar por ela, deixando-a
transformar-se, sobretudo de noite e nos dias de chuva, numa rua desabitada
e fantasma. Mas na época a barbearia de Pepe Morillo era tão animada
como a portinha de Mateo Zapatón, e muitas vezes, nas tardes amenas de
abril e maio, os fregueses de uma e outra puxavam cadeiras para a calçada e
fumavam e conversavam numa só reunião, observados do outro lado da rua,
da penumbra de seu ateliê vazio, pelo alfaiate carrancudo que esfregava as
mãos atrás do balcão e encolhia entre os ombros a cabeça cada vez mais
idêntica à do Judas da Santa Ceia, o misantropo de cara verdosa e nariz
adunco lentamente empurrado para a falência pela irrupção irresistível das
roupas de confecção.
Meu pai me levava pela mão à barbearia de Pepe Morillo (cabeleireiro
era então uma palavra de mulheres), e eu era tão pequeno que o barbeiro
tinha de pôr um tamborete em cima da poltrona para cortar comodamente o
meu cabelo e poder me ver no espelho. O rosto dele cheirava a colônia, e o
bafo, a cigarro, quando se aproximava muito de mim com o pente e as
tesouras, com a maquininha elétrica que usava para raspar minha nuca. Eu
ouvia sua respiração forte e agitada e sentia no cangote e nas faces o tato de
seus dedos fortes de adulto, a pressão tão especial de mãos que não eram as
de meu pai nem as de minha mãe, mãos familiares e ao mesmo tempo
estranhas, repentinamente rudes, quando dobravam para a frente as minhas
orelhas ou me faziam inclinar muito a cabeça apertando a nuca. Toda vez
que cortava o meu cabelo, Pepe Morillo me dizia, já quase no final, "feche
bem os olhos", e era o sinal de que ia cortar a minha franjinha reta acima
das sobrancelhas, até o meio da testa. Os cabelos úmidos caíam sobre as
pálpebras, espetavam na bochecha carnuda e na ponta do nariz, e as
tesouras frias roçavam as minhas sobrancelhas. Quando Pepe Morillo me
dizia que eu já podia abrir os olhos eu encontrava surpreso minha cara
redonda e desconhecida no espelho, com as orelhas de abano e a franja
horizontal sobre os olhos, e também o sorriso de meu pai que me olhava,
aprovando.
De tudo isso me lembrei, como se revivendo, ao ver de repente Mateo
Zapatón na praça de Chueca, e também de algo mais que até aquele
momento eu não sabia que estava em minha memória: um dia, enquanto
esperava a vez lendo um gibi que meu pai acabava de comprar, tive sede e
pedi licença a Pepe Morillo para beber água. Ele me apontou um pátio
interno, pequeno e sombrio, no fundo da barbearia, atrás de uma porta de
vidro e de um corredor escuro. Quando a gente é criança os lugares
distantes podem estar a uns poucos passos. Empurrei a porta, acho que meio
enjoado, talvez começasse a ter febre e por isso sentisse tanta sede. Os
ladrilhos eram brancos e cinza, com flores avermelhadas no meio, e
ecoavam sob meus passos. Num canto do pátio pequenino, com plantas de
folhas grandes acentuando a umidade, estava a moringa, em cima de uma
prateleira coberta com um pano de crochê, uma daquelas moringas de
inverno que havia então, de cerâmica policromada e vitrificada, uma
moringa em forma de galo, lembrei-me perfeitamente, das que faziam os
oleiros da rua Valencia. Bebi a água, que tinha uma consistência de sopa e
um gosto de febre. Voltei pelo corredor e de repente me perdi: não estava na
barbearia, mas num lugar que custei a identificar como sendo a lojinha do
sapateiro, e vi em carne e osso o apóstolo são Mateus, embora com um
avental de couro e não com uma túnica de confrade ou de santo, sem barba,
com um charuto apagado num canto da boca e uma tachinha no outro.
"Puxa, sacristão, mas o que está fazendo aqui, que susto você me deu."
Como daquela vez, agora o olhava e também pouco sabia o que lhe
dizer. De perto ele era muito mais velho e já não parecia o são Mateus
imutável da Última Ceia. Nem seu olhar nem seu sorriso estavam dirigidos
a mim: permaneceram idênticos quando eu disse meu nome e estiquei a
mão para cumprimentá-lo, quando lhe contei desajeitado e confuso quem eu
era, e quis lembrar a ele os nomes de meus pais e o apelido que em outras
épocas tinha minha família. Apertando molemente minha mão ele assentia e
me olhava, embora não desse a impressão de estar me vendo, ou
concentrava em alguma coisa a atenção de seus olhos, que até um segundo
antes eu achara observadores e vivos. Seu chapéu, mais do que de banda,
estava torto, como se o tivesse posto de qualquer jeito ao sair de casa, e com
o desalinho de quem já não se enxerga direito nos espelhos. Lembrei-lhe
que minha mãe foi sempre freguesa de sua sapataria — na época as lojas
tinham fregueses, não clientes —, e que meu pai, também apaixonado por
touros, participou várias vezes de reuniões com ele, e das reuniões da
barbearia ao lado, de Pepe Morillo, aquela que se comunicava com a sua
lojinha por um pátio interno. Mateo escutava esses nomes de pessoas e
lugares com a expressão de quem não consegue se lembrar perfeitamente de
coisas muito distantes. Inclinava a cabeça e sorria, embora eu também
tivesse percebido em seu rosto uma expressão de receio ou espanto, ou de
incredulidade, talvez temesse que eu quisesse enganá-lo ou assaltá-lo, como
um marginal qualquer, desses que rondavam pelas redondezas, que
trocavam coisas furtivamente, acocorados em grupo junto da entrada do
metrô. Eu precisava ir embora, já estava muito atrasado para um encontro
talvez fracassado de antemão, não tinha tomado café da manhã, estava com
o carro parado em fila dupla, e Mateo Zapatón continuava segurando minha
mão com distraída cordialidade e me sorrindo de boca entreaberta, o
maxilar inferior meio caído e um brilho de saliva nas comissuras dos lábios.
— Não se lembra, mestre? — perguntei. — O senhor sempre me
chamava de sacristão.
— Claro que sim, rapaz, como não? — Piscou os olhos, adiantou-se um
pouco para mim, e então me dei conta de que agora eu era mais alto que ele,
e pôs a outra mão no meu ombro, como numa tentativa bondosa de não me
decepcionar. — Sacristão.
Mas nem sequer parecia se lembrar do significado dessa palavra, que
repetiu mais uma vez enquanto continuava segurando minha mão, que
agora eu queria soltar, preso, aflito para ir embora. Afastei-me dele e
continuei meu caminho, quieto, a mão de palma suave e úmida que tinha
segurado a minha ainda levemente levantada, o chapéu de peninha verde
torto sobre a testa, solitário como um cego no meio da praça, apoiado no
grande pedestal de seus sapatões pretos.

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1 Aceituna gordal: azeitona verde bem graúda que se consome como

uma fruta; aceituna de cornezuelo: azeitonas longas e pontudas;


borrachuelo: bolinho empapado de calda de açúcar; andrajos: ensopado à
base de bacalhau e vieiras, acompanhado de quadradinhos de massa de
pastel frita; homazo: rosca salgada enfeitada com ovos cozidos, e
geralmente em forma de galinha, podendo também ser recheada de chouriço
e presunto; alcaucil: alcachofra silvestre. (N. T.)
Copenhague

Às vezes, durante uma viagem, escutamos e contamos histórias de


viagens. Parece que, ao partirmos, a recordação de viagens anteriores torna-
se mais viva, e escutamos e somos mais gratos às histórias que se contam,
parêntese de palavras valiosas dentro do outro parêntese temporal da
viagem. Quem viaja pode permanecer num silêncio misterioso para os
desconhecidos que prestam atenção no viajante, ou pode ceder, sem perigo,
à tentação de conversar e tornar-se um mentiroso, melhorando um episódio
da própria vida ao contá-lo a alguém que nunca mais se verá. Não creio que
seja verdade o que dizem, que ao viajar alguém possa se transformar em
outra pessoa: o que acontece é que nos livramos de nós mesmos, de nossas
obrigações e nosso passado, tal como reduzimos tudo o que possuímos aos
poucos objetos necessários que vão dentro da mala. A parte mais pesada de
nossa identidade sustenta-se sobre o que os outros sabem e pensam de nós.
Olham-nos e sabemos que sabem, e no silêncio forçam-nos a ser o que
esperam que sejamos, a agir de acordo com certos hábitos estabelecidos por
nossos atos anteriores, ou de acordo com suspeitas que temos consciência
de haver despertado. Olham-nos e não sabemos quem podem estar vendo
em nós, o que inventam a nosso respeito ou o que decidem que somos. Para
quem o encontra no trem, num país estrangeiro, você é apenas um
desconhecido que só existe circunscrito ao presente. Uma mulher e um
homem olham-se levemente intrigados e com uma ponta de desejo ao se
acomodarem um defronte do outro num trem: nesse momento estão
totalmente despojados do ontem e do amanhã e de seus nomes, como Adão
e Eva ao se olharem pela primeira vez no Éden. Um homem magro e sério,
de cabelo curto e muito preto, olhos grandes e escuros, sobe no trem na
estação de Praga e talvez procure não cruzar seu olhar com o dos outros
passageiros vão entrando no mesmo vagão, um dos quais o examina com
receio e decide que ele deve ser judeu. Tem as mãos compridas e pálidas, lê
um livro ou fica ausente olhando pela janela, de vez em quando tem um
acesso de tosse seca e cobre a boca com um lenço branco que depois enfia
quase furtivamente num bolso. Quando o trem se aproxima da fronteira
recém-criada entre a Checoslováquia e a Áustria, o homem larga o livro e
procura com certo nervosismo seus documentos e ao chegar à estação de
Gmünd logo pula para a plataforma como esperando ver alguém na
escuridão solitária dessas horas da noite.
Ninguém sabe quem você é. Se viaja sozinho num trem ou anda Pela
rua de uma cidade em que ninguém o conhece você não é ninguém:
ninguém pode averiguar a sua angústia, nem a razão do seu nervosismo
enquanto você espera no café da estação se bem que talvez, sim, o nome de
sua doença, quando observam sua palidez e escutam o ronco de seus
brônquios, quando percebem o modo disfarçado como você torna a guardar
o lenço que tapou sua boca. Mas, ao viajar, sinto que eu não peso, que me
torno invisível, que não sou ninguém e posso ser l qualquer um, e essa
leveza de espírito traduz-se nos movimentos de meu corpo, e ando mais
depressa, mais desenvolto, sem o peso de tudo o que sou, com os olhos
abertos às incitações de uma cidade ou uma paisagem, de uma língua que
desfruto compreendendo e falando, agora mais bonita porque não é a
minha. Montaigne fala de um presunçoso que voltou de uma viagem sem
aprender nada: como ia aprender, diz, se se levou inteiro consigo mesmo?
Mas não preciso ir muito longe para que me ocorra essa transformação.
As vezes, quando saio de casa e dobro na primeira esquina ou desço as
escadas do metrô, deixo para trás o que sou e me atordoa e me excita o
grande espaço em branco em que minha vida se transforma, sobre o qual
parece que vão se imprimir com mais brilho e nitidez as sensações, os
lugares, as caras das pessoas, as histórias que eu escutar. Na literatura há
muitas narrativas que fingem ser relatos contados ao longo de uma viagem,
num encontro ao acaso de uma estrada, em torno da lareira de uma pousada,
no vagão de um trem. E num trem que um homem conta a outro a história
relatada por Tolstói em Sonata a Kreutzer. Em O coração das trevas o
marinheiro Marlow conta uma viagem rumo ao desconhecido, pelo rio
Congo, enquanto viaja numa balsa que sobe o Tâmisa, e ao ver atrás de si o
nevoeiro na noite, o esplendor ainda distante das luzes de Londres, lembra-
se das fogueiras vistas nas margens do rio africano e imagina fogueiras
muito mais antigas, aquelas que os navegantes romanos teriam visto ao
entrar pela primeira vez no Tâmisa há dois mil anos. No trem no qual foi
deportado para Auschwitz, Primo Levi encontrou uma mulher que
conhecera anos antes, e diz que durante a viagem contaram-se coisas que os
vivos não contam, que só se atrevem a dizer em voz alta os que já estão do
outro lado da morte.
Na cafeteria de um trem, vindo de Granada para Madri, um amigo me
contou outra viagem nesse mesmo trem em que havia conhecido uma
mulher que ele não levou nem uma hora para começar a beijar. Era verão,
em plena luz do dia, no Talgo que sai diariamente às três da tarde. A
namorada de meu amigo tinha ido se despedir dele na plataforma. Depois,
ele e a desconhecida trancaram-se num banheiro com uma urgência
temerária e uma felicidade e um desejo que nem as incomodidades nem os
problemas de equilíbrio nem as batidas na porta de viajantes irritados
conseguiram frustrar. Pensavam que se despediriam para sempre quando
chegassem a Madri. Meu amigo, que estava servindo o exército, não tinha
onde cair morto, e ela era uma mulher casada e com um filho pequeno,
meio desequilibrada, tão propensa aos arrebatamentos desse entusiasmo
alucinante como às negruras da depressão. Meu amigo disse-me que
gostava muito dela e que ela lhe dava medo, e que nunca tinha sentido tanto
prazer com uma mulher. Lembrava-se dela ainda com mais nitidez e
gratidão por ter sido a única mulher com quem fez amor além da sua, com a
qual se casou logo depois de terminar o serviço militar.
Ficaram se vendo às escondidas por vários meses, repetindo a
embriaguez sexual do primeiro encontro em quartos de pensão, no escuro
dos cinemas, às vezes na casa dela, na própria cama em que dormia com o
marido, enquanto do berço os observavam os olhos grandes e tranquilos do
menino, que se agarrava às grades para ficar de pé. Quando meu amigo deu
baixa no exército, combinaram que ela não iria despedir-se dele no expresso
da meia-noite que o levaria de volta a Granada. No último instante a mulher
apareceu e meu amigo desceu do trem e teve tanta vontade de abraçá-la que
não se importou em perdê-lo. Mas pegou o do dia seguinte e nunca mais se
viram. Sinto medo ao pensar que fim ela terá levado, transtornada como
estava, dizia meu amigo, acotovelado no balcão da cafeteria do Talgo,
diante do café que ainda não havia tocado olhando pelas vidraças a
paisagem desértica do norte da província de Granada, ou virando-se para a
porta que dava para outros vagões, talvez com a esperança impossível de
que a mulher reaparecesse, tantos anos depois, e ao escutá-lo eu o invejava,
inveja e tristeza de que nunca tivesse me acontecido uma história assim e
nem que eu pudesse me lembrar de uma mulher como aquela. Ela fumava
maconha, tomava remédios, viciou-se em cocaína, e tudo aquilo me dava
medo, mas a seguia em seu transtorno, quanto mais medo mais a desejava.
Não estranharia nada que acabasse na heroína.
Há épocas em que toda manhã acordo me lembrando do sonho com ela.
Sonho que a encontro em Madri, ou que estou sentado neste mesmo trem e
vejo-a vindo pelo corredor.
Era muito alta, como uma modelo, tinha o cabelo castanho e ondulado e
os olhos verdes.
Os trens de agora, que não nos obrigam a sentar diante de
desconhecidos, não favorecem os relatos de viagens. Os passageiros são
fantasmas calados, com os fones tapando seus ouvidos, os olhos fixos na
tela de um filme americano. Escutavam-se mais histórias nas antigas
cabines de segunda classe, que lembravam salas de espera obrigatórias ou
salas de jantar de famílias pobres. Em minha primeira viagem a Madri,
enquanto eu adormecia contra o encosto duro de plástico azul, ouvia meu
avô Manuel e outro passageiro contarem no escuro viagens de trem durante
os invernos da guerra. Eles trouxeram todos nós, do batalhão da Guarda de
Assalto, no qual eu servia, e nos fizeram subir num trem nesta mesma
estação e não disseram para onde iam nos levar, mas correu o boato de que
nosso destino a frente do Ebro. Minhas pernas tremiam só de pensar, no
escuro, dentro do vagão fechado, a noite toda. De manhã nos mandaram
descer e sem dar explicações nos devolveram para os quartéis de sempre.
Tinham mandado outro batalhão em nosso lugar e dos oitocentos homens
que foram não voltaram nem trinta. Se aquele trem chegasse a sair, garanto
que agora eu não estava aqui lhe contando isso, disse meu avô, e pensei de
repente, meio sonhando, que se aquela viagem até a frente de batalha do
Ebro não tivesse sido cancelada provavelmente meu avô teria morrido e eu
não teria chegado a existir.
Tudo era tão estranho nessa noite, a da primeira viagem, estranho e
mágico, como se ao subir no trem — e mesmo antes, ao chegar à estação —
eu tivesse abandonado o espaço cotidiano da realidade e entrado em outro
reino muito parecido com o das fitas de cinema ou dos livros, o reino insone
dos viajantes: eu, que sem sair quase nunca de minha cidade, tinha me
alimentado de tantas histórias de viagens a lugares muito distantes,
incluindo a Lua, o centro da Terra, o fundo do mar, as ilhas do Caribe e as
do Pacífico, o Polo Norte, a Rússia imensa percorrida no Transiberiano por
um repórter de Júlio Verne chamado Claude Bombarnac.
Acabo de lembrar que era uma noite de junho. Estava sentado num
banco da plataforma, entre meu avô e minha avó, e um trem que ainda não
era o nosso chegou à estação e parou com um lento chiado de freios. No
escuro, lembrava a envergadura de um grande animal mitológico, e o farol
redondo da locomotiva, ao se aproximar, me recordara o submarino do
capitão Nemo. No parapeito do último vagão havia uma mulher, debruçada,
que me encheu instantaneamente de desejo, o desejo ignorante, assustado e
ardente dos catorze anos. Eu a desejava tanto que a aflição no peito
dificultava minha respiração e minhas pernas tremiam. Ainda tenho a
sensação de estar vendo a moça, embora já não saiba se o que recordo é
uma recordação: loura, alta, despenteada, estrangeira, com uma camisa
preta muito aberta, saia preta, descalça, unhas dos pés pintadas de
vermelho, o rosto tão bronzeado que realçava o brilho do cabelo louro e dos
olhos muito claros. Estava com o joelho levemente dobrado e uma coxa
surgia da abertura de sua saia. O trem se pôs em marcha e a vi afastar-se
debruçada no parapeito e olhando as caras fugazes que a olhavam da
plataforma dessa estação distante, à meia-noite, numa terra estrangeira.
Em fiapos intranquilos de sonhos eu revia essa mulher, enquanto meu
avô e o outro homem conversavam no vagão às escuras. Entreabria os olhos
e via a brasa dos cigarros, e quando meu avô ou seu interlocutor davam uma
tragada surgia por instantes em seus rostos camponeses um brilho
avermelhado: a fumaça tão acre daquele tabaco negro que na época os
homens fumavam. Vendo essas caras e escutando essas palavras diluídas no
sono, era como se eu não viajasse no trem onde estávamos, mas em
qualquer dos trens de que eles falavam, trens de soldados derrotados ou de
deportados que viajavam eternamente sem chegar ao seu destino e ficavam
parados noites inteiras em plataformas sem luzes. Dizia Primo Levi, pouco
antes de morrer, que continuavam lhe dando pavor os vagões de carga
selados que às vezes ele via nos trilhos abandonados das estações. Eu servi
na Rússia, disse o homem, na Divisão Azul. Subimos num trem na estação
do Norte e levamos dez dias para chegar a um lugar chamado Riga. E
pensei ou disse meio dormindo, Riga é a capital da Letônia, porque tinha
estudado nos atlas geográficos que eu adorava, e porque em Riga se passava
um romance de Júlio Verne, e os romances de Júlio Verne enchiam a minha
imaginação e a minha vida.
Agora compreendo que na nossa terra seca e interiorana os trens
noturnos eram o grande rio que nos levava ao mundo e depois nos trazia de
volta, o grande caudal deslizando por sombras em direção do mar ou das
lindas cidades onde estaria nos aguardando uma nova existência, mais
luminosa e verdadeira, mais parecida com a que os livros prometiam. Tão
nitidamente como me lembro da primeira viagem de trem lembro-me da
primeira vez que cheguei às plataformas de uma estação de fronteira: na
recordação o brilho da noite é idêntico, e também as antecipações da
imaginação, o medo do desconhecido que acelerava o pulso e deixava os
joelhos bambos. Homens da Guardia Civil mal-encarados, e depois
gendarmes hostis e grosseiros examinavam os passaportes na estação de
Cerbère. Cerbère, Cérbero: às vezes as estações noturnas lembram a entrada
do reino do Hades, e seus nomes já contêm como que um princípio de
maldade: Cerbère, onde os gendarmes franceses humilhavam no inverno de
1939 os soldados da República Espanhola, os xingavam e davam empurrões
e coronhadas; Port Bou, onde Walter Benjamin acabou com a própria vida
em 1940; Gmünd, a estação de fronteira entre a Checoslováquia e a Áustria,
onde um dia se encontraram Franz Kafka e Milena Jesenska, encontros
clandestinos no parêntese de tempo dos horários dos trens, na brevidade
exasperada das horas que já se esvaíam enquanto se encontravam, enquanto
subiam para o quarto inóspito do hotel da estação, onde a passagem dos
trens, bem pertinho, fazia vibrar as vidraças da janela.
Como seria chegar a uma estação alemã ou polonesa num trem de gado,
ouvir nos alto-falantes ordens gritadas em alemão e não entender nada, ver
ao longe luzes, arames farpados, chaminés muito altas expulsando fumaça
preta. Durante cinco dias, em fevereiro de 1944, Primo Levi viajou num
trem para Auschwitz. Pelas rachaduras das tábuas, das quais aproximava a
boca para poder respirar, ia vendo os nomes das últimas estações da Itália, e
cada nome era uma despedida, uma etapa da viagem para o norte e o frio do
inverno, nomes de estações agora indecifráveis em alemão e depois em
polonês, de povoados afastados de que quase ninguém na época tinha
ouvido falar, Mauthausen, Bergen-Belsen, Auschwitz. Três semanas levou
Margarete Buber-Neumann para ir de Moscou ao campo da Sibéria onde
devia cumprir uma pena de dez anos, e quando tinham se passado só três e
mandaram-na subir de novo num trem para Moscou ela pensou que iam
libertá-la, mas em Moscou o trem não parou, continuou viajando para o
oeste. Quando finalmente parou na estação fronteiriça de Brest-Litovsk, os
guardas russos disseram a Buber-Neumann que se apressasse em arrumar a
mala, que tinham chegado a território alemão.
Entre as tábuas que tapavam a janela viu na plataforma os uniformes
pretos dos SS, e entendeu com espanto, com infinito cansaço, que por ser
alemã os guardas de Stálin iam entregá-la aos guardas de Hitler, em virtude
de uma cláusula infame do pacto germano-soviético.
A grande noite da Europa está cruzada de longos trens sinistros, de
comboios de vagões de mercadorias ou gado com as janelas fechadas,
avançando muito devagar por descampados invernais cobertos de neve ou
de lama, delimitados por cercas de arame farpado e torres de vigilância.
Presa em 1937, torturada, submetida a interrogatórios que duravam quatro
ou cinco dias seguidos, nos quais devia permanecer sempre em pé, trancada
por dois anos numa solitária, Evgenia Ginzburg, militante comunista, foi
condenada a vinte anos de trabalhos forçados nos campos próximos do
Círculo Polar, e o trem até o cativeiro levou um mês inteiro para percorrer a
distância entre Moscou e Vladivostok. Durante a viagem as prisioneiras
contavam umas às outras suas vidas, e às vezes, quando o trem parava numa
estação, apareciam na janela ou num respiradouro entre duas tábuas e
gritavam seus nomes para qualquer passante, ou atiravam uma carta, ou um
papel em que rascunhavam seus nomes, com a esperança de que a
informação de que continuavam vivas chegasse um dia aos seus familiares.
Se uma das duas sobreviver, se voltar, irá em primeiríssimo lugar à procura
dos pais ou do marido ou dos filhos da outra, para contar-lhes como ela
viveu e morreu, para testemunhar que no inferno e nas lonjuras continuou
se lembrando deles. No campo de Ravensbrück, Margarete Buber-Neumann
e sua amiga íntima Milena Jesenska fizeram esse juramento. Milena
contava o amor que tinha vivido com um homem morto vinte anos antes,
Franz Kafka, e também contava as histórias que ele escrevia e das quais
Margarete nunca tinha ouvido falar até então, e por isso as saboreava mais
ainda, como contos antigos que ninguém escreveu e que, no entanto,
renascem integrais e poderosos quando alguém os conta em voz alta, a
história do agrimensor que chega a uma aldeia com um castelo onde ele
nunca consegue entrar, a do viajante que certa manhã acorda transformado
em inseto, a do funcionário de um banco que um dia é visitado por policiais
à paisana que vão lhe dizer que ele vai ser processado, embora nunca
chegue a saber o motivo, a acusação formulada contra ele.
O amor de Milena Jesenska e Franz Kafka está cruzado de cartas e
trens, e nele tiveram mais importância a distância e as palavras escritas do
que os encontros reais ou as carícias verdadeiras. Na primavera de 1939,
dias antes de o exército alemão entrar em Praga, Milena entregou a seu
amigo Willy Haas as cartas de Kafka que ela havia guardado desde que
recebeu a última, dezesseis anos antes, em 1923. Na viagem para o campo
de extermínio, nas estações às escuras onde o trem parada noites inteiras,
com certeza ela se lembrava da emoção e da angústia das viagens
semiclandestinas de outros tempos, quando era casada e vivia em Viena e
seu amante morava em Praga, e marcavam encontro no meio do caminho,
na estação fronteiriça de Gmünd, ou da primeira vez que se encontraram,
após vários meses trocando cartas, na estação de Viena. Antes de
começarem a se escrever tinham se visto uma só vez, num café, sem
repararem muito um no outro, e de repente ele queria resgatar das margens
da memória uma lembrança que não podia ser exata, o rosto em que não
tinha chegado a se fixar, embora poucos meses depois estivesse apaixonado
por ele. Percebo que não consigo me lembrar de seu rosto com detalhes. Só
me lembro de como se afastava entre as mesinhas do café; sua figura, seu
vestido, ainda os vejo. Sobe no trem em Praga e sabe que ao mesmo tempo
ela sobe em outro trem em Viena, e sua impaciência e seu desejo são tão
fortes quanto o medo, pois angustia-o saber que dali a algumas horas terá
nos braços, de forma tangível, a mulher que praticamente não é mais do que
um fantasma da imaginação e das cartas. O medo é a infelicidade, escreveu-
lhe. Teme a chegada do trem e o encontro com os olhos claros de Milena,
diante dele, mas também teme que ela tenha se arrependido no último
momento, ficado em Viena com o marido que não a faz feliz, que a engana
com outras mulheres, mas de quem não quer ou não pode se separar.
Consulta o relógio, olha os nomes das estações onde o trem vai parando, e
se atormenta porque custam a passar as horas que faltam, e também porque
tem medo da chegada, tem medo de ficar sozinho na plataforma da estação
de Gmünd, e ao mesmo tempo receia a impetuosa proximidade física de
Milena, muito mais jovem e mais saudável que ele, mais desembaraçada e
franca nos atrevimentos sexuais.
A lembrança inconsciente é a matéria e o fermento da imaginação. Sem
saber disso até pouco antes, quando eu queria imaginar a viagem de Franz
Kafka num expresso noturno, estava na verdade, me lembrando de outra
viagem que fiz aos vinte e dois anos, uma noite inteira de insônia num trem
que me levava a Madri, para um encontro com uma mulher de olhos claros
e cabelo castanho a quem eu tinha enviado um telegrama minutos antes de
comprar minha passagem de segunda classe com dinheiro emprestado e de
abandonar tudo, insensatamente, para ir à sua procura. Cheguei à estação
quando amanhecia, e não havia ninguém me esperando.
Como seria aproximar-se de trem de uma estação de fronteira e não
saber se seria aceito, se seria impedido de ir para o outro lado, para a
salvação que estava a um passo, os guardas de uniforme examinando seus
documentos com cruel lentidão, erguendo os olhos arrogantes para
comparar o rosto da fotografia no passaporte com aquele rosto cheio de
medo que mal consegue fingir uma expressão de normalidade, de inocência.
Depois de encontrar-se com Milena pela primeira vez e passar com ela
quatro dias inteiros, Franz Kafka voltou no expresso de Viena a Praga com
a preocupação de ir ao trabalho na manhã seguinte, com um misto de
felicidade e culpa, de inebriada doçura e intolerável amputação, pois agora
não conseguia se acostumar a ficar sozinho nem era capaz de calcular dali a
quanto tempo reencontraria sua amante. Quando o trem parou na estação de
Gmünd a polícia de fronteiras disse-lhe que não podia seguir viagem para
Praga: faltava um papel entre seus copiosos documentos, um visto de saída
que só podia ser expedido em Viena. A noite de 15 de março de 1938,
quando já fazia catorze anos que Franz Kafka estava morto, a salvo de toda
angústia ou culpa, de toda perseguição, esse mesmo expresso que saía às
onze e quinze da manhã de Viena para Praga encheu-se de fugitivos, judeus
e esquerdistas sobretudo, porque Hitler acabava de entrar na cidade,
recebido por multidões que uivavam como matilhas, levantavam o braço e
gritavam seu nome com o estrondo rouco e unânime de um oceano atroz,
dando vivas ao Führer e ao Reich, clamando pela aniquilação dos judeus.
Nazistas austríacos uniformizados subiam no trem de Praga nas estações
intermediárias e saqueavam as bagagens dos fugitivos, a quem espancavam
e submetiam a humilhações e injúrias.
Muitos não tinham documentos: na estação de fronteira os guardas
checos não os deixaram seguir viagem. Alguns pulavam do trem e fugiam
pelo campo na ânsia de cruzar a fronteira sob a proteção da noite.
Como será chegar de noite à costa de um país desconhecido, pular de
um barco no qual se cruzou o mar na escuridão, cair na água, querendo
embrenhar-se rapidamente nas terras desse país, enquanto os pés afundam
na areia: um homem só, sem documentos, sem dinheiro, que viajava para
fugir do horror das doenças e das matanças na África, do coração das
trevas, que não sabe nada da língua do país aonde chegou, que se joga no
chão e se agacha numa sarjeta quando vê se aproximarem pela estrada os
faróis de um carro, talvez da polícia.
Durante uma viagem parece mais gostoso ler livros de viagens. Num
trem que me afastava de Granada, assim que terminei meu curso na
faculdade, no início do verão de 1976, eu ia lendo o relato da viagem a
Veneza feito por Proust em Le temps retrouvé. Dois verões mais tarde
cheguei pela primeira vez a Veneza, num final de tarde de setembro, e
lembrei-me de Proust e de sua dolorosa tendência à decepção quando
chegava aos lugares a que desejara tanto ir. Conversando com Francisco
Ayala sobre a felicidade de ler Proust descobri que ele também a associava
com a felicidade simultânea de uma viagem. Em mil novecentos e quarenta
e tantos, quando vivia exilado em Buenos Aires, convidaram-no para dar
aulas na universidade da província de Rosário. Viajava uma vez por
semana, primeiro de trem até Santa Fé, depois num ônibus que percorria a
margem do rio Paraná. Levava sempre um livro de Proust, e achava que a
releitura era ainda mais saborosa porque, ao afastar os olhos do livro, via
paisagens como as do outro extremo do mundo, e transferia-se num instante
das ruas de Paris em 1900 e das praias nubladas da Normandia para as
imensidões desabitadas da América que o trem, e depois o ônibus,
cruzavam. De repente, aquele livro que ia lendo era o único vínculo com
sua vida anterior, com a Espanha perdida a que talvez não pudesse voltar e a
Europa que ainda não tinha emergido dos cataclismos da guerra. Lia Proust
no ônibus que ia pela beira da vastidão marítima do rio Paraná e esse
exemplar que tinha nas mãos era o mesmo lido tantas vezes nos bondes de
Madri.
Uma vez, numa parada, tirou instintivamente os olhos do livro e fixou-
se num velho, de cabelo muito branco e ar de melancolia e pobreza, que
acabava de subir vestindo um abrigo muito surrado, com uma pasta
igualmente muito surrada debaixo do braço, cara de doente e cansado, cara
de um velho que os anos não livraram das necessidades mais amargas da
vida. Num instante de surpresa, incredulidade, envergonhada compaixão,
reconheceu nesse velho que pegava o ônibus num distante povoado da
Argentina o homem que tinha sido presidente da República Espanhola, don
Niceto Alcalá Zamora. Temeu que o outro homem também o reconhecesse:
virou o rosto para a janela, ou afundou os olhos no livro, e na parada
seguinte, quando levantou de novo a cabeça, o velho já não estava no
ônibus.
Numa viagem escuta-se uma história ou encontra-se casualmente um
livro que termina formando uma onda concêntrica na emoção das
sucessivas descobertas. Numa época em que eu estava apaixonadíssimo por
uma mulher que fugia de mim quando eu mais a desejava e vinha me
procurar quando eu tentava me afastar, viajei num trem para Sevilha lendo
O jardim dos Finzi-Contini, e à bela e agressiva heroína judia de Giorgio
Bassani eu atribuía os traços da mulher amada, e o fracasso final do amor
que o protagonista do romance sente por Micòl antecipou-me tristemente o
fracasso do meu, com uma clarividência que, por mim mesmo, eu não teria
sido capaz de aceitar.
Lembro-me de um exemplar barato e de capa branca das Histórias de
Heródoto que encontrei numa barraca de rua de Nova York, e do diário de
viagem ao Círculo Polar do capitão John Franklin, que folheei por acaso
num sebo e li depois de um só fôlego no quarto de um hotel de Londres,
quarto estreito, alto, de geometria perversa, com um banheiro do tamanho
de um armário, mas torto e formando ângulos de quadro expressionista.
Recém-chegado a Buenos Aires no outono austral de 1989, eu passava as
horas deitado na cama do quarto escutando a chuva que batia forte nas
vidraças e me impedia de ir para as ruas que eu tanto desejava percorrer,
lendo horas a fio, para matar o tempo claustrofóbico dos hotéis, o primeiro
livro que descobri de Bruce Chatwin, Na Patagônia. Agora verifico que,
justamente nos dias em que estava lendo esse livro, Bruce Chatwin
agonizava de uma doença cujo nome não quis dizer a ninguém: uma
infecção rara contraída na Ásia Central por causa de uma comida ou de uma
picada, diziam seus amigos, para ocultar a infâmia, para não dizerem o
nome que despertava pânico e vergonha, a palavra que em si mesma já era
como um daqueles abscessos que havia séculos anunciavam o horror da
peste.
Eu lia Bruce Chatwin em Buenos Aires enquanto ele morria em
Londres. Minha viagem pela Argentina tinha, assim, uma parte de verdade e
outra de literatura, pois lendo aquele livro eu prosseguia, rumo aos grandes
espaços desolados do Sul, o itinerário que, no entanto, para mim havia se
interrompido na capital do país, num quarto de hotel de onde mal saía por
causa das chuvas. Que descanso para a alma estar longe de tudo, isolado de
tudo, como um monge em sua cela, a cama intacta, o telefone ao alcance da
mão, o controle remoto da televisão, a chuva que o absolve da extenuante
obrigação do turismo, que lhe oferece o álibi perfeito para ficar horas à toa,
apenas permanecer deitado, levemente recostado sobre os dois travesseiros,
o livro nas mãos, o livro em que se conta uma viagem ao extremo do
mundo, em que se recordam outras viagens muito mais antigas, a de
Charles Darwin no grande veleiro Beagle, a daquele índio patagônio que
viajou com Darwin para a Inglaterra, aprendeu a língua inglesa e os modos
ingleses, visitou a rainha Victoria e alguns anos depois voltou às paragens
austrais e à vida primitiva de que desertara, já um estrangeiro para sempre e
em qualquer lugar, em Londres um selvagem exótico com roupas
civilizadas, em sua terra natal um desconhecido.
Em Copenhague uma senhora dinamarquesa de origem francesa e
sefardita me contou uma viagem que tinha feito em criança com sua mãe
pela França recém-libertada, no final do outono de 1944. Conhecia num
almoço no Clube dos Escritores, que ficava num palácio com portas de
folha dupla, colunas de mármore e tetos de guirlandas douradas e pinturas
alegóricas. Debruçado numa de suas janelonas, vi passar diante de mim um
navio alto, a vela, como se deslizasse pela rua: navegava por um desses
canais que adentram tanto até o centro da cidade que de repente conferem a
uma esquina a perspectiva de uma surpresa portuária.
Era início de setembro, há cerca de oito anos. Fazia dois dias que eu
perambulava pela cidade, e no terceiro um editor amigo me convidou para
aquele almoço. Tenho a memória cheia de cidades das quais gostei muito
mas onde só estive uma vez. De Copenhague lembro-me sobretudo das
imagens do primeiro passeio: saí do hotel andando ao leu e cheguei a uma
praça ovalada com palácios e colunas, tendo no meio uma estátua equestre,
de bronze, um bronze verde que adquiria aqui e ali, devido à umidade e ao
líquen, uma tonalidade cinza idêntica à do céu, ou à do mármore do palácio
que, depois me contaram, era o Palácio Real.
Em todo o espaço frio e barroco da praça, cruzado de vez em quando
por um carro solitário (ao mesmo tempo que o motor, eu ouvia os pneus
roçando nos paralelepípedos), a única presença humana, além de mim, era a
de um soldado de casaca vermelha e chapéu alto e peludo de hussardo, que,
entediado, marcava o passo com um fuzil no ombro, um fuzil de baioneta
tão anacrônico como seu uniforme.
Não sabendo aonde ir, as ruas me levavam, como quando me deixo
levar por uma trilha no campo. Defronte do cavalo de bronze nascia uma
rua larga e reta que terminava na cúpula, também de bronze esverdeado, de
uma igreja com inscrições douradas em latim e, nas cornijas, estátuas de
santos, guerreiros e indivíduos de redingote.
A igreja lembrava essas igrejas barrocas de Roma tão iguais entre si,
que têm um jeito antipático de sucursais de alguma coisa, de agências
vaticanas e bancárias da graça de Deus.
Mas uma das estátuas que se erguiam naquela fachada era
indubitavelmente de Sören Kierkegaard. Encurvado, como à espreita, mãos
nas costas, não tinha essa pose de elevação ou imobilidade definitiva que
costuma ter nas estátuas. Depois de morto, após habitar um século e meio
na imortalidade oficial, conviver com todos aqueles heróis solenes, santos,
generais e tribunos do panteão histórico da Dinamarca, Kierkegaard, sua
estátua, continuava mantendo uma expressão transitória, fugaz, carrancuda,
o desassossego de andar sozinho por uma cidade fechada e hostil e de olhar
de soslaio para as pessoas que desprezava, e que o desprezavam ainda mais,
não só por sua corcunda e seu cabeção, mas pela extravagância
incompreensível de seus textos, de sua fé furiosa e bíblica, tão exilado e
apátrida em sua cidade natal como se tivesse sido forçado a viver no outro
lado do mundo.
Procurei o caminho de volta para o hotel. Em menos de uma hora o
editor — que na verdade eu conhecia pouco — viria me apanhar. Numa rua
larga e burguesa, com lojas de roupas e de antiguidades, vi um telhadinho
que sobressaía, absurdamente, de uma parede caiada ou pintada de branco,
na qual havia uma porta de madeira com ferragens e campainha, e uma
janela de grade com gerânios. Eu que me sentia tão distante de tudo
percorrendo numa tarde de sábado as ruas vazias de Copenhague, tinha
encontrado um lugar espanhol chamado Pepe's Bar.
A mulher estava sentada ao meu lado na grande mesa oval da União dos
Escritores. Aconteceu-me outras vezes: o almoço era em minha
homenagem, mas ninguém reparava muito na minha presença. Diante de
cada um de nós havia um cartãozinho com nosso nome. O da mulher era em
si mesmo um enigma, uma promessa cifrada: Camille Pedersen-Safra.
Não resisto à atração dos nomes: a mulher me disse que tinha nascido
na França, numa família judia de origem espanhola. Pedersen era seu
sobrenome de casada. Enquanto os outros conversavam calorosamente e
riam, aliviados de não terem de dar atenção a um estrangeiro de quem nada
sabiam, ela me contou que, junto com a mãe, tinha escapado da França nas
vésperas da queda de Paris, na grande debandada de junho de 1940. Só
voltaram ao país uma vez, no outono de 1944, e ambas perceberam que em
tão poucos anos tinham deixado de pertencer à sua pátria de origem, da qual
teriam sido deportadas para os campos de extermínio se não tivessem
escapado a tempo: por gratidão, já eram dinamarquesas. A Dinamarca
também tinha sido ocupada pelos alemães, e submetida às mesmas leis
antijudaicas da França, mas as autoridades dinamarquesas, ao contrário do
governo francês de Vichy, não haviam colaborado com o isolamento e a
deportação dos judeus e nem sequer os fizeram cumprir a obrigação de usar
uma estrela amarela.
Camille Safra tinha uns seis anos quando fugiu da França: lembrava-se
de como fora desagradável sua mãe acordá-la sacudindo-a, quando ainda
era noite cerrada, e a sensação estranha, cálida e gostosa, de viajar enrolada
em mantas no reboque de um caminhão, sob um toldo no qual a chuva
batia.
Lembrava-se também de ter dormido em cozinhas ou alpendres de casas
que não eram a sua, e onde havia um cheiro forte de maçãs e feno, e às
vezes vinham-lhe imagens de misteriosos itinerários por caminhos rurais à
luz da Lua, dormindo nos braços de sua mãe, sob o abrigo de um xale de lã
úmida, ouvindo o barulho de um carro e os cascos lentos de um cavalo.
Lembrava-se, ou era um sonho, de luzes isoladas nas esquinas, janelas
de granjas, luzes vermelhas de locomotivas, sucessões de luzes nas janelas
de trens em que ela e sua mãe não chegavam a subir.
Em sua memória a viagem para o exílio tinha toda a doçura do bem-
estar infantil, de como as crianças se instalam confortavelmente no
excepcional e dão às coisas dimensões que os adultos desconhecem e que
não têm nada a ver com o que eles vivem e relembram. Quando saiu da
França, Camille Safra ainda vivia submersa nas irrealidades e nas
mitologias da primeira infância: aos dez ou onze anos, quando ela e a mãe
voltaram, sua razão adulta já estava praticamente estabelecida. Lembrava-se
da primeira viagem como de um sonho, e sem dúvida partes de sonhos e de
histórias contadas tinham se infiltrado em sua memória como fatos reais.
Da saída da Dinamarca guardava imagens exatas, matizadas de uma tristeza
que era o reverso da misteriosa felicidade da outra vez.
Era uma mulher ruiva, robusta, enérgica, muito desleixada no modo de
vestir, com traços mais centro-europeus do que latinos, que com a idade iam
ficando mais marcados.
Vi senhoras judias muito parecidas com ela nos Estados Unidos e em
Buenos Aires: mulheres de certa idade, corpulentas, vestidas com
negligência, de lábios pintados.
Fumava muito, cigarros sem filtro, conversava com brilhantismo,
pulando do inglês para o francês segundo suas necessidades ou limitações
expressivas, e bebia cerveja com uma formidável desenvoltura escandinava.
Escrevia crônicas sobre livros para um jornal e uma estação de rádio. O
editor que me havia levado ao jantar e que pelo visto, no calor da conversa
e da cerveja, não parecia se lembrar muito de mim dissera-me, ao
apresentá-la, que tinha muito prestígio, que uma crítica favorável dela era
muito importante para um livro, sobretudo de um autor estrangeiro e
desconhecido no país. Eu estava melancólica e firmemente convencido de
que o livro que me levara a Copenhague não atrairia nenhum leitor
dinamarquês, de modo que sentia remorsos antecipados pelo mau negócio
que o editor estava fazendo comigo, e o desculpava, e até lhe agradecia, por
ter me abandonado à minha sorte no almoço da União dos Escritores.
Compreendia também que o convite não tinha sido propriamente um
sucesso: havia diversas outras mesas na grande sala de pinturas mitológicas
e janelões que davam para uma rua por onde, de vez em quando, passava
lentamente um barco. Antes de nos servirem o jantar, os garçons tiraram os
talheres das mesas vazias.
Essas observações me corroíam mesquinhamente enquanto Camille
Safra continuava falando, e eu notava meio ofendido que ao longo da
conversa ela ainda não tinha me dito uma só palavra sobre meu livro em
dinamarquês. Contou-me que sua mãe morrera meses antes, em
Copenhague, e que na última conversa que tiveram lembraram-se daquela
viagem à França, sobretudo de um episódio que tinham vivido certa noite
num hotel de uma cidade pequena, perto de Lyon.
Procuravam alguns parentes. Muito poucos tinham sobrevivido. Antigos
vizinhos e conhecidos as olhavam com desconfiança, com franca rejeição,
temendo que tivessem voltado para reivindicar alguma coisa, para acusar ou
exigir satisfações. Sua mãe levou-a àquela cidade perto de Lyon — Camille
Safra não me disse o nome — porque alguém tinha lhe dito que uma de
suas irmãs se refugiara ali no início de 1943, e não constava que a tivessem
prendido, embora tampouco nada se soubesse sobre seu paradeiro, e nunca
se chegou a saber. Nessa época as pessoas desapareciam, disse Camille
Safra, perdia-se o rastro delas, seus nomes não apareciam em lugar nenhum,
em nenhuma lista de deportados, nem de retornados, nem de mortos.
Chegaram de manhãzinha num trem, tomaram café frio e comeram pão
preto com manteiga rançosa no bar da estação, perguntaram a algumas
pessoas madrugadoras e ranzinzas que as olhavam desconfiadas e se
negavam a dar as explicações mais simples, temendo se comprometer
naqueles tempos de acerto de contas.
Famintas, desorientadas, estrangeiras no país que quatro anos antes era
o delas, com os pés arrebentados depois de andar o dia inteiro sem
descobrir nada sobre a pessoa que procuravam, o entardecer surpreendeu-as
num descampado, perto do abrigo de um ponto de bonde. Antes da manhã
seguinte não podiam voltar a Paris. O bonde deixou-as numa praça com
lojas fechadas e um monumento aos mortos da guerra de 1914, perto do
qual havia um lampião aceso e a tabuleta de um hotel chamado Du
Commerce.
Pediram um quarto. Subiram para se deitarem logo, pois com o
racionamento a luz apagaria às nove horas. Sentadas na cama, sob uma
lâmpada que enfraquecia e dava então uma claridade tênue e vermelha e
depois renascia até um amarelo forte, dividiram à guisa de jantar os restos
de um pacote de comida fornecido pela Cruz Vermelha e depois se deitaram
vestidas e abraçadas, tocando-se os pés gelados sob a manta fina e a colcha
puída. Sua mãe, disse-me a senhora, nunca trancava os quartos à chave:
tinha pavor de perder a chave, ficar presa e não poder sair. Nos abrigos,
quando soavam os alarmes dos ataques aéreos, tinha acessos de suor e
pânico. Se iam ao cinema, quando o filme acabava apressava-se em sair,
com medo de que todos fossem embora antes e fechassem as portas
pensando que já não havia ninguém.
Acordaram ao amanhecer. Pela janela via-se um pátio rústico com
canteiros de hortaliças e galinhas dentro de gaiolas. Chovia. Lavaram-se em
rodízio com a água gelada do jarro que havia debaixo da pia, vestiram-se
com as roupas monótonas, dignas e pobres que nessa época sempre usavam,
roupas que nunca chegavam a protegê-las do frio, assim como a comida
nunca era suficiente para matar toda a fome. Quando a mãe quis sair do
quarto a maçaneta não girava e a porta não abria.
— Eu lhe disse ontem à noite para não trancar à chave.
— Mas não tranquei, tenho certeza.
A chave estava em cima do aparador em frente da cama. Elas a
introduziram na fechadura, mexeram para um lado e outro, e nada
aconteceu. Não girava, ou não encontrava resistência e girava no vazio. Não
é que emperrasse, ou não entrasse direito por ser a chave de outro quarto.
Simplesmente, embora o mecanismo parecesse funcionar, a porta não
abria com aquela chave, assim como não abria com a maçaneta.
A mãe foi ficando nervosa. Mais que tentar abrir, o que fazia era sacudir
a maçaneta e a chave, bater na fechadura, morder os lábios. Dizia baixinho
que se não saíssem iam perder o trem para Paris e não poderiam voltar para
a Dinamarca, e teriam de ficar para sempre na França, onde não tinham
ninguém, onde ninguém lhes dera nem um sorriso de boas-vindas, e nem
mesmo de reconhecimento. Tirava a chave da fechadura e não conseguia
introduzi-la de novo, e quando afinal acertou, negando-se a deixar que a
filha a ajudasse, fez angustiosamente um movimento tão brusco que ficou
com metade da chave na mão.
— Eu lhe disse para não tirar a chave — repetia. — E você não quis me
ouvir.
— Por que não pedimos ajuda?
— Vão rir de nós, duas judias ridículas. Quem pode ficar trancado deste
jeito num quarto?
Mas tiveram que pedir ajuda: minutos depois, a mãe, já descontrolada,
com a boca parecendo deslocada e os olhos vidrados de medo, o medo que
teve na fuga de quatro anos antes e do qual tinha salvado a filha, batia na
porta com desespero e pedia socorro aos gritos. Tinham tentado abrir a
janela: também era impossível, embora não se visse nenhum trinco, e
portanto nenhuma fechadura.
Ouviram, aliviadas, passos subindo a escada e se aproximando no
corredor. O dono do hotel, com a ajuda de um arame, conseguiu tirar da
fechadura o pedaço de chave que ficara preso, mas quando introduziu a
chave mestra tampouco a porta abriu. De um lado e de outro a porta era
empurrada, sacudida, golpeada, mas permanecia firmemente fechada, e era
de uma madeira grossa demais e com dobradiças muito sólidas para que
conseguissem derrubá-la.
Sua mãe estava sufocando, disse-me Camille Safra. Tinha se sentado na
cama, com seu vestido preto de viagem, seu manto velho e seu
chapeuzinho, seus sapatos largos e cambaios, e respirava de boca muito
aberta e agitando muito as narinas, e apertava as mãos ou cobria o rosto
com elas, como quando desciam aos abrigos, nos alertas do início da guerra.
Não vamos sair nunca daqui, repetia, não devíamos ter voltado, desta vez
não vão nos deixar sair. A garota tomou então uma decisão da qual quarenta
e tantos anos depois ainda se orgulhava. Jogou o jarro da pia contra a janela,
e, quebrando-se a vidraça, entrou no quarto o ar fresco e úmido da manhã.
Mas estavam num andar alto demais para que pudessem pular para o pátio,
e a escada de pintor que alguém tinha ido buscar não chegava nunca.
Não se conseguiu abrir a porta: uma hora depois abriu-se outra porta
que havia no quarto, escondida atrás de um armário que mãe e filha,
exaustas, tiveram que empurrar.
Ainda conseguiram pegar o trem para Paris na mesma manhã. Sua mãe
a levava pela mão, apertando-a muito, e lhe dizia que iam voltar logo para a
Dinamarca e que ela nunca mais pisaria na França. Na cabine do trem
estava tão pálida e com uma fisionomia tão acabada como se estivesse
viajando havia muito tempo, tal como tantos refugiados e apátridas que na
época eram vistos perambulando pelas estações, aguardando dias e semanas
inteiras a chegada de trens que não tinham horários nem destinos certos,
pois em muitos lugares as vias férreas estavam arrebentadas e as pontes
destruídas pelos bombardeios ou pelas sabotagens. Um cavalheiro com
aspecto de penúria digna, parecido com o delas, ofereceu à menina metade
de uma laranja tirada de um lenço limpíssimo e descascada com enorme
cuidado, enquanto elas tentavam não olhar nem sentir aquele aroma ácido e
tentador que enchia o ambiente, eliminando os fedores habituais de roupa
suada e fumo. Era a primeira pessoa que lhes sorria abertamente desde que
tinham chegado à França. Travaram conversa e a mãe deu o nome da
cidadezinha e do hotel onde tinham pernoitado. Ao escutá-lo, o homem
parou de sorrir.
Também era a única pessoa que falava sem cautela nem medo.
— Era um bom hotel antes da guerra — disse. — Mas nunca mais
pisarei lá. Durante a Ocupação os alemães o transformaram em quartel da
Gestapo. Aconteceram coisas terríveis naqueles quartos. As pessoas
passavam pela praça da cidadezinha e ouviam os gritos, e fingiam não
escutar nada.
Quando parou de falar, Camille Safra balançou devagar a cabeça,
sorrindo, de olhos fechados. Reabriu-os e eles estavam úmidos e muito
brilhantes. Devem ter sido olhos muito bonitos em sua juventude, ou
quando ela viajava com a mãe pela França naquele trem e olhava,
disfarçando e invejosa, a laranja que o homem do vagão descascava tão
cuidadosamente sobre um lenço branco. Contou-me que sua mãe, no final
da vida, no quarto do hospital onde ela passava as noites fazendo-lhe
companhia, acordava às vezes de um pesadelo e pedia-lhe que não fechasse
a porta à chave, respirando de boca aberta, olhando-a com os olhos
dilatados por um medo que não era só da morte próxima, mas também, e
talvez com mais angústia, da morte de que ela e a filha tinham escapado
quarenta e cinco anos antes.
No final do jantar na União dos Escritores houve vários brindes de um
fervor etílico muito acentuado, mas não lembro se algum foi em minha
homenagem, ou se o fizeram em dinamarquês e não cheguei a perceber. Da
viagem a Copenhague a lembrança mais nítida que me resta, além da
estátua misantropa de Kierkegaard e do telhadinho andaluz do Pepe's Bar, é
a da viagem daquela senhora chamada Camille Safra durante um outono
chuvoso e lúgubre do final da guerra na Europa. Nas viagens contamos e
ouvimos histórias de viagens. Aonde quer que o homem vá, leva consigo
seu romance, diz Pérez Galdós em Fortunata y Jacinta.
Mas eu, às vezes, olhando certos viajantes que não falam com ninguém,
permanecem calados e herméticos perto de mim, em suas poltronas de
avião, ou bebendo um drinque na cafeteria do trem ou olhando fixamente a
tela onde se projeta um filme, pergunto-me que histórias saberão e não
contarão, que romances cada um leva consigo, de que viagens vividas ou
escutadas ou imaginárias estarão se lembrando enquanto viajam calados ao
meu lado, um pouco antes de desaparecerem para sempre de minha vista,
caras nem sequer recordadas, assim como a minha para eles, assim como a
de Franz Kafka no expresso de Viena ou a de Niceto Alcalá Zamora num
ônibus que percorre as paisagens desoladas do norte da Argentina.
Quem espera

E o que você faria se soubesse que a qualquer momento podem vir


buscá-lo, que talvez seu nome já figure numa lista datilografada de presos
ou de futuros mortos, de suspeitos, de traidores. Talvez agora mesmo
alguém tenha feito um sinal a lápis ao lado do seu nome, tenha dado o
primeiro passo num processo que levará à sua detenção e talvez à sua
morte, ou à obrigação imediata de desterro, ou por enquanto apenas à perda
do trabalho, ou à perda de certas vantagens menores a que em princípio não
lhe custa muito renunciar. Josef K. foi notificado de seu processo e ninguém
o prendeu, nem parecia que o estivessem vigiando. Você sabe, ou pelo
menos deveria imaginar, viu o que acontecia com outros bem perto de você,
vizinhos que desapareceram ou tiveram de fugir, ou permaneceram como se
não houvesse nenhum perigo, como se a ameaça não fosse com eles. Você
ouviu de noite passos na escada e no corredor que levam à porta da sua casa
e temeu que dessa vez viessem por sua causa, mas pararam antes de chegar
ou passaram ao largo, e as pancadas ressoaram em outra porta, e o carro que
você ouviu se afastar mais tarde levou alguém que podia ter sido você,
embora prefira não acreditar, embora tenha dito a si mesmo, querendo
inutilmente se acalmar, que não há motivo para o prenderem, pois nem você
nem os seus estão incluídos na lista de condenados, ao menos por enquanto.
De que poderão acusá-lo, se você não fez nada, se nunca se sobressaiu. Em
nenhum momento acusaram Josef K. de coisa alguma, salvo de ser culpado.
Você pertence ao Partido desde muito jovem e admira sem reservas o
camarada Stálin, cujo retrato está pendurado na sala de jantar de sua casa.
Você é judeu, mas só de origem, seus pais o educaram na religião
protestante, no amor à Alemanha, você se alistou como voluntário no verão
de 1914, quando foi declarada a guerra, concederam-lhe uma Cruz de Ferro
por bravura no combate, você não pertence a nenhuma organização judia,
não tem a menor simpatia pelo sionismo, pois no íntimo, por sua educação,
por sua língua, até por seu aspecto físico você é só alemão.
Quem quer ou pode ir embora de um dia para outro, romper com tudo,
com a vida de sempre, com os laços do coração e os hábitos da vida diária,
quem não se aflige ao pensar que deve perder sua casa, seus livros, a
poltrona predileta, a normalidade que sempre conheceu, e que perdura
apesar das batidas na porta dos vizinhos ou do tiro que ceifou num instante
a vida ou da pedrada nas vidraças da alfaiataria e da mercearia da
vizinhança, em cuja fachada aparece grosseiramente pintada, uma bela
manhã, a estrela-de-davi e uma só palavra que contém em sua brevidade o
grau máximo da injúria: Juden. Você vai fazer compras na mesma loja de
sempre mas defronte há um grupo de homens de camisas pardas e
braçadeiras com suásticas que seguram uma tabuleta, Quem compra dos
judeus apoia o boicote internacional e destrói a economia alemã, e então
você baixa a cabeça e disfarçadamente muda o seu trajeto, entra numa loja
ali perto, contendo a vergonha íntima, afinal o boicote ao comércio dos
judeus só acontece aos sábados, pelo menos no início, na primavera de
1933, e se no dia seguinte ou nessa mesma tarde você cruza com o
vendedor habitual que sabe que você não foi comprar com ele é possível
que você desvie o olhar ou mude de calçada em vez de aproximar-se e
apertar a mão dele, ou nem isso sequer, dizer-lhe umas poucas palavras
normais, fazer um gesto de fraternidade já nem mesmo judaica, mas apenas
humana, própria a vizinhos de sempre. As coisas acontecem aos poucos,
muito gradualmente, e no início você prefere imaginar que não são tão
graves, que a normalidade é sólida demais para ser quebrada com tanta
facilidade, de modo que você se irrita imensamente com os agoureiros, os
catastrofistas, os que apontam para a proximidade de uma ameaça que se
torna mais real porque é formulada por eles, e que talvez desaparecesse
caso fingíssemos não perceber sua presença. Você espera, nada faz. Com
paciência e dissimulação não será difícil esperar que esses tempos passem.
Em 1932, viajando num barco pelo Reno, Maria Teresa León tinha visto
milhares de bandeirinhas com suásticas sendo levadas pela corrente,
espetadas em boias pequeninas. Na quinta-feira 30 de março de 1933, o
professor Victor Klemperer, de Dresden, anota em seu diário que viu na
vitrine de uma loja de brinquedos uma bola de borracha infantil com uma
grande suástica. Já não consigo me livrar da sensação de desgosto e
vergonha. E ninguém se mexe; todo mundo treme, se esconde. Mas o
professor Klemperer não pensa em ir embora da Alemanha, pelo menos por
enquanto, pois para onde irá, na sua idade, com quase sessenta anos, a
mulher doente, agora que compraram um terreninho onde planejam
construir uma casa? Tanta gente empreendendo novas vidas em outros
lugares, e nós esperamos aqui, de mãos amarradas. Mas, segundo você,
quem é capaz de pensar que uma situação dessas vá se manter muito tempo,
que tanta barbárie e loucura possam prevalecer num país civilizado, em
pleno século XX? É óbvio que os nazistas não durarão muito, sendo tão
brutais e dementes, o povo alemão acabará por rejeitá-los, a comunidade
internacional se negará a admiti-los. E, aliás, quem sabe se, imaginando
afastar-se do perigo, você não estará, hipnotizado, se aproximando dele,
como se houvesse um ímã na armadilha que lhe preparam, um forte desejo
de ser agarrado e de que, assim, termine de uma vez a angústia da espera.
Nem o fugitivo está a salvo. Na distante Cidade do México, numa casa
transformada em fortaleza, protegida por guaritas com homens armados e
cercas de arame farpado, muros de concreto, León Trotsky aguarda a
chegada do emissário de Stálin que virá matá-lo, que saberá eludir portas
blindadas e guardas e ficará sozinho defronte dele e disparará um tiro na sua
cabeça ou se inclinará com a solicitude de Judas e fincará em sua nuca uma
picareta de montanhista tão afiada como uma adaga, tão eficaz como uma
bala. E verão, agosto de 1940. No dia 6 de julho o ex-professor Klemperer
anota sem drama em seu diário que a partir desse dia os judeus estão
proibidos de entrar nos parques públicos. No início de junho, na França, três
homens que fogem juntos do avanço do exército alemão penetram num
bosque, no crepúsculo demorado e cálido. Um deles, o mais velho e mais
corpulento, talvez o mais bem vestido, aparece enforcado vários meses
depois, seu cadáver putrefacto caído no chão, meio escondido sob as folhas
outonais.
O galho em que se pendurou ou foi pendurado quebrou com seu peso,
mas ele já estava morto. No bolso do casaco talvez levasse uma caneta-
tinteiro. Esse homem, que era alemão, fugia dos alemães mas também de
pessoas que, em outra época, faziam parte dos seus, os comunistas que o
haviam declarado traidor e decretado sua execução.
Os dois companheiros de cativeiro que fugiam com ele eram agentes
soviéticos que tinham viajado à França com o único objetivo de encontrá-lo
e matá-lo. Nem se escondendo entre as multidões fugitivas da guerra, nem
atrás dos muros de concreto encimados por cacos de vidro e telas de arame
você estará a salvo. Fugirá do seu país e se transformará num apátrida e
uma bela manhã, ao acordar no quarto do hotel para estrangeiros onde você
vive precariamente, escutará alto-falantes que gritam ordens em seu próprio
idioma e verá pela janela os mesmos uniformes dos quais pensava ter se
livrado graças às fronteiras e à distância. Em 1938 o judeu vienense Hans
Mayer foge da Áustria, atravessa com documentos falsos uma Europa de
vaticínios negros e fronteiras hostis, refugia-se na cidade belga de
Antuérpia, e só dois anos depois as mesmas botas e os mesmos motores e
músicas marciais que invadiram Viena retumbam nas ruas dessa cidade
onde ele nunca deixou de ser um estrangeiro e onde a partir de então será
também um perseguido. Em 1943 é alcançado por homens de capotes de
couro e chapéus de abas moles, de quem estava fugindo desde 1938,
exatamente desde a noite de 15 de março, quando Hitler acabara de entrar
em Viena e ele, Hans Mayer, pegou o expresso às onze e quinze da manhã
para Praga: tinha previsto tão minuciosamente a cena de sua detenção,
durante tantos anos, que quando afinal ela chegou teve a sensação de já tê-
la vivido. Só uma coisa não soube imaginar nem prever: as pessoas que o
detiveram, as pessoas que lhe fizeram as primeiras perguntas e deram as
primeiras bofetadas não tinham cara de homens da Gestapo, nem mesmo de
policiais. Se um membro da Gestapo tem uma cara normal, então qualquer
cara normal pode ser a de um membro da Gestapo.
Em Moscou, na noite de 27 de abril de 1937, Margarete Buber-
Neumann percebeu que um dos funcionários da NKVD que se
apresentaram para prender seu marido usava óculos redondos e pequenos,
sem armação, que davam a seu rosto muito jovem um certo ar desvalido de
intelectual.
Não devia ser uma impressão casual, ou infundada: Nadezhda
Mandelstam, que sofreu bem de perto a perseguição dos membros da
polícia secreta, conta que os membros mais moços da Cheka se distinguiam
por seus gostos modernos, muito refinados, e por seu fraco pela literatura. À
uma da madrugada soaram as batidas na porta do quarto do hotel Lux, onde
se hospedavam os funcionários e ativistas estrangeiros do Komintern. No
hotel Lux tinha se hospedado em 1920 o professor Fernando de los Rios,
enviado pelo Partido Socialista Operário Espanhol com a missão de se
informar sobre a Rússia sovietista, como ele a chamava. Entrevistou-se com
Lênin e surpreendeu-o sua semelhança com Pio Baroja, e espantou-o seu
desprezo pelas liberdades e pela vida das pessoas comuns.
Com o coração disparado fixávamos nossa atenção no ruído das botas
que se aproximavam. Como toda noite, Margarete — Greta — tinha ficado
acordada no escuro, ouvindo passos nos corredores, assustando-se toda vez
que se acendiam as luzes da escada. Se depois de meia-noite se acendessem
de repente as luzes nas escadas e nos corredores do hotel Lux era porque
tinham chegado os homens da NKVD, que percorriam as ruas escuras e
vazias de Moscou em caminhonetes pintadas de preto, a que chamavam
"corvos".
Jamais pegavam os elevadores, talvez temendo que uma falha em seu
mecanismo, um corte de luz permitisse que uma de suas vítimas escapasse.
Mas as vítimas nunca escapavam, nem mesmo tentavam, permaneciam
imóveis, paralisadas em seus quartos, na normalidade cada vez mais
sombria de suas vidas, e quando afinal alguém ia buscá-las não opunham
resistência, não brigavam nem gritavam de raiva ou pânico, não tinham
preparada uma arma com que abrir caminho a tiros quando chegasse a visita
noturna ou com que estourar os miolos no último instante. Fazia anos que
Heinz Neumann, dirigente do Partido Comunista alemão, sabia que estava
marcado, que seu nome constava da lista de condenados e possíveis
traidores, e no entanto foi embora com sua mulher para a União Soviética
após o triunfo do nazismo na Alemanha e não tentou buscar refúgio em
nenhum outro país, e viveu em Moscou percebendo a cada dia que se
estreitava o círculo do receio e da hostilidade contra ele, os velhos amigos
paravam de lhe dirigir a palavra, sumiam, um após outro, camaradas em
quem havia confiado, e que agora pareciam traidores, conspiradores
trotskistas, inimigos do povo. E ninguém os visitava, a ele e sua mulher, no
quarto do hotel Lux, e eles também não visitavam ninguém, temerosos de
comprometer outras pessoas, de contagiar outras pessoas com sua desgraça
sempre iminente, postergada dia após dia e noite após noite. Se o telefone
tocava ficavam olhando-o sem se atreverem a responder, e quando
levantavam o fone escutavam um clique e sabiam que alguém estava
espionando. Houve época em que cobriam com mantas ou agasalhos os
telefones, pois correu o boato de que mesmo com o fone no gancho era
possível escutar o que se estava falando num quarto. No verão de 1932,
Heinz Neumann e sua mulher tinham sido hóspedes pessoais de Stálin num
balneário do mar Negro. Na noite de 27 para 28 de abril de 1937, quando as
batidas soaram na porta, Greta Neumann estava de olhos abertos no escuro,
mas seu marido não acordou, nem mesmo quando ela acendeu a luz e os
homens entraram. Os três homens rodearam a cama e um deles gritou seu
nome, talvez o mais jovem, o dos óculos sem armação, e Heinz Neumann
mexeu-se debaixo dos cobertores e virou o rosto para a parede, como
negando-se a acordar com todas as forças de sua alma. Quando afinal abriu
os olhos um horror quase infantil inundou suas feições e logo seu rosto
ficou magro e cinza. Enquanto os homens de uniforme revistam o quarto e
examinam cada um dos livros, Heinz e Greta Neumann estão sentados um
diante do outro, ambos com os joelhos tremendo. De um dos livros cai no
chão um papel e o guarda que o apanha verifica que é uma carta enviada a
Heinz Neumann por Stálin em 1926.
Azar o dele, murmura o guarda, dobrando-a de novo. Os joelhos do
homem e da mulher se roçam em seu tremor idêntico, como uma tremedeira
que não se consegue acalmar.
Fora do quarto, nos corredores do hotel, do outro lado da janela,
começam a ouvir os ruídos das pessoas que acordam, da cidade revivendo
antes da primeira luz do dia. A aurora vinha lentamente por trás das
cortinas.
Veem diante de si, tanto à luz da manhã como na negrura do tempo
insone, o vazio e a vertigem do medo, e oprime-os a consciência
permanente de que foram apontados, escolhidos, de que a qualquer
momento alguém pode bater na porta ou eles podem ouvir a campainha
repentina do telefone, alguém pode se aproximar por trás enquanto andam
pela rua e arrastá-los para um automóvel de motor ligado, ou dar-lhes um
tiro na nuca, e no entanto não fogem, não fazem nada, refugiam-se na ilusão
de uma normalidade que não é mais que um simulacro, ao menos para eles,
mas à qual se agarram como a uma frágil esperança de salvação. Em 1935 o
professor Klemperer foi expulso da universidade, mas ficou com uma
pequena pensão, em sua qualidade de veterano de guerra. Ainda faltavam
alguns anos para que o proibissem de dirigir um carro, possuir um rádio ou
um telefone, ir ao cinema, ter animais de estimação. O professor Klemperer
e sua mulher, sempre com a saúde tão delicada, propensa à nevralgia e à
melancolia, gostavam muito dos gatos e das fitas de cinema, sobretudo os
musicais.
Foram ameaçados, sabem que podem ser presos ou mortos a qualquer
momento, mas na rua a luz do sol é a mesma de todos os dias, há carros que
passam, lojas abertas, vizinhos que se cumprimentam, mães que levam pela
mão seus filhos, a caminho da escola, que se agacham para subir a gola do
capote ou enrolar bem o cachecol e enfiar bem o gorro antes de deixá-los no
portão. Um dia de novembro de 1936 o professor Klemperer, que
aproveitava o ócio forçado da aposentadoria para escrever uma obra erudita
sobre a literatura francesa do século XVIII, chegou à biblioteca da
universidade e a bibliotecária que o atendera diariamente anos a fio disse
pesarosa que já não estava autorizada a emprestar-lhe outros livros, e que de
agora em diante ele não devia voltar. Você foi assinalado, mas as coisas ao
seu redor não sofreram nenhuma mudança que possa ser o reflexo objetivo,
a confirmação exterior da sua desgraça iminente, da sua condenação
solitária. Na sala de leitura na qual você já não pode entrar as pessoas
continuam a se debruçar pensativas sobre os volumes abertos, à luz suave
dos abajures baixos de cúpulas verdes. Você vai para a rua sabendo que tem
os dias contados, que deveria aproveitar para fugir nesse tempo que ainda
lhe resta, pelo menos tentar, mas o jornaleiro lhe vende o jornal como todas
as manhãs e o ônibus continua parando pontualmente a cada poucos
minutos no mesmo ponto, e então você acha que a maldade está dentro de
você, que há algo em você mesmo que o torna diferente dos outros, mais
vulnerável, pior que eles, indigno da vida normal que eles desfrutam, e tem
indícios sutis mas também indubitáveis para saber que o excluíram, embora
não consiga explicar a razão, embora se obstine a crer que na certa se trata
de um erro, de um mal-entendido que se esclarecerá a tempo. Em maio de
1940 o professor Klemperer é denunciado por um vizinho, por não ter
fechado devidamente as janelas durante as horas noturnas do blecaute
obrigatório: prendem-no, trancam-no sozinho numa cela, mas o soltam uma
semana depois.
A espera de um desastre inevitável é pior que o próprio desastre. No dia
15 de setembro de 1936, Evgenia Ginzburg, professora da Universidade de
Kazan, dirigente comunista, editora de uma revista do Partido, esposa de
um membro do Comitê Central, recebe a notícia de que está proibida de dar
aulas. É uma mulher jovem, entusiasta, mãe de dois filhos pequenos,
seguidora fervorosa de todas as diretrizes do Partido, convencida de que o
país está cheio de sabotadores e que é justo desmascará-los e castigá-los
com a maior firmeza. Todo dia, nas reuniões de células e comitês, nos
jornais, no rádio, há notícias de novas detenções, e Evgenia Ginzburg acha
estranhas algumas delas, que a desconcertam, mas continua convencida da
necessidade e do acerto de tanta repressão.
Um dia Evgenia Ginzburg descobre que não está tão a salvo como
imaginava, que também é suspeita: no início, nada muito grave, mas
irritante, isto sim, e até desagradável, um equívoco que com certeza acabará
se esclarecendo, pois é impensável que o Partido acuse um inocente, e ela,
Evgenia Ginzburg, não encontra em si mesma a menor sombra de culpa, a
mais leve incerteza ou fraqueza em sua fé cega de revolucionária. Você
pensa saber quem é e de repente descobre que se transformou no que outros
querem enxergar em você, e pouco a pouco vai ficando mais estranho para
si mesmo, e sua própria sombra é o espião que segue seus passos, e em seus
olhos você vê o olhar dos que o acusam, dos que mudam de calçada para
não cumprimentá-lo e olham-no de soslaio e cabeça baixa ao cruzarem com
você. Mas a vida custa a mudar, e no início a gente se nega a perceber os
sinais de alarme, a pôr em dúvida a ordem e a solidez do mundo que, no
entanto, já começou a se desfazer, a realidade diária em que começam a se
abrir grandes orifícios e fendas de escuridão, em plena luz do dia, nos
espaços usuais da vida, a porta em que a qualquer momento podem ressoar
umas batidas, a sala de jantar onde as crianças tomam lanche ou fazem os
deveres da escola e onde o telefone vai assumindo uma presença
exasperante e funesta, pois cada toque cruzará o ar como uma folha gelada
de aço, com a instantaneidade letal de um tiro.
Convocam Evgenia Ginzburg em horas impossíveis para reuniões que
acabam sendo interrogatórios, sugerem-lhe que provavelmente será
castigada, porque um dia teve contato na universidade ou no Partido com
alguém que era um traidor, ou porque não denunciou uma pessoa com a
necessária vigilância revolucionária. Mas terminam a reunião, o
interrogatório e deixam-na voltar para casa, e se há gente que começa a
fingir que não a vê ou a afastar-se quando ela se aproxima, há outras
pessoas que a tranquilizam, que lhe oferecem consolo, dizem que
certamente não deve ser nada, que ela vai ver, que no final tudo se ajeita. Só
uma mulher avisa-lhe o que vai acontecer, o perigo que corre, a mãe de seu
marido, uma velha aldeã e talvez analfabeta, que, resignada, balança a
cabeça e lembra-se de que essas coisas já aconteciam no tempo dos czares.
Evgenia, estão lhe armando uma cilada, e você precisa escapar enquanto é
tempo, antes que quebrem o seu pescoço. Mas como vou eu, uma
comunista, esconder-me do meu Partido, o que tenho de fazer é mostrar ao
Partido que sou inocente. Falam baixinho, para que as crianças não escutem
nada, temendo que o telefone, mesmo no gancho, seja usado para espionar
suas conversas. No dia 7 de fevereiro Evgenia Ginzburg é convocada para
uma nova reunião, que se passa de forma menos desagradável que de outras
vezes, e no final o camarada que a interrogou levanta-se, sorrindo, e ela
acha que vai apertar sua mão, talvez lhe dizer que aos poucos os mal-
entendidos ou as suspeitas foram se esclarecendo, e o homem pede-lhe com
certo ar trivial, como se lembrando de um detalhe burocrático menor que
quase ia esquecendo, que por favor ela lhe deixe a sua caderneta do Partido.
De início, ela não entende, ou não consegue acreditar no que ouviu, olha
para o camarada, e de seu rosto sereno desapareceu o sorriso, e então abre a
bolsa ou a carteira e procura a caderneta que sempre leva consigo, e quando
a entrega o outro a apanha já sem olhar para ela e guarda-a numa gaveta de
sua mesa.
Evgenia Ginzburg espera oito dias. Permanece em casa, trancada no
quarto, sem falar no telefone, percebendo vagamente o que acontece ao
redor, a proximidade dos filhos, que se movimentam em silêncio como
numa casa onde houvesse um doente, a presença do marido, que entra e sai
como uma sombra, que quando volta para casa bate muito suavemente na
porta e diz baixinho: abra, sou eu. Como já duvidam de que a inocência de
alguém possa bastar para salvá-lo, queimam papéis e livros, cartas antigas,
qualquer folha manuscrita ou impressa que possa chamar a atenção numa
batida policial. De noite ficam acordados, calados e rígidos no escuro, e
estremecem toda vez que ouvem um motor se aproximar pela cidade
silenciosa ou que uma luz de faróis entra pela janela e cruza em diagonal as
paredes do quarto. O sobressalto dura desde que começam a ouvir um
motor ao longe até que o ronco amorteça e se perca no final da rua. Em
Kazan, tal como em Moscou, os únicos carros que circulam nessas horas
são as caminhonetes negras da NKVD. A Rússia é muito grande, Evgenia,
pegue um trem e vá esconder-se na nossa aldeia, nossa casinha de campo
está vazia e com as janelas tapadas e há um pomar com macieiras.
Esperaram por eles noite após noite, imaginando o motor desligado
defronte da casa e as batidas na porta, mas a coisa aconteceu de dia, na
manhã de 15 de fevereiro, e não bateram na porta, mas chamaram pelo
telefone. Como você vai acreditar que a vida diária que você ama e conhece
e que está feita de repetições e obviedades pode se acabar de repente e para
sempre, que esta manhã fria e com luz de neve, parecida com tantas outras,
vai ser a última? Evgenia estava passando a ferro e seu filho tomava o café
da manhã na mesa da cozinha. A menina tinha saído para patinar. Tocou o
telefone e de início ela e o marido ficaram observando sem se mexerem,
sem se olharem. Mas podia ser um telefonema qualquer, talvez da escola, a
menina podia ter caído enquanto patinava e a professora estaria ligando
para que fossem pegá-la, não era nada grave. Depois de alguns toques o
marido aproximou-se do telefone, pegou-o abruptamente, concordou com a
cabeça enquanto lhe diziam alguma coisa.
Evgenia, disse, querendo em vão que a voz soasse normal, estão
perguntando por você. Talvez o menino estivesse molhando um pedaço de
pão na tigela de leite e nem tivesse levantado a cabeça. Camarada, disse
uma voz jovem e educada no telefone, teria um momento durante o dia para
passar em nosso escritório?
Evgenia Ginzburg agasalhou bem o menino e mandou-o patinar junto
com a irmã. Enfiou bem o gorro na cabeça dele, enrolou metade de seu
rosto no cachecol, foi com ele até a porta e deu-lhe adeus com a mão
enquanto ele se afastava pela rua nevada, e nunca mais o viu. Mas ninguém
tinha vindo buscá-la, não lhe apontaram uma pistola, não a algemaram nem
a enfiaram numa caminhonete preta, ela podia sair como numa manhã
qualquer e andar até a estação, podia se confundir com a multidão que
invadia as plataformas quando um trem se aproximava e subir nele e talvez
ninguém reparasse em seu rosto. Não tenho nada para fazer, tinha dito ao
homem educado do telefone, irei agora mesmo. Gostaria de ter ido sozinha,
mas seu marido insistiu em acompanhá-la. Saíram e quando escutou às suas
costas o ruído familiar da porta se fechando pensou com serenidade e
distância que nunca tornaria a ouvi-lo, que nunca mais cruzaria aquela
porta. Andaram calados na neve intacta que irradiava brancura na manhã
cinzenta de fevereiro. Não se abraçaram ao se separarem junto da entrada
do edifício onde a estavam esperando: despedir-se teria sido reconhecer o
abismo da separação que já se abria entre eles. Disse o marido: você vai ver,
na hora do almoço já estará de volta em casa. Ela assentiu e empurrou a
porta. Quando ia entrar virou-se para ele, e o viu imóvel na neve, no meio
da rua, de boca aberta e olhos de pânico. Durante anos, em celas solitárias,
em vagões hediondos de trens que nunca chegavam ao destino, em
barracões gelados, em desertos de neve, nas alucinações da febre e da fome,
na exaustão animal do trabalho, no crepúsculo eterno do Círculo Polar,
Evgenia Ginzburg continuou a ver esse rosto, a expressão que ela não teria
flagrado se não tivesse se virado pela última vez antes de empurrar uma
porta atrás da qual havia um rumor atarefado de passos e vozes, máquinas
de escrever, molhos de chaves.
Três semanas depois, no dia 8 de março de 1937, Rafael Alberti e Maria
Teresa León, que estavam em Moscou, foram recebidos por Stálin num
grande gabinete do Kremlin.
Maria Teresa León lembrava-se dele encurvado, sorridente. Tinha os
dentes curtinhos, como serrados pelo cachimbo. Falaram da guerra da
Espanha, da ajuda soviética à República. Numa parede havia um grande
mapa da Espanha com alfinetes e bandeirinhas indicando as posições dos
exércitos. Em outra, um mapa de Madri. Stálin perguntou a Maria Teresa
León se podia fumar seu cachimbo. Ficou conversando com eles mais de
duas horas, prometeu-lhes armas, aviões, instrutores militares. Sorrimos
como sorrimos para as crianças a quem devemos encorajar. Muitos anos
depois, longe da Espanha, perdida na duração e na extensão do exílio,
Maria Teresa León lembrava-se de Stálin com uma espécie de distante
ternura. Achamo-lo magro e triste, angustiado com alguma coisa, com seu
destino talvez.
Virão por sua causa, mas você não sabe quando, e é até possível que o
esqueçam, ou que prefiram prolongar a sua espera, alimentar o suplício da
sua incerteza. Angustiado com alguma coisa. Quando começaram as
deportações de judeus em Dresden o professor Klemperer sentiu-se
provisoriamente protegido por ser casado com uma ariana. Por ora ainda
estou seguro. Tão seguro como pode estar alguém no patíbulo com uma
corda no pescoço. Um dia desses uma nova lei pode derrubar de um só
golpe os degraus sobre os quais me mantenho de pé e então serei enforcado.
Greta Buber-Neumann, foram buscá-la no dia 19 de julho de 1938, mas
quando lhe mostraram a ordem de prisão ela notou que o papel era datado
de nove meses antes, de outubro de 1937. Teria ficado entre a papelada da
confusa burocracia dos interrogadores e assassinos, dos intelectuais de
óculos redondos com ideias extravagantes sobre a literatura e a necessidade
de purificar a Revolução por meio do sangue; ou talvez alguém a tivesse
mantido guardada numa gaveta, de propósito, examinando-a dia após dia
sobre uma mesa de trabalho, como quem observa um manuscrito valioso
num escritório com ruído de máquinas de escrever e portas pesadas e
ferrolhos, ou talvez alguém tivesse resolvido prolongar dia e noite, por mais
de um ano, o suplício da mulher alemã que ia de prisão em prisão em
Moscou tentando em vão saber notícias do marido, e que em seu quartinho
gelado tinha sempre arrumada uma maleta com as poucas coisas necessárias
para quando ocorresse a detenção e a viagem para a Sibéria. Nunca chegou
a saber como ou quando Heinz Neumann morreu. Com um pacote de
comida debaixo do braço e uma carta, andava por Moscou no meio do
tumulto dos preparativos para o 1o de Maio, afastando-se da multidão como
uma empesteada ou uma leprosa, uma estrangeira que não falava bem russo
e não podia confiar em ninguém, pois seus antigos camaradas estavam
presos ou mortos ou lhe viravam as costas, e ela caminhava entre a
multidão não querendo ver as bandeiras vermelhas nem os cartazes
pendurados nas ruas nem ouvir a música que retumbava nos alto-falantes, a
marcha heroica da Aída, lembraria anos mais tarde, valsas de Strauss. No
dia 30 de abril de 1937, Greta Buber-Neumann vai até a prisão Lubianka
para saber do paradeiro de seu marido, preso três dias antes, e por todo lado
vê retratos de Stálin, nas vitrines das lojas, nas fachadas das casas, nas
portas dos cinemas, retratos rodeados de guirlandas de flores ou de
bandeiras vermelhas com foices e martelos. Ao passar perto de um grupo
que parou para ver os operários levantando com polias e cordas um retrato
imenso de Stálin que cobre a fachada inteira de um prédio, Greta afasta o
rosto e aperta mais ainda contra o regaço o pacote com roupa e comida que
não sabe se poderá entregar, Se pelo menos pudesse não ver mais essa cara.
Na praça da Grande Opera acaba de ser içada uma estátua de Stálin de mais
de dez metros talhada em madeira, cercada de bandeiras vermelhas, Stálin
andando energicamente de quepe e capote de soldado. O que você faria se
fosse essa mulher perdida numa vasta cidade estrangeira e hostil, se
tivessem tirado o seu passaporte e o documento de identidade provisório
que a credenciava como funcionária do Komintern, se tivesse sido expulsa
do emprego e estivesse prestes a ser expulsa do quarto que você dividiu
com seu marido, e no qual ainda não arrumou nada, depois da revista, não
fez a cama onde não dormiu nem um só minuto durante a última noite com
ele nem apanhou do chão os livros jogados e pisoteados, a crina do colchão
que eles estriparam com navalhas profissionais à cata de documentos
escondidos, de armas, de provas? Você espera no quarto, sentada na cama
desfeita, atordoada, ouvindo passos no corredor do hotel, vendo como a luz
cinza da tarde declina depressa até a escuridão, você sabe que também virão
por sua causa e deseja que cheguem o quanto antes, e já tem preparada a
maleta ou a bolsa que levará consigo, mas passam-se dias, semanas, meses,
e nada acontece, só que você se tornou invisível, ninguém a olha nos olhos
ao cruzar com você, e você faz fila nas delegacias e prisões ao lado de
parentes de outros presos e quando chega a sua vez já é tarde e eles fecham
grosseiramente o guichê bem na sua cara, ou não respondem se o seu
marido está preso ali ou não, ou fingem que não entendem as palavras que
você diz em russo, e que preparou tão cuidadosamente, repetindo-as
enquanto ia pela rua como essas mulheres loucas que falam sozinhas. Desde
que os alemães entraram em Praga Milena Jesenska sabia que mais cedo ou
mais tarde iriam buscá-la, mas não fez nada, não se escondeu, não deixou
de escrever nos jornais, apenas tomou certas precauções, enviou a filha de
dez anos para passar uma temporada com uns amigos e pediu a alguém de
toda a confiança, o escritor Willy Haas, que guardasse as cartas de Franz
Kafka.
Num parque distante, aonde ela chega após longas viagens de bonde,
quase na periferia de Moscou, Greta Buber-Neumann encontra-se com um
velho amigo, tão assustado como ela, mas ainda leal. Você é essa mulher
que pula de um bonde andando e se vira para verificar se alguém a está
seguindo, e pega outro bonde e ao descer dá uma longa volta para chegar
com o lusco-fusco do entardecer a um parque da periferia. Haverá gente
passeando, velhos de bengala e manto e gorro de pele, mães que levam pela
mão meninos enrolados em cachecóis e capotes. Greta e o amigo veem-se
de longe, mas ainda não andam um na direção do outro, primeiro
asseguram-se de que ninguém os segue. Não há jeito de fugir?, diz ele.
Precisamos nos deixar degolar como coelhos?
Como pudemos aceitar tudo isso durante tantos anos sem duvidar de
nada, sem abrir os olhos? Agora temos de pagar por toda a nossa cega
incredulidade.
Da próxima vez o homem falta ao encontro marcado. Greta espera até
anoitecer e depois volta para seu quarto sem se preocupar em verificar se é
seguida. Imagina com melancolia, quase com doçura, que seu amigo
conseguiu escapar.
Numa noite de janeiro de 1938 soam afinal as batidas na porta. Mas não
vieram para levá-la, apenas para confiscar os últimos bens do renegado
Heinz Neumann. Os policiais uniformizados recolhem os poucos livros que
Greta ainda não conseguiu vender para comprar comida, sapatos velhos de
seu marido, e ao irem embora entregam-lhe um recibo. Alguém lhe conta
que o amigo com quem se encontrava no parque foi preso ao tentar subir
num trem para a Crimeia.
Chegaram numa manhã muito cedo, no dia 19 de julho, e ao perceber
que dessa vez vinham realmente por ela, Greta não sentiu pânico, mas
alívio. No assento traseiro de uma pequena caminhonete preta foi levada
para a Lubianka, entre dois homens de uniforme azul-claro que não a
olhavam nem lhe dirigiam a palavra. Dessa vez seus joelhos não tremeram,
e a seus pés ia a mala pronta havia tanto tempo. Lembrava-se da última
coisa que viu numa rua de Moscou, antes que a caminhonete cruzasse as
portas da prisão: um relógio luminoso, com um brilho tênue e avermelhado
ao amanhecer. No dia 12 de julho o professor Klemperer lembra-se em seu
diário de alguns amigos que foram embora da Alemanha, encontraram
trabalho nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Mas como ir embora sem
nada, ele, um velho, e sua mulher, uma doente, sem conhecimento de
idiomas estrangeiros, sem nenhuma habilidade prática, como deixar a casa
que afinal construíram com tanto esforço, o jardim que Eva quase
transformou num vergel?
Nós ficamos aqui, na vergonha e na penúria, como enterrados vivos,
enterrados até o pescoço, esperando dia após dia as últimas pás de terra.
Tão caladinha

Acordei duro de frio e não sei onde estou nem quem sou. Por segundos
fui um clarão de pura consciência, sem identidade, sem lugar, sem tempo,
apenas o despertar e a sensação do frio, do escuro onde estou imóvel,
encolhido, abrigando-me na temperatura de meu corpo, de lado, as mãos
entre as pernas e os joelhos contra o peito, os pés gelados apesar das botas e
meias de lã, as pontas dos dedos inertes, as articulações tão inchadas que se
tentasse me mexer talvez não conseguisse.
Há algo mais que o frio e a escuridão, um frio e uma escuridão como de
fundo de poço, como que emanando de pedra úmida e de terra gelada e
removida. Cheiro de esterco também, esterco misturado com lama, um
oceano de lama e esterco no qual se afundam botas militares, cascos de
cavalarias, rodas e engrenagens de máquinas de guerra.
O que me acordou foi uma sensação de perigo, um reflexo de alerta tão
poderoso que dissipou num instante todo o peso do sono. Ainda mais rápida
que a consciência atordoada, a mão direita, sob os cobertores, apalpa à cata
da pistola. As luvas de lã espanholas, a manga áspera da jaqueta cinza,
manchada de lama seca, a textura do capote que me serve de travesseiro e o
colchão de palha úmida sobre o qual eu estava dormindo: cada coisa é um
traço somado à minha identidade, à minha pessoa, que no entanto observo
de fora, alguém que apalpa entre tecidos ásperos procurando o metal de
uma pistola Luger.
Mas o braço inteiro pesa como chumbo, ainda paralisado pelo sono e
pelo frio, e um instinto de cautela me avisa que não devo fazer nenhum
barulho. Prendo a respiração querendo escutar alguma coisa, um rumor ou
um roçar que apenas mine o silêncio. Quero me dissolver na escuridão,
ficar tão imóvel como esses insetos que, para se salvarem, confundem-se
com um fiapo de capim ou uma folha seca.
Foi o perigo que o fez recordar quem ele é e onde se encontra. O perigo
e não o medo. Nunca sente medo, da mesma maneira que não se lembra de
algum dia ter sentido inveja. Sente frio, sente fome, a exaustão das marchas
brutais, o desespero de estar afundando sempre, desde o início do outono,
quando chegaram as chuvas, num lamaçal sem fronteiras, num mar de lodo
e esterco em que tudo naufraga, homens, animais e máquinas, mortos e
vivos.
Um segundo antes era apenas algo mais que um lampejo de alerta no
grande vazio do escuro, anônimo como uma brasa de cigarro brilhando um
só instante do outro lado da lama e da terra de ninguém, no nada imenso da
planície afogada no barro, que em poucas semanas terá se transformado
num deserto horizontal de neve. Agora sabe, recorda. Em castelhano antigo
"acordar" se dizia "recordar". O professor de literatura explica passeando de
um lado para outro do estrado empoeirado de giz, que ecoa vazio sob os
seus passos. Usa óculos redondos, um terno pouco limpo, uma piteira em
que dá tragadas curtas enquanto fala com paixão de Jorge Manrique e recita
de cor longos trechos de seus versos. Não sabe que dali a poucos meses será
fuzilado, piscando os olhos ofuscados, sem os óculos, diante dos faróis de
um caminhão. Recorde a alma dormida, pensa aquele que foi o seu aluno
predileto no Instituto Cardenal Cisneros de Madri. Avive o cérebro e
acorde. Recordou de chofre, irrompeu em si mesmo como se tivesse entrado
num quarto escuro e aos poucos fossem se definindo os objetos, o contorno
dos móveis e das janelas. Seu instinto animal de perigo o faz escutar de
novo, agora com os sentidos alertas, o ruído que o acordou.
Um ruído curto, metálico, trivial para quem não o conhece mas
inconfundível, o do roçar de um fuzil, seu choque tênue contra alguma
coisa, contra a roupa de quem o carrega no ombro. Levanta um pouco a
cabeça e vê uma nesga de luz debaixo da porta, nas frestas das tábuas mal
juntadas que separam a cocheira onde ele dorme do aposento principal da
cabana. Podia ter se instalado nesse aposento, como lhe disse o oficial
alemão do alojamento, ficaria perto da lareira e não teria de aguentar o
fedor de esterco. Na primeira noite, quando ele chegou, a mulher russa e
seu filho já tinham se retirado para a cocheira, ou melhor, tinham se
escondido nela, deixando-lhe a única cama. Estavam os dois abraçados,
mãe e filho, transformados num só monte de farrapos, dois pares de olhos
assustados e brilhantes na luz de sua lanterna. Disse-lhes em alemão que
saíssem, que não tinham nada a temer, indicou-lhes por sinais que não
queria dormir na cama, que eles dois a ocupassem. A mulher negava com a
cabeça, sussurrava em russo, ninava o filho, balançando-se os dois para a
frente e para trás. O menino tinha cabelo louro e ralo como de tinhoso,
maçãs do rosto chupadas e grandes olheiras azuladas na pele translúcida.
Mas a luz que filtrava do outro lado da porta não é a da lareira, nem a de
uma vela. É uma lanterna, apaga e acende, ele consegue escutar o clique
mínimo do interruptor, que alguém maneja em silêncio, não a mulher,
porque está certo de que ela não tem lanterna. Não tinha nem velas até ele
lhe trazer um pacote do armazém do posto de comando, nem fósforos para
acender o fogo, não havia nada na cabana de troncos com telhado de palha,
perdida no meio da lama e da desordem dos caminhos da frente de batalha,
intocada pelo desastre, apenas uma grande cama de ferro chegada ali sabe-
se lá por que acasos, a cama em que ele tinha desistido de dormir, apesar
das instruções do oficial do alojamento.
Há vozes no quarto, apenas sussurros, mas são vozes de homens, não da
mulher nem do menino. Passos também: passos de botas, mais que escutá-
los ele percebe sua vibração no chão onde está deitado. Voltam a acender a
lanterna, volta a soar o barulho de um fuzil chocando-se contra a roupa ou a
correagem de alguém, mais exatamente o anel que prende a correia à
culatra. Agora a lanterna se acende na direção dele, e o enxergão e a trouxa
de cobertores e capote na qual ele se deita são riscados pelos fios de luz que
vêm das frestas. Algo opaco se interpõe, um corpo que roça nas tábuas da
porta. E a mulher, tem certeza, distingue sua voz embora ela fale bem
baixinho, repete uma das poucas palavras em russo que ele aprendeu. Niet.
Agora ele compreende, adivinha, mas nem assim tem medo.
Guerrilheiros russos. Operam atrás de nossas linhas, sabotam instalações,
executam e penduram nos postes da linha do telégrafo colaboradores
conhecidos dos alemães. Armam emboscadas de noite e ao amanhecer não
sobra nem vestígio deles, a não ser o cadáver de um enforcado ou de um
estrangulado em silêncio. Não fogem, desaparecem na escuridão, somem na
vastidão sem limites da planície e dos bosques, no espaço que nenhum
exército consegue abarcar ou conquistar.
Pensa com toda a frieza, enquanto tenta que os dedos inchados de sua
mão direita lhe respondam, encontrem a pistola: eles usam fuzis, mas vão
me matar com um tiro, não quererão desperdiçar uma bala e muito menos
que alguém ouça seus tiros tão perto de nossos postos de vigilância.
Que estranho lembrar-se agora mesmo de Jorge Manrique: Como vem a
morte, tão caladinha. Empurrarão a porta de tábuas, um deles me iluminará
com a lanterna e apontará uma pistola para mim e talvez sem deixar que eu
me levante outro se inclinará sobre mim e cortará o meu pescoço, e,
experiente, se afastará para um lado a fim de que o jorro de sangue não o
atinja. Nesse frio o sangue exalará um vapor muito denso. Tudo
encharcado, melado, os cobertores, o capote, o colchão de palha podre, e eu
morto, não eu, outro, ninguém, porque os mortos não demoram muito em
perder todo e qualquer vestígio de identidade, eu morto sem ter alcançado
nem mesmo minha pistola, paralisado pelo frio, que continua a me
entorpecer as mãos e o corpo inteiro como uma mortalha prematura, que
não deixa que eu me mova, tal como, ao dormir, meus músculos não
respondem à minha vontade, e me desespero tanto com essa paralisia que
acordo e tenho um braço tão dormente que preciso mexê-lo com o outro,
como se fosse de madeira.
Isso é que me horroriza: não morrer, mas ficar mutilado. Porém, desse
perigo agora estou salvo. Um obus não vai me estraçalhar, nem a lagarta de
um tanque de combate vai esmagar minhas pernas agarradas na lama. Daqui
a pouco alguém vai empurrar esta porta velha de tábuas e vai cortar o meu
pescoço com um machete do exército russo ou com um facão cego de
cozinha ou com uma foice velha e eu não me mexo nem faço nada para
evitar isso, para me defender. Estou deitado, vendo no escuro os raios de luz
que continuam brilhando em meus olhos embora a lanterna tenha se
apagado e espero, como uma rês, que venham me matar, um guerrilheiro
russo que nunca viu minha cara, que se esquecerá dela quando tiver me
degolado, porque não é possível recordar a cara de um morto, que cai no
anonimato quando a vida desaparece, e por isso nos causam tão pouca
impressão os mortos que sempre há perto de nós, apodrecendo nas cercas de
arame, inchando na lama, os mortos empilhados sobre os quais nos
sentamos às vezes para descansar enquanto fazemos a refeição.
Agora ele compreende por que não acha a pistola. A mulher a terá
tirado, enquanto ele dormia, terá enfiado a mão sob o capote dobrado que
lhe serve de travesseiro e depois saído no silêncio de seus grandes pés
descalços, largos como sua cara e seus quadris, nos quais há uma espécie de
obstinada força cavalar, apesar da fome e da desgraça da guerra, que
transtornou o único mundo que ela conhecia e arrebatou seu marido,
fuzilado pelos alemães, conforme lhe explicou precariamente por sinais e
onomatopeias, enquanto a criança permanecia a seu lado, grudada nela,
agarrada a sua saia com as mãos pequenas e sujas, tênues de tão finas, os
olhos assustados e fixos no estrangeiro de uniforme, tão exagerados na cara
faminta como o tamanho de sua testa, de toda a cabeça em comparação com
o torso chupado, com os braços e as pernas mirrados, frágeis como
apêndices de uma criatura anfíbia.
Eu oferecia algo para comer à mãe e ao filho, uma ração ou uma lata de
conservas, e olhavam minha mão estendida como se não tivessem certeza
de que deviam se aproximar, com um receio de cachorros maltratados. A
mulher empurrava o menino, dizia-lhe alguma coisa em voz baixa, mas ele
não dava um passo, não pegava o que eu oferecia, agarrava-se com mais
força à saia da mãe sem afastar os olhos do pedaço de pão e do pacote de
biscoitos que eu tinha trazido, e eu via o fio de saliva descendo por seu
pescoço tão magro que parecia incapaz de aguentar o peso da cabeça
enorme. Deixava as coisas em cima da mesa e ia descansar na cocheira ou
me afastava um pouco da cabana, isba é a palavra russa. Voltava um
instante depois e a comida já não estava na mesa, mas nem a mãe nem o
filho estavam mastigando, nem havia vestígios de que tivesse sobrado
alguma coisa, tinham comido tudo, engolido com a pressa e o sufoco da
fome, ou tinham escondido uma parte no meio das roupas, ou debaixo da
cama, e me olhavam ao entrar como temendo que eu exigisse alguma coisa
deles, que lhes pedisse para devolver o que já não existia, os dois pares de
olhos azuis cravados nos meus, olhando-me com o pânico de saber que eu
poderia tirar impunemente a vida deles.
Nunca os vi comer, até essa tarde. Fazia vários dias que os guardas e
patrulhas estavam na linha de frente, havia rumores de um ataque russo e
não pude me retirar para ir dormir na isba. Mal conseguira dormir nas três
ou quatro últimas noites. Pior que a fome e o frio era, na guerra, a
desesperadora falta de sono. Quando passei pelo posto de comando do
batalhão para render a guarda entregaram-me um pacote de comida que
minha família tinha me mandado da Espanha. Cheguei à isba, morto de
fome e sono, e descobri aliviado que a mulher e a criança não estavam,
embora não imaginasse aonde pudessem ter ido. Estariam escavando no
barro em busca do que comer, perambulando como cachorros sem dono
perto de algum acampamento nosso. Mas o fogo estava aceso, e assim abri
o pacote, cheio de embutidos saborosos, que, parecia mentira, tinham
atravessado intactos toda a Europa e meia Rússia e chegado a mim, e
comecei a assar uns chouriços. Que delícia inconcebível, no meio de tanta
penúria, o crepitar da gordura vermelha arrebentando a tripa, o cheiro da
carne tão saborosa e tostada. Então percebi que a mulher e o menino
estavam parados na porta, os dois me olhando, olhando os chouriços que eu
estava assando no fogo, e também o embrulho de papelão aberto ao meu
lado. Tinham mais cara de fome do que nunca. Talvez não tivessem comido
nada além de cascas de batatas nos dias em que não lhes levei nada. Pus o
pacote em cima da mesa e fiz sinais para que se aproximassem.
Dessa vez, quando a mulher o empurrou, o menino não resistiu. Pegou
com as duas mãos o chouriço assado que eu tinha deixado num prato e
comeu-o sem levantar a cabeça e fazendo o mesmo ruído de um bicho.
A mulher olhava, mas não ousava se aproximar. Dei a entender que ia
me retirar. Vim para cá e fechei a porta, enrolei-me em meus cobertores e
dobrei o capote para usá-lo como travesseiro. Logo eu dormiria, mal
fechava os olhos e o sono atrasado de tantos dias me derrotava. Então a
mulher bateu na porta com batidas muito suaves.
Podia ver sua figura grande atrás das tábuas desconjuntadas. Disse-lhe
que entrasse e me levantei. Entrou me dizendo algo em russo,
atropeladamente, e fazendo gestos estranhos como o de se benzer. Tinha
gordura vermelha em volta da boca. Antes que eu desse por mim ela se
ajoelhou na minha frente e cobriu minhas mãos de beijos, lágrimas, saliva e
gordura de chouriço.
Agora volto a escutar sua voz, e embora fale tão baixo que só distingo
um rumor, tem o mesmo tom de monotonia e súplica de quando falava
comigo essa tarde. Niet, diz. Niet. A lanterna se acende e apaga e é o corpo
grande da mulher que bloqueia a luz. Se eu conseguir que minhas mãos
desinchem e se conseguir pegar a pistola e armar o gatilho antes que
irrompam os que vão me matar poderei pelo menos acabar com a vida de
um ou dois deles. Empurrarão a porta e permanecerei imóvel, segurando a
pistola debaixo dos cobertores, e quando dirigirem a lanterna para minha
cara levantarei a mão e dispararei à queima-roupa, e na confusão talvez
consiga me salvar.
Mas esse simples gesto é tão impossível como se me propusesse a
realizá-lo num sonho. Não faço nada, continuo rígido, jogado no chão, meio
recostado na parede, escutando essas vozes murmuradas, contando os
segundos que me faltam para morrer nesta região nórdica e desolada do
mundo, a menos de um quilômetro de Leningrado, a cidade que sempre
estávamos prestes a conquistar e à qual nunca chegamos, à qual já não
chegarei, embora nos dias claros vejamos suas cúpulas douradas brilhando
ao longe, no horizonte da planície.
Mas não encontro medo dentro de mim, nem mesmo agora, apenas uma
espécie de alívio. Que entrem logo, que o suplício não se prolongue. A
lanterna se apaga, volta a se acender e sinto um aperto no coração ao pensar
que, agora sim, vão empurrar a porta. Niet, disse a mulher, e atrás de um
rumor obscuro de voz masculina ouvi algo semelhante ao miado de um
gato, e era um choro, o do menino.
As vozes cessam. Vão entrar e não consigo mexer a mão paralítica e
pegar minha pistola. Abre-se uma porta, mas não é a que há diante de mim,
e sim a outra, de madeira mais tosca, a porta da isba, e ao abrir entra uma
correnteza que me alcança. Percebo a vibração dos passos das botas. Escuto
esse ruído ínfimo do fuzil, o anel da correia batendo na culatra. Agora a
porta se fechou, tudo volta a ser escuridão e silêncio.
Com gratidão, embora também com distância, com um desapego que foi
crescendo nele à medida que a guerra avançava, compreende de súbito que
a mulher salvou sua vida.
Convenceu os guerrilheiros a não matá-lo, dizendo-lhes que não é um
alemão nem age como eles, embora vista seu uniforme com as insígnias de
tenente. Talvez tenha mostrado a eles o pacote de comida, ou o que dele
sobrava, talvez tenha lhes dado algo para amainar a fome.
Um tenente alemão ocupa o lugar dele na cabana dias mais tarde,
quando ele entra de serviço na linha de frente. Na primeira noite, o alemão
se retira para dormir enquanto mãe e filho deitam-se no chão da cocheira, e
na manhã seguinte ele aparece estrangulado com um arame e pendurado no
poste do telégrafo que há perto da cabana. Mãe e filho são trancados na
cabana e alguém ateia o fogo, e quando tudo queimou os homens aplainam
o terreno com um trator-lagarta e fincam no barro um cartaz em alemão e
em russo recordando o castigo reservado a quem colabora com os
guerrilheiros.
Um momento. Estremece com um calafrio, encolhido no escuro,
apalpando lençóis, um travesseiro, debaixo do qual não está sua pistola.
Essas coisas não aconteceram ainda. Não posso me lembrar de algo que
ainda não ocorreu. Em abril ou maio de 1936 meu professor de literatura
não podia saber que no final desse verão estaria jogado e morto numa
valeta.
Novamente atordoado, tem a impressão de que volta a acordar, e mais
uma vez, por alguns segundos, não sabe onde está nem quem é. Onde estou
senão numa cabana russa, pertinho da frente de Leningrado, no outono de
1942. Não uso um uniforme alemão de inverno, mas um pijama leve, não
toco no tecido áspero de um cobertor militar, não tenho cheiro de estéreo
nem de palha podre de um colchão em cima do qual caí morto de cansaço
há algumas horas, e no qual acabo de acordar porque escutei os ruídos
silenciosos dos guerrilheiros que vieram me matar.
Agora, sim, sente pânico, não de ser morto mas de se achar perdido na
memória insegura e na desordem do tempo, pânico e sobretudo vertigem,
porque num só instante sua consciência pula para uma distância de mais de
meio século, de um continente inteiro. Tem a tentação de esticar a mão até a
mesa de cabeceira e acender o abajur, mas prefere ficar imóvel, encolhido,
como nessa noite de cinquenta e sete anos atrás, toda a vida passada num
relâmpago, nesse minuto em que a gente adormece e acorda de repente
quando a cabeça cai. Ele presta atenção aos sons que a vigília irá
ampliando, ao mecanismo do despertador, ao barulho, não muito longe, do
motor da geladeira, do tráfego noturno e serenado de Madri. Vê quem foi
como se visse outro, vários outros sucessivos.
Vê-se de fora, com curiosidade e certa ternura, embora também com
satisfação secreta de ter descoberto que não era um covarde, com o espanto
de ter sobrevivido onde tantos pereceram. Mas também sabe que a ausência
de medo, assim como a ausência de inveja, não é exclusivamente um
mérito, e sim um traço de caráter. Vê o garoto apaixonado por filosofia e
por literatura e língua alemã numa escola popular de Madri, o jovem que
não chegou a tempo de lutar na guerra espanhola e se alistou para ir para a
Rússia num impulso nocivo e temerário de romantismo. Vê-se pulando
sobre uma trincheira, à frente de um pelotão, atirando com uma pistola e
dando ordens aos gritos quando se sente vulnerável. Vê se aproximando
dele, surgindo no nevoeiro, um pelotão de cavaleiros russos com os sabres
levantados.
Mas de todas essas identidades sucessivas a mais estranha, a mais irreal
é a que encontrou agora, esta noite, recém-acordado de uma recordação tão
viva como um sonho.
Quem é o homem de oitenta anos que se mexe com dificuldade na
cama, que sabe que vai continuar acordado até raiar o dia, vendo caras de
mortos e lugares que não existem, a mulher russa e o garoto mirrado que se
esconde nas pregas de sua saia esfarrapada, as chamas da fogueira que ele
não viu resplandecer na planície afundada na lama, o rosto sem óculos do
professor fuzilado. Só deseja adormecer, e que durante uns minutos ou
segundos o agora se transforme de novo no então.
Valdemún

Ao sair da última curva da estrada você verá de repente todas as coisas


que ela não voltou a ver, as últimas que talvez tenha recordado e desejado
ver enquanto agonizava na cama do hospital, imóvel entre aparelhos e
tubos, num quarto onde o ar queimava no calor de julho e o tecido fino da
camisola de doente grudava nas costas dela, suarentas. Tinha sempre sede e
murmurava palavras mexendo os lábios rachados, que você umedecia com
um lencinho embebido em água, e ela se imaginava ou sonhava consigo
mesma sentada à beira do rio, à sombra das grandes árvores estremecidas
por uma brisa tão fresca como a corrente, a água límpida e rápida em que
ela mergulhava os pés descalços numa manhã de verão da primeira
juventude. Regos caudalosos percorrendo sinuosamente pela sombra, a
água ecoando escondida atrás de salgueiros frondosos e de sarças, brilhando
ao sol com escamas douradas, e os seixos limpos no fundo, reluzindo como
pedras preciosas, e nos remansos as algas com a consistência tênue da
esponja, que roçavam nos pés com a mesma delicadeza da água e do limo, e
a protuberância, imperceptível para o olho não treinado, das cabeças meio
submersas das rãs. Engolia saliva e a garganta arranhava, e novamente
ficava de boca seca, a língua áspera passando na secura dos lábios que você
não ia umedecer porque tinha pegado no sono, vencida pelo cansaço de
tantas noites sem dormir, agora no hospital e antes em casa, quando ela teve
alta após a primeira hospitalização e parecia ser possível uma recuperação,
uma volta à normalidade, embora frágil e sobressaltada. Mas já então,
quando voltou para casa, notou-se que ela pertencia ao hospital, que em
poucos dias se tornara estrangeira ao lugar e às coisas que até pouco antes
tinham sido o ambiente de sua vida. Movia-se de modo estranho pela
cozinha ou pelo salão, pálida e de roupão, como se não soubesse encontrar
seu caminho e se se perdesse no corredor ou diante de um armário aberto,
procurando alguma coisa que não sabia mais onde estava, tentando sem
êxito retomar os hábitos caseiros da época em que ainda era saudável, as
tarefas mais simples, preparar um lanche no meio da tarde ou mudar os
lençóis.
Logo voltou para o hospital e, quando iam visitá-la, aquele já parecia
ser o seu lugar. Tinha piorado e seu coração estava mais fraco do que nunca,
mas seu rosto, tão descorado contra o branco sanitário dos travesseiros,
adquiriu uma expressão de serenidade ou de hesitação, e ela parou de
perguntar quando lhe dariam alta.
À noite delirava de sede ou de febre, ou por causa do efeito insano dos
tranquilizantes e das injeções que lhe davam para acalmar seu transtornado
coração, e imaginava ou sonhava estar debruçada sobre a água rápida e
transparente do rio, mergulhando nela as duas mãos em concha como para
segurar uma vasilha e depois levantando-as, e a água brilhante jorrava na
luz transparente das árvores. Porém, mal a água encostava em seus lábios,
já tinha se esvaído entre seus dedos, e ela continuava morrendo de sede, e
uma parte de seu espírito, não sorvido pela inconsciência, compreendia com
desolada lucidez e gradual aceitação que nunca mais voltaria a ver as casas
em escadinha da ladeira e o vale de pomares e hortas onde sempre se
ouviam a água nos regos e a brisa nas copas das árvores, entre os galhos
flexíveis dos bambuais e dos salgueiros. Ela se agitava na cama, mexia nas
ligaduras dos tubos e correias, gemia entre dormida e acordada e então
você, assustada, levantava-se da cadeira de couro sintético, num acesso de
angústia e remorso por ter ficado dormindo, enquanto ela poderia estar
precisando de alguma coisa ou, pior, morrendo ao seu lado, indo embora de
vez sem que você soubesse.
Você verá exatamente, num ponto preciso do trajeto, o mesmo que via
em criança, ao chegar todo ano para as férias de verão, e o que antes do seu
nascimento ela via, quando os olhos dela começavam a descobrir o mundo,
olhos iguais aos seus, preservados no seu rosto após a morte dela, assim
como parte do código genético de sua mãe está preservada e transcrita em
cada célula do seu corpo. Mesmo que você se esquecesse dela, essa parte
continuaria existindo. Embora ela tenha morrido há vinte anos, continua
olhando através dos seus olhos o que você descobrirá num acesso de
felicidade e dor quando o carro sair da última curva e se estender à sua
frente a paisagem que foi um paraíso não só quando você a havia perdido,
mas no tempo presente em que você a apreciava com uma rara clarividência
infantil, sem pensar então que se repetiam em você as sensações da infância
de sua mãe, tal como se repetiam em seu rosto a forma e a cor dos olhos
dela ou a insinuação de doçura e melancolia do sorriso dela. O vale verde e
fértil do rio, repleto de hortas, romãzeiras, figueiras, cruzado de trilhas de
terra porosa sob a sombra côncava das árvores, choupos, álamos, faias,
salgueiros, bambus, uma vegetação encharcada, nutrida por uma terra tão
prenhe de fertilidade que recebia com uma delicadeza incomparável a
pisada das plantas humanas, cedendo um pouco sob o peso do corpo,
recebendo-o com boas-vindas tão hospitaleiras quanto as da brisa do no e
do rumor da água e das folhas das árvores.
Quero que me enterrem lá, não quero ficar sozinha quando morrer,
cercada de desconhecidos num cemitério tão grande como uma cidade, você
se lembrará que ela lhe dizia. Não me importo de morrer, mas não quero
que me enterrem aqui, onde vou morrer e ninguém me conhece, num
cemitério em que só haverá nomes de estranhos, como se eu vivesse outra
vez num desses prédios de apartamentos onde fui uma forasteira para todos,
como em todos os lugares onde vivi e nos quais também podia ter morrido,
uma forasteira, trancada em casa, esperando que os filhos voltassem durante
a tarde e que o marido voltasse já com noite fechada, reservado ou tagarela,
orgulhoso de seu trabalho ou falando mal das pessoas do escritório,
superiores e subordinados, nomes que escuto e com os quais me acostumo e
depois paro de escutar e esqueço tal como me acostumo com as cidades
novas para onde o trabalho dele nos leva e nas quais nunca tenho tempo de
me instalar de vez, nunca tenho o que mais gostaria de ter, coisas minhas,
móveis escolhidos por mim, hábitos, é disso que mais sinto falta, disso que
mais sinto saudade quando ainda não me sentia excluída do mundo dos
vivos, acomodar-me suavemente no passar do tempo, habituar-me com uma
casa e uma cidade nas quais me sentisse instalada, ocupando um lugar
seguro no mundo, como quando era criança ou mocinha e vivia no vilarejo,
e embora sempre tenha tido a cabeça fantasiosa e imaginasse viagens e
aventuras, ainda assim desfrutava da segurança de minha casa, de meus
irmãos, da presença de meu pai, da felicidade de me debruçar na janela do
meu quarto e ver o vale com as hortas e as ladeiras onde florescem
amendoeiras e macieiras, e no alto os cumes pelados dos morros, com
aquela cor de terra que é a mesma das casas do caminho para o cemitério
onde quero que me enterrem.
Tenho pena de ir embora da vida tão depressa e não ver meus filhos
crescerem, nem me sentar mais uma vez com minha irmã e contar e
recontar coisas na grande cozinha que dá para o jardim e o vale das
macieiras e para as ladeiras das hortas. Essas coisas me dão pena, e sinto
mais tristeza que medo, mas tem algo mais, com o que eu não contava, um
desejo imenso de descansar de noites ruins e angustiantes, de remédios,
crises súbitas, viagens em ambulância, quartos de hospital, tubos e
aparelhos me cercando. Antes imaginava que tudo isso terminaria um dia e
que eu poderia me curar, mas agora sei que não, se bem que todos me
digam que vou melhorar, que descobriram um novo remédio, já sei que o
tempo que me resta será exatamente como agora, ou talvez pior, muito pior,
à medida que o coração for enfraquecendo. O que antes era esperança de
me curar agora é um desejo muito forte de descanso e alívio, como na
juventude, quando eu tinha muito sono atrasado e me metia na cama e
cobria a cabeça com a colcha e apertava as pálpebras para dormir logo.
Cobria a cabeça e tapava a boca para conter o riso que estourava de repente
tal como a água da fonte pública quando se apertava para baixo, com força,
a bica de cobre ou de bronze e a água ecoava dentro da bilha, fresca e
profunda como boca de poço, faz tantos anos, quando ainda não havia água
corrente nas casas e as mulheres iam buscá-la com suas bilhas naquela
fonte, sempre rodeada de vespas, no alto da ladeira. Minha irmã queixava-
se de que, como não tinha quadris, a bilha cheia deslizava por suas pernas.
A água do verão — quem dera que me umedecesse agora mesmo os lábios
secos e rachados! a água porejando da pança fresca do cântaro, ah, se eu
pudesse ter essa frescura encostada nas faces, entrar no vestíbulo de minha
casa e perceber na sombra a umidade e a respiração dos poros do barro. E
isso que eu quero, é tudo o que desejo agora, ficar dormindo, ir me
perdendo no sonho, tal como quando me dão um tranquilizante, melhor
ainda, quando o injetam e quase percebo seu avanço pela corrente
sanguínea, seu efeito apaziguador por todo o meu corpo. As coisas se
apagam, os rostos que se debruçam sobre mim, as vozes queridas se
dissolvem, perdem-se muito longe, e a verdade é que preciso fazer um
esforço cada vez maior para não me deixar levar, eu também, tão
suavemente como minhas pálpebras descem sobre o globo ocular quando
pego no sono. As vozes de minhas duas filhas, seus rostos, tão parecidos e
tão diferentes, os rostos e as vozes confundindo-se na mesma sensação de
ternura e de despedida, as mãos que apertam as minhas, que procuram
disfarçadamente meu pulso quando fico tão imóvel como se já tivesse
morrido, já tivesse ido embora. Posso saber como será a vida de minha filha
mais velha, tal como sei que seu rosto de agora é o mesmo que continuará a
ter na maturidade, quando tiver chegado à minha idade, o rosto já não vai
mudar, quando pensar, que estranho, já estou com a mesma idade com que
minha mãe morreu, e se perguntar como eu teria sido nesse tempo futuro.
Minha filha mais velha terminará os estudos que já queria fazer quando mal
começava o primeiro grau, será professora, casará com seu namorado,
seguirá o caminho que já parecia traçado por ela mesma em criança, e do
qual nunca se afastou. Mas o que vai ser da menor, se tem apenas dezesseis
anos e ainda está como que assombrada e agradecida diante da variedade do
mundo, diante da riqueza e da confusão de suas imaginações e de seus
desejos, e certos dias parece que quer ser uma coisa, e outros, o contrário, e
olha tudo e se detém em algo que de súbito aprecia e já não se interessa por
mais nada, e não tem pressa nem urgência de nada, nem de ficar mais velha
nem de fazer um curso, nem de ter namorado e se casar. Vive como que
ainda flutuando, tão sem peso que é influenciada por qualquer coisa, como
eu vivia na idade dela, flutuando entre sonhos de fitas de cinema e os
romances que lia escondido de meu pai, todo dia imaginando uma vida
futura diferente para mim, cidades e países pelos quais viajaria, mas não
desgostosa com a clausura da aldeia, e sim desfrutando ao mesmo tempo da
casa tão querida que não verei mais, das trilhas do campo e da água nos
regos, da alegria de minhas amigas nas tardes de domingo, nas noites de
baile no verão, protegida pela bondade de meu pai e pelo carinho de minha
irmã, que pelo menos viverá mais que eu, e continuará cuidando de minhas
filhas quando eu morrer, ela que nunca teve marido nem sequer namorado,
que tinha os quadris tão estreitos que não conseguia apoiar a pança da bilha
quando voltávamos da fonte.
Você tentará em vão se lembrar de sua voz metálica, que há anos deixou
de visitá-la em sonhos; voltará a ter a sensação de que adivinha as palavras
que ela teria pensado, a sensação de que ela continua lhe dizendo no fundo
da sua consciência as coisas que gostaria que você soubesse e não teve
tempo de contar, os avisos que tanto lhe terão servido, que a terão ajudado
talvez a não cometer certos erros. Ou talvez ela tenha continuado a protegê-
la e guiá-la sem que você percebesse, presente e invisível na sua vida, como
as almas para quem sua tia acendia velas que boiavam em vasilhas de óleo
sobre os aparadores e as mesas de cabeceira, dando às sombras um tremor
de presenças fantasmas. Talvez ela tenha reaparecido em sonhos dos quais
você não se lembrava ao acordar e tenha lhe dito coisas que a salvaram das
piores situações de sua vida, nas quais se perderam tantos da sua geração,
vizinhos de bairro e colegas de adolescência que acabaram como mortos-
vivos e ficaram gelados com uma agulha no braço e os olhos abertos,
envelhecidos e aniquilados pela morte nos anos que deveriam ter sido os
melhores da juventude. Você poderia ter tido um destino como o de sua
prima, que depois de morta também a visitou em certos sonhos, que dividiu
com você os veraneios infantis no vilarejo e era quase idêntica a você
quando sua mãe morreu, as duas abraçadas no enterro, mas ela era sempre
mais atrevida, mais temerária em tudo, tanto nas brincadeiras de crianças
como nas investidas sexuais com os primeiros namorados, tanto na
excitação da velocidade em cima de uma moto como na tonteira de um
baseado, e mais tarde em coisas mais ousadas e perigosas, nas quais você
também podia ter caído, embora lhe dessem tanto pânico, quando você
percebia a inquietação dela sem motivo aparente e o brilho de ansiedade
que passou a existir para sempre nos olhos dela.
Você verá a planície com seu verdor de oásis, e as ladeiras onde se
penduram as casas em ruas empinadas, sustentadas por contrafortes
verticais ou rochedos nos quais se grudam heras e sarças e dos quais
sobressaem figueiras loucas. Por ali você subia junto com sua prima,
sempre atrás dela, assustada e ao mesmo tempo estimulada por sua valentia,
e vocês duas acabavam suadas e ofegantes, com os joelhos tão esfolados
como os dos garotos. Você escutará, antes de chegar, o ruído da água que
desce escondida nos regos e logo procurará, com seu olhar ansioso, a fileira
de ciprestes que marca o caminho até o cume pelado do morro e termina
diante das paredes escuras do cemitério, que têm a mesma cor áspera desta
terra nua, subitamente desértica, tão perto da água e do verdor do vale:
deserto e oásis, os picos gretados por leitos secos de torrentes, tingidos de
um vermelho de óxido, as casas mais altas já contagiadas por essa mesma
secura, todas abandonadas há muito tempo, com suas janelas sem postigos
nem vidraças e seus telhados caídos, com os muros de cor de greda, como
ruínas de adobe num deserto que vão voltando à sua origem primitiva de
terra ou areia. Lá em cima, no ponto mais alto, acima das últimas
amendoeiras e das casas em ruínas, no final do caminho sinuoso ladeado de
ciprestes, onde à noite se acendem umas poucas luzes, ali é que eu quero ser
enterrada, junto com as pessoas da minha família e com os meus vizinhos
da vida inteira, entre os mesmos nomes que escutei desde criança, no
cemitério tão pequeno que nós todos conhecemos, e do qual se descortinam,
com uma vastidão tão nítida que dá tonteira, as ladeiras e o vale e as casas
dependuradas do vilarejo.
Você está voltando e, bem antes de aparecer numa placa ao lado da
estrada o nome que desde menina você adorava, já estará transtornada pelo
regresso, hipnotizada por ele, pela grande corrente do tempo que a levará ao
passado numa velocidade ainda maior que a do automóvel nos trechos
planos e nas retas da autoestrada, ainda perto de Madri, perto de sua vida
presente, a várias horas e centenas de quilômetros da chegada, na qual você
já estará totalmente concentrada, seu rosto mudando de expressão sem que
você perceba, parecendo-se com quem você era aos quatro ou cinco anos,
na idade das suas primeiras lembranças dessa viagem, e também com quem
você era - aos dezessete, quando sua mãe morreu. Ela apertou sua mão em
cima do lençol amarrotado e revolto da cama do hospital e disse alguma
coisa que você não entendeu e na verdade mal saiu dos lábios dela, e a mão
úmida se soltou suavemente da sua, com certa delicadeza, e já não foi
propriamente a mão conhecida e acariciada tantas vezes de sua mãe,
apertada em tantas noites de agonia e insônia, mas a mão abstrata de um
cadáver, com uma textura já neutra e inerte quando você encostou nela o
seu rosto minado pela exaustão e pelas lágrimas, chamando-a pela última
vez, negando-se a aceitar que ela tivesse ido embora assim, tão sem avisar,
em poucos segundos, como quem procura partir em silêncio para evitar aos
que ficam a angústia de uma longa despedida.
Eu espio o tempo todo, observo-a. Dirijo e me viro para você um
instante percebendo em seu rosto a expressão nova que a viagem vai lhe
impondo, e assim descubro um pouco de você quando ainda faltava muito
para conhecê-la, dedico-me a uma arqueologia secreta do seu rosto e da sua
alma. O telefone tinha tocado numa hora incerta, quase à meia-noite, e eu
tinha passado a ligação para você, e enquanto você escutava o que alguém
lhe dizia e ia concordando o seu rosto já não era o mesmo de um minuto
antes, de qualquer minuto dos anos em que vivo com você.
A sua vida interior é um país do qual você me contou muitas coisas,
mas que nunca poderei visitar. O passado, as vidas anteriores, os lugares de
onde você partiu para não voltar, as fotos das férias de verão. A campainha
do telefone quebrou o silêncio, o sossego intacto de casa, e quando você
desligou após escutar e assentir e fazer perguntas em voz baixa o tempo
antigo irrompeu na sua vida atual, na minha, envolveu a você e a mim, sem
que eu ainda soubesse, na sua névoa de doçura e distância, de perda e
remorso. A irmã de minha mãe, lembra-se, que tanto cuidou de nós quando
ela morreu, agora está morrendo de câncer, não lhe resta nem uma semana,
poucos dias, diz o meu primo, o médico, o irmão daquela minha prima que
morreu tão moça.
Você agradecerá a dor que sente porque ela compensa em parte o
remorso de ter passado tanto tempo sem ir visitá-la, apenas lembrando-se
dela. Para você bastava saber que gosta dela, a única presença cálida e firme
na sua vida durante muitos anos, sua mãe por delegação ou à sombra da
outra mãe, com quem se parecia muito, embora sem vestígio do que ela
tinha de atraente, uma versão anterior e mais rude da irmã mais moça. Não
precisava ir vê-la nem telefonar, pois ela estava dentro de você de um modo
quase tão profundo como a recordação de sua mãe, mas você não pensava
que ela não recebia sinais visíveis desse amor que tanto a ligava a ela e que,
dentro de você, permanecia tão oculto como enraizado. Você perceberá
tarde demais que não fez nada para acompanhá-la nos últimos tempos
amargos da vida solitária que levava, na casa tão grande onde já ninguém ia
passar os verões. Sempre havia outras coisas para fazer, na agitação da sua
vida, credores mais exigentes. Ela parecia estar lá para sempre, na mesma
pose, tal como permanecia na mesma casa, tão invariável quanto ela, tão
disposta a recebê-la sempre com a mesma lealdade, por mais tempo que
passasse. Ela, a casa, o vilarejo, pertenciam a um reino intangível, não
afetado pelo esquecimento nem pelo tempo, nem mesmo pelas suas longas
ausências. Se você se afastasse um dia, uma hora, das urgências
sobressaltadas do trabalho, alguma desgraça poderia lhe acontecer; se
deixasse de ver um amigo durante algum tempo temia tê-lo perdido; nem no
amor nem no cuidado consigo mesma você deixava as coisas ao acaso, e
nem se acomodava com a rotina, de modo que em quase todos os seus atos,
sentimentos e desejos havia um fio de ansiedade, que facilmente
degenerava em angústia. Você se despojou de tudo quando sua mãe morreu
e quebrou-se da noite para o dia a ordem da sua casa, a tal ponto que já não
era capaz de confiar na permanência das coisas, e usufruía do que tinha com
remorso e sentimento de perda, achando que tudo era provisório, e quando
conseguia uma coisa, um trabalho, uma amizade, uma não conseguia
acreditar que isso fosse seu de verdade, ou tivesse direito a uma posse
tranquila. Por isso sempre se entregava ao desejo com a veemência da
primeira e da última e, embora gostasse de enfeitar os lugares onde vivia
com objetos escolhidos a dedo, também deixava grandes espaços vazios, de
modo que parecia ter sempre vivido ali onde estava, pela presença cuidada
das coisas e pela íntima relação delas com você, mas também parecia que
acabava de chegar, ou que a qualquer momento iria embora. Em você e em
tudo o que lhe dizia respeito adivinhava-se a intenção do que foi
cuidadosamente escolhido e a consistência frágil do que pode se quebrar ou
se perder, do que é fruto das conjunções do acaso.
Só o passado distante permanecia sempre firme, a terra estrangeira e
muito anterior à minha chegada, da qual você tanto me falava e à qual eu
nunca poderia ter ido com você, porque ficava não num ponto acessível dos
mapas, mas numa região vedada do tempo, e as três sílabas mouriscas do
nome dessa terra não descreviam um lugar, eram apenas uma fórmula
mágica que não podia ecoar na minha memória, embora fosse a substância
mesma da sua: mas bastou a campainha de um telefone à meia-noite para
que a pressa e a morte e a culpa invadissem aquele reino estático, e agora
você se dá conta de que cada dia, cada hora, cada minuto o ameaçam, e olha
de soslaio para o velocímetro e para o relógio do painel do carro, calcula
quantos quilômetros faltam, os dias e as horas que restam de vida à sua tia,
a qual você não viu nos últimos anos, a qual você imaginava tão a salvo da
velhice e da morte como naquela foto em preto e branco em que era jovem
e está com vestido de verão, de braço dado com sua mãe, as duas tão
parecidas e no entanto uma delas elegante e atraente, a outra não, as duas
rindo, inocentes sobre um futuro em que não existem a doença e a morte e
em que nem você nem eu somos sequer possibilidades.
A medida que a viagem prossegue os nomes da estrada evocam lugares
da infância, e o espaço transforma-se em tempo projeta-se em duas
dimensões simultâneas, o "agora mesmo" imperioso de chegar o quanto
antes e o "ontem" recuperado e estático, contido nos nomes das placas que
indicam os quilômetros, na recordação viva e precisa de outras viagens.
Ao olhar pela janela e reconhecer paisagens que você tinha visto em
criança seus olhos adquirem sem que você note o olhar daquela época. É o
começo das férias de verão, e a emoção e a impaciência de chegar são
muito mais fortes do que o cansaço de tantas horas no carro, cada nome à
beira da estrada e cada placa são uma promessa que se repete todo ano e no
entanto não perde seu conteúdo claro e absoluto de felicidade. Você não se
lembra da sucessão dos verões, embora fosse possível organizá-los segundo
os episódios de sua infância e adolescência, concluídas de repente num dia
irrespirável de julho no quarto de um hospital, diante do rosto de cera da
mulher que acabava de morrer e, contudo, já estava deixando de parecer sua
mãe. Na sua memória das coisas distantes todos os verões se resumiam a
um só, longo e sereno como o fluir de um grande rio, e todas as viagens
eram variações em torno de uma experiência idêntica de aproximação do
paraíso. Nas lembranças mais antigas você está sentada na frente, no colo
de sua mãe, olhando a estrada e adormecendo aos poucos, olhando o perfil
de seu pai que dirigia e fumava ou virando-se para os seus irmãos, que
brigavam nos assentos de trás e sem a menor dúvida tinham certo rancor de
você, menina pequena e viajando nos braços da mãe, que ainda era muito
jovem e não estava doente, ou ainda não sabia ou pelo menos não deixava
que os seus irmãos e você soubessem. Mas talvez já naquela época,
enquanto a levava no colo e ficava distraída, estivesse notando no peito as
batidas difíceis do coração, estivesse pensando que ia morrer não a veria
adulta, não chegaria a saber o que ia ser de você, que essa viagem de verão
ao vilarejo onde ela nascera poderia ser a última. Quando o carro saísse da
última curva, ao mesmo tempo que você descobria o paraíso das hortas nas
terras baixas e as casas em escadinha na ladeira, ela levantaria os olhos para
o cume avermelhado e desértico onde está o cemitério e pensaria, ali é que
eu quero ser enterrada, com as pessoas de quem gosto e que me conhecem,
não num desses cemitérios de Madri cheio de mortos anônimos.
Você verá o nome, enfim, à entrada do vilarejo, iluminado pelos faróis
do carro, e então sentirá todo o enjoo e o cansaço da viagem, e apenas um
vestígio da velha felicidade de chegar. Agora é inverno e noite cerrada, e
mesmo que de longe as luzes tenham lhe dado a sensação de que tudo
permaneceria intacto, pouco a pouco você vai vendo que as coisas já não
são propriamente familiares, agora é de cimento a pista que você lembrava
ser de pedra, com tufos de capim nos interstícios dos seixos redondos, agora
há edifícios desconhecidos e invasores que desfiguram esquinas e escondem
panoramas, agora está fechada e decrépita a venda aonde sua mãe e sua tia a
mandavam em criança fazer as compras da casa, e onde você comprava
bolinhos e pequenas guloseimas, refrigerantes e picolés no verão. Minha
prima era mais afoita que eu, e quando podia roubava umas moedas do
bolso do avental de sua mãe e me levava para comprar sorvetes e tabletes
de chocolate. Observo com muita atenção, olho as coisas que você me
aponta e a expressão do seu rosto quando nos aproximamos por uma rua
íngreme e estreita da casa onde sua tia está agonizando, mas tenho
consciência de que não vejo o mesmo que você, os fantasmas que a
receberam assim que você chegou e agora a escoltam ou espreitam à
medida que subimos uma ladeira pavimentada de cimento, uma rua com
pouca luz e muitas casas fechadas.
Já estamos chegando: a casa, no fim da ladeira, à qual você chegava
ofegante de excitação, correndo rua acima para passar na frente dos seus
irmãos, empurrando com as duas mãos infantis a grande porta que só se
fechava à noite, na hora em que todos iam deitar. Agora a porta também
está entreaberta, e há luzes em todas as janelas, luzes que no meio da
escuridão invernal dão uma ideia de noite em claro. Você empurrará a porta
temendo ter chegado tarde e por um instante terá a impressão de descobrir
expressões de reprovação nos rostos cansados que se viram para recebê-la,
tão envelhecidos como se uma mesma doença os tivesse devastado. Escuto
nomes, dou beijos, aperto mãos, troco palavras em voz baixa, sou o
desconhecido que eles aceitam como um dos seus porque venho com você,
e ao participar da sua vida também pertenço a este lugar, ao cansaço pesado
dos que estão há várias noites velando a doente, e ao luto antecipado. Há
um garoto de onze ou doze anos, um jovem que deve ser pai dele e aperta
minha mão com um vigor calorosíssimo de boas-vindas e amizade. E meu
primo, o médico, você me diz. Ter vindo aqui na sua companhia me une a
você de um modo novo, não só à identidade isolada da mulher adulta que
conheci não faz tantos anos mas também a todo o tempo de sua vida e aos
rostos e aos lugares de sua infância, e também aos seus mortos, para os
quais esta casa aonde acabamos de chegar é como um santuário: há uma
foto grande da sua mãe, e outra dos seus avós maternos, distantes e solenes
como num relevo funerário etrusco, e sobre a antiquada televisão que
provavelmente é a mesma em que você via em criança os desenhos
animados está a cara risonha de sua prima numa foto colorida.
Gosto de ser aqui unicamente a sua sombra, aquele que veio com você:
meu marido, você diz, apresentando-me, e tomo consciência do valor dessa
palavra que é meu salvo-conduto nesta casa, entre essas pessoas que
conheceram você e lhe deram seu afeto muito antes do nosso encontro, e ao
ver como tratam você, a familiaridade que logo estabelecem apesar do
tempo que passou desde a última vez em que você veio, meu amor por você
se dilata para abarcar essa amplidão da sua experiência, dos seus laços de
ternura e das lembranças, conexões capilares que também se referem a mim
e me alimentam, acrescentam esse seu passado que até agora não me
pertencia, essas fotos de mortos desconhecidos que esperavam por você
com a mesma lealdade dos móveis velhos e das paredes caiadas dos
quartos. Como está tudo tão velho, você pensará com tristeza, novamente
com uma ponta de remorso por ter demorado tanto, por viver numa casa
muito mais confortável do que esta em que sua tia passou os últimos anos
de vida, com uma televisão que é a mesma que havia quando você gostava
de se deitar no sofá e ver os desenhos animados, com um fogareiro elétrico
sob a mesinha coberta por uma toalha e um radiador suplementar que não
conseguem dissipar de vez a sensação imediata do frio subindo e como que
porejando dos ladrilhos, os mesmos ladrilhos de antigamente, só que mais
gastos, alguns já soltos, ecoando sob os passos de alguém: tudo muito
velho, mas não antigo, subitamente despojado da beleza enganadora que o
envolvia na recordação, as cadeiras forradas de plástico, uma novidade
quando você era criança, o sofá marrom imitando couro, a Imaculada
Conceição de estuque, com o rosto fino e pálido e a capa azul-clara. Que
fim levará tudo isso amanhã, depois do enterro, quando se fechar a casa
onde mais ninguém viverá, desconfortável demais para ser habitada e cara
demais a reforma que seria preciso fazer. Teria de ser toda demolida, diz
alguém ao meu lado, um dos seus parentes, nesse tom com que se fala de
coisas triviais para distrair o tédio de um velório, ficará fechada e irá
desabando pouco a pouco, como tantas casas desabitadas do vilarejo.
Há um ar insone e cansado de espera na casa, a espera da chegada lenta
da morte, aproximando-se por uma porta entreaberta, a que separa a sala de
estar do quarto da mulher que agoniza, diz-nos o homem de cabelo branco e
expressão bondosa e abismada, outro irmão de sua mãe e sua tia, o pai do
médico, e também de sua prima morta, cuja foto às vezes ele fica olhando
na monotonia da espera, uma moça jovem e muito atraente de olhos verdes
e cabelo crespo, brilhante, castanho, com feições que lembram as suas,
talvez o queixo bem marcado e o grande sorriso, a pele cor de canela. A
sala de estar é uma sala de espera da morte, e nela sou um espião, espião do
que você faz e olha e diz e talvez sinta, perto de mim, apertando minha mão
no sofá, e ao mesmo tempo distante, quase desconhecida, perdendo-se nas
evocações deste lugar, de cada coisa que vejo pela primeira vez e que para
você é uma relíquia da infância, conversando baixinho com essas pessoas
que a conheceram desde que nasceu, e nas quais você percebe de verdade e
em toda a sua crueza o passar do tempo na vida delas e na sua.
Não chegamos a ver tal como são aqueles que eram adultos jovens
quando éramos crianças, sobrepomos às suas cãs e rugas de agora o brilho
distante que tinham para nossos olhos infantis. No velho que me abraçou ao
me cumprimentar como se me conhecesse desde sempre você continua
vendo, por trás das marcas da idade, o rosto jovem e enérgico de seu tio, tão
parecido com as irmãs dele, sua mãe e sua tia moribunda, o irmão caçula
que agora será o único sobrevivente e talvez tenha ficado de cabelo branco
quando a própria filha morreu, antes do tempo, atribuindo-lhe esse peso do
luto com que agora ele aguarda a nova chegada da morte, sentado pertinho
da porta do quarto, querendo ouvir se a irmã está acordando do sono de
morfina, pelo menos que dê tempo para saber que você chegou, para vê-la
pela última vez. Ela passou o dia inteiro perguntando por você, se tinha
telefonado, se estava mesmo a caminho.
Agora o médico que estava com ela aparece na soleira, com uma
expressão que lhe assinala que você pode entrar. Ele se inclina um pouco
para lhe dizer baixinho que ela acordou e acaba de perguntar por você. Fico
atrás, inseguro, amedrontado covardemente com a agonia que vou
presenciar se cruzar esta porta, mas você me leva, apertando minha mão
com muita força, e seu tio me incita a segui-la pondo em meu ombro a mão
dele, grande e afável. Com o mesmo estremecimento, não de dor mas de
inaceitável estranheza com que há vinte anos você afastou a cortina de
plástico da cama onde sua mãe acabava de morrer, você entrará no quarto
na penumbra, que cheira intensamente a velhice, doença, remédios, mas
também ao frio dos invernos de antigamente, e a essa coisa ácida e pouco
saudável que devem ser a transpiração da morte, as últimas secreções e
baforadas de ar deste corpo que jaz na cama, marcando apenas seu volume
sob os cobertores, encolhido numa rígida pose fetal, assustadoramente
reduzido. Seu tio inclina-se sobre ela e afasta o cabelo de seu rosto e
acaricia suas faces com um gesto de ternura que é muito mais jovem do que
ele mesmo: talvez acariciasse assim o rosto da própria filha no berço. Olhe
quem veio de Madri, sussurra-lhe, e depois não vá dizer que queríamos
enganar você.
As pálpebras sem pestanas mal se levantam, mas há um brilho de
pupilas na penumbra e um ríctus quase risonho na boca volumosa, na qual
os dentes postiços foram ficando maiores à medida que o rosto se consumia.
A mão se levanta muito devagar para você, ossos e veias azuis e pele lívida,
encontra a sua mão, continua procurando e chega ao seu rosto, que se enche
de lágrimas, ela o reconhece apalpando-o como a mão de um cego.
Murmura seu nome usando um diminutivo que nunca ouvi e que é com
certeza o que sua mãe e ela lhe davam quando você era bem pequena, e
você se senta na beira da cama, abraça-a, mergulhando no cheiro da doença,
beija o rosto irreconhecível, duros ossos de morte sob a pele translúcida,
chama-a baixinho, como querendo acordá-la de vez, despertá-la do sono
letal da agonia e da morfina. Você se lembrará que nesta mesma cama
muitas vezes a abraçava em busca de calor nas terríveis noites de inverno de
sua infância; que com dezessete anos você tornou a fazer o que não tinha
feito desde criança e procurou este mesmo abrigo de noite, no dia em que
enterraram sua mãe.
Por instantes eu desapareci, tornei-me invisível confundindo-me com o
canto de sombra onde permaneço em pé, nem hóspede nem espião,
presença muda de outro mundo e outro tempo. Mas ela, a desconhecida que
só cheguei a ver na agonia, embora parecesse estar de olhos semicerrados,
me viu, me aponta com sua mão de cadáver, num gesto inseguro, a mão que
foi tão quente e segura para você como as de sua mãe, e que você reconhece
na sua forma de antigamente sob o espectro de mão em que se transformou.
Você me olha sorrindo quando ela diz alguma coisa que não consigo ouvir,
a voz áspera e murmurada que quase não se diferencia de sua respiração
ofegante, diz que eu me aproxime, quer ver se sou tão bonito como você
tinha lhe contado.
Eu me aproximo com respeito, com um início de incerteza e
acanhamento, como quem se move no santuário de uma religião que não é a
sua. As frestas recosturadas das pálpebras entreabrem-se um pouco mais.
Mostro-me ao inclinar-me sobre uma vida e dois olhos que estão se
apagando e com meus lábios encosto numa pele lisa e seca que daqui a
poucas horas ou poucos minutos estará gelada. O rosto tão perto do meu é o
de uma mulher desconhecida que já se perde nos arredores escuros da
morte, e a voz rouca que quase não escuto é sobretudo um estertor, uma
tentativa angustiante de respiração em que se desfazem as palavras apenas
formuladas pelos lábios incolores e secos.
Mas na mão que aperta longamente a minha sinto como se me chegasse
através do tempo e da morte a pressão afetuosa da mão de sua mãe, como se
ela também tivesse conseguido me ver com o derradeiro olhar da irmã, sua
tia, e ao nos ver juntos tantos anos depois conseguisse dissipar uma parte de
sua incerteza dolorosa sobre o seu futuro nesta vida em que ela não estaria
ao seu lado. Nas estelas funerárias gregas que vimos juntos no Metropolitan
Museum de Nova York os mortos estreitam serenamente as mãos dos vivos.
A mão que aperta a minha está um pouco suada, e sua força logo desfalece,
ao mesmo tempo que as pálpebras se fecham de vez. Sinto pânico, de
repente, nunca vi ninguém morrer, afasto-me um pouco e os olhos voltam a
se entreabrir, tão fracos como se escuta um fio de voz e se forma um início
de sorriso nos lábios da mulher agonizante, da mesma cor amarelada de seu
rosto. A mão se solta de vez da minha, a rouquidão da voz vai se tornando
um longo gemido, e o médico me afasta suavemente, segurando uma
seringa hipodérmica. Tenho de lhe dar mais uma dose de morfina antes que
a dor volte mais forte. Mas ela mexe a cabeça de um lado para outro, o
cabelo ralo e grisalho grudado nas têmporas, com redemoinhos e
desgrenhados por terem passado muito tempo em cima dos travesseiros: diz
que não, não quer voltar para um sono do qual talvez já não acorde, e
sussurra algo, o médico se debruça sobre seu rosto para decifrar o que está
repetindo. Prima, está chamando você, pede que venha aqui. Chama-a pelo
nome infantil com que ninguém a chamou desde que você era menina, e
quando você está perto ela abre totalmente os olhos para se assegurar de
que era você mesma e passa a mão em seu rosto, umedecendo os dedos com
as suas lágrimas, e com a outra quer pegar as suas duas mãos, acariciando-
as e retendo-as, roçando o dorso com suas unhas quebradas, tentando se
levantar para lhe dizer alguma coisa no seu ouvido ou lhe dar um beijo. A
mão não solta as suas, mas após um leve estremecimento já não tenta
apertá-las, e os olhos abertos já não a olham. Partiu sem que você
percebesse, tal como sua mãe partiu, se bem que desta vez você não
estivesse dormindo, partiu tão furtivamente que agora você só sente o
estupor de que a morte possa acontecer de modo tão silencioso, tão
instantâneo, como uma tênue ondulação na água de um lago.
Quem poderá dormir esta noite em que já começou o alvoroço
silencioso que prenuncia o enterro, dirigido por mulheres especialistas nos
rituais práticos do luto, vestir a falecida antes que comece a enrijecer,
encomendar o caixão e o catafalco sobre o qual ele ficará e os círios e o
grande crucifixo que darão à casa por algumas horas o ar sombrio de
santuário, lugar de culto ao tempo passado e à morte. Ouço no escuro a sua
respiração suave e sei que você não está dormindo, embora esteja há muito
tempo calada e não se mexa para não me incomodar. Estranho a cama com
os lençóis tão frios e o quarto que cheira levemente a umidade e a abafado,
mas você deve estar estranhando mais ainda, pois não voltou a deitar aqui
desde o final de sua adolescência, a primeira cama e o primeiro quarto onde
você dormiu sozinha quando a tiraram do berço e do quarto de seu pais,
onde conheceu o pânico e a insônia das noites de tempestade, quando o
estrondo dos trovões estremecia as vidraças da janela e um relâmpago com
seu clarão branco e súbito a deixava cega, onde você temia dormir e sonhar
com o filme de terror que tinha visto junto com sua prima no cinema de
verão, as duas encolhidas debaixo dos lençóis, conversando noites inteiras,
explorando as confidencias de uma intimidade física secreta e despudorada,
a chegada da primeira regra e dos primeiros namorados, as danças
agarradas com filhos de outros veranistas nas festas de barraquinhas do
vilarejo, na penumbra pecadora e avermelhada das primeiras discotecas
onde vocês se aventuravam, você sempre atrás de sua prima, que a fez
conhecer pela primeira vez o enjoo da cerveja e dos cigarros e não parecia
respeitar nenhum dos limites que você não ultrapassava, nem o do pudor
nem o do perigo. Quem diria na época que os destinos de ambas seriam tão
diferentes, ela, tão parecida com você, nascida no mesmo momento que
você, ia aos poucos se perder em labirintos de escuridão e infortúnio dos
quais não voltou e nos quais também teria sido muito fácil você cair, não de
súbito, mas deixando-se levar lentamente, derivando, igual a ela, que num
ano já não voltou ao vilarejo para veranear com os pais e o irmão, aquele
que depois virou médico, tão sério e dócil desde menino que sempre foi o
contraponto exato dela.
Os olhos verdes, na foto que o pai dela ficava olhando em silêncio,
como fazendo-lhe uma pergunta cuja resposta continuará esperando para
sempre embora saiba que não a obterá, o cabelo crespo, a pele tostada, loura
de um sol de piscinas e verões, as faces ainda carnudas da adolescência, o
sorriso como expressão de complacência e desafio, o queixo tão parecido
com o seu. Estava muito magra da última vez que a vi, mas ainda
lindíssima, tão alta, com o cabelo crespo caído no rosto e esse brilho nos
olhos verdes e o mesmo riso alucinado de quando fazíamos juntas alguma
traquinagem. Mas estava muito pálida e falava num tom arrastado que eu
nunca tinha ouvido, e embora fosse casada e já tivesse um filho continuava
me contando as mesmas loucuras da época em que começávamos a sair
com os garotos no vilarejo. Contou-me que tinha conhecido um cara num
trem e poucos minutos depois se fechava com ele no banheiro para darem
uma trepada.
Estávamos na lanchonete, e ela fumava sem parar, olhava sempre de
soslaio, agitadíssima, contendo-se a muito custo, porque se via que estava
contente ao meu lado mas que também tinha muita pressa de ir embora, em
busca de alguma coisa que lhe fazia muita falta, que a fazia roer as unhas e
acender um cigarro atrás do outro, e também se notava que nós duas, apesar
do carinho e das lembranças, já não nos parecíamos, já nos faltavam
assuntos de conversa, referências comuns, e ficávamos caladas e ela voltava
a olhar para a rua ou apagava no cinzeiro o cigarro recém-acendido, não o
apagava, esmagava-o torcendo. Combinamos que no verão seguinte
viríamos juntas ao vilarejo, mas não pude vir porque tinha muito trabalho, e
ela também não apareceu, e nunca mais a vi. Até os pais acabaram
perdendo o seu rastro. Quando meu primo soube em que hospital estava, já
não havia mais jeito. Uma ambulância tinha-a recolhido na rua. Disse-me
que estava tão desfigurada que só a reconheceram mesmo pelos olhos.
Você me abraça, apertando-me com força, como quando está dormindo
e tem um pesadelo, enrolando seus pés gelados nos meus, transida do
mesmo frio que sentia em criança, um frio antigo, de invernos muito longos
e casas sem calefação, preservado nos quartos desta casa tal como as fotos
dos mortos e as sensações mais vívidas de uma memória anterior à razão,
mas já visitada pela melancolia, pela intuição gradual de uma perda
irremediável e futura: o medo súbito de crescer que toda criança tem, a
intuição cruel e vinda de lugar nenhum de que seus pais não serão sempre
jovens, envelhecerão e morrerão. E também o medo que a atazanava nas
noites seguintes à morte de sua mãe, quando você não se atrevia a sair do
quarto para ir ao banheiro porque temia vê-la na sua frente, no corredor em
sombras, despenteada e com sua camisola de doente, como quando voltou
para casa e lá só ficou uns dias antes de ser novamente hospitalizada. Você
fechava os olhos e receava que, ao abri-los, ela estivesse parada na sua
frente, ao pé da cama, pedindo-lhe alguma coisa em silêncio, e se você
sentia que ia pegar no sono tinha mais medo ainda de que ela aparecesse no
seu sonho, e acordava num sobressalto de angústia, imaginava ouvir ruídos
de portas se abrindo ou de passos, e voltava a sentir a dor cruel da morte
dela e a espantosa ausência em que agora você vivia, e envergonhava-se de
ter tanto medo da volta de sua mãe, de vê-la agora transformada em
fantasma.
Chegam ao quarto, lá de baixo, rumores de conversas e ruídos de
passos, do motor de um carro, da campainha de um telefone, vozes
masculinas que dão instruções, objetos volumosos deslocados ou
depositados no chão. Afastam móveis e abrem espaço para o caixão. Mas
você não quer se abandonar a esse pensamento, resiste em imaginar o rosto
de sua tia morta, estragado não só pelo câncer mas também por uma velhice
que sua mãe não atingiu, e por isso ela permanece tão invulnerável nas
recordações como nas fotografias, uma mulher delicada e jovem para
sempre, pois para você quase se apagaram as imagens da época da doença,
tal como por um estranho acaso você não conserva fotos dos últimos anos
dela, de modo que agora a enxerga na invariável juventude que lhe atribuía
quando era garota e ainda ignorava que as pessoas mudam e envelhecem, e
finalmente morrem. E assim é que também a vejo, espião atento e
indagador da sua memória, que gostaria que fosse tão minha como a sua
vida presente. Não posso imaginar como seria agora a sua mãe se não
tivesse morrido, uma senhora de sessenta e tantos anos, corpulenta,
provavelmente de cabelo pintado. Vejo-a como você a vê, como às vezes
ela aparece nos seus sonhos, a mãe jovem que ainda conserva um sorriso
gracioso de mocinha, cuja sombra às vezes intuo em seus lábios, tal como
posso imaginar que o olhar dela transparece no seu, e que dela vêm,
ondulações na superfície do tempo, a sua propensão à melancolia e ao
sentimento de provisório e o seu jeito de se iludir com o novo, o cuidado
com que arruma as coisas ao seu redor, a sua dedicação por esta casa onde
ela e você foram meninas, por esta paisagem de oásis com um fundo de
morros desérticos onde ela quis descansar, para estar sempre na companhia
dos seus, dos que foram se indo aos poucos e se juntando a ela no pequeno
cemitério de muros cor de terra, primeiro a sobrinha, que morreu mais moça
ainda e permanece protegida contra o tempo na foto em cima da televisão,
agora a irmã, esta noite, outro nome acrescentado à lápide do panteão da
família, que você olhará amanhã durante o enterro pensando talvez pela
primeira vez, sem que eu saiba, sem que você queira me dizer, quando eu
morrer também quero ser enterrada ao lado delas.
Ó tu que sabias

Um dia desaparecem, perdem-se e ficam apagados para sempre, como


se tivessem morrido, como se tivessem morrido há tantos anos que já não
subsistem na lembrança de ninguém, não há sinais tangíveis de que tenham
estado no mundo. Alguém chega, irrompe subitamente numa vida, nela
ocupa algumas horas, um dia, a duração de uma viagem, transforma-se em
presença assídua, tão permanente que já é óbvia e não nos lembramos mais
do tempo anterior à sua aparição. Tudo o que existe, mesmo que por poucas
horas, parece em seguida imutável. Em Tânger, no escritório escuro de uma
loja de tecidos, ou num restaurante de Madri, ou na cafeteria de um trem,
um homem conta a outro fragmentos do romance de sua vida e as horas do
relato e da conversa parecem conter mais tempo do que cabe nas horas
comuns: alguém fala, alguém escuta, e para ambos o rosto e a voz do outro
assumem a familiaridade de algo que se conhece desde sempre. E no
entanto, uma hora ou um dia depois esse alguém já não está ali, e nunca
mais estará, não porque morreu, embora possa ter morrido e quem tenha
ficado tão perto dele não chegue a saber, e anos inteiros de presença
calcificados pelo hábito se dissolvem no nada. Durante catorze anos, desde
30 de julho de 1908, Franz Kafka foi pontualmente ao seu escritório da
Sociedade para a Prevenção de Acidentes de Trabalho em Praga, e de
repente, num dia do verão de 1922, saiu à mesma hora de sempre e nunca
mais voltou, porque tinham lhe dado a licença definitiva por motivos de
saúde. Desapareceu com o mesmo silêncio com que havia ocupado por
tanto tempo sua mesa de trabalho impecável, onde numa das gavetas
guardaria, trancadas à chave, as cartas que Milena Jesenska lhe escrevia, e
no seu armário continuou pendurado por algum tempo, depois de seu
desaparecimento, o manto velho que Kafka reservava para os dias de chuva,
e pouco depois o manto também desapareceu, e com ele o cheiro peculiar
que identificara a sua presença no escritório por catorze anos.
O mais sólido se dissolve, o pior e o melhor, o mais trivial e o que era
necessário e decisivo, os anos que alguém passa trabalhando tristemente
num escritório ou atormentado pela indiferença e pela distância numa vida
conjugal, a lembrança da viagem a uma cidade onde vivemos ou à qual
prometemos voltar ao fim de uma visita única e memorável, o amor e o
sofrimento, até mesmo alguns dos maiores infernos da Terra se apagam
após uma ou duas gerações, e chega um dia em que não resta nada e nem
uma só testemunha viva capaz de recordar.
Em Tânger, o senhor Salama dizia que foi visitar o campo da Polônia
onde as câmaras de gás tinham engolido sua mãe e suas duas irmãs, e que
só havia uma grande clareira num bosque e uma placa com um nome numa
estação de trem abandonada, e que o horror de que já não restassem
vestígios visíveis estava porém contido nesse nome, nessa placa de ferro
oxidado balançando numa plataforma, e mais longe nada existia, só a
vastidão da clareira e os pinheiros gigantes contra um céu baixo e cinza e
uma chuva silenciosa, dissolvida na névoa, pingando da calha da única
marquise da estação. Nada mais que uma grande clareira circular num
bosque, que podia ser o resultado de um antigo desequilíbrio geológico, da
queda de um meteorito. Era um campo tão pouco importante que quase
ninguém sabia seu nome, disse o senhor Salama, e pronunciou uma palavra
confusa que devia ser polonesa: mas o nome Auschwitz também não
significava nada para Primo Levi na primeira vez que o viu escrito na placa
de uma estação. Num lugar assim, longe dos campos principais, era mais
fácil os deportados se perderem, seus nomes desaparecerem dos registros
minuciosos que os alemães sempre faziam, com o mesmo zelo
administrativo e fanático com que organizavam seus planos colossais de
transporte em trem de centenas de milhares de prisioneiros no meio dos
bombardeios dos Aliados e dos desastres militares dos últimos meses da
guerra.
Havia trilhos mal visíveis sob o mato úmido, trilhos enferrujados e
dormentes podres, e uma muleta do senhor Salama esbarrou ou ficou
enganchada num deles e ele quase caiu, gordo e desajeitado e humilhado,
na mesma terra na qual morreram sua mãe e suas duas irmãs, pela qual
andaram ao chegar ao campo, ao descer do trem que as levara como gado
para o matadouro, três rostos e três nomes familiares no meio de um
multidão abstrata de vítimas desconhecidas. Quem o segurou foi o guia,
esse sobrevivente que o levara num carro velho até lá, e indicara as formas
pouco visíveis das paredes, os retângulos de cimento sobre os quais
existiram os barracões, uma espécie de mureta baixa de tijolos na qual
ninguém que não conhecesse muito bem o lugar repararia, e que era tudo o
que restava do pavilhão onde havia os fornos crematórios, explodidos pelos
alemães no último instante, quando já fazia semanas que toda noite o céu se
avermelhava no horizonte a leste e a terra tremia com os canhonaços cada
vez mais próximos da artilharia russa. Dezenas de milhares de seres
humanos amontoados ali por quatro ou cinco anos, descendo nessa estação
dos vagões de gado e enfileirando-se nas plataformas de cimento, ordens
berradas em alemão ou polonês e gritos de dor e eternidades de desespero,
ecos de gritos e uivos perdendo-se na fantástica densidade das coníferas,
marchas militares e valsas tocadas por uma orquestra espectral de
prisioneiros, e de tudo aquilo nada restava, só uma clareira num bosque,
entre o verde molhado pela garoa, os altos pinheiros escuros e o nevoeiro
apagando tudo ao longe, as paragens que os cativos veriam diariamente
pelas cercas de arame farpado, sabendo que não voltariam a pisar o mundo
exterior, que estavam tão excluídos da lista dos vivos como se já tivessem
morrido.
Que fim terá levado aquele homem magro, fugidio, prestativo, que
acompanhou o senhor Salama ao lugar onde existiu o campo, que escolheu
para si mesmo o estranho destino de guardião e guia do inferno a que havia
sobrevivido, e do qual já não queria se afastar, guardião de uma extensão
deserta no meio de um bosque e de uma plataforma que não pertencia mais
a nenhuma estação, arqueólogo de tijolos enegrecidos e dobradiças velhas e
portas de forno lentamente corroídas pela ferrugem, pesquisador de
resíduos, testemunhos, relíquias, escudinhos metálicos e colheres com que
os presos tomavam sopa, guia entre vestígios de ruínas apenas visíveis, cada
vez mais tapadas pela vegetação e mais destruídas pela simples passagem
do tempo, ou embelezadas nos invernos pela brancura da neve. Quando ele
morresse ou estivesse velho demais ou se cansasse de acompanhar os raros
viajantes que iam visitar esse campo de importância secundária, quando já
não estivesse ali para assinalar os restos de um muro de tijolos enegrecidos
ou uma série de plataformas de cimento, ou uma ondulação peculiar na
neve não pisada, ninguém perceberia a presença desses acidentes menores
na clareira do bosque, nem repararia que o estalo metálico sob as solas de
suas botas era uma colher que em algum momento foi um dos tesouros mais
preciosos da vida de um homem, e portanto ninguém poderia saber o
significado atroz das fileiras de tijolos queimados, de um poste caído no
mato e no qual ainda está cravado um aro de arame farpado.
Desaparecem, ficam lá recuados no tempo, e a distância vai aos poucos
falsificando a lembrança, tão gradualmente como a chuva, os anos, o
abandono e a fragilidade dos materiais desfazem as ruínas de um campo de
extermínio alemão perdido nos bosques fronteiriços entre a Polônia e a
Lituânia, meticulosamente incendiado e destruído por seus guardiões nas
vésperas da chegada do Exército Vermelho, que só encontrou fagulhas,
escombros e valas mal tampadas onde havia jazidas lotadas de corpos
humanos conservados intactos pelo frio, como cachos de uvas, misturados,
nus, esqueléticos, grudados uns aos outros, dezenas de milhares de corpos
sem nome entre os quais estavam, porém, a maioria dos tios e primos e os
quatro avós do senhor Isaac Salama, e também sua mãe e suas duas irmãs,
que não conseguiram se salvar como ele e seu pai se salvaram, porque para
elas já era tarde demais quando no fim do verão de 1944 chegou-lhes um
dos passaportes emitidos pela legação da Espanha na Hungria reconhecendo
a nacionalidade espanhola das famílias sefarditas que viviam em Budapeste.
Nossos vizinhos, meus colegas da escola, os amigos de meu pai, foram
todos levados, disse o senhor Salama. Não saíamos de casa com medo de
que nos agarrassem na rua antes de chegarem os papéis que aquele
diplomata espanhol tinha nos prometido. Ouvíamos no rádio que os Aliados
iam tomar Paris, e a leste os russos já tinham cruzado as fronteiras da
Hungria, mas pelo visto os alemães não se importavam com coisa alguma, a
não ser com o extermínio de todos nós.
Imagine o esforço necessário para transferir de trem por meia Europa
centenas de milhares de pessoas em plena guerra que já estavam prestes a
perder. Preferiam usar os trens mais para nos mandarem aos campos do que
para levarem suas tropas até a frente de batalha. Entraram na Hungria em
março, no dia 14 de março, jamais esquecerei, embora eu tenha passado
muitos anos sem me lembrar dessa data, sem me lembrar de nada.
Chegaram em março e é possível que em meados do verão já tivessem
deportado meio milhão de pessoas, mas como temiam que os russos
chegassem muito depressa e não lhes dessem tempo de despachar
ordenadamente para Auschwitz todos os judeus húngaros, mataram muitos
com um tiro na cabeça no meio da rua, e jogaram os corpos no Danúbio, os
alemães e seus amigos húngaros, os Cruzes Flechadas, como eram
chamados, com os uniformes pretos iguais aos dos SS, e ainda mais
sanguinários que eles, ainda mais rudes e muito menos sistemáticos.
Uma pessoa mora todos os dias de sua vida na mesma casa em que
nasceu e na qual a proteção aconchegante dos pais e das duas irmãs mais
velhas parece que sempre existiu e vai durar para sempre, imutável, tal
como as fotografias e os quadros nas paredes e os brinquedos e os livros no
seu quarto, e de repente um dia, em poucas horas, tudo isso desaparece para
sempre e não deixa rastro, porque a pessoa saiu para uma de suas tarefas
habituais e quando volta, uma ou duas horas mais tarde, seu retorno já é
impedido por um fosso inapelável do tempo. Meu pai e eu tínhamos ido
comprar comida, disse o senhor Salama, e quando voltávamos para casa o
marido da porteira, que tinha bom coração, saiu para nos avisar que nos
afastássemos porque os milicianos tinham levado nossa família e ainda
podiam voltar. Meu pai carregava um embrulho na mão, como aqueles
embrulhinhos de doces que levava para casa todo domingo, e o pacote caiu
no chão, a seus pés. Disso me recordo. Apanhei o embrulho e peguei a mão
de meu pai, que de repente estava gelada. "Fujam para longe daqui", tinha
nos dito o marido da porteira, antes de ir embora muito depressa, olhando
para um lado e outro, temendo que alguém o visse falando tão
amistosamente com dois judeus. Ficamos andando muito tempo, sem falar
nada, eu segurando a mão de meu pai, que já não aquecia a minha e não
tinha forças para me guiar. Era eu quem o guiava, quem vigiava para ver se
aparecia uma patrulha de alemães ou de nazistas húngaros. Entramos
naquele café, perto da legação espanhola, e meu pai deu o telefonema. Não
encontrava moedas nos bolsos, as mãos se atrapalhavam com o lenço, a
carteira, o relógio, disso também me lembro. Tive de lhe dar a moeda para
comprar a ficha. Veio o homem que meu pai tinha visitado outras vezes e
disse a meu pai que estava tudo acertado, mas meu pai não dizia nada, não
respondia, como se não ouvisse, e o homem perguntou-lhe se estava doente,
e meu pai continuou sem responder, com o queixo enterrado no peito, os
olhos perdidos, a expressão que lhe ficou para sempre. Eu disse ao homem
que tinham levado toda a nossa família, queria chorar mas as lágrimas não
saíam de meus olhos nem se aliviava a congestão em meu peito, como se eu
fosse me afogar. Estourei de repente e acho que as pessoas nas mesas
próximas ficaram me olhando, mas eu pouco ligava, joguei-me sobre o
capote do homem, de lapelas muito grandes, e pedi-lhe que ajudasse a
minha família, mas talvez ele não me entendesse, pois eu falava em
húngaro e ele falava com meu pai em francês. Num carro preto muito
grande com uma bandeirinha da legação diplomática levaram-nos a uma
casa onde havia mais gente. Lembro-me de quartos pequenos e de malas,
homens de manto e chapéu, mulheres com lenços, gente falando baixo e
dormindo nos corredores, no chão, usando trouxas de roupa como
travesseiros, e meu pai sempre acordado, fumando, tentando dar um
telefonema, importunando os empregados da legação espanhola que de vez
em quando nos levavam comida. Estavam procurando nas listas de
deportados minha mãe e minhas duas irmãs, mas elas não apareciam em
nenhuma. Depois ficamos sabendo, meu pai ficou sabendo anos mais tarde,
que não tinham sido levadas aos mesmos campos para onde levavam quase
todo mundo, Auschwitz ou Bergen-Belsen. Dali puderam ser resgatados
alguns judeus graças àquele diplomata espanhol que salvou a vida de tantos,
arriscando a sua, agindo escondido de seus superiores no Ministério, indo
de um lado a outro de Budapeste a qualquer hora do dia ou da noite,
naquele mesmo carro preto da embaixada no qual nos levaram, recolhendo
pessoas escondidas ou que acabavam de ser presas, embora não fossem
realmente de origem sefardita, inventando identidades e documentos, até
parentescos ou negócios na Espanha. Sanz-Briz, chamava-se. Localizou
muita gente, conseguiu que alguns voltassem dos campos, tirou-os do
inferno, mas de minhas irmãs e minha mãe não havia nem rastro, porque
foram levadas para esse campo do qual quase ninguém tinha ouvido falar, e
do qual nada restou, só aquela marquise e aquela placa que vi há cinco
anos. Por mim, eu jamais teria ido. Nunca poderei pisar nessa parte da
Europa, não suporto a ideia de ficar olhando uma pessoa de certa idade num
café ou numa rua da Alemanha ou da Polônia ou da Hungria e perguntar-me
o que ela fez naqueles anos, o que viu e com quem esteve. Mas, pouco antes
de morrer, meu pai me pediu que visitasse o campo e lhe prometi que
visitaria. E sabe o que há ali? Nada, uma clareira num bosque.
A marquise de uma estação e uma placa enferrujada.
Que fim terá levado o senhor Salama, que em meados dos anos 80
dirigia o Athénée Espagnol em Tânger, numa sala pequenina decorada com
cartazes turísticos muito coloridos mas já estragados e desbotados pelo
tempo, com velhos móveis de falso estilo castelhano, e que administrava
sem entusiasmo, no bulevar Louis Pasteur, uma loja de tecidos fundada por
seu pai e chamada Galerias Duna, em homenagem ao rio da outra pátria da
qual conseguiram escapar no último momento, ao contrário de quase todos
os seus conhecidos, das irmãs e da mãe, de quem nem sequer guardavam
uma fotografia, um pretexto para a memória, uma prova material capaz de
atenuar ou postergar a erosão do esquecimento?
Duna é o nome húngaro do rio Danúbio. O senhor Salama, com seu
verbo rico e seu estranho sotaque salpicado de tonalidades distantes, como
um resquício da musicalidade do judeu-espanhol que ele ouviu na infância,
cujas canções de ninar ele ainda recordava; o senhor Salama, com seu andar
difícil de paralítico e duas muletas" e olhos tão facilmente marejados, o
cabelo grisalho e ralo, na testa sempre o brilho de suor que o lenço branco
com suas iniciais bordadas jamais consegue enxugar, a respiração agitada
pelo esforço de movimentar um corpo grande e desajeitado cujas pernas são
quase inúteis, muito fracas sob o pano da calça, como dois apêndices
balançando com a gravitação do ventre inchado e do torso volumoso. Mas
ele se esforçava em fazer tudo sozinho, sem a ajuda de ninguém, mexendo-
se de forma brusca e ágil e respirando ofegante, abria portas e acendia luzes
e mostrava pequenos tesouros do Athénée Espagnol, fotos emolduradas de
um visitante famoso de muitos anos atrás, ou de montagens das peças de
Benavente, Casona e até mesmo Lorca, um diploma expedido pelo
Ministério de Informação e Turismo, um livro dedicado à Biblioteca do
Centro por um escritor cuja celebridade foi se perdendo com os anos, a tal
ponto que nem seu nome é familiar, embora não se deva dizer isso na frente
do senhor Salama, embora se deva dizer que se leu o livro e que essa
primeira edição com dedicatória já deve ter um valor considerável.
Desajeitado, caótico, incansável apesar da respiração difícil e das muletas, o
senhor Salama mostrava cartazes velhos que anunciavam conferências e
espetáculos teatrais no pequeno palco do Ateneo e até no grande Teatro
Cervantes, que agora, diz, é uma ruína vergonhosa, comido pelos ratos,
invadido pelos delinquentes, uma joia da arquitetura espanhola que o
governo espanhol ignora solenemente. Não querem nem saber do pouco e
do bom que ainda resta da Espanha em Tânger, nem mesmo respondem às
cartas que o senhor Salama escreve aos ministérios, o da Cultura, o da
Educação, o das Relações Exteriores; ele deixa de lado os cartazes, agora
remexe os papéis de sua mesa e escolhe uma pasta cheia de fotocópias de
textos, cópias em papel-carbono com o carimbo da agência dos Correios,
prova fidedigna de que foram enviadas, conquanto nunca tenham tido
resposta. Mostra datas, passa rapidamente de uns papéis a outros, de um
pedido a outro feito vários anos antes, todos escritos numa máquina de
escrever mecânica, à moda antiga, como antes da época das fotocopiadoras,
com várias cópias em papel-carbono. Por seu repertório cênico o Athénée
Espagnol chegou a ser a primeira companhia teatral de Tânger, embora só
reunisse apaixonados que nada cobravam, eu inclusive, que não podia atuar,
como se pode imaginar, mas que muitas vezes dirigi as montagens. Vai
apontando nas paredes de um corredor fotos em preto-e-branco muito
pobremente emolduradas, com atores em fantásticas poses teatrais, de
apaixonados entusiastas e antiquados, declamando diante de cenários
modestos, a hospedaria de don Juan Tenório, a escada de uma casa de
cômodos em Madri, os muros de uma aldeia andaluza. Montávamos
Benavente e Casona, e em cada 12 de novembro o Tenorio, mas não nos
qualifique depressa demais, porque também montamos A casa de Bernarda
Alba muitos anos antes de ter estreado na Península, quando só Margarita
Xirgu a tinha representado em Montevidéu.
Melancolia e penúria dos lugares espanhóis longe da Espanha.
Telhadinhos falsos, paredes caiadas fictícias, imitações das rótulas
andaluzas, das praças de touros e festas regionais, as de Valencia e Asturias,
paellas gordurentas e grandes chapéus mexicanos, cenários decrépitos
saídos das litografias românticas e dos filmes ambientados na Andaluzia
que eram rodados em Berlim durante a guerra espanhola. O telhadinho, o
lampião e a rótula daquele local de Copenhague chamado Pepe's Bar; a
imitação das grutas do Sacromonte num cruzamento de estradas perto de
Frankfurt, onde serviam sangria em dezembro e havia frigideiras de cobre e
chapéus cordoveses e chapéus mexicanos pendurados nas paredes; o
telhadinho e o inevitável muro de chapisco na Casa de Espana de Nova
York, no início dos anos 90; o Café Madrid, que surgia inesperadamente
numa esquina do bairro de Adam's Morgan, em Washington DC, entre
restaurantes salvadorenhos e lojas de roupas baratas e malas das quais
vinham as melodias do merengue, em paragens que de repente se
transformavam numa absoluta desolação, como bairros devastados, com
filas inteiras de casas queimadas ou derrubadas, estacionamentos fechados
por cercas de arame. Perto do terreno de uma casa incendiada havia uma
loja para noivas etíopes, e mais adiante uma capela funerária católica. De
repente via-se aquele letreiro redondo, Café Madrid, ao lado de uma Santo
Domingo Bakery e de uma loja de produtos alimentícios cubanos chamada
La Chinita Linda. Fazia uma manhã gelada em Washington, e a luz fria do
sol invernal reverberava no mármore dos monumentos e dos prédios
públicos. Subia-se por uma escada estreita e no primeiro andar ficava a
porta do Café Madrid, e respirava-se um ar quente com cheiros mais ou
menos familiares, tão inusitados como o crepitar do óleo fervendo para se
fritar a massa branca dos churros, ou como a cara redonda e oleosa da
mulher que servia as mesas, com seu jeito resoluto da churrera de um
bairro popular de Madri, mas que já falava pouquíssimo espanhol, pois
dizia, com um sotaque contaminado por cadências mexicanas, que sus
papás a tinham levado para a América quando ela era chamaquita,
pequetita. Velhos cartazes de touradas nas paredes, uma montera acima de
duas banderillas,2 apresentadas como troféus militares, o papel das
banderillas manchado de uma coisa ocre que lembraria sangue, e a montera
toda empoeirada, como que endurecida pelos anos de fumaça das frituras.
Cartazes coloridos de paisagens espanholas, propaganda da Ibéria ou do
antigo Ministério de Informação e Turismo: no escritório do senhor Salama
havia uma paisagem de La Mancha, uma encosta árida coroada por
moinhos de vento, sob a luz chapada e excessiva das fotos e dos filmes
coloridos dos anos 6o. Havia um cartaz da Sinagoga del Trânsito, de
Toledo, e ao lado, idêntico na preferência e quase na devoção do senhor
Salama, outro do monumento a Cervantes na praça de Espana, em Madri:
era a mesma luz limpa de inverno, de manhã fria de sol, e o senhor Salama
lembrava-se de seus passeios juvenis por essa praça que ele adorava,
embora já achasse estranho, até impossível, que tivesse sido esse homem
jovem e esguio sem muletas, andando sobre duas pernas eficazes e ágeis,
sem jamais pensar no milagre de que o sustentavam e o levavam de um lado
para outro como se seu corpo não tivesse peso, imaginando que tudo o que
tinha e usufruía seria perene, a agilidade, a saúde, os vinte anos, a felicidade
de estar em Madri sem vínculos com ninguém, sem ser nada nem ninguém
além dele mesmo, tão livre da força de gravidade do passado como da força
de gravidade da Terra, liberado, provisoriamente, de sua vida anterior e
também da vida futura que outros haviam planejado para ele, livre de seu
pai, de sua melancolia, de sua loja de tecidos, de sua lealdade aos mortos,
aos que não conseguiram se salvar, àqueles cujo lugar pai e filho ocuparam
ou usurparam, conquanto só por acaso não tivessem acabado naquele
campo relativamente menor onde pereceram sem deixar vestígio tantos de
sua família, de sua cidade e de sua raça. As três irmãs de Franz Kafka
desapareceram nos campos de extermínio. Em Madri, em meados dos anos
50, o senhor Isaac Salama estudava Ciências Econômicas e Direito e
planejava não voltar para Tânger quando terminasse esse período de
liberdade que tinha se concedido, e pela primeira vez na vida estava
plenamente só e sentia que sua identidade começava e terminava em si
mesmo, livre agora de sombras e raças, livre da presença e da rememoração
obsessiva dos mortos. Não tinha culpa de ter sobrevivido nem devia guardar
luto perpétuo, nem por sua mãe e por suas irmãs, muito menos por todos os
parentes, vizinhos do bairro e amigos do pai e garotos com quem brincava
nos parques públicos de Budapeste, e por todos os judeus aniquilados por
Hitler. Se olhasse ao redor, numa taberna de Madri, numa sala de aula da
universidade, se andasse pela Gran Via e entrasse num cinema no domingo
à tarde não encontrava em lugar nenhum rastros de que tudo aquilo tinha
acontecido, podia se deixar levar para uma existência mais ou menos
idêntica à dos outros, seus compatriotas, seus companheiros de curso, os
amigos que não lhe perguntavam sua origem, que nada sabiam da guerra
europeia nem dos campos alemães.
Em Madri desfazia-se a lembrança de Tânger, como um lastro que ele
deixara ao partir, e agora só sentia remorso por ter abandonado o pai e estar
vivendo graças ao dinheiro de um negócio a que não tinha a menor intenção
de se dedicar. Da vida anterior — Budapeste e o pânico, a estrela amarela
na lapela do capote, as noites em claro perto do rádio, o desaparecimento da
mãe e das irmãs, a viagem com seu pai pela Europa, com passaporte
espanhol — restavam-lhe, assustadoramente, pouquíssimas imagens, apenas
certas sensações físicas com a mesma irrealidade das primeiras lembranças
da infância. Vi na televisão urna entrevista com um homem que ficou cego
aos vinte e tantos anos: agora tinha uns cinquenta, e dizia que pouco a
pouco todas as imagens foram sendo esquecidas, foram se apagando em sua
memória, de modo que já não conseguia lembrar como era a cor azul, ou
como era um rosto, e já nem sonhava com percepções visuais. Restavam-
lhe resíduos, que no entanto iam se perdendo, dizia, a mancha branca de
uma amendoeira em flor no jardim de seus pais, o vermelho de uma bola de
borracha que teve em criança, e que era uma bola representando o mundo.
Mas percebia que dali a alguns anos teria perdido tudo, até o significado da
palavra ver. Em Madri, nos anos da universidade, esqueci-me da cidade de
minha infância e dos rostos de minha mãe e minhas irmãs, das quais meu
pai e eu não tínhamos guardado uma única foto, tendo tantas em nossa casa
de Budapeste, álbuns de retratos que meu pai tirava com sua pequena Leica,
porque a fotografia era uma de suas paixões, como a música e o cinema,
uma das tantas coisas que desapareceram de sua vida quando chegamos a
Tânger e ele já não teve tempo nem ânimo para nada que não fosse o
trabalho, o trabalho e o luto, a religião, a leitura dos livros sagrados que na
juventude jamais tinha olhado, as visitas a sinagogas, nas quais eu não tinha
pisado até virmos para cá, embora, no início, não me importasse de
acompanhá-lo.
Mas, pensando bem, eu não o acompanhava, tinha a sensação de levá-lo
pela mão, guiá-lo, como naquela manhã em Budapeste, quando soubemos
que haviam prendido minha mãe e minhas irmãs. Não sei se ele se deu
conta de que às vezes as crianças se sentem angustiantemente responsáveis
por seus pais.
Depois de morto, o pai do senhor Salama recuperava a presença que
tivera muitos anos antes na vida de seu filho, e dele recebia a mesma
dedicação da época em que levava pela mão, nas ruas de Budapeste ou
Tânger, um garoto calmo, obediente, gordinho, que sorria numa foto
perdida, confusamente recordada, na qual usava um boné de goleiro e uma
calça bombacha do período entre-guerras, filho orgulhoso que levanta os
olhos para o pai, ambos com uma estrela amarela na lapela. Num dia de
junho o pai comprou um jornal e, dando uma olhadela aqui e ali, apontou-
lhe a primeira página, com a notícia do desembarque dos Aliados na
Normandia, e logo depois dobrou o jornal e guardou-o no bolso, e apertou
fortemente a mão dele, transmitindo em segredo sua alegria abrupta e
vigorosa, pedindo-lhe encarecidamente que não demonstrasse comemorar a
invasão, no meio de uma rua povoada de inimigos seguros. Quando eu
morrer você dirá por mim o kaddish durante onze meses e um dia, como
bom primogênito, viajará ao nordeste da Polônia para visitar o campo onde
morreram sua mãe e suas irmãs, as quais não consegui salvar, e pelas quais
não deixei de guardar luto nem um só dia em minha vida.
Agora, o senhor Isaac Salama, que não tinha um filho que dissesse o
kaddish para ele depois da morte, culpava-se melancólico por ter sido um
filho pródigo e pelo fato de que a ternura que voltava a sentir já não fosse
capaz de consolar nem de compensar seu pai morto, de quem sentia
saudades, tão sem esperança de reparação como ele devia se sentir ao ter
saudades da mulher e das filhas. Gostou tanto dele, diz, e seus olhos ficam
úmidos, viveram sempre tão unidos, não só quando ficaram sozinhos, mas
já muito antes, desde que ele era bem pequeno, desde que tinha memória,
quando toda tarde sua vida era iluminada pela iminência da chegada do pai.
Perto dele sentira proteção, admirara-o como a um herói de romance ou
de cinema, vira-o desabar no meio da rua e sentira o peso aterrador da
responsabilidade e também o orgulho secreto de imaginar que a mão de seu
pai, apoiada em seu ombro, não o protegia, mas que, ao contrário, era ele, o
filho primogênito, que mantinha seu pai de pé. E de repente, quando fez
dezesseis ou dezessete anos, não queria mais viver com ele, já o aborreciam
quase todas as coisas que tinham compartilhado desde que, sozinhos,
chegaram a Tânger, sobretudo o luto, a dor perpétua e a rememoração dos
mortos, a mulher e as filhas que o pai não soube salvar, sentindo desde
então que usurpava indignamente suas vidas. Com os anos, o luto do pai,
em vez de atenuar-se, foi ficando cada vez mais ensombreado pelo remorso,
pela rejeição irascível e magoada a um mundo onde os mortos não
contavam, onde ninguém, inclusive muitos judeus, queria saber nem se
lembrar de nada. Cuidava do seu negócio com a mesma energia e convicção
com que se dedicara a ele quando viviam em Budapeste. Em poucos anos e
como que do nada conseguira soerguer uma das lojas mais modernas de
Tânger, e cujo letreiro luminoso, Galerias Duna, iluminava ao cair da tarde
aquela área burguesa e comercial do bulevar Pasteur. Mas ele, seu filho,
percebia que sua atividade incessante e sagaz era pura aparência, no fundo,
uma imitação fracassada do homem que o pai tinha sido antes da catástrofe,
assim como a loja era uma imitação daquela que possuíra e administrara na
Hungria. Ia ficando cada vez mais religioso, mais obsessivamente
cumpridor dos rituais, das orações, das festividades que na juventude
pareciam resíduos de um mundo fechado e antigo do qual tinha a satisfação
de ter escapado. Talvez houvesse em sua gradativa mania religiosa um
sentimento de expiação, e agora ele rezava docilmente para o mesmo Deus
que havia renegado em seus dias e noites insones de desespero por ter Ele
permitido o extermínio de tantos inocentes. E o filho, que aos treze ou
catorze anos o acompanhava à sinagoga com a mesma dedicação com que
lhe preparava o jantar, ou verificava toda manhã se havia papel e tinta na
sua escrivaninha, agora julgava cada vez mais irritante esse fervor religioso,
e onde quer que o pai estivesse ele começava a sentir uma angustiante falta
de ar, um cheiro de guardado e de ranço, que era o das roupas dos judeus
ortodoxos e das velhas e da penumbra da sinagoga, e também o cheiro
poeirento (dos tecidos na loja onde já não queria trabalhar e da qual não
sabia como e com que desculpa escapar o quanto antes.
Mas quando, afinal, atreveu-se a manifestar seu desejo de ir embora,
descobriu surpreso, e mais ainda arrependido, que o pai não se opunha à
partida, até mesmo o incitava a estudar na Península, acreditando ou
fingindo acreditar que aspiração do filho era tomar conta da loja quando
terminasse o curso, e que os conhecimentos que adquirisse seriam muito
úteis para ambos na renovação e no progresso do negócio.
Eu ouvia a sirene do navio que ia para Algeciras e contava os dias que
faltavam para fazer essa viagem. Do terraço de minha casa podia ver de
noite as luzes da costa espanhola. Minha vida se resumia ao desejo de partir,
fugir de tudo o que me prendia e me afligia, como aquelas camisetas,
camisas, casacos, capotes e cachecóis que minha mãe vestia em mim para ir
à escola, quando eu era criança. Queria partir do provincianismo de Tânger
e da opressão da loja de meu pai, e de meu pai e de sua tristeza e de suas
recordações, e de seu remorso por não ter salvado a mulher e as filhas, por
ter ele mesmo se salvado no lugar delas. O dia em que afinal eu ia partir
amanheceu com muita névoa e avisos de marejada e meu medo era que o
navio da Península não zarpasse, não pudesse sair do porto quando eu já
estivesse lá dentro com minhas malas e minha passagem reservada para o
trem de Algeciras a Madri. Vítima desse nervosismo, eu me irritava à toa
com meu pai, sua solicitude me amolava, sua mania de verificar tudo até o
último instante, que eu não fosse me esquecer de nada, da passagem do
navio, da passagem do trem, dos meus documentos espanhóis de identidade,
do endereço e telefone da pensão em Madri, do comprovante de minha
matrícula na universidade, da roupa de frio que me faria falta quando
chegasse o inverno. Acho que desde que saímos de Budapeste nunca
havíamos nos separado, e ele devia se sentir ao mesmo tempo meu pai e
minha mãe, a mãe que eu não tinha por ele não ter sido capaz de salvá-la.
Teria dado tudo para evitar que ele me acompanhasse ao porto, mas não me
atrevi a sugerir, nem indiretamente, temendo que se sentisse ofendido, e
quando foi comigo e o vi entre as pessoas que iam se despedir de outros
passageiros senti-me até envergonhado, e a vergonha me dava remorso e
aumentava minha irritação, minha impaciência para que o navio zarpasse e
eu não tivesse de continuar vendo meu pai, envergonhando-me dele, de seu
jeito de judeu velho de caricatura, porque nos últimos anos não só ficou
mais religioso como envelheceu muito e foi ficando 132 < curvado, pelos
gestos e pelo modo de se vestir ia se parecendo com Os judeus pobres e
ortodoxos de Budapeste, os judeus do Leste que nossos parentes sefarditas
olhavam de cima para baixo, e que ele, quando jovem, considerara com
pena e um pouco de soberbia como gente atrasada, incapaz de se incorporar
à vida moderna, doentia por causa dos preceitos religiosos e da falta de
higiene. Eu sentia remorso por me envergonhar dele e por deixá-lo, e
também tinha pena, mas na verdade nem uma coisa nem outra estragaram
minha alegria de ir embora, e me desgarrei de meu pai e de Tânger e de
minha vergonha assim que o navio partiu, assim que notei que se afastava
aos poucos do cais. Ainda estava a uns metros dele, que continuava me
dando adeus com a mão, lá embaixo, entre as pessoas, tão diferente de
todos que eu não gostava de ser associado a ele. Também lhe dava adeus e
sorria, mas já tinha partido, sem deixar de vê-lo e ainda a poucos metros do
cais de Tânger eu já estava muito longe, pela primeira vez na vida, livre de
tudo, não dá para imaginar de que peso tão grande, de meu pai e de sua loja
e de sua culpa e de toda a dor por nossa família e por todos os judeus
liquidados por Hitler, por todas as listas de nomes que havia na sinagoga, e
nas publicações judaicas que meu pai assinava, e nos anúncios classificados
dos jornais israelitas, indagando o paradeiro dos desaparecidos. Eu já estava
só. Já começava e terminava em mim mesmo. Já não era ninguém a não ser
eu. Lembro-me de que alguém perto de mim, no convés, escutava num
rádio transistor uma dessas músicas americanas que na época estavam na
moda. A música parecia cheia de promessas do mesmo tipo das que me
reservavam a viagem que eu ia iniciar. Nunca tive uma sensação física de
felicidade mais intensa do que ao notar que o navio começava a se mexer,
ao ver Tânger de longe, do mar, como tinha visto no dia em que meu pai e
eu chegamos, fugindo da Europa.
Como será Tânger na realidade, desfigurada na memória pelos anos,
pela insolvência da recordação, que nunca é tão exata como finge ser na
literatura. Quem pode se lembrar de verdade de uma cidade, ou de um
rosto, sem o auxílio das fotografias, que ficaram nos álbuns perdidos de
uma vida "anterior, uma vida que pareceu invariável, sufocante, eterna, e no
entanto dissolveu-se sem deixar rastros, sem deixar sequer lembranças,
imagens que vão se perdendo como os resíduos de um campo em ruínas ou
como as cores aos poucos esquecidas por quem fica cego, a cidade onde o
senhor Isaac Salama viveu até os doze anos, os rostos de suas irmãs e de
sua mãe, a cidade à qual a pessoa se sente presa e da qual acha que nunca
poderá partir, e no entanto parte e um dia já não volta mais, a mesa de
trabalho atrás da qual não se sentará de novo, a gaveta onde, entre papéis
oficiais agora inúteis, resta um pacote de cartas esquecidas que alguém
jogará fora na próxima limpeza, as cartas de Milena Jesenska que Kafka
não guardou.
Sirenes de barcos e chamadas de muezins no cair da tarde, ouvidas do
terraço de um hotel. Uma confeitaria espanhola que lembra as das cidades
do interior nos anos 60, um teatro espanhol quase em ruínas chamado
Cervantes. Grandes cafés opacos de fumaça e barulhentos com conversas
em árabe e francês, onde só há homens. As chaleiras douradas, os copos
estreitos de vidro nos quais fumega um chá verde muito suave. O labirinto
de um mercado que cheira a especiarias e a alimentos da infância. Um
mendigo cego com uma djallaba marrom rasgada que parece feita do
mesmo tecido da capa do carregador de água de Sevilha pintado por
Velázquez: o mendigo esgrime um bastão e murmura uma cantilena em
árabe, e de sua cabeça encapuzada só se veem o queixo áspero com pelos
brancos e ralos da barba, e a sombra que cobre os seus olhos como uma
lúgubre máscara. Homens jovens indolentes e a espreita nas esquinas, perto
dos hotéis, e quando distinguem o forasteiro o assediam, oferecem-lhe sua
amizade, sua ajuda como guias, tentam lhe vender haxixe, ou apresentar-lhe
uma garota ou um garoto, e se você diz não, a negativa não os desanima, e
se você não dá bola para eles e, embaraçado, finge não vê-los, não se
rendem e continuam atrás de quem não sabe como esquivá-los e ao mesmo
tempo não quer ser arrogante e ofensivo, tendo a má consciência de europeu
privilegiado. O bulevar Pasteur, o único nome de rua que fica na lembrança,
com seus prédios burgueses que poderiam estar em qualquer cidade da
Europa, se bem que de uma Europa de outra época, de antes da guerra, uma
cidade com bondes e fachadas barrocas, talvez a Budapeste onde o senhor
Salama nasceu e viveu até os dez anos, e para aonde nunca voltou, e da qual
lhe restavam umas poucas imagens sentimentais e distantes, como postais
coloridos a mão. A cidade mais bonita do mundo, juro, o rio mais solene,
majestade absoluta, nem o Tâmisa nem o Tigre nem o Sena podem se
compararão Duna, tantos anos depois não me habituo a chamá-lo Danúbio.
A cidade mais civilizada, pensávamos, até que aquelas bestas acordaram,
não só os alemães, os húngaros eram piores e não precisavam de ordens
deles para agir com a máxima bestialidade, as Cruzes Flechadas, os cães de
caça de Himmler e Eichmann, húngaros que tinham sido nossos vizinhos e
falavam a nossa própria língua, que eu já tinha esquecido, ou quase, em
grande parte porque meu pai se esforçou para não voltarmos a falá-la, nem
mesmo entre nós dois, os únicos que sobraram de toda a nossa família, os
dois únicos e perdidos aqui, em Tânger, com nosso passaporte espanhol,
nossa nova identidade espanhola que nos salvara a vida, que nos permitira
escapar da Europa, para onde meu pai nunca mais quis voltar, a Europa que
ele amou mais que tudo e da qual se orgulhou, Brahms e Schubert e Rilke e
todo aquele imenso lixo luxuoso que transtornava a sua cabeça e que depois
ele renegou para querer se transformar no que também não era, um judeu
zeloso da lei e isolado e intratável com os gentios, ele, que quando éramos
crianças nunca levou à sinagoga nem a mim nem minhas irmãs e também
não comemorou nenhuma festa litúrgica, ele, que falava francês, inglês,
italiano e alemão mas só sabia umas palavras em hebraico, e uma ou duas
canções de ninar em judeu-espanhol, conquanto se orgulhasse dessa origem
quando vivíamos em Budapeste. Sefarad era o nome de nossa pátria
verdadeira, embora nos tivessem expulsado de lá mais de quatro séculos
antes. Contava-me que durante gerações nossa família tinha guardado a
chave da casa que fora nossa em Toledo, e contava-me todas as viagens que
tinham feito desde a saída da Espanha, como se me contasse uma só vida
que tivesse durado quase quinhentos anos. Falava sempre na primeira
pessoa do plural: tínhamos emigrado para o norte da África, e em seguida
alguns dos nossos se estabeleceram em Salônica, e outros em Istambul, para
onde levamos as primeiras gráficas, e no século XIX um de meus avós, pai
de meu pai, que se dedicava ao comércio de grãos ao longo dos portos do
Danúbio, estabeleceu-se em Budapeste e casou-se com a filha de uma
família do mesmo nível da sua, pois nessa época os sefarditas se
consideravam acima dos judeus orientais, os asquenazes pobres das aldeias
judias da Polônia e da Ucrânia, os que escapavam dos pogroms russos. Nós
éramos espanhóis, dizia meu pai em seu plural orgulhoso. O senhor sabia
que um decreto de 1924 nos devolveu, a nós sefarditas, a nacionalidade
espanhola?"
O Athénée Espagnol, as Galerias Duna, as luzes da costa espanhola
brilhando à noite, tão perto como se não estivessem do outro lado do mar,
mas na outra margem de um rio caudaloso e muito largo, o Danúbio, o
Duna que o senhor Isaac Salama via na infância, as águas nas quais durante
a primavera e o verão de 1944 os alemães e seus lacaios jogavam os judeus
assassinados ao leu no meio da rua, à luz do dia, às pressas, porque o
Exército Vermelho estava se aproximando e era possível que as estradas de
ferro fossem interditadas e já não houvesse como prosseguir com o envio de
comboios de mortos em vida para Auschwitz ou Bergen-Belsen, ou para
esses campos menores dos quais não resta nem a memória de seus nomes.
A Espanha fica a um passo, a uma hora e meia de barco, são aquelas luzes
que se veem da varanda do hotel, mas durante a conversa do senhor Isaac
Salama, nas Galerias Duna ou no Athénée Espagnol, a Espanha fica tão
longe como se estivesse a milhares de quilômetros, do outro lado dos
oceanos, como se a gente se lembrasse dela no Lar Espanhol de Moscou
num meio-dia mortiço de inverno ou no Café Madrid de Washington DC:
Espanha, lugar quase inexistente de tão remoto, país inacessível,
desconhecido, ingrato, chamado Sefarad, recordado com uma melancolia
sem fundamento nem desculpa, com uma lealdade tão assídua como a que
foi transmitida, de pai para filho, pelos antepassados do senhor Isaac
Salama, o único de toda a sua linhagem que realizou o sonho herdado do
regresso e foi novamente expulso, e agora definitivamente, por culpa de um
infortúnio que, com os anos, ele já não considerava obra injusta do acaso,
mas consequência e castigo de sua própria soberbia, da grosseria culpada
que o levara a se envergonhar do próprio pai e a renegá-lo no mais fundo de
seu coração.
Se não tivesse dirigido aquele carro com tanta temeridade, pensa dia
após dia, com o mesmo luto obsessivo com que seu pai pensava na mulher e
nas filhas que não conseguira salvar, se não tivesse tanta pressa em voltar o
quanto antes para a Península, em chegar a Madri, não nos lentos trens
noturnos que cruzavam o país inteiro de sul a norte como torrentes
poderosas e escuras, mas no carro que seu pai lhe dera como prêmio por
concluir tão brilhantemente os dois cursos que fizera ao mesmo tempo. Mas
já nenhum dos dois alimentava a ficção de que os títulos universitários do
senhor Salama serviriam para que a casa de tecidos do bulevar Pasteur
prosperasse ainda mais. Tânger, disse-lhe seu pai, quando ele voltou no fim
do último curso, já não continuaria a ser por muito mais tempo a cidade
internacional, agitada e aberta a que tinham chegado em 1944. Agora
Tânger pertencia ao reino do Marrocos, e aos poucos os estrangeiros teriam
de partir, nós os primeiros, disse seu pai, com o brilho fugaz da perspicácia
e do sarcasmo de outros tempos. Só espero que nos mandem embora com
mais cortesia do que os húngaros, ou do que os espanhóis em 1492.
Disse isso, os espanhóis, como se já não se considerasse um deles, se
bem que tivesse essa nacionalidade e durante parte de sua vida sentisse
tanto orgulho de pertencer a uma linhagem sefardita. O senhor Salama
compreendeu que o pai estava estudando a possibilidade de vender o
negócio e emigrar para Israel. Mas por nada neste mundo queria mudar
novamente de país: deveria ter escutado meu pai, diz agora, em outra
manifestação de arrependimento, pois a Espanha não quer saber de nada
que se refira às coisas espanholas em Tânger nem aos espanhóis que ainda
vivem aqui. No Marrocos há cada vez menos espaço para nós, mas na
Espanha também não nos querem. Com a aposentadoria que receberei ao
fechar esta loja que já quase não me rende nada, não terei como viver na
Península, portanto ficarei aqui e morrerei em Tânger, onde nós, espanhóis,
somos cada vez menos e cada vez mais velhos e mais estrangeiros.
Poderia ir para Israel, claro, mas que vou fazer num país que não
conheço, na minha idade, onde não tenho ninguém?
Se na época ele tivesse escutado o pai, se tivesse tido pelo menos um
pouco de paciência, se não tivesse dirigido em alta velocidade por uma
daquelas estradas espanholas dos anos 50, cheio de si, acreditando que tudo
podia, que era capaz de controlar tudo, diz agora ao entortar
desdenhosamente os lábios carnudos.
Pouco antes do amanhecer, na saída de uma curva muito fechada, o
carro foi para o lado esquerdo da estrada e ele viu na sua frente os faróis
amarelos de um caminhão.
Eu devia ter morrido naquele momento, diz o senhor Salama, e percebe
que está repetindo as mesmas palavras que ouviu do pai tantas vezes, a
mesma ânsia de corrigir o passado em poucos minutos, em segundos: se não
as tivéssemos deixado sozinhas em casa, se não tivéssemos demorado tanto
para voltar, toda uma vida destruída para sempre numa imperceptível fração
de segundo, numa eternidade de arrependimento e vergonha, a terrível
vergonha que sentia o senhor Salama ao se ver paralítico aos vinte e dois
anos, ao andar de muletas e arrastando duas pernas inúteis, sabendo que
nunca mais poderia se manter de pé, que já não teria, não só a força física,
mas nem a coragem moral necessária para empreender a vida que tanto
desejara, que acreditara estar quase tocando com os dedos.
Não queria que ninguém me visse, diz, queria ficar escondido no
escuro, num porão, como esses monstros dos filmes. Levou anos até andar
na rua com relativa normalidade, até caminhar pela loja apoiando-se nas
muletas. Notava que ia se deformando progressivamente, as pernas cada
vez mais fracas e o torso mais volumoso, os ombros muito largos e o
pescoço afundado. Na loja, caía na frente de algumas freguesas, na época
em que ainda havia muita clientela, e quando os empregados iam correndo
levantá-lo do chão odiava-os mais ainda do que a si mesmo, e fechava os
olhos como no hospital e queria morrer de vergonha.
O que o senhor pode entender, e desculpe que lhe diga isso, se tem as
duas pernas e os dois braços. Isso, sim, é que é uma fronteira, é como ter
uma doença muito grave ou muito vergonhosa ou usar uma estrela amarela
costurada na lapela. Eu não queria ser judeu quando os outros meninos me
jogavam pedras no parque de Budapeste onde eu ia brincar com minhas
irmãs, mais velhas e mais valentes e que me defendiam. Na época, ser judeu
me dava a mesma vergonha e a mesma raiva que, depois, senti ao ficar
paralítico, aleijado, coxo, nada de inválido ou incapacitado, como dizem
esses imbecis, como se trocando a palavra apagassem a afronta, ou me
devolvessem o uso das pernas. Quando eu tinha nove ou dez anos, em
Budapeste, o que queria não era que os judeus escapassem dos nazistas.
Digo e me dá vergonha: o que queria era não ser judeu.
Pela janela aberta do pequeno escritório do senhor Salama entra um ar
morno, como de entardecer de maio, embora aquela visita fosse em
dezembro, e ouve-se nitidamente o canto de um muezim, amplificado por
um desses alto-falantes rudimentares pendurados precariamente no alto de
certos minaretes, e o eco intenso do apito de um barco entrando ou saindo
do porto. O senhor Salama, com uma expressão de desagrado, ligou para a
loja para saber se há alguma novidade, e disse em francês a alguém que
demorou muito em responder ao telefone que não poderá ir lá antes do fim
do expediente, pois às oito horas começa o concerto de piano no salão do
Ateneo. Ontem foi inaugurada a Semana Cultural Espanhola, com uma
conferência sobre literatura, que teve certo público, mas hoje o senhor Isaac
Salama está preocupado porque o pianista que toca não é muito conhecido,
e ele teme que também não seja muito bom. Se fosse não viria a Tânger dar
um concerto por tão pouco dinheiro. Dá medo e melancolia, de antemão,
imaginar o salão com umas poucas cadeiras ocupadas, no palco os arcos
imitando os de uma granja andaluza, o pianista com um fraque já muito
surrado, inclinando-se com um gesto enfático para o público retraído e
escasso, a franja da cabeleira romântica tapando metade de seu rosto
quando volta a se levantar. Ele não teve dinheiro para imprimir os cartazes
necessários, para enviar a tempo os convites. Além do mais, é quarta-feira,
talvez haja na televisão um jogo internacional. Nos cafés grandes e
sombrios de Tânger, onde se sentia ao entrar um cheiro acre de suor
masculino e fumo negro, como nos bares espanhóis de trinta anos atrás, via-
se às vezes uma multidão de rostos escuros e levantados para a tela de uma
televisão, faces não escanhoadas e olhares intensos: estavam assistindo a
um jogo de futebol na televisão espanhola, ou a um desses concursos com
recepcionistas de minissaia encostadas em carros flamejantes. Essa é a
única cultura que a Espanha deixa aqui, clamava o senhor Salama, a
televisão e o futebol, e o idioma se perdendo, e o nosso Ateneo sem ajuda,
comido pelas traças enquanto na Península gastam-se bilhões nessa
Babilônia da Exposição de Sevilha. Olhe os franceses, compare o nosso
Ateneo com a Alliance Française, o palácio luxuoso que têm, as mostras de
filmes que organizam, as exposições que trazem, o dinheiro que gastam em
folhetos de propaganda que tapam todos os nossos cartazes, os poucos que
podemos financiar.
Já reparou como a bandeira francesa tremula lá no alto? Vou lá porque
sempre me convidam, e porque morro de inveja. Os franceses me
convidam, mas às vezes os espanhóis se esquecem de me convidar, não a
mim, que não sou ninguém, mas ao Ateneo, sempre que podem nos deixam
de lado, o pessoal da embaixada, o do consulado, como se não existíssemos.
O senhor Salama respira agitado, os cotovelos cravados na mesa, o torso
largo debruçado sobre os papéis, as mãos procurando alguma coisa no meio
da desordem, entre programas de concertos, cartas, faturas a pagar,
convites. Já é tarde e ele não encontra o que procura, olha o relógio, verifica
que faltam poucos minutos para o concerto começar, recital de piano do
reputado virtuose D. Gregor Andrescu, obras de F. Schubert e F. Liszt,
entrada grátis, solicita-se pontualidade. Pânico de que quase ninguém
assista, de estar sentado na primeira fila e ver bem pertinho a cara de
decepção e o sorriso obrigatório do pianista, que segundo o senhor Salama
era uma figura de primeira grandeza na Romênia antes de fugir para o
Ocidente e conseguir asilo político na Espanha.
Mas o senhor Salama encontrou o que procurava, um convite redigido
em francês, impresso em cartolina grossa e brilhante, com as armas da
República em dourado, e no meio, sobre uma linha pontilhada, seu nome
escrito com tinta nanquim e caligrafia rebuscada, M. Isaac Salama,
directeur de L’Athénée Espagnol, a prova incontestável de que o convite
está dirigido pessoalmente a ele, de que outros, sendo estrangeiros,
manifestam por ele uma consideração que seus compatriotas não têm.
Inesquecível essa exposição, diz, apanhando o convite, que olha de novo
como para comprovar que seu nome e seu cargo continuam ali, escritos à
mão, nós nunca poderemos trazer para cá nada que se compare: manuscritos
de Baudelaire, primeiras edições de Les fleurs du mal e Spleen de Paris, as
provas com os rabiscos e as correções feitas por ele mesmo. Que curioso,
diz ele, eu não imaginava que essas coisas tão íntimas tivessem durado
tanto, e que pudessem ter chegado até aqui para eu poder vê-las.
E seus olhos ficam rasos de água quando se lembra da emoção de ver,
passado a limpo pela própria mão do poeta, o soneto à bela desconhecida, à
la passante, que é, de todos os de Baudelaire, o preferido do senhor Salama,
ele que o sabe de cor e repete num francês admirável, aprendido com a mãe
na infância, parando com deleite e certa entonação melodramática no último
verso:

Ô toi que j’eusse aimé! Ô toi qui le savais!!

Ele fica como que atolado num silêncio trágico, numa atitude
insondável de remorso e penitência. Olha como prestes a dizer alguma
coisa, o olhar fixo e úmido, abre a boca, tomando ar para falar, mas assim
que começa batem à porta do escritório. Entra uma senhora idosa, magra,
com os óculos pendurados numa correntinha, a bibliotecária e secretária do
Ateneo. Quando quiserem descer, o maestro Andrescu manda dizer que já
está pronto.
Desaparecem um dia, mortos ou não, perdem-se e vão se apagando da
memória como se nunca tivessem existido, ou vão se transformando em
outra coisa, em figuras ou fantasmas da imaginação, já alheios às pessoas
reais que um dia foram, à existência que talvez continuem tendo. Mas às
vezes surgem de novo, pulam do passado, pelo telefone chega uma voz que
havia anos não se escutava ou alguém diz com naturalidade um nome que já
parecia totalmente imaginário, o nome de um morto ou de um personagem
de ficção. Muito longe de Tânger, muitos anos depois, em outra vida, a uma
distância temporal tão imensa que as recordações perderam toda exatidão, e
até quase toda substância, num trem em que viaja um grupo de literatos e
professores, através de uma paisagem de colinas verdes e brumas (mas esse
tempo também já vai ficando para trás, e a ocasião perde nitidez, assim
como as caras então usuais dos companheiros de trem), alguém diz o nome
do senhor Salama, seguido de uma expressão de brincadeira e assombro e
de uma gargalhada:
“Não me diga que você também conheceu o velho Salama, anos e anos
sem me lembrar dele. Que canseira me deu o cara, se alguém tivesse me
avisado a tempo eu não teria pisado em Tânger, e não tanto pela merda que
me pagavam naquele teatro, que estava desabando. Muito afetuoso, o judeu,
e muito prestativo, não é mesmo? Mas muito chato, não largava você nem
no sol nem na sombra, nunca, pegava você de manhã no hotel e o levava
para todo lado, prós cafundós e até para mijar, e o tempo todo com a mesma
história, com a lengalenga de que ninguém na Espanha ligava para ele, e
aqueles casos que contava da época em que chegou a Tânger, foi nos anos
40, não foi? Parece que era de uma família de dinheiro, dá, Checoslováquia
ou por aí, e que tiveram de pagar um dinheirão para que os nazistas os
deixassem sair. Pois é, dos detalhes não me lembro, porque faz séculos, era
naquela época em que a gente ia para todo canto, topava fazer espetáculos
para quem pedia, e aquele chato no telefone era muito simpático, falando
cheio de floreios, não é? Que claro que seria uma honra, se bem que
infelizmente a remuneração não pudesse ser muito generosa, que claro que
seria muito importante para apoiar a cultura espanhola na África... Por que
falava assim? Que cansativo, o judeu, todo dia para cima e para baixo com
as muletas, ele teve um acidente de carro, não teve? Não sou incapacitado
nem inválido, dizia, sou coxo. E, falando em coxo, agora me lembro, ele
não lhe contou a viagem num trem para Casablanca, quando conheceu uma
fulana? Pois é, curioso, porque dizem que contava para todo mundo,
quando bebia uns goles, e começava sempre pela mesma coisa, um poema
de Baudelaire: ele tampouco chegou a recitá-lo para você?”
Sem que a gente saiba, outros usurpam histórias ou fragmentos de nossa
vida, episódios que acreditamos guardar no cofre-forte da memória e que
são contados por pessoas que talvez a gente nem conheça, pessoas que os
escutaram e os repetem deformando-os, adaptando-os a seu bel-prazer ou
com desatenção, ou com um certo efeito de comicidade ou maledicência.
Em algum lugar, agora mesmo, alguém conta alguma coisa que tem a ver
intimamente comigo, algo que presenciou há anos e que eu talvez nem
lembre, e como não lembro tendo a supor que não existe para ninguém, que
se apagou do mundo tão completamente como da minha memória. Partes de
você mesmo vão ficando em outras vidas, como casas onde você viveu e
agora outros ocupam, fotografias ou relíquias ou livros que pertenceram a
você e que agora um desconhecido toca e olha, cartas que continuam
existindo quando quem as escreveu e quem as recebeu e guardou está morto
há muito tempo. Bem longe de você contam-se cenas da sua vida, e você
era alguém tão inventado como um personagem secundário de um livro, um
transeunte no filme ou no romance da vida de outro.
Só que há os detalhes, e dá preguiça inventá-los, falsificá-los, profanar,
com a usurpação de um relato, o que foi parte dolorosa e real da experiência
de alguém.
Quem é você para contar uma vida que não é sua? No trem, nas
Astúrias, a caminho de um congresso de literatura, para matar o tempo
arrastado da viagem, pela simples vaidade de contar com ironia uma
história que para a pessoa não significa nada, e tampouco para quem escuta,
o escritor que disse em voz alta o nome do senhor Salama, embora não
recordasse se era Isaac ou Jacob ou Jeremias ou Isaías, inicia um relato que
dura uns poucos minutos, e não sabe que de algum modo está ampliando
uma afronta, agravando uma humilhação.
O senhor Isaac Salama sobe num trem com destino a Casablanca, para
uma viagem de negócios. Pode-se imaginar que ele tem quarenta, quarenta
e tantos anos, que há algum tempo, desde que o pai se aposentou, dirige as
Galerias Duna, já em relativa decadência, como essas lojas grandes das
capitais das províncias espanholas que foram muito modernas no final dos
anos 50, nos primeiros anos da década de 60, e depois ficaram paradas no
tempo, imóveis numa modernidade envelhecida, pouco a pouco
arqueológica. Quando vai viajar de trem, o senhor Isaac Salama tem o
costume de chegar muito cedo à estação, já que assim pode ocupar seu
assento antes de qualquer outro viajante, e evitar que o vejam andando com
dificuldade e angústia sobre as duas muletas. Esconde-as debaixo do
assento, ou deixa-as bem disfarçadas no compartimento de bagagens, se
possível atrás de sua própria mala, embora também calculando os
movimentos necessários para recuperá-las sem dificuldade, e deixando ao
alcance das mãos as coisas necessárias para a viagem. Também procura usar
uma gabardine leve, jogando-a em cima das pernas. E a época em que os
trens ainda têm cabines pequenas com poltronas frente a frente. Se alguém
ocupa um assento ao lado dele, o senhor Isaac Salama pode passar toda a
viagem sem se mexer, ou esperando que o outro desça antes, e só em caso
extremo se levantará e apanhará as muletas para ir ao banheiro, arriscando-
se a ser visto no corredor, a que os outros se afastem olhando com pena ou
ar de deboche ou até lhe oferecendo ajuda, segurando uma porta ou lhe
estendendo a mão.
Já está quase na hora da partida do trem, e para satisfação do senhor
Salama ninguém entrou em sua cabine. Viajando em primeira classe isso
acontece com certa frequência.
Justo quando o trem começa a andar irrompe uma mulher, agitada com a
corrida que teve de dar para chegar no último minuto. Senta-se defronte do
senhor Salama, que encolhe as pernas paralíticas debaixo da gabardine. Ele
não se casou, mal se atreveu a olhar para uma mulher desde que ficou
inválido, tamanha a vergonha de sua diferença ultrajante, assim como
quando em criança o obrigaram a pôr na lapela do capote uma estrela
amarela.
A mulher é jovem, muito bonita, muito conversadora, culta, decerto
espanhola. Apesar da reticência do senhor Salama, pouco depois do início
da viagem já conversam como se se conhecessem desde sempre, ela
sobretudo, que tem o dom de explicar-se com clareza e fluidez, mas
também de acompanhar com sofreguidão o que lhe contam, e de pedir
detalhes sem parecer intrometida. Instintivamente, os dois se inclinam um
em direção ao outro, é possível que as mãos se toquem em certos gestos, os
joelhos da mulher, nus e sem meias, os do senhor Salama encolhidos e
escondidos debaixo do pano da gabardine. Conversam de perfil para a
paisagem que passa rápido pela janela para a qual nem um nem outro se
viram. O senhor Salama sente um desejo sexual muito forte, mas também
um desejo muito claro e trêmulo de ternura, uma promessa física de
felicidade que ele tem a impressão de ver refletida e correspondida nos
olhos da mulher.
Ambos gostariam que a viagem durasse para sempre: o deleite de
viajarem de trem, de se conhecerem melhor e terem pela frente tantas horas
de conversa, de afinidades mútuas recém-descobertas, até então não
compartilhadas com ninguém. O senhor Isaac Salama, cujo acidente o
deixou imobilizado para sempre na timidez torturada dos adolescentes,
agora descobre em si mesmo uma leveza da palavra que ele desconhecia,
um princípio de sedução e audácia que lhe devolve após tantos anos um
pouco do ímpeto jovial de seus primeiros tempos em Madri. Ela diz que vai
para Casablanca, onde vive com a família. O senhor Salama está prestes a
lhe dizer que também vai para essa cidade, portanto que descerão juntos do
trem e poderão continuar a se ver nos próximos dias. Mas então se lembra
daquilo que estivera ausente nas últimas horas ou minutos, sua obsessão e
sua vergonha, e não diz nada, ou mente, diz que é uma pena, tem de seguir
viagem até Rabat. Se descesse em Casablanca deveria apanhar as muletas,
que ela não chegou a ver, assim como não viu suas pernas, embora tenha
roçado nelas, cobertas pela gabardine.
Continuam conversando, mas começa a haver instantes de silêncio, o
que ambos percebem, ainda que ela tente animadamente preenchê-los com
palavras atrás das quais já existe uma zona de sombra, estranheza ou receio.
Talvez imagine ter cometido um equívoco, dito algo que não devia.
Enquanto isso o senhor Isaac Salama olha pela janela toda vez que o trem
chega a uma estação e calcula quantas ainda faltam para Casablanca, para a
despedida que lhe parece tão irrevogável como se já tivesse acontecido.
Irrita-se com raiva secreta de si mesmo, desafia-se, impõe-se prazos,
limites, concede-se tréguas de minutos, enquanto a mulher continua a
conversar e sorrir, enquanto toca nele com suas mãos desenvoltas, os
joelhos tão perto que se chocam quando o trem freia, e então o senhor
Salama aperta disfarçadamente a gabardine sobre as coxas, para que não
deslize e caia no chão. Vai lhe dizer que também está indo para Casablanca,
vai se levantar da poltrona quando o trem parar e pegará suas duas muletas,
não permitirá que ela tente ajudá-lo a levar a bagagem, porque em tantos
anos já adquiriu uma agilidade e uma força inimagináveis nos braços e no
torso, e quando lhe faltam as mãos é capaz de segurar uma coisa com os
dentes, ou manter o equilíbrio apoiando-se numa parede.
Mas no fundo sabe, e não deixou de saber um só instante, que não se
atreverá. À medida que o trem vai se aproximando de Casablanca a mulher
anota o próprio endereço e o telefone, e pede os dele, e o senhor Salama os
falsifica num papel, com uma letra ilegível. O trem parou e a mulher, de pé
na sua frente, fica meio atrapalhada, estranhando que ele nem se levante
para se despedir, que não a ajude a descer a mala. É pouco provável que
tenha visto as muletas, bem disfarçadas atrás da sacola do senhor Salama,
embora também seja tentador imaginar que tenha reparado nelas, com
perspicácia de mulher, e que já tivesse notado algo estranho nas pernas
juntas demais, cobertas pela gabardine. Não se decide a debruçar-se sobre o
senhor Salama para lhe dar um beijo, e estende-lhe a mão, sorri, encolhendo
os ombros, num gesto de fatalidade ou capitulação, diz-lhe que telefone se
resolver parar em Casablanca na volta, que ela lhe telefonará da próxima
vez que for a Tânger. No último instante o senhor Salama tem a tentação de
se levantar, ou de não soltar a mão da mulher e deixar que ela o levante com
seu apertão vigoroso. Tão forte é o impulso de não permitir que a mulher vá
embora que ele tem a impressão de que voltou a ter força nas pernas e de
que pode ficar de pé sem a ajuda de ninguém. Mas permanece imóvel, e
após um instante de dúvida a mulher solta sua mão, pega a mala, vira-se
para ele pela última vez e sai para o corredor, e ele já não consegue vê-la na
plataforma. Joga-se para trás no seu assento quando o trem começa a andar,
a caminho de uma cidade na qual ele não tem nada a fazer, na qual deverá
procurar um hotel para passar a noite, um hotel perto da estação, porque
terá de tomar bem cedinho um trem de volta para Casablanca. Ó tu a quem
eu teria amado, recitou o senhor Isaac Salama naquela tarde em seu
escritório do Athénée Espagnol, com a mesma gravidade com que teria
recitado os versículos do kaddish em memória de seu pai, enquanto entrava
pela janela aberta o som do apito de um barco e o cantochão de um
muezim, ó tu que sabias.

________________
2 Montera: chapéu de toureiro; banderilla bastão com ponta de ferro,

revestido de papel picado, que os toureiros cravam na nuca do touro. (N.T.)


Münzenberg

Fico lendo até muito tarde, resistindo ao sono para avançar um pouco
mais na leitura, para saber mais coisas da vida desse homem que até ontem
eu desconhecia, Willi Münzenberg, que no início do verão de 1940 foge
para o oeste pelas estradas da França, na grande debandada provocada pelo
avanço dos tanques alemães. Agora, que pela primeira vez nos seus
cinquenta anos de vida vê as coisas com quietude e clareza e adquiriu a
experiência e o equilíbrio para fazer corretamente o que deveria ser feito,
logo agora já nada mais importa, já não há tempo para nada. Não é a
primeira vez que foge, mas é a primeira vez que foge a pé e sem nada e sem
ter para onde ir e sabendo que em qualquer lado das fronteiras da guerra
onde possa buscar refúgio haverá delatores dispostos a entregá-lo, se é que
não cairá anonimamente sob a metralha entre uma fila de reféns escolhidos
ao acaso, ou estraçalhado por uma bomba ou uma mina. Será executado se
os alemães o agarrarem, mas também será se encontrarem seu rastro os
antigos camaradas e subordinados comunistas. Se tentar chegar à Inglaterra,
objetivo um tanto impossível, sabe que ali também será preso como espião,
e que com certeza os ingleses o usarão como refém em algum acordo com
os soviéticos ou os alemães.
Foi tudo e já não é nada nem tem nada, embora alguém se lembre de
que lhe restavam no bolso dois mil francos, com os quais pensava em
comprar um carro que lhe permitisse fugir para a Suíça.
Sabe que o pouco que resta dele mesmo, essa sombra fugitiva pelas
estradas da França, é uma presença inaceitável para muitos, uma
testemunha impertinente ou daninha que seria muito conveniente eliminar.
O que ele acreditava ser sua força, seu seguro de vida, é a causa de sua
condenação. Sabe algo mais: nos serviços secretos ingleses há agentes
soviéticos infiltrados que revelariam a Moscou o rastro de sua presença na
Inglaterra, de modo que tampouco estaria em segurança se o governo
britânico, lealmente, lhe oferecesse refúgio.
Se fecho os olhos, o livro quase escorrega de minhas mãos, enquanto
Willi Münzenberg caminha perdido entre a multidão que inunda as estradas,
que se dispersa pelos campos dos arredores como uma nuvem de insetos
toda vez que se aproximam os caças alemães voando muito baixo, primeiro
os motores ao longe e depois as silhuetas metálicas resplandecendo ao sol
de junho, e finalmente suas sombras, grandes aves de rapina de asas
imóveis e abertas, metralhando um comboio de veículos militares em fuga,
soltando suas bombas sobre uma ponte na qual se amontoam os fugitivos,
atrasados em seu avanço por causa de um caminhão enguiçado. Insetos em
fuga, como os pilotos veem lá de cima: figuras diminutas, gravetos negros e
oblíquos. Mas cada uma dessas ínfimas criaturas é um ser humano, tem um
nome e uma vida, uma cara que não é idêntica à de mais ninguém. Entre
elas Willi Münzenberg quer se confundir, quer ser ninguém para escapar às
manzorras e às fauces do Ciclope. Mas o olho do Ciclope que ele mais bem
conhece e mais teme, Josef Stálin, tudo vê, tudo esquadrinha, não permite
que ninguém escape nem se salve, e nem mesmo encolhendo-se até o
tamanho do inseto mais desprezível um condenado pode escapar de sua
perseguição, nem numa fortaleza do México protegida por muros, cercas de
arame farpado, guardas armados, torreões de vigilância, portões de ferro,
Trotsky conseguiu escapar de uma perseguição que durou mais de dez anos
e envolveu o mundo inteiro.
Quem, entre a multidão que foge ao seu redor, poderia imaginar a
história de Willi Münzenberg, um estrangeiro corpulento, malvestido e mal
barbeado, que passou os últimos meses num campo de concentração, um
desses campos nos quais o governo francês prendeu justamente aqueles
refugiados ou apátridas que mais têm por que temer os nazistas, segundo a
lógica criminosa da época: se estoura a guerra contra a Alemanha, os
refugiados alemães que vivem na França são o inimigo, de modo que é
preciso trancá-los, mesmo que sejam fugitivos do nazismo. Mas, uma vez
trancafiados, eles são a presa perfeita para o exército alemão e para a
Gestapo, da qual acreditaram ter escapado ao fugirem para a França. Em
1933, esse homem, Willi Münzenberg, chegou a Paris com a primeira leva
de fugitivos da perseguição nazista, após o incêndio do Reichstag, no qual
ocupara uma cadeira de deputado comunista. Mas nessa ocasião fugiu num
grande Lincoln Continental preto, dirigido por seu próprio motorista de
libré: não a pé, como agora, quando já não tem nada e não é ninguém,
quando não sabe onde está sua mulher e nem se está viva ou se poderá
voltar a vê-la, no meio da grande desordem da guerra, ela também uma
figura diminuta entre as multidões que fogem, parte do recenseamento
impossível dos deslocados e deportados, milhões de pessoas jogadas nas
estradas de uma Europa subitamente retrocedendo à barbárie, multidões
esperando em plataformas de estações de trem, nos cais das cidades do
litoral, amontoando-se perto das grades ou das portas fechadas das legações
estrangeiras para conseguir passaportes, documentos, vistos, carimbos
administrativos que possam marcar no destino de cada um a diferença entre
a vida e a morte.
Deixei o livro na mesa de cabeceira e apaguei a luz, e ao ficar de olhos
abertos no escuro me dei conta de que o sono que me vencia há um instante
agora desapareceu.
Perdi o sono, como se perde o trem por um minuto, por segundos, e
agora sei que tenho de esperar que volte, o que pode levar horas.
Münzenberg foi visto com vida pela última vez na mesa do bar de um
vilarejo, sentado com dois homens mais moços e falando com eles em
alemão. Talvez também fossem fugitivos do campo, e é muito provável que
um deles o tenha matado: talvez tenham se feito internar no campo de
prisioneiros para ganhar a confiança do homem que tinham ordens de
executar.
Fico quieto no escuro, escutando a respiração de quem dorme ao meu
lado. Münzenberg foge do avanço do exército alemão acompanhado por
esses homens e não sabe que são agentes soviéticos que o espionaram desde
que chegou ao campo de prisioneiros, e a quem foi encomendada sua
execução. Ou talvez saiba e não tenha forças para escapar, para prosseguir o
esforço de uma fuga exaustiva e inútil, a lenta prolongação de uma
perseguição de tantos anos. Vejo pela sacada, acima dos telhados, a grande
esfera do relógio do edifício da Telefônica, que a essa distância tem algo de
arranha-céu moscovita, talvez porque não custa nada imaginar que a luz
vermelha do pináculo é uma grande estrela comunista. Há muitos anos,
quando eu ainda não tinha ido a Nova York, vi em sonho um imenso prédio
de tijolos pretos com uma grande estrela vermelha no seu cume, em forma
de pirâmide, e alguém que ia ao meu lado e que eu não enxergava me disse,
apontando-a: "Esta é a estrela do Bronx".
Na insônia voltam os fantasmas dos mortos e também os fantasmas dos
vivos, dos ausentes a quem há tempos não vejo e de quem não me lembro,
episódios, atos, nomes de vidas anteriores, pontadas quase nunca de
saudades, quase sempre de arrependimento ou vergonha. Também volta o
medo em estado puro, o pânico infantil do escuro, das sombras ou dos
vultos que nele começam a se definir e assumem a forma de um bicho ou de
uma presença humana ou de uma porta prestes a se abrir. No inverno de
1936, no quarto de um hotel de Moscou, Willi Münzenberg permanecia
acordado e talvez fumando no escuro enquanto sua mulher dormia a seu
lado, e toda vez que escutava passos no corredor, aproximando-se do
quarto, pensava com estremecimento de pânico e clarividência de insônia,
já chegaram, já estão aqui. Pela janela de seu quarto via uma estrela
vermelha ou um relógio com os números em vermelho brilhando no
pináculo de um prédio, sobre a vasta escuridão de Moscou, sobre as ruas
por onde a essas horas só circulavam as caminhonetes pretas da NKVD.
Minha avó Leonor, que descanse em paz, de quem mal me recordo,
contava-me quando eu era menino que sua mãe, depois de morta, lhe
aparecia toda noite. Não fazia nada, não dizia nada, nem lhe dava medo, só
melancolia e ternura, e um sentimento de culpa, se bem que minha avó
nunca tivesse usado essa expressão, que não pertencia ao idioma camponês
que falava. Sua mãe a olhava calada, sorria para que não sentisse medo,
fazia-lhe um gesto com a cabeça, como para lhe indicar alguma coisa, pedir
alguma coisa, e depois desaparecia, ou minha avó readormecia, e na noite
seguinte acordava e voltava a vê-la, quieta e fiel, aos pés da cama, a mesma
onde você e eu dormimos agora.
Mamãe, o que você quer? Está precisando de alguma coisa?, minha avó
perguntava, com a mesma solicitude de quando sua mãe vivia, de quando já
estava muito doente e olhava para ela sem falar, seu rosto muito pálido no
travesseiro e seus olhos seguindo-a pelo quarto.
A mãe repetia esse gesto de quem quer dizer alguma coisa mas perdeu a
voz e se esforça e as palavras não conseguem sair de sua boca. Na manhã
de um domingo, na igreja, minha avó entendeu o que sua mãe queria lhe
dizer. Ela era tão pobre e tinha tantos filhos que não pudera mandar rezar
missas para sua mãe, e, embora não fosse muito praticante, o remorso não a
deixava em paz, uma inquietação surda que ela não contara a ninguém. Sem
aquelas missas provavelmente sua mãe não poderia sair do Purgatório. Deu
um jeito e conseguiu um pouco de dinheiro, pedindo emprestado a uma
cunhada, e com as moedas e notas velhas de cinco pesetas enroladas num
lenço, foi à igreja de Santa Maria para encomendar as missas. Nessa noite,
quando sua mãe reapareceu aos pés da cama, ao lado das grades douradas
de bronze, minha avó lhe disse que não se preocupasse, que muito breve já
nada lhe faltaria. Sua mãe não voltou a aparecer, a apresentar-se-lhe, como
ela dizia em sua língua de outro século. Sentiu alívio, mas também tristeza
pela ausência da mãe, definitiva, pois nunca mais a veria, nem mesmo em
sonho.
Esta é a cama em que você e eu dormimos, em que nasceu minha mãe,
em que agora à noite não consigo dormir. Meus pais acharam muito
estranho que quiséssemos trazer para Madri essa cama grande e velha, há
anos lá no fundo do sótão. Nessas grades que agora se perfilam na
penumbra, quando a pupila se adaptou ao escuro, a mãe de minha avó
apoiava sua mão pálida, minha bisavó, de quem em parte eu descendo, e
cujo nome nem sei, embora tenha herdado parte de seu patrimônio genético
que talvez defina um traço de meu rosto ou de meu caráter, de minha saúde
incerta. Que estranho viver nos lugares que foram dos mortos, usar as
coisas que lhes pertenceram, olhar-se nos espelhos onde apareceram seus
rostos, olhar-se com olhos que talvez tenham a forma ou a cor dos deles.
Durante a insônia voltam os mortos, aqueles que esqueci e aqueles que
jamais conheci, aqueles que assaltam a memória de quem, há sessenta anos,
sobreviveu a uma guerra, e parecem lhe dizer que também não os esqueça,
que diga em voz alta seus nomes, que conte como viveram, por que foram
arrastados tão depressa para essa morte que também poderia ter levado esse
alguém. De quem foi que peguei o lugar na vida, que destino foi cancelado
para que o meu se cumprisse, por que fui eu o escolhido e não outro.
Em noites em que no escuro esperei em vão o sono imaginei as insônias
desse homem, Willi Münzenberg, quando começou a entender que a época
de seu poder e de sua soberbia tinha terminado, e só lhe restava um futuro
em que ele fugiria sem trégua nem possibilidade de refúgio e acabaria
morrendo como um cachorro, como um bicho acossado e sacrificado, tal
qual morreram tantos amigos seus, antigos camaradas, heróis bolcheviques
transformados da noite para o dia em criminosos e traidores, em répteis
abjetos que era preciso esmagar, segundo as arengas do juiz bêbado e
demente dos grandes processos de Moscou. Executado como um cachorro,
como Zinoviev ou Bukarin, como seu amigo e cunhado, Heinz Neumann,
dirigente do Partido Comunista alemão, que vivia refugiado em Moscou e
em 1937 morreu talvez com um tiro na cabeça, inerme e desconjuntado
diante de seus verdugos, ou como aquele outro acusado, Josef K., que Franz
Kafka inventou nas insônias febris da tuberculose, sem saber que estava
formulando uma profecia exata. Mas nunca se soube realmente como Heinz
Neumann morreu, quantas semanas ou quantos meses foi torturado, onde
foi enterrado seu corpo.
No campo de extermínio de Ravensbrück a viúva de Heinz Neumann
escutava as histórias de Kafka que sua amiga Milena Jesenska lhe contava.
Em muitas noites de insônia Babette Gross viveu minuto a minuto a tortura
de não saber se o marido Willi Münzenberg estava morto ou numa prisão de
Stálin ou num campo alemão. Anos mais tarde, quando afinal lhe contaram
a verdade, imaginava o cadáver enforcado num bosque, pendurado num
galho, balançando dia após dia até que o galho ou a corda se partiu e o
corpo já rígido caiu no chão, foi se decompondo sem que ninguém o
encontrasse, enquanto ela não dormia perguntando a si mesma se devia ou
não pensar nele como num morto. Quando chegou o outono as folhas caídas
começaram a cobri-lo.
Você dormia ao meu lado e eu imaginava Willi Münzenberg fumando
no escuro enquanto escuta a respiração serena de sua mulher, Babette, uma
burguesa loura e altiva, filha de um magnata prussiano da cerveja,
comunista fanática nos primeiros anos da década de 20, e que viveu muitos
anos mais que ele, quase meio século, uma anciã que nas vésperas da queda
do muro de Berlim recebe um historiador americano e vai lhe sussurrando
num gravador histórias de um tempo e de um mundo desaparecidos,
imagens da noite em que o Reichstag ardeu, ou dos primeiros desfiles dos
Camisas Pardas pelas cidades alemãs, ou de Moscou em novembro de 1936,
quando ela e o marido esperaram, dias a fio no quarto de um hotel, que
alguém fosse visitá-los ou telefonasse anunciando o dia e a hora de um
encontro com Stálin que nunca aconteceu, ou que ouvissem umas batidas na
porta e fossem os homens que vinham prendê-los.
Tem gente que viu essas coisas: nada disso está perdido na desmemória
absoluta, essa que cai sobre os fatos e os seres humanos quando morre a
última testemunha que os presenciou, o último que escutou uma voz e
sustentou um olhar.
Conheço uma mulher que andou perdida por Moscou na manhã do dia
em que se anunciou a morte de Stálin. Estava grávida de oito meses e
voltou para casa porque temia que uma avalanche humana esmagasse a
criatura que já se mexia furiosamente no seu ventre. Ao falar com ela sinto
uma vertigem, como se cruzasse uma ponte alta no tempo, como se quase
me encontrasse na realidade que ela viu, e que se eu não a tivesse conhecido
seria para mim o relato de um livro. Conheço um homem que ganhou uma
Cruz de Ferro durante o cerco a Leningrado, e quando eu era bem jovem
apertei a mão de outro que tinha tatuado na pele pálida de um antebraço
muito magro o número de identificação dos prisioneiros de Dachau.
Conversei com alguém que aos seis anos morria de medo abraçado à mãe
num porão de Madri enquanto soavam as sirenes de alarme, os motores dos
aviões e os estrondos das bombas, e que aos dez anos estava internado num
barracão de Mauthausen. Era um homem miúdo, educado, ausente, que
tinha um nome metade espanhol e metade francês e não pertencia
totalmente a nenhum dos dois países. O cabelo preto bem puxado para trás,
os traços duros e a cara acobreada eram espanhóis, mas os modos e a língua
que usava eram franceses como os de qualquer um dos escritores que
conversavam e bebiam naquele coquetel literário, em Paris, onde nos
encontramos rapidamente, onde começou minha amizade com Michel del
Castillo.
Por acaso, tal como se encontra um desconhecido numa festa, encontrei
Willi Münzenberg num livro que alguém me enviou e que comecei a ler
distraidamente, e por causa dele perdi-me na insônia. Em dado momento da
leitura produziu-se, sem que eu percebesse, uma transmutação em minha
atitude, e quem havia sido só um nome e um personagem obscuro e menor
surgiu-me como uma presença poderosa, alguém que me dizia respeito
muito intensamente, ao que mais me interessa ou a quem sou no fundo de
mim mesmo, àquele que dispara os mecanismos secretos e automáticos de
uma invenção. Você é em grande parte o que outros sabem ou acreditam ou
dizem a seu respeito, o que veem ao olhá-lo; mas quem é você quando está
só no escuro e não consegue dormir, só com o seu corpo imóvel e preso à
cama, com a sua consciência sem desculpas, confrontada à lentidão
intolerável do tempo, à sua duração abstrata total, porque você não sabe que
horas são nem quer acender a luz para não acordar quem dorme ao seu lado,
não sabe se já está no mais profundo da noite ou se a primeira claridade da
manhã já se aproxima.
Entre os fantasmas dos vivos e dos mortos surge Willi Münzenberg.
Fica comigo nessa noite de insônia, e desde então volta muitas vezes,
inopinadamente, ao longo dos anos, encontro-o nas páginas de outros livros
ou sua presença impõe-se à minha imaginação. Toda a sua vida foi um jogo
entre a simulação e a invisibilidade, entre o poder oculto e árduo e o brilho
sem peso das aparências, e acabou sendo quase totalmente invisível,
apagado da História pelos mesmos poderes a que serviu com tanta eficácia,
e que talvez também o tenham apagado da vida, enforcando-o numa árvore
no início de junho de 1940, num bosque da França.
Ontem mesmo descobri que guardava sem saber uma excelente foto
dele, no segundo volume da autobiografia de Arthur Koestler, The invisible
writing. De repente os acasos se cruzam: comprei esse livro de capa
vermelha e papel áspero e amarelo, impresso em Londres em 1954, num
sebo de Charlottesville, Virgínia, num dia de inverno de 1993. A livraria
ficava num edifício de madeira vermelha que tinha algo de cabana e de
celeiro, quase na entrada de um bosque nevado. Ao folheá-lo agorinha
mesmo, procurando a data de edição, vi um detalhe que nunca tinha notado:
na face interna da capa há uma assinatura ilegível, e ao lado um lugar e uma
data, Oslo, janeiro de 1959.
Também não me lembrava da foto, que tem o claro-escuro admirável
dos retratos dos anos 30. Münzenberg olha direto nos olhos, com arrogância
e firmeza, talvez com uma ponta de perdição e desespero antecipado, com a
tristeza que têm nas fotos os mortos, as testemunhas de alguma verdade
terrível. E um homem forte, rude, mas não vulgar, o pescoço sólido e curto
e os ombros largos, o queixo ligeiramente levantado, os olhos perspicazes
com um toque de cansaço, a fronte larga, o cabelo meio despenteado, sinal
de sabe-se lá qual atividade incessante ou de um início de abandono. Vesse
de modo formal mas muito moderno, americano, com uma caneta-tinteiro
no bolso superior, paletó, gravata, camisa sem colarinho postiço.
Seu rosto tinha a simplicidade tensa de uma talha em madeira, mas com
uma franca expressão de amizade, diz Koestler, que trabalhou para ele em
Paris nos tempos em que foi feita a foto: um homem baixo, quadrado,
áspero, de ombros fortes, um ar de sapateiro de aldeia, do qual emanava
porém uma autoridade tão hipnótica que Koestler tinha visto banqueiros,
ministros, duques austríacos se inclinarem na sua frente com a obediência
de escolares.
Nasceu numa família muito pobre, num subúrbio proletário de Berlim,
em 1889. O pai era um taberneiro bêbado e brutal que estourou os miolos
limpando a escopeta de caça. Aos dezesseis anos era operário numa fábrica
de calçados e participava das atividades educativas dos sindicatos. Possuíra
desde sempre e num nível de genialidade o talento prático de organizar
coisas e uma energia que, em vez de se esgotar no debate e no trabalho,
parecia alimentar-se deles. Para não servir ao exército participando de uma
guerra que seus princípios internacionalistas o faziam repudiar, fugiu para a
Suíça, e nos círculos de refugiados de Berna conheceu Trotsky, que logo se
impressionou com sua inteligência, sua paixão revolucionária, sua
capacidade de organização. Trotsky o apresentou a Lênin: muito depressa
Münzenberg fez parte do círculo dos mais fiéis. Em um livro diz-se que era
um dos bolcheviques que viajaram com Lênin no vagão lacrado a caminho
da Rússia às vésperas da Revolução de Outubro. Meu amigo, ele contava
ter ouvido de Lênin, o senhor morrerá sendo de esquerda.
Mas Münzenberg jamais foi idêntico aos seus camaradas comunistas.
Sempre teve um comportamento estranho ou excessivo, mesmo nos tempos
de sua mais firme ortodoxia.
Gostava da boa vida, e, tendo nascido e vivido na pobreza, tinha uma
esplêndida vocação para os grandes hotéis, as roupas caras e os automóveis
de luxo. Era feito da mesma matéria dos grandes plutocratas americanos
surgidos do nada, enérgicos patrões de estradas de ferro ou de minas de
carvão e de ferro que enriqueceram graças à clarividência e à pilhagem, mas
sobretudo a uma forma irresistível de inteligência prática aliada a uma
vontade sem dó nem piedade. Quem o conheceu diz que, se tivesse
resolvido servir ao capitalismo e não ao comunismo, teria chegado a ser um
W. R. Hearst, um Morgan, um Frick, um desses patrões colossais que não se
satisfazem com todas as coisas que possuem, por mais extravagantes que
sejam, e jamais perdem a rusticidade de suas origens, jamais se acalmam,
nem com a idade nem com o poder nem com a posse, e continuam sendo
caipiras joviais no meio do luxo e trabalhadores incansáveis apesar de sua
insondável riqueza.
Nos primeiros anos da Revolução Soviética, quando Lênin vivendo
como um alucinado naqueles aposentos do Kremlin intoxicado pelo próprio
fanatismo, cercado de telefones e lacaios, ainda imaginava que toda a
Europa ia incendiar-se de uma hora para outra com levantes operários,
Münzenberg compreendeu antes de qualquer um que a revolução mundial
não chegaria logo, se é que chegaria um dia, e que o comunismo só poderia
se difundir no Ocidente de um modo oblíquo e gradual, não com a
propaganda espalhafatosa, grosseira e monótona que agradava aos
soviéticos, mas por meio de causas aparentemente desinteressadas e
apolíticas, graças à cumplicidade, em grande parte involuntária, de certos
intelectuais de enorme prestígio, celebridades independentes e de boa
vontade que assinassem manifestos a favor da paz, da cultura, da concórdia
entre os povos.
Willi Münzenberg inventou o afago político aos intelectuais
acomodados, a manipulação adequada de sua egolatria, de seu pouco
interesse pelo mundo real. Com certo desdém referia-se a eles como o
Clube dos Inocentes. Procurava gente moderada, com inclinações
humanitárias, certa solidez burguesa, e se possível com uma aura de
dinheiro e cosmopolitismo: André Gide, H. G. Wells, Romain Rolland,
Ernest Hemingway, Albert Einstein. Lênin teria fuzilado de imediato essa
categoria de intelectuais, ou os teria despachado para um porão da Lubianka
ou para a Sibéria. Münzenberg descobriu que podiam ser imensamente úteis
para tornarem atraente um sistema que ele, no fundo incorruptível de sua
inteligência, devia achar aterrador pela incompetência e pela crueldade,
mesmo nos anos em que ainda o considerava legítimo.
Aos poucos foi se tornando o empresário do Komintern, seu embaixador
secreto na Europa burguesa, que ele adorava, e a cuja destruição tinha
dedicado a vida. Fundava empresas e jornais que lhe servissem de biombo
para manipular os fundos de propaganda vindos da Rússia, mas tinha um
tamanho talento de verdadeiro homem de negócios que cada uma dessas
empresas prosperava e multiplicava os investimentos clandestinos em rios
de dinheiro, com os quais então ele financiava novos projetos de
conspiração revolucionária e negócios fulminantes e audaciosos que
deixavam de servir de biombo ou simulacros para se transformarem em
verdadeiras proezas do capitalismo.
Era um dirigente da Terceira Internacional, mas andava por Berlim e
depois por Paris num grande automóvel Lincoln, sempre acompanhado de
sua mulher loura e envolta em peles, ainda mais rude e atarracado em
contraste com ela, embora Koestler diga que bastava vê-los juntos para se
adivinhar uma cumplicidade perfeita, uma ternura inquebrantável. Inventou
as grandes causas nobres a que ninguém de boa vontade podia deixar de
aderir. A medida de seu triunfo só se compara com a de seu anonimato:
ninguém sabe que Willi Münzenberg foi o primeiro a imaginar as
mobilizações internacionais de solidariedade e os congressos internacionais
de escritores e artistas em defesa da paz ou da cultura. Por experiência
própria sabia que bolcheviques ásperos e reais como Stálin ou como o
próprio Lênin tinham muito pouco encanto para o público no Ocidente:
atrair para a causa da União Soviética um prêmio Nobel de Literatura ou
uma atriz de Hollywood era uma formidável jogada de relações públicas,
termo que também poderia ter inventado. Descobriu que o radicalismo
imaginário e a simpatia por revoluções muito distantes eram um atrativo
irresistível para intelectuais de certa posição social.
Seu primeiro sucesso de organização e propaganda maciça foi a
campanha mundial de envio de alimentos para as regiões da Rússia
assoladas pelas grandes fomes de 1921. O Socorro Internacional dos
Trabalhadores, dirigido por ele, conseguiu que dezenas de navios
carregados de alimentos chegassem à Rússia e que se criasse no mundo
todo uma corrente poderosa de simpatia humanitária pelo sofrimento e pelo
heroísmo do povo soviético. A caridade amorfa de outros tempos
transformava-se em vigorosa solidariedade política, e o benfeitor podia se
sentir confortavelmente a um passo da militância ativa. Münzenberg
idealizou selos, emblemas, folhetos de propaganda com fotografias da vida
na URSS, cromos em cores, pesos de papel com bustos de Marx e Lênin,
postais de operários e soldados, qualquer coisa que se pudesse vender a
baixo preço e desse ao comprador a sensação de que suas poucas moedas
eram um gesto solidário, não uma esmola, uma forma prática e cômoda de
fazer uma ação revolucionária.
Em 1925 foi Münzenberg quem idealizou e dirigiu, por meio de
inúmeros comitês, publicações, passeatas, imagens nos noticiários de
cinema, a grande onda de solidariedade a Sacco e Vanzetti. Suas
publicações comerciais proporcionavam o dinheiro para custear sua
propaganda política, e também multiplicavam a ressonância pública das
campanhas que empreendia. Nos anos terríveis da inflação na Alemanha, no
terremoto do Japão em 1923, na greve geral da Inglaterra em 1926, o
Socorro Internacional dos Trabalhadores sustentava as caixas de resistência
e organizava restaurantes populares, escolas e albergues para crianças órfãs.
Foi a necessidade de imprimir e difundir maciçamente panfletos políticos
que despertou em Willi Münzenberg seu interesse por gráficas e editoras.
Em 1926 possuía na Alemanha dois diários de enorme circulação, um
semanário ilustrado com tiragem de um milhão de exemplares e que era, diz
Koestler, a contrapartida comunista da Life, e uma série de publicações que
incluía revistas técnicas para fotógrafos e para fãs do rádio e do cinema. No
Japão, sua organização controlava direta ou indiretamente dezenove jornais
e revistas. Na União Soviética, produzia os filmes de Eisenstein e
Pudovkin, e na Alemanha organizava a distribuição do cinema soviético e
financiava os espetáculos de vanguarda de Erwin Piscator e Bertolt Brecht.
Cinematecas, clubes de leitura ou esportes, sociedades de excursionismo,
grupos de ativistas em favor da paz se transformavam pelo mundo afora em
sucursais insuspeitas do grande Clube dos Inocentes.
Münzenberg perdeu tudo o que possuía e controlava na Alemanha após
a chegada de Hitler à Chancelaria. Mas era como um desses magnatas
americanos que sofriam espantosas bancarrotas e em pouco tempo tinham
começado a refazer do nada e com a mesma energia invencível uma nova
fortuna. Mal chegou a Paris, exilado, comprou uma editora e organizou o
sustento econômico da resistência clandestina na Alemanha. Com uma
cegueira de dar calafrios, o Partido Comunista alemão tinha considerado até
o último instante que os nazistas eram um adversário menor, porque o
verdadeiro inimigo da classe trabalhadora eram os social-democratas. O
desastre de janeiro de 1922 acabou de convencer Willi Münzenberg de que
o sectarismo suicida de seus companheiros de partido devia ser abandonado
em benefício de uma grande aliança de todas as forças democráticas
dispostas a resistir à maré sinistra do fascismo. Em poucos meses publicou
um dos livros mais vendidos do século XX, o Livro marrom do terror
nazista, e alcançou seu maior êxito, a obra-prima de seu instinto formidável
para a propaganda de massas: a campanha internacional a favor de Dimitrov
e dos outros acusados no processo do incêndio do Reichstag.
Quando se avizinhavam os tempos mais negros do terror e do
extermínio, durante a era Stálin, o talento publicitário de Willi Münzenberg
conseguiu que perante a opinião progressista do mundo a União Soviética
aparecesse como o grande adversário do totalitarismo, mais corajoso e
decidido do que as corruptas democracias burguesas.
Num tribunal de Leipzig, Dimitrov tinha enfrentado galharda e
solitariamente os juízes e os grandes figurões do nazismo e os tinha exposto
ao ridículo, ao mesmo tempo que demonstrava sua inocência e desbaratava
a conspiração para atribuir aos comunistas o incêndio do Reichstag.
Münzenberg nunca parava, de sua imaginação nunca deixavam de fluir
planos e invenções, ideias para livros ou artigos que ele ditava a toda para
as suas secretárias, resumidos em umas poucas linhas que outros deveriam
imediatamente desenvolver, projetos de revistas ou de novas formas de
ativismo político, intuições que se tornavam êxitos editoriais, clubes e
comitês e campanhas, listas de nomes prestigiosos a serem recrutados para
uma nova causa, ajudar os trabalhadores na Revolução das Astúrias em
1934 ou protestar contra a invasão italiana da Abissínia. Entrava como um
furacão em seus escritórios de Paris, tão compacto e enérgico que topar com
ele seria o mesmo que chocar de frente com um trator, falava aos gritos pelo
telefone, fumava com desleixo seus excelentes charutos, enchendo de cinza
as lapelas largas de seu terno de magnata, ditava rascunhos ou memorandos
até três ou quatro horas da madrugada, telegramas que deviam ser enviados
imediatamente a Moscou ou a Nova York ou a Tóquio, examinava os
números de vendas de livros e tiragens de jornais, calculando
instantaneamente as margens de lucro ou os prejuízos, improvisava em voz
alta os regulamentos do Comitê Mundial para o Alívio das Vítimas do
Fascismo Alemão ou a lista dos alimentos e remédios a figurarem
prioritariamente no carregamento de um navio fretado por sua organização
em Marseille e destinado aos trabalhadores em greve no porto de Shangai.
Está em todo lado, executa uma prodigiosa quantidade de tarefas, gente
que circula por vários países lhe obedece e teme, gente que muitas vezes
nem sabe que age a seu serviço: e no entanto também é invisível, ou parece
ser quem não é, e tudo o que faz tem uma parte clara e legal e outra oculta,
uma zona que permanece sempre na sombra, tal como ele mesmo, deputado
no Reichstag e conspirador, empresário apaixonado pelos charutos caros e
automóveis com chofer, e militante comunista, homem do mundo, que entra
nos salões de braço com uma mulher mais alta e mais distinta do que ele, e
espião sarcástico das idiotices e depravações dos ricos, a quem ao mesmo
tempo admira, por quem se sente fascinado, com uma inextinguível
admiração de criança pobre que vê de longe as vidas brilhantes dos
poderosos, que cheira pela rua os perfumes das mulheres envoltas em
estolas de pele e sente por elas um desejo alimentado de raiva social.
Propagandista da revolução proletária, amava a boa vida e o luxo com a
paixão que só pode sentir quem foi muito pobre. Usufruía do brilho e da
proximidade das coisas, mas possuí-las de verdade era-lhe indiferente. Nada
do que tinha era seu, ou apenas de um modo conjetural, provisório, porque
estava em nome de confusas empresas comerciais que funcionavam como
biombo do ativismo e da espionagem soviética.
Na longa insônia a imaginação se desloca e se emaranha em si mesma
com uma insana veemência febril, perturbando a consciência extenuada
com uma proliferação de imagens, palavras e nomes que têm toda a
intolerável variedade arbitrária do mundo real e a desordem e a estranheza
dos sonhos.
Nusenberg em Paris, incansável, insone, ditando ou falando ao telefone,
as multidões em fuga pelos caminhos da Europa, a velocidade vertiginosa
das rotativas, das rodas dos trens, das hélices dos aviões, Münzenberg
subindo de braço dado com sua mulher a escadaria da Ópera, entrando com
ela numa recepção em homenagem a alguma dessas eminências
internacionais a quem ele chama em segredo "os inocentes", André Gide,
Romain Rolland, Wells, Bertrand Russel, Münzenberg esquecendo-se de
que essa vida exterior é um simulacro, tal como o são seus grandiloquentes
congressos pela paz, talvez transformando aos poucos sua impostura em
verdadeira identidade, um homem de negócios casado com uma mulher tão
maravilhosa em sua beleza loura como em suas maneiras e em seu
vestuário, um ativista político que vai aos poucos compreendendo que ele
também pertenceu ao Clube dos Inocentes, foi vítima das mesmas mentiras
que ajudou a difundir.
Ainda não se dá conta, mas já há quem o vigie cumprindo ordens de
Moscou, quem desconfie dele e acrescente seu nome à lista dos que vão ser
eliminados proximamente.
Com Lênin e Trotsky, com Bukarin, sempre pôde se entender, e, seja
como for, aqueles eram outros tempos, ele e Babette ainda alimentavam
intactos o romantismo e a cegueira da Revolução. Meu amigo, o senhor
morrerá sendo de esquerda. Viu Stálin de perto pouquíssimas vezes, mas
acha-o tão impenetrável como a estátua rudimentar de um ídolo. Em
outubro de 1936, um emissário apresentou-se nos escritórios de Paris, um
homem que Münzenberg nunca tinha visto, e que o desagradou por sua
aspereza, por sua pinta óbvia de delator ou agente penitenciário. Ao entrar
na sala, o homem inspecionou de rabo de olho e com cara de reprovação o
luxo do tapete, das cortinas e dos quadros, as formas sólidas e audaciosas
dos móveis, as cadeiras tubulares, a mesa art déco em que Willi
Münzenberg apoiava os cotovelos com informalidade camponesa, cercado
de papéis e telefones. O homem disse-lhe sem rodeios nem cerimônia que
sua presença era requerida urgentemente em Moscou.
Também há um possível traidor na história, uma sombra ao lado de
Münzenberg, o subordinado rancoroso e dócil, culto e poliglota —
Münzenberg só falava alemão, e com um forte sotaque de classe baixa, seu
contraponto físico, Otto Katz, também chamado André Simon, esguio,
evasivo, velho amigo de Franz Kafka, organizador do congresso de
intelectuais antifascistas de Valencia, emissário de Münzenberg e do
Komintern entre os intelectuais de Nova York e os atores e roteiristas de
Hollywood, as estrelas da gaúche caviar e do radical chie; espião
permanente, bajulador assíduo de Hemingway, de Dashiell Hammett, de
Lillian Hellman, estalinistas fervorosos e cínicos. Otto Katz, André Simon,
é a eminência parda por trás das grandes maquinações de Münzenberg e
também a sombra que informa cada um de seus atos e suas palavras aos
novos hierarcas de Moscou. Apressadamente, Münzenberg dá por certa a
sua lealdade, e, sendo tão agudo em sua percepção dos caracteres e das
fraquezas humanas, não percebe o poço de ressentimento que há sob a
suavidade de Otto Katz, a paciência minuciosa com que vai guardando em
segredo, como pequenas contas não pagas, as afrontas que sofre ou imagina
sofrer, as humilhações ou as ofensas que a energia descontrolada e barroca
de Münzenberg lhe teria infligido ao longo dos anos. Koestler diz de Katz
que era obscuro e distinto, com um encanto levemente sórdido. Falava
correntemente e escrevia em francês, inglês, alemão, russo e checo. Nos
cafés de Praga e de Viena tinha conversado com Milena Jesenska sobre
literatura. Sempre piscava um olho ao acender o cigarro, hábito tão
entranhado que também piscava quando se concentrava muito em alguma
coisa, mesmo sem estar fumando. Durante a Guerra Civil Espanhola dirigiu
a Agência Oficial de Notícias do governo republicano, que lhe entregou a
administração dos fundos secretos destinados a influir em certas
publicações e junto a políticos franceses. Willi Münzenberg o resgatara da
miséria e do desespero em Berlim, onde rondava, no início dos anos 20,
pelos albergues de mendigos e bêbados e pelas pontes dos suicidas. Em
1938, quando Münzenberg foi expulso do Partido Comunista alemão,
acusado de trabalhar em segredo para a Gestapo, Otto Katz foi dos
primeiros a renegá-lo publicamente e chamá-lo de traidor.
— Esse rato, Otto Katz, deu-lhe o beijo de Judas. Otto Katz tramou sua
morte, embora não tenha sido quem apertou o nó da corda até estrangulá-lo.
Fala uma mulher, muitos anos mais tarde, uma senhora de noventa anos,
diante de um gravador, na penumbra de um apartamento em Munique. A
idade desfez os traços altivos de seu rosto, mas não seu porte imperioso
nem o brilho de seus olhos, assim como o tempo não amainou seu desprezo
pelo distante traidor, que também está morto, que também foi expulso e
condenado, executado com uma corda no pescoço, em 1952, numa cela em
Praga. Tampouco houve piedade para os verdugos. Otto Katz, diz a senhora,
pronunciando esse sobrenome como se o cuspisse entre seus velhos lábios
apertados, borrados de um batom de cor forte.
Também sigo pelos livros o rastro dessa mulher, procuro seu rosto nas
fotografias, indago entre os labirintos da internet querendo achar o livro que
escreveu nos anos 40 para vingar a memória do marido e denunciar e
envergonhar os que, a seu ver, tramaram a morte dele. Vejo cenas, imagens
não convocadas pela vontade nem baseadas em nenhuma recordação,
dotadas de precisões sonâmbulas nas quais não sinto que minha imaginação
intervenha: as cortinas fechadas do apartamento de Munique, em outubro de
1989, a fita rodando com um chiado tênue no pequeno gravador diante dela,
e no qual ficará preservada sua voz, que jamais escutei, que me chegou
através das palavras silenciosas de um livro descoberto por acaso, lido sem
pausa numa noite de insônia.
Intuí, ao longo de dois ou três anos, a tentação e a possibilidade de um
romance, imaginei situações e lugares, como fotos avulsas ou como esses
fotogramas de filmes que antigamente eram exibidos, montados em grandes
cartazes, nas entradas dos cinemas. Em cada um deles havia uma sugestão
muito forte de alguma coisa, mas desconhecíamos o argumento e os
fotogramas jamais eram consecutivos, e isso fazia com que as imagens
fragmentadas fossem mais poderosas, livres do peso e das convenções
vulgares de um enredo, reduzidas a clarões, a revelações no presente, sem
antes nem depois. Quando não tinha dinheiro para entrar no cinema eu
passava as horas mortas olhando, um depois do outro, os fotogramas
avulsos do filme, e não precisava supor ou inventar uma história que os
unisse e encaixasse como num quebra-cabeça. Cada um deles transmitia
uma valiosa imagem de mistério, justapunha-se aos outros sem nenhuma
ordem, iluminavam-se mutuamente em ligações plurais e instantâneas, que
eu podia desfazer ou modificar como quisesse e nas quais nenhuma imagem
anulava as outras ou criava uma primazia segura entre elas, e tampouco
perdia em benefício do conjunto sua singularidade irredutível.
O estalo do soalho de nossa casa nova ou um pesadelo de doença ou
desgraça me acordavam de repente e era Willi Münzenberg acordando no
meio da noite em sua casa de Paris ou no quarto gelado de um hotel de
Moscou e temendo que seus executores já estivessem chegando,
perguntando-se quanto tempo ainda faltava para que um tiro ou uma facada
cancelassem a grande simulação e a miragem e o delírio de sua existência
pública e a longa ternura de sua vida conjugal com Babette, que dormia a
seu lado e o abraçava em sonhos como você me abraça com uma firme
determinação de sonâmbula.
O trem para numa pequena estação da Sierra de Madri: a garoa, as
ladeiras com árvores e névoa, o cheiro forte da vegetação molhada —
roselhas, pinheiros, os telhados pontiagudos de ardósia dão a sensação de se
ter chegado muito mais longe, a um lugar escondido na montanha, onde
talvez haja sanatórios ou residências para doentes precisando de repouso e
ar puro e frio. O trem é rápido e moderno, mas o prédio da estação é de
pedra nua e as molduras das janelas são de tijolo vermelho, e o letreiro com
o nome do vilarejo está escrito em ladrilhos amarelos. Na plataforma não há
ninguém, mais ninguém desceu do trem. Um cheiro de bosque, madeira e
terra encharcadas logo inunda os pulmões, e o ar parado e a garoa batem em
meu rosto com seus dotes instantâneos de apaziguamento. O trem se afasta
e vou andando por um caminho de terra, carregando minha sacola, até uma
região de quintas onde algumas luzes começam a ser acesas. Em 1937,
temendo por sua vida, tão agitado e exausto que às vezes sentia no peito
uma dor muito aguda, a proximidade de um ataque do coração, Willi
Münzenberg refugiou-se por alguns meses numa clínica de repouso, num
lugar chamado La Vallée des Loups, O Vale dos Lobos. O nome do médico
que a dirigia também parece indício ou promessa de algo: doutor Le
Sapoureux. Mas Münsember é tão inepto para o repouso físico como para o
sossego da inteligência, e mal chega à clínica passa as noites em claro
escrevendo um livro. Ao descer sozinho na plataforma da pequena estação
da Sierra fui Willi Münzenberg procurando à noite o caminho para o
sanatório.
Chegamos numa tarde de inverno a um hotel do norte, em Vitoria.
Deram-nos um quarto no último andar, e ao abrir a janela vi embaixo um
parque nevado, com pérgulas e estátuas, um coreto de música, e ao fundo,
sobre os telhados brancos, um céu cinza em que se esfumava um grande
descampado: Münzenberg e Babette conseguiram sair da Rússia e após uma
noite de trem hospedam-se num hotel perto da estação de uma cidade
báltica, ainda exaustos com a falta de sono e o medo que sentiram ao se
aproximarem da fronteira, temendo que no último momento os guardas
soviéticos que inspecionavam seus passaportes os mandassem descer do
trem.
Caminho por Madri ou Paris e a passagem de um vagão do metrô faz
tremer o chão sob meus passos: Münzenberg sente que o mundo está
tremendo sob seus pés com o anúncio de um cataclismo, e pelo visto
ninguém, além dele, percebe a proximidade e a magnitude do desastre,
ninguém nas varandas dos cafés nem no esplendor noturno dos bulevares,
enquanto o chão está começando a vibrar sob as pisadas de botas e sob o
peso das lagartas dos tanques, sob as bombas que caem em Madri,
Barcelona, Guernica, sem que ninguém na Europa queira escutá-las,
enquanto Hitler prepara seus exércitos e consulta seus mapas e Stálin
concebe o grande teatro público dos processos de Moscou e os infernos
secretos dos interrogatórios e das execuções.
Assisto a uma representação de A flauta mágica e, sem quê nem pra
quê, no meio do entusiasmo e da alegria da música, o homem sentado ao
lado de uma mulher loura é Münzenberg, e a fuga do herói perdido nos
bosques e perseguido por dragões e conspiradores sem rosto também é a
sua fuga: talvez tenha entrado clandestinamente na Alemanha e, conquanto
não goste de ópera, tenha ido a essa apresentação de A flauta mágica num
teatro de Berlim repleto de uniformes pretos e cinza para estabelecer
contato com alguém. Mas a cena não é verossímil: talvez Münzenberg
pudesse entrar na Alemanha incógnito, mas na ópera de Berlim Babette
Gross teria sido reconhecida de imediato, a burguesa comunista, a
escandalosa e arrogante desertora de sua casta social, da grande pátria
ariana.
Mas dá preguiça ou tédio inventar, rebaixar-se a uma falsificação
inevitavelmente entremeada de literatura. Os fatos da realidade desenham
tramas inesperadas que a ficção é incapaz de se atrever a criar: Babette
Gross tinha uma irmã chamada Margarete, também romanticamente
intoxicada de radicalismo político nos primeiros tempos alucinados e
convulsos da República de Weimar. Margarete, tal como a irmã, casou-se
com um revolucionário profissional, Heinz Neumann, dirigente do Partido
Comunista alemão. Nos primeiros dias de fevereiro de 1933, Hitler recém-
nomeado chanceler do Reich, Willi Münzenberg e Babette fogem da
Alemanha no grande Lincoln preto e se refugiam em Paris. Neumann e
Margarete escapam para a Rússia. Ele cai em desgraça e é preso e
executado com um tiro na nuca; sua mulher é enviada para um campo no
norte gelado da Sibéria.
Na primavera de 1939, quando é firmado o pacto germano-soviético,
uma das cláusulas garante a entrega à Alemanha dos cidadãos alemães que
fugiram do nazismo e buscaram asilo político na União Soviética. Nenhuma
fronteira é refúgio e todas são ciladas que se fecham como alçapões sobre
os pés caminhantes dos condenados. Margarete é transferida, de trem, da
Sibéria até a fronteira da Polônia recém-dividida, e os guardas soviéticos a
entregam aos guardas dos SS, e após três anos num campo soviético ela
passa outros cinco num campo de extermínio alemão.
Ali, em Ravensbrück, onde as presas comunistas a tratam como a uma
traidora, conhece uma checa, Milena Jesenska, que vinte anos antes tinha
sido o grande amor de Franz Kafka, e circulado nas mesmas rodas boêmias
e radicais de Praga frequentadas por Otto Katz antes de emigrar para Berlim
e lá cruzar com Willi Münzenberg. No campo de Ravensbrück, Margarete,
que nunca tinha ouvido falar de Kafka, escuta pela voz de Milena a história
do caixeiro-viajante que certa manhã acorda transformado num enorme
inseto, e a do homem que, sem saber que crime cometeu, é submetido a um
julgamento fantasmagórico em que de antemão ele é condenado e depois
executado como um cachorro num descampado, em plena noite. Milena,
muito doente, vencida pela fome, morre em maio de 1944, quando falta
pouquíssimo para chegarem ao campo as notícias de que os Aliados
desembarcaram na Normandia e os russos já avançam pelo Leste. Mas para
Margarete a aproximação do Exército Vermelho não é esperança de
liberdade, e sim ameaça de outro cativeiro, repetição de um pesadelo.
Escapa do campo alemão na desordem dos últimos dias, foge pela Europa
de dois exércitos, dos alemães em fuga e dos soviéticos que avançam, de
dois possíveis infernos aos quais sobreviveu com inacreditável firmeza por
oito anos.
Em 1989, com noventa anos, sua irmã Babette conta essas coisas a um
jornalista americano, Stephen Koch, que está escrevendo o livro sobre Willi
Münzenberg que descobrirei por acaso sete anos depois. Babette mora em
Munique, só e lúcida, ainda muito ereta, com o brilho intacto da juventude
no fundo dos olhos. Há uma firmeza fanática em seu jeito de olhar às vezes
para o homem muito mais moço, a diabólica determinação de viver e de
prevalecer que ainda mantém certos velhos em vida. Pouco depois se muda
para Berlim e o apartamento onde vive não fica muito longe do muro: certas
noites terá escutado o barulho das multidões que se manifestavam do outro
lado, chegará a seu quarto o estrondo dos foguetes, os cantos das
comemorações, na noite de 9 de novembro, quando terminou de desabar na
Europa o mundo em que ela, seu marido, sua irmã e seu cunhado tinham
acreditado sessenta anos antes, e ajudado a construir.
A mulher fala com voz baixa e clara, num inglês antiquado e perfeito, o
das classes altas britânicas dos anos 20, e sua voz, como seus olhos, é muito
mais jovem que ela. Tudo aconteceu há tanto tempo que é como se nunca
tivesse existido. Tudo o que sabe e recorda deixará de existir dali a poucos
meses, quando Babette, já muito doente, morrer. Aí desaparecerão com ela
e se perderão o rosto de Willi Münzenberg, o cheiro de seu corpo e dos
cigarros que fumava, o testemunho de seu entusiasmo, da maneira como foi
sendo minado, primeiro pelo receio e depois pelo pânico, a desconfiança de
que estava começando a ser perseguido, de que para ele não haveria perdão.
A lucidez também, a descoberta de que ele mesmo, formidável inventor de
mentiras, também havia sido enganado, ou não tinha desejado ver o que
estava diante de seus olhos, o que tentou contar num livro apressado e
tumultuado quando já era tarde demais, quando os intelectuais que ele havia
enfeitiçado, utilizado e,, desprezado durante tanto tempo deram-lhe as
costas, quando seu nome já estava sendo difamado, apagado
cuidadosamente dos testemunhos de seu tempo.
Chegavam mensageiros para transmitir-lhe a ordem de que devia viajar
a Moscou. Ele inventava postergações, pretextos para adiar a viagem,
porque era impensável que se negasse abertamente a obedecer. Outros que
ele conhecia tinham ido a Moscou e nunca regressaram, seus rastros e até
seus nomes eram apagados, ou eram denunciados publicamente nos jornais
e revistas do Partido como responsáveis por traições monstruosas. Willi
Münzenberg bem sabia como se organizava uma campanha de espontânea
indignação internacional, como a realidade podia ser maleável caso se
utilizassem com inteligência as técnicas publicitárias de persuasão, a
repetição maciça e insistente de alguma coisa.
Não podia ir a Moscou justamente agora, dizia, no primeiro verão da
guerra na Espanha, quando precisava mais uma vez exibir todos os seus
talentos de organizador e propagandista em defesa da última de suas
grandes causas, a mais próxima de seu coração, após a queda da Alemanha,
a solidariedade internacional com a República Espanhola, com o governo
da Frente Popular.
Mas as mensagens, as ordens secretas continuavam chegando, cada vez
mais secas e urgentes, menos veladamente ameaçadoras, ao mesmo tempo
que chegavam notícias de detenções e interrogatórios. Em novembro de
1936 Münzenberg e Babette Gross viajaram para Moscou. Ele ainda era um
alto dirigente do Komintern e do Partido Comunista alemão, mas na estação
não havia ninguém para recebê-los. Um casal de estrangeiros com roupas
luxuosas de inverno, no meio da tristeza e da penúria soviéticas das
plataformas, o homem com seu chapéu de feltro e o manto comprido feito
sob medida, a mulher de salto alto, meias de seda, rosto empoado e
cabeleira loura emergindo da gola do casaco de pele, e ao lado deles a
bagagem empilhada de viajantes de trens de luxo e dos melhores camarotes
dos transatlânticos, malas de couro com ferragens douradas e rótulos de
hotéis internacionais, baús, frasqueiras, caixas de chapéus: a imagem de um
anúncio ou do fotograma de um filme no papel acetinado de uma revista
ilustrada dos anos 30, uma dessas revistas que Willi Münzenberg concebia e
publicava.
Ninguém tampouco os esperava no hotel que lhes fora indicado e não há
nenhum recado para eles no quarto. Da janela, num altar muito alto do hotel
enorme, recém-construído e já lúgubre, com mulheres uniformizadas e
armadas montando guarda no fundo dos corredores, com um silêncio que
nem vozes nem campainhas de telefone quebram, Willi Münzenberg e
Babette veem ao longe, muito alta, acima dos telhados escuros, uma estrela
vermelha brilhando no topo de um arranha-céu. Este é o mundo a que
dedicaram suas vidas, a única pátria a que era lícito um internacionalista
jurar lealdade. Sobre uma mesa de cabeceira há um telefone preto, mas está
desligado ou enguiçado, e ainda assim o olham com a esperança ou o medo
de que comece a tocar. Como de hábito, ao entrarem na URSS tiveram seus
passaportes retirados, e não têm passagens nem data de regresso.
A única recomendação que Willi Münzenberg recebeu é a de esperar.
Será recebido e ouvido quando chegar a hora. Sua incapacidade de
permanecer inativo torna a espera mais intolerável que o medo. O homem e
a mulher acostumados à boa vida, à brilhante agitação social de Berlim e
Paris, ficam sozinhos e confinados num hotel de Moscou, no tédio sombrio
da espera e do medo, mal se aventurando a sair para as ruas onde o inverno
é rigoroso, ruas lúgubres à noite quando se lembram das luzes das capitais
da Europa onde sempre viveram. Se saem para passear serão seguidos. Se
descem ao saguão ou ao restaurante do hotel alguém dá conta de seus
passos, e se alteiam um pouco a voz ao conversar o garçom que lhes serve
xícaras de chá repetirá cada palavra que disserem. Serão escutados se
falarem ao telefone, e se enviarem um postal a Paris alguém o estudará sob
a luz forte de uma lâmpada procurando nele mensagens secretas, e o
guardará para usá-lo no momento oportuno como prova material de alguma
coisa, espionagem ou traição.
Após alguns dias idênticos alguém bate à porta. Os rostos tensos e
pálidos de Münzenberg e Babette deparam, depois de um instante de
incerteza, com as caras tão familiares e no entanto agora tão estranhas de
Heinz e Margarete Neumann, os únicos que se decidiram ou se atreveram a
visitá-los. Talvez se atrevam porque já sabem que estão condenados, porque
também vivem isolados numa solidão de doentes contagiosos. Só se
aproxima sem receio de um infectado quem carrega a mesma infecção. Os
quatro juntos, as duas irmãs louras e os dois homens de origem operária, as
quatro vidas encurraladas. Falam em voz baixa, bem pertinho uns dos
outros, os quatro de manto, no quarto gelado do hotel de Moscou,
sussurrando por medo dos microfones, tantas coisas para se contarem após
tantos anos de separação, tão pouco tempo para dizer tudo, para trocar
advertências, a qualquer momento homens de capas de couro preto muito
semelhantes às da Gestapo podem bater à porta do quarto ou derrubá-la aos
pontapés.
Despedem-se e sabem que nunca mais se verão, os quatro juntos, e
poucos meses depois Heinz Neumann é preso e desaparece nas salas e nos
calabouços da prisão Lubianka, diante da qual há uma estátua gigantesca de
Feliz Dzerzinsky, o aristocrata polonês que fundou a polícia secreta de
Lênin, e que Münzenberg conheceu muito bem nos primeiros tempos da
Revolução.
Mas o passado não conta mais, e até pode se tornar um aspecto do
sentimento de culpa. Diz Arthur Koestler que ministros e duques se
inclinavam perante a autoridade enérgica e rude de Willi Münzenberg, mas
em Moscou ninguém o recebe, ninguém responde a seus telefonemas. Foi
tudo e não é ninguém: o passado é tão remoto, tão irreal na distância, como
as luzes noturnas de Paris e Berlim recordadas na monotonia lúgubre das
noites de Moscou, nas quais os únicos faróis são os dos automóveis pretos
da polícia secreta.
Ele, Münzenberg, organizou a formidável campanha internacional que
transformou Dimitrov em herói, não do comunismo, mas da grande
resistência popular e democrática contra os nazistas. Graças a ele os juízes
alemães tiveram de deixar em liberdade Dimitrov, que agora, em Moscou, é
o chefe supremo do Komintern. Mas Dimitrov não responde aos recados de
Münzenberg, nunca está em sua sala quando ele tenta visitá-lo e não se sabe
daqui a quanto tempo voltará para Moscou, i O Clube dos Inocentes, dos
crédulos, dos idiotas de boa vontade, dos enganados e sacrificados sem
recompensa: fui um deles, pensa Münzenberg em suas insônias no quarto
do hotel, ajudei Hitler e Stálin a arrasarem a Europa com idêntica
bestialidade, contribuí para inventar a lenda do enfrentamento mortal entre
eles, fui um peão quando imaginava, inebriado por minha soberbia,
comandar o jogo na sombra.
Talvez sua vida não lhe importe muito, ainda menos que todo o
dinheiro, todo o poder e o luxo que manipulou e perdeu: importa-lhe o que
Babette pode sofrer, ela pode ser arrastada e sucumbir às consequências dos
erros que ele cometeu, de todas as mentiras que contribuiu para espalhar
manipulando e profanando os impulsos mais generosos, as vaidades mais
grotescas, a candura inextinguível dos inocentes.
Para salvar Babette ele não se rende, assedia os dirigentes do Komintern
que em outra época foram amigos ou subordinados seus e agora fingem não
conhecê-lo, esgrime velhas credenciais que já não servem para nada, sua
campanha mundial de socorro aos operários soviéticos nos anos da fome,
seu bolchevismo de primeira hora, dos primeiros tempos mitológicos da
Revolução, a confiança com que Lênin o distinguia. O senhor morrerá
sendo de esquerda. No mausoléu da Praça Vermelha, sinistro e gelado como
um frigorífico, com uma iluminação tênue de capela, olhou de perto a
múmia de seu antigo protetor, seu rosto irreconhecível, com uma
consistência opaca de cera, as pálpebras fechadas de seus olhos asiáticos.
Viemos ao reino dos mortos e não querem nos deixar voltar.
Afinal consegue um encontro com um burocrata poderoso, protegido de
Stálin: no escritório de Togliatti, Münzenberg grita, vinga-se, dá murros na
mesa, organiza o espetáculo impressionante de sua cólera de magnata, como
se ainda possuísse jornais com tiragens de milhões de exemplares e carros
de luxo, como se os tivesse possuído de verdade algum dia. Tem de voltar o
quanto antes para Paris, diz, vai organizar a maior campanha de propaganda
que já houve, o recrutamento de voluntários, a coleta de fundos, remédios,
alimentos, o fornecimento de armas, a solidariedade dos intelectuais do
mundo todo com a República Espanhola.
Togliatti, que é obtuso e manso, dissimulado, covarde, um herói da
resistência comunista e democrática contra Mussolini quase totalmente
inventado pela máquina de propaganda política de Münzenberg, concorda
ou finge concordar com seu pedido de regresso: marca um dia para a
viagem e garante a Münzenberg que seu passaporte e o de Babette estarão
esperando por eles no quartel de polícia da estação. Talvez Münzenberg lhe
pergunte se sabe alguma coisa de Heinz Neumann, e o que é possível fazer
por Heinz e Greta Neumann: Togliatti sorri, solícito mas também reservado,
mostrando com cautelosa vilania sua superioridade atual em relação ao
antigo dirigente poderoso da Internacional. Diz que nada se pode fazer, ou
que nada vai acontecer, que logo tudo estará resolvido, sugere que não
convém a Münzenberg perguntar isso agora, justamente quando está prestes
a partir.
Novamente o homem e a mulher com abrigos dispendiosos e chapéus na
plataforma da estação, com sapatos de verniz, uma grande pilha de malas
perto deles, estranhos e sem dúvida insolentes, lapelas largas e golas de
pele, olhados de banda, vigiados, cheios de medo, impacientes, inseguros,
vão ou não ser autorizados a partir.
Aproxima-se a hora da saída do trem mas os passaportes não estão no
quartel de polícia, conforme prometeu Togliatti. Ao redor deles estende-se a
rede de uma armadilha e não sabem se a cada passo que dão estão mais
perto de caírem nela ou se cada minuto ou dia de prorrogação é uma etapa
prevista no processo que culminará com sua condenação. Mas não voltarão
ao hotel, agora que o trem já anunciou a partida não vão vacilar e se trancar
e continuar esperando. Münzenberg pega com força o braço de sua mulher,
tão alta e graciosa ao seu lado, e a guia até o estribo, dá instruções para que
subam com a bagagem até sua cabine. Se vão prendê-los, que o façam agora
mesmo. Mas ninguém se aproxima, ninguém barra seu caminho no corredor
do trem, que se põe lentamente em marcha na hora prevista.
Em cada estação, em cada parada, olham para a plataforma procurando
os soldados ou os homens à paisana que subirão para prendê-los, que lhes
pedirão os passaportes e os farão descer do trem aos gritos e com maus
modos, ou em silêncio, cercando-os, guiando-os com suavidade, para não
assustarem à toa os passageiros.
Foi a viagem de trem mais longa de nossas vidas, conta Babette Gross
ao jornalista americano cinquenta e três anos depois. Na luz suja do
segundo amanhecer chegaram à estação fronteiriça. Acreditávamos que era
ali que estariam nos esperando, para prolongarem ao máximo a caçada.
Com passo firme, enquanto os passageiros faziam fila na plataforma nevada
para o controle de passaportes, Willi Münzenberg dirigiu-se ao quartel de
polícia, com o cinto do abrigo bem apertado e as lapelas levantadas contra o
frio, a aba do chapéu caindo de banda sobre seu rosto alemão rústico e
carnudo.
Num envelope fechado, os dois passaportes esperavam por ele.
Sou muito dotado para intuir esse tipo de angústia, para perder o sono
imaginando que você e eu vamos nesse trem. Apavoram-me os papéis, os
passaportes e certificados que podem se perder, as portas que não consigo
abrir, as fronteiras, a expressão inescrutável ou ameaçadora de um policial
ou de alguém que use uniforme ou exiba na minha frente alguma
autoridade. Amedrontam-me a fragilidade das coisas, da ordem, e a
quietude de nossas vidas sempre em suspenso, dependendo de um fio que
pode arrebentar, a realidade cotidiana tão certa e conhecida que de repente
pode se quebrar num cataclismo, num desastre. Nos anos que lhe restam de
Vida Willi Münzenberg foge e não se rende, toma consciência da magnitude
e da proximidade cada vez mais certa do horror, seus olhos claros dilatados
de lucidez e espanto, sua inteligência ainda alimentada por uma vontade
incessante. Em 1938 é expulso do Partido Comunista alemão, sob a
acusação de ser espião e provocador a serviço da Gestapo e ninguém sai em
sua defesa. Ainda lhe resta energia para fundar outro jornal, para denunciar
em suas páginas a dupla ameaça do comunismo e do fascismo e apelar para
a resistência popular contra ambos, para o despertar urgente da letargia
idiotizada e covarde das democracias, que abandonaram a República
Espanhola e toleraram o rearmamento agressivo e a brutal empáfia de
Hitler, que lhe entregaram a Checoslováquia achando que conseguiriam
saciá-lo, ou pelo menos apaziguá-lo temporariamente. Em seu jornal, Willi
Münzenberg vaticina que Hitler e Stálin assinarão um pacto para dividirem
o domínio da Europa, e também que não muito tempo depois Hitler se
virará contra seu aliado e invadirá a União Soviética, mas ninguém lê esse
jornal, ninguém dá crédito a esses delírios de um homem que parece
enlouquecido, dedicado a confirmar com a extravagância do próprio
comportamento e das próprias palavras as piores suspeitas que vinham se
formulando contra ele, a construir para si mesmo o descrédito e a ruína com
a mesma desenfreada energia com que em outros tempos levantou um
império econômico e um labirinto de organizações internacionais.
Tão estranho como o fato de um dia esse homem ter existido é o de
quase não existirem vestígios de sua presença no mundo. Quem sabe ainda
estará vivo alguém que o tenha conhecido e se lembre dele. Babette Gross,
que sobreviveu a ele tantos anos, também é uma sombra. Numa fita gravada
por Stephen Koch sua voz ainda vibra, falando inglês com um sotaque
antiquado e empolado, e na lembrança desse homem resta o brilho
orgulhoso de seus olhos no fundo das órbitas que já transluziam a forma da
caveira.
Mas há uma parte final da história que essa mulher não sabia e que
ninguém pode contar, a não ser que ainda viva o homem que amarrou uma
corda em volta do pescoço grosso de Willi Münzenberg e depois o
pendurou no galho de uma árvore, no meio de um bosque cerrado francês,
na primavera de 1940. Não há testemunhas, nunca se chegou a saber quem
eram os homens que estavam com Willi Münzenberg na última vez que
alguém o viu, sentado à porta de um café, num vilarejo francês, num
entardecer ameno de junho, bebendo alguma coisa e conversando, em
atitude de perfeita naturalidade, como se a guerra não existisse, como se os
tanques alemães não estivessem avançando torrencialmente pelas estradas
que levam a Paris.
Os três homens foram embora do café e ninguém se lembra de tê-los
visto, três desconhecidos sem nome na grande maré da guerra e da
vergonha da capitulação. Meses mais tarde, em novembro, ao entrar no
bosque com a primeira luz do dia, um caçador segue seu cachorro que
fareja excitado com o focinho bem perto da terra e encontra um cadáver
meio escondido pelas folhas outonais, encolhido numa posição muito
peculiar, os joelhos dobrados contra o peito, o crânio quase partido pelo
atrito de uma corda que foi se afundando nele durante o processo de
decomposição. Com os olhos abertos no escuro da insônia imagino uma luz
tênue, entre azulada e cinza, desbotada na névoa, o ruído das folhas roçando
nas botas molhadas do caçador, a respiração ofegante e os grunhidos, a
impaciência condoída, o suspiro sufocado do cão enquanto enfia o focinho
na terra fofa e porosa. Fico pensando nos vestígios que permitiram atribuir a
esse cadáver desfigurado e anônimo a identidade de Willi Münzenberg, e se
a caneta-tinteiro que vi na foto do livro de Koestler ainda estava no bolso
superior de seu paletó.
Olympia

Dias antes de partir eu já vivia transtornado pelo ímã da viagem, atraído


por seu influxo magnético para a data e a hora da partida que se
aproximavam com tanta lentidão. Ainda não havia começado a partir e já
estava partindo, tão imperceptivelmente que ninguém poderia notar minha
ausência dos lugares e das coisas, os lugares onde vivia e trabalhava e as
coisas que eram prolongações de mim mesmo e sinais e vestígios de minha
existência, de minha vida imóvel de então, circunscrita a uma só cidade e,
dentro dela, a umas poucas ruas, a cidade em que acabei me instalando por
acaso e as ruas que eu percorria em horas fixas entre minha casa e o
escritório, ou entre este e os bares aonde eu ia tomar café diariamente com
meu amigo Juan, na meia hora exata de liberdade que me concediam os
regulamentos trabalhistas administrados pelos relógios de ponto onde
introduzíamos ao sair nosso cartão como se fosse um abre-te sésamo.
Nunca vivi tão obcecado por viagens impossíveis como nessa época, tão
alheio a mim mesmo, a todo o tangível, o real, o que havia perto de mim.
Não é que uma parte decisiva de mim permanecesse sempre oculta para
todos: eu é que estava escondido, eu era meu próprio segredo e minha
trivial clandestinidade, e o resto, o exterior, a casca, o que os outros viam
não tinha a menor importância, não tinha nada a ver comigo. Um
funcionário municipal de pouquíssima qualificação, auxiliar administrativo,
mas com emprego fixo, casado, um filho pequeno. Com vaidade literária,
eu queria me refugiar em minha condição de desconhecido, de escondido,
mas a verdade é que havia em mim uma propensão ao conformismo, pelo
menos tão acentuada quanto meu instinto de rebeldia, com a diferença de
que o conformismo era prático e real, enquanto da rebeldia só chegava a
transparecer ocasionalmente para os outros uma confusa atitude de tédio, se
excluo minhas conversas diárias com Juan, que nessa época tinha uma vida
muito parecida com a minha e trabalhava umas poucas salas mais adiante.
Eu ia para o trabalho e, mesmo não tendo nada a ver com meus colegas,
gostava que me considerassem um deles. Tinha sido aprovado em concurso,
tinha me casado na Igreja, e exatos nove meses depois do casamento meu
filho nascia. Às vezes me invadia o arrependimento de não ter sabido ou
podido me atrever a outro tipo de vida, uma nostalgia aguda de outras
cidades e outras mulheres, cidades onde eu nunca tinha estado, mulheres
que eu recordava ou inventava, umas por quem me apaixonara em vão,
outras que imaginava ter perdido por falta de coragem.
Uma mulher em especial, de quem eu continuava me lembrando apesar
dos cinco anos que não a via; ela agora morava em Madri, casada também,
com um ou dois filhos, não tinha certeza, porque só muito ocasionalmente
recebia notícias suas, indiretas, e ainda estremecia quando alguém dizia seu
nome.
Havia dois mundos, um visível e real e outro invisível e meu, e
mansamente eu me adaptava às normas do primeiro para poder me refugiar
no segundo sem maiores aborrecimentos.
Tantos anos depois, sonho de vez em quando com aqueles tempos na
repartição, e o que sinto agora não é aflição, mas placidez e melancolia.
Sonho que me incorporo ao trabalho após uma ausência muito longa, e
faço-o sem angústia, sem que nenhum vestígio das amarguras e das
limitações de então tenha ficado nessa parte do inconsciente que alimenta
os sonhos.
Agora que os anos passaram, entendo que minha aparência dócil não era
só uma máscara, a identidade falsa de um espião, mas também parte
substancial e verdadeira de mim mesmo: a parte amedrontada e obediente
que sempre existiu em minha personalidade, a satisfação de ter diante dos
outros uma presença respeitável, filho e aluno e depois funcionário e
marido e pai exemplar. Em meus sonhos de retorno à repartição municipal,
da qual fui embora há tanto tempo, meus colegas me recebem muito
afetuosamente, e não estranham que eu tenha voltado nem me perguntam os
motivos de tão longa ausência. Durante anos gostei de rememorar,
fabulando-as, as rebeldias turbulentas de minha adolescência, mas agora
creio que faziam parte de minha personalidade tanto quanto o afã de
conformismo que me guiou tão fortemente até o final da infância, e que sem
dúvida voltou a agir sobre minha vida adulta quando aceitei me casar e não
me neguei a cumprir certas obrigações e aceitei humilhações que no fundo
me provocavam uma surda hostilidade: o casamento na Igreja, o simulacro
de comunhão, o banquete familiar; eu obedecia sem resistência, ao pé da
letra, a tudo o que estava prescrito desde sempre. Sabia que estava me
enganando, mas não me custava nada deixar-me levar, e havia momentos
em que me enganava com certo êxito, tal como enganava ou iludia a mulher
com quem estava casando sem verdadeira convicção e os parentes das duas
famílias congratulando-se por, afinal, ter se concluído um noivado tão
duvidoso, tão errático e longo. Nunca pensava na irresponsabilidade desse
silêncio, na amargura e na dose de mentira que eu estava espalhando, fora
de mim mesmo e do espaço secreto de minhas fantasmagorias, na vida real
de quem estava ao meu lado.
Em criança eu obedecia com prazer a meus pais e meus professores, e
ter notas excelentes e ser considerado um aluno exemplar me enchiam de
orgulho. Era invejado pelas mães dos meus amigos, e se algum professor
me favorecia com um sinal de preferência eu me sentia, literalmente,
embargado de satisfação. Não fingia, como inventei depois, não me
empenhava em tirar boas notas por querer escapar da vida estreita e do
trabalho no campo a que minha origem me predestinava. Estudava porque
era isso que se devia fazer, e porque o cumprimento dessa obrigação me
agradava tanto como o dos preceitos religiosos. Até os quinze anos fui
escrupulosamente à missa e confessei e comunguei sem nunca sentir que
respeitava um ritual alheio a mim; por certo tempo alimentei um início de
vocação sacerdotal.
Se me vejo como tão rebelde, o certo é que tive ao longo da vida
pouquíssimos impulsos de verdadeira rebeldia, de ruptura e coragem, e
muitos foram tão acanhados, tão insensatos em sua temeridade, que só me
deixaram uma lembrança de vexame e fracasso. Uma vez, aos vinte e dois
anos, abandonei tudo, minha namorada e a vida respeitável e a consideração
de meus pais e dos pais dela, que já tinham me aceitado como filho
exemplar. Apaixonei-me por essa mulher e quando ela foi para Madri não
consegui resistir à sua ausência nem retomar a normalidade do meu
namoro. Deixei tudo, namorada e exames de final de curso, subi uma noite
no expresso e nas primeiras horas da manhã apresentei-me no
supermercado que pertencia à família de minha amada, pois nem sabia seu
endereço em Madri. Pela forma como me olhou percebi, apesar de meu
transtorno, que para ela o que acontecera entre nós tinha terminado, ou
simplesmente não tivera muita importância, não chegara a existir
plenamente. Voltei no expresso na mesma noite, com a desagradável
sensação de decepção e ridículo. Fiz as pazes com minha namorada, e na
hora em que ela me abraçou chorando e dizendo que sempre teve certeza de
que eu ia voltar, pensei com um toque de sórdida lucidez que estava me
enganando, mas não fiz nada, não tornei a fazer nada durante muitos anos,
só me deixando levar, fazendo tudo o que se esperava ou exigia de mim.
Por muito tempo, enquanto trabalhava naquela repartição, na cidade do
interior onde havia me instalado, rondava em meu espírito uma frase de
William Blake que eu tinha lido não lembrava onde, e que provavelmente
cito agora de forma imprecisa: "Quem deseja e não age engendra a peste".
Eu era uma soma de desejos sem atos, de imaginações tão irreais como as
que costumavam me fazer companhia nas solidões mansas da infância.
Sempre querendo partir, eu parecia ter bicho-carpinteiro e nunca me sentia
bem num lugar, e de repente me vi instalado, paralisado, sedentário, aos
vinte e sete anos, pagando promissórias de um apartamento, vivendo um
tempo sedimentado em triênios, de casa para a repartição, da repartição para
casa, imaginando viagens, sonhando acordado sem nem sequer enxergar a
realidade, refugiando-me nos livros, confusamente cercado de parentes e
colegas de trabalho, dividindo toda manhã com meu amigo Juan, na meia
hora de pausa, a mansidão exterior e a rebeldia secreta, a fidelidade
conjugal e os desvarios sexuais e romanescos com as mulheres
desconhecidas com que cruzávamos na rua, as vendedoras das lojas de
roupas, as modelos das revistas coloridas ou as heroínas acetinadas e já
totalmente impalpáveis dos filmes em preto-e-branco.
Era com isso que meu amigo e eu sonhávamos em vão, mulheres e
viagens, lugares a que era pouco provável que fôssemos um dia e mulheres
que não dormiriam conosco nem chegavam a nos olhar ou a reparar em nós
quando cruzávamos com elas nas travessas perto da repartição, nas ruas
comerciais do centro, nos bares onde entrávamos para tomar café, toda
manhã à mesma hora, às nove e meia, às vinte e cinco para as dez, com o
jornal debaixo do braço comprado toda manhã na mesma banca, o café com
leite e o pão torrado e o copo de água mineral gasosa que o garçom nos
servia sem que pedíssemos, nós também transformados em presenças e
hábitos da rotina matinal de outras pessoas, figuras repetidas circularmente
como os bonecos mecânicos que desfilam quando batem as horas nos
relógios das praças alemãs.
Passávamos toda manhã pela vitrine de uma agência de viagens onde
havia um grande cartaz de Nova York. Gostávamos dessa agência por seus
cartazes de lugares distantes e porque trabalhava lá uma mulher muito
bonita, que nunca víamos na rua nem em outro lugar que não fosse sua
mesa de trabalho. Era loura, esguia, com um perfil extraordinário; toda
manhã nós a víamos pela vitrine: falava no telefone ou batia à máquina, as
costas retas, quase sempre com um pulôver de gola rulê que batia no seu
queixo, um perfil ao mesmo tempo vertical e meio inclinado para a frente,
como o dessa talha em madeira de Nefertiti que vi muitos anos depois,
quando já viajava, no museu egípcio de Berlim. Tinha o rosto fino, a boca
volumosa, os olhos grandes e puxados, o nariz com esse toque de excesso
que têm certos admiráveis narizes italianos.
Falava ao telefone fazendo gestos com a mão magra que segurava um
lápis, inclinando o rosto para segurar o fone enquanto virava as páginas de
uma agenda ou um catálogo, e toda manhã nós a observávamos com nossa
avidez furtiva, ficando só um minuto perto da vitrine, pois temíamos que
nossa presença chamasse a atenção. Era uma visão dupla, já que dentro da
agência, defronte dela, havia um grande espelho na parede. Toda manhã
gostávamos de observar alguma novidade em sua beleza, se usava o cabelo
solto ou se o tinha prendido num rabo-de-cavalo que ressaltava a pureza de
seu perfil, ou num coque que revelava a linha fantástica de seu pescoço e
sua nuca. Atrás da vitrine envidraçada, diante do espelho em que se
multiplicavam as plantas que enfeitavam sua mesa e os cartazes de cidades
estrangeiras e paisagens de praias ou desertos, ela pertencia tanto à vida
cotidiana da cidade como ao exotismo dos lugares vislumbrados em seu
trabalho, e parte do feitiço que tinham para nós os nomes de outros países e
cidades e a grande foto colorida de Nova York também se refletiam nela,
que talvez fosse tão sedentária como nós, mas que em sua agência, ao falar
no telefone e marcar horários e reservas de hotéis, parecia dotada de um
dinamismo exótico que era o avesso de nossa lentidão de funcionários, e
que sem sair de sua mesa tinha adquirido a cor dourada das praias do Índico
e a desenvoltura das mulheres mais bonitas da Via Veneto, de Portobello
Road, da calle Corrientes, da Quinta Avenida. Fantasiávamos sobre a
possibilidade de entrar um dia na agência e pedir-lhe com a maior
naturalidade um folheto, uma informação sobre hotéis ou reservas de voos.
Mas nunca entramos, é claro, e nunca a vimos entrar ou sair do trabalho
nem cruzamos com ela nas ruas por onde passávamos diariamente. Estava
dentro da agência de viagens, atrás da vitrine e no vidro do espelho, tal
como Ingrid Bergman ou Marilyn Monroe ou Rita Hayworth estavam nos
filmes em e preto-e-branco, tão inalterável e alheia como as outras, e toda
manhã a olhávamos alguns instantes e depois continuávamos nosso curto
passeio de meia hora, a banca dos jornais, o café com leite e o pãozinho
torrado no café Suizo ou no Regina, talvez uma parada nos Correios, onde
Juan botava uma carta, e em seguida voltávamos para a repartição, antes
que fossem dez e cinco no relógio de ponto digital em que devíamos
introduzir nosso cartão.
Havia também uma doçura nessa repetição diária, na familiaridade
assídua com esquinas e praças, com a claridade solar da Bibrrambla e a
sombra das travessas que desembocam nela, e os rostos repetidos, as
presenças sincronizadas, a mesma moça de óculos escuros chegando toda
manhã na mesma hora para levantar a grade de uma loja com manequins e
espelhos, a mulher da agência de viagens Olimpia, a que chamávamos de
Olympia, com o ípsilon da Olympia de Manet, os vendedores de bilhetes de
loteria, até os mendigos e os vagabundos eram repetidos, adaptavam-se a
uma rotina de trabalho parecida com a minha, cada um com sua vida, com
seu romance secreto e trivial, figuras de fundo no outro romance que eu
vivia ou inventava para mim mesmo, não o romance de meus atos, mas o
das coisas que não me aconteciam, o das viagens que eu não chegava a
fazer e das ambições que meu amigo Juan e eu postergávamos para um
futuro em que nenhum dos dois acreditava muito, mas que era uma
desculpa aceitável para nossa pusilanimidade do presente.
A amizade também era repetição e hábito: encontrar-se toda manhã no
mesmo lugar, ir passeando até o café, as mãos nos bolsos e o jornal debaixo
do braço, conversando sem nenhuma obrigação de contar novidades nem
fazer confidencias exageradas. Estávamos desanimados, os dois, em grau
semelhante, aflitos com as consequências de uma idêntica docilidade e
covardia, ambos desejando coisas mais além de nosso alcance, vidas que
não iam chegar ou que havíamos deixado escapar de nossas mãos, fracassar
por culpa de nossa timidez ou medo, de nossa falta de entusiasmo. Com
toda a certeza parte de nossa amizade era feita dessa matéria entorpecida e
triste, e não nos custava nada dividir a sensação de uma confortável
capitulação e o sarcasmo forçado com que cada um de nós olhava a
mediocridade emocional de sua vida e a deterioração lenta de suas
ambições. Cada um via no outro o espelho da própria insuficiência. Unia-
nos não tanto o que éramos, mas o que não éramos, o que nenhum dos dois
se atrevia a ser. Cumpríamos com idêntica correção nossas obrigações
externas, nossos deveres de funcionários, maridos e pais, e só de vez em
quando abandonávamos o tom do sarcasmo neutro de nossas conversas para
nos permitirmos o impudor de uma queixa, o reconhecimento de uma
infelicidade obstinada e rotineira, despojada de qualquer carga
melodramática, mas também de qualquer esperança de alívio que não fosse
um aperfeiçoamento da hesitação. Muitas manhãs, durante o passeio da
pausa para o café, Juan ia jogar uma carta na caixa do Correio que fica nas
arcadas da rua Ganivet. Como qualquer pessoa muito atenta à própria
melancolia, eu era então bem pouco observador. Supunha vagamente que
essas cartas eram da repartição, até que um dia percebi que tinham selos de
correio internacional. Juan não fazia menção de ocultá-las, mas havia algo
em sua atitude que me dissuadia de perguntar pelas cartas. Uma vez,
enquanto tomávamos café, ele foi ao banheiro e deixou o jornal sobre o
balcão do Suizo. Fui abri-lo e escorregaram duas cartas. Uma vinha de
Nova York e estava dirigida a ele, mas o endereço do envelope era o da
repartição, não o de sua casa. A outra era Juan que tinha escrito, e sua
destinatária era a mesma mulher que lhe escrevia de Nova York. Em poucos
segundos deixei novamente os dois envelopes dentro do jornal dobrado, e
quando Juan voltou não lhe perguntei nada, e pensei, meio desconsolado,
que na vida do meu amigo, que eu imaginara transparente para mim, havia
um lado oculto que ele preferia não me contar.
À saída da travessa onde ficava na época o Club Taurino encontrávamos
certas manhãs nosso companheiro Gregorio Puga, vice-diretor interino da
banda de música, depois de ter perdido um cargo de muito mais prestígio na
banda de outra cidade, e que a essa hora, tão cedo, já estava meio bêbado,
cheirando a álcool azedo e a saliva de nicotina, apesar dos grãos de café
torrados que chupava acreditando refrescarem seu hálito. Gregorio foi o
primeiro amigo que tive ao entrar na repartição, talvez porque todo mundo
já estivesse afastado dele, que devia buscar entre os funcionários novos uma
companhia para tomar café no meio da manhã ou beber cerveja e copos de
vinho nas tabernas escondidas daquele bairro do centro. De Gregorio
contava-se que teria sido um virtuose da composição e da direção musical
se não fosse seu vício da bebida. Sua versão era diferente, pois enunciava
com queixosa monotonia de bêbado: não tinha fracassado porque bebia,
mas bebia porque uns e outros o haviam empurrado para o fracasso, o
haviam feito abandonar sua carreira tão promissora, iniciada sob os
melhores auspícios em Viena, e tudo a troco de quê, de um triste salário, da
segurança mesquinha de um emprego fixo. Acotovelava-se no balcão, o
copo numa das mãos, na outra o cigarro, preso entre as pontas amarelas dos
dedos indicador e médio, os dedos murchos e macios de funcionário
envelhecido, embora na época não acredito que tivesse mais de quarenta e
cinco anos: eles atraem a gente com o salário, você se acostuma com esse
pouco dinheiro seguro, e não tem mais vontade de continuar estudando, e
menos ainda se a sua mulher logo o encheu de filhos e vive repetindo que
você é um inútil, que devia mesmo é deixar de bobagens e sonhos e
trabalhar para subir na carreira, ou então procurar um emprego de tarde. No
início você não quer, claro, as suas tardes são sagradas, você tem que
continuar compondo, ensaiando com os outros músicos até tirar-lhes o que
nem eles mesmos sabem que guardam dentro de si, e não quer dirigir uma
banda municipal, mas uma orquestra, esse era o sonho da minha vida, mas
você perde a vontade, e além disso é verdade que o dinheiro faz falta,
portanto aceita dar aulas particulares ou entra para uma academia, e antes
de ser pago no fim do mês já está com o dinheiro gasto e comprometido, é a
roupa dos meninos pra cá, são os livros e os uniformes do colégio pra lá,
porque nós tínhamos de colocá-los em colégios de padres. Você sai do
trabalho ao meio-dia e, sem ânimo de voltar para casa, fica tomando uns
copinhos de vinho, belisca qualquer coisa e vai para o emprego da tarde, e
depois, ao terminar, pois é sempre a mesma coisa, vamos beber um trago,
Gregorio, e no início você diz não, e depois, bem, é só uma bebidinha e
mais nada, porque a patroa vai ficar chateada já que não viu a minha cara na
hora do almoço, você toma duas doses e depois pede um copo de vinho para
se despedir, ou para enfrentar a bronca que o espera em casa, e entre umas e
outras esquece de olhar o relógio e quando sai para a praça del Carmen os
sinos já estão batendo onze horas, que loucura, compro cigarro e vou direto
me recolher, mas não tem moedas para jogar na máquina e não se anima a
pedir que troquem a nota, portanto pede um copinho de vinho, e quem sabe
se não encontra então um amigo que estava sozinho no balcão, e ele o
convida para mais um, ou é o garçom que convida, pois passou a vida toda
vendo-o entrar e sair, e lhe serviu cafezinhos e os cafés com pinga da
primeira hora da manhã e as biritas da hora do aperitivo, e os cafezinhos e
os copos de depois do almoço, embora você na verdade não tenha
almoçado, pois com qualquer coisa que belisque enche o estômago.
Lembro-me com ternura e pena de Gregorio, o maestro Puga, que há
vários anos não vejo, e fico pensando se continuará perambulando pelos
bares de funcionários no centro, se ainda estará vivo e continuará
alimentando o sonho de uma estreia sinfônica, acotovelado num balcão com
seu terno já um tanto surrado e sujo, o cigarro entre os dedos cor de
nicotina, a mão segurando molemente o copo de vinho, talvez um grão de
café mexendo-se de um lado para outro da boca em que já lhe faltavam
alguns dentes. Lembro-me das manhãs em que meu amigo Juan e eu o
encontrávamos ao dobrar uma esquina e não tínhamos tempo de evitá-lo, e
devíamos aguentar a monotonia queixosa de suas confissões de bêbado e a
teimosia de seus convites para beber alguma coisa, para entornar depressa
um copinho de conhaque ou de anis nos poucos minutos que ainda faltavam
até acabar a nossa meia hora de folga. Mais incauto, no meu primeiro dia de
trabalho na repartição aceitei tomar uma bebida com ele à saída e não me
largou até onze da noite, e acabei tão bêbado que na manhã seguinte não me
lembrava de nada do que tínhamos conversado ao longo de tantas horas, de
tantos bares e cigarros e copos de cerveja e de vinho. Só de uma coisa eu
me lembrava, e disso não me esqueci porque depois daquele dia Gregorio a
repetiu muitas vezes, pegando-me pelo braço para chegar mais perto,
envolvendo-me com seu bafo de vinho azedo e de fumo preto enquanto me
olhava com seus olhos vermelhos e me dizia: — Não se acomode, que não
aconteça com você o que aconteceu comigo, vá embora daqui o quanto
antes, não vá acabar como eu, não se acomode, não se deixe comprar.
— Não penso em ficar aqui muito tempo. Vou embora quando aparecer
algo melhor.
— Esta é a armadilha, esperar que apareça alguma coisa melhor, foi isso
que aconteceu comigo. Não se pode esperar, tem-se de ir embora, mesmo
que não se tenha mais nada, tem-se de estar preparado para tudo, para
passar necessidade se for preciso, porque se você aceita um pouco aceitará
tudo, engolirá tudo. Você não tem mulher, não tem filhos, não tem dívidas
nem hipotecas, portanto, é agora ou nunca.
À medida que passava o tempo comecei a fugir de Gregorio, como todo
mundo fugia, porque era um chato e um bêbado e não havia jeito de se
livrar dele, e mesmo sentindo afeto por ele não aguentava o seu bafo nem o
tédio de suas histórias cada vez mais desconchavadas, de suas queixas
minuciosas sobre as intrigas e as manobras de que era vítima no trabalho,
na banda municipal, onde outro com menos méritos e mais pistolão político
acabou sendo nomeado diretor titular. Mas também fugia dele porque me
dava vergonha que visse em mim o cumprimento de seus vaticínios:
passavam-se os anos e eu continuava esperando que me aparecesse algo
melhor, e indo toda manhã às oito em ponto para o trabalho, mas agora já
tinha obrigações, era casado e tinha um filho e pagava todo mês a prestação
do carro e a do apartamento, e ainda que minha mulher ganhasse no seu
emprego um salário maior que o meu nem sempre chegávamos folgados ao
fim do mês, e eu estava considerando a possibilidade de procurar uma
ocupação à tarde, e, embora não admitisse, renunciava aos objetivos que
julgava tão inadiáveis e válidos quando ingressei na repartição: em especial
o de me preparar para o que eu tanto gostaria de fazer, ser professor
universitário ou pesquisador de um ramo da história da arte, ou até
professor de geografia e história num colégio secundário. Mas me faltavam
tempo e vontade, e as tardes livres iam embora sem que eu me desse conta,
e de toda maneira a cada ano mal surgiam umas poucas vagas de professor
de história, para dezenas de milhares de diplomados nas universidades,
muitos dos quais, meus colegas de curso e desesperados após anos de
desemprego, olhavam com inveja até mesmo um posto tão pouco atraente
como o meu. Eu cruzava num corredor com meu amigo Gregorio, ambos
com uma pasta de documentos debaixo do braço, ou o encontrava ao virar
uma esquina das travessas onde ficavam as tabernas que serviam de refúgio
para os funcionários no meio da manhã, a fim de tomarem um café rápido e
furtivo, e meu desagrado com seu mau hálito e seu ar indecoroso de
alcoolismo e infortúnio era mais forte que a gratidão que deveria sentir por
sua amizade generosa, e, se pudesse, eu olhava para o outro lado e escapulia
por uma porta lateral para não ver seus olhos avermelhados nem cheirar seu
bafo azedo, mas sobretudo para não escutar mais uma vez o que sabia que
ia me dizer: — Mas o que você está fazendo que não vai embora daqui,
quantos anos vai continuar aguentando?
Ás vezes eu partia, mas só uns dias, mandavam-me a Madri para
resolver problemas ministeriais ou fazer pedidos de material que eu devia
inspecionar, e embora as viagens fossem muito curtas e minhas diárias
escassas e minha baixa qualificação impusesse hotéis quase-espeluncas e
refeições em restaurantes modestos, a proximidade da partida agia sobre
mim como um estimulante poderoso, empurrava-me como um ímã na
direção do tempo futuro, devolvendo-me intacta a felicidade infantil dessas
expectativas de viagem, o ímpeto de partir que havia se apagado em mim
quase por completo nos últimos anos, ou estava reduzido a uma vaga
disposição imaginária sem nenhuma influência sobre a realidade.
Já estava partindo vários dias antes que o trem saísse, o expresso
noturno com seus carros-leitos azuis que tinha algo do Orient Express
quando eu chegava com minha mala à plataforma um pouco antes das onze
da noite, com o alívio infinito de estar sozinho, de ter me desgarrado
provisoriamente da sucessiva angústia da repartição e de casa, dos horários,
dos lugares, dos sobressaltos e das noites em claro por causa de meu filho,
ainda tão pequeno. Nos primeiros episódios dessa viagem tão curta que eu
ia fazer parecia estarem contidas todas as sensações e a excitação de uma
viagem de verdade, de qualquer uma das viagens que eu lia nos livros e via
nos filmes ou inventava olhando mapas e guias coloridos. No meio de
minha vida tão sossegada, tão amena em tudo, a viagem me dava uma
plenitude física quase intolerável, uma sensação de liberdade e perda de
peso, como se ao sair para a estação eu me livrasse das obrigações e dos
hábitos que gravitavam ao meu redor, e ao fechar com uma batida a porta
do táxi que me levaria eu fechasse de repente toda a minha identidade real.
Ia embora e parecia que não era eu; deliciava-me com a embriaguez,
não de fingir ser outro, mas de literalmente não ser ninguém. Dissolvia-me
nos momentos que estava vivendo, na satisfação de me deixar levar pela
locomotiva e olhar, pela janela de minha cabine, luzes de estradas e cidades,
casas iluminadas onde morava gente sedentária, que a essa hora via
televisão ou dormia em quartos insalubremente aquecidos, no sufocante
acolchoado conjugal, a água chilra conjugal de que fala Cernuda, que eu lia
muito na época, seu discípulo e aprendiz na amargura da distância
inviolável entre a realidade e o desejo.
Eram tão raras as viagens que a monotonia administrativa dos
compromissos não chegava a eliminar, sobretudo na partida, uma sensação
intensa e pueril de aventura.
Mas se eu viajava tão pouco não era só por serem escassas as ocasiões.
Às vezes eu escapava de uma viagem para não contrariar minha mulher, que
não gostava de me ver longe de casa, angustiada com seu próprio trabalho e
com a criança para cuidar, e que nem sempre queria entender que as idas a
Madri não eram escapadas caprichosas, mas tarefas próprias de minha
condição administrativa, cujo desempenho correto sem dúvida poderia
contar ponto para uma promoção tão necessária, embora de perspectiva tão
distante.
Quando me decidia a aceitar uma viagem, porque me apetecia muito ou
sabia que recusá-la me prejudicaria no trabalho, não me atrevia a dizer à
minha mulher, e ia sempre deixando para o dia seguinte a contrariedade de
lhe dar a notícia, de modo que no final era obrigado a lhe contar com
inevitável brusquidão, quando já não havia mais jeito, ou, pior ainda, ela
ficava sabendo antes que eu lhe dissesse, por algum telefonema da
repartição ou da agência de viagens que providenciava as passagens. Sem
necessidade de ser infiel, meu estado natural era a culpa, e o segredo inócuo
de uma viagem de trabalho pesava sobre mim como o desassossego de um
adultério. Sentia-me preso num emaranhado de reprimendas e
ressentimento urdido por mim mesmo, com minha tendência ao silêncio e à
covardia tortuosa de minhas postergações. Já estava partindo muito antes de
partir, mas até o último minuto não era certo que eu fosse, pois o desgosto
de minha mulher podia me levar a suspender a viagem, ou uma desgraça de
última hora, que o menino começasse a ter febre muito alta, ou que ela de
repente se sentisse muito mal, com uma crise de lumbago ou uma
menstruação muito difícil, dores das quais eu me achava tão culpado como
se manejasse uma faca, e que se agravariam com a minha ausência, quase a
minha deserção.
Finalmente eu partia e ainda não acreditava que estava de fato partindo,
e a velocidade do táxi que me levava à estação era um impulso irresistível
de felicidade, fracassada pelo pânico de chegar tarde e perder o trem por
causa de um engarrafamento, ou porque eu demorara muito a sair, a me
desvencilhar de minha família e de minha vida, do aconchego conjugal e
sufocante de meu apartamento, do magnetismo de contrariedade e
abandono que minha mulher irradiava, segurando o menino no colo, que
chorava mais ao me ver indo embora, ela com o rosto muito pálido e os
olhos tristes, parada na soleira da porta enquanto chegava o elevador.
Numa manhã de inverno, durante uma daquelas viagens a Madri,
terminei muito depressa os compromissos no Ministério da Cultura e me vi
sem ter o que fazer o dia todo.
O trem de volta só saía às onze da noite. Em Madri logo sentia a
decepção, o desamparo de estar só numa cidade tão grande onde não
conhecia ninguém, e onde tudo era cheio de incertezas e perigos, tanto ao
cruzar uma daquelas avenidas tão largas cujo semáforo sempre ficava
vermelho antes que eu chegasse ao outro lado como ao sair à noite de um
cinema e me encontrar num labirinto de ruas escuras onde não era
improvável que um sujeito com navalha me assaltasse, um daqueles
drogados lívidos que na época se postavam na esquina da Gran Via com a
rua Hortaleza. Intoxicavam-me a solidão, o atordoamento, já não digo de
não conhecer ninguém, mas de não ser ninguém, um pequeno funcionário
do interior que três dias depois de ter viajado em busca de paisagens mais
vastas e ares menos viciados já estava se encolhendo como um caracol e
andava perdido pela cidade levando a insidiosa depressão como se fosse
uma febre a enfraquecê-lo, a fazê-lo desejar inconfessadamente o abrigo de
sua casa e das ruas conhecidas e estreitas onde se passava a sua vida.
Surge agora uma lembrança com a qual eu não contava, o fragmento de
uma viagem que não consigo situar no tempo, embora sem dúvida pertença
a essa época: passeando sem rumo cheguei ao Retiro, numa manhã de
nevoeiro muito denso, dentro do qual cruzei ruas que não pareciam de
Madri, nem da Espanha, ruas de edifícios nobres e árvores frondosas, o
asfalto brilhante de garoa, as calçadas amarelas de folhas recém-caídas,
folhas grandes dos plátanos e castanheiros-da-índia, embora não creia que
nessa época eu me fixasse de verdade nas árvores nem me interessasse por
seus nomes. O Museu do Prado, o Jardim Botânico, a ladeira de Moyano.
No alto de uma colina arborizada há um edifício que lembra um templo
grego e é o Observatório. Ao escrever revivo meus passos de então, abrem-
se as coisas diante de mim como se abriam nessa manhã as formas das
árvores e das casas quando eu me aproximava no nevoeiro, as figuras
imóveis das estátuas, ameaçadoras ou serenas, a estátua de Pio Baroja ou a
de Cajal ou a de Galdós, sozinhos entre o arvoredo do parque deserto,
perdidos melancolicamente num pomposo esquecimento de bronzes e
mármores.
Emerge da memória a surpresa de um edifício de vidro do outro lado de
um laguinho, com colunas e filigranas de ferro pintadas de branco, branco
deslavado no cinza translúcido da claridade matinal velada de névoa, no
verde imóvel e escuro da água. Lembrei-me de ter lido no jornal que no
Palácio de Cristal do Retiro havia uma exposição dedicada ao exílio dos
republicanos espanhóis no México. Tudo reaparece, após tantos anos sem
me lembrar, aquele dia banal de uma viagem banal a Madri, aquele passeio
ao acaso que me levou ao Retiro e a encontrar, entre a neblina e as árvores,
o Palácio de Cristal como uma dessas casas encantadas que aparecem diante
do viajante perdido nos bosques dos contos.
Lembro-me de objetos, fragmentos: vitrines com recortes de jornais e
cupons de racionamento, monitores de vídeo projetando velhos filmes de
soldados envoltos em farrapos e fugindo pelas estradas rumo à França,
amontoados nas estações fronteiriças de Port-Bou e Cerbère, após a queda
da Catalunha. Lembro-me de um quadro-negro e de uma carteira de aula
que tinham pertencido à primeira escola de crianças espanholas no México,
e de um avental escolar azul-marinho, com gola de celuloide branca, que
me fez inesperadamente tremer de aflição, como os cadernos de caligrafia
preenchidos a lápis por crianças de quarenta anos antes e os estojos de lápis
de cor idênticos aos que eu tinha na minha escola. O avental também
lembrava muito o meu, e os mapas da Espanha num oleado policromado e
rachado eram como os que vi ao entrar pela primeira vez na sala de aula, só
que nestes a bandeira que se via era tricolor, vermelha, amarela e arroxeada.
Havia uma foto grande de uma multidão tentando subir num navio a vapor,
num porto francês. Parada perto de mim, uma mulher de uns cinquenta anos
a olhava, dizendo algo em voz baixa com sotaque mexicano, embora não
houvesse ninguém com ela. Respirava muito forte: olhei-a e estava
chorando.
— Eu ia nesse navio — disse-me, a voz entrecortada de choro, uma
senhora mexicana de óculos grandes e cabelo penteado para trás e pintado,
a única pessoa que havia além de mim nessa manhã na exposição, no prédio
de vidro cercado de nevoeiro, como acolchoado de silêncio. — Sou uma
dessas figurinhas que o senhor vê na foto. Tinha oito anos e morria de medo
de me soltar da mão de meu pai.
Agora recupero outras passagens, a recordação que ia contar quando
surgiu na minha frente a caminhada pelo Retiro na manhã de nevoeiro, a
forma sem peso do Palácio de Cristal, o arroxeado bonito e melancólico das
bandeiras republicanas nas estantes de uma exposição, insígnias de um país
que perdi antes de nascer. Saio uma manhã do Ministério da Cultura, na
praça del Rey, vou andando sem rumo, desalentado de antemão por todas as
horas em que não terei nada para fazer e não falarei com ninguém, em que
irá me contagiando devagar a irrealidade de estar só numa cidade grande e
estranha, de transformar-me num fantasma que me olhará às vezes como a
um desconhecido, do espelho de uma vitrine. Olho o relógio, calculo que a
essa hora meu amigo Juan está terminando seu café da manhã, lendo o
jornal no balcão do Suizo, e talvez já tenha atravessado a passagem de
pedestres defronte ao prédio dos Correios, onde jogará na caixa uma dessas
cartas que tenta me esconder. Em vez de estar voltando para o trabalho
junto com ele, os dois com o mesmo passo desanimado, caminho por Madri
abandonando-me ao acaso do traçado e dos nomes das ruas, e meia hora
depois já me perdi, ou talvez tenha me deixado levar por uma memória
antiga que não pertence de todo à minha consciência, mas ao impulso cego
e contumaz de meus passos. Em certa rua há certa firme porta, diz um
poema de Borges. Ando por ruas de calçadas estreitas e portões de
corredores profundos, com peixarias e frutarias e papelarias antiquadas,
com armazéns e armarinhos mais velhos que os da cidade onde vivo, com
um pulular agitado de carros e gente, de vozes categóricas dos velhos
artesãos de Madri. Estou me lembrando, deixo-me levar, estou indo para
onde não deveria, para onde estive uma só vez. Fernando VI, Argensola,
Campoamor, Santa Teresa: em algum momento, sem que eu soubesse, sem
que me atrevesse a admitir, o acaso se transformou em objetivo, e a
sequência dos nomes das ruas desenha sobre a cidade onde sou um
forasteiro uma ferida que há tempos não dói, mas que ainda se pode apalpar
como uma fina cicatriz na pele, como a recordação ao despertar de um
sonho em que voltamos a sofrer por alguém que já não nos diz nada.
Rua Campoamor, esquina de Santa Teresa: foi aqui, há cinco anos,
naquele tempo em que os anos pareciam durar muito mais e não se esvaíam
tão depressa como hoje.
Naquela época, uma distância de cinco anos era remota e nela cabia a
metade de uma vida. Qualquer coisa, assim que passava, parecia ter
acontecido muitos anos antes. Agora é como se as coisas mais distantes
tivessem acontecido ontem mesmo.
Reconheço os postigos brancos nas sacadas do segundo andar. Até aqui
tudo só existia em minha imaginação febril decorrente da solidão, eu podia
estar inventando ou sonhando com a passagem por essas ruas em que
ninguém me conhece e ninguém nota minha existência de fantasma. Mas
agora, se ela aparecer na sacada vai me reconhecer, e se eu subir os dois
lances de escadas de madeira e bater à sua porta a campainha estará tocando
de verdade, nas vidas de outras pessoas, e minha presença pode ser uma
surpresa indesejada, uma irrupção impertinente ou constrangedora. Em
todos esses anos não soube quase nada dela, e de qualquer maneira mal nos
conhecemos, só convivemos durante um período muito curto, há muito
tempo.
Meus pensamentos não correspondem aos meus atos, do mesmo modo
que não há correspondência nem relação alguma entre minha presença e o
lugar onde estou. Zanzei pelas esquinas, olhando para as sacadas, pensando
ver em algum momento uma figura que chegasse perto das vidraças.
Aproximei-me do portão, que estava aberto e tinha esse cheiro tão peculiar
de umidade e madeira dos velhos portões de Madri. Numa das caixas de
correio vi seu nome, escrito à mão, ao lado do nome do marido. Esse nome
que eu pronunciava trêmulo e que continha todas as possibilidades da
ternura, da incerteza, da dor e do desejo, é um nome comum escrito à mão
no cartãozinho de uma caixa de correio, entre outros nomes de vizinhos que
cruzam com ela todo dia no portão ou na escada e para os quais seu rosto,
que eu esquecia quando não estava a seu lado, faz parte da mesma realidade
trivial destas ruas e desta cidade onde sempre acabo deslizando entre as
miragens da solidão e da pura inexistência.
A coragem dos covardes, a resistência dos fracos, a ousadia dos
pusilânimes: chego ao patamar e sem hesitação toco a campainha da porta,
uma porta antiga, grande, pintada de verde-escuro, com um olho mágico
dourado. Cada detalhe hibernado no esquecimento recupera seu lugar exato,
e a agitação nervosa e as pernas bambas são as mesmas de antigamente,
embora eu já seja outro. Talvez ela não esteja, como penso num acesso de
esperança covarde, de imediato transformada em decepção quando se
passam uns segundos e nada escuto, nem passos nem vozes, só a
ressonância da campainha em cômodos silenciosos.
Abre-se a porta e ela está me olhando e no início não me reconhece, tem
a expressão desconfiada e interrogativa de quem se depara com um
vendedor em domicílio, a mesma predisposição hostil. Caio em mim e
percebo que estou mais gordo e já não uso barba, e meu cabelo está muito
mais curto que há cinco anos, mais ralo também. Ela carrega no colo um
menino grande, moreno, de chupeta, cabelo crespo, um babador sujo sobre
o peito do pijama. Uma menina de óculos aparece prudentemente atrás dela
e me vigia com seus próprios olhos. Ao me ver, o menino para de chorar e
me olha fixamente, chupando o ranho e fazendo um barulho guloso de
sucção com a chupeta.
Não que eu tenha custado a reconhecer seu rosto fino e seus olhos
cinza-claro, as duas mechas de cabelo castanho quase louro caindo de cada
lado do rosto: é que não consigo associá-la à sua presença de agora, uma
mulher vestida de qualquer jeito com roupa de andar em casa, com um
garoto no colo tão grande que deve deixá-la exausta, com uma menina
extraordinariamente parecida com ela, despojando-a assim da singularidade
das feições que para mim eram unicamente dela.
Que surpresa, me diz, não o reconheci, e esboça um sorriso que ilumina
seus olhos com um brilho de outra época. Eu me desculpo, passava por
acaso e tive vontade de olhar e ver se ela estava, ouço-me falando com a
voz mais rouca do que deveria, uma voz de não ter falado com ninguém há
muitas horas. Você me pegou em casa por milagre, ia levar o menino ao
médico, mas como não tenho com quem deixar a menina ia levá-la também.
Ele não tem nada, explica-me, nada grave pelo menos, mas quando as
amígdalas inflamam um pouco a febre sobe muito, e não deveria me
assustar mas sempre me assusto. Desanima um pouco a naturalidade com
que fala comigo, como a um conhecido neutro, sem nenhum vestígio de
surpresa. Põe a mão na testa do menino, dei um Apiretal para ele, parece
que a febre está baixando. Meu filho também toma Apiretal, e com ele é
igualzinho, a febre logo vai a quarenta, vou dizer a ela, mas me calo, detido
por um estranho pudor, como se preferisse ocultar-lhe que também sou
casado e pai, e que meu filho tem mais ou menos a idade do dela e nestes
dias também não anda nada bem, disse-me minha mulher ontem à noite
pelo telefone.
Faço menção de ir embora, tão perturbado que não lhe dei um beijo ao
vê-la, mas entre, não fique na porta, já que veio me ver não vou mandá-lo
embora sem lhe dar pelo menos um café. Morava num apartamento de
corredores compridos, tetos altos com sancas de gesso e soalho de tábuas.
Devia ter sido muito luxuoso em outras épocas, mas agora estava meio
vazio e como que abandonado, talvez pertencesse aos pais dela ou aos do
marido e eles não tivessem dinheiro para arrumá-lo. Não dava a impressão
de ter dinheiro, ou pelo menos não se cuidava como quando a conheci,
usava um jeans velho e um tênis de lona sem cadarço. Sua pele era mais
opaca, e seu cabelo estava um tanto despenteado, como o de uma mulher
que não sai de casa o dia todo cuidando das crianças e sem tempo nem
vontade de se arrumar.
Tirou de cima de uma poltrona grande e velha os brinquedos, os papéis
rabiscados e os lápis de cor e pediu-me que sentasse enquanto preparava um
café. Fiquei sozinho num salão muito amplo em que predominavam ao
mesmo tempo o vazio e a desordem. Sobre a mesa há um liquidificador
igual ao que minha mulher e eu usamos para fazer a papinha de frutas do
menino, uma mamadeira vazia, um vidro de sabonete líquido infantil, uma
fralda descartável cheirando muito a urina. Os ruídos da rua chegavam
pelas duas sacadas com cortinas que filtravam a luz escassa do dia nublado.
Num aposento contíguo o menino chorava e ouvia-se muito alta a música
de um programa matinal de desenhos animados. O que estou fazendo aqui,
absurdo e correto como uma visita, sentado rigidamente na poltrona, sem
me atrever a cruzar as pernas, esperando vê-la aparecer no batente, como a
esperava antigamente, ávido e assustado com sua presença, cobiçando cada
um de seus traços e gestos, seu jeito de se vestir meio espalhafatoso para
nossa cidade do interior, seu claro sotaque de Madri.
Volta com os cafés numa bandeja, e ao colocá-la na mesa descobre a
fralda suja, e a afasta da vista com um gesto de contrariedade e cansaço,
agora esqueci o açúcar, não sei onde estou com a cabeça, leva a fralda, a
mamadeira e o liquidificador, ouço-a dizer alguma coisa ao menino, que
fica calado, aparece de novo sorrindo com cara de desculpa e afastando dos
olhos uma mecha e então, como numa iluminação, vejo-a tal como era há
cinco anos, com a exatidão com que se vê uma paisagem ao se limpar um
vidro embaçado, e penso que ela lembra muito alguém, embora leve um
tempinho para descobrir: a mulher da agência de viagens, a Olympia que
meu amigo Juan e eu adoramos. O mesmo gesto para trás quando afasta o
cabelo do rosto, a mesma cor entre louro e castanho, a boca volumosa, a
linha do queixo e da mandíbula, a luz nos olhos claros.
Como me acontecia quando estava muito apaixonado por ela, não
consigo me concentrar totalmente no que me diz, absorto pela atenção
fanática do amor, de uma paixão adolescente, contemplativa, paralisante,
que atingia na impossibilidade seu tortuoso ápice, que alimentava o desejo
de impotência, e o sofrimento e a covardia de literatura. Larguei a Medicina
quando engravidei, lembra-se, tentei voltar quando a menina estava um
pouco crescida mas então engravidei de novo, e agora estou pensando em
me matricular em Enfermagem, é mais curto e eles validam as matérias, e
acho que é mais fácil encontrar trabalho. Imagine, com a experiência que
tenho podem me nomear chefe do serviço da Maternidade.
Levanta-se porque o menino recomeçou a chorar, bem alto, e quando
volta o traz no colo. Ele está com a cara vermelha e os olhos brilhantes de
febre. De repente sinto ciúme ao olhar esse menino, reconhecendo nele as
feições do pai, a quem lhe pedi, em vão, que abandonasse para ficar
comigo. No outro quarto a menina está chamando porque alguma coisa
acaba de cair no chão fazendo uma barulheira. Sai de novo e me levanto,
sinto-me meio desleal ao observá-la de costas. Seu rosto é o mesmo, mas
seu corpo ficou mais largo, perdeu aquela linha sinuosa dos vinte anos que
eu tanto apreciava. Quando me servia o café percebi furtivamente que seus
seios agora são maiores e cheios, seios de uma mulher que pariu e
amamentou dois filhos e não se cuidou muito após dar à luz. Lembro-me de
seus jeans justos e de suas camisas entreabertas de tecidos muito macios,
com uma textura líquida de seda que parecia a de sua pele nas poucas vezes
em que me atrevi a acariciá-la. Convidei-a para jantar numa noite do início
do verão e ela chegou à porta da rua com um vestido traspassado muito
vaporoso e de sandálias, o cabelo preso num rabo-de-cavalo e duas mechas
de cada lado do rosto, tão faceira e desejável que era um tormento não me
atrever a abraçá-la.
Mas não vá embora já, conte-me alguma coisa de você, não disse uma
palavra, nisso também não mudou. O menino parou de chorar, no quarto ao
lado volta-se a ouvir a televisão. Senta-se defronte de mim, pede-me que
lhe fale de minha vida nesses anos, e percebo, com um receio avivado de
carinho, que arrumou o cabelo, passou um pouco de batom nos lábios.
Contaram-me que você também se casou, com sua namorada de sempre. Tal
como você, atrevo-me a dizer, e por um instante realmente ficamos um
defronte do outro e entre nós só um pequeno espaço vazio, aquele que
cruzamos uma só vez há muito tempo e que agora parece, de repente, que
não chegou a se fechar. Mas nós dois sorrimos, mexendo a cabeça,
educadamente, abrigando-nos na vulgaridade objetiva dos fatos reais.
Pelo menos você fez alguma coisa, terminou o curso. Lembro que você
adorava História da Arte, com que entusiasmo falava de tudo, dos assírios,
dos egípcios, de Picasso, Bosch, Velázquez, Giotto. Ainda tenho por aí um
cartão-postal que você me mandou de Florença.
E não adiantou nada. Eu me lembro desse cartão, do exato momento em
que o escrevi, na escadaria da Santa Maria del Fiore, de como eu gostava de
você. Explico que encontrei um trabalho interino como auxiliar
administrativo, e que no ano seguinte passei no concurso, embora não pense
em ficar para sempre nesse emprego, quando puder retomarei a sério o
trabalho da tese ou começarei a me preparar para um concurso de professor
de ensino secundário. Isso é o que Victor está fazendo, estudando para um
concurso dos Correios, tomara que tenha tanta sorte como você. Victor:
fere-me toda vez que pronuncia com tanta normalidade o nome do marido.
Se tivesse ficado comigo pronunciaria o meu tão familiarmente como o
pronuncia minha mulher, e é até possível que me chamasse por um
diminutivo conjugal.
Toca o telefone, no fundo do quarto. Fala em voz baixa sem me olhar,
explica a alguém que vai levar o menino ao médico, se bem que, pelo visto,
a febre tenha parado de subir Tchau, diz, venha logo. O que estou fazendo
aqui, um fantasma, uma visita, nem sequer um intruso. Tchau, venha logo.
A gente diz as palavras sem parar para pensar no que significam as vidas
inteiras que cabem na frase mais simples, a injúria íntima que pode haver
numa fórmula trivial: que pena que você não pegou Victor em casa, ele
gostaria muito de vê-lo.
Dessa vez, quando me levanto, já não me diz para ficar um pouco mais.
Os cheiros domésticos no corredor, que ela não percebe, cheiro de criança
pequena, de cozinha, de lençóis e corpos, de apartamento não muito
arejado, uma liga de cheiros feita de todas as coisas diárias de sua vida, de
sua vida real, que para mim é tão estranha como esta casa grande,
desarrumada e sombria. Também haverá um cheiro na minha casa, no meu
apartamento pequeno e conseguido graças a um apoio oficial, e em parte
será parecido, o cheiro de leite azedo e de talco das crianças pequenas.
Despede-se de mim na porta, novamente com o filho no colo, vermelho e
choroso, o queixo molhado de baba. Dá-me dois beijos, um em cada face,
sem tocar na pele, apenas roçando o ar mais perto que a envolve, o que
contém o cheiro de cada um, o seu, do qual não me lembrava, e que não me
comove reconhecer. Você fica muito tempo em Madri? Poderia vir nos ver,
se tivesse um tempinho. Talvez diga isso para descartar qualquer suspeita da
velha clandestinidade. Já não é a mulher sozinha que tão fugazmente
pareceu apaixonada por mim e disposta a ficar comigo: agora me fala num
plural que sempre inclui o marido, oferecendo-me esse tipo de amizade
matrimonial que é a pior ofensa para um ex-amante. Não creio que tenha
tempo, volto esta noite e ainda tenho umas coisas para fazer.
Andei o resto do dia por Madri, cansado e entediado. Escolhi comer
num certo restaurante, depois de muitas voltas e hesitações, e assim que
entrei me dei conta de que tinha me enganado, mas um garçom de
jaquetinha vermelha suja já se aproximava e não tive coragem de ir embora,
e comi um pedaço de um duvidoso filé de vitela que cheirava levemente a
podre. Numa livraria imensa da Gran Via fiquei zonzo com tantos títulos e
acabei comprando um romance que na verdade não me dizia muito, e que
nunca cheguei a ler. Meti-me num cinema e quando o filme terminou já era
noite, mas ainda faltavam várias horas até o trem sair. Liguei para casa, com
um início de remorso, embora não estivesse fora nem havia três dias. Assim
que minha mulher pegou o telefone temi que pelo tom de sua voz houvesse
indícios de uma desgraça. O menino a acordara nessa noite com uns sufocos
muito estranhos e ela o levara às pressas para a Emergência, onde
diagnosticaram uma laringite.
Minutos antes de sair o expresso eu estava debruçado na janela e vi uma
mulher jovem se aproximando, correndo lá do fundo da plataforma.
Enquanto esperava veio-me a ideia de que talvez ela viesse se despedir de
mim, e por isso tinha me perguntado a que horas saía o trem. Da outra vez,
fazia cinco anos, eu ficara esperando até o último instante nessas mesmas
plataformas, olhando o relógio e as caras das pessoas que entravam
apressadas pelas portas de vidro. Esperei-a ao chegar quando amanhecia e
naquela mesma noite, na hora de partir no mesmo trem em que tinha
chegado, e nenhuma das duas vezes ela apareceu. Sem perceber muito bem
eu repetia agora essa espera, não por achar verossímil que ela fosse
aparecer, nem mesmo por desejar, mas por uma espécie de inércia
sentimental.
Agora, trêmulo, incrédulo, quase aterrado, eu a via chegando, com cinco
anos de atraso, e quem se emocionava ao vê-la se aproximar era aquele que
eu tinha sido no passado, revivido não humilhado pela submissão, pelo
desgaste do trabalho e da vida familiar, tampouco melhorado pelo tempo,
igualmente atordoado e insensato.
Um segundo depois a mulher não era mais ela, embora continuasse
olhando para mim enquanto se aproximava e me sorrisse, fazendo um gesto
de me abraçar. Era alta, muito esguia, de cabelo ondulado. Passou ao meu
lado e abraçou-se a um homem que estava bem atrás de mim. Subi para o
trem e fiquei olhando-os da janela. O homem carregava uma sacola de
viagem, mas nenhum dos dois levantou a cabeça quando tocou o sinal da
partida. Vi-os ao longe enquanto o trem começava a andar, abraçados e
sozinhos na penumbra da plataforma.
Berghof

O quarto de trabalho na penumbra, abstrato como uma cela, com as


paredes brancas, o chão de madeira, uma mesa de madeira rústica e sólida,
que lembra as mesas de antigamente nas cozinhas das casas, na nossa
cozinha quando eu era criança. Os lugares tornam-se ecos, transparências
de outros, rimam entre si com austera assonância.
Ao entrar no quarto a essa hora indecisa do meio da tarde de inverno
lembro-me do quarto de Garcia Lorca na Huerta de San Vicente, e do que
tinha em Madri, na Residência de Estudiantes, e de Madri e Garcia Lorca o
jogo das transparências sucessivas, das assonâncias de lugares me leva a
Roma, ao quarto da Academia de Espana onde dormi umas poucas noites
em março ou abril de 1992, e onde imaginei longos dias laboriosos de
solidão e leitura, dias monacais de trabalho e paz de espírito, o lugar de
retiro que, dizem, trazemos impresso na alma, com o qual estamos sempre
sonhando e estamos sempre procurando, o quarto onde só há uns poucos
objetos elementares, a cama, a mesa de madeira nua, a janela, talvez uma
pequena estante para uns poucos livros, não muitos, e também um desses
aparelhos de som portáteis, que nos acompanham e ocupam pouco espaço.
Eu passava o dia inteiro andando por Roma num estado de embriaguez e
transe acentuado pela solidão e à noite caía exausto na cama tão estreita de
meu quarto na Academia, e no sono pesado, poderoso e turvo como as
águas do Tibre continuava meus passeios pela cidade e via colunatas e
ruínas e templos agigantados e confusos como num delírio de febre.
Acordava exausto, e na luz fria e esverdeada do amanhecer meus olhos
recém-abertos encontravam a cúpula do templo de Bramante.
Surge outro lugar quando a penumbra começa a virar escuridão e
fosforescem a luz da tela do computador e da lâmpada baixa que ilumina
minhas mãos sobre o teclado.
A mão que pousa sobre o mouse deixa de ser a minha. A outra mão, a
esquerda, encosta distraída na concha branca e gasta que Arturo apanhou há
dois verões na praia de Zahara, na tarde da véspera de nossa partida, uma
dessas tardes luxuosamente longas de início de julho, quando o sol começa
a se pôr depois das nove horas e o mar adquire um azul de cobalto,
retirando-se devagar da areia ainda dourada, na qual as pegadas dos
banhistas que foram saindo tornaram-se delicados nichos de sombra.
Da escuridão iluminada pela tela do computador e pela lâmpada baixa,
das duas mãos, do tato liso do mouse numa delas e da aspereza da concha
na outra, surge sem premeditação uma figura, uma presença que não é total
invenção nem lembrança, o médico, o médico sozinho que na penumbra
espera um paciente, manipula o mouse com a mão direita, procurando um
arquivo no computador, um histórico médico aberto não faz muitos dias, e
ao qual se acrescentaram ontem os resultados de uns exames.
Muitas vezes vejo essa figura, ainda que de modo fragmentário, as mãos
sobretudo, digitando na claridade da tela: compridas, ossudas, certeiras,
com muito pelo no dorso, menos grisalho que o cabelo e a barba do médico,
a quem não vejo de pé, embora saiba que é muito alto e tão magro que o
jaleco cai folgado de seus ombros.
Vejo-o sentado, jaleco branco e cabelo e barba grisalhos na penumbra
de um consultório com as cortinas puxadas, embora falte muito para o cair
da tarde, mãos e rosto iluminados pela lâmpada e pela tela do computador,
que fica num lado da mesa, sobre a qual, além do teclado, não há mais nada,
só uma concha branca, redonda, menor e mais côncava do que uma vieira,
mais forte também, de um lado gasta e abrupta como a voluta de um capitel
de mármore corroído há séculos pelo salitre e pela intempérie, de outro,
suave como nácar, gostosa de roçar com a ponta dos dedos, que a envolvem
como por vontade própria, enquanto o médico fala com o paciente recém-
chegado, tentando escolher as palavras com muito cuidado: ou melhor,
antes, quando ainda está sozinho, calculando desanimado os minutos que
faltam para que a porta se abra, analisando mais uma vez o resultado do
exame que está em cima da mesa, bem no espaço entre suas duas mãos,
esquecendo-se dele para ir a outra época, dias luminosos evocados no
quarto na penumbra, trazido pelo tato alternadamente áspero e suave da
concha, concha modesta, nada vistosa, da cor branca de um mármore muito
castigado pelo tempo, as estrias abrindo-se desde a base com uma
regularidade de varetas de leque, cada uma seguindo uma extraordinária
curvatura, um início de espiral interrompido pela beira exterior, muito gasta,
partida, oferecendo às pontas dos dedos uma irregularidade de peça de
olaria quebrada.
Uma coisa puxa outra, como que unidas entre si por um fio tênue de
acasos triviais. Conchas na beira do mar em Zahara de los Atunes, cacos
curvos de ânforas quebradas. É preciso deixar que elas venham chegando,
ou puxar pouco a pouco por elas, os dedos atentos à pulsação de uma corda,
exercendo apenas a força mínima e adequada para vencer uma resistência
sem que o fio arrebente, o fio de alguma coisa chegando, um detalhe sem
relevo que contém, intacta, uma borbulha de memória sensorial, qual uma
bolha de ar de milhões de anos presa no interior de uma bola de âmbar. O
soalho do grande apartamento escuro onde o médico trabalha é tão velho
como o prédio, e estala sob os passos produzindo rangidos de madeira
envelhecida e sólida. Primeiro, o interfone tocará, e só quando ele disser à
enfermeira que o paciente já pode entrar é que seus passos irão ecoar como
se estivessem pisando o madeirame de um navio.
Quando eu era criança, na casa de uma irmã de minha avó havia um
quarto com piso de madeira. Na época eu só conhecia pisos de cerâmica,
gelados no inverno, ou de pedra, como ainda havia nos térreos de certas
casas camponesas, ou de terra batida. Gostava de ir com minha avó à casa
da irmã dela só para entrar nesse quarto, para sentir a madeira cedendo um
pouco sob meus passos e escutar seu som rico e brilhante, polido como a
superfície do parque. Era como estar no camarote de um navio, em outro
lugar, quase em outra vida. Tenho uma sensação parecida, de plenitude
material, quando escuto um violoncelo. Novamente o tempo pula de uma
coisa para outra, de uma época para outra, na velocidade dos impulsos
neuronais, cerca de duzentos quilômetros por segundo: Pau Casais toca as
suítes para violoncelo de Bach em Barcelona, no outono de 1938, quando a
batalha do Ebro já está perdida, e Manuel Azaria e Juan Negrín o escutam
da plateia, no teatro do Liceo. Atrás da mesa, numa estante onde há
pouquíssimos livros, de medicina e história sobretudo, o médico tem um
pequeno aparelho de som, que às vezes toca bem baixinho enquanto ele
interroga ou examina um paciente, deitado na cama que há num canto quase
no escuro da sala, defronte de um biombo. Deitado na cama o paciente é
mais vulnerável, rende-se de antemão à doença, ao exame do médico, ao
que já vê do outro lado da linha invisível, a linha definitiva que separa os
saudáveis dos doentes, reclusos no gueto de seu medo, de sua dor e talvez,
quase o pior de tudo, de sua vergonha. Os sãos se afastam dos enfermos,
Franz Kafka escreveu certa vez a Milena Jesenska, mas os enfermos
também se afastam dos sãos.
Só agora a cama e o biombo emergem da penumbra, do puro nada, do
que não é imaginado nem lembrado. Antes de começar a dizer ao paciente o
que revelam os exames, o que não há como dizer sem despertar um espanto
imediato, sem sentir um nó na garganta, embora já o tenha dito tantas vezes,
o médico lhe pedirá que deite na cama, sem se despir, só precisa baixar um
pouco a calça, subir a camisa, para que ele possa examinar as vísceras
abdominais, apalpando com seus dedos compridos, rápidos mas não
bruscos, precisos. Ignomínia estar deitado de barriga para cima numa cama,
deitado e passivo, com a calça abaixada até a linha do escroto, enquanto a
mão intrusa, a mão masculina e perfeita procura algo irregular, uma
protuberância que não deveria se notar, quem sabe uma ferida, como as que
provocam as velhas doenças, ou gânglios inchados que anunciam a peste.
Ao fundo, atrás das duas respirações, a do paciente e a do médico, tão
perto um do outro e no entanto separados pela linha invisível, ouve-se uma
suíte para violoncelo de Bach tocada em 1938 por Pau Casais, numa noite
em que talvez tocassem sobre Barcelona as sirenes dos alarmes antiaéreos e
se ouvissem as explosões das bombas, iluminando com suas labaredas a
cidade fria e às escuras, derrotada de antemão pela fome e pelo inverno,
meses antes que nela entrasse o rude exército sanguinário dos vencedores.
Mesmo que a música estivesse bem baixinho, o paciente a reconheceu e
identificou a gravação. Durante alguns minutos difíceis eles falam sem
verdadeiro alívio de Bach, do som do violoncelo, da maravilha técnica das
gravações digitais, que permitem resgatar esses tesouros sepultados, a
maravilha de algo que aconteceu numa só noite, e pela primeira vez no
mundo. Falam e o resultado dos exames está em cima da mesa, no espaço
que abarcam as mãos lentas e eloquentes do médico, ao lado de uma concha
para a qual de vez em quando vão instintivamente seus dedos, dedos que a
gente imagina tocando um instrumento musical. Até que Pau Casais tivesse
exumado essas partituras, as suítes de Bach nunca tinham sido tocadas.
Encontrou-as por acaso numa loja de papéis velhos, em algum beco perto
do porto de Barcelona, tal como Cervantes diz ter encontrado o manuscrito
em árabe do Quixote na loja de um vendedor de roupa velha em Toledo. O
puro acaso entregou-lhe um tesouro que o destino parecia ter lhe reservado.
Se Pau Casais não tivesse remexido, exatamente naquele dia, um monte de
papéis amarelados, se o homem que o médico esperava não chegasse, se
não tivesse encontrado alguém que imperceptivelmente ia lhe transmitir o
que ficou vários anos escondido. Naquela tarde distante, num trem, a
mulher tão alta que anda como que cavalgando em cima dos saltos altos,
com um início de incerteza e vertigem, de ebriedade nos olhos verdes
brilhando na penumbra do cabelo crespo, um sorriso sem motivo nos lábios
finos acima do queixo voluntarioso que parecia escandinavo ou saxão.
Mas ainda não quero que ele chegue, embora faltem poucos minutos
para a hora da consulta. Já estará vindo, inquieto mas não totalmente
apavorado, ainda habitando uma vida normal da qual, ao sair daqui, se
lembrará como da terra natal a que nunca mais poderá voltar, o país dos
saudáveis, dos que não pensam que vão morrer. Mas para ele, para muitos
iguais a ele, está reservado algo mais, sabe o médico, a vergonha, pois não
quererá que ninguém saiba nada do que revelam os exames, não só uma
doença, mas o nome de uma espécie de infâmia: nem sequer se atreverá a
olhá-lo nos olhos, a ele, o médico, embora estivessem conversando minutos
antes e na consulta anterior sobre as suítes para violoncelo de Bach, já
excluído, expulso de repente da comunidade dos normais, como um judeu
que lesse num café de Viena o jornal onde se publicam as novas leis raciais
alemãs. O café é o mesmo de todas as manhãs, e o jornal é o que ele leu
diariamente nos últimos anos, mas tudo mudou de repente, e o garçom que
diz seu nome tão obsequioso e não precisa lhe perguntar o que vai tomar, o
mesmo garçom de todas as manhãs, talvez se negasse a trazer um café se
soubesse o que ele é, em que eles se transformaram por força da lei, embora
nada se note em sua aparência física, embora sua condição de judeu não
transpareça em seu cabelo louro ou castanho e em seus olhos claros, em sua
cara normal.
Agarro a concha na palma da mão. Tão facilmente agarrada nela a mão
ainda infantil de meu filho, que pega a minha com a maior naturalidade
quando saímos na rua, embora tenha já treze anos. Ele me dizia quando era
pequeno: vamos medir nossas mãos. Estendíamos uma contra a outra, e a
dele não chegava nem à metade da minha mão tão ossuda e angulosa, com
pelos tão escuros, mãozona de bicho-papão e não de médico para sua mão
gorduchinha de criança, engolindo-a inteira nesse jogo que o fazia tanto rir,
de alegria e medo, engula a minha mão com a sua que nem o lobo peludo
engolia os cabritinhos. Conte-me outra história, não saia do quarto já não,
não apague a luz da mesa de cabeceira. Depois sempre se maravilhava com
minha mão se abrindo e a dele aparecendo intacta, não devorada nem
sequer mordida, como os cabritinhos brancos salvos pela mãe do ventre
negro do lobo, que tem no focinho e no lombo pelos pretos que espetam
feito os da sua mão.
Saíamos do hotel por uma trilha entre palmeiras e cercas e logo
chegávamos diante do Atlântico, atordoados com a luz, a amplidão e a
profundidade do horizonte, que não terminava no mar, e sim mais longe,
numa linha de montanhas azuis que era o Norte da África. De noite víamos
entre a névoa marinha as luzes tremelicando. Estive em Tânger uma vez, há
muitos anos, em outra vida. O médico aperta a curvatura da concha e está
apertando, há dois verões, a mão de seu filho. Sua mulher abraça o outro
lado de seu corpo, gruda-se nele para se proteger do poente que vem do
mar, de lá onde estão as formas escuras da África e as luzes de Tânger, o
vento que cheira a umidade e algas. Toda noite, em algum lugar dessa praia
imensa, desembarca protegido pela escuridão um grupo de emigrantes
clandestinos, ou são descarregadas em segredo caixas de contrabando de
cigarros e bolas pretas de haxixe. Às vezes as poderosas marés do Atlântico
trazem cadáveres de marroquinos ou de negros inchados pela água e
mordidos pelos peixes, e despojos de barcos velhos de metal oxidado ou de
madeira podre nos quais eles naufragaram.
Só ao chegarem à praia, na primeira tarde, eles se deram conta do
cansaço acumulado, tão leves de repente, livres da fadiga como ao deixarem
no quarto a bagagem e a roupa suada com que tinham saído pela manhã de
Madri. Tantos meses trancado nesse quarto na penumbra, vendo caras de
homens e mulheres marcados invisivelmente pela doença, escolhidos pelo
sarcasmo cruel do acaso. O menino corria na frente, louco para chegar à
beira do mar, dando pontapés na areia ao chutar a grande bola de gomos
brancos e azuis que o vento afastava dele com leveza. Ainda havia sol, mas
não tinha muita gente na praia, ou era sua vastidão que a fazia parecer tão
vazia, quase deserta, oferecida apenas a eles. Sentiu certo pudor em tirar
logo a camisa, tão pálido e magro naquela luz dourada, tão refratário a ela,
ao contrário da mulher e do filho, que tinham a mesma pele cor de canela,
um dos traços primários que a herança genética transmitira de uma a outro.
O que você terá herdado de mim, filho de minha alma, pulando intrépido
nessa tarde na primeira onda alta e coroada de espuma do verão, derrubado
por ela, saindo radiante do mar, com todo o brilho da água e do sol em sua
pele ainda não maltratada pelo tempo, em seu corpo que naquele verão
ainda não havia começado a perder a redondeza infantil.
Ao cair de bruços na areia eu sentia como uma plenitude física a
consistência insondável, a curvatura do mundo. Há uns versos rigorosos de
Jorge Guillén: E o pé caminhante pisa/ a redondeza do planeta. Olhava bem
de perto os grãos minúsculos, os fragmentos infinitesimais de pedras e
conchas, de vidro, de ânforas quebradas, gastas e pulverizadas num tempo
de durações geológicas pela força monótona do mar, que agia agora mesmo,
ecoava como um tambor perto do meu ouvido, em todo o meu corpo
despedaçado pelo cansaço, carcomido por meses de trabalho e angústia,
insônias, emergências, remorsos, por presenciar em outros a dor e a doença,
o pânico, o avanço da morte. Pegava um punhado de areia e depois abria a
mão para que ela fosse caindo aos poucos, num fio tênue, na fugacidade de
poucos segundos. Primeiro, é algo sólido dentro da mão apertada, fechada
como as valvas de um molusco para os dedos pequenos de meu filho, que
tentava abri-la e não conseguia, talvez conseguisse soltar um dedo se
respirasse muito forte, mas o dedo voltava ao seu lugar e o punho
continuava cerrado. Depois, abre-se devagar, e a areia tão compacta se
dissolve em nada, só restam grãos minúsculos na palma aberta e larga,
pontas minerais feridas pela luz. Aos onze anos o menino continuava se
deliciando com essa brincadeira, continuava desafiando em vão seu pai e
esforçando-se e respirando fundo, querendo abrir a mão dele, na qual às
vezes havia uma bala ou uma moeda. Procurava uma fissura entre os dedos,
pesquisava, sempre em vão, mas com tanto cuidado que jamais cravava as
unhas nele. Derrotado, jogava-se sobre o pai, abraçando-o com todo o seu
vigor, com uma ternura brusca e abandonada, e passava a mão a contrapelo
no seu rosto, descobrindo os fios de barba que espetavam. Para ele bastava
pressionar com dois dedos as costas do menino, bem debaixo das costelas, e
o garoto se jogava na areia rindo às gargalhadas, dando chutes no ar.
"Mas vocês estão me incomodando, os dois já estão bem grandinhos":
deitada perto deles, os olhos tapados pelos óculos escuros, sua mulher
limpava a areia que o menino jogara ao espernear e ao cair em cima da
revista que ela estava lendo. Tão pouco tempo ao sol e sua pele já tinha uma
suave tonalidade morena. O descanso, o sono profundo, as horas de
indolência na praia e na piscina do hotel, as sestas na penumbra fresca do
quarto, tinham apagado de seu rosto qualquer vestígio de cansaço, e ela
exibia o mesmo sorriso largo de felicidade com que eu me deslumbrara nas
primeiras vezes em que nos vimos. Tão desejável e jovem como se não
tivessem se passado doze anos, como se não fosse seu o menino agora
sentado perto dela e que ia enterrando aos poucos seus pés de unhas
pintadas de vermelho, jogando sobre eles com a mão entreaberta um fio de
areia que deslizava pelo peito do pé e entre os dedos como uma carícia.
Mas não queria negar o tempo, era bom que ele tivesse passado, pois
tinha nos trazido tantas dádivas, tantas coisas que eu via diante de mim,
tangíveis e sagradas, nesses dias de julho. Eu gostava mais do corpo de
minha mulher porque já fazia doze anos que o acariciava e o conhecia,
desejando-o com a profundidade que só o conhecimento confere, e também
por ter acolhido e parido meu filho, e estar mais largo, ungido por uma bela
maternidade, nutrido de ricos fluxos hormonais, de fios de leite que se
derramavam dos mamilos em pingos grossos quando o menino se fartava de
mamar. A mesma mão que apalpa o abdômen do paciente deitado na cama
procurando os sinais de uma doença acariciava doze anos antes esse ventre
tenso e redondo, sulcado por poderosas correntes, estremecido pelo coração
da criança prestes a nascer, percebia nas pontas dos dedos sua curva
planetária. É possível que um médico consiga esquecer que é médico,
consiga deixar para trás seu ofício como deixa o jaleco no consultório na
penumbra e caminha para a saída pisando sonoramente o soalho muito
encerado, com esse brilho das coisas bem usadas ao longo de muitos anos, e
ao chegar à rua se ofusque com a claridade ainda estival do sol, que o força
a pôr óculos escuros, a lembrar-se talvez de que sua mulher os comprou há
dois anos, há dois verões, na mesma loja do hotel onde, mal chegaram,
compraram todo o necessário para os dias de praia, maiôs, calções e
chinelos, creme solar de proteção máxima, um boné para o menino com o
emblema do Zorro, uma grande bola inflável, tão leve que a brisa do mar
sempre a levava, óculos de mergulho e pés-de-pato de homem-rã, porque o
menino resolvera fantasiosamente pôr em prática conhecimentos
exaustivos, embora imaginários, de pesca submarina, adquiridos num
documentário de televisão.
Agora, na meia-luz do consultório, emerge algo que até então eu não
tinha visto, não em cima da mesa, e sim na estante onde está o equipamento
de som, a foto de um garoto ainda na infância, embora quase no final dela,
no umbral de uma transição, de cabelo despenteado e feições delicadas,
com óculos de mergulho na testa, rindo de olhos apertados, e vestígios de
areia no nariz e na franjinha preta.
A oeste a praia se prolongava numa linha horizontal indefinida, que se
concluía na vaga mancha branca das casas do vilarejo, dissolvida numa
bruma luminosa que apagava contornos e confundia a cal e a areia num
mesmo brilho solar. Só com a primeira luz do dia ou no crepúsculo as cores
eram perfeitamente nítidas e as formas das coisas perfeitamente claras. A
leste um morro agreste e cortado a pique sobre o mar delimitava a baía.
Com o sol do poente resplandeciam as portas de vidro dos chalés de luxo
meio escondidos entre o verde-escuro das cercas e das palmeiras, com seus
muros brancos altos sobre os quais se espalhava o violeta-forte das
buganvílias.
Disseram-nos que nessas casas veraneavam multimilionários, alemães
sobretudo. Ao pé da escarpa, sobre um grande rochedo isolado quando a
maré subia, havia um bloco cúbico de concreto, um bunker que lembrava
um organismo equivocado e monstruoso, um câncer mineral da paisagem,
tão resistente às investidas do mar como o rochedo onde o haviam
cimentado. Mas após alguns milhares de anos o concreto também terá se
pulverizado, ínfimos grãos cinza estarão misturados com os grãos de areia,
ou serão parte dela, tal como as minúsculas lascas de vidro de garrafa, como
os fragmentos de conchas ou pedras. Para o menino foi uma aventura
memorável subir até o bunker segurando-se na mão forte de seu pai e
chegar, por um corredor de chão de areia, à câmara interna, iluminada por
um raio poeirento e oblíquo de sol que descia das seteiras altas nas quais
deviam ter aparecido os binóculos dos soldados de plantão e os canhões das
metralhadoras. Pela ranhura via-se com precisão, na manhã clara, a linha da
costa da África.
Ele se deliciava explicando coisas ao filho com minuciosa clareza,
observando a expressão concentrada e dócil do menino, maravilhado com
seu interesse por tudo, a cortesia atenta com que sabia escutar e que não era
incompatível com uma imaginação volta e meia propensa à introversão. Em
1943 os Aliados tinham derrotado definitivamente os alemães e os italianos
no Norte da África, e preparavam-se para a invasão no Sul da Europa: veja
só como estavam pertinho se quisessem desembarcar nesta praia, e não na
Sicília, imagine os pobres soldados espanhóis da época trancados neste
bunker, esperando aparecerem os navios de guerra americanos.
Voltaram, e a maré já começava a subir. Filhotes transparentes de peixes
fugiam entre seus pés chapinhando na água limpa, pisando agora numa
extensão lisa do rochedo que aflorava na areia, e em certos trechos era
escorregadio por causa das algas grudadas, e em outros era coberto por um
musgo escuro e poroso, macio para as solas dos pés. Uma onda recuava e
criava num vão do rochedo uma poça onde se agitavam criaturas
minúsculas, e pai e filho se ajoelhavam para olhá-las de perto, transferindo-
se do tempo imediato dos fatos humanos às inconcebíveis lentidões da
história natural. Organismos primários arrastando-se do mar à terra,
brincando em poças, no limo denso e fértil dos pântanos, defendendo-se
para sobreviver, ao longo de milhões de anos, desenvolvendo valvas e
conchas, carapaças cor de cal, patas e pinças que deixam um rastro fino na
areia, tão fugaz quanto o de nossas pegadas, o de nossas vidas, pensava sem
toques dramáticos e sem melancolia um homem de quarenta e tantos anos
que passeia por uma praia de mãos dadas com o filho, num estado de
perfeita e serena felicidade, de gratidão, de misteriosa harmonia com o
mundo, num desses longos crepúsculos de início de julho, quando o calor
ainda não esmaga e o verão ainda é para um menino uma dádiva intacta
Soltou-se da mão dele para mergulhar de cabeça nas ondas e ele se afastou
da beira e caminhou pela areia mais quente até onde estava sua mulher, de
quem também haverá uma foto no consultório na penumbra: o sorriso largo
e os lábios finos, sempre pintados de vermelho, inclusive nesta tarde, na
praia, os óculos escuros iguais aos das atrizes nas fotos coloridas dos anos
40. Eu gostava de pensar que ela nos via de longe, ao menino e a mim,
fáceis de distinguir na praia quase deserta a essa hora tardia mas ainda
quente e luminosa, quando já existem pequenas poças de sombra nas
marcas dos passos dos banhistas e nas encostas das dunas: os dois de
cócoras, as cabeças juntas, observando algo numa lâmina brilhante de água
deixada por uma onda ao se retirar, e depois andando de mãos dadas pela
beira do mar, o homem magro e branco e o menino rechonchudo e moreno,
com um resto de sol tardio na pele molhada, com um pouco de barriga
infantil sobre o elástico do calção; os dois tão diferentes, separados por
mais de trinta anos, e no entanto assustadoramente iguais em certos gestos,
idênticos na cumplicidade do andar e nas cabeças baixas, se bem que o
menino, de perto, mais se pareça com a mãe, não só no tom da pele mas no
jeito de piscar os olhos ao rir, na firmeza do queixo, nas mãos, no cabelo
ondulado e despenteado pelo ar úmido do mar.
Há um sabor salgado em sua boca e uma consistência mais carnal em
seus beijos, uma qualidade mais densa em sua pele quando ele a acaricia
sob o pano levemente úmido do biquíni, na penumbra da sesta, com as
cortinas fechadas. Os seios e o púbis são duas manchas brancas na pele já
morena. Ele coloca a mão no pelo escuro entre suas coxas e lembra-se
daquele musgo encharcado em que afundava os dedos até encostar na
superfície lisa do rochedo à beira-mar. Tudo acontece muito vagarosamente,
o desejo subindo com uma lentidão de maré, os dois corpos usados e gastos
pelo amor, roçando um no outro, brilhando na penumbra.
Quando jovem tinha acreditado, como o fanático de uma religião, no
prestígio do sofrimento e do fracasso, na clarividência do álcool e no
romantismo do adultério.
Agora era incapaz de imaginar uma paixão mais profunda do que essa
que sentia por sua mulher e seu filho, essa que, notava, envolvia os três,
como uma atmosfera mais hospitaleira e cálida do que o ar exterior, tão
objetivamente perceptível como um campo magnético. Fluxos
compartilhados, cromossomos misturados numa grande célula primigênia, o
óvulo recém-fecundado, saliva de um assimilada pelo aparelho digestivo do
outro, saliva e secreções vaginais, saliva e sêmen brilhando às vezes nos
lábios dela, dissolvidos na corrente nutritiva de seu sangue, cheiros e suores
misturados, impregnando a pele, o ar, os lençóis sobre os quais eles depois
adormeciam, apaziguados, enquanto do outro lado das cortinas puxadas
vinham o chapinhar e os gritos das crianças na piscina do hotel, e de mais
longe, se prestassem muita atenção, o ruído poderoso do mar, o vento que
fustigava as copas das palmeiras.
Palmeiras selvagens era o título do romance que sua mulher estava
lendo no trem e levava para a praia numa grande bolsa de palha. Ele
costumava lhe pedir que contasse os romances que lia, e esses resumos,
junto com alguns filmes que ela também escolhia, satisfaziam muito bem
seu apetite de ficção. O real lhe parecia tão complexo, tão inesgotável, tão
labiríntico até em seus elementos mais simples, que não via necessidade de
matar o tempo e distrair a inteligência com coisas inventadas, a não ser que
lhe viessem filtradas pela narração de sua mulher, ou que tivessem a
elementaridade antiga dos contos Na arte era sensível praticamente só às
formas que traduziam algo da unidade harmônica e da eficácia funcional da
natureza e nas quais também houvesse uma sugestão de seu
descomedimento alheio à experiência e à observação humanas. Era sensível
sobretudo a certas músicas e a certas formas e espaços interiores da
arquitetura. As ruínas colossais dos templos gregos no Sul da Itália ou das
termas de Roma causavam-lhe emoção idêntica à dos grandes bosques que
tinha visitado na Nova Inglaterra e no Canadá. Na forma de uma coluna
clássica, de um grande capitel derrubado, encontrava uma correspondência
ao mesmo tempo oculta e precisa com a majestade sagrada de uma árvore,
com as nervuras e volutas, com a simetria exata de uma concha marinha.
Mostrava ao filho a espiral de uma concha minúscula de caracol e depois,
num livro de astronomia, a outra espiral idêntica de uma galáxia, e o levava
ao banheiro e pedia que prestasse atenção na espiral formada pela água ao
cair da torneira no ralo redondo da pia. Espiava o brilho atento da
inteligência nos olhos escuros do menino, da mesma cor e do mesmo
formato puxado dos de sua mãe, e idênticos aos dela nessa disposição
imediata de expressar, sem disfarces nem estados intermédios, a maravilha
ou a decepção, a felicidade ou a melancolia.
Não se lembra de ter perguntado ao paciente, na primeira consulta, se
tinha filhos. Provavelmente sim, porque é dessas pessoas que têm um jeito
conjugal e paternal, certo desgaste físico, como um peso de
responsabilidade nos ombros, de preocupação com a doença de um filho ou
de desvelo ao esperá-lo nas noites de sexta-feira.
Foi o desgaste, o vago cansaço generalizado que o induziu a uma
suspeita que, a rigor, não deveria ter tido. Mas não há aparência que, de um
jeito ou de outro, não inclua uma parte de engano, assim como não há
ninguém de quem se possa dizer com toda a certeza que esteja a salvo.
Claro que não lhe disse que os exames de sangue que lhe pediria incluíam
esse teste. Não queria alarmá-lo, mas sobretudo, e se possível, não queria
ofendê-lo. Quem ele acha que eu sou, diria a ele talvez, que tipo de vida
imagina que eu levo?
Virá daqui a poucos minutos e será preciso lhe dizer as palavras, o nome
da doença, repetir com cuidado, com indiferença clínica, o eufemismo das
iniciais. Claro que é preciso repetir o teste, mas não lhe escondo que até
agora a margem de erro é limitada.
As mesmas palavras ditas tantas vezes, e sempre neutras e no entanto
atrozes, o pânico e a vergonha e tantas agonias vaticinadas e acompanhadas
com a amargura jamais mitigada da própria impotência: essa é quase outra
forma de contágio, quase um cansaço como o que eles sofrem, como o que
os levou ao consultório, um vago mal-estar persistente e inexplicável, o
despertar nos gânglios, em certas células muito especializadas, do hóspede
inesperado, há anos escondido, obediente também a certas senhas genéticas,
que por ora ninguém consegue decifrar, tal como não se decifra a
consistência última da matéria, o torvelinho de partículas e forças
magnéticas infinitesimais de que tudo está feito, a luz da tela do meu
computador e a da lâmpada acesa sobre o teclado, iluminando minhas mãos,
a dura forma mineral da concha que acaricio agora mesmo, lembrando-me
de um verão, de dois verões para sermos exatos, dos verões iguais e no
entanto tão diferentes como duas conchas da mesma espécie que à primeira
vista parecem idênticas e depois, observando-as melhor, vamos descobrindo
que não têm nada em comum, a não ser uma semelhança abstrata que talvez
só esteja na nossa imaginação classificadora, no nosso instinto de
simplificar.
Você não se banhará duas vezes no mesmo rio, não viverá duas vezes o
mesmo verão, nem haverá um quarto que seja idêntico a outro, e você não
entrará no mesmo quarto de onde saiu há cinco minutos, e nem no mesmo
consultório na penumbra onde só tinha estado uma vez, sentado na frente de
um médico que falava devagar e fazia perguntas chocantes, e assentia ao
escutar com muita atenção as respostas, acariciando uma concha branca que
está em cima da mesa, à esquerda do teclado do computador, simétrica ao
mouse, e que ele roça em segredo com seus longos dedos brancos e peludos
enquanto procura um arquivo, os dados que o paciente deu por telefone à
enfermeira quando ligou pela primeira vez para marcar hora.
Da praia olhávamos, a leste, as casas brancas fincadas na escarpa ou
meio escondidas entre jardins cerrados, atrás de muros altos caiados, com
janelões e varandas orientados para o sul, para a linha azulada da costa da
África. Disseram-nos que bem lá no alto, nas ladeiras de pedra nua que a
vegetação não alcançava, havia uma gruta com pinturas neolíticas e restos
de sarcófagos fenícios. Certa manhã, acordei muito cedo, quando estava
começando a amanhecer, vesti a roupa e os tênis devagarinho, tentando não
acordar minha mulher, e saí do hotel cruzando o jardim deserto refletido na
água malva e imóvel da piscina. No restaurante, sob uma ingrata luz
elétrica, os garçons mais madrugadores preparavam as bandejas do bufê,
espalhavam pelas mesas xícaras e talheres, num silêncio de sonâmbulos. Eu
notava satisfeito o vigor de minhas pernas, o sólido conforto dos tênis, com
os quais eu já tinha caminhado e corrido centenas de quilômetros. Com o ar
fresco das primeiras horas da manhã, minha pele sob o algodão leve da
camiseta tiritava de frio. Comecei a correr devagar, respirando suavemente,
mas em vez de ir para a praia, como fazia todas as manhãs, corri pela
ladeira da colina. Logo me cansei porque a ladeira ia ficando muito
íngreme, e preferi ir andando.
Vistas de perto, as casas que olhávamos da praia eram ainda mais
imponentes, protegidas por muros tendo ao alto cacos de vidros, por avisos
de empresas de segurança, por cachorros que latiam para mim lá de dentro
dos jardins, e às vezes batiam as cabeças nos portões metálicos,
esgaravatavam as cercas mostrando os focinhos, cheirando-me, rugindo.
Fora os latidos dos cães e o ruído de meus passos roçando o cascalho, só se
ouvia o chiado metódico dos aspersores, regando extensões invisíveis de
grama, das quais me chegava o cheiro intenso de seiva e de terra bem
adubada e encharcada.
Às vezes eu distinguia, atrás das barras de uma grade, um carro enorme
e alemão, de carroceria prateada. Eu fazia uma curva e aparecia na minha
frente, cada vez mais embaixo, a extensão vertiginosa da praia e do mar: o
hotel como um modelo em escala reduzida ou uma dessas maquetes de
montar que meu filho adorava quando era menor, o azul de cartão-postal da
piscina, a linha das janelas. Atrás de uma delas minha mulher continuava
tranquilamente mergulhada no sono e na noite preservados pelas cortinas
fechadas.
Mas não conseguia encontrar a trilha que me levaria ao topo, à gruta
onde estavam as pinturas neolíticas. Abandonei o caminho asfaltado, abri
passagem entre matas pegajosas de arbustos jara, nas quais tive a impressão
de que se insinuava um atalho. Quando pensava estar perdido cheguei de
novo à estrada, que se estreitava entre rochas e capinzais e terminava
abruptamente diante de um muro e de uma porta metálica altíssima, pintada
de um verde severo e militar. Vários cachorros latiam e rugiam atrás dela e
a investiam com tamanha força que as placas de metal tremiam. Reconheci
os terraços altos da asa, os janelões em forma de arco que se viam lá da
praia no ponto mais alto da colina. Perto da porta, numa placa de cerâmica,
havia uma inscrição em caracteres góticos: Berghof. Eu tinha lido esse
nome em algum lugar, num livro, mas não lembrava qual.
Dei meia volta e parei de procurar a trilha para a gruta das pinturas.
Estava cansado e já era tarde. Quando voltei ao hotel eram só nove horas da
manhã, mas já começava a fazer calor e os primeiros turistas alemães,
vermelhos de sol e empanturrados com o festim do café da manhã, iam
ocupando deliberadamente as melhores espreguiçadeiras, as que tinham a
cabeceira reclinável e ficavam no lado da sombra. No meu quarto ainda
perdurava a noite que eu deixara ao sair horas antes. Abri a porta
devagarinho, escutei na penumbra a respiração de minha mulher e cheirei
no ar mais denso que o de fora os cheiros comuns de nossa vida, que
tínhamos trazido conosco para o quarto do hotel. Sentei-me na cama, perto
dela, que só estava de calcinha e dormia de lado, levemente encolhida,
abraçada ao travesseiro. Ver-te nua é recordar a terra. Afastei de seu rosto
os cabelos e então vi que estava de olhos abertos e me sorria. Lembrei-me
dessa palavra: Berghof.
Gostaria de preservar cada detalhe desses dias de julho com a mesma
segurança que sinto ao acariciar a concha branca em minha mesa de
trabalho: seu peso fraco na palma da mão, o interior tão suave, onde
contudo os dedos percebem o traço atenuado das estrias, a irregularidade da
beira externa, partida talvez pelo choque violento contra uma pedra, sabe-se
lá há quanto tempo.
Cada coisa devia estar guardada, salva, nos menores detalhes, os
essenciais, pois se falta um deles o equilíbrio geral pode ficar
comprometido. Na minha enciclopédia escolar havia a história de como, por
culpa de uma ferradura, do cravo de uma ferradura, perdeu-se todo um
império: o imperador manda um mensageiro a cavalo buscar reforços, mas
o cavalo não consegue galopar direito porque está com um cravo solto na
ferradura, tropeça e cai e o mensageiro morre, ou simplesmente não chega a
tempo de cumprir sua missão. Quantos acasos mínimos foram precisos para
que Pau Casais encontrasse numa loja de papéis velhos de Barcelona as
suítes para violoncelo de Bach. Essa concha arrastada por uma onda há um
ano ou há duzentos anos, chocando-se tão forte numa pedra que sua beira
externa quebra-se parcialmente, ficando depois enterrada na areia branca de
uma praia que se perde no horizonte oeste para que numa tarde de julho
Arturo a encontrasse, para que agora eu a tenha aqui, ao alcance da mão,
reconhecida por ela, parte do reino familiar do sentido do tato, perto do
teclado do computador, da madeira tosca e resistente da mesa, da porcelana
da xícara de café, do papel que brilha na luz da lâmpada e no qual há coisas
escritas que serão quase indecifráveis para qualquer um, às vezes até para
mim: letra de médico, diziam os mais velhos, amedrontados pelos médicos,
letra de escrever receitas e diagnósticos, de assinar laudos de exames.
Não é um verão, são dois, mas não pode haver dois verões iguais, não
há diferenças tão definitivas como as que mal se percebem. A diferença de
um só cromossomo, entre vinte e quatro, determina se vai ser fêmea ou
macho. A diferença entre a vida e a morte para esse homem que vai entrar
no consultório a qualquer momento é um vírus que habitou nele
imperceptivelmente durante sabe-se lá quantos anos e de repente começou a
se replicar, a se multiplicar, a envenená-lo sem que ele se desse conta, sem
que notasse nada além de um cansaço vago e invencível, algo que o médico
intuiu mas não podia ter percebido no rosto do homem ainda saudável, ao
apalpar no abdômen seus órgãos ainda intocados.
Imagina que fala com alguém, um amigo, que lhe conta essa história,
ele que já não costuma confiar em ninguém a não ser em sua mulher, a
história dos dois verões, do segundo verão e da repetição e do retorno, dois
anos depois. Se há algo de que realmente sinto saudades não é da infância,
mas da amizade, da devoção mútua que me unia a meus amigos aos quinze
ou vinte anos, da capacidade de conversar horas a fio, caminhando por
minha cidade deserta nas noites de verão, de contar com exatidão o que
éramos, o que desejávamos e o que sofríamos, e de não fazer outra coisa
além de falar e escutar e ficar juntos, porque muitas vezes isso era tudo o
que tínhamos, na falta de dinheiro para irmos a um bar ou a um cinema ou
aos salões de bilhar, a absoluta evidência da amizade, as mãos nos bolsos
vazios e as cabeças enfiadas entre os ombros e aproximadas numa atitude
de confidencia, de conspiração. Sinto falta da recatada ternura masculina, a
emoção de se sentir aceito e compreendido e não se atrever a expressar a
gratidão por tanto afeto: nada a ver com o torpe companheirismo machista,
com a confidencia jactanciosa ou a troca de uma piscada babosa na
presença de uma mulher desejável.
Imagina que conta, que conserva um amigo de trinta anos atrás e que
continuaram próximos e mantendo a mesma lealdade da época, fortalecida e
aprimorada com o tempo, pelas aprendizagens e pelos desenganos de suas
vidas. Imagina um amigo, inventa-o como inventava amigos quando tinha
doze ou treze anos e estava sozinho em todos os lugares, em casa com sua
família e no novo colégio para o qual o mandaram, nessa idade estranha que
já não é infância e ainda não é adolescência, ou mocidade, como se dizia há
tempos, pena que se tenha perdido uma palavra tão bela, tão exata.
Agora é meu filho que está entrando na mocidade ou adolescência, que
deixou de ser um garoto e começa a se afastar de mim sem se dar conta,
diria ele ao seu amigo, se tivesse um, se não tivesse perdido os que teve por
obra da distância ou da negligência, de um fundo ligeiramente amargo de
ceticismo que os anos acentuaram, e do qual só se salva o núcleo mais
próximo de sua vida, a mulher e o filho, e talvez também, em parte, às
vezes, seu trabalho, o que acontece no quarto na penumbra, no consultório
ou no quarto de estudos, sob o abajur, no espaço delimitado e iluminado por
sua claridade discreta, calculada para acolher e sugerir, para que surjam
nela, como invocadas, inventadas, presenças semelhantes que se
transfiguram, quase inadvertidamente, em outras: médico e paciente, amigo
que se apresenta talvez sem avisar e a quem é tão gostoso receber e tão fácil
e apaziguador contar alguma coisa, sabendo que as palavras não são muito
exatas e também que vale a pena escolhê-las com cuidado para transmitir
com plenitude determinada experiência, para torná-la mais inteligível, sem
a névoa nociva, sem a confusão vaga da melancolia, desse início infeccioso
de autocompaixão que se insinua na recordação não compartilhada,
ruminada na solidão da espera, no consultório, presente como uma
deslealdade silenciosa quando volto para casa e minha mulher acha que
estou ausente e me pergunta o que está acontecendo com você, e eu não
digo nada, o cansaço do trabalho, a persistência opressiva da doença nesses
rostos novos que vão aparecendo a cada dia, rostos de recém-chegados ao
outro lado da fronteira, de recém-expulsos.
Voltamos neste verão, ele conta, ele contaria se tivesse a quem contar:
eu tinha passado dois anos me lembrando dessas férias, um pouco como
meu filho, que achava tudo memorável, com essa fantástica capacidade de
entusiasmo indiscriminado de certas crianças. Passamos naquele lugar só
dez dias, e mal fizemos outra coisa além de tomar banho de mar e de sol ler
deitados na praia ou à beira da piscina do hotel, sair de vez em quando num
carro alugado para jantar ou dar uma volta pelo vilarejo. Eu me levantava
cedo, corria sem dificuldade alguns quilômetros na areia dura da beira do
mar, com a maré que acabava de baixar, a areia lisa e brilhante com os
primeiros raios do sol. Gostava de voltar ao hotel e acordar minha mulher e
meu filho, e tomar café com eles perto de um janelão do restaurante que
dava para as palmeiras do jardim. Em cada coisa que fazíamos havia uma
perfeição insuperável, da qual eu era consciente no próprio instante em que
a vivia, não precisei da peneira da recordação para embelezá-la. Havia uma
concórdia entre nós três que correspondia à beleza exterior do mundo, à lua
cheia e ao vento do poente da primeira noite em que descemos à praia e nos
abraçamos os três para nos defendermos da umidade tão fria, à pureza da
forma de uma concha ou ao sabor e aroma de um peixe assado sobre brasas
que comíamos num terraço perto do mar. Cada um de nós era intensamente
ele mesmo e essa singularidade era justamente o que o ligava aos outros
dois, a cada um de um jeito único e diferente, sendo que o mesmo amor
envolvia os três. Minha mulher e eu, meu filho e eu, minha mulher e meu
filho, meu filho olhando-nos quando nos fazíamos uma carícia e minha
mulher olhando-nos quando eu e o garoto andávamos de cabeça baixa pela
praia, procurando conchas e caranguejos, eu olhando o menino quando
jogava areia sobre os pés de sua mãe, entre os dedos de unhas pintadas de
vermelho, sobre o peito do pé e os calcanhares.
Tons pastel, com a instantaneidade frágil das polaroides, nas quais tudo
parece acontecer meio por acaso, sem premeditação e quase sem
enquadramento, com a desenvoltura da vida diária.
Voltam, dois verões mais tarde, ao mesmo hotel, nos mesmos dias de
julho, com crepúsculos que se prolongam numa lentidão dourada até a hora
do jantar: tudo é igual, e no entanto ele se flagra espiando a si mesmo à
procura de alguma falha na repetição agradável de suas emoções de então,
intranquilo, conquanto de forma insidiosa, desalentado sem motivo, irritado
por contratempos aos quais sabe que não deveria dar nenhuma importância,
o quarto que este ano não dá para o mar, mas para um pátio com palmeiras e
para as janelas de outros quartos, o levante que mal os deixa ir à praia nos
primeiros dias, provocando a irritação de seu filho, que se tranca emburrado
no quarto e passa horas vendo televisão. Já tem treze anos e um vestígio de
bigode escurece seu lábio superior. Sem que percebêssemos ele perdeu a
voz de menino, sem que quase notássemos foi mudando-a, e essa voz única
já desapareceu do mundo, nunca mais iremos ouvi-la. Só se passaram dois
verões, mas demoramos tanto para voltar que o retorno já não era possível:
dois anos em nossas vidas de adultos não são nada, mas na dele são o salto
de uma existência para outra, o tempo de uma transformação não menos
radical que a de uma larva em borboleta. Seus olhos grandes, apertados ao
sorrir, com a mesma expressão de sua mãe, já não olham como antes, ou
pelo menos nem sempre. Você o olha nos olhos e parece que ele não está,
ou que não pode se encontrar com ele, você quer ir procurá-lo e ele foi
embora, e mesmo se essa distância só ocorre de vez em quando, mais como
clarões de estranheza ou alarme, ele, seu pai, deve se conter para não sentir
uma desolação de adolescente despeitado, uma forma de amargura que não
imaginava ter conservado tão intacta desde que tinha a idade a que agora
seu filho está chegando.
Talvez ainda não tenha perdido nada, mas agora descobre o que há dois
verões desconhecia, o medo de perder, o pânico diante da possibilidade de
seu filho se tornar um desconhecido, como os filhos de tantos pais que
conhece, homens de sua idade e de sua classe e de sua profissão entre os
quais todavia não há nenhum a quem possa chamar verdadeiramente de
amigo, na plenitude sagrada da palavra. Mas é que o menino já tem seus
amigos em Madri e sente falta deles, diz sua mulher, sorrindo com uma
benevolência que ele inveja, com uma serenidade da qual ele depende para
não se entregar de vez ao abatimento.
Você não percebe que ele já não é totalmente uma criança, que vai fazer
catorze anos. Gostaria de saber como você era na idade dele.
Ele se vigia, se espreita, com o mesmo cuidado com que examina o
rosto de um paciente ou apalpa seu abdômen ou estuda sua respiração com
o estetoscópio, procurando sintomas dessa doença a que agora sabe ser
vulnerável, a insidiosa decepção, a opacidade das sensações que outras
vezes se dilataram em ressonâncias irisadas, como o tédio diante de uma
música que antes nos deliciava e que agora acompanhamos prestando
atenção, fingindo entusiasmo, quase conseguindo nos enganar, embora
sabendo, num fundo inconfessável, que o que mais desejamos neste mundo
é que essa música termine; é como voltar a uma cidade e não mais se sentir
extasiado por ela, e não subornar a si mesmo para crer que a morna
satisfação de agora é idêntica à exaltação de antigamente.
Uma noite, enquanto espera sua mulher se aprontar para o jantar,
enquanto, do banheiro, ela fala com ele, penteando-se na frente do espelho,
testando um novo batom, vê uma loura deitada na cama de um quarto do
outro lado do pátio. A distância é grande demais para que consiga distinguir
suas feições, determinar se é jovem ou se é atraente, ou apenas uma figura
abstrata de mulher que cristaliza uma miragem antiga de sua imaginação, a
estrangeira loura e descalça no estribo de um trem, numa noite remota de
início do verão.
Gesticula, faz alguma coisa com as mãos, fala com alguém que ele não
vê. O homem se debruça sobre a mulher loura, acontece algo lento e
confuso, e ele aproxima o rosto da janela querendo ver melhor,
abruptamente excitado, percebendo o movimento rítmico e silencioso dos
dois corpos atrás da janela do outro lado do pátio, com a boca seca, como
um adolescente sufocado de ignorância e desejo.
Só dura um instante. Vira-se de costas para a vidraça quando sua mulher
sai do banheiro e teme irracionalmente ser flagrado, descoberto por ela, ou
ficar vermelho e ela lhe perguntar o motivo e ele ficar mais vermelho ainda.
Sente remorso, mas dessa vez não sente decepção, e as duas figuras na outra
janela se desfazem como fragmentos de um sonho na claridade do
despertar. Sua mulher pôs um vestido preto, muito justo, sandálias pretas de
salto alto, passou sombra nos olhos, pintou os lábios com um vermelho
novo e mais suave, que combina com o tom já bronzeado de sua pele, e
sorri oferecendo-se ao seu escrutínio masculino, pedindo sua aprovação.
Agora o espião íntimo e atordoado se rende, o inspetor secreto não encontra
nenhuma fissura na qualidade da própria emoção, não distingue a
estridência de uma nota falsa, de uma sensação parcialmente fingida,
forçada: seu deleite em olhar a própria mulher é o mesmo de dois verões
atrás, ou de doze anos atrás, não sofreu nenhum desgaste com o tempo, não
se contaminou de rotina nem de acomodação.
Olha suas pernas morenas e nuas e fica tão embargado de desejo como
na primeira vez que esteve com ela no quarto de um outro hotel, e olha-a
com todo o desejo e o entusiasmo que sempre lhe despertaram as mulheres,
desde antes de ter plena consciência sexual, quando aos doze anos saía do
colégio e ficava enfeitiçado olhando as garotas com as primeiras minissaias,
ou quando uma tia jovem e bonita se debruçava sobre ele para lhe dar
comida e ele via bem perto, no decote, a carne branca e trêmula dos seios,
perfumada, na penumbra, a delicada carne de mulher que agora ele cheira e
roça e olha abraçando-se a ela, querendo descer o zíper de seu vestido, subir
pelas coxas com a carícia urgente de duas mãos, agora, neste exato
momento.
Ela começa a rir e quer afastá-lo, lisonjeada e contrariada, sempre
assustada com a instantaneidade do desejo masculino. Estou sujando todo o
seu rosto de batom, já é tarde para o jantar e o menino está nos esperando.
Que espere, diz ele, respirando pelo nariz enquanto beija seu pescoço, mas
então, como evocado pelas palavras dos dois, o menino bate à porta, quer
girar a maçaneta mas por sorte tiramos a chave, terão tempo de se
recompor, de serenar, e quando saem ele os olha de um jeito no qual seu
pai, tão à espreita, tão atento a ele, acredita intuir uma leve expressão de
censura, ou talvez só interrogativa, até mesmo de certa burla, por que vocês
demoraram tanto para responder.
Porém, mesmo que tivesse um amigo o pudor não lhe permitiria contar
essas coisas, deixar que alguém se metesse na comunidade sagrada dos três,
restabelecida nesta noite, confirmada no próprio terraço diante do mar onde
jantaram outra noite dois verões atrás. Luzes piscando no escuro, mais além
da longa faixa branca das ondas que quebram na areia: quando há lua nova
pululam as lanchas rápidas de contrabandistas de cigarro e haxixe, os
barcos cheios de emigrantes clandestinos que vêm do outro lado, da linha
mais escura de sombra que é a costa da África. A contemplação estética é
um privilégio, e certamente uma falsificação: a costa bonita e escura que
vemos esta noite do terraço do restaurante, na qual projetamos relatos e
sonhos, aventuras de livros, não é a mesma que veem ao se aproximarem
esses homens amontoados nos barcos sacudidos pelo mar, escapando por
um triz do naufrágio e da morte nas águas mais tenebrosas que as de
qualquer poço, fugitivos de pele escura e olhos brilhantes, apertando-se uns
contra os outros para se protegerem do medo e do frio, para não se sentirem
tão inalcançavelmente longe dessas luzes do litoral que não sabem se
poderão alcançar.
Alguns são devolvidos ao mar, inchados e lívidos, e meio comidos pelos
peixes.
Outros são vistos na estrada, correndo pelo campo, escondendo-se atrás
de uma árvore ou esmagando-se contra a terra pelada, espavoridos e
tenazes, procurando o caminho para o norte percorrido por aqueles que os
precederam, heróis acossados de uma viagem que ninguém contará. Quando
eles voltam de carro do restaurante para o hotel há dois jipes da Guardia
Civil iluminando com faróis as dunas próximas à estrada: com o rosto
grudado no vidro traseiro o garoto olha as luzes azuis de alerta que giram
em silêncio e as silhuetas armadas dos guardas, tão excitado como se
estivesse vendo um filme. Como será estar escondido agora mesmo, na
noite sem lua, encharcado e ofegante no fundo de uma vala, ou num desses
bambuais das terras alagadas, sem ser ninguém, sem ter nada, nem
documentos nem dinheiro nem endereço nem nome, sem conhecer os
caminhos nem falar a língua, ele pensa depois, na cama, acordado ao lado
da mulher que dorme abraçada nele, os dois cansados, agradecidos, de novo
consumidos pelo desejo urgente do amor.
Ele acorda muito cedo, com a primeira luz, bem-disposto e leve, mas
ainda não se levanta, mal se mexe para não ter de se soltar do abraço dela.
Assiste à chegada gradual da aurora, como uma testemunha secreta e
paciente, cochila de olhos quase fechados e volta a abri-los, sem muito
esforço. Desde que chegou, pela primeira vez nessa segunda viagem ele
sente o ânimo e o vigor necessários para se levantar e vestir a roupa de
jogging. Aceita isso como um bom sinal, como uma promessa de
confirmação de que as coisas vão se repetir, vão continuar sendo idênticas,
o amor de sua mulher e de seu filho, a plenitude verdadeira de cada
sensação, tão forte como o gosto de gozar bem no fundo dela. A lembrança
é tão viva e próxima que ele se levanta com uma ereção. Muitas vezes tenho
sonhos eróticos com a mulher que dorme ao meu lado toda noite.
A essa hora do amanhecer as cores na beira do mar têm uma qualidade
desbotada de postal antigo, azuis, cinza, verdes e rosa de fotografias
coloridas à mão. Começa a subir pela estrada da escarpa, num ritmo rápido,
enérgico, a passos largos, num esforço regular, notando nos calcanhares a
força muscular da subida, os pulmões abertos pelo ar marinho, todo o corpo
leve, rítmico, sem peso, com uma alegria física que não me lembro de ter
desfrutado em minha juventude. A cada curva o precipício é mais
vertiginoso e alarga-se mais ilimitadamente o espaço que os olhos abarcam:
Tânger ao longe, a oeste, uma linha branca no azul sem bruma, as
montanhas do Rif, nas quais há aldeias de telhados planos, penduradas em
barrancos, idênticas às da Alpujarra de Granada.
Carrões prateados de placa alemã, latidos de cães atrás dos muros das
casas isoladas entre penhascos e palmeiras. No hotel disseram-nos que os
alemães chegaram quando não havia nada em toda a costa, só os bunkers
construídos contra uma possível invasão que ocorreu muito mais longe,
primeiro na Sicília, Sul da Itália, depois na Normandia. Os alemães
começaram a chegar no final da guerra, a deles, escolheram para construir
suas casas e plantar seus jardins essas ladeiras fustigadas por todos os
ventos, onde na época ninguém morava, onde não havia nada, só essa gruta
com pinturas de silhuetas pretas de animais e arqueiros, com ânforas
enterradas nas quais depois se descobriu que havia esqueletos de viajantes
fenícios.
Dessa vez ele vai decidido a não se render sem chegar ao topo, sem
chegar a gruta. Disseram-lhe que depois de uma curva com um grande
pinheiro retorcido dando para o abismo ele tem de sair da estrada e seguir
por uma trilha que sobe entre matas de jara e de uma variedade de acácia
com espinhos muito pontudos e cachos de flores amarelas cuja semente,
contaram-lhe, foi trazida pelo vento ou pelos pássaros do outro lado do mar,
pois é uma planta que cresce no deserto. Se tivesse um amigo contaria para
ele que, mal penetrou no que parecia a trilha, percebeu que se enganara
porque seu rastro logo se apagava na mata cerrada.
Foi abrindo caminho, fazendo esforço entre os galhos ásperos que
arranhavam sua pele, entre as folhas pegajosas da jara, procurando não
perder a orientação, embora de repente não enxergasse mais nada a
pouquíssimos passos. Ouvia o mar batendo na escarpa, mas já não sabia
calcular em que ponto. Tropeçava em galhos podados que feriam suas
pernas e tinha medo de perder pé, de ficar, sem saber, muito perto do
precipício. Mas não havia outro jeito a não ser avançar, resistir ao desânimo
de ter se perdido: logo chegaria a uma clareira, encontraria um dos
penhascos que afloravam na vegetação e, subindo nele, vislumbraria o
caminho.
Ia tão agitado, tão entregue ao esforço de abrir passagem entre os
matagais de jara e dessa planta cujos espinhos se cravavam como bicos de
águias, que custou a perceber os latidos ferozes de cães. A poucos metros
diante dele, invisível até então, havia um muro caiado e altíssimo, coroado
por uma fileira de cacos de vidro pontiagudos. Foi seguindo-o sem
encontrar porta nem janela, dobrou uma esquina e num instante ficou
paralisado de terror e vertigem, o corpo todo esmagado contra a parede de
cal: a um passo dele, bem na sua frente, estava o fio vertical da escarpa, e lá
embaixo o fulgor e o estrondo da espuma contra o rochedo onde se erguia o
bunker.
Se eu tivesse despencado há um instante minha mulher e meu filho
teriam continuado a dormir, cada um no seu quarto, protegidos da luz do dia
pelas cortinas grossas do hotel, tão distantes dela como se ainda fosse plena
noite.
Durante longos segundos ficou imóvel contra o muro onde já batia o
sol, de olhos fechados, sem se atrever a abri-los, a olhar o vazio. Depois
recuou e, à medida que se distanciava do abismo, escutava de novo os
latidos dos cães, que pareciam ter-se calado no instante em que ele estivera
prestes a se matar. Agora, rodeava a casa em sentido contrário, sempre
encostado no muro áspero de cal, avançando no espaço estreito entre a
parede e a jara.
Chegou a uma esplanada diante da porta principal da casa e uma mulher
loura e corpulenta foi até ele correndo, chorando aos gritos e lhe dizendo
alguma coisa numa língua que ele não entendia, e que de qualquer maneira
não conseguia identificar por causa dos latidos dos cães. Antes de ver a
inscrição na placa metálica lembrou-se de que já tinha estado outra vez no
mesmo lugar. Berghof.
De início, ainda atordoado, pensou que a mulher o repreendia por ter
invadido sua propriedade. Mas não tinha jeito de dona da casa, e sim de
empregada, e as duas mãos com que o sacudiu violentamente enquanto lhe
gritava algo eram mãos grandes e vermelhas de trabalho doméstico, como
as de faxineira ou cozinheira de outros tempos. Soltava uivos, puxava-o
para o portão metálico entreaberto, atrás do qual os cachorros latiam. Com
uma naturalidade semelhante à dos sonhos ele admitia que a mulher, tendo
sabido que era médico, pedia-lhe ajuda para atender a um doente.
Mas não sou médico. Mas ela não pode saber que sou médico, não pode
ter ficado esperando por mim. Desde o momento em que entra na casa,
arrastado pela mão forte da mulher, imagina que conta o que está
acontecendo com ele, que conta à sua mulher, esta manhã, quando voltar
para o hotel, sentado na cama ao lado dela, levando-lhe uma história como
lhe ofereceria o café da manhã, súbita e estranha, recém-ocorrida, se você
soubesse o que aconteceu comigo, o que eu vi.
Guiado pela mulher, atravessa um pátio de muros brancos e chão de
mármore e arcos nos quais se agitam cortinas de voile e atrás dos quais
veem-se o mar e a costa da África, esses arcos que vimos tantas vezes da
praia, perguntando-nos quem teria o privilégio de viver ali. Há uma fonte de
mármore no meio do pátio, mas o barulho da água e de nossos passos é
abafado pelos latidos que não param, que ficam mais ferozes à medida que
vou entrando na casa e a mulher chora aos gritos e esfrega as mãos contra o
peito avantajado, e vai ficando mais velha quando a vejo mais de perto e me
acostumo com ela: os olhos azuis, o cabelo tão claro, de um louro muito
pálido, o nariz chato e o rosto redondo e rosado davam-lhe uma aparência
jovem, mas agora vou percebendo que terá mais de sessenta anos, e também
que está vagamente vestida como uma arrumadeira ou governanta. Vira-se
para mim com os olhos cheios de lagrimas e pede-me por sinais que eu
ande mais depressa. O lugar tem um jeito de pastiche andaluz consciencioso
e germânico, com grades colossais em todas as janelas e portas de
almofadas escuras. Mas vejo tudo muito rapidamente, atordoado, e quando
entramos num salão onde há alguma coisa no chão que a mulher me aponta
com gestos de pavor e súplica, chorando de boca aberta e as lágrimas
rolando pelas faces maltratadas e redondas, minhas pupilas acostumadas
com a luz solar custam a se adaptar à penumbra e de início não distingo
nada, não vejo ninguém.
A primeira coisa que escuto é o gemido, embora não com clareza, por
causa dos gritos da mulher e dos latidos dos cachorros, que devem estar
trancados bem perto, pois ouço suas patadas e as batidas de seus focinhos
arranhando uma superfície metálica. Um gemido e a respiração assobiante
de pulmões de um doente, é o que escuto antes de ver um corpo jogado no
chão, um homem velhíssimo enrolado num roupão de seda, muito pálido,
uma palidez opaca e amarela no rosto, em contraste com o vermelho tão
forte do interior de sua boca aberta e de sua língua que se agita à procura de
ar, esticando-se como um animal marinho disforme que luta para escapar de
uma fenda onde ficou preso. Aperta a garganta com as mãos, e quando me
debruço ele agarra com uma delas o peito de minha camiseta, os olhos
claríssimos tão abertos como a boca, tão claros que mal se vê um matiz de
cinza ou azul. Puxa-me para si com uma força fanática, como que me
agarrando para não se afogar, como que querendo me dizer algo. Estou tão
perto de seu rosto que vejo seus canais lacrimais vermelhos e as veias
diminutas de seus globos oculares e seus dentes compridos e amarelos, e
chega-me um bafo com cheiro de esgoto. Bitte, diz, e mais que uma palavra
é um estertor, e a mulher que chora ofegante ao meu lado repete a mesma
coisa, sacode-me com suas mãos vermelhas, pedindo-me para fazer alguma
coisa, mas o homem me mantém puxado contra ele e não consigo me soltar
para auscultar seu peito ou tentar um exercício de reanimação. Perto dele há
no chão de madeira escura e encerada uma poça que imagino ser de urina,
mas é chá: há uma xícara quebrada e uma colherzinha.
Esse homem se sufoca, digo à mulher separando absurdamente as
palavras, como se pudesse me entender, e aponto para o telefone, é preciso
chamar uma ambulância. Mas o que eu quero é ir embora o quanto antes,
escapar daqui, voltar para o quarto do hotel antes que minha mulher acorde.
Consigo me levantar, e quando o homem me solta algo na sua
respiração sossega, conquanto seus olhos agora estejam brancos.
Sobre a mesinha do telefone há uma pequena bandeira vermelha, com
uma suástica no meio, dentro de um círculo branco. Desde que entrei neste
lugar, só agora, enquanto espero que responda o telefone da Emergência,
olho ao redor. Numa parede há um grande retrato a óleo de Hitler, cercado
por dois cortinados vermelhos que na verdade são duas bandeiras com
suásticas. No interior iluminado de uma vitrine há uma jaqueta militar com
as insígnias dos SS nas lapelas, e um rasgão manchado de escuro num lado.
Numa fotografia pomposamente emoldurada Adolf Hitler está pondo uma
condecoração num jovem oficial dos SS. Em outra vitrine há uma Cruz de
Ferro, e ao lado um pergaminho manuscrito em caracteres góticos e com
uma suástica impressa no selo de lacre.
Vejo tudo num segundo mas não consigo distinguir a quantidade
impressionante de objetos que me cercam, que enchem o aposento, embora
seja imensa, os bustos, as fotos, as armas de fogo, os projéteis pontudos e
polidos, as bandeiras, os enfeites, as insígnias, os pesos de papel, os
calendários, os abajures, não há nada que não seja nazista, que não
comemore e celebre o III Reich. O que percebo como uma confusa
proliferação tem uma ordem perfeita e catalogada de museu. E enquanto
isso o homem continua ofegante no chão, chamando-me com a voz tão
rouca que mal sai da cavidade cavernosa do peito, Bitte, olhando-me
aterrorizado com seus olhos incolores e avermelhados nos canais lacrimais
e nas comissuras internas das pálpebras quando penduro o telefone e volto a
me debruçar sobre ele. Acalme-se, digo, mesmo sem ter certeza de que ele
aprendeu espanhol em todos os anos que vive refugiado nesta costa, liguei
para a Emergência, uma ambulância já está a caminho. Ele derrama saliva
por um lado da boca e sua respiração infecta o ar com um cheiro de esgoto.
Apalpa meu peito, meu rosto, como se estivesse cego, pede-me algo,
ordena-me algo em alemão. Agora respira um pouco mais compassado, mas
os olhos continuam brancos e as pálpebras entreabertas. Pego seu pulso, no
punho que é pele e osso e um feixe de tortuosas veias azuis, e suas unhas se
cravam no dorso de minha mão.
Quando ele chegar ao hotel mostrará à sua mulher as marcas que lhe
ficaram, como uma prova de que é verdade o que aconteceu, o que estará
lhe contando com tanto alívio, ainda com um vestígio de nojo. Quer ir
embora mas não pode, e não sabe se é seu dever de médico que o retém
nesse lugar, ou alguma forma de malefício de que é incapaz de se livrar,
como das unhas que o homem talvez moribundo crava em sua mão. Agora é
como se estivesse há muito tempo na casa, e angustia-o a sensação de estar
trancado, a lentidão dos minutos. Sua mulher já terá acordado, estará
pensando por que ele ainda não voltou. Não começará a preocupar-se, mas a
se alarmar de repente, com esse sentido de fragilidade e proteção que tem
por ele, temerá que tenha lhe acontecido alguma coisa, se irritará com ele
por causa dessa mania de corridas e caminhadas ao amanhecer. O que nós
dois temos de mais parecido é o medo de, subitamente, tudo se quebrar,
nossa vida se desfazer. Ele tem que se livrar da mão do velho e ligar para o
hotel e tranquilizá-la, mas não sabe o número e sente como um obstáculo
formidável a tarefa de procurar.
As pupilas voltaram a aparecer na ranhura das pálpebras e estão fixas
nele. Afasta os olhos e faz um gesto de se levantar, mas as duas mãos fracas
e curvas o seguram apertando o tecido poroso de sua camiseta. Ele escuta a
respiração, cheira-a, toma consciência do rugido monótono do mar no
fundo das escarpas. Entre o murmúrio ou a reza da mulher que permanece
de pé como uma figura redonda e sólida e os latidos que não pararam um só
instante ele tem a impressão de ter começado a escutar, ainda muito longe, a
sirene de uma ambulância.
Cerbère

A carta da embaixada alemã deve ter chegado quando estávamos há


menos de um ano na casa nova. Prestei atenção no carimbo do correio e na
data, de vários meses antes, e o endereço que havia no envelope era o
antigo, o daquela casa de cômodos do bairro de Las Ventas onde eu tinha
nascido justamente quando estourou a guerra, e onde vi pela última vez meu
pai, bem na véspera de os "nacionais" comandados por Franco entrarem em
Madri, embora eu fosse pequena demais para ter alguma lembrança disso.
A carta tinha ficado muito tempo indo de um lugar para outro, e o
carteiro que a entregou me disse que havia custado muito a nos encontrar,
porque na época tudo era novo no bairro e muitas ruas ainda não tinham
nome, e às vezes nem havia ruas, só descampados que viravam lamaçais
quando chovia um pouco. Agora você passa pelo bairro e parece mentira,
tudo tão arrumado, tão perfeito, e as árvores tão altas, como se tivessem
sido plantadas há muito mais tempo, mas na época, quando chegamos, as
árvores eram tão raras como os postes, e os primeiros prédios residenciais
ficavam muito distantes uns dos outros, separados por terrenos baldios e
casarões vazios, e o campo ficava a um passo. Havia trigais e hortas e
passavam rebanhos de ovelhas, e via-se Madri ao fundo, que nesse
momento eu achava mais bonita do que nunca, com aqueles edifícios altos e
brancos, como uma capital estrangeira, dessas que apareciam nas fitas de
cinema. As pessoas diziam brincando, vocês foram viver na periferia, mas
eu não ligava, até preferia, gostava de ir ao terraço do meu apartamento
novo e ver Madri ao longe, e chegar a Madri na Vespa nova de meu marido,
abraçada na cintura dele, como se viajasse para outra cidade. Pela primeira
vez tínhamos quartos arejados e banheiro, e água fria e quente, e quando
engravidei meu marido trouxe para casa uma máquina de lavar roupa, e em
pouco tempo tirou carteira de motorista, o que na época eu achava quase
mais difícil do que conseguir um diploma universitário. Certa manhã
escutei uma buzina, apareci no terraço e diante da casa havia um carro
novo, um Dauphine azul-claro, e era meu marido que dirigia. Tinha dado a
entrada e já estava de carro, assim como recebemos o apartamento e a
lavadora pagando apenas a entrada, e essa palavra, entrada, me dava medo
mas eu também gostava muito dela, e se paro para pensar ainda acho que é
uma palavra muito bonita, pois tínhamos a sensação de estar entrando numa
vida nova, tal como havíamos entrado no apartamento novo que cheirava a
gesso fresco, e quando entrei no carro pela primeira vez também senti um
cheiro parecido, cheiro de coisa nova e limpa, e nós vínhamos de onde tudo
tinha cheiro de velho, as casas, os bondes, a roupa, os corredores, os
banheiros no corredor, os armários, as gavetas das cômodas, de velho e
sujo, de usado, de rançoso. Tudo tinha sido tão difícil, durante tantos anos,
tudo tão escasso, e de repente parecia que bastava desejar uma coisa para
tê-la, porque você a recebia só ao dar a entrada, tal como nos haviam
entregado as chaves do apartamento embora faltassem mais de vinte anos
para terminarmos de pagá-lo. No nosso pátio comunitário em Las Ventas,
perto da praça de touros, tudo era sempre apertado, e pequeno, e sempre
havia gente perto, as vizinhas da porta ao lado que nos escutavam mesmo
que não falássemos alto e que a qualquer pretexto se metiam na sua casa
para bisbilhotar, algumas com péssimas intenções, portanto, quando entrei
pela primeira vez no apartamento novo de Moratalaz achei-o imenso, mais
ainda quando abri a janela do salão que dava para toda a extensão do
campo, e Madri ao fundo, como num filme cinemascope e todo colorido.
Tudo novo, minha cozinha que eu não precisava dividir com ninguém, meu
tanque que não fedia a esgoto nem a sebo dos outros, meu banheiro de
azulejos brancos, os sanitários tão brancos que refletiam a luz fluorescente,
uma luz tão boa, tão clara, não a daquelas lâmpadas fraquinhas que nos
iluminavam quando eu era menina. Minha mãe se queixava, porque tinha
passado a vida inteira em Las Ventas e não conseguia se acostumar a ficar
longe de suas vizinhas e de suas lojas de sempre, e no bairro novo se perdia
assim que saía, e dizia que era como uma inválida, na dependência de quem
quisesse trazê-la e levá-la, porque na época nem o metrô nem o ônibus
chegavam ao bairro, pois se nem sequer figurava dos mapas de Madri. Não
quis mostrar a carta para minha mãe. Como era muito desconfiada, saiu
logo do seu quarto para perguntar quem tinha tocado a campainha, e quando
lhe disse, como fui boba, que tinha sido o carteiro, quis saber quem havia
nos escrito, mas respondi que era um engano e me tranquei no quarto para
abrir a carta sozinha.
Meu coração palpitava, de medo, porque na época a fome já nos havia
deixado mas o medo ainda permanecia, medo de tudo, de que uma nova
desgraça caísse sobre nós, que levassem de novo minha mãe, como quando
a levavam depois da guerra e ela demorava dias até voltar e minha avó
andava pelas delegacias e prisões de mulheres perguntando por ela. Meu pai
tinha lhe dito, se você não vier comigo vai viver tão mal que é melhor se
enforcar ou se jogar pela janela, mas minha mãe não quis se mexer, não
quis ir embora da Espanha, mesmo sabendo perfeitamente o que a esperava,
não por ter feito algo, porque não dava a mínima bola para a política nem
sabia ler ou escrever, mas apenas por ser casada com ele. Eu tinha três anos
quando terminou a guerra, quando meu pai se apresentou de madrugada na
casa de cômodos de Las Ventas para levar-nos com ele, e não me lembro de
nada, mas imagino perfeitamente a cena, conhecendo minha mãe, teimosa
como era, que ficava muito séria sentada num canto e baixava a cabeça e
não havia quem a tirasse dali, imagino meu pai falando e falando e dizendo-
lhe que nós todos tínhamos de ir para a Rússia, tentando convencê-la,
prometendo-lhe coisas, argumentando com ela assim como argumentava
nas suas reuniões políticas, nas quais parece que sempre se saía bem, por
isso havia chegado tão alto. Tinha muita lábia para falar, minha avó me
contava, mas a única pessoa que ele não convencia era a própria mulher,
jamais conseguiu levá-la a nenhuma passeata, ela nunca se interessou pelos
comícios e pelas políticas dele, e não acreditava em nada do que lhe
prometia, nem o admirava pelos postos cada vez mais altos que ele foi
ocupando durante a guerra nem pelas estrelas que exibia no quepe e nos
punhos da manga. Ele saía de casa, ia de manhã e podia voltar nessa noite
ou uma semana ou um mês depois, voltava da prisão ou da frente,
disfarçado para que a polícia não o encontrasse vestindo o uniforme militar,
e ela não perguntava onde ele tinha estado e escutava calada suas
explicações, acreditando ou não, seguramente sem entendê-las. Mantinha
sempre a casa limpa e a panela no fogo, isto sim, e às vezes até tratou das
feridas dele ou lhe preparou, altas horas, xícaras de caldo e de café quente
para aliviar a fome que ele sentia, e quando acabava o pouco dinheiro que
ele tinha lhe dado ia para a rua cavar a vida, esfregar chãos ou vender água
na praça de touros com uma moringa de barro e um copinho de estanho, e
se precisasse ia à igreja pedir roupa para nós, embora escondesse isso de
meu pai, que não podia admitir que os padrecos o ajudassem. A última vez
que o vi deve ter sido nessa noite em que veio nos buscar, já meio
escondido, porque se a guerra não tinha terminado estava prestes a terminar,
e ele disse à minha mãe que havia um carro ligado esperando na porta, que
ele ia nos levar nessa mesma noite não sei se para Valencia, onde
pegaríamos um barco, ou para um aeródromo, e que logo depois
chegaríamos à Rússia, e que lá nunca mais passaríamos fome e teríamos
todo o conforto. Não sei quantas coisas lhe disse, quanto tempo ficou
falando com ela, e enquanto isso o carro com motorista na porta, e as tropas
de Franco prestes a entrar em Madri, e minha mãe como se ouvisse a chuva,
que eu a imagino perfeitamente, negando com a cabeça, olhando para o
chão, que não e não, que ele podia fazer o que lhe desse na telha, como
sempre tinha feito, mas que ela e seus filhos ele não levava, e menos ainda
para a Rússia, tão longe, que ir até que era fácil, mas ela só queria ver quem
é que voltaria de tão longe. E ele dando voltas no quarto, não tenho
nenhuma recordação da cena mas creio que o vejo, alto, muito bonito, de
uniforme, como numa dessas fotos que me deram na embaixada e depois
minha mãe rasgou em pedaços bem miudinhos e queimou com todos os
papéis, as cartas e os desenhos, os documentos, e agora eu gostaria de ter
uma foto, uma recordação de meu pai. Pois lavo as minhas mãos quanto ao
que vai acontecer com você e com as crianças, ele lhe diria, e ela pularia
como uma fera, como se você não as tivesse lavado, com as suas políticas e
as suas aventuras e as suas revoluções, que se fosse por você agora os seus
filhos estariam esmolando na rua. Ou estariam na Rússia, bem alimentados
e bem cuidados, sem ter passado os sofrimentos que tiveram de passar aqui
por culpa da teimosia dela, pois já outra vez, quando eu tinha dois anos,
meu pai quis que meus irmãos mais velhos fossem numa daquelas
expedições de crianças espanholas enviadas para a Rússia, e minha mãe
também se negou. Contou-me que eu estava dormindo no quarto ao lado e
acordei com as vozes e saí chorando, e que ao ver meu pai, de início não o
reconheci, e me escondi atrás da saia dela quando ele quis me abraçar. Mas
havia outra mulher no quarto, eu conto isso para você e é como se me
lembrasse, tão claro que vejo, uma mulher alta, morena, empertigada,
bonita, vestida de preto, como se estivesse de luto, que havia sido nossa
vizinha e tinha uma filha que às vezes cuidava de mim e brincava comigo,
uma filha mais bonita ainda e também um filho, um rapagão, e que já
estavam havia uns dois ou três anos na Rússia. A mulher me pegou no colo,
me sentou em seus joelhos, contava-me minha mãe, e disse a ela, por favor,
ainda que não seja por você, faça-o por esta criatura, que não tem culpa de
nada. Minha mãe também me contou que essa mulher me ninava para que
eu dormisse e me cantava baixinho um acalanto enquanto meu pai
continuava dando voltas no quarto e discutindo com minha mãe, e enquanto
isso se ouviam ao longe os canhões, mas já muito espaçados, porque eram
as últimas horas da guerra, e tudo já estava perdido. E sabe quem era essa
mulher, me dizia minha mãe, baixando a voz, quando me contava as coisas
daquela noite, era a Pasionaria, que andava nas mesmas atividades políticas
que o seu pai, e me contava que os filhos dela já falavam russo e estavam
maravilhosamente bem na União Soviética, como nós estaríamos se
fôssemos naquela noite. Minha mãe não dizia nada, baixava a cabeça e
ficava olhando o chão, e meu pai tinha um ataque de nervos, falar com você
é o mesmo que falar com um poste. Você será responsável pelo que
acontecer, gritava-lhe, e voltava a dizer que ele lavava as mãos, é melhor
você se atirar num poço, pois aqueles lá vão chegar daqui a pouco e não vão
ter pena de ninguém. E foi verdade; rasparam a cabeça de minha mãe e lhe
deram umas surras terríveis, só porque era mulher de um comunista
destacado, e meus tios, irmãos dela, foram todos para a cadeia, e fuzilaram
dois deles. À noite ouviam-se de nossa casa as descargas dos fuzis no
cemitério del Este, e quando os tiros paravam minha mãe e minha avó
jogavam os xales na cabeça e iam com outras mulheres procurar entre os
cadáveres para ver se encontravam alguém de nossa família. Disso, sim, eu
me lembro, porque era um pouco mais crescida, das duas mulheres com os
xales pretos na cabeça, andando na rua, e eu não dormindo até que elas
voltassem, quando o sol já tinha nascido, e tenho a impressão de me
lembrar também do que não vi, pois vejo as duas na luz do amanhecer
mexendo-se muito devagar entre os mortos, virando algum que tivesse
caído de bruços, para ver a cara dele. Minha mãe nos levou para a aldeia,
acreditando que ali comeríamos melhor e prestariam menos atenção nela,
mas assim que chegou foi presa e rasparam sua cabeça, e a castigaram
mandando-a esfregar e varrer toda madrugada o chão da igreja durante dois
anos, e ela passou tanto frio esfregando ajoelhada aquelas pedras que ficou
doente dos ossos para o resto da vida.
Não há limite para as histórias insuspeitas que podemos escutar só
prestando um pouco de atenção, para os romances que descobrimos de
repente na vida de qualquer um. A senhora chegou por volta das seis da
tarde, na hora das visitas de antigamente, e trouxe um ar indefinido de visita
de antigamente, de formalidade afetuosa, visível no cuidado que teve em se
arrumar e também no pacote de doces que deve ter comprado numa
confeitaria igual às de sua juventude. É uma mulher de sessenta e tantos
anos, com uma aparência de classe média bem instalada, embora não
opulenta, com um rastro de vitalidade popular que se manifesta sobretudo
na vivacidade do olhar e na desenvoltura de suas demonstrações de carinho.
Já não mora no seu bairro de sempre, onde foi viver ao se casar e onde
cresceram seus filhos, mas em outro mais longe, quase uma urbanização da
periferia, e embora se perceba que a adversidade não a derrota facilmente
também se vê que teria preferido não se mudar, e que a mudança de
domicílio somou-se a um certo número de renúncias melancólicas, de
adaptações amargas ocorridas nos últimos anos, a aposentadoria e a velhice
do marido, a diminuição de sua renda, que antigamente era considerável e
lhes permitiu usufruir de bons carros, colégios caros para os filhos, viagens
ao estrangeiro. Mas ela é forte, logo se vê, é uma mulher grande e sólida, de
olhar franco, mãos enérgicas, disposição e ânimo diante do mundo, diante
das novidades que a vida ainda lhe oferece, ao contrário do marido, diz, que
murchou ao se aposentar, não soube se adaptar ao declínio dos bons tempos,
deixando-a fora de si, pois, pelo visto, ele gostaria de envolvê-la em sua
própria atitude acovardada, de tê-la sempre ao seu lado no atual
apartamento pequeno e na mesma atitude de desgosto em que ele se
instalou, desgosto e desilusão, desconfiança diante do mundo, falta de
vontade, já nem tanto de viajar, mas até de pisar na rua, nostalgia das coisas
perdidas, o dinheiro e os anos, a prosperidade que parecia que fosse durar
para sempre e se esvaiu em suas mãos, sem que ele percebesse muito bem,
sem que na verdade ocorresse nenhuma desgraça grave: as coisas
simplesmente se gastam, mudam-se os tempos e os bons negócios vão aos
poucos minguando, e de repente a pessoa está aposentada e tem de viver de
uma pensão, e suas economias encolheram quase da mesma forma que sua
presença física, o dinheiro se foi tal como se foi o tempo da vida, e não se
sabe para onde.
Ali ficou, diz ela, sentado no sofá, com a garrafa térmica de café, que eu
deixei pronta para a hora do lanche, e quando lhe disse aonde ia ele se
animou um pouco e acho que quase viria comigo, mas venceu-o a preguiça,
com o frio que já está fazendo de tarde qualquer um pensa duas vezes antes
de sair de casa, ele me diz, nem que tivesse oitenta anos, e também se
queixa de como vivemos longe e de que os ônibus custam a passar, não é
como antes, quando em quinze minutos você chegava ao centro. Vive
falando de antes, lembrando-se de antes, mas agora eu o deixo falar
sozinho, então fique aí, e ele volta a me perguntar aonde é que eu vou,
assustado porque é muito longe e eu posso demorar muito. E já deve estar
preocupado, olhando o relógio, dando voltas pela casa, de roupão e
chinelos, mas você parece um doente, eu lhe digo, mas não adianta nada,
ele nem se zanga, até o temperamento ele perdeu, e como era difícil.
Olha o relógio, seu reloginho de ouro, vaidade de outros tempos, tal
como as pulseiras, o anel de pedra preciosa em sua mão que já não é jovem
mas ainda conserva uma fortaleza de trabalho físico. Preciso ir embora, diz,
ou então ligar para ele, porque já deve estar nervoso, mas também me dá
raiva viver tão dependente dele, que se eu fico em casa me asfixio, e se saio
não aproveito, que castigo esse homem. Além do mais não posso desabafar
me queixando dele, pois nunca me deu motivo, em quarenta anos de
casamento, sempre foi tão bom que quase me dá raiva, tão bom que se me
aborreço ou perco a paciência com ele logo me sinto culpada.
Mas não quer ir embora, é evidente que está aproveitando a
oportunidade da visita, com um misto de efusão de carinho e modesta
satisfação social, e embora se perceba que não tem muito costume de tomar
chá demonstra que está se deliciando a cada gole,-e esmera-se em segurar
corretamente a xícara e elogiar tudo o que descobre ao redor, o que é
apreciado por seus olhos claros e radiantes, acostumados a avaliar o preço e
a qualidade das coisas, a porcelana do serviço de chá, o tecido das cortinas,
as rosas vermelhas no centro de mesa. Talvez compare esta casa com a dela,
mas se é isso demonstra menos ressentimento do que desejo de elogiar.
Assim como há pessoas opacas ao que as rodeia, presenças que são como
buracos negros que absorvem qualquer luz que haja por perto e a apagam
sem se beneficiarem dela, há outras que refletem em si mesmas qualquer
claridade próxima, irradiando-a como se fosse sua. Ai, minha filha, como a
sua mãe gostaria desta casa, se pudesse vê-la, se não tivesse morrido tão
moça. Esta mulher de sessenta e tantos anos que viveu tempos melhores
refugia-se na juventude que tem perto de si, no espaço de uma casa muito
maior que a dela, na porcelana e nas rosas que agora não poderia comprar, e
se olha um quadro que a desconcerta e não teria pendurado em sua casa, ou
se prova um chá japonês que acha estranho e amargo, o atrativo da
curiosidade é mais forte que o instinto natural de rejeição. Quando era
criança, mal foi à escola, mas fala como uma mulher sensata e culta, e se
nos anos 60 passou sua juventude enclausurada em casa, a serviço do
marido e dos filhos, possui o garbo e a serenidade de quem poderia ter
vencido sozinha na vida. Lê livros, adora cinema, passou anos indo às aulas
da escola noturna. Lembro-me de sua mãe, da raiva que sentia por sermos
tão submissas aos nossos maridos, o esforço que fazia para que a sua irmã e
você estudassem. Era muito esperta e percebia que os tempos iam mudar, e
por isso sentia mais pena ainda de morrer, e não poder ver você e sua irmã
quando fossem duas mulheres adultas, independentes, não presas como nós,
como ela e eu sempre vivemos.
Bebe cautelosa uns goles de chá, prova os doces que ela mesma trouxe,
não sem remorso, pois tem medo de engordar, conversa jovialmente sobre
filmes ou fofocas da sociedade, olha o relógio e diz que já está na hora de ir,
vocês devem ter tantas coisas para fazer e eu ocupando uma tarde inteira de
vocês, e além do mais o marido dela já deve estar muito nervoso, tão
impaciente que não é capaz nem de ficar quieto no sofá, não por estar
preocupado comigo, diz rindo, mas por medo de que eu não chegue a tempo
de preparar o jantar, e ele tem de estar jantando às nove em ponto, nem um
minuto a mais nem um a menos, diz que é por causa do estômago, porque
qualquer irregularidade piora a úlcera. Essa mania de pontualidade ele
sempre teve. Minha mãe me dizia, quando o conheceu, minha filha, nem
que você o tivesse escolhido de propósito, pois o seu pai era igualzinho, as
badaladas do relógio é que governavam a vida dele. Vi meu pai pela última
vez quando tinha três anos. Às vezes acho que me lembro dele, mas do que
me lembro é de uma foto em que ele está comigo no colo.
Então, ao mencionar o pai quase por acaso, acontece alguma coisa, uma
leve modificação no olhar, agora mais interiorizado, ao mesmo tempo que o
sorriso desaparece um instante. Bastará uma pergunta casual para que a
senhora não pareça totalmente a mesma e para que o presente retroceda na
sala de estar onde, no entanto, nada mudou, talvez só o tom das vozes, a
disposição de quem escuta, a nova qualidade do silêncio, como um papel
em branco no qual se irão imprimindo as palavras que originam sem
premeditação o copioso romance de uma vida comum, pulando em poucos
minutos de uma época a outra, de uma casa de cômodos perto do cemitério
dei Este na Madri cruel do pós-Primeira Guerra a um bairro recém-
construído nos anos 60, atravessando a Guerra Civil e as peripécias de um
homem que desaparece numa noite e entra num automóvel que o esperou
com o motor ligado e nunca mais volta, de quem se sabe que esteve na
Rússia, depois viajou clandestinamente para a França, lutou na Resistência
contra os alemães e foi preso por eles e trancafiado num campo de
prisioneiros de onde mandava cartas muito curtas e desenhos para seus
filhos, pois tinha um imenso talento para desenhar: mas fugiu do campo,
voltou a se juntar à Resistência, voltaram a agarrá-lo e mais uma vez fugiu,
e seu rastro já parecia ter se perdido para sempre quando um dia, mais de
vinte anos após o final da guerra na Europa, a filha dele, que não se
lembrava do pai, recebe uma notificação da embaixada alemã. Tem medo
de abrir a carta, com seu cabeçalho oficial, porque as cartas oficiais, desde
que era criança, só anunciavam desgraças, e também teme mostrá-la ao
marido, que nunca quis saber de nada de política, e faz muito bem, pois
trabalha com uma energia incansável para pagar as prestações do
apartamento e do carro e da lavadora, para levá-la, a ela e aos filhos
pequenos, à praia nas férias de verão, para matriculá-los no melhor colégio
pago quando estiverem na idade. Não quer saber de nada dessas velhas
histórias, não lhe fez perguntas sobre esse pai que desapareceu há tantos
anos, mas também é verdade que se apaixonou por ela sem se importar com
o fato de que vivesse numa casa de cômodos tão pobre e fosse filha e
sobrinha de comunistas.
Se a sua mãe ainda estivesse viva não há dúvida de que eu teria falado
com ela sobre a carta, mas vocês ainda não tinham chegado ao bairro, e
mesmo se eu já fizera amizade com algumas vizinhas não gostaria que
soubessem do passado de minha família, não por me envergonhar dele, veja
bem, mas por precaução, pois lhe digo que nessa época o nosso medo ainda
não tinha se dissipado. A sua mãe, tão distinta, tão jovem, me lembro dela
sempre assim, não como era no final, embora nem com a doença tenha
perdido a elegância, mas muito antes, nas primeiras vezes em que a vi,
quando vocês chegaram ao bairro, você tão pequena que ainda andava no
colo ou no carrinho. Lembro-me de quando vocês chegaram: fui ao terraço
ao ouvir o barulho de um motor e vi o carro preto e grande do seu pai na
época, o 1500, e ao ver vocês saindo dele senti grande alegria, porque vocês
eram tantos, e o prédio e o bairro ainda estavam muito despovoados.
Começaram a sair crianças do carro, e volumes do porta-malas, e depois
saiu sua mãe com um vestido claro e ficou parada na calçada, talvez meio
tonta da viagem, e minha impressão foi de que não estava gostando muito
do que via, os descampados com valas e gruas e Madri tão longe, as ruas
tão largas mas árvores tão pouco visíveis como os postes. Ela pegou você
no colo, olhou para cima, para onde eu estava, e logo a cumprimentei, e
fiquei feliz por ela ser tão bonita e tão moça, e por estar se mudando para o
apartamento bem em cima do meu. Ainda não estava doente, ou pelo menos
não sabia, ou não dava importância aos primeiros sintomas, mas me lembro
dela um pouco pálida, mais frágil que as outras vizinhas da nossa idade ou
do que eu mesma, se bem que trabalhasse em casa e lutasse para criar vocês
igual a qualquer uma de nós, e tivesse o mesmo sorriso que você tem agora,
de quem desfruta da vida. Várias vezes, pela área de serviço iluminada, eu a
ouvia cantar quando estava na cozinha ou rir às gargalhadas de alguma
coisa que o seu pai lhe dizia baixinho. Para ela, sim, contei minha vida e a
de minha mãe quando terminou a guerra, e também que a Pasionaria tinha
me ninado no colo e cantado um acalanto, e o medo que passei daquela vez
que nos chegou a carta da embaixada da Alemanha, com vários meses de
atraso, após dar voltas por toda a Madri. Eu receava que meu marido se
aborrecesse se eu lhe mostrasse a carta, e sua mãe ria quando contei isso a
ela, muitos anos depois: mas, mulher, como é que ele ia se aborrecer, com o
temperamento tão bom que tem? Não me atrevia a alimentar a ilusão de que
a carta dissesse que meu pai estava vivo.
Quando meu marido chegou do trabalho naquela tarde tranquei-me com
ele no quarto e lhe mostrei a carta, e ele logo me tranquilizou, não podia ser
nada de ruim vindo de um governo estrangeiro, porque o governo que se
devia temer era o nosso, mas é melhor por enquanto não dizer nada à sua
mãe, até que a gente saiba com certeza do que se trata.
Saíram na manhã seguinte, no carro novo, que ainda tinha um cheiro tão
forte de novo, um cheiro delicioso de plástico e metal, de gasolina,
chegaram a Madri como dois turistas e durante todo o trajeto ela apertava
no regaço a bolsa onde guardava a carta. Talvez me digam que meu pai está
vivo, que perdeu a memória por causa de um ferimento na cabeça e por isso
nunca veio nos buscar, eu pensava, porque tinha visto histórias assim nos
filmes, mas também temia que fossem comunicar-lhe a morte do pai, mais
um entre muitos milhões de cadáveres sem nome atirados nas valas e nas
fossas da Europa, na época em que tinha se perdido seu rastro, quando
chegou sua última carta do campo alemão, umas poucas linhas e, atrás, o
desenho a lápis de um vilarejo alpino com campanários bulbosos e telhados
pontiagudos. Eu costumava andar sempre bem agarrada ao braço do meu
marido, mas naquela vez ele é que foi me agarrando, deu meu nome na
portaria da embaixada e mostrou a carta e minha carteira de identidade, e eu
tão assustada de estar naquele local, entre aquelas pessoas muito delicadas e
louras e de olhos azuis que falavam comigo com um sotaque esquisito,
muito amáveis, não como os funcionários espanhóis da época, que mais
latiam do que falavam e viviam de mau humor.
Finalmente um senhor nos recebeu numa sala que tinha no centro uma
mesa muito grande, um homem que falava comigo como que me
tranquilizando, igual a um médico, e me atrevi a lhe perguntar se meu pai
estava vivo ou morto, e ele respondeu, isso é o que nós gostaríamos de
saber, porque há anos o procuramos para lhe devolver seus pertences. E
então levantou do chão e pôs em cima da mesa, no meio, uma caixa grande
de papelão, que também devia ter dado muitas voltas, uma caixa amarrada
com fitas vermelhas e selada com um lacre. Meu marido e eu a olhamos
sem saber o que fazer, e o homem nos disse, é sua, podem levá-la, nesta
caixa estão as coisas que seu pai possuía na segunda vez que fugiu de um
campo de prisioneiros na Alemanha. Era uma caixa de papelão grosso, com
muitos selos, como se tivesse passado por muitos lugares, e os cantos
estavam bem estragados. Eu a olhava sem me atrever a tocá-la, olhava meu
marido, que encolhia os ombros, nervoso também, embora depois não
quisesse admitir. Apresentei minha carteira de identidade, fizeram-me
assinar uns papéis. Peguei a caixa pensando que pesaria muito e me
surpreendi que fosse tão leve. Fomos para a rua e descemos pela Castellana
procurando o lugar onde tínhamos deixado o carro. Eu levava a caixa nas
mãos como se contivesse algo muito frágil, e meu marido ia ao meu lado,
pedia para carregá-la. Era um desses dias de muito frio e muito sol em
Madri. Eu não tinha a paciência de esperar chegar em casa com a caixa
fechada e não queria que minha mãe a visse sem saber antes o que havia
dentro. Pesava tão pouco, e dentro havia coisas que se mexiam. Paramos
num banco e meu marido a abriu. Minhas pernas tremeram, sentei-me no
banco e comecei a chorar enquanto ele ia tirando as coisas, o que meu pai
possuía naquele campo de concentração. Lá estavam todas as cartas que
minha mãe tinha lhe mandado, cartas que ela ditava a uma vizinha, e as de
meu irmão, escritas no papel pautado da escola, e as minhas, de quando era
muito pequena, estava começando a aprender a escrever, e os desenhos que
meu irmão e eu fazíamos para ele, e fotos nossas que minha mãe lhe
mandava, algumas com nossos nomes escritos atrás, com minha letra tão
feia de quatro ou cinco anos. Que caras de pobres nós tínhamos, de fome e
de medo, e como eu tinha me esquecido de tudo, em tão poucos anos. Havia
uma foto de meu pai vestindo o uniforme, com uma menina no colo, tão
pequena que eu não tinha certeza de ser eu, e outra só de seu rosto muito
magro e de cabeça raspada e orelhas muito grandes, e com um número
embaixo, e havia também papéis em francês e em alemão, todos
amarelados, tão gastos nas dobras que rasgavam quando tentávamos abri-
los, e muitos desenhos, feitos em qualquer suporte, num pedaço de papelão
ou no reverso de um impresso alemão, desenhos de aldeias com torres de
igrejas e trens e montanhas ao fundo, e retratos de gente, de homens de
uniforme listrado e cabeças raspadas, e um desenho muito bonito da praça
Vermelha em Moscou, enorme, colorido, parecia uma foto, na folha
quadriculada de um bloco. Fechamos de novo a caixa, guardando-a no
porta-malas do carro, e durante todo o caminho de volta fui chorando como
havia anos não chorava, feito uma boba, vendo tudo borrado, e meu marido,
embora ainda não fosse um motorista tarimbado, soltava a mão do volante
para acariciar a minha, e me dizia, ande, mulher, acalme-se, só quero ver
que explicação você vai dar para a sua mãe quando ela perceber que você
chorou, vai pensar que foi por minha causa.
Certificou-se de que a mãe não os veria entrar com a caixa e a escondeu
no fundo do armário. Passava noites em claro imaginando que fim teria
levado seu pai após o dia de sua segunda fuga do campo alemão, em
novembro de 1944, dissera-lhe, traduzindo um papel, o funcionário tão
amável da embaixada.
Talvez uma explosão tivesse desfigurado seu rosto e seu corpo tivesse
apodrecido sem que ninguém pudesse identificá-lo, talvez tivesse
encontrado a morte afogado num rio, tentando atravessá-lo, esmagado sob
as rodas de um trem, sob a lagarta de um tanque. Noites em claro
imaginando agonias minuciosas e sucessivas para seu pai, fugas por
paisagens espectrais da guerra, tiros de metralha, latidos de cães. Certa
manhã voltou das compras e estranhou não encontrar a mãe em casa. Antes
de entrar no quarto e ver as portas do armário abertas de par em par já
sentira um pressentimento de alerta. Percorreu todo o apartamento
procurando a mãe, chamando-a, foi ao terraço e viu sua silhueta negra no
descampado defronte da casa, onde as escavadoras já tinham começado a
abrir grandes valas para as fundações de um novo prédio. Ao vê-la de
longe, encurvada, de luto, lembrou-se de quando a via sair ao amanhecer a
caminho do cemitério del Este. Sua mãe estava perto de uma fogueira onde
ia jogando coisas. Virou-se ao escutar a filha chamá-la, mas só um
momento, e continuou olhando a fogueira, na qual havia mais fumaça que
chamas: era uma manhã nublada e úmida, e quando atravessou o
descampado para ir em busca da mãe os saltos do sapato afundaram no
barro. Ao vê-la bem de perto percebeu como estava velha.
Com os papelões da caixa a mãe tinha acendido uma fogueira, na qual
ia jogando os papéis, as fotos, os desenhos, com uma deliberada
introspecção que a chegada de sua filha não perturbou.
Não me olhe assim, como se eu estivesse roubando de você o que lhe
resta do seu pai. A voz era clara e seca, sem entonação, talvez a mesma que
um quarto de século antes havia se negado surdamente a acompanhar o
homem de bigode e uniforme e a mulher alta e de luto que tentavam
persuadi-la, anunciavam desgraças iminentes. O seu pai está vivo, e não
quer saber de você nem de nenhum de nós. Quando terminou a guerra o
governo francês deu a ele urna condecoração e uma boa pensão, mas nunca
se deu ao trabalho de nos mandar nem um centavo. Na última vez em que
me escreveu foi para me dizer com a maior tranquilidade que tinha
começado uma vida nova, e que portanto rompia qualquer compromisso
conosco. Essa carta eu não quis que você visse. Você ainda era uma menina
e vivia fantasiando sobre ele. Ele mora na França, tem outra família, até
mudou de nome. Por isso os alemães não o encontravam.
Se eu passei a vida esperando cartas como é que não ia ver a que chegou
no outro dia? Ele jamais quis voltar para a Espanha, me disse minha mãe,
mas sempre procurou viver o mais perto possível. Se você quiser ver aquele
que era seu pai pegue um trem e desça num povoado da fronteira francesa
chamado Cerbère.
Aonde quer que o homem vá

A casa nova, recém-ocupada, com poucos móveis, os ecos ainda


ressoando nos espaços vazios, a pintura ainda fresca nas paredes e o soalho
cheirando fortemente a madeira e verniz, sem rastros de quem nela viveu
até uns meses antes, presenças de longos anos abolidas da noite para o dia
como esses retângulos mais claros onde houve quadros pendurados e que
foram apagados pelos pintores de parede. Só um detalhe define a utilidade
austera de cada cômodo, agora que ainda não há nada de acessório: no
quarto apenas a grande cama de ferro, e no escritório uma mesa nua e uma
cadeira. As coisas, os espaços têm uma presença tão nítida como os passos
e as vozes.
A casa nova, a vida nova, recém-começada a ser vivida, em outra
cidade, longe da província melancólica, num bairro até agora desconhecido
de Madri, ou melhor, numa cidade pequena situada no coração de Madri,
que nessas ruas se tornava artesanal e recôndita, suja, popular, confusa, com
pessoas estranhas e diferentes, de três ou quatro sexos, tons de pele e traços
faciais vindos de muito longe, idiomas ouvidos de passagem que trazem um
som de subúrbios asiáticos, de alcáceres muçulmanos e mercados tropicais
da África, de aldeias andinas.
Ir para a rua toda manhã era uma viagem de descobrimento, e as tarefas
propriamente ditas e necessárias acabam sempre se esfumando em
caminhadas sem rumo, na simples inércia de andar e olhar, escutar muitas
vozes, línguas indecifráveis faladas nas cabines de telefone da Augusto
Figueroa, palavras do vocabulário circular e sinistro da heroína, vozes
imemoriais e rotundas de vizinhas escandalosas, de senhoras que iam às
compras escondidas em seus roupões de andar em casa e olhavam ao redor
com espanto resignado ou optavam por não ver como seu bairro de sempre
tinha mudado nos últimos anos, vozes impostadas de homens parcialmente
transformados em mulheres, embora não de todo e não com muito êxito,
porque às vezes uma barba masculina empretecia as maçãs do rosto
inchadas de silicone, ou um início de calvície totalmente masculina
insinuava-se na cabeleira loura, puxada para trás tempestuosamente, ou pés
grandes demais e nervudos deformavam irremediavelmente os saltos altos
de verniz.
Via-se de costas, enquadrada no nicho de uma cabine de telefone, uma
figura alta de mulher, mas a voz que se ouvia era uma obscura voz de
homem: por um instante a impressão era de que na cabine havia duas
pessoas, homem e mulher, sendo uma delas invisível.
Nas esquinas esperavam imóveis os mortos em vida, e estes, sim, é que
chegavam a ser totalmente invisíveis, tão pálidos que em seus antebraços
transpareciam as veias tortuosas, tão habituais e quietos em sua espera que
logo se aprendia a não olhá-los, a passar perto deles como se não
existissem, como se já estivessem no outro mundo, ao qual pertenciam mais
que a este, o mundo diário e real dos vivos. Olhavam no vazio e tinham os
olhos fixos a vigiar e esperar nas esquinas mais próximas, onde mais cedo
ou mais tarde apareceria um traficante ou um carro de polícia. Começavam
então a se mexer, sempre devagar, com uma arrastada lentidão de sáurios,
tentavam sem sucesso e sem verdadeira convicção disfarçar diante dos
guardas que lhes pediam documentos, como se não conhecessem de sobra a
identidade de cada um, suas caras de mortos e seus nomes, comunicados
pelo transmissor da radiopatrulha, deixando-os ir embora ou levando algum
algemado, sempre com o tédio de um espetáculo teatral ruim e repetido
muitas vezes.
Um deles, homem ou mulher, andava atrás de um indivíduo de óculos
escuros e barba rala, muito espigado, de mãos nos bolsos traseiros do jeans,
apressando o passo de propósito para que o outro, o quase morto, ficasse
para trás e tivesse que fazer o esforço de segui-lo, encurvado e abjeto como
um mendigo de antigamente, estendendo para ele a mão em que havia um
punhado sujo e insuficiente de dinheiro, que o traficante jogava no chão de
golpe, sem sequer se virar para o outro, que agora se ajoelhava para apanhar
moedas e notas caídas entre os carros, na sujeira da calçada, e depois
conseguia ficar em pé, as forças recuperadas pela urgência de obter uma
dose que o outro não queria lhe dar, ou cuja entrega ele postergava por
gosto de vê-lo se humilhar e sofrer.
No início eram desconhecidos inquietantes, figuras ameaçadoras que
apareciam na esquina ou no fim da calçada, encolhidos entre dois carros,
defecando ou picando-se, abrigados nos degraus de um prédio ou debaixo
de um pórtico. Mas bem depressa viravam presenças familiares, eles
também, figuras tão usuais do bairro como os homens-mulheres e as
senhoras com roupão de flanela e os traficantes oblíquos e ágeis que
também aguardavam, embora de outro modo, com uma instantaneidade de
cães de caça em seus movimentos ou no jeito de ficarem parados.
Afastavam-se balançando um pouco os ombros, olhando de lado, as mãos
nos bolsos traseiros da calça, desapareciam num pórtico ou se inclinavam
atrás de um arbusto da praça de Chueca, o pobre jardim ao lado da boca do
metrô. Voltavam com alguma coisa que não se chegava a ver, diziam
palavras que mal se escutavam, acontecia algo no contato das mãos, algo
tão rápido e sinuoso como a faísca entre dois neurônios, um saco pequeno
na palma da mão e um punhado de notas sujas na outra, e saíam depressa,
debruçavam-se na janela aberta de um carro parado com motor ligado, os
cotovelos apoiados com certo tédio e o olhar rápido e alheio.
Tantas vozes e vidas, tantos mundos justapostos no espaço estreito das
ruas, e logo tudo parecia habitual, até o mais estranho e o mais sinistro, tudo
apertado e emaranhado, e ao mesmo tempo sem se misturar, cada presença
girando na gravitação de seu próprio mundo parcialmente invisível para os
habitantes dos outros, cada um carregando consigo o seu romance: o
homem jovem que perambulava em busca de heroína e cruzava na calçada
muito estreita e assediada pelos automóveis com a vizinha que desceu de
chinelos e roupão para comprar pão e aprendeu a não olhar para ele assim
como ele não olha para ela; os homens parcialmente transformados em
mulheres, que conversam com muitos gritos agudos e mãos gesticulando, e
os cegos que abrem caminho entre eles tateando o chão e as paredes com
suas bengalas brancas; os chineses que se protegem amontoados em
apartamentos escuros e porões sem ventilação; as índias miudinhas que às
três ou quatro da manhã se juntam perto das cabines de telefone e mantêm
conversas em aimará ou guarani ou quíchua sabe-se lá com que parentes
que ficaram no Altiplano ou na selva; o homem de pijama que toda tarde se
sentava na sacada, numa cadeira de vime perto de um bujão de gás, e
olhava imóvel e sofria acessos cavernosos de tosse que o obrigavam a se
dobrar, a apoiar a testa úmida no ferro da sacada.
Desapareceu por algum tempo, e quando reapareceu, com o mesmo
pijama, sentado na mesma cadeira de vime, perto do bujão de gás, tinha
uma espécie de mordaça branca na boca e um tubo fino de plástico saindo
de uma das narinas. Agora não tossia, mas continuava olhando para baixo,
para a rua, não mexia a cabeça mas continuava olhando as pessoas que
passavam, as vizinhas, os travestis que não se barbeavam e tinham as faces
inchadas e moles, os inúmeros chineses que entravam e saíam, um por um,
a intervalos regulares de um dos pórticos da vizinhança, as índias andinas
com seus bebês enfaixados nas costas, os cegos que tateavam com as
bengalas como se tivessem extremidades articuladas e sensitivas de insetos,
o casal de jovens com um menino e um cachorro, que acabava de se instalar
no apartamento bem defronte do dele, do outro lado da rua. Às vezes o
homem doente aparecia depois da meia-noite para ver a velha arrumada e
pintada que só ia para a rua quando o bairro estava mais deserto. Levava
sempre uma cadeira que parecia recolhida num depósito de lixo e uma
sacola de plástico amarrada com um nó. Escolhia uma lata de lixo entre as
que se enfileiravam na calçada, e botava a cadeira diante dela, e em
seguida, elegante e séria, lunática, desfazia o nó de sua sacola de plástico e
tirava, primeiro, uma toalha xadrez, depois, restos de comida, pedaços de
pão duro, um copo de plástico, um garfo e uma faca, e finalmente um
guardanapo grande e sujo que amarrava debaixo do queixo. Então se
sentava à mesa, fazia gestos como se falasse com um comensal num jantar
fino, bebia água como se saboreasse um vinho delicioso, limpava com
educada elegância os cantos dos lábios, espalhando pelo queixo manchas de
batom e gordura, e quando terminava de jantar recolhia tudo, guardava na
sacola de plástico, latas vazias de sardinha e embalagens de docinhos e
copos e pratos e talheres, tirava o guardanapo, dobrava a toalha com a qual
cobrira a lata de lixo para transformá-la em mesa de restaurante, e ia
embora por onde viera, com sua cadeira e sua sacola, e não se tornava a vê-
la nas ruas até a meia-noite seguinte.
Quem é você na consciência de quem o vê como um desconhecido, e
para quem você vai aos poucos ficando familiar, embora vocês nunca
tenham trocado uma palavra, apenas um olhar de sacada para sacada, ou no
instante em que quase se esbarraram nas calçadas tão estreitas do bairro: o
homem, a mulher, o menino, o cachorro, os operários que esvaziaram
totalmente o apartamento defronte, apagando qualquer vestígio de quem
viveu nele muitos anos, o entulho dentro da caçamba que há na rua, e
depois as paredes recém-pintadas, entrevistas pela sacada aberta, pintadas
de cores luminosas e suaves, como para eliminar com mais eficácia os
vestígios dos vizinhos anteriores, como se pinta de branco por questões de
higiene o pavilhão de um hospital.
Você é, não a sua consciência nem a sua memória, mas aquilo que um
desconhecido vê. Tudo o que se recordava, tudo o que se via, quem era o
bêbado do bairro, cujo nome ninguém sabia, embora o víssemos o tempo
todo e já não sentíssemos o medo das primeiras vezes, quando ele aparecia
de noite numa esquina, com a cabeleira desgrenhada e suja e seu porte
pesado e ossudo envolto em farrapos hediondos, porque mijava e vomitava
e depois só se preocupava em limpar a boca com a mão. As vezes ele
olhava atentamente, com olhos pequenos, úmidos e azuis, mas nunca falava
com ninguém, nem pedia esmola, e andava pelo bairro como esse Robinson
peludo e enrolado em peles e trapos das gravuras antigas, sozinho nas ruas
como numa ilha onde mais ninguém morasse, alimentando-se do vinho que
muitas vezes vomitava assim que o tomava, vomitando da mesma forma
que mijava, sem mudar a expressão, sem se incomodar em evitar o rio de
urina ou de vômito, lio líquido corno o mijo e da mesma cor.
Com papelões, jornais e sacolas de plástico fazia suas cabanas de
náufrago no vão de algum pórtico, ou dormia estirado no meio da calçada,
como um indigente de Calcutá, seu território marcado pela intensidade do
fedor que exalava. Como são os episódios da vida de uma pessoa vistos
pelos olhos de uma testemunha indiferente e assídua: o homem do pijama
sentado na sacada via toda tarde chegar o menino novo com a mochila da
escola, e sair minutos mais tarde comendo um sanduíche e levando o
cachorro, puxando-o ou querendo freá-lo, mas sem jamais controlá-lo, o
cachorro excêntrico que deveria ser tão novo para seus donos como o
apartamento recém-pintado e habitado e a cor das paredes, como o novo
bairro e a nova vida e a escola a que o menino ia pela primeira vez.
As coisas se repetem diariamente e parece que estão acontecendo desde
sempre. O menino com a mochila, os latidos agudos do cão no apartamento
sempre de janelas abertas, o garoto puxando a coleira do cachorro e
comendo o sanduíche, levando-o com certeza à praça de Vázquez de Mella,
único espaço aberto do bairro, uma área feia e grande de concreto, apenas
uma plataforma estendida sobre um estacionamento, na qual os vizinhos
passeiam com seus cachorros enquanto as crianças da vizinhança jogam
bola e as meninas pulam corda e jogam amarelinha e os junkies se picam ou
fumam heroína e nem uns nem outros parecem se ver, embora seja
impossível não ver as seringas jogadas, com restos de sangue, os pedaços
de limão muito espremidos, as lâminas queimadas de papel prateado. De
noite, acima dos telhados dos prédios que cercam a praça, ocupados por
vizinhos muito velhos que não puderam sair dali e por pensões duvidosas,
sobressai o alto pináculo da Telefônica, seu vasto volume de arranha-céu
soviético, coroado pela esfera amarela e pelas agulhas escarlate do relógio,
que o nevoeiro úmido das noites de inverno esfuma numa fosforescência
dourada e avermelhada.
Numa tarde o menino volta correndo e não está com o cachorro, e até
mesmo de sua sacada do segundo andar o homem doente de pijama
conseguiu ver que o rosto dele está molhado de lágrimas quando toca o
interfone. Abre-se a porta mas o garoto não entra, o homem e a mulher
descem, o menino a abraça chorando, como se fosse muito menor e mal
batesse na sua cintura, aponta para a esquina, limpa o ranho com o lenço
que a mãe lhe deu.
A vida inteira é olhar e esperar, vigiar a própria respiração, com medo
da asfixia, da negrura de um colapso, permanecer imóvel numa sacada, de
chinelo de pano e pijama, uniforme regulamentar de doente terminal, talvez
já excluído do reino dos vivos, como as sombras pálidas que eles cruzam
pela rua, sempre dobradas, com uma eterna dor nos rins, habitando um
mundo invisível para os outros, sempre ansiosas por alguma coisa,
apressadas atrás de um traficante que não vira a cabeça, anda erguido e
rápido, seguro, ar de desprezo.
O homem, a mulher e o menino desapareceram da vista, na última
esquina da rua San Marcos, limite do campo de visão. Minutos depois
reaparece o homem, agora sozinho, gritando um nome que deve ser o do
cachorro, tentando assobiar mas sem prática. O mais provável é que o
cachorro, sendo tão pequeno, haja se perdido para sempre ou que um carro
o tenha esmagado. Mas não se rendem, vão e vêm durante a tarde inteira,
passam debaixo da sacada e só entram em casa quando já está anoitecendo,
quando no outro extremo do campo de visão, na esquina da Augusto
Figueroa, acendeu-se o letreiro rosa do bar Santander, um rosa tão suave
como o azul do céu sobre os telhados, como o rosa do crepúsculo refletido
nas vidraças dos apartamentos mais altos, quando na rua já é quase noite
fechada.
Faz frio para ficar na sacada mas o homem da máscara continua
observando atrás das vidraças, de costas para um quarto do qual só se veem,
do outro lado, uma lâmpada de claridade turva e às vezes uns reflexos
azulados da televisão, de pé ao lado de cortinas que têm o mesmo ar
cansado e levemente sujo do pano de seu pijama ou da gola de sua
camiseta. Como será entrar nessa casa, que cheiros velhos haverá, além do
odor de doença crônica e de remédios? Meio emboscado atrás das cortinas,
de costas para o quarto e para as outras presenças de sua casa, indiferente às
vozes da televisão, o homem respira por trás de sua máscara e espia as
sacadas diafanamente iluminadas do apartamento em frente, ainda sem
cortinas, e a calçada já quase no escuro onde se cruzam com indiferença os
habitantes do reino dos vivos e os do reino prematuro dos mortos, cada um
vendo o que os outros não veem, espiando sinais de seu próprio idioma
secreto. Há alguém embaixo, parado no meio da rua, mas o homem não
chega a ver bem quem é, embora escute latidos secos e agudos de cachorro,
de modo que abre completamente as cortinas e gruda a cara na vidraça para,
de cima, dominar um espaço mais amplo de calçada.
E o bêbado que está lá embaixo, grande e imóvel, a cara virada para a
sacada dos novos vizinhos, cambaleando um pouco, embora não tanto como
quando bebe de verdade e parece que o álcool se derrama no brilho de seus
olhos e na sua pele de uma cor morena enfermiça e tumefacta, e está
segurando nos braços o cachorro preto e branco, que continua latindo até
enrouquecer e luta para escapar da proteção sufocante de seus farrapos e de
suas mãos. Mas ele não se aproxima do portão nem da campainha do
interfone, permanece quieto, aguardando que algo aconteça, com uma
paciência opaca de animal, como se não tivesse voz nem conhecesse a
existência ou a utilidade desse painel com botões e números que fica do
lado da porta diante da qual ele parou com o cachorro nos braços, bem
abrigado entre o monte de farrapos dos quais emergem seu focinho e seu
latido já rouco.
Paciência de esperar sabendo o que vai acontecer, como se ditando a
ordem dos fatos, observando diariamente na rua, hora após hora, a repetição
infinitesimal de tudo: semiescondido atrás das cortinas sujas, o homem
doente sabe que uma dessas sacadas vai se abrir, ainda sem cortinas e
revelando um interior recém-pintado de amarelo-clarinho, vai aparecer o
garoto, que será o primeiro a ter a ansiedade e a acuidade necessárias para
escutar e reconhecer os latidos, vai se acender a luz da portaria.
Desceram o pai e o menino, e a mulher jovem apareceu na sacada, tão
atenta à rua que não olhou nem um instante para o apartamento em frente.
Mas no último momento o menino conteve o ímpeto ansioso de ir até o
cachorro e não largou a mão do pai, e o bêbado não se aproximou deles, não
deu nem um passo. Inclinou-se para o chão lento e volumoso, e ali deixou o
cachorro, depositou-o com muita delicadeza, sem dizer nada, sem se
aproximar do menino que já abraçava o bicho nem do homem que lhe dizia
alguma coisa e oferecia algo com a mão esticada. Tinha os olhos muito
claros, de uma transparência tão incolor como a de certos olhos eslavos, e o
rosto vermelho e arroxeado, com hematomas, inchaços de abscessos, e
embora estivesse a menos de um metro de distância olhava de muito mais
longe. Mas não olhava de verdade, ou não chegava a encarar totalmente os
olhos de alguém, talvez por ter perdido o hábito de sustentar um olhar no
espaço normal da convivência humana e da conversa, como esses náufragos
que passavam anos num litoral desabitado e esqueciam o uso da linguagem
e acabavam perdendo a razão. Pensava que quando seu filho tivesse mais
uns anos ele o ajudaria a ler os romances de naufrágios e de ilhas desertas
que haviam alimentado os melhores tempos de sua infância.
Chegavam às esquinas do bairro e pouco a pouco tornavam-se habituais,
seus rostos tão familiares como o da mulher da padaria ou da drogaria ou
como o do homem da banca de jornais, parcialmente transformado em
mulher, seus movimentos furtivos e suas lentas horas de imobilidade e
ansiosa vigilância já tão rotineiras como as rondas e as batidas da polícia,
que de vez em quando obrigava um dos mortos em vida a ficar contra a
parede e o revistava, e o policial, entediado, pedia os documentos dos
traficantes marroquinos e levava alguém na radiopatrulha, alguém que em
pouco tempo, às vezes dias, já estava de novo no bairro, ou desaparecia e
nunca mais voltava, encarcerado ou morto, fugitivo num outro bairro
distante, morto em vida perambulando pelas proximidades de um desses
lixões ou depósitos de ferro velho da periferia de Madri.
Alguns dos recém-chegados conservavam certa dignidade, restos da
vida antiga que ainda não tinham abandonado de vez, convertidos recentes
à doçura do inferno em que transitavam desde que chegavam ao bairro.
Garotos muito jovens, com roupa nova e tênis de marca, que de longe
pareciam incólumes mas em quem já se descobriam a uma distância média
os primeiros sinais da ansiedade e da deterioração, e que ao fim de poucos
meses tinham sucumbido a um envelhecimento voraz, a um vampirismo em
que cada um deles era o vampiro e a vítima, os braços e o pescoço
marcados por picadas, pelas pequeninas mordidas das seringas que às vezes
estalavam sob seus passos no parque e podiam aparecer até mesmo no vão
da entrada de um prédio. Era preciso dizer ao garoto que jamais as tocasse,
que jamais se abaixasse para pegar nada no chão.
Chegavam, de início, com um excesso de vitalidade e energia que
contrastava com a lentidão dos veteranos, com um ar de exploração ou
aventura que ia desaparecer muito antes da roupa limpa e dos tênis de
marcas. De onde vinham, de que lugares e que vidas, o que havia nesses
olhos ao mesmo tempo fixos e vazios? Apareceu uma mulher jovem com
todo o jeito de ser secretária, de tailleur, bolsa de couro e uma pasta nos
braços, meias escuras e salto alto. Podia ser confundida com uma
funcionária qualquer dos escritórios das redondezas, talvez responsável pela
administração de uma firma e que tinha marcado encontro com alguém bem
naquela esquina e de vez em quando olhava o relógio. Cheinha, mas não
gorda, rosto corado, vestida com discrição, alheia à espera dos outros, os
habitues que mal se sustentavam de pé e se apoiavam na parede e ficavam
dormindo ou num transe de desmaio e iam paulatinamente escorregando
para o chão. Mas em poucos dias, ou ao olhá-la de mais perto e com mais
atenção, descobriam-se sinais inesperados: os saltos começavam a ficar
tortos de tanto esperar de pé, ou havia um fio puxado na meia, ou um
buraco no calcanhar, o penteado ia se desfazendo, viam-se as raízes brancas
no repartido do cabelo, a cor de seu rosto não era de saúde, mas de
maquiagem apressada, já não tinha um relógio-pulseira onde consultar a
hora como se estivesse esperando alguém para um encontro de trabalho.
Mas continuava apertando nos braços a pasta ou o arquivo de capa
preta, como o último resíduo de uma vida ou de uma dignidade anteriores
ou como uma irrisória camuflagem profissional para os seus conhecidos ou
para os policiais que patrulhavam o bairro, ou simplesmente por vergonha
diante das pessoas comuns que cruzavam com ela, diante das mulheres com
quem até muito pouco tempo antes se parecia, secretárias de pequenas
empresas, vendedoras de drogarias ou empregadas de cabeleireiros.
À medida que ia empalidecendo pintava mais os olhos e os lábios e
jogava um blush mais vivo nas faces. Agora mancava ao se sustentar em
cima dos saltos tortos e os botões de sua blusa abriam-se num decote
estufado contra o qual ela continuava apertando o arquivo de sempre (já
com o plástico das margens se soltando e mostrando a armação de papelão),
do qual saíam folhas como formulários ou memorandos apanhados do chão
ao acaso e guardados de qualquer maneira.
Às vezes estava com um homem que, no início, também não dava a
impressão de que acabaria habitando o reino dos mortos em vida: alto, trinta
e tantos anos, mais distinto que ela, como se fosse seu chefe inexperiente e
bondoso, de gabardine e calça de brim, sapatos de couro, cabelo
despenteado e uma estudada sombra de barba de três dias, um jeito muito
definido de jornalista ou arquiteto. Os dois desapareceram e, semanas ou
meses depois, só ela voltou, o cabelo tão mal pintado que tinha manchas
pretas nas raízes brancas do repartido, os cílios mais maquiados, o olhar
mais ansioso nos olhos redondos e saltados, os lábios mal pintados de um
vermelho obsceno.
Ainda usava o mesmo salto alto e, tudo indica, as mesmas meias, e
continuava apertando o arquivo de capa preta.
Na vez seguinte, a última, eu já não estava no bairro: talvez um ano
depois, ao descer pela rua de La Montera, eu a vi encostada numa esquina e
custei a reconhecê-la: identifiquei-a pela cara de secretária bobinha e pelas
raízes brancas do repartido do cabelo, mas já era igual às outras mulheres
de saias curtíssimas e coxas grossas e saltos muito altos e tortos que rondam
por essas calçadas de Madri, fumando nas esquinas, vigiadas por gigolôs
quase tão moribundos quanto elas, entre as sex-shops e os salões de jogos,
perto das sarjetas das ruas estreitas de onde chega um cheiro de esgoto.
Cada figura esquecida muito tempo ressurge com um estremecimento
da memória, presenças daquela vida nova que agora voltou relembrada e
distante, como aquele apartamento habitado por outros, embora tivesse sido
na época tão indelevelmente nosso como as feições de nossos rostos, sete
anos mais" jovens. Há pouco passei por nosso portão e de baixo cheguei a
ver, pelas grades da sacada, o teto e a parte superior de uma das paredes que
mandamos pintar de amarelo-claro. Era uma dessas tardes longas de maio,
com um pressentimento morno de verão e pólen no ar, e no balcão defronte
estava instalado o doente velho dos chinelos e do pijama, com sua máscara
na boca e os tubos de plástico no nariz, olhando para a rua, onde talvez
tenha me visto e se lembrado de mim ou talvez não tenha chegado a me
reconhecer, após esses anos em que eu mal passava por nossa rua de
antigamente.
Havia outra testemunha permanente de tudo, agora me lembro, um
velho grande, de sorriso largo e faces coradas, um desses velhos garbosos
que com a idade parecem ficar mais compactos e parrudos. Passeava
sempre pelas ruas do bairro, entre a praça de Chueca e a Vázquez de Mella,
devagar, desde manhãzinha, parecendo maior por causa de um capote de
corte antiquado e luxuoso, com a cabeça singularmente pequena coberta por
um chapéu tirolês, de pena verde e tudo. Eu prestava atenção em seu chapéu
e nos seus sapatos de gigante, mas sobretudo na perfeita complacência de
sua atitude diante do mundo, na forma como parecia gostar com idêntica
objetividade de tudo o que via ao redor, ficando às vezes parado para
aproveitar o primeiro raio de sol que batia num canto da praça de Chueca
nas manhãs de inverno, ou para contemplar interessado e aprovando as
manobras de uma caminhonete de carga e descarga no meio do colapso do
trânsito, ou a chegada de um carro da polícia ou da ambulância vindo
recolher um dos espectros que tinham desabado na entrada de um prédio.
Ele observava tudo, parava um momento e depois continuava o passeio,
como se a riqueza e a complexidade de tudo o que ainda tinha a observar ao
longo do dia o impedisse de parar tanto quanto gostaria, satisfeito e ausente,
levando a mão ao chapéu para cumprimentar Sandra no seu posto de venda
de jornais, ajudando um cego a passar entre os carros mal estacionados na
calçada, admirando os sacos de laranjas pendurados na porta da casa de
frutas, e até dedicando um olhar vagamente compassivo aos fantasmas das
esquinas, um gesto de idêntica consideração em face dos policiais
revistando e das transações rápidas e furtivas dos traficantes, que para a
curiosidade aprovadora e magnânima do homem do chapeuzinho tirolês
pareciam fazer parte da pequena agitação comercial do bairro. Que
estranho, cruzar com ele todo dia e ir reparando paulatinamente em sua
presença assídua, conceder-lhe uma individualidade precisa, muito intensa e
no entanto limitada a essas aparições na rua, nas margens de sua vida, e de
repente não vê-lo e não notar sua ausência, ou ir embora e esquecer os
hábitos e as figuras daquela pequena cidade do interior incrustada no
coração de Madri: e muitos anos depois lembrar, sem motivo e sem
necessidade, ou melhor, assistir a um encadeamento de retornos dos quais a
vontade não participa, nos quais a memória se deixa levar como pelo
impulso de uma corrente subterrânea, lugares distantes e rostos sem nome,
fragmentos de histórias sem começo nem fim, dos romances que cada um
carregava e não contava a ninguém, e que se perderam com eles. Como
seria a vida de uma velha que toda meia-noite punha a toalha de seu jantar
sobre a tampa de uma lata de lixo. Ou a de um homem e uma mulher ainda
jovens mas já muito decadentes que iam ao bairro buscar heroína
empurrando um carrinho de bebê tão deteriorado como eles, tão próximo do
absoluto desabamento físico, como se apanhado num lixão, o pai ou a mãe
empurrando-o pelas calçadas em seus passeios sonâmbulos e o menino
dormindo apesar dos solavancos, com a chupeta num lado da boca
entreaberta e os olhos placidamente semicerrados, o menino vermelho e
duro de tanto chorar e o pai ou a mãe balançando o carrinho com
movimentos tão bruscos que ele parecia se desfazer de vez, ou indiferentes
ao choro, como se não o escutassem, os dois atentos às esquinas onde a
qualquer momento teria de aparecer a sombra tranquila e furtiva que eles
aguardavam. Estarão em algum lugar agora mesmo, se é que ainda vivem,
se é que um dos dois ainda vive, e o menino, que na época não teria nem
dois anos, já terá feito oito ou nove, e talvez esteja envenenado pelo mesmo
vírus que sem dúvida seus pais tinham no sangue, e que pode tê-los matado,
como terá matado tantos espectros do bairro.
Agora, ninguém poderia recompor seus rastros: os mortos em vida
desapareceram das esquinas da Augusto Figueroa. Quase todos terão
penetrado de vez no reino dos mortos, e alguns ainda sobreviverão em
hospitais ou prisões, ou se arrastarão como zumbis pelas trilhas no meio dos
lixões e dos depósitos de ferro velho na mais afastada periferia de Madri,
para onde a polícia os foi empurrando quando veio a ordem de retirar os
drogados das ruas do centro. Há uma loja de flores no espaço onde ficava a
banca de Sandra, que vendia os jornais de chinelos e roupa de jogging, ou
com um roupão de flanela e um xale bordado nos dias de inverno, e que
certas manhãs não havia se barbeado embora tivesse pintado
cuidadosamente os cantos externos dos olhos, à maneira de Sara Montiel,
sua idolatrada.
Outras figuras retornam do esquecimento, não muito mais
fantasmagóricas do que quando cruzavam conosco pelas calçadas do bairro.
Lembrei-me do bêbado náufrago que nos devolveu o cachorro que já
imaginávamos morto ou perdido e então me veio à imaginação aquela
mulher muito alta e muito esguia que andou algum tempo com ele e depois
desapareceu, meses mais tarde, tempo máximo que suas vidas duravam
perto das nossas.
Vendo-a de longe vislumbrava-se o que teria sido até pouco antes. Era
tão alta como uma modelo, com as mesmas faces asiáticas, a boca
volumosa e carnuda, as pernas compridas e elásticas quando andava. De
costas, ou de longe, viam-se sua figura alta e sua cabeleira cacheada. Só de
perto é que se percebiam sua palidez de morta em vida e o brilho turvo de
seus grandes olhos claros, as manchas-roxas nas pernas bonitas que já
estavam ficando muito magras, o buraco preto dos dentes que tinha perdido.
Ela andava de um lado a outro do bairro como um grande pássaro
transtornado que bate nas paredes e não sabe onde está nem consegue
encontrar a saída, cavalgando em cima de seus saltos altos e suas enérgicas
pernas de modelo, ainda reta, como um resíduo da disciplina das passarelas,
mais alta que qualquer outra no bairro, a cabeça cacheada e o pescoço
comprido maneirista sobressaindo entre as figuras encurvadas durante os
conciliábulos do ponto de venda de drogas ou em torno da chama de um
isqueiro que, na escuridão de um pórtico, aquece uma lâmina de papel
prateado sobre a qual a dose de heroína fica líquida e fumega. Andava
desorientada e demente como se tivesse muita pressa, ou ficava imóvel, sua
figura perfilada numa esquina, os olhos aquosos brilhando atrás dos cachos
do cabelo desgrenhado e sujo, um sorriso ébrio ou idiota na boca em ruína,
da qual brotava a fumaça de um cigarro preso entre os dedos muito
compridos com a elegância calculada de uma pose fotográfica.
Começou a dormir nas portas de lojas ou bares fechados, onde os
indigentes costumavam instalar suas tocas feitas de trapos e caixas de
papelão. Tinha começado o inverno e agora ela usava sobre a camiseta e a
minissaia leves de sempre um casacão sujo de couro sintético. Nas manhãs
de frio, a pele branca de seu rosto tinha um tom arroxeado. O cabelo ia
ficando mais ralo e seus olhos grandes e claros tinham perdido quase todo
vestígio de cor. Pedia um cigarro a qualquer pessoa e ficava com ele na
mão, levando-o devagarinho à boca, esperando que também o acendessem.
Uma vez pediu cigarro ou fogo ao bêbado do bairro, que ninguém
jamais interpelava, sabendo que ele não respondia ou não parecia entender
nem escutar o que estavam lhe dizendo. Ele deu de ombros, grunhiu alguma
coisa e continuou seu caminho, mas nessa noite, quando a mulher tiritava
sob seu abrigo numa entrada de prédio da rua San Marcos, viu
confusamente uma sombra parida na frente dela e era o bêbado que lhe
oferecia um cigarro, segurando-o com delicadeza entre os dedos grossos e
sujos, como se fosse a haste de uma flor. A mulher afastou o cabelo e pôs o
cigarro nos lábios roxos de frio, e o bêbado, que ninguém tinha visto fumar,
acendeu-o iluminando seu rosto de morta em vida com a chama fugaz de
um isqueiro.
Tudo no bairro logo se sabia: ele comprara os cigarros e o isqueiro no
mesmo mercadinho onde se abastecia de caixas de vinho branco, e onde no
dia seguinte, contra os seus hábitos, comprara pastéis de nata e donuts
recheados de chocolate. Os junkies se alimentavam desse tipo de porcaria
muito açucarada: perto das lâminas queimadas de papel prateado e das
seringas sempre apareciam embalagens de bolos de chocolate e vidros de
doces de ovos.
Toda noite começou a levar coisas para o vão do pórtico tapado onde ela
se refugiava, às vezes sem acordá-la, sem que ela notasse sua presença entre
o tiritar de frio e o delírio. Cobria-a com seu casacão, muito mais grosso
que o dela, e numa noite foi visto arrastando pela rua Pelayo um edredom
rasgado e imundo que devia ter encontrado em alguma caçamba de entulho.
Mexia-se com mais diligência, concentrado e primitivo, como o náufrago
Robinson preparando em sua ilha uma cabana ou uma gruta onde passar o
inverno. De dia nunca ficava muito longe dela, embora não se aproximasse
nem se fizesse muito visível, permanecia atento perto de uma esquina atrás
da qual poderia facilmente se esconder, indiferente às pessoas que passavam
por ele e se afastavam amedrontadas ou querendo fugir de seu fedor, atento
apenas à figura alta que, a essa distância, era a de uma mulher muito jovem
e muito esbelta, caminhando a passos largos entre os carros e as pessoas,
perdida como um grande pássaro atordoado, desaparecendo como se tivesse
ido embora para sempre e depois voltando, horas ou dias depois, mais
alucinada e pálida que da última vez, mais encolhida nas portarias ou nos
vãos onde se refugiava quando já eram altas horas da noite e não havia mais
ninguém nas ruas escuras, ninguém além dos mortos em vida mais
contumazes, aqueles que às três ou quatro horas da manhã continuavam
esperando algo, cochilando, tortos e encostados nas esquinas.
Provavelmente foi ela quem lhe dirigiu a palavra, pedindo-lhe,
atordoada e imperiosa, que lhe trouxesse mais cigarros, ou iogurtes ou
donuts do mercadinho onde ele entrava quando não havia mais ninguém e
depositava no balcão, sem dizer nada, a quantia correspondente ao preço
das caixas de vinho branco que podia financiar. Pagava sempre, e nunca o
tinham visto pedir.
A dona do mercadinho contava que ele era o primogênito de uma
família muito rica do Norte, e especulava sobre os abusos de um pai
tirânico que o havia expulsado ou deserdado e, no entanto, não deixava que
faltasse ao filho naufragado no desvario e no álcool um mínimo de dinheiro
para sua subsistência e de roupa agasalhada para não morrer de frio nas
ruas.
Mas sua verdadeira história ninguém chegou a saber, tal como não se
sabia seu nome, a menos que o tivesse contado à mulher com quem aos
poucos começou a dividir os acampamentos noturnos nos locais mais
abrigados do bairro. Nunca foram vistos andando juntos, mas se protegiam
mutuamente nas noites geladas daquele inverno, ou melhor, era ele quem a
abrigava e protegia, quem ficava acordado e atento para que ela não se
descobrisse, quem lhe preparava com mão de mestre seu leito de papelões e
folhas de jornais e depois a envolvia em casacos, em edredons resgatados
do lixo ou numa roupa qualquer que agora ele catava pelo bairro como um
quinquilheiro.
Havia um brilho movediço na vasta escuridão da praça Vázquez de
Mella e era a fogueira que o bêbado tinha acendido, perto da qual se
aquecia como uma esfinge a mulher alta e magra, fumando os cigarros que
ele lhe trouxera e que ele acendia com um gesto rápido toda vez que ela
levava um à boca, comendo os iogurtes ou os doces de ovos comprados por
ele junto com suas caixas de vinho.
Agora, sim, ele mendigava. Sem dizer nada, só esticando a mão e
olhando nos olhos, ou fazendo o gesto de levar um cigarro à boca. Pedia
dinheiro e pedia cigarros, e embora não chegasse a trocar uma palavra com
ninguém parecia que, pela primeira vez, era consciente da existência de
outras pessoas no mundo, de outras presenças que exigiam sua atenção ou
das quais podia esperar alguma coisa naquilo que tinha sido até então a
solidão de sua ilha deserta. Não dividia com a mulher os cigarros nem a
heroína, e não dava a impressão de que tivesse chegado a existir um
relacionamento sexual entre eles, mas passavam-se mutuamente os litros de
vinho branco, que escorria por sua boca larga e carnuda, deixando-lhe um
brilho úmido nos lábios e nos olhos.
Eram vistos na sombra como dois bichos no fundo da toca cúmplices e
sós numa distância de outro tipo, como que tendo retrocedido ao estado
selvagem ou à inocência de sua perdição irreparável, da fatalidade da
desgraça e da morte, intocáveis, tão alheios a nós que passávamos perto
deles, protegidos por nossos abrigos e nossa normalidade, a caminho de
nossa casa nova e nossa vida aconchegante e estável, como se de fato
habitassem em outro mundo, no outro mundo, numa dessas grutas ou
cavidades nas pedras onde se abrigariam os homens primitivos ou os
náufragos.
Algum tempo depois, semanas ou meses, a mulher desapareceu, e
facilmente teríamos esquecido sua existência passageira se não fosse o fato
de que o bêbado continuou no bairro, manso e sedentário, novamente
recluso na introversão sem fissuras; em sua figura gostaríamos de ter
captado, seguindo uma rotina novelesca, um certo desamparo sentimental,
um ar mais alerta, como se ele buscasse nas esquinas dos mortos em vida a
presença tão alta da mulher que de longe parecia uma modelo. Mas já não
ligávamos muito para ele, pois íamos nos acostumando com sua presença, à
medida que nós mesmos nos tornávamos presenças habituais do bairro e
não prestávamos muita atenção no que acontecia diariamente nas ruas, o
homem, a mulher e o garoto que já ia sozinho para a escola, saía toda tarde
com seu sanduíche e puxando pela coleira o cachorro indócil que já estava
deixando de ser um cachorro.
Eles também foram embora, presenças habituais num dia e no outro
desaparecidos para sempre, e o homem da sacada voltou a ver que o
apartamento em frente estava vazio e presenciou a chegada de outros
inquilinos, meses ou anos depois, não saberia dizer, pois para ele o tempo
de sua vida de doente era uma lenta duração sem mudanças verdadeiras.
Meses ou anos depois encontramos um antigo vizinho que continuava
vivendo no bairro. Falamos dos tempos que, de repente, voltavam de longe,
da nova vida intacta apagando-se na doçura do passado, e o vizinho nos
perguntou se não nos lembrávamos do bêbado que sempre andava pelas
ruas. Contou-nos que tinha aparecido morto numa manhã de grande geada
na praça de Vázquez de Mella, roxo de frio e com a barba e as pestanas
brancas de escarcha, como esses exploradores polares que se perdiam e
enlouqueciam nos desertos de gelo.
Sherazade

Eu estava tão nervosa à medida que íamos atravessando aqueles salões


dourados que minhas pernas tremiam e gostaria de apertar a mão de minha
mãe, que ia um pouco na minha frente, muito séria e calada, como todos os
da comitiva, ela vestida de preto, de luto por meu pai e meu irmão, e os
outros com suas roupas escuras, muito eretos, muito formais, alguns de
uniforme, com medalhas, todos tão nervosos como eu, embora
disfarçassem, tão emocionados como eu, tão em silêncio que só ouvíamos
os passos de todos nos pisos de mármore, como se andássemos pelas naves
de uma catedral, e eu ao lado de minha mãe, como quase sempre em minha
vida, emocionada e assustada, com um nó na garganta, olhando seu perfil
que não se virava nem um instante para mim, tão reta ia andando, mais alta
e mais forte que eu, e com seu orgulho de viúva e mãe de heróis, minha mãe
que teria me olhado com seu rosto meio severo e meio brincalhão se eu não
tivesse me contido e tentasse apertar sua mão, deixar-me levar e ser guiada
por ela, como em menina, quando me levavam a uma manifestação e eu
apertava sua mão tão forte que os dedos me doíam, porque tinha medo de
que o tumulto começasse e minha mãe e meu pai se afastassem de mim, e
os guardas atirassem e eu fosse pisoteada pelas pessoas que fugiam e pelos
cavalos que ouvíamos relinchar e bater com os cascos no chão antes que
seus cavaleiros os esporeassem para avançar contra nós. Soldados ou
contínuos nos guiavam por aqueles corredores e passavam diante de nós
para abrir as portas, altíssimas e às vezes douradas, e outras tão normais
como portas de escritório, e toda vez que cruzávamos uma soleira meu
coração encolhia e eu pensava, agora é que vamos vê-lo, que ele ficará tão
perto que apertarei sua mão, se é que não vou desmaiar, ou se não cair no
choro que nem uma boba, como diz minha mãe, que eu tenho reações de
garotinha, embora nessa época já não fosse, nem de longe, pois breve ia
fazer vinte e cinco anos, em janeiro, e estávamos em dezembro, no dia 21
de dezembro de 1949, dia do aniversário de Stálin, e todos nós íamos ter a
oportunidade de felicitá-lo, em nome do nosso partido e dos operários
espanhóis, com mais pompa que de outras vezes, porque ele estava fazendo
setenta anos, e aquele aniversário foi uma grande festa para todos os
comunistas e trabalhadores do mundo. Havia gente de outros países naquela
visita, creio, mais camaradas de partidos estrangeiros, e me lembro de que o
salão aonde nos levaram era grande e estava repleto, embora as vozes não
se levantassem muito, só um pouco, para os discursos, e nem sempre, acho
que estávamos todos igualmente emocionados, impactados, não sei se se diz
assim em espanhol, muitas vezes vou dizer uma coisa e quando começo a
falar percebo que estou falando em russo, e que me faltam as palavras em
espanhol. Havia lustres imensos acesos, mas não iluminavam muito, por
causa da fumaça ou por causa do céu muito escuro atrás dos janelões, se
bem que fosse de dia, lembro-me de tudo meio brumoso, e também que não
pude me aproximar muito de Stálin, não apertei a mão dele, não sei se
porque minha mãe me fez um gesto para que eu não entrasse na fila, ou
porque alguém me empurrou para trás, e fiquei em outro grupo, afinal de
contas eu não era ninguém, tinham me permitido juntar-me à nossa
delegação porque supliquei à minha mãe que me levasse com ela, que
quando eu tivesse filhos e netos queria poder contar que uma vez na vida
tinha visto Stálin de perto e com meus próprios olhos.
Estava tão nervosa que não percebia muito bem o que se passava ao
meu redor, ou não entendia, via tudo quase tão borrado como agora que
estou recordando, com aquela pouca luz, as vozes tão baixas. Mas Stálin,
sim, consegui ver direitinho, apesar da fumaça ou névoa que havia, e da luz
tão fraca dos lustres, estava sentado ao centro de uma mesa muito
comprida, conversava com alguém, sem nenhum formalismo, fumava e ria,
e eu quase tinha de me beliscar para acreditar que era verdade que o estava
vendo, em carne e osso, inconfundível, como alguém de minha família,
como em criança via meu pai entre os outros homens, mas também muito
diferente, não sei como explicar, porque era como os retratos dele que
tínhamos visto desde sempre em todo lado e no entanto não era muito
parecido com esses retratos: era muito mais velho, e menor, prestei atenção
e vi suas pernas curtas debaixo da mesa e suas botas cruzadas, e quando ria
seu rosto se enchia de rugas e tinha os dentes muito pequenos e estragados,
ou muito pretos de fumo, e o uniforme ficava meio folgado para ele, mas
justamente por isso me emocionou muito mais do que eu esperava, e de
outro modo, pois achava que iria ver um gigante na plenitude de sua força e
no fundo Stálin era um homem velho e cansado, como meu pai tinha sido
no final da vida, e que, sendo mais frágil do que eu imaginava, tivera a
imensa força necessária para lutar contra o czar, para dirigir a construção do
socialismo e ganhar a guerra contra os nazistas, e via-se que tantos anos de
esforço e sacrifício o haviam esgotado como esgotaram meu pai os anos na
mina e na prisão, e tinha cara de dormir mal e de vez em quando ficava
ausente, como pensando em outra coisa enquanto alguém falava com ele, ou
enquanto escutava um discurso, até pena dele senti, com aquela cor de pele
tão doentia, tantos anos sem nunca descansar, desde que era um garoto nos
tempos dos czares e foi deportado para a Sibéria. Depois minha mãe me
dizia, rindo de mim, você precisava ver a cara que fazia ao olhá-lo, ficava
de boca aberta, como se estivesse vendo um artista de cinema. Mas então
aconteceu uma coisa, enquanto eu olhava fixamente Stálin, sem me dar
conta de que não tirava os olhos dele, de que não via mais ninguém, nem
mesmo as pessoas que estavam ao meu lado na mesa, de quem me esqueci
totalmente.
Olhava Stálin querendo captar todos os detalhes de seu rosto e sentindo
um pouco de pena dele, de tão cansado parecia, de tão folgada estava a
jaqueta de seu uniforme, e então senti uma fisgada, como quando a gente
encosta num cabo solto e leva um choque. Alguém estava me olhando,
muito fixo, com muita frieza, mas também com muita raiva, reprovando
minha má-educação de olhar Stálin tão descaradamente, um homem
pequeno e careca sentado bem perto dele, de óculos, com uns óculos
antigos, um pincenê, e uma gravatinha e um colarinho alto postiço, antigos
também. Fiquei gelada, lembro-me disso e ainda sinto um calafrio, era
Lavrenti Beria que estava me olhando, mas não senti medo por ser ele o
chefe do NKVD, e sim por seus olhos, que pareciam atravessar a distância
que nos separava como se não houvesse nada no meio, atrás daquelas lentes
redondas e pequenas, presas no nariz com uma mola. Olhava-me tal como
olharia para um inseto, como me dizendo, quem você pensa que é para
olhar Stálin com essa falta de vergonha, como conseguiu se infiltrar neste
lugar, mas havia algo mais, e na época eu era tão boba que não percebia,
embora por instinto tenha sentido um certo nojo, como o que me davam
aqueles homens que ficavam me olhando quando eu vivia na residência de
moças e não entendia por que respiravam tão forte e me olhavam tão fixo,
ou os que se esfregavam em mim aproveitando os solavancos de um bonde.
Foi um instante, e em seguida afastei os olhos, e já não me atrevi a observar
de novo Stálin, e o tempo todo fiquei sentindo aquele olhar que talvez
continuasse fixo em mim, que tinha baixado com toda frieza e
descaramento de meus olhos para minha boca e depois para meu pescoço e
meu decote. Agora que penso, já não deve sobrar muita gente no mundo
que se lembre dos olhos de Beria, invisíveis quando a luz se refletia nas
lentes de seus óculos.
Sento-me aqui e começam a vir as lembranças, e parece mentira que
tenham acontecido tantas coisas comigo, e que eu tenha estado nesses
lugares tão distantes, o mar Negro e a Sibéria, o Círculo Polar Ártico, mas
também aqui estou muito longe, embora esteja em Madri, porque Madri
está muito longe de Moscou, e além do mais eu a conheço muito menos, e
tenho medo de ir para a rua, com tantos carros e tanta gente, tenho medo de
me perder e não lembrar o caminho de volta, e também fiquei muito
assustada quando me assaltaram, assim que saí no portão, me jogaram no
chão e pegaram a minha bolsa, num piscar de olhos, e fiquei caída na
calçada e aos gritos, pega ladrão, pega ladrão, sem que ninguém se
aproximasse, mas agora acho que talvez tenha gritado em russo, pela
confusão que faço com as duas línguas, falo numa e estou pensando na
outra, ou quero dizer uma palavra em espanhol e sai outra em russo. Sempre
sonho em russo, e sempre sonho com coisas de lá, ou de muitíssimos anos,
de quando era criança, antes de nos mandarem para a União Soviética,
durante poucos meses, nos diziam, e depois até que terminasse a guerra,
mas a guerra terminou e não nos mandaram de volta, e depois começou a
outra guerra e aí, sim, é que foi impossível, parecia que o mundo ia acabar,
porque nos evacuaram para muito longe, não sei quantos dias ficamos
viajando de trem, dias e semanas, sempre no meio da neve, e eu pensava,
vou cada vez para mais longe da Espanha, e de minha mãe e de meu pai, de
quem quase não me lembrava, e inclusive comecei a sentir certo rancor
deles, envergonho-me ao dizer isso, pensava que não deviam ter permitido
que eu fosse naquele navio, e censurava-os por terem me deixado
novamente sozinha, como quando iam às suas reuniões do sindicato ou do
partido e meu irmão e eu ficávamos sozinhos a noite inteira, meu irmão
pequeno chorando porque tinha medo ou estava com fome e eu ninando-o
no colo se bem que não fosse muito maior que ele, tão assustadiço em
criança, e doentio, de tão mal comíamos, e como ficou forte e valente
depois, já aos doze anos saía comigo para vender Mundo Obrem, quando já
vivíamos em Madri, e me dizia, não tenha medo dos filhinhos de papai
fascistas, que se vierem para cima de nós eu a defendo, e depois, com vinte
anos recém-feitos já era piloto do Exército Vermelho, ia me ver e me
levantava no ar ao me abraçar, tão bonito, com seu uniforme de aviador e
sua estrela vermelha no quepe, foi se despedir de mim porque sua
esquadrilha estava sendo mandada para a frente de Leningrado e ele não
parou de rir e cantar comigo músicas espanholas e alvoroçou todas as
garotas da escola de enfermeiras de guerra, e nessa noite o acompanhei à
estação e quando o trem já estava saindo ele deu um pulo do estribo e
voltou para me abraçar e beijar e pulou de novo para o trem e se agarrou
num corrimão como se montasse num cavalo, me disse adeus com o quepe
na mão e nunca mais voltei a vê-lo, isso é o mais estranho da vida, não
consigo me acostumar, que você tenha perto de si alguém que ama muito e
esteve com você e um minuto depois a pessoa desaparece e é como se
nunca tivesse existido. Mas sei que meu irmão morreu como herói,
continuou combatendo os caças alemães quando seu avião já estava com
um motor em chamas, e foi se estilhaçar contra as baterias inimigas, um
herói da União Soviética, no Pravda publicaram a foto dele, tão bonito que
parecia ator de cinema. Sento-me aqui e me lembro dele, vem-me a
recordação sem que eu faça nada, como se a porta se abrisse e meu irmão
entrasse tranquilamente, com aquela serenidade risonha que tinha, vejo-o na
minha frente com seu blusão de piloto e imagino que falamos e falamos e
nos lembramos de tantas coisas antigas, e conto as que aconteceram comigo
depois de sua morte, há mais de cinquenta anos, como o mundo mudou,
como se perdeu tudo o que defendíamos, pelo que ele e tantos outros deram
suas vidas, mas ele nunca perde o bom humor, coça a cabeça debaixo do
quepe e me dá palmadas no joelho, me diz, ora, mana, não é para tanto, às
vezes estou acordada e o vejo diante de mim tão nitidamente como o vejo
nos sonhos, e o que acho mais estranho não é que tenha voltado ou continue
sendo um rapaz de vinte anos, mas que me fale em russo tão rápido, e tão
perfeitamente, sem nenhum sotaque, porque para ele o russo era muito
difícil, pior que para mim, no início, quando falavam comigo e eu não
entendia nada, e não entender era pior que sentir frio e pior que passar
fome. E agora é o contrário, o que não entendo às vezes é o espanhol,, e não
me acostumo com essa gente que fala alto, alto e de forma tão brusca, como
se vivessem com pressa ou estivessem muito enfarados, como o senhor que
naquele dia do assalto me ajudou finalmente a me levantar, e até me
segurou, porque o meu quadril doía muito, e pensei, se quebrei, se tiverem
que engessar minha perna e eu não puder sair de casa nem cuidar de mim,
quem virá me ajudar, e o homem me dizia, pois é, minha senhora, vou
acompanhá-la até a delegacia para dar queixa, que tem de se pôr na linha
todos esses pilantras, aposto que era um desses árabes que rondam por aqui,
e agradeci mas também me mantive muito digna, não, senhor, não foi um
árabe que me assaltou, mas um bem branco, e além disso não se chamam
árabes mas marroquinos, e a queixa vai ter de esperar, porque agora o mais
urgente é chegar à passeata, que hoje é dia 1 de maio. O homem me olhava
como se eu estivesse louca, pois a senhora que sabe, faça o que quiser, e eu
lhe disse obrigada e fui para a passeata, mancando mas fui, e quando
terminou uns companheiros me levaram de carro à delegacia e dei queixa,
mas eu, um 1 de Maio não perco, embora já não seja o mesmo e cada vez
tenha menos gente e seja tudo tão sem graça, que quase não há bandeiras
vermelhas nem punhos cerrados, e nem os que vão puxando o cortejo, atrás
dos cartazes, sabem a Internacional.
Já não é como quando saíamos com minha mãe e meu pai, e meu irmão
e eu os olhávamos de soslaio para levantar o punho igual a eles, antes da
guerra, pela rua de Alcalá, que era um mar de gente e bandeiras vermelhas,
e depois na União Soviética, na praça Vermelha, o 1 de Maio do ano em que
acabou a guerra, não cabia mais gente, mais gritos, mais bandeiras, mais
canções, mais entusiasmo, milhões de pessoas aclamando Stálin, e eu
apertada no meio da multidão, aclamando-o também, emocionando-me ao
pensar que essa figura diminuta que se via ao fundo, na tribuna sobre o
mausoléu de Lênin, era ele, chorando de alegria, e de gratidão, porque ele
tinha nos guiado na vitória contra a Alemanha, que custou tantos milhões de
mortos soviéticos, meu pobre irmão entre eles, mesmo se agora parece que
os americanos é que ganharam aquela guerra, que só eles lutaram, e as
pessoas sabem o que foi o desembarque na Normandia e não sabem que foi
em Stalingrado que pela primeira vez o Exército alemão foi derrotado, na
batalha mais sangrenta e mais heroica da guerra, e nem mesmo sabem que
havia uma cidade chamada Stalingrado, trataram logo de mudar o nome
dela, assim como Leningrado, que vergonha, que agora se chame como nos
tempos dos czares, São Petersburgo, e querem canonizar Nicolau II, que
mandou as metralhadoras dispararem contra o povo na frente do Palácio de
Inverno. Mas vejo que você está com uma cara estranha, embora queira
disfarçar, não creia que não sei o que está pensando, todas essas histórias
dos campos de concentração e dos crimes de Stálin, como se Stálin não
fizesse outra coisa senão assassinar, ou como se todos os que cumpriram
pena nos campos fossem inocentes.
Claro que houve erros, o próprio Partido os reconheceu no XX
Congresso, e denunciou-se o culto da personalidade, e fez-se o possível
para reparar injustiças e reabilitar quem não tinha culpa, mas como não ia
haver culto de personalidade se Stálin tinha feito tanto por nós, pelo povo
soviético e pelos trabalhadores do mundo inteiro, se tinha comandado o
salto imenso do atraso à industrialização, os planos quinquenais, que eram a
inveja e a admiração do mundo, se em vinte anos a União Soviética tinha
deixado de ser um país atrasado e camponês para se transformar numa
potência mundial. E tudo isso nas piores circunstâncias, após uma guerra
provocada pelos imperialistas, no meio do cerco e do bloqueio
internacional, num país em que faltava tudo, em que a imensa maioria da
população era analfabeta, escrava do czar e dos popes. Olhe o que eles
foram, ou o que fomos, porque fui cidadã soviética, e olhe como está o país
agora, como destruíram em poucos anos o que levou várias gerações para
ser construído, o maior país do mundo partido em pedaços e a Rússia
entregue à Máfia e governada por um bêbado, diga-me se agora estão
melhores do que nos tempos de Stálin, ou nos de Brejnev, quando dizem
que o povo sofria tanta opressão. E não dizem que havia sabotadores e
espiões por todo lado, que o imperialismo empregava os métodos mais
sujos para destruir a Revolução, e que muitos judeus tinham se apossado de
postos-chave no governo e conspiravam a favor dos Estados Unidos e de
Israel.
Judeus, sim senhor, não me olhe com essa cara estranha, como se nunca
tivesse ouvido falar disso. Não sabe que houve um complô de médicos
judeus para assassinar Stálin? E depois havia quem se aproveitasse, quem
abusasse da confiança de Stálin e do Partido para enriquecer ou acumular
poder, mas no final essa gente pagou por seus erros, pois Stálin era tão
correto que não permitia que ninguém ao redor se aproveitasse de sua
confiança. Pagou Yezhov, que tinha cometido tantos abusos, encarcerado
tantos inocentes, e depois pagou Yagoda, se bem que o pior de todos dizem
ter sido Beria, que conseguiu enganar Stálin até o final, mas também
recebeu seu castigo, e dizem que quando iam matá-lo ele caiu de joelhos e
começou a suplicar e a gritar, diga-me se funcionava ou não a Justiça na
União Soviética. Mas agora querem esconder tudo, apagar tudo, até os
nomes, querem fazer crer que o povo soviético estava oprimido, ou
morrendo de medo, e que a morte de Stálin foi uma libertação, mas eu
estava lá e sei o que acontecia, o que as pessoas sentiam, estava em Moscou
na manhã em que disseram no rádio que Stálin tinha morrido, estava na
cozinha, preparando um café, tinha me levantado com enjoo porque estava
grávida de meu primeiro filho, e então começou a tocar aquela música no
rádio, e parou de tocar e houve um silêncio, e depois um locutor falou,
começou a dizer alguma coisa mas sua voz se embargou com o choro, e
quase não entendi quando disse que o camarada Stálin tinha morrido. Não
conseguia acreditar, era como quando me disseram que meu irmão tinha
morrido em Leningrado, ou quando meu pai morreu, mas meu irmão estava
na guerra e era de imaginar que pudesse morrer, e meu pai já era muito
velho e não podia durar muito, mas que Stálin pudesse morrer nunca tinha
me ocorrido, nem a ninguém, creio, para nós ele era mais que um pai ou um
líder, era o que deve ser Deus para os crentes. Fui para a rua, sem saber
aonde ia, pouco agasalhada embora estivesse nevando, e na rua encontrei
muita gente igual a mim, que andava como sonâmbula, parava numa
esquina e começava a chorar, mulheres velhas que choravam de boca
aberta, soldados chorando com suas caras de crianças, operários, todo
mundo, uma multidão que já me levava, como se me levasse um rio de
corpos debaixo da neve, a caminho da praça Vermelha, como por instinto,
mas as ruas já estavam repletas de gente e não se conseguia avançar, e
alguém disse que a praça Vermelha estava cercada, que era preciso ir para o
Palácio dos Sindicatos. Agora me sento aqui e parece mentira que estive em
Moscou naquela manhã, ter vivido aquilo, aquela avalanche de choro e
desespero, de gritos de mulheres caindo de joelhos na neve e chamando
Stálin, de música fúnebre nos alto-falantes das ruas, que tocavam hinos tão
alegres no 1 de Maio, vejo-me perdida entre tanta gente, chorando também
e abraçando-me a alguém, a uma desconhecida, sentindo no ventre os
movimentos de meu filho que ia nascer dois meses depois, e minha
impressão era de que nasceria órfão, mesmo tendo um pai, porque nenhum
de nós podia imaginar a vida sem Stálin, e chorávamos de tristeza mas
também de medo, de pânico, de encontrar-nos indefesos após tantos anos
em que ele sempre tinha cuidado de nós.
Em casa, quando eu era bem pequena, meus pais me falavam da Rússia
e de Stálin, e quando o navio chegou ao porto de Leningrado, levando-nos
da Espanha, a primeira coisa que vimos foi um grande retrato dele,
parecendo nos dar boas-vindas e nos sorrindo, como quando o víamos nos
noticiários sorrindo para um menino e pegando-o no colo. Mas cada vez
nevava mais forte e havia mais gente na rua, e já não nos mexíamos, a
multidão já não avançava em nenhuma direção, e por cima da música dos
alto-falantes escutavam-se Os apitos das fábricas, todos os apitos de
Moscou tocando ao mesmo tempo, como durante os alarmes na guerra, e
então comecei a me sentir angustiada, tal como quando corria escada abaixo
para um abrigo e temia tropeçar e rolar no chão, sentia que me empurravam,
me esmagavam, não conseguia respirar, as pessoas me apertando por trás,
pela frente, pelos lados, homens e mulheres com seus agasalhos e seus
gorros e o bafo de sua respiração batendo na minha cara, na nuca, o mau
cheiro dos corpos mal lavados e da roupa úmida, e eu abrindo muito a boca
para respirar, entre acessos de suor e arrepios de frio, querendo proteger
meu ventre com as mãos, pois meu filho estava se mexendo, se virando
dentro de mim com mais força que nunca, como se também se sentisse
enclausurado e agoniado, e então não aguentei mais e comecei a pedir
passagem, ou a tentar, tinha de ir embora antes que minhas pernas
falhassem e eu caísse no chão e pisassem na minha barriga, antes que a
multidão viesse por um lado e eu fosse empurrada e esmagada contra uma
parede, eu e meu filho indefeso, meu filho que qualquer coisa poderia
esmagar.
Empurrei, supliquei chorando, mostrei sem nenhuma vergonha meu
ventre tão grande, tiritava de frio, chorava aos gritos porque o choro dos
outros pela morte de Stálin me contagiava e também porque queria ir
embora dali o quanto antes e chegar a uma rua mais vazia, uma rua em que
não houvesse ninguém e por onde pudesse andar depressa até em casa
respirando a plenos pulmões, segurando a barriga em que meu filho não
parava de se mexer, que quase parecia que eu ia dar à luz ali mesmo entre as
pessoas que não se afastavam, não se mexiam um centímetro, protegidas
dentro de mantos e gorros e soltando um bafo entre os flocos de neve, e eu
desagasalhada, como uma idiota, nem sei se estava com um lenço na
cabeça, se tinha calçado as botas de neve antes de sair, perdida por umas
ruas que não conhecia, quando afinal consegui abrir caminho, eu sozinha,
de repente, com a cabeça descoberta e o cabelo encharcado e toda a minha
barriga pela frente, perdida numa rua de Moscou onde não havia ninguém a
quem perguntar o caminho. Conto isso a meu filho e ele me diz, mamãe,
como você é maçante, já me contou isso mil vezes, diz ele em russo, claro,
porque mal fala espanhol, mas tem um jeito espanhol que é meu orgulho,
embora seu pai, que descanse em paz, fosse da Ucrânia, eu o via vestido de
soldado quando fez o serviço militar e tinha a impressão de estar vendo o
tio dele, meu irmão, igualmente alto e moreno, igualmente alegre, com a
viseira do quepe jogada para um lado do rosto, o cigarro na boca e aqueles
olhos piscando, como os atores de cinema que eu adorava quando era
menina. Há dois anos não o vejo, nem conheço meu neto menor, porque
com a minha pensão já não tenho dinheiro para uma passagem até Moscou,
e ele é engenheiro químico e o salário quase não dá para sustentar a família,
que falem com meu filho de liberdade e de economia de mercado, pois se às
vezes eu é que tenho de lhe mandar uns dólares para que ele chegue ao fim
do mês ou possa comprar um carrinho para meu neto, eu que recebo na
Espanha a pensão mínima, uma esmola, embora você não saiba os anos e os
aborrecimentos que me custaram para consegui-la, e que tenho uma pensão
russa que não é nada, uns rublos que não valem nada, depois de trabalhado
a vida inteira, de não ter deixado nem um dia de dar duro, desde que era
menina.
Dizia Lênin, liberdade para quê? Para que nós, os mineiros, queríamos a
liberdade da República se nos mandaram a Legión e a Guardia Civil e se
caçavam a tiros os grevistas como se fossem bichos, e prenderam minha
mãe, embora não tivesse feito nada, só por ser mulher de um sindicalista, e
meu pai foi torturado e enviado para uma colônia penal na África, em
Fernando Pó, e quando houve a anistia da Frente Popular voltou doente "de
malária, tão envelhecido e amarelo que não o reconheci e comecei a chorar
quando me abraçou. Eu não queria que ele fosse embora, desde bem
pequena não conseguia dormir até" meu pai voltar da mina, e fazia o
possível para esperá-lo levantada ou acordava se ele tivesse feito o turno da
noite e chegasse em casa antes do amanhecer. Que alegria ouvi-lo
empurrando a porta, ouvir sua voz e sua tosse e cheirar a fumaça de seu
cigarro, posso sentir esse cheiro agora mesmo, embora tenham se passado
mais de sessenta anos, sento-me aqui e vêm as lembranças e também vêm
os odores das coisas e dos sons que havia então, e que também não existem
mais, e me lembro dos olhos de meu pai brilhando no rosto enegrecido pelo
pó do carvão, e de como ele batia à porta, e eu pensava, já chegou, não
aconteceu nada com ele, não houve uma explosão na mina e os homens da
Guardia Civil não o levaram. Que estranho ter vivido tantas coisas, ter
estado em tantos lugares, na Sibéria, num navio que ficou preso no gelo do
Báltico, naquelas guarnições dos Urais para onde meu marido foi mandado,
quando não podíamos sair de noite com medo dos lobos que uivavam nos
bosques, pois desde menina eu era medrosa e bem pouco amiga de
novidades e aventuras, e teria dado tudo para ter uma família como as
outras, nem que fosse como as mais pobres que a nossa nas vilas das minas,
pois aquelas garotas podiam ir à escola descalças e com piolhos, mas pelo
menos seus pais não eram levados presos de vez em quando nem tinham de
passar meses escondidos, nem deixavam seus filhos sozinhos noites inteiras
para ir às reuniões de comitês e sindicatos. Tudo o que eu queria era o que
sempre quis e jamais consegui, viver tranquila, ter minha casa, arrumar-me
com pouco e não ter sobressaltos, mas não houve jeito, as recordações mais
antigas que tenho já são de mudanças às pressas e de noites nos bancos das
estações, ou temendo que acontecesse uma grande desgraça, que os homens
da Guardia Civil tivessem matado meu pai ou que uma explosão ou um
desabamento na mina o tivessem sepultado. Ainda sinto o coração palpitar
quando penso nisso, quando o vejo nessa foto em cima do piano e acho que
está vivo e pode acontecer alguma coisa com ele, ou quando acordo e ele
está ao meu lado, com um presente na mão, que me trouxe de uma viagem,
aquela caixinha de madrepérola que me trouxe quando veio da Rússia e
tinha se passado tanto tempo que não o reconheci e comecei a chorar ao vê-
lo. No fundo, e mesmo sem nunca ter dito a ninguém, os sonhos que tive
em criança eram de pequeno-burguesa, o que minha mãe diria se me
ouvisse. Queria ter sempre perto meus pais e meu irmão, ir à escola, e de
vez em quando à missa, fazer primeira comunhão como aquelas meninas
que eu via saírem vestidas de branco da igreja, com seus rosários e livros de
madrepérola nas mãos, seus sapatos de verniz, não como eu, que até no
inverno usava alpargatas velhas e meus pés ficavam gelados e a lama
grudava nas solas de cânhamo. Vivia escutando meus pais falarem da
Revolução, mas o que eu queria era que as coisas não mudassem, que
fossem um pouco melhores, isto sim, que não faltasse a diária de meu pai e
pudéssemos comer coisa quente todo dia, e ter bons cobertores e abrigos e
botas no inverno, mas me dava pânico que tudo se transtornasse, como eles
desejavam, e ficava assustada quando meu pai nos falava de emigrar para a
América, ou quando nos dizia que teríamos de ir para a Rússia porque
aquela era a pátria dos trabalhadores do mundo. A casa onde vivíamos perto
da mina era pouco mais que uma cabana, embora minha mãe sempre a
mantivesse varrida e arrumada, mas caí no choro quando tivemos de deixá-
la e mudar para Madri, parecia que me arrancavam o coração ao sair dali.
Subimos no trem e meu irmão, sendo tão garoto, ficou louco de alegria, mas
eu morria de tristeza por ter de deixar nossa casa tão pobre e tão limpa e
também a escola que eu adorava e as amigas que tinha. Mas depois de
poucos meses de vida em Madri já estava acostumada e também queria
ficar e viver ali para sempre, e todas as vizinhas e as senhoras das lojas me
conheciam, e as meninas da escola para onde fui ficaram minhas amigas e a
professora ralhou com elas no primeiro dia quando riram do meu sotaque,
que devia ser um asturiano muito marcado. Tínhamos um apartamento
pequenino, numa casa de cômodos do bairro de Tetuán, dois quartos num
corredor cheio de vizinhos, mas minha mãe arrumou tudo, com as poucas
coisas que possuíamos, e parecia que finalmente havíamos nos mudado para
uma casa de verdade, e pela primeira vez tínhamos a latrina, o toalete, como
dizem agora, praticamente em casa, no final do corredor, e não num pátio,
ou no meio do campo, como os bichos. Meu pai já não precisava ir à mina,
mas a um trabalho que eu não sabia o que era, num jornal ou no sindicato, e
no início pensei que levaríamos uma vida normal, que já não teria por que
ficar assustada toda vez que ele se atrasasse ou que uma greve começasse e
de noite houvesse reuniões em minha casa, que me davam raiva porque os
homens fumavam tanto que não se podia respirar, e quando saíam ficava um
cheiro de fumo que levava dias para desaparecer e minha mãe e eu
tínhamos de varrer o chão cheio de guimbas e cinza.
Eu gostava mesmo é de ir à escola, e que a professora gostasse muito de
mim, e também adoraria ter ido me confessar e comungar, tão garota e já
tinha minhas contradições ideológicas. Sonhava em entrar para um ateliê de
costura quando terminasse a escola, em bordar eu mesma meu enxoval, em
ficar muito amiga das moças que trabalhassem comigo. Apaixonei-me tanto
por Madri que já imaginava viver lá para sempre, e fui logo pegando o
sotaque das outras meninas, e gostava de subir nos bondes e aprender a
andar de metrô, e quando meu irmão e eu juntávamos uns centavos íamos
ao poleiro de algum cinema ver os filmes de Clark Gable ou os do Gordo e
o Magro. Eu disse "lá" ao me referir a Madri, como se não estivesse em
Madri agora mesmo, mas muitas vezes esqueço e acordo achando que estou
em Moscou. Mas se digo "lá" é como se dissesse "na época", porque Madri
era outra, outra cidade que não encontro quando saio na rua, ou quando
apareço na sacada, onde também não apareço quase nunca, por causa do
barulho dos carros sempre passando por esta avenida, dia e noite, não
consigo me acostumar, e minhas amigas me dizem, mas, mulher, ponha
vidraças duplas, mas como vou gastar esse dinheirão com o que ganho, e
além disso, com tudo o que passamos também não vou me queixar porque
há barulho de carros, pior é o barulho dos bombardeios ou passar o inverno
numa guarnição a quarenta graus abaixo de zero, e pior ainda é estar morto,
como tantos e tantos que conheci. De que vou me queixar, se tenho a
melhor casa em que já vivi em toda a minha vida, e, além do mais, com um
pouco de sorte já não vou sair dela, a não ser quando me levarem para o
cemitério, e ali também tenho garantido meu lugar, no cemitério civil, ao
lado de minha mãe, as duas juntas no túmulo tal como sempre estivemos
em vida, salvo naqueles primeiros anos horríveis da Rússia em que fiquei
sozinha e não sabia se voltaria a vê-la, ou se ela e meu pai estariam mortos,
ou se teriam se esquecido de mim, tão ocupados com sua guerra e sua
Revolução. Não é que eu queira me lembrar ou que me esforce, mas me
sento aqui e as coisas começam a vir, como se estivesse numa sala de espera
e fossem entrando os mortos, e também os vivos que estão muito longe,
meu filho que não pode vir me ver e não pode ficar falando comigo mais de
cinco minutos quando me telefona, com medo da conta, meu neto pequeno,
que não me conhece, e eu faço uns bilu-bilus para ele e canto cantigas de
ninar, as que minha mãe cantava para mim e meu irmão e as que aprendi na
Rússia e cantava para o meu filho. Tenho medo de ir para a rua, e como
mando vir quase tudo do supermercado ou um companheiro muito amável
que vive aqui perto me traz, praticamente não tenho de me mexer, e assim
poupo o susto de outro assalto e o medo de ir muito longe e não encontrar o
caminho de volta, que é outra coisa que sempre me aconteceu, eu logo me
perco, sobretudo quando há muita gente. Quando começou a invasão dos
nazistas e foram nos evacuar de Moscou fui para a estação segurando a mão
de minha mãe e houve um tumulto e a mão se soltou, e me vi perdida entre
milhares de pessoas, no meio do barulho dos alto-falantes que eu não
entendia e dos trens que apitavam antes da partida, e comecei a correr como
uma louca sem nem saber para onde, pois estava com os olhos cheios de
lágrimas, e esbarrava nas pernas das pessoas e tive de fugir de um guarda
que queria me agarrar, que já tinha me agarrado por um braço. Ia correndo
paralela ao trem que já começava a andar e havia pencas de gente
pendurada nos estribos, nas janelas, agarrando-se a qualquer coisa,
empurrando-se uns para cima dos outros, e então vi minha mãe que me
chamava da porta de um vagão e corri mais depressa mas o trem já ia
tomando velocidade e fiquei para trás, e já estava me sentindo perdida para
sempre naquela estação que era a maior e a mais cheia de trens que eu
jamais tinha visto, no meio de toda aquela gente que dava voltas em
redemoinhos querendo ir embora, ocupando até os trilhos. Vi outro trem
que arrancava ao meu lado e sem pensar pulei nele, mas nesse momento
alguém me puxou, e era minha mãe, que me apertou contra si, minha mãe
que também tinha pensado que nunca mais ia me encontrar e que me teria
perdido se demorasse mais um segundo para olhar o trem que arrancava a
seu lado, a caminho de Vladivostok, me disse depois, no Pacífico, como
teria me encontrado se eu chegasse a começar aquela viagem pela Sibéria.
Mas é que sou muito atordoada, merecia as palmadas que minha mãe me
deu daquela vez, ela me dava palmadas na bunda e beijos ao mesmo tempo,
mas você está maluca da cabeça, me dizia, e foi se soltar da minha mão, sua
cabeça de vento, sempre me chamava assim.
Eu me perco em Madri mais do que me perdia em Moscou, e não gosto
de perguntar porque as pessoas ficam me olhando esquisito, talvez por meu
sotaque, ou porque acham que tenho jeito de estrangeira, e compreendo, de
russa, embora não creia que na Rússia me achem menos estranha do que
aqui. Assim, para evitar aborrecimentos, não saio, passo o dia aqui,
arrumando minhas coisas, muito feliz, meu apartamento inteiro para mim e
minha calefação central que jamais enguiça, é pequeno mas é meu, tão
pequeno que já não sei onde pôr tantas coisas, mas não me decido a jogar
nada fora, pois gosto de todas, das lembranças que me trazem, muitas coisas
a gente vai perdendo na vida e por isso deve guardar e cuidar das que
sobram.
Olhe esses paninhos de crochê que minha mãe fazia quando
encontrávamos um pouco de linha branca em Moscou, que não era sempre,
embora ela se virasse com qualquer coisa, tinha mão tão boa para trabalhos
de agulha que de qualquer trapinho fazia um primor. Nisso também não
puxei a ela, que me dizia, como as suas mãos são bonitas, e como são
inúteis, parecem mãos de burguesa, e era verdade, logo ficavam
machucadas, com qualquer trabalho, as frieiras me martirizavam, e agora
que posso cuidar delas um pouco e pinto as unhas sinto um certo remorso,
porque parecem mesmo mãos de burguesa, sobretudo por serem tão
desajeitadas. As coisas enguiçam e não sei consertar, caem no chão e
quebram, saiu um dos botões da televisão quando ia ligá-la e você não sabe
como me custou pegá-lo no chão, com o pouco espaço que tenho aqui, e eu
me locomovendo mal, sobretudo depois que o assaltante me jogou no chão.
Passei dias procurando o botão, porque não conseguia ligar a televisão, e
quando tornei a colocá-lo ele caiu de novo, e só vendo o conserto que fiz,
grudei-o com um pedaço de esparadrapo, e se aperto com cuidado ele
aguenta e não sai de novo.
Como vou jogar fora alguma coisa, se cada coisa tem uma história tão
longa, que conto para mim mesma quando estou sozinha, como se fosse o
guia de um museu. Esse Lênin em cima da televisão é de bronze, pegue-o e
verá como pesa, e veja como é tão parecido, uma amiga me diz, mas ponha
num lugar menos visível, que alguém pode se aborrecer, e respondo que
aqui ninguém vem me ver, e além do mais se vier alguém e se aborrecer,
sinto muito, que se danem, como dizem em Madri, eles não têm seus
crucifixos e suas virgens e seus retratos do papa? Pois tenho o meu
Vladimir Illich, em cima desse paninho que minha mãe fez para o meu
aniversário, olhe como já está ficando amarelo, e de tantos quilômetros que
andou, que eu já o levava comigo quando transferiram meu marido para
Arcangelsk, e o paninho ficava tão duro de frio como se fosse de lata. Essas
bonecas com trajezinhos siberianos nós as trouxemos de lá, e também o
cabide, tiro os mantos e ele fica bem visível, as garras são autênticas
dissecadas, dessas renas tão grandes que havia. E os quadrinhos eu já tinha
percebido que você não parava de olhá-los, são desenhos que Alberto
Sánchez fazia, com o que tinha à mão, lembro-me de vê-lo desenhando
sentado à mesa da cozinha, no apartamento onde vivíamos em Moscou, no
último inverno da guerra, se você chegar perto verá os detalhes perfeitos e o
quadriculado do papel. Ele falava da época da ceifa em seu povoado de
Toledo e à medida que ia falando desenhava o que nos contava, e tínhamos
a impressão de estar na Espanha e não em Moscou, e de sentirmos o calor
do verão e a poeira do trigo arranhando a garganta.
Olhe as camisas brancas, como os ceifadores as usam arregaçadas, os
chapéus de palha, as foices, as cordas com que amarram as calças de
veludo, os montes de manolhos.
E o povoado, de longe, como dizia Alberto, que se via ao dobrar uma
curva, com o campanário da igreja e o ninho das cegonhas, e esses morros
azuis ao fundo, o que não daríamos para vê-los naquele momento, quando
pensávamos que nunca voltaríamos à Espanha, como o pobre Alberto, que
nunca mais viu sua aldeia, e está enterrado em Moscou. Uma amiga que
entende me diz que devo vender os desenhos, podem me dar um bom
dinheiro por eles, e angustia-se quando vê que tenho tantas coisas, você não
vai poder mais se mexer, ela me diz, desfaça-se de tudo, uma cruz no
passado e vida nova, jogue fora o que não vale nada, que é a maior parte, e
o que tiver valor você vende, mas não quero me separar de nada, cada coisa
é uma parte de minha vida, até este quadro que deixa a minha amiga com
tanta raiva, quem é que tem a ideia de emoldurar a tampa de uma caixa de
bolachas, mas gosto muito dela, me traz muitas recordações, a praça
Vermelha com suas cúpulas coloridas e e esse azul que tem o céu em certas
manhãs de verão, e visto que as coisas estejam em relevo, toque-as, os
torreões da muralha do Kremlin, a catedral de São Basílio, o mausoléu de
Lênin. Eu tinha essa caixa de bolachas havia anos, mas gostava tanto dela
que não me desfazia, de tal forma se vê tudo com tanta exatidão, as cores
tão vivas que a praça tem de verdade, e antes de vir de Moscou cortei a
tampa e emoldurei-a.
Em Moscou eu me lembrava de Madri e em Madri me lembro de
Moscou, o que é que vou fazer, e se carrego a Espanha em meu coração a
União Soviética também é minha pátria, e como não vai ser se vivi lá mais
de cinquenta anos, e me dói quando a insultam, e quando ligo a televisão e
vejo as coisas tão tristes que acontecem lá, as que meu filho me conta em
suas cartas, que são mais baratas do que os telefonemas. Todo dia me
levanto muito cedo, embora não tenha nada para fazer, e de início não sei se
acordei em Madri ou em Moscou, e passo horas limpando e arrumando a
casa, mesmo sendo tão pequena, e se me descuido a desordem invade tudo e
tudo se enche de pó, e então sinto remorso em pensar que estou aqui tão
confortável, com minha calefação e minha água quente, minha geladeira e
minha televisão, meu bom tapetinho no quarto para que meus pés não
fiquem frios quando me levanto no inverno, e me lembro de que nem meu
irmão nem meus pais nunca puderam desfrutar de tantas comodidades, e eu,
que sou a mais boba, para que vou negar, a de menos valor, agora tenho
tudo para mim. Sento-me aqui, de tarde, e às vezes não ligo a tevê, e não
acendo a luz quando começa a escurecer, e como quase ninguém me
telefona fico horas e horas calada, sem fazer nada, sem ocupar as mãos, ao
contrário de minha mãe, que vivia com um trabalho manual, fico sentada
com as mãos postas uma sobre a outra ouvindo passarem os carros por essa
avenida e começo a me lembrar de coisas, mas não é que me esforce, é que
as recordações chegam e se encadeiam umas às outras, como as contas do
rosário entre os dedos quando em criança eu ia ao catecismo sem que meus
pais soubessem. Vejo as caras das pessoas, escuto suas vozes, fico quieta e
vai escurecendo e acho que entram por essa porta e se sentam ao meu lado,
e também ouço as músicas, a Internacional que uma banda de entusiastas
tocava na nossa aldeia na região das minas, a marcha fúnebre de Chopin, no
dia do enterro de Stálin, e outra marcha que eu adorava, que sempre
tocavam em Moscou no dia 1º de maio, tenho a impressão de ir andando
pela rua e escutando, a marcha triunfal da Aída, lembro e meus olhos se
enchem de lágrimas, será que fiquei tão sentimental como os russos? Mas a
música que mais adoro é a de Sherazade, era a que tocava quando eu abria a
caixinha de madrepérola que meu pai me trouxe naquela vez que voltou de
sua primeira viagem à Rússia, quando eu não me atrevia a olhá-lo no rosto
porque tinha ficado cinco ou seis meses sem vê-lo e achava-o um
desconhecido, tinha até um bigode preto que não existia quando partiu. Eu
guardava a caixa debaixo do travesseiro, abria-a pouco a pouco e começava
a ouvir a música e depois a fechava, temendo que se gastasse caso tocasse
muito tempo, como se a música fosse igual a esses perfumes que se gastam
quando se deixa o frasco aberto. Tantas coisas que tenho na cabeça e
preferiria esquecer, e contudo não lembro onde ficou minha caixa de
música, vá saber em que mudança a perdi. Mas as coisas duram mais que as
pessoas, e talvez alguém ainda tenha aquela caixa, como essas coisas
antigas que, passado muito tempo, são vendidas no mercado das pulgas do
Rastro, e ao abri-la escuta Sherazade, e fica pensando a quem terá
pertencido.
América

Eu aguardaria no quarto, de luz apagada, as doze badaladas da meia-


noite batendo na torre da igreja de El Salvador. Já disfarçado, embora ainda
não estivesse na rua, já preparado para que não pudesse ser reconhecido por
alguém que cruzasse comigo, mesmo se a essas horas e nessas noites duras
de inverno não houvesse quase ninguém que se aventurasse a enfrentar o
vento ou a chuva batendo no grande espaço aberto da praça que eu
atravessaria minutos mais tarde, escondido em minha capa muito grossa e
mais quente do que um manto, com o chapéu bem enfiado até os olhos e,
para completar, o cachecol tapando a metade de meu rosto. Você não
conheceu invernos corno aqueles, nem noites tão escuras. Havia lâmpadas
fracas em algumas esquinas e outras caindo de fios pendurados nas praças,
e que balançavam ao vento, de modo que a luz e as sombras se mexiam tal
como quando se andava pelo quarto de vela na mão. A praça inteira parecia
se mover como um barco no meio de uma tempestade em noites de
ventania. A noite era outro mundo. Na época não havia muita gente que
tivesse aparelhos de rádio, e era raro que houvesse luz elétrica em todos os
cômodos da casa. Você dava um passo se afastando do braseiro e da luz e
logo entrava no frio e no escuro.
Passávamos a lâmpada e o fio de um cômodo para outro, por um buraco
aberto num canto da parede. Mas volta e meia faltava luz, a lâmpada
começava a amarelar e parecia que se reavivava, como uma vela prestes a
se apagar, e de repente ficávamos no escuro. As crianças tinham uma
canção para essas ocasiões:

Que venha a luz,


porque vamos jantar
pão e ovos fritos e uma
salada para completar.
A luz ia embora e, aí, tanto fazia ter um aparelho de rádio ou ter
lâmpadas em todos os aposentos, e era preciso acender a vela ou a
lamparina e ir dormir quase tateando, escadas acima até os quartos tão frios
que os lençóis pareciam meio úmidos quando você se enfiava debaixo
deles, e os pés ficavam gelados. Que vontade dava então de se apertar
contra o calor de uma mulher bem carnuda e nua. O dia era o dia e a noite
era a noite, não é como agora, que um e outro se confundem, como tantas
coisas se confundem, pelo menos para nós, que já somos muito velhos para
nos adaptar a esses tempos. Os invernos longos e as noites sem fim, negras
como bocas de lobo nos becos por onde eu desviava ao sair de casa,
temendo encontrar alguém que me conhecesse caso pegasse a rua Real,
assim que batiam as doze badaladas no relógio da praça e depois no da
igreja de El Salvador, que vivia atrasado, mas tocava mais forte, com o som
de bronze, naquela torre tão alta e de janelas estreitas que mais parece torre
de castelo do que de igreja. Assim que começava a ouvi-las ficava com o
coração pulando, eu sozinho e no escuro esperando em meu quarto para que
ninguém desconfiasse, escutando o mecanismo do meu despertador, que
tocava tão forte que muitas vezes me fazia abrir os olhos no meio da noite
acreditando ouvir passos. Mas as batidas do coração no peito eram mais
fortes que as do despertador, e de tanta impaciência eu começava a dar
voltas pelo quarto, mas tinha de ficar quieto, para que não escutassem meus
passos no andar de baixo, sentava-me na cama já enrolado na capa e com o
gorro na cabeça e sentindo o frio que subia de meus pés, esperando chegar a
hora, o toque das badaladas, tal como ela me dissera, tudo organizado, nem
um minuto antes da meia-noite, e não pela rua principal e sim pelos becos,
porque todo cuidado é pouco. Uma ou duas horas antes eu ]á estava
esperando, morrendo de vontade, já com aquilo tão duro como a tranca de
uma porta, como um pilão, e ao ficar tanto tempo assim acabava sentindo
dor, parece mentira, agora, o vigor que eu tinha quando era jovem. Pelo que
você mais ama, ela me dizia, não saia antes da hora, não deixe ninguém vê-
lo. Eu ouvia a primeira badalada e era como se um ímã estivesse me
atraindo e eu não conseguisse resistir, saía do quarto e descia as escadas
sem acender a vela, tateando pelas paredes, corria o ferrolho com muito
cuidado para não acordar ninguém, um daqueles ferrolhos imensos que, na
época, havia nas casas. Que estranho que tenham desaparecido todas as
coisas normais para nós, os ferrolhos grandes de ferro, as trancas e as
aldravas nas portas, as chaves das casas, que podiam ser imensas, como eu
imaginava em criança que deviam ser as chaves do Reino dos Céus
carregadas por são Pedro.
Descia escondido pelos becos, desembocava na praça imensa e escura
de Santa Maria, uma figura solitária tentando esgueirar-se perto dos muros,
imóvel na esquina do palácio da Prefeitura, o único habitante da cidade
ainda acordado a essas horas, praticamente o único, pois do outro lado da
praça, num desses prédios colossais e sombrios que à noite têm algo das
gravuras fantásticas ou dos cenários de ópera, havia alguém que também
esperava contando os minutos e as badaladas do relógio: toda noite, depois
das doze badaladas, ela deixava aberto o ferrolho de uma portinhola lateral
e acendia e apagava três vezes uma lamparina de óleo na janela mais alta do
torreão, e esse era o sinal que ele esperava para atravessar a praça e
empurrar a porta cujas dobradiças ela havia lubrificado, e depois fechá-la
por dentro com um ferrolho que também deslizava em silêncio. Suba muito
devagar, não acenda nenhuma luz, nem mesmo um isqueiro ou um fósforo,
conte três lances e quarenta e cinco degraus, no terceiro patamar haverá
uma janelinha à esquerda e uma porta à direita, bata devagarinho três vezes
para que eu saiba que é você e empurre-a e estarei esperando.
Agora, que tantas recordações se apagavam e ele esquecia itinerários,
exigências e palavras, voltavam-lhe de vez em quando vozes muito
precisas, misturadas com as que escutava enquanto ia passeando sem rumo,
vozes do ontem muito distante sobrepostas às de um agora em que com
frequência ele não sabia onde estava, como se sofresse instantes, não de
amnésia, mas de sonambulismo, e acordasse de repente numa praça, não de
seu vilarejo querido, mas do centro de Madri, vestindo uma roupa que
custava a reconhecer como sendo sua, hóspede de um corpo velho e lento
que não podia ser o seu, chamado por vozes fortes ou atraído por velhos
impulsos que não sabia para onde o levavam.
— Ave Maria Puríssima —, dizia-lhe, e ele respondia: — Concebida
sem pecado.
Ouvia as duas vozes simultâneas, ao mesmo tempo que o ruído da porta
envidraçada ao se abrir, e já não levantava a cabeça imediatamente nem
interrompia o trabalho, acostumado com essa mesma aparição quase toda
manhã, ao contrário das duas vozes e dos dois sotaques, tão díspares como
as figuras a que correspondiam, e que vistas de longe pareciam idênticas: as
duas freiras com hábitos iguais, túnicas marrons e toucas pretas, uma mais
alta e mais moça que a outra, as duas com aquelas sandálias que deviam
deixar seus pés gelados, os pés tão brancos como as mãos e os rostos, de
uma brancura translúcida em uma delas e terrosa e mortiça na outra, uma
com voz limpa e nítida e um sotaque bem do norte, a outra com voz rouca,
de bronquite, e um rude sotaque camponês.
Mas as duas vozes tão diferentes soavam ao mesmo tempo quando uma
das freiras empurrava a porta de vidros mal presos e ele não precisava
levantar a cabeça para saber de imediato com que expressão cada uma delas
ia olhá-lo, de súplica amável uma, de exigência mal-humorada a outra,
paradas diante de sua mesa de sapateiro remendão, pedindo quase todo dia
uma esmola para os pobres, um par de sapatos velhos que não servissem
mais, uns centavos para as velas do altar ou para comprar remédios para a
madre muito doente. Mas não precisavam enunciar o pedido, porque o tom
de suas duas vozes já o declarava, perfeitamente simultâneas e
harmonizadas embora diferentes, assim como as duas freiras não se
pareciam em nada e no entanto eram idênticas se vistas de longe, quando
vinham do fim da rua Real nas manhãs daquele inverno, manhãs frias e
desertas, pois era o início da safra das azeitonas e meia cidade estava no
campo fazendo a colheita, de tal modo que a rua só se animava um pouco
ao cair da tarde.
— Ave Maria Puríssima.
Fingia estar irritado com elas, ou farto da persistência de ambas, mas, se
estava fumando, ao vê-las entrar tirava a guimba da boca e a apagava
apressadamente na quina da mesa, guardando-a atrás da orelha, porque não
eram tempos de desperdiçar nem um fiapo de tabaco. Inclusive fazia um
gesto confuso inclinando a cabeça ou se levantando antes de responder-lhes
num tom meio burlesco de resignação: — Concebida sem pecado.
Vocês sabem que ele continua a ser um velho de belo porte, embora
ultimamente pareça de cabeça meio mole, mas na época, com seus trinta
anos, chamava a atenção por ser tão alto e não se privava de fazer
brincadeiras com as paroquianas que lhe levavam seus sapatos para
remendar, brincadeiras de duplo sentido que mais de uma vez passaram a
coisas mais sérias, se bem que ele sempre tenha demonstrado a discrição e a
astúcia necessárias para que nada se chegasse a saber. Afinal de contas, era
diretor de uma confraria da Semana Santa, e desfilava de vela na mão na
procissão de Corpus Christi, e entre sua clientela — sua freguesia, como
então dizia — havia padres das igrejas próximas, e até oficiais do quartel da
Guardia Civil, que na época ficava na pracinha ao lado. Mas era muito
safado, e vocês se espantariam se soubessem quantas senhoras de boa
aparência e de comunhão diária ele passou na cara, aproveitando para levar-
lhes um par de sapatos recém-consertados numa hora em que o marido
estivesse no trabalho e as crianças na escola, e às vezes, sei disso porque ele
mesmo me contou, pedia-lhes que fossem para os fundos da loja, ainda
menor do que o espaço onde trabalhava, e ali levantava as saias delas e
papava-as encostadas na parede, num arrebato de excitação. Na época as
mulheres eram muito mais fogosas do que hoje, diz, ou dizia, porque já fala
pouco, não é como antes, quando eu puxava esse assunto e ele se embalava
e não havia jeito de pará-lo, e além do mais era uma vergonha andar com
ele na rua, pois falava muito alto e ficava olhando para todas com um
descaramento que hoje já não se vê, e que também não é próprio de um
homem da idade dele. Olhe, não perca, olhe que bunda, que peitos essa aí,
que rebolado. Ele se confessava, claro, e fazia terríveis penitências, quase
todos os anos saía descalço na procissão, e às vezes carregando uma cruz
muito pesada, isso sim, sem que ninguém soubesse, a não ser seu confessor,
don Diego, aposto que vocês se lembram daquele padre muito corado que
era pároco em Santa Maria, e que a três por dois ameaçava negar-lhe a
absolvição. Pode-se fazer a penitência, Mateo, mas se não há propósito de
se emendar o sacramento não limpa os pecados. O que acontece é que ele,
no fundo da alma, não acreditava que o sexto mandamento fosse tão sério
como os outros nove, sobretudo se era quebrado com discrição e ampla
satisfação das partes implicadas, sem escândalo nem prejuízos causados a
terceiros, e também sem o tratamento degradante e a falta de higiene
inerentes ao hábito de ir ver putas, costume muito corriqueiro na época,
quando ainda havia casas legalmente abertas, mas nas quais Mateo dizia
com orgulho nunca ter pisado. Como iria desfrutar de uma mulher a quem
eu pagava para ficar comigo?
Aquele ano foi o do novo quadro com as imagens da Santa Ceia,
quando o escultor que lhe devia tanto dinheiro pagou ao nosso amigo
retratando-o como são Mateus. Olhe-o, irmã, dizia a freira velha, preste
atenção neste sapateiro, ele tem a mesma cara do Apóstolo, mas o que eu
garanto é que não tem a mesma santidade. Somos feitos de barro, madre,
somos pecadores, embora bons cristãos, e nem todos podem se dedicar com
exclusividade ao culto divino, como fazem as senhoras. Não foi isso que
disse Cristo na casa de Marta e Maria? E santa Teresa não disse que Nosso
Senhor também andava entre as panelas? Pois talvez também ande por aqui
entre os meus sapatos velhos e minhas meias-solas. Mais obras de caridade
e menos palavras, remendão, que a fé sem obras é uma fé morta, e além
disso é coisa de pagãos essa paixão pelos touros. Menos cartazes de
touradas e mais imagens de santos...
A outra freira, a jovem, não dizia nada, ficava olhando para ele como se
pensasse em outra coisa, ou olhava de soslaio para a velha, e ele, dia após
dia, naquelas manhãs de inverno em que havia tão pouco trabalho, foi
prestando mais atenção nela, foi aos poucos diferenciando-a da outra, e
também de sua figura abstrata de freira, e flagrando expressões tão fugazes
que nem pareciam ter existido, olhares rápidos de tédio ou cansaço, o modo
de esfregar as mãos, ou morder o lábio inferior num gesto de impaciência
que não tinha nada de monacal, não correspondia ao hábito ou às sandálias
grosseiras e ao tom meloso de reza que quase sempre havia em sua voz, nas
poucas coisas que dizia, apenas Ave Maria Puríssima e Deus lhe pague. No
início ele achava que a freira jovem agia sempre como uma subordinada
dócil da outra, a segunda voz de um dueto manso e harmônico de igreja,
mas dia após dia foi observando um princípio de discórdia, de hostilidade
oculta que só se revelava em rápidos clarões de raiva nas pupilas, no tédio
de ir sempre acompanhando uma mulher muito velha e cheia de achaques e
manias monótonas, freando o ritmo natural de seus passos para adaptá-lo à
lentidão da outra, as duas subindo devagar toda manhã desde o início da rua
Real, as silhuetas escuras na cidade quase deserta, a mais moça erguendo às
vezes a cabeça com um gesto involuntário ou secretamente vingativo de
galhardia, e a velha encurvada e sofrida, o rosto tão enrugado como o
manto, as mãos secas e os dedos dos pés tortos como sarmentos nas
sandálias penitenciais.
Rua acima iam parando em todas as lojas, lembrem-se de quantas havia
na época, e já desapareceram quase todas, na confeitaria, na casa de
ferragens, nas lojas de brinquedos e de relógios, na alfaiataria, na farmácia,
na barbearia de Pepe Morillo, lengalenga toda manhã, o ruído das portas de
vidro se abrindo e da campainha que a porta balançava, Ave Maria
Puríssima, concebida sem pecado, sóror Barranco, a velha, e a jovem sóror
Maria del Gólgota, que nomes esses dois. Parece que já não se lembra de
nada, mas quando estou com ele em sua casa e sua mulher não nos ouve eu
lhe digo, sóror Maria del Gólgota, e ele abre um meio sorriso como de
quem se recorda muito bem e não quer dizer, ainda não quer que se saiba o
segredo, ao fim de tantos anos. Certas manhãs, vendo que as visitantes
estavam atrasadas, resolvia aparecer no umbral da porta, com seu avental de
couro e a guimba na boca, esperando vê-las no fundo da rua, quando
dobravam a esquina da praça de los Caídos, e então apagava a guimba e a
guardava, não atrás da orelha, mas na gaveta da mesa, e balançava a porta
para que o ar fresco acabasse com a fumaça e o cheiro de cigarro, e
desligava o rádio em que costumava sintonizar concursos ou programas de
touros ou de poesias. Que estranho, pensava, não ter prestado atenção até
agora, não ter visto mais do que um rosto redondo e branco de freira como
outra qualquer.
Agora percebia que a freira tinha olhos grandes e puxados, e as mãos
compridas e muito delicadas, apesar de estarem sempre avermelhadas, por
causa da água fria, e às vezes com manchas escuras. E seu rosto, embora
envolto pela touca, não tinha a redondeza um tanto cruel que costumava ter
a cara das freiras, porque era uma cara forte, um pouco como a da atriz
Império Argentina, diz ele, que quando era moço passava a vida no Cinema
Ideal, bastando para isso atravessar a rua de sua sapataria, e que nas fitas de
cinema era apaixonado, tanto quanto na realidade, pelas mulheres,
sobretudo pelas artistas dos musicais que dançavam com as coxas de fora,
ou pelas que faziam Jane nos filmes de Tarzan, com aqueles saiotes de pele
tão curtos, e sobretudo, acima de todas as outras, pelas banhistas em
tecnicolor dos filmes de Esther Williams, a começar pela própria Esther
Williams.
Gostava de se lembrar disso, de que a freira mais moça, sóror Maria del
Gólgota, tinha o queixo como o de Império Argentina, e de que, apesar das
túnicas lúgubres, de vez em quando era possível ter uma leve ideia de
alguma de suas formas, não o peito, é claro, que estaria enfaixado ou
amortalhado, mas um joelho, ou o pressentimento de um quadril ou de uma
coxa, quando a jovem subia a rua e o vento lhe batia de frente, ou o desenho
do calcanhar e do tornozelo prometendo as pernas compridas, nuas e tão
brancas sob o hábito escuro.
— Ave Maria Puríssima.
— Concebida sem pecado.
Respondia sem tirar os olhos do que estivesse fazendo, temendo que a
velha sóror Barranco, que sempre olhava com tanta desconfiança,
descobrisse uma atenção excessiva em suas pupilas, e divertindo-se também
com a postergação de seu deleite, quando visse o rosto jovem de sóror
Maria del Gólgota e tentasse extrair dela, de seu tédio e de seus olhares de
soslaio, um gesto de simpatia ou cumplicidade. Ele me diz, ou me dizia até
há bem pouco, que uma de suas regras nesta vida foi procurar mulheres que
não fossem muito bonitas, porque diz que as bonitas não se entregam
completamente na cama, não põem no ato, nem de longe, a mesma fé das
feiosas, que precisam compensar mostrando seus méritos. As artistas
bonitas são para o cinema ou para as revistas ilustradas. Se quem está
debaixo de você é feia, pois bem, apague a luz ou dê um jeito de não olhar
para a cara dela, diz o sujeito, e o rendimento prático não terá comparação,
e além disso há muito menos concorrência. O narrador da história solta uma
gargalhada no balcão do bar, diante das cervejas recém-servidas e das
porções de calamares e peixe frito, e dá um grande gole de cerveja, estala os
lábios, belisca alguma coisa e se dispõe a continuar contando, tão lisonjeado
com a atenção dos outros que não nota estar falando muito alto.
Mas desta, embora fosse bonita, ele gostava. Gostava tanto que
começou a imaginar coisas e temer dar um passo em falso e cometer uma
bobagem. Ela ficava me olhando e eu achava que queria me dizer alguma
coisa, e fazia um gesto apontando a velha, como me dizendo, se eu pudesse
me livrar dela, mas depois eu refletia quando tinham ido embora e não
posso garantir que tivesse visto o que imaginava, e no dia seguinte
chegavam as duas, Ave Maria Puríssima, concebida sem pecado, e por mais
que eu prestasse atenção em sóror Maria del Gólgota não percebia nenhum
sinal de sua parte, nem sequer me olhava, nem fazia um gesto, ficava ali
parada olhando um cartaz de touradas enquanto sóror Barranco me
arrancava a esmola do dia e quando saíam dizia, Deus lhe pague, e era
como se o tempo todo não tivesse me visto, ou como se fosse uma freira
igual a qualquer outra e tudo o que eu havia imaginado fossem apenas meus
devaneios, delírios após ficar tantas horas sozinho e sem falar com ninguém
e só batendo pregos e cortando meias-solas, cercado de sapatos velhos, que
são a coisa mais triste do mundo, porque sempre me faziam pensar nos
mortos, sobretudo nessa época, no inverno, quando todos iam para a
colheita de azeitonas e podia passar o dia inteiro sem que ninguém entrasse
para falar comigo. Na guerra, quando eu era menino, vi muitos sapatos de
mortos. Fuzilavam alguém e o deixavam jogado numa valeta ou atrás do
cemitério e nós, os meninos, íamos ver os cadáveres, e eu percebia que
muitos estavam sem sapatos, ou víamos sapatos jogados ou um só pé e não
sabíamos de que morto eram. Assim como me esqueço de tudo posso me
lembrar de coisas que não sei o que são. Lembro-me de ter visto há muitos
anos, num desses noticiários em preto-e-branco que passavam nos cinemas,
montanhas e mais montanhas de sapato velhos, naqueles campos que havia
na Alemanha.
Mas vejo coisas que aconteceram há muito tempo e não me lembro do
que fiz hoje de manhã, e tenho a impressão de que me chamam ou me
perguntam alguma coisa e respondo e minha mulher me diz, mas que mania
danada essa que me deu de falar sozinho.
— Pelo amor de Deus, poderia me dar um pouco d'água?
Naquela manhã a freira jovem estava mais pálida que de costume, o
rosto apagado e sem brilho, a linha das pálpebras avermelhada e as olheiras
violáceas, como de noites sem dormir. Diante do cenho franzido de
contrariedade e do olhar receoso de sóror Barranco, ele a guiou pelo
pequeno corredor na penumbra, contíguo à sua lojinha, onde ficavam o
banheiro e a moringa na prateleira, uma dessas moringas antigas em forma
de galo, de barro vitrificado, de cores muito vivas, a crista vermelha e a
pança amarela. Achou vagamente indecoroso que uma freira bebesse direto
na moringa e pegou um copo limpo para lhe servir a água.
Disfarçadamente, prestou atenção em suas mãos, que seguravam o copo
com um início de tremor, em seus belos lábios incolores, em seu queixo
marcado pelo qual escorreu um fio de água, pois agora era visível que as
mãos tremiam, e quando quis segurar o copo prestes a cair essas mãos
seguraram as dele com força, e em suas palmas úmidas havia uma
temperatura de febre. Como apertavam aquelas mãos, delicadas na forma
mas grandes e curtidas, como ele sentia nesse momento tão perto de si a
respiração febril da freira e o peso e a carne de seu corpo, enfraquecido por
disciplinas e jejuns, pelo frio implacável que sem dúvida faria nas celas, nos
refeitórios e nos corredores daquele convento tão velho que ameaçava
desabar.
Então perdi o juízo e nem eu mesmo acreditava no que tava fazendo,
abracei-a pela cintura com as duas mãos e apertei-a contra mim, procurei
suas coxas e a bunda por baixo do hábito e beijei-a na boca embora ela
tentasse afastar o rosto, e pensei, como se já visse o que ia acontecer
comigo, a outra freira vai entrar e armar um escândalo, já quase escutava os
gritos e via se aproximarem as pessoas das outras lojas, mas eu pouco
ligava, para mim tanto fazia e não conseguia evitar o que estava fazendo, e
enquanto procurava sua boca e percebia como seu rosto e todo o seu corpo
estavam quentes, me dei conta de que ela podia gritar e no entanto não
gritava, nem resistia, e até se abandonava em meus braços, enquanto eu
apalpava procurando o que tantas vezes tinha imaginado. Então vi que
fechou os olhos, como nos filmes, quando se aproximava a hora do beijo e a
censura cortava, e de repente o homem e a mulher se afastavam um do
outro, como se tivessem levado um choque elétrico. Mas ela fechou os
olhos não porque tivesse caído num transe amoroso, e sim porque estava
desmaiando, e de olhos revirados e brancos foi caindo no chão sem que eu
conseguisse segurá-la.
Que medo, vê-la deitada tão pálida e de pálpebras reviradas, tão branca
como se estivesse morta, como se ele a tivesse matado com a profanação
inaudita de seu atrevimento.
Não lembrava se chamou aos gritos a outra freira ou se ela entrou nos
fundos da loja, alarmada com o atraso ou com o ruído surdo do corpo ao
cair. Quando conseguiram reanimá-la estava mais pálida do que nunca, e se
ele lhe dizia alguma coisa ficava-o olhando com a cara tão neutra como se
não se lembrasse do que tinha acontecido.
De novo, ao se ver sozinho, teve a sensação exasperante de não
distinguir entre o que via e o que imaginava, entre a certeza de ter beijado e
acariciado a freira e a expressão alheia com que ela lhe sorriu suavemente
depois, quando preparava para voltar ao convento apoiando-se na figura
ríspida de sóror Barranco e agradecendo suas atenções. Talvez estivesse
louca e ele tampouco sabia se era verdade o que tinha acontecido por alguns
instantes nos fundos da sapataria.
Passavam-se os dias e nenhuma das duas freiras voltava Sóror Maria del
Gólgota estava muito doente e sóror Barranco não saía de perto dela, ou
então tinha morrido daquelas quenturas, ou, pensando bem, sóror Barranco
tinha desconfiado de alguma coisa e não lhe permitia sair do convento e
menos ainda aproximar-se da lojinha do sapateiro. Mas, se estava morta,
teria se sabido na cidade, teriam tocado as badaladas lentas e muito
espaçadas dos enterros. Mais de uma vez, no meio da manhã, fechou sua
porta de vidro e foi perambular pela praça de Santa Maria, embora sem se
aproximar demais das portas do convento, que de vez em quando se abriam
para dar passagem a uma figura de freira que de longe era sempre, por
alguns segundos, a de sóror Maria del Gólgota, ou também a de uma
irritada sóror Barranco que se dirigia a ele para repreendê-lo por sua ímpia
lascívia.
Não abandonava de todo as outras ocupações, é claro, vocês o
conhecem. Assistia às reuniões de diretoria da confraria da Última Ceia e da
Sociedade Beneficente Corpus Christi, dedicada a fornecer assistência
médica e modestos subsídios a agricultores e artesãos, naqueles tempos
prévios à Seguridade Social. Tampouco desatendeu de todo a mulher de um
subtenente da Intendência que lhe mandava um aviso quando o marido saía
para as manobras. Mas nas reuniões andava mais distraído que de costume,
e a subtenenta, como ele a chamava, o notava mais frio que outras vezes, e
perguntava se havia outra, ameaçando contar tudo ao subtenente num
acesso de despeito, roubar a pistola dele e cometer uma barbaridade. Está
vendo que fazem as mulheres bonitas? Maltratam a gente, nos deixam
cheios de dedos, mesmo antes de irem para a cama, é como quem se
acostumou com pão de trigo e batata-inglesa e já não quer pão preto nem
batata-miúda, é como sentir nojo das alfarrobas que a gente comeu com
tanto apetite nos anos da fome. Como eu andava enrabichado pela freira,
bonita e mais moça, comecei a achar a subtenenta gorda e velha, mesmo
sendo tão quente, e tão agradecida, e mesmo apesar dos cafés com leite e
das torradas com manteiga que me levava na cama depois da trepada,
enquanto o subtenente ficava fazendo manobras. Como era da Intendência,
naquela casa não faltava comida. Às vezes, quando eu ia embora, a
subtenenta me dava meia dúzia de ovos ou um pote inteiro de leite
condensado. Tome, dizia, para que você recupere as forças.
Rodadas de cerveja soltando espuma, vozes de garçons, cheiro de óleos
requentados, chiados da máquina de café, musiquinhas robóticas dos
jukeboxes e do distribuidor de cigarros: quem está contando tem um rosto
de certo modo infantil, jovial e muito arredondado, mas está quase
completamente careca e usa um terno muito formal, de advogado ou
escrivão de cartório, com uma pequena insígnia na lapela do paletó, um
alfinete de gravata prateado no qual se distingue a figura diminuta de uma
Virgem. Ele para de falar para receber com burlesca reverencia um grande
prato de morcela fumegante que o garçom acaba de colocar no balcão, e de
boca cheia recita os versos:

A morcela, grande senhora,


Digna de veneração.
Bebe cerveja, enxágua a boca caso tenha ficado entre os dentes um
vestígio de morcela. Baixa a voz, imaginem essa praça de Santa Maria, diz,
tão vasta, abrindo as mãos e os braços satisfeito por ter escolhido esse
adjetivo, que corresponde melhor à ênfase do seu gesto, imaginem a
negrura de uma praça muito grande e cercada espectralmente de igrejas e
palácios muito longe daqui, num outro mundo e em outro tempo, há muitos
anos. Uma noite, quando já tinha se deitado, depois de sair da casa da
subtenenta, e de ter-lhe feito, conforme me confessou com essas próprias
palavras, uma faena de alino,3 estava deitado no escuro e ouvindo o barulho
daquele despertador que tocava, o maldito, mais alto que um relógio de
pêndulo. Ele, que não perdia o sono por nada, compreendeu que nessa noite
não ia dormir. Vestiu-se, pôs a capa, o cachecol e o gorro, saiu para a rua
como um sonâmbulo, andou pelos becos como se tivesse de se esconder de
alguém, e acabou, por volta da meia-noite, na praça de Santa Maria, tomada
pela neblina, só com uma ou duas lâmpadas brilhando nas esquinas, tão
fracas que mais pareciam manchas de claridade, como o brilho do fósforo
nos ponteiros e nos números de seu despertador. Entrevia as grandes massas
escuras dos edifícios, torres, beirais de telhado com estátuas, campanários, a
igreja de Santa Maria e a de El Salvador, as estátuas dos leões defronte da
Prefeitura, a fachada escura e maciça do convento de Santa Clara, de onde
nem mesmo a essas horas ousava se aproximar.
Viu de longe uma luz acesa na janela mais alta da torre. A neblina já se
dissipava, apenas uma gaze fina envolvia as coisas. Perto da luz distinguiu
num instante de medo a silhueta imóvel cujos olhos pareciam cravados
nele. Aquela distância e com tão pouca claridade, e no estado de nervos em
que me encontrava, não poderia ter reconhecido um rosto, e no entanto
tinha certeza de que via a freira jovem, sóror Maria del Gólgota, e de que
ela havia aparecido no torreão para me ver, e apagava e acendia a luz que
carregava na mão para me dar a entender que me reconhecia. A luz apagou
e não voltou a ser acesa, mas ele continuava imóvel, olhando para cima,
sozinho na horizontalidade deserta da praça, sem noção do tempo ou do
frio, na dúvida de ter visto algo verdadeiro e de não estar sonhando. Dormi
sem perceber, embora achasse que não ia conseguir dormir, e estava
sonhando que me levantei e me vesti e vim até aqui e vi uma luz na torre do
convento e o rosto branco da freira tão nitidamente como naquele dia em
que desabou entre meus braços e ficou no chão de boca aberta e olhos
virados. Mas a luz se acendeu de novo, durante um segundo, e uma só vez,
e mexeu-se rapidamente de um lado para outro, e depois em sentido
contrário. Talvez ela estivesse morta e seu fantasma ou sua alma voltassem
para me atormentar como castigo por meu atrevimento.
Continuou muito tempo absorto, quieto, esperando que as badaladas
lentas e categóricas das duas horas da manhã o sobressaltassem com um
calafrio.
Na manhã seguinte guardava uma lembrança muito estranha de sua
saída noturna, uma mistura confusa de fantasmagoria e certeza: era verdade
que tinha visto uma luz sendo acesa e apagada, e uma silhueta com touca de
freira, mas não podia garantir ter visto a cara de sóror Maria del Gólgota, e
no entanto lembrava-se nos menores detalhes de suas feições, até do brilho
amarelo que a luz da lâmpada dava à sua pele. Compreendia que beirava o
delírio ao recordar também que a freira estava de lábios pintados de um
vermelho muito forte, os lábios ásperos e quentes de febre que ele havia
beijado num momento de temeridade, o que agora quase lhe parecia
também uma alucinação. — Ave Maria Puríssima.
Estava tão distraído em seu trabalho e em suas reflexões que não ouviu
a porta de vidro se abrir, e ao levantar a cabeça estava diante de si a mesma
figura que ocupava sua imaginação e seus sonhos há tantos dias. Após dias
de ausência, sóror Maria del Gólgota parecia mais alta, mais delgada e mais
branca, menos jovem — era verdade que não tinha ao seu lado o
contraponto da velhice de sóror Barranco —, mas também, e sobretudo, era
uma mulher de verdade, não uma freira, com olhar e voz de mulher, uma
voz quase rouca, sem o meloso clerical de outras vezes. Era uma mulher
enrolada naquelas túnicas e saias de outros séculos, e seus olhos tinham,
tiveram por alguns segundos uma franqueza com que ele não estava
acostumado em seu convívio com outras mulheres, nem mesmo com as que
haviam se entregado mais audaciosamente.
Não fez nada, nem o gesto respeitoso de se levantar, não tirou a guimba
da boca nem largou a sovela e o sapato velho que tinha nas mãos. Só
escutou a si mesmo respondendo como todos os dias: — Concebida sem
pecado.
Ela fez um gesto de desagrado ou impaciência, olhou para a rua,
aproximou-se e lhe disse algo, em seguida recuou uns passos, e quando ele
ia lhe pedir que repetisse o que dissera, sóror Barranco abriu a porta e
apareceu, encurvada e cansada, murmurando queixas e jaculatórias,
exigindo com modos bruscos as esmolas atrasadas, ralhando com ele por
ser fumante e apaixonado pelos touros mais do que pelas novenas, e com
sóror Maria del Gólgota por não tê-la esperado, ainda ontem na enfermaria
com quarenta graus de febre e hoje, só vendo, tão garbosa, curada pelo
favor especial da Santíssima Virgem.
Enquanto escutava sóror Barranco, ele refletiu e conseguiu entender as
palavras que sóror Maria del Gólgota tinha lhe dito baixinho e tão depressa,
ou melhor, atreveu-se a crer no que havia escutado, a ter certeza de que
essas palavras não eram outro desvario de sua imaginação fogosa. Logo
depois da meia-noite espere que eu acenda e apague a luz três vezes na
janela mais alta e empurre a porta pequena atrás da quina, suba três andares
e no terceiro patamar há uma janelinha à esquerda e uma porta à direita,
empurre-a com cuidado e estarei esperando por você.
Imaginação fogosa: à medida que a história avança o narrador gradua as
pausas, enfatiza as expressões preferidas, saboreia-as como um gole de
vinho ou uma tapa de morcela. Ao seu redor o grupo está mais compacto, a
espuma fica morna e se desfaz na jarra de cerveja, esquecida no balcão,
junto com os restos das porções que já ninguém vai terminar e o garçom
não retira.
Tenho a impressão de vê-lo, nessa noite, quer dizer, na noite dos fatos, a
primeira, porque houve algumas, imaginem sua capa, seu cachecol e seu
gorro, como o bandido Luis Candeias na música que ouvíamos em criança
no rádio, vocês se lembram:

Debaixo da capa
De Luis Candeias
Meu coração não corre,
Voa que voa.

Toda a praça está às escuras, como boca de lobo, nada dessa iluminação
que puseram depois para que os turistas a vissem, e que lhe tirou o sabor, é
como eu digo, veio a eletricidade e se acabou o mistério. Ele dobra a
primeira esquina, a da Prefeitura, vai andando bem colado ao muro,
temendo que alguém o veja de uma janela, e no fundo não crê que vai ser
verdade o que a freira lhe prometeu de manhã, muito menos que vá se
atrever a entrar à meia-noite no convento como um ladrão ou um don Juan
Tenorio, porque ele mesmo reconhece que na juventude, se era muito
fogoso também era muito covarde, e de repente invadia-lhe o pânico de ser
descoberto e armar-se um escândalo na cidade, e ele ser apontado com o
dedo, expulso por blasfêmia da confraria da Santa Ceia e da Sociedade
Beneficente Corpus Christi, forçado talvez a fechar o negócio com que
ganhava a vida, modestamente, é claro, mas também sem dificuldades
naqueles tempos tão difíceis, banido para sempre do camarote presidencial
da praça de touros, para o qual costumava ser convidado nas tardes de
tourada, em sua qualidade de assessor, e onde cruzava, fumando um charuto
extraordinário e usando um cravo na lapela de seu terno risca de giz, o das
grandes ocasiões, com as autoridades máximas da cidade, o prefeito, o
delegado de polícia, o comandante da Guardia Civil, o pároco de San
Isidoro, aquele don Estanislao de quem vocês se lembram, que apesar da
batina e da fama de austeridade exemplar era um furioso apaixonado pelos
touros, e que em 1947 deu a extrema-unção ao insigne Manolete, naquela
praça maldita de Linares.
Turvava-o a consciência do perigo que estava prestes a correr, e contudo
não se detinha, nem dava meia-volta e ia para casa, para o abrigo seguro de
sua cama. Ainda estava em tempo, não tinha terminado de atravessar a
praça, nenhuma luz tinha se acendido na janela mais alta do torreão, mas os
ditames da prudência não afetavam seus passos, e para justificar-se e
continuar se aproximando da portinhola lateral do convento dizia para si
mesmo que tudo podia ter sido um gracejo ou um delírio da freira, ainda
transtornada pela febre, de modo que não fazia mal que ficasse rondando
pela praça, já que a luz prometida não seria acesa, e ele nem poderia se
aproximar da porta e tentar empurrá-la, porque ela não cederia, estaria tão
fechada a sete chaves como qualquer porta da cidade a essa hora da noite,
quanto mais a porta de um convento, com ferrolho e voltas de uma grande
chave e tranca de madeira, assim como fechávamos as nossas antes de
dormir nos maus tempos da guerra, quando numa noite qualquer podiam vir
buscar você, e você sumia e eles o matavam, deixando-o atirado numa vala,
com as meias frouxas e os sapatos caídos longe do corpo, sobretudo se você
era pessoa de ordem e de fé, como sempre fui apesar dessa minha fraqueza
pelos pecados da carne.
Mas a luz se acendeu e apagou três vezes e ele se aproximou da esquina
do convento, com as pernas bambas, pensando que apesar de tudo a
portinhola podia não ceder, e de fato, no início encontrou certa resistência,
que ao mesmo tempo o aliviou na sua covardia e foi um golpe baixo e
doloroso na sensação de iminência física que o trespassara com um acesso
de turgidez sexual ao ver a luz na janela. As portas fechadas sempre o
haviam desencorajado, mas esta, tão compacta na aparência, baixa e
estreita, com várias fileiras de cravos enferrujados, deslizou em silêncio
com um segundo empurrão um pouco mais decidido, e quando a fechou
atrás de si e viu-se num breu ainda mais impenetrável que o da praça na
noite sem lua, pensou com fatalismo aterrador, com desenfreada luxúria,
que já não era possível recuar, e subiu os três lances de escadas tateando
pelas paredes, assustando-se com os ruídos e os ecos tênues provocados por
seus passos, sentindo teias de aranha roçarem em seu rosto, e nas palmas
das mãos a frieza úmida que porejava da pedra. Finalmente viu à esquerda
uma janela estreita como uma seteira, apenas um raio de fosforescência na
negrura: nesse patamar, à direita, apalpou a madeira de uma porta, e quando
se preparava para empurrá-la sentiu o pânico de ter se enganado na conta
dos lances de escada. Manteve-se encolhido, sem se atrever a fazer nada,
sem se mexer paralisado no escuro em que já começavam a se definir para
suas pupilas adaptadas a moldura e as folhas da porta. Teve a impressão de
escutar um som muito suave, algo roçando ou uma respiração que não era a
sua, e antes de perceber que a porta estava se abrindo a mão de alguém,
rápida e certeira, agarrou-o pela barra da capa e o puxou para dentro,
provocando-lhe um calafrio, e uma voz avisou em seu ouvido que
inclinasse a cabeça porque o teto era muito baixo, e em seguida, enquanto a
porta se fechava, ele foi arrastado, deixando-se levar, foi deitado num
colchão estreito e áspero, foi apalpado, auscultado, despojado de sua roupa
por gestos desajeitados e exagerados, guiado, com uma mescla de rude
inexperiência e determinação, lambido e mordido, bolinado, esmagado por
um corpo carnoso e nu que se enrolava no seu sem que ele soubesse muito
bem, no atordoamento da excitação e do escuro, que zonas ou membros
estavam sendo tocados ou agarrados. Foi sacudido como um molambo,
esmagado contra uma parede gelada que arranhava suas costas, amordaçado
pela mão suarenta quando sua respiração ficou muito forte, foi derrubado
como que por uma onda do mar e segurado ao cair no chão, e quando afinal
houve uma trégua e ele mesmo se sentiu exausto e aliviado, na quina dura
do colchão, e tocou e cheirou a substância líquida que molhava sua barriga,
conseguiu refletir em tudo o que lhe havia acontecido nos últimos minutos,
e chegou à conclusão de que tinha sangue nas pontas dos dedos, e de que
pela primeira vez na vida acabava de desvirginar uma mulher. Ave Maria
Puríssima, ela murmurou, num longo e plácido suspiro, e ele, não sem certa
inquietação pela irreverência, retrucou no ouvido dela:
— Concebida sem pecado.
— Escute aqui, é verdade que depois cai bem um cigarro?
— Divinamente.
— Pois eu fumaria um.
Finalmente viu seu rosto, na luz do isqueiro, e não o reconheceu, porque
nunca tinha visto seu cabelo, castanho e crespo, embora muito curto, com
um toque de aspereza, como o pelo do púbis que quase o havia arranhado.
Também era a primeira vez que fumava, mas logo tomou gosto, apesar da
tosse e da tonteira, e gostava muito, disse a ele, lembrava-se de quando era
menina e ficava tonta nos cavalinhos do carrossel. O problema das
mulheres, se quer que lhe diga sinceramente, é que quando a coisa terminou
e o homem quer dormir ou ir para casa elas ficam com uma vontade imensa
de conversar, de se comunicar, como se diz hoje em dia. Acomodaram-se
como puderam no colchão impossivelmente estreito, jogaram por cima toda
a roupa que tinham, mas ainda assim, mesmo muito apertados um contra o
outro, e não havia outro jeito, tiritavam de frio, e ele voltou a sentir o medo
de ser descoberto e a urgência de ir embora, mas ela o prendia entre as
pernas com uma destreza recém-aprendida e já infalível e dizia que ainda
havia tempo, que acendesse outro cigarro, nem sequer tinham tocado as
badaladas das duas da manhã.
Ela falava bem baixinho, tão perto de seu ouvido que ele sentia o roçar
úmido de sua respiração e de seus lábios, pintados de vermelho para ele,
conforme lhe explicou, com um batom roubado na perfumaria da rua Real
num descuido da vendedora e de sóror Barranco, e tinha vontade de rir
quando se lembrava, a bruxa não confia em mim e não tira o olho do que
faço mas sou mais rápida que ela, que aliás está ficando cega, o que é muito
merecido por todo o veneno de víbora que cospe sempre que fala, inclusive
quando reza o terço. No fundo, essa linguagem não lhe agradava, parecia-
lhe tão imprópria para uma freira como o deleite que sóror Maria del
Gólgota demonstrava ao fumar, até aprendeu a fazer volutas com a fumaça,
expulsando-a devagar de seus lábios pintados. Sóror Maria del Gólgota, que
suplício de nome, se eu na verdade me chamo Francisca, ou melhor, Fanny,
como meu pai me chamava, que descanse em paz, e que era apaixonado
pelas coisas inglesas, o coitado queria que eu aprendesse a falar inglês, a
jogar tênis, a escrever à máquina e a dirigir automóveis, que fosse à
universidade e estudasse algo sério, não essas tolices para senhoritas
ociosas como Magistério ou Filosofia e Letras, mas Medicina, pelo menos,
ou Física e Química. Também fazia meu irmão estudar e praticar esportes,
mas visivelmente eu era a sua preferida, e além disso dizia que, sendo
menina, eu precisava de mais talentos e astúcias para me defender no
mundo, e minha mãe, embora o deixasse agir, por ser fraca de caráter, por
trás renegava, essa garota, o pai vai transformá-la numa mulher-macho,
quem vai querer namorar uma engenheira ou uma campeã automobilística,
e meu pai, que vergonha, parece mentira, tenho uma mulher tão retrógrada
que é contra o avanço do próprio sexo.
Imitava vozes, embora falasse tão baixo, elaborava populosos
espetáculos teatrais no segredo da escuridão de sua cela e do sussurro ao pé
do ouvido, a voz grave e lenta do pai, a voz queixosa da mãe, a do irmão,
seu cúmplice e herói desde que os dois eram bem pequenos, o coaxar de rã
da voz de sóror Barranco e os diversos tons de ridículo e perfídia das outras
freiras da congregação. Acho que não me aguentam, que querem me
envenenar, esses enjoos que eu tenho são muito estranhos, sóror Barranco
trazia para a minha cela caldos e bebidas quentes e eu desconfiava, tome,
irmã, que esse caldinho vai lhe cair muito bem, pois ressuscita até um
morto. Que beba você, sua bruxa, comecei a melhorar assim que parei de
tomar os caldos e as bebidinhas dela, e ela, venha, irmã, vamos levantar
esse ânimo, olhe como lhe fez bem ontem à noite o reconstituinte que lhe
trouxe, se bem que eu tenha certeza de que foram mais eficazes nossas
orações para a Santíssima Virgem.
Ele cochilava com esse zunzum em seu ouvido, que ao mesmo tempo o
deixava aflito, pois, como diz, apesar de um pouco libertino continuava
sendo um bom católico, e sóror Maria del Gólgota, ou Fanny, embora fosse
mais gostosa do que miolo de pão branco saindo do forno, palavras textuais,
lhe parecia desrespeitosa demais com as coisas sacras, e ele sentia a
consciência mais pesada por ouvir sem reclamar seus impropérios de livre-
pensadora do que por estar na cama com ela. Isso é que era desagradável,
disse-me muito sério, da última vez que puxei por ele, quando sua cabeça
ainda não estava dando o prego, é que ela falava muito, o tempo todo, no
ouvido, chucuchu chucuchu, apertada contra mim, naquela caminha que
estalava tanto e a qualquer momento podia desabar sob o nosso peso,
contando-me aquelas histórias fantásticas de seus pais e seu irmão, que às
vezes ela dizia estar na África e às vezes na Terra do Fogo, e de como uma
tia conseguiu trancá-la no convento e depois a forçou a se tornar noviça,
para o seu bem, minha filha, não pela sua felicidade no outro mundo, pois já
sei que você não acredita nele, igual a seu pai, mas para que tenha alguma
segurança neste, e não acabe de cabeça raspada e humilhada em público,
como a sua pobre mãe, coitada, que não tinha culpa de nada, e olhe como se
transtornou, e como tivemos de interná-la sabe Deus até quando.
Fazia tudo brusca e avidamente, com a mesma agitação meio
apaixonada meio tirânica com que o despira e o instara a derrotar as
estreituras dolorosas de sua virgindade. Extasiava-se dando uma longa
tragada no cigarro, apertava-o entre as coxas até que suas articulações
estalavam, enfiando a língua movediça na boca do sapateiro, detalhe que ele
não apreciava muito, por não achar próprio de mulheres decentes.
Desfrutava os beijos, os cigarros, os minutos, e talvez, acima de tudo, o
deleite de dizer em voz alta todas as palavras que havia muitos anos a
perturbavam no segredo de seu pensamento, mantendo uma eterna ebulição
de devaneios e rebeldias impossíveis, uma intoxicação tão poderosa de
recordações, desejos, histórias, nomes e lugares que volta e meia perdia por
completo o sentido da realidade. Mas tocavam as badaladas das duas da
manhã e ela lhe pedia que se vestisse, com a mesma impaciência com que,
duas horas antes, o despira, punha em seu bolso um envelope com as
guimbas e cinzas para apagar qualquer vestígio, guiava-o pela mão escada
abaixo, sem tatear, sem incerteza, pois muitas vezes parecia ter o dom
inquietante de ver no escuro. Abriu um instante a portinhola e fez-lhe um
gesto para que saísse bem depressa, e um segundo depois ele estava sozinho
na extensão escura da praça, atordoado, contundido, ainda tão
desconcertado que não desfrutava plenamente de sua vaidade satisfeita e de
seu desejo realizado, e não podia acreditar que realmente tinha se infiltrado
à meia-noite num convento e desvirginado uma freira.
Na sua portinha de sapateiro e na barbearia ao lado, de Pepe Morillo, os
homens costumavam alardear suas conquistas, ou o duvidoso mérito de suas
proezas com as putas. Ele sempre se calava e sorria por dentro. Se vocês
soubessem. Nem ao seu confessor podia contar aquela aventura, e por isso
causava-lhe uma inquietação a mais a certeza de viver em pecado mortal.
Só a mim ele contou, e isso mais de quarenta anos depois, quando já fazia
tempo que estava aposentado e vivendo em Madri. Vocês precisavam ver o
sorrisinho dele, nós dois na sala de jantar da casa, cercados de recordações
de nossa cidade e de gravuras e imagens de santos, e de cartazes de
touradas. Ai, meu amigo, como gostei de touros e de mulheres, e que
momentos maravilhosos eles me fizeram passar, que Deus me perdoe.
Isso ele não perdeu, esse meio sorriso, essa expressão malandra de
guardar um segredo que talvez não recordasse, abobalhado e amnésico
diante da televisão, cabeceando prestes a dormir, cochilando e feliz, horas a
fio, atento tanto a um programa de desenhos animados como a um concurso
de palavras difíceis ou aos conselhos matutinos de um médico, encadeando
num fluir contínuo imagens e palavras de filmes, de telejornais, de novelas
sul-americanas, animando-se de repente quando vê na tela uma garota
muito bonita ou nua, a quem é possível que diga algo, verificando antes se
sua mulher não está perto, um galanteio como os que se diziam na
juventude dele às mulheres que passeavam de braços dados nas tardes de
domingo pela rua Real. Quando eu era pequeno o homem que possuía a
única televisão da vizinhança dizia galanteios grosseiros às apresentadoras e
às mulheres com minissaia que apareciam nos anúncios. Perguntam-lhe e
ele não responde, ou não escuta, ou diz algo confuso respondendo a uma
pergunta que não lhe fizeram. Da mesma forma, começa a rir diante da
televisão ou fica olhando para você e seus olhos se enchem de lágrimas.
Você põe comida na frente dele e ele come tudo, porque isto sim, o apetite
não perde, e no instante seguinte não se lembra e me pergunta quando é que
vamos comer, por isso está ficando gordo. Digo-lhe para sair, pegar um
pouco de ar, não passar o dia inteiro vendo tevê, mas quando cruza a porta a
inquietação já me invade, que ele não vá se perder e não saber voltar, do
jeito que anda bobo e do jeito que Madri é grande, e além disso tenho de
prestar muita atenção, para ver se amarrou os sapatos ou se não está saindo
sem meias, pois antes era tão vaidoso e gostava tanto de se arrumar, e se
punha nos trinques mesmo que fosse só para ir ao mercado, ali na esquina.
Fica horas com o mesmo sorriso impávido de complacência, aprovando
bondosamente tudo o que vê, tudo o que ouve, as conversas das vizinhas e
os travestis na banca de Sandra, os anúncios e os telejornais, as vozes das
peixeiras no mercado, os conselhos médicos do programa matutino de
televisão, as caras dos mortos e mortas em vida que cruzam com ele na
praça de Chueca e nas esquinas mais sombrias do bairro, quando sai com
seu manto grande e seu chapéu tirolês. Mas acho que de algumas coisas ele
se lembra, ou pelo menos essas coisas lhe despertam alguma coisa, embora
não chegue a perceber de todo, pois de vez em quando vou vê-lo e no início
ele não me reconhece, sento-me ao seu lado na sala de jantar e me olha
como perguntando quem serei eu, embora se esforce em acompanhar minha
conversa, e enquanto me diz alguma coisa e tento puxar alguma de suas
histórias antigas seus olhos se voltam para a televisão e ele esquece que há
mais alguém na sala. Mas tenho um truque infalível: chego bem perto dele,
quando sua mulher não está por ali, e digo baixinho, Ave Maria Puríssima, e
os olhos do sujeito brilham, ficam úmidos, e ele dá o sorriso sem-vergonha
de antes, quando me falava de mulheres, e me responde automaticamente:
— Concebida sem pecado.
Sentia remorso toda vez que repetia essas palavras, toda manhã que via,
na hora de sempre, as duas silhuetas de túnica marrom atrás da porta
envidraçada e ele apagava o cigarro, guardava-o numa gaveta, baixava a
cabeça fingindo concentrar-se em seu trabalho, arrancar o salto gasto e torto
de um sapato velho ou pôr aqueles pequenos reforços metálicos que na
nossa cidade se chamavam chapinhas, remendos de tempos de pobreza em
que quase ninguém podia se permitir comprar sapatos novos. Sentia nele a
dupla inspeção alarmante e magnética de sóror Barranco e de sóror Maria
del Gólgota, Fanny no segredo de seus encontros blasfemos, de suas noites
escuras e de sua luxúria às cegas na cela gelada, e quando as duas diziam ao
mesmo tempo Ave Maria Puríssima ele já distinguia na voz da mais moça o
tom equívoco do convite, da recordação e do desafio repetido, e custava-lhe
responder com a mesma diligência de outros tempos. Ao dizer a fórmula
Concebida Sem Pecado, que havia repetido desde criança sem nunca prestar
atenção, mostrava-a em seu significado literal, e sentia uma mistura muito
estranha de deleite e contrição ao pensar nos muitos pecados que ele e a
monja estavam cometendo como cúmplices, pecados mais mortais ainda
porque ela se alegrava em cometê-los, com uma temeridade não só
moralmente escandalosa como cheia de perigos.
Custava-lhe levantar a cabeça e fugia dos dois olhares tão fixos nele, e
ao mesmo tempo que receava que algum sinal de sóror Maria del Gólgota
fosse interceptado pela outra freira também temia não receber nenhum sinal
alentador de que nessa noite a portinhola estaria aberta. Tendo ido para a
cama com tantas mulheres até então, não havia lhe passado pela cabeça
apaixonar-se por nenhuma, e tinha uma ideia entre higiênica e grosseira das
relações sexuais. Que essa aventura lhe causasse tantos contratempos, tais
incertezas e confusões interiores, era algo que irritava profundamente seu
sentido masculino de comodidade, a perfeita simplicidade de espírito em
que até então tinha vivido. Vamos ver se você é capaz de me explicar isso,
você que estudou e sabe tantas coisas. Se eu gostava tanto daquilo, como é
que também tinha medo? Se decidia que já não ia mais visitá-la, por que
saía de casa antes de ouvir as doze badaladas e morria de impaciência se ela
custava a acender a luz no torreão?
Ela era muito gostosa, a verdade é essa, era mais gostosa do que cem
pães e cem queijos e era uma delícia tentá-la na escuridão, cheirá-la, vê-la
tão branca um instante na luz do isqueiro ou da brasa do cigarro.
Mas havia aquele principal inconveniente que ele notou na primeira
noite e só fez se agravar, e era o quanto ela falava depois da faena, como ele
gostava de dizer na sua linguagem taurina. Antes, não: desde que ele
entrava na cela até os dois gozarem, a mulher era uma sombra silenciosa e
movediça que ele só escutava respirar, ofegar, gemer, mas quando
sossegava, grudava-se nele, como um carrapato ou como uma argola que
prendesse suas coxas, e começava a lhe falar no ouvido, sacudindo-o com
raiva se percebia que estava pegando no sono, seus lábios roçando e sua voz
sussurrando sem parar, e ele escutando mesmo quando já não estava ao lado
dela, quando voltava embuçado para casa depois das duas da madrugada ou
quando acordava por causa de um pesadelo de desgraça ou escândalo,
quando estava sozinho na lojinha de sapateiro e se esquecia de ouvir as
canções no rádio, porque a voz dela tornava a soar no seu ouvido, zumbia
como um inseto ou o rumor do sangue ou as batidas do coração,
transformava-se em outras vozes, com as quais foi se acostumando aos
poucos, vozes de sua vida pregressa e de sua família-fantasma, o pai
querendo que a filha se tornasse doutora em Ciências Físicas ou engenheira
civil e a mãe rezando terços, a tia enlutada e venenosa que apanhou a moça
e o irmão na delegacia de uma estação de fronteira, quando fugiam para a
França escondidos num vagão de carga, porque tinham planejado juntar-se à
Resistência contra os alemães ou se porem a serviço do governo da
República espanhola no exílio. Como Santa Teresa e o irmão, quando
fugiram de casa para ir às terras dos mouros e converter infiéis ou se
tornarem mártires, com a diferença de que nós já não tínhamos casa, porque
meu pai foi fuzilado pelos homens da milícia nacional que entraram no
povoado, no final da guerra, e minha mãe teve a cabeça raspada e tatuaram
em seu crânio uma foice e um martelo, e passearam com ela e outras
comunistas ou esposas de comunistas pelo centro do povoado e a obrigaram
a ir junto com elas no amanhecer para esfregar o chão da igreja, de joelhos
sobre as pedras geladas. Tudo por causa do ódio que tinham de meu pai, o
homem mais bondoso e mais pacífico e ordeiro do mundo, e nem no verão
deixava de usar seu terno com colete, seu colarinho duro e sua gravata-
borboleta. Porque saía à rua com essa roupa os milicianos já tinham estado
prestes a fuzilá-lo, no início da guerra, e três anos depois os revoltosos o
levaram, com seu terno, seu colete, seu colarinho duro e sua gravata-
borboleta, para o paredão de fuzilamento, e ele disse ao meu irmão, ainda
bem que, pelo menos, não vão matar os membros da minha família.
O pai fuzilado, a mãe louca, a viagem furtiva durante dias e noites até a
fronteira num trem de carga, o irmão e ela dormindo em cima de palha com
cheiro de esterco e fazendo planos lunáticos para se juntarem à resistência
contra Hitler e Franco, as ladeiras cobertas de amendoeiras e macieiras em
flor e os becos íngremes daquele povoado onde os dois passaram em
perfeita felicidade os anos da guerra, enquanto a mãe rezava e o pai
administrava uma escola para crianças que tinham sido deslocadas de suas
cidades de origem, e continuava passeando de terno, gravata, chapéu e
botinas de republicano ordeiro, apesar do susto que lhe tinham dado no
início os milicianos libertários, e que já não voltou a se repetir, pelo menos
até chegarem os outros, que o tiraram de casa aos pontapés e chutes na
bunda, daquela casa com pátio e parreiras e poço de água fresca onde os
quatro tinham vivido praticamente como a família dos Robinson suíços
daquele livro que ela e o irmão adoravam. Não fiquem nervosos, vocês já
vão ver que nada acontecerá comigo, que tudo não passa de um engano, ela
lhe dizia ao ouvido com a voz do pai, mas não tornaram a vê-lo em vida, ou
melhor, só o irmão o viu, quando foi lhe levar um pouco de comida e
cigarros na cavalariça onde o mantinham preso, e o que mais o
impressionou não foi entrar naquele curral cheio de condenados à morte,
mas ver seu pai sem a barba feita e sem o colarinho postiço da camisa, com
o terno amarrotado e muito sujo, como nunca o tinha visto.
Mas não era seu pai, e sim seu irmão, o herói de todas as suas narrações,
seu companheiro de brincadeiras infantis e aventuras pelas ladeiras brancas
de macieiras e amendoeiras, o cúmplice de suas leituras e o instigador de
seus projetos de fugas e de engajamento em revoluções sociais, em
exércitos guerrilheiros, em células clandestinas de resistência antifascista,
em viagens de exploração à Terra do Fogo ou à Patagônia ou ao deserto de
Gobi ou ao centro da África. E ela foi agarrada, trancada num convento e
forçada a ser freira sob ameaças obscuras e terríveis que jamais chegou a
explicar claramente, tão minuciosa como era, mas pelo menos seu irmão
tinha conseguido escapar, e de vez em quando, durante todos aqueles anos,
ela recebia por canais tortuosos uma carta dele. Vive na América, não sei se
no norte ou no sul, mas na América, locomove-se tanto e tem tantos
negócios que não passa muito tempo em lugar nenhum, e tanto pode estar
em Chicago como em Nova York ou Buenos Aires, mas sempre quer saber
notícias minhas e por causa das bruxas que me mantêm sequestrada as
cartas dele não chegam nem eu posso lhe enviar nenhuma correspondência,
pedir-lhe ajuda para que venha me salvar.
Ajude-me você, dizia-lhe ao ouvido, roçando sua orelha com os lábios e
a respiração agitada, ajude-me a fugir daqui e iremos juntos para a América
em busca de meu irmão. O que o retém aqui, se um homem é livre para ir
aonde sua santa vontade lhe ditar, não é como uma mulher, que vive presa,
embora não esteja trancada num convento.
Aqui você não tem nada e jamais chegará a ter alguma coisa, toda a vida
consertando sapatos velhos naquela portinha, cheirando a suor velho que as
pessoas deixam nos sapatos, tão moço e tão forte, com essas mãos tão
grandes e essa vibração que tem no corpo, não haveria obstáculo
intransponível se fosse embora daqui, para a América, para onde vão os
homens que têm a coragem de devorar o mundo, como foi meu irmão, e
onde as mulheres não vivem trancadas nem usam sempre luto nem se
matam parindo filhos e trabalhando no campo e esfregando ajoelhadas os
pisos e lavando roupa no inverno em tanques de água fria com esses
pedaços de sabão de manteiga que esfolam as mãos. Aqui não sou nada, não
seria ninguém se fugisse sozinha, para onde irá uma mulher que fugiu de
um convento e não tem documentos, nem um homem que a defenda ou a
represente, nem pai, nem marido nem irmão, não é como na América, onde
mulher vale tanto quanto homem, se não mais, muitas vezes. Ali as
mulheres fumam em público, igual aos homens, usam calças, vão de carro
para o escritório, se divorciam quando têm vontade, dirigem a toda pelas
estradas, que são muito largas e sempre em linha reta, não é como aqui, e os
carros não são pretos e velhos, mas imensos e coloridos, e as cozinhas são
iluminadas e brilhantes e estão cheias de aparelhos automáticos, de modo
que você aperta um botão e o chão é esfregado, e tem uma máquina que tira
o pó e outra que lava a roupa, deixando-a até passada e dobrada, e as
geladeiras não precisam de barras de gelo, e todas as casas têm garagem e
jardim, e muitas têm piscina. Nas piscinas as mulheres tomam sol com
maiôs de duas peças e bebem refrescos deitadas em redes enquanto os
aparelhos automáticos fazem todo o trabalho da casa. Bebem refrescos e
fumam, sem que ninguém pense que sejam putas, e pintam as unhas, não só
das mãos mas também dos pés, e se têm alguma queixa do marido se
divorciam, e aliás ele é obrigado a lhes pagar uma pensão todo mês até que
encontrem outro marido, e casam sem ter de fazer cursos de cristianismo
nem papelada nem petição e sem precisar de um dote, casam de um dia para
outro, e se divorciam da mesma forma, e quando se cansam da vida num
lugar sobem no seu carrão colorido e vão para outra cidade, no outro lado
do país, vão para a Califórnia ou para a Patagônia ou para Las Vegas ou
para a Terra do Fogo, olhe que nomes mais bonitos, só ao dizê-los já parece
que os pulmões se enchem de ar, ou vão para Chicago ou Nova York, e
vivem em arranha-céus de quarenta ou cinquenta andares, não em casinhas
térreas como as daqui, em apartamentos que não precisam de janelas porque
têm todas as paredes de vidro, e nos quais nunca faz calor nem frio, pois
quando a temperatura sobe ou desce um pouco além da conta começam a
funcionar uns aparelhos que eles chamam de climatização.
Mas como é que nós vamos embora, mulher, com que dinheiro
compraríamos a passagem de navio, ele dizia, para dizer alguma coisa, e ela
logo ficava furiosa com sua pusilanimidade, ralhava com ele em seu
sussurro sonífero: já pensei em tudo, você vende ou passa adiante o seu
negócio e algum dinheiro lhe darão, estando num ponto tão bom, e posso
dar um jeito de roubar umas coisas de muito valor que há no convento,
candelabros de prata e um relicário de ouro maciço, posso até cortar da
moldura um quadro da Imaculada que, dizem, é de Murillo, e duvido que
não nos deem por ele uns bons milhares de pesetas. Ele ficava gelado só de
pensar nisso, roubo sacrílego, além de profanação e blasfêmia, não só a
desonra pública e a excomunhão, como também a cadeia. Agora começava
a entender tudo, aquela freira demente procurava algo mais, além de saciar
seu calor ímpio queria usá-lo como instrumento de sua fuga e cúmplice de
suas manobras delituosas, não só inadequadas para uma moça que, afinal de
contas, era filha de um comunista que a educara no amor livre e no ateísmo,
fomentando um descaramento sexual que decerto podia ser delicioso, mas
também inadequadas para uma mulher decente, ainda mais para uma esposa
de Cristo.
Não dormia, nunca se concentrava no que fazia, nem no trabalho nem
nas atividades beneficentes ou da confraria, nem na obrigação nem na
devoção, como eu digo, até se esquecia de escutar no rádio os programas de
versinhos e de touros. Não tinha medo, mas pânico, não só de ser flagrado
ao entrar ou sair do convento naquelas noites hibernais de tempestade que
eram tão escuras e desertas como de ser arrastado para o seu delírio, e ficar
tão transtornado que acabasse perdendo o senso comum que sempre o havia
acompanhado e guiado e terminasse perdendo tudo o que tinha, e também
tudo o que era, o que chegara a ser. Tinha medo de vê-la aparecer toda
manhã ao lado de sóror Barranco, e até que ela fosse embora não sossegava,
porque achava que a velha já estava começando a desconfiar e o vigiava ao
mesmo tempo que vigiava a outra a fim de conseguir novos indícios do que
já suspeitava, provas que os empurrariam juntos para uma catástrofe em que
ele não tinha o menor interesse romântico de se meter. Mas se ela não
aparecia também se assustava, imaginando que tinha adoecido de novo e
que no delírio da febre revelava o segredo de seus encontros na cela, ou que
já tinha fugido e estava escondida e quando anoitecesse iria buscá-lo, tal
como anunciara ameaçadoramente muitas vezes. Isso acontece comigo
porque eu quebro minhas normas e me envolvo com uma mulher bonita, e
uma mulher bonita que, para completar, não tem marido nem ninguém para
prendê-la, além dessas freiras velhas que não ficam sabendo de nada. E
preciso procurar amantes que sejam feiosas e casadas e saibam guardar uma
certa decência até mesmo no adultério, e que se possível tenham também
uma posição econômica sólida, porque assim é mais difícil pensarem nessa
ideia delirante e romântica de largar tudo e fugir com alguém, causando-lhe
todo tipo de incomodidades e sobressaltos.
Que filósofo, esse sujeito, você tinha de ter deixado por escrito seus
preceitos, para que nós, seus discípulos, os seguíssemos ao pé da letra, eu
lhe dizia, e ele caía na risada e me fazia um gesto para falar mais baixo,
para que sua mulher não ficasse sabendo. Seus preceitos e também suas
memórias, mestre insigne, a não ser que você me conte tudo e me nomeie
seu biógrafo oficial e testamenteiro de seu legado.
Mas já é tarde demais, já não se lembra ou não conta, embora os
médicos tenham examinado sua cabeça e digam que não tem nada, graças a
Deus, que não lhe deu essa doença dos velhos, pelo menos ainda não, o mal
de Alzheimer, que aí eles ficam impossíveis e não lembram mais nem
reconhecem. Diz o médico da cabeça que talvez ele tenha tido uma
depressão, por não fazer nada e não conhecer quase ninguém em Madri,
mas que depressão, digo-lhe eu, se este aí nunca esteve triste, e agora cai na
gargalhada por qualquer coisa e sozinho, olhando a tevê, que estou fazendo
alguma coisa na cozinha e ouço umas gargalhadas e saio e é ele que está se
mijando de rir, embora não tenha nenhuma graça o que estão passando, que
tanto faz ser um enterro ou uma dessas notícias de guerras e fomes dos
telejornais.
Não se lembra do tédio, da angústia, do medo das últimas vezes, de
como ela estava ficando perturbada, cada vez mais áspera e peremptória em
suas exigências eróticas, como se em poucas semanas tivesse adquirido toda
a depravação em que outras caem ao fim de longos anos de vício, cada noite
mais tagarela, mais louca e monótona em suas histórias do passado e em
seus planos dementes para o futuro, um futuro que aliás ela situava cada dia
mais perto, e até se empenhava em discutir as melhores datas possíveis para
a fuga, e exigia dele promessas e juramentos, fazendo ameaças terríveis,
tendo visões insensatas da liberdade e da riqueza que os aguardava na
América, onde não demoraria em encontrar"seu irmão aventureiro e
multimilionário, em possuir um carro imenso pintado de vermelho ou
amarelo ou azul com para-choques prateados e uma casa com jardim e
piscina e todo tipo de eletrodomésticos.
Uma noite, contra seu costume, ela não o arrastou imediatamente, em
silêncio, para o catre pouco resistente e ascético, mas apertou seu corpo na
escuridão e segurou seu rosto com as duas mãos e lhe disse no ouvido com
a voz rouca e alterada que, antes de possuí-la — ela adorava essa palavra
melodramática —, teria de jurar que no prazo de uma ou duas semanas,
antes que terminasse a temporada de colheita de azeitonas, finalmente
fugiriam juntos. Ele não lhe dissera duas ou três noites antes, embusteiro,
para se livrar, que já tinha mais ou menos arranjado a transferência de seu
negócio para um sapateiro da vizinhança? Como um gancho ou uma garra,
a mão direita da freira, que em tão pouco tempo se especializara
assustadoramente em carícias e manipulações, apoderou-se de sua braguilha
e começou a apertá-lo gradualmente, e sua voz sussurrou em seu ouvido
algo que muitos anos depois ainda o deixava de cabelo em pé quando se
lembrava, provocando-lhe um encolhimento viril tão instantâneo como
irreparável: se você me trair eu arranco tudo isso aí.
Mas essa noite foi a última. De manhã ele acordou com calafrios e
tonteiras e não teve forças nem para sair da cama. Abatido e febril, sentia o
alívio de não ir trabalhar e não ter de enfrentar a inspeção diária de sóror
Barranco e de sóror Maria del Gólgota. No terceiro dia a febre piorou e foi
preciso chamar o médico, que diagnosticou um princípio muito perigoso de
pneumonia e ordenou a internação imediata no hospital de Santiago. Em
sua vigília angustiosa ele atribuía a desgraça de sua doença a um castigo
divino e revivia todo o frio passado no mau tempo da praça e na cela glacial
de sóror Maria del Gólgota: o pecado da carne, agravado pela blasfêmia, e o
desleixo de não se abrigar tinham se conjurado para jogá-lo numa cama de
hospital e talvez também na sepultura, e nos suplícios do inferno. Rezou
terços, fez promessas fervorosas de santificação e penitências, de sair
descalço na procissão durante os próximos vinte anos levando nas costas
um crucifixo de madeira maciça, de submeter-se a chicotadas e cilícios, até
imaginou que se tornava frade e passava o resto da vida fazendo penitência
num convento para pagar as aberrações cometidas em outro.
Um mês depois voltou para a sua portinha e sua mesa de sapateiro, mas
tinha a impressão de haver se passado muito mais tempo, e lembrava-se dos
dias anteriores à sua doença com o desapego das coisas remotas. Nas
primeiras duas ou três manhãs mal teve força ou ânimo para trabalhar, e
aguardou com uma mescla de desejo e medo a visita das duas freiras. Mas
não apareceram, e o vizinho do lado, o barbeiro Pepe Morillo, disse-lhe que
tinha ouvido falar que sóror Barranco estava muito doente, problemas da
idade, e que por alguma razão desconhecida a outra freira estava proibida
de sair.
Nessa noite, abrigando-se muito bem, atreveu-se a ir à praça de Santa
Maria. Bateram as doze badaladas, mas na janela do torreão do convento
nenhuma luz se acendeu, e ele decidiu, com decepção e alívio, que o mais
prudente era voltar para casa e meter-se na cama, e levar a sério o
cumprimento das promessas feitas nos dias negros da doença, da qual tinha
certeza de ter se salvado graças à dupla eficácia milagrosa das orações e da
penicilina. Quando já ia embora virou um instante a cabeça e a luz estava
acesa na torre, e debaixo pôde ver a silhueta tentadora e meio
fantasmagórica de sóror Maria del Gólgota. Mas não foi sua vontade nem
seu propósito de se corrigir que triunfaram contra a poderosa persuasão do
pecado: foi um calafrio que sacudiu todo o seu corpo, e um início de dor
renovada no peito, devolvendo-lhe o medo da pneumonia, o desagrado de
ter de se despir e depois se vestir num lugar gelado e muito incômodo, no
qual não havia como se cobrir totalmente. E depois, as urgências daquela
mulher, sua voz de sonhadora sussurrando desvarios em seu ouvido
enquanto ele ia ficando com sono e tudo que queria era ir embora, e as
tábuas duras da cama que se cravavam nas suas costas, enquanto imaginava
sua cama mole e quente, para ele sozinho, a segurança de sua casa...
Venceu a tentação nessa noite e em mais algumas, mas à medida que ia
se recuperando da fraqueza com que voltara do hospital despertaram os
antigos instintos, apaziguados por certo tempo, não devido à penitência,
mas à fraqueza física, e na noite seguinte ele se viu, a contragosto,
zanzando na praça de Santa Maria, tão excitado que custava a caminhar
com naturalidade, emburricado, como dizia brutalmente, usando uma dessas
palavras saborosas de nossa terra que já estão quase perdidas, nosso rico
acervo popular. Nessa noite ele estava desembestado, como um miúra,
como um cabrão, disposto a tudo, a comê-la viva e nunca mais voltar. A luz
acendeu-se no torreão, e com o sangue fervendo e o coração na boca foi até
a portinhola e a empurrou com menos cuidado que de outras vezes, mas
estava fechada, e custou a se conter para não dar murros na porta. Afastou-
se do edifício, voltou para o lugar de onde podia ver a janela do torreão. A
luz acendeu-se de novo, mas agora que ele estava mais perto viu ou pensou
ver sóror Maria del Gólgota lhe sorrindo e levantando a túnica, e lhe
mostrando com desafio e sarcasmo suas tetas nuas, fazendo um sinal,
indicando talvez que tornasse a empurrar a porta.
Empurrou-a de novo, mas continuava fechada, e nunca mais esteve
aberta, e nem ele viu a luz acesa na torre em nenhuma das noites que ficou
rondando pela praça.
— E nunca mais soube nada dela? Não voltou a vê-la?
A gente sempre quer que as histórias terminem, bem ou mal, que
tenham um fim tão claro como seu princípio, uma aparência de sentido e
simetria. Mas na verdade pouquíssimas coisas se concluem de vez, a não
ser pelo acaso ou pela morte, e outras não chegam a acontecer, ou se
interrompem quando estavam começando, e delas nada resta, nem na
memória distraída ou desleal de quem as viveu. Passam-se os anos e nosso
amigo chega a essa idade com que nós o conhecemos, cada vez tem mais
cartazes de touros e de Semana Santa em sua lojinha minúscula, e quando
falta espaço prega uns em cima dos outros. Ascende a presidente de sua
confraria, é nomeado assessor oficial para as corridas de touros, é
entrevistado pelo jornal da província como uma glória de nossa modesta
vida local e prega o recorte numa das vidraças de sua porta, de modo que
possa ser visto por quem passa na rua. O recorte vai ficando amarelo,
algumas lojas da vizinhança começam a fechar, inclusive a barbearia ao
lado, e o negócio de remendar sapatos, pelo visto, tem tão pouco futuro
como o de cortar cabelo, porque as pessoas jogam fora os sapatos gastos e
compram novos nas sapatarias modernas que foram abrindo em outras
zonas mais populosas da cidade. Mas ele tem suas economias, assegurou a
velhice tão cautelosamente como assegurava a satisfação regular de suas
necessidades sexuais, e resolve que convém casar, porque está chegando a
uma idade em que um homem já não é o que era, se bem que ainda
conserve o aspecto necessário para atrair uma esposa madura e prestativa
que cuidará dele quando realmente começar a perder suas faculdades,
momento em que, se teve a imprudência de não se casar antes, não terá
outro jeito senão entrar na decrepitude solitária ou no asilo. O tipo de
mulher que lhe interessa, o perfil, para sermos exatos, ele tem muito
claramente no espírito: viúva, com uma pensão aceitável, algumas posses,
um apartamento livre de hipoteca, por exemplo, e sem filhos. Durante um
tempo considerou como candidata a subtenenta da Intendência, já viúva do
subtenente, e com pensão sólida e vivendo em casa própria, mas a achou
velha demais para seus objetivos, não por motivos carnais, mas porque
tampouco lhe convinha carregar alguém que duplicasse os inconvenientes
da idade, em vez de remediá-los. Inopinadamente, certa manhã, na fila da
Caixa Econômica, aonde tinha ido para atualizar sua preciosa caderneta de
poupança, conheceu uma mulher perfeita, que ultrapassava de longe suas
expectativas mais audaciosas: professora, solteira, de boa aparência, cabelo
pintado e colo abundante, embora com modos felizmente discretos, um
salário esplêndido e uma substanciosa acumulação de triênios, um
apartamento no centro de Madri, herança de família, e um posto numa
escola de Móstoles. Casaram-se em seis meses, e sem esperar a venda do
local onde funcionava a sapataria, no início de setembro foram para a
capital, a tempo de a nova esposa começar as aulas na escola. No dia 27 de
setembro, é claro, vésperas da nossa festa do santo padroeiro, ele já estava
de volta, porque tinha de assistir às corridas de são Miguel e são Francisco
em sua qualidade de assessor técnico da presidência. Um possível
comprador havia se interessado pela portinha de sapateiro. Marcou encontro
com ele para mostrar a loja numa daquelas manhãs frescas de início de
outono, e sentiu certa angústia ao andar pela rua Real, tão deserta nessa
hora em que antigamente fervia de gente, e ao abrir sua velha porta de
vidro, após ter subido a persiana metálica fechada havia muitos meses. No
chão havia papéis velhos, e um punhado de cartas que, antes de ir embora,
nem sequer tinha se dado ao trabalho de examinar, imaginando com tédio
que seriam propagandas de ofertas sem nenhum interesse. Examinou-as
agora, porém, tirando a poeira, matando tempo enquanto não chegava o
duvidoso comprador. Entre elas havia um cartão-postal em cores muito
fortes, no qual se via a estátua da Liberdade, a bandeira americana, o perfil
dos arranha-céus de Nova York. No reverso, não via o nome nem a
assinatura de quem o enviava, e além de seu endereço só encontrou umas
palavras escritas com uma letra cuidadosa e rebuscada, quase cafona, como
aquela que antigamente era ensinada nos colégios de freiras. Lembrança da
América.

________________
3 Trabalho feito pelo "espada" — toureiro especializado em matar com a

espada —, sem nenhum floreio nem preocupação artística, com o objetivo


de preparar o touro para a etapa da morte (N.T.)
Você é

Você não é uma só pessoa e não tem uma só história, e nem seu rosto
nem sua profissão nem as outras circunstâncias da sua vida passada ou
presente permanecem invariáveis.
O passado se move e os espelhos são imprevisíveis. Toda manhã você
acorda pensando ser o mesmo da noite anterior e reconhecendo no espelho
um rosto idêntico, mas às vezes no sono você foi perturbado por fragmentos
cruéis de dor ou de paixões antigas que dão à manhã uma luz levemente
turva, e esse rosto que parece o mesmo está sempre mudando, modificado
pelo tempo a cada minuto, como uma concha pelo atrito da areia e pelas
pancadas e pelos sais do mar. A todo instante, mesmo que se mantenha
imóvel, você está mudando de lugar e de tempo graças às descargas
químicas infinitesimais que formam a sua imaginação e a sua consciência.
Regiões inteiras e perspectivas distantes do passado abrem-se e fecham em
leque como as linhas retas dos olivais ou os sulcos para quem olha da janela
de um trem que avança a toda a velocidade sabe-se lá para onde. Por alguns
segundos um sabor ou um odor ou uma música no rádio ou o som de um
nome fazem-no ser quem você foi trinta ou quarenta anos antes, com uma
intensidade maior do que a consciência de sua vida atual. Você é um
menino assustado no primeiro dia de aula ou um garoto de cara redonda e
olhos fugidios e uma sombra de bigode sobre o lábio superior e quando se
olha no espelho é um homem de quarenta e tantos anos que começa a ter o
cabelo preto entremeado de fios brancos e em quem ninguém consegue
encontrar rastros de um rosto infantil, e nem dessa espécie de vaga e
permanente juventude em que você se imagina instalado desde que entrou
na vida adulta, na primeira delas, no trabalho e no casamento, nas
obrigações e nos sonhos secretos e na criação dos filhos. Você é cada uma
das pessoas diversas que foi e também as que imaginava que seria, e cada
uma das pessoas que nunca foi, e das outras que desejava ardentemente ser
e agora agradece por não ter sido.
Ao mesmo tempo que você, transformam-se o seu quarto e a cidade ou
a paisagem que você vê da janela, a casa onde mora, a rua por onde anda,
tudo se afastando e fugindo assim que aparece do outro lado do vidro, sem
nunca parar, desaparecendo para sempre. Cidades, lembranças e nomes de
cidades onde, pelo visto, você ia viver para sempre e das quais fugiu para
não voltar, imagens de cidades onde passou uns dias, recém-chegado e já
prestes a partir, e que atualmente formam na memória uma espécie de
desordem de cartões-postais de cores fortes e antigas, como os azuis dos
postais das cidades marítimas nos anos 60. Ou nem isso: cidades que nada
mais são do que seus nomes bonitos, despojados de toda substância pelo
passar do tempo, Tânger, Copenhague, Hamburgo, Washington DC,
Baltimore, Göttingen, Montevidéu.
Quem você era quando andava por qualquer uma delas, submergindo
com medo e fervor no anonimato que lhe ofereciam, na suspensão e na
perda de uma identidade invisível para qualquer pessoa que cruzasse com
você.
Talvez o que menos mude, através de tantos lugares e tempos, seja o
quarto onde você se refugia, esse quarto de onde, segundo Pascal, nunca
deveríamos sair para que não nos acontecesse uma desgraça. Estar só num
quarto é talvez uma condição necessária da vida, escreveu Franz Kafka a
Milena. Há em meu quarto atual um computador em vez de uma máquina
de escrever, mas ele lembra muito qualquer quarto que ocupei ao longo de
minha vida, de minhas vidas, do primeiro que tive aos dezessete anos, com
uma mesa de madeira e uma sacada que dava para o vale do Guadalquivir e
para a silhueta azul da serra de Mágina. Eu me trancava nele para ficar
sozinho com minha máquina de escrever, meus discos, meus cadernos,
meus livros, e ao mesmo tempo que me sentia afastado e protegido a sacada
me permitia observar a vastidão do mundo, para onde queria fugir o quanto
antes, pois aquele refúgio, como quase todos, era também uma clausura, e a
única janela pela qual eu desejava observar era a do trem noturno que me
levaria muito longe.
Laura Garcia Lorca, que nasceu em Nova York e fala um espanhol claro
e castiço, às vezes com um toque de fonética inglesa, mostrou-me em
Granada, na Huerta de San Vicente, o quarto de seu tio Federico, o último
que teve, do qual precisou partir num dia de julho de 1936, em busca de um
refúgio que não encontraria. Todas as desgraças acontecem com o homem
porque ele não sabe ficar sozinho em seu quarto. Vi o quarto de Lorca e
parecia uma recordação de quartos vividos ou sonhados, e também a
expressão exata de um desejo. Eu tinha morado naquele lugar, queria viver
um dia num quarto como esse. As paredes brancas, o chão de cerâmica
vermelha como a que havia em minha casa quando eu era criança, a mesa
de madeira 3a cama austera e confortável, de ferro pintado de branco, a
grande sacada aberta para a Vega, para a extensão de plantações salpicadas
de casas brancas, para a silhueta azulada ou malva da Sierra, com seus
cumes de neve tingidos de rosa nos crepúsculos. Lembro-me do quarto de
Van Gogh em Aries, tão acolhedor como austero, mas com sua linda
geometria já torcida pela angústia, o quarto que se abria para uma paisagem
tão meridional como o da Vega de Granada e que também continha as
poucas coisas necessárias à vida, e que nem assim salvou do horror o
homem que nele se refugiava.
Fico pensando como seria o quarto de Amsterdam em que Baruch
Spinoza, descendente de judeus expulsos da Espanha e depois de Portugal,
expulso ele mesmo da comunidade judaica, redigia seus tratados filosóficos
de seca clareza e polia as lentes com que ganhava a vida: imagino-o com
uma janela por onde entra uma luz clara e cinza como a dos quadros de
Vermeer, nos quais sempre há quartos aconchegantes que protegem da
intempérie seus habitantes absortos, a quem um detalhe recorda a vastidão
do mundo lá fora, um mapa das índias ou da Ásia, uma carta vinda de muito
longe, pérolas pescadas no oceano Indico. Uma mulher de Vermeer lê uma
carta, outra olha compenetrada e ausente para a luz da janela e talvez esteja
esperando a chegada de uma carta. Fechado no seu quarto, talvez o único
lugar em que não era totalmente apátrida, Baruch Spinoza dá forma à
curvatura de um vidro que permitirá ver coisas tão diminutas que o olho
humano não distingue, e quer abarcar, sem outra ajuda além de sua
inteligência, a ordem e a substância do universo, as leis da natureza e da
moral humana, o mistério rigoroso de um Deus que não é o de seus
antepassados, por quem foi renegado e expulso da sinagoga, nem tampouco
o Deus dos cristãos, que talvez o queimassem vivo se ele vivesse num país
menos tolerante que a Holanda.
Numa carta a Milena Jesenska, Franz Kafka esquece por um instante
sua destinatária e escreve a si mesmo: Afinal de contas, você é judeu e sabe
o que é o temor.
E então me vem à memória Primo Levi em seu apartamento burguês de
Turim, onde nasceu e morreu, jogando-se ou caindo por acaso no vão da
escada, onde viveu toda a sua vida, a não ser durante dois anos, entre 1943
e 1945. Em setembro de 1943, quando os milicianos fascistas o prenderam,
Primo Levi saíra de seu quarto seguro e de seu apartamento em Turim para
se juntar à resistência, e levava uma pequena pistola que mal sabia manejar,
e na verdade nunca tinha dado um tiro. Fora um bom aluno, formando-se
em Química com notas excelentes, com o mesmo gosto pelo que aprendia
nos laboratórios e nas aulas e pela literatura, que para ele teve sempre a
mesma obrigação de clareza e exatidão que a ciência. Um homem jovem,
miúdo, aplicado, de óculos, educado numa família ilustrada e burguesa,
numa cidade culta, trabalhadora, austera, acostumado desde pequeno a uma
vida serena, em harmonia com o mundo exterior, sem a menor sombra de
qualquer diferença que o separasse dos outros, nem mesmo sua condição de
judeu, já que na Itália, e mais ainda em Turim, um judeu era, aos olhos dos
outros e de si mesmo, um cidadão idêntico a qualquer um, mais ainda se
pertencia, como Primo Levi, a uma família laica, alheia à língua hebraica ou
a qualquer prática religiosa. Seus antepassados tinham emigrado da
Espanha em 1492. Deixou seu quarto, sua casa segura, onde havia nascido,
e provavelmente ao chegar ao portão estremeceu com o pensamento de que
não voltaria, e quando regressou, três anos depois, magro como uma
assombração, sobrevivente do inferno, deve ter sentido que na verdade
estava morto, que era o fantasma de si mesmo voltando à casa intocada, ao
portão idêntico, ao quarto agora estranho em que nada havia se modificado
durante sua ausência, em que nenhuma mudança visível teria se produzido
se ele tivesse morrido, se não houvesse escapado do lodaçal de cadáveres
do campo de extermínio.
De que quantidade mínima de pátria, de que dose de enraizamento ou de
lar um ser humano precisa, perguntava-se Jean Améry, lembrando-se de sua
fuga da Áustria em 1938, talvez na noite de 15 de março, no expresso que
saía às onze e quinze da manhã de Viena para Praga, de sua viagem
atribulada e clandestina pelas fronteiras da Europa até o refugio provisório
em Antuérpia, onde conheceu a incerteza absoluta dos judeus desterrados, a
hostilidade do nativo pelos estrangeiros, as humilhações da polícia e dos
funcionários que examinam papéis e atribuem ou negam autorizações e o
fazem voltar no dia seguinte e no próximo e olham o refugiado como a um
suspeito de um crime, o mais grave de todos, o de ter sido despojado da
nacionalidade que ele pensava inalienavelmente ser sua e não ser aceito de
todo em nenhuma outra parte.
Precisamos ao menos de uma casa onde nos sintamos seguros, diz
Améry, um quarto do qual não possa nos tirar com maus modos no meio da
noite, do qual não devamos fugir às pressas ao ouvir passos nas escadas e
apitos da polícia.
Você é quem viveu sempre na mesma casa e no mesmo quarto e
percorreu as mesmas ruas a caminho do trabalho onde permanece das oito
da manhã às três da tarde todo dia, de segunda a sexta, e também é quem
foge sem parar e não encontra amparo em parte alguma, quem atravessa
fronteiras à noite por trilhas de contrabandistas, quem viaja com
documentos falsos ou duvidosos num trem e permanece insone enquanto os
outros passageiros dormem ruidosamente ao seu lado, temendo que os
passos que se aproximam pelo corredor sejam os de um policial, calculando
o tempo que falta para chegar à fronteira, para que os homens de uniforme
que examinam seus documentos lhe indiquem com um gesto que você
espere aqui ao lado, e então os outros viajantes, os que têm passaportes em
ordem e nada temem, o olharão com cara de desconfiança, e também de
alívio, porque o infortúnio que caiu sobre você deixa-os ilesos, e eles
começam a ver no seu rosto os sintomas da culpa, do delito, da diferença,
ainda mais letal por não ser perceptível à primeira vista, e por ser
independente da vontade e dos atos da pessoa, marca que não se vê e no
entanto não se pode apagar, mancha indelével que não está no rosto nem na
presença externa, mas no sangue, o sangue do judeu ou do doente, o de
quem sabe que será expulso se sua condição for descoberta. Trancado no
seu quarto de doente, num sanatório para tuberculosos, Franz Kafka lembra
os comentários antissemitas feitos por outro doente na mesa do refeitório e
escreve uma carta incitado pela insônia e pela febre: A situação insegura
dos judeus, inseguros em si mesmos, inseguros entre os homens, explica
perfeitamente que acreditem que só lhes é dado possuir o que agarram com
as mãos ou entre os dentes, e que além do mais só essa posse do que está ao
alcance de suas mãos lhes dá algum direito à vida, e que aquilo que um dia
perderam jamais recuperarão, se afastará tranquilamente deles para sempre.
No quarto de um hotel em Port Bou, Walter Benjamin se matou porque
já não lhe restava outro caminho por onde continuar fugindo de seus
perseguidores alemães. A Jean Améry, quando a Gestapo predeu, quando
foi interrogado e em seguida torturado pelos SS, atribuíram duas
identidades possíveis de inimigo e de vítima: podia ser um alemão, desertor
do exército, e nesse caso o fuzilariam por traição após um conselho de
guerra; podia ser judeu, e então seria enviado para um campo de
extermínio. Jean Améry tinha sido preso em Bruxelas, onde ele e seu
grupinho de resistentes de língua alemã imprimiam panfletos e os jogavam
à noite nas proximidades dos quartéis da Wehrmacht, arriscando a vida em
troca da esperança fútil de que algum soldado alemão ficasse de consciência
pesada ao lê-los. Jean Améry, que na época se chamava Hans Mayer, foi
preso em maio de 1943. Primo Levi, uns meses mais tarde, armado com a
pequena pistola que não sabia manejar, tão daninha para o III Reich como
os panfletos de Améry. Nenhum dos dois havia professado o judaísmo, e
Primo Levi se considerava italiano acima de tudo, assim como Améry
nunca pensou até 1935 que fosse outra coisa senão um austríaco.
Mas os dois, ao serem presos, confrontados com a escolha de uma
identidade, escolheram declarar-se judeus, juntar-se ao número das vítimas
absolutas, condenadas não por seus atos nem por suas palavras, não por
professarem uma religião ou uma ideologia, não por jogarem panfletos que
não iam influenciar ninguém nem por se embrenharem na montanha sem
roupas nem sapatos de inverno e sem outras armas além de uma pistola
ridícula, e sim pelo simples fato de terem nascido.
Você é aquele que desde a manhã de 19 de setembro de 1941 tem de sair
para a rua usando bem visível sobre o peito uma estrela-de-davi preta sobre
um retângulo amarelo, tal como os judeus nas cidades medievais, mas agora
com todo tipo de instruções regulamentares sobre seu tamanho e disposição,
minuciosamente explicadas no decreto correspondente, que também prevê
sanções para quem sair sem a estrela ou tentar dissimulá-la, tapando-a, por
exemplo, com uma pasta ou com os embrulhos das compras, ou até com o
braço que segura um guarda-chuva. No gueto de Varsóvia, a estrela era
azul, e a braçadeira, branca.
Você é qualquer um e não é ninguém, é quem você inventa ou recorda
ou quem outros inventam e recordam, os que o conheceram há tempos, em
outra cidade e em outra vida, e guardaram de você uma imagem congelada
de quem você era na época, uma dessas fotos esquecidas que achamos
estranhas e até rejeitamos quando voltamos a vê-las ao fim dos anos. Você é
quem imaginava futuros quiméricos que agora lhe parecem pueris, e quem
tanto amou mulheres das quais agora nem se lembra, e quem se envergonha
de ter sido, e quem foi às vezes sem que ninguém soubesse. Você é o que os
outros, agora mesmo, em algum lugar, contam a seu respeito, o que alguém
que não o conheceu conta que lhe contaram, e o que alguém que o odeia
imagina que você é. Muda de quarto, de cidade, de vida, mas há sombras e
duplos seus que continuam morando nos lugares de onde você partiu, que
não deixaram de existir porque você já não vive neles. Em criança corria
pela rua imaginando que cavalgava, e era ao mesmo tempo o cavaleiro a
esporear o cavalo correndo a galope, e também o menino que via essa
cavalgada num filme, e no dia seguinte contava-o com fervor aos amigos
que não foram vê-lo no cinema de verão, e o que escutava outro contar
histórias ou filmes, com o olhar atento e as pupilas brilhantes, o que pede
mais uma história para que sua mãe não vã embora nem apague a luz, o que
termina de contar uma história a seu filho e vê nos olhos dele,
reconhecendo-se neles, todo o entusiasmo nervoso da imaginação, a
vontade de continuar escutando, e de que não se cale a voz afetuosa que
conta nem fique escuro no quarto rapidamente invadido pelas sombras do
medo.
Você muda de vida, de quarto, de cara, de cidade, de amor, mas mesmo
se despojando de tudo algo sempre permanece, que você carrega desde que
tem memória e muito antes de chegar ao uso da razão, o núcleo ou a medula
do que você é, do que nunca se apagou, não uma convicção nem um desejo,
mas um sentimento, às vezes amortecido, como uma brasa oculta sob as
cinzas da lareira da noite anterior, mas quase sempre muito agudo, pulsando
em seus atos e tingindo as coisas de uma duradoura distância: você é a
sensação do desarraigamento e da estranheza, de não estar totalmente em
lugar nenhum, de não compartilhar as certezas de pertencer a alguma coisa,
essas certezas que para outros parecem tão naturais ou tão fáceis, a
segurança com que muitos se acomodam ou possuem, ou se deixam
acomodar ou possuir, dando como óbvia a firmeza do chão em que pisam, a
solidez das próprias ideias, a duração futura de suas vidas. Você é sempre
um hóspede que não tem certeza de ter sido convidado, um inquilino que
teme ser expulso, um estrangeiro a quem falta um documento para
regularizar sua situação, um garoto gordinho e baixinho entre os fortes e os
brutos do pátio da escola, o rapaz lento de pés chatos entre os soldados do
quartel, o efeminado e retraído entre os agressivamente machos, o aluno-
modelo que por dentro morre de solidão e vergonha e gostaria de ser um
desses bagunceiros da classe que caçoam dele, o pai de família
embalsamado de tédio e rancor conjugal que olha de soslaio as mulheres
enquanto passeia de braço dado com a sua num domingo de tarde, por uma
rua de sua cidade do interior, o funcionário interino que não consegue um
contrato fixo, o preto ou o marroquino que pula de um barco clandestino
numa praia de Cádiz e, encharcado e morto de frio, adentra de noite num
país desconhecido, fugindo dos faróis e das lanternas dos policiais da
Guardia Civil, o republicano espanhol que cruza a fronteira da França em
janeiro ou fevereiro de 1939 e é tratado como um cachorro ou um leproso e
enviado a um campo de concentração, a uma praia selvagem, trancado
numa geometria sinistra de barracões e cercas de arame farpado, a
geometria e a geografia natural da Europa desses anos, desde as praias
infames de Argelès-sur-Mer onde se amontoam como gado os republicanos
espanhóis até os últimos confins da Sibéria, de onde regressou viva
Margarete Buber-Neumann para ser enviada, não à liberdade, mas ao
campo alemão de Ravensbrück.
Você é o que não sabe que poderia ser se fosse posto para fora de sua
casa e de seu país, se fosse preso por uma patrulha da Gestapo enquanto
lançava panfletos ao amanhecer numa rua de Bruxelas e o pendurassem
num gancho preso às algemas que prendem suas mãos às suas costas, de
modo que quando se levanta a corrente e seus pés saem do chão e você
ouve o ruído das articulações do seu braço se desconjuntando, se fosse
trancado num vagão de gado onde há outras quarenta e cinco pessoas e
tivesse de passar ali dentro cinco dias inteiros de viagem, e escutasse de dia
e de noite o choro de uma criança de colo que a mãe não pode amamentar
nem calar e você tivesse de lamber o gelo que se forma nos interstícios das
tábuas do vagão, porque nos cinco dias não se distribui alimento nem água,
e quando afinal a porta se abre numa noite gelada você vê à luz dos
refletores o nome de uma estação que nunca viu nem escutou antes e que
nada lhe sugere, só uma forma aguda de terror, Auschwitz. Ninguém sabe
de antemão se vai ser covarde ou corajoso quando chegar a hora, disse-me
meu amigo José Luis Pinillos, que numa vida remota, quando era um rapaz
de vinte e dois anos, lutou com uniforme alemão na frente de Leningrado: a
gente não sabe se, quando vir chegar o inimigo, pulará para cima dele ou
ficará paralisado, branco como um cadáver, literalmente cagando-se pelas
pernas abaixo. Não sou quem eu era na época, e estou muito longe das
ideias que para lá me levaram, mas tem algo que sei e aprecio saber, sei que
fui insensato e temerário, mas não fui covarde, e sei também que não é
mérito meu ter sido assim, pois outros o foram, inclusive alguns que
bancavam os valentões antes que começassem a zunir os disparos. Mas
também estou vivo, e outros morreram, valentes ou covardes, e muitas
noites, quando não consigo dormir, lembro-me deles, creio que voltam para
me pedir que não os esqueça, dizer que existiram.
Você não sabe o que teria sido, o que poderia ser, mas sabe o que de um
modo ou de outro sempre foi, visivelmente ou em segredo, na verdade e
também nos devaneios da imaginação, embora talvez não aos olhos dos
outros. E se você fosse de fato o que os outros percebem, e não o que você
imagina ser, tal como não é quem você vê no espelho, assim como a sua voz
não soa como você a escuta? Hans Mayer, nacionalista austríaco, filho de
mãe católica, ele mesmo agnóstico, apaixonado por literatura e filosofia,
vestindo nos dias de festa a calça curta com peitilho e as meias três-quartos
do traje folclórico, louro, de olhos claros, compreendeu que era judeu não
porque seu pai fosse, nem porque algum traço físico ou costume ou crença
religiosa determinassem essa filiação, mas porque outros decretaram que
ele era, e a prova indelével de seu judaísmo acabou sendo o número de
prisioneiro tatuado no antebraço. Em seu quarto de Praga, na casa de seus
pais, em seu escritório da companhia de seguros contra acidentes de
trabalho, nos quartos dos sanatórios, no quarto do hotel da cidade
fronteiriça de Gmünd onde aguardava a chegada de Milena Jesenska, Franz
Kafka inventou antecipadamente o culpado perfeito, o réu de Hitler e de
Stahn, Josef K., o homem condenado, não porque tenha feito alguma coisa,
ou porque tenha se distinguido por qualquer coisa, mas porque foi
designado culpado, e não tem defesa por não saber qual é a acusação, e,
quando vão executá-lo, em vez de revoltar-se acata mansamente a vontade
dos verdugos, inclusive com vergonha de si mesmo.
Você pode acordar uma bela manhã na hora ingrata do trabalhador que
madruga e descobrir com menos estranheza do que vergonha que se
transformou num enorme inseto, pode entrar no café de todos os dias
achando que nada mudou em você nem no mundo exterior e comprovar no
jornal que já não é quem pensava ser e não está a salvo da perseguição e da
infâmia. Você pode chegar ao consultório do médico achando-se
invulnerável à morte, titular de um tempo de vida praticamente ilimitado, e
sair meia hora depois sabendo que tem algo que o afasta e o separa dos
outros, embora ainda ninguém possa perceber no seu rosto, algo que, ao
contrário deles, que se imaginam eternos, você carrega consigo, dentro de
si, pela mesma rua por onde veio tão despreocupado, uma sombra que eles
não veem e na qual não pensam, embora ela também os ronde e os espere.
Você é o médico que aguarda na penumbra de seu consultório o paciente a
quem deve dar a notícia de sua doença, e teme o momento da chegada e o
das palavras neutras necessárias, mas sobretudo você é o outro, o doente
que ainda não sabe, que ainda vem tranquilamente por uma rua habitual
matando tempo porque chegou cedo à hora marcada, folheando um jornal
que acaba de comprar e que ficará esquecido na mesinha da sala de espera,
um jornal com uma data igual a qualquer outra na sucessão dos dias e que,
contudo, marcará a fronteira, o antes e o depois, o último dia de uma vida e
o começo de outra em que você já não pode ser o mesmo, em que se
lembrará de quem foi até esse momento como de alguém mais distante de
você do que um desconhecido.
Você é quem sobe a escada com o jornal debaixo do braço, quem por
pouco não esqueceu a hora da consulta, e quase a desmarcou, de tão trivial
parecia a prescrição dos exames, o resultado, você é quem empurra a porta
do consultório e dá seu nome à secretária, sem saber que esse nome já não
designará a mesma pessoa, você é quem se acomoda num sofá da sala de
espera e olha o relógio sem saber que está marcando os últimos minutos de
sua antiga vida, quem ainda imagina que possui um patrimônio intacto de
tempo futuro, virtualmente ilimitado, uma garantia de vigor e saúde. Você
olha o relógio, cruza as pernas, abre o jornal, no consultório de um médico
ou num café de Viena em novembro de 1935, e então acontece algo que vai
mudar para sempre a sua vida, expulsá-lo da normalidade e do país aos
quais você imaginava pertencer, e nos quais de repente você sabe que é
estrangeiro. Você é o hóspede de um hotel que uma noite acorda com um
acesso de tosse e de repente cospe sangue.
No jornal você lê as leis de pureza racial que acabam de ser
promulgadas em Nuremberg e descobre que, mesmo sem parecer nem ter
pensado ou desejado um dia, você é um judeu e está fadado à perseguição e
ao extermínio. A secretária aparece sorrindo na porta da sala de espera e diz
que o doutor já está pronto para recebê-lo, e quando você se levanta para
segui-la deixa sobre a mesa o jornal que não começou a ler, e ao sair do
consultório, transformado em outro, já não se lembrará de apanhá-lo. Um
dia, ao acordar, Gregori Samsa se viu transformado num enorme inseto. As
vezes eu cruzava nas ruas da cidade que imaginava ser a minha com judeus
pobres emigrados do Leste, com seus abrigos compridos de brilho
gordurento e seus chapéus pretos, nas têmporas os cachos muitos suados, e
eles me davam certa repugnância, e eu me sentia aliviado por não ser igual
a eles, não ter nenhuma semelhança com aquelas figuras obstinadamente
singulares e arcaicas que se moviam pelas ruas desertas de Viena tal como
pelas aldeias da Polônia, da Galícia ou da Ucrânia das quais emigraram.
Ninguém me confundirá com um deles, pensava, ninguém impedirá a
minha entrada num parque ou num café, nem fará caricaturas grosseiras na
imprensa marrom que publica diariamente calúnias e diatribes contra os
judeus. Mas agora sei que mesmo se meu aspecto exterior não permite
adivinhar, mesmo se tenho cara de saúde e ar de respeitabilidade, estou tão
marcado quanto eles. Você é o que outros veem em você, e transfigura-se
diante dos olhos deles, e o homem saudável e louro que lê o jornal num café
de Viena, numa manhã de domingo, vestindo calça curta e meias três-
quartos e peitilho tirolês, e será muito breve, aos olhos do garçom que o
serviu tantas vezes, tão repulsivo como o judeu pobre e ortodoxo que é
humilhado, por diversão, pelos jovens de braçadeiras vermelhas e camisas
pardas, e você viajará com ele num vagão de gado e acabará tendo
exatamente o mesmo ar de cadáver ambulante nos lamaçais do campo de
extermínio, vestindo agora o mesmo boné e o mesmo uniforme listrado e
compartilhando no final a mesma morte por asfixia, a escuridão e o pânico
na câmara de gás. Você é o que não sabia e o que talvez o médico tenha
adivinhado ao vê-lo pela primeira vez, com seu olhar especialista em
elucidar o que ainda permanece secreto, o médico que brinca com uma
concha branca entre os dedos e segura também discretamente o mouse do
computador, procurando no arquivo os dados que confirmam a sua opinião,
a condenação segura, o nome que nenhum dos dois pronuncia. Quando você
chega à rua, depois de uma hora no máximo, de início ofuscado pelo sol,
pois seus olhos se habituaram à penumbra do consultório, a cidade já não é
a mesma que pensava conhecer, e agora os homens e as mulheres que
cruzam com você já não são seus semelhantes, e até a textura da realidade
mudou, embora superficialmente permaneça idêntica, tal como o seu rosto e
o seu aspecto geral são os mesmos quando você os vê de soslaio no espelho
de uma vitrine. Você anda pela cidade que já não é sua com uma sensação
de amargo despertar, de ter aberto os olhos para a luz estranha do
amanhecer e descoberto com menos assombro do que vergonha que se
transformou em algo inusitado, num grande inseto, num doente, em alguém
que sabe que vai morrer; mas a sensação também é a de estar sonhando, a
de se mover no interior de um pesadelo, mais sinistro porque todas as coisas
que aparecem nele são as coisas normais, e os lugares de cada dia, e a luz é
a de uma manhã ensolarada em Madri. Você anda por uma calçada familiar
de Berlim pisando nos vidros das vitrines apedrejadas durante a noite,
cheirando a gasolina com que foram queimadas as lojas dos seus vizinhos
judeus. E agora cai sobre você, retorna inundando-o do mais distante
passado, o sentimento da estranheza e da distância, a suspeita amarga e
depois confirmada de não pertencer ao mesmo mundo, à normalidade dos
outros, e junto com a estranheza e a distância, inseparável delas, volta ou
chega o medo, não o desagrado abstrato diante da ideia de morrer, mas um
princípio de vertigem ou de fragilidade que estremece todo o seu corpo,
enfraquece ligeiramente os seus joelhos, o pânico diante da iminência da
morte, que o separa dos outros, que o isola enquanto você caminha agora
mesmo como por uma cela invisível, enquanto passa perto da mesma banca
onde comprou, na vinda, o jornal que só agora se lembra de ter deixado
entre as revistas da sala de espera, aberto e não lido, o jornal de folhas
grandes presas por um bastidor de madeira envernizada que o garçom do
café recolhe da mesa junto com uma xícara vazia e um cinzeiro com
guimbas.
Depois você se lembrará das manchetes, a foto do chanceler Hitler num
estrado de Nuremberg, gesticulando diante de uma panóplia de bandeiras e
águias, as letras grandes que anunciavam o seu futuro destino, que
atribuíam a você uma identidade de empesteado, ainda ignorada por
qualquer pessoa que cruzasse com você nessa cidade em que desde há
pouco tempo você sabe que é um estrangeiro, embora ainda não o obriguem
a usar uma estrela amarela na lapela, ou uma braçadeira branca com uma
estrela azul. De agora em diante você andará pela cidade identificando os
seus semelhantes sem que eles saibam e desviando o olhar para que a
vergonha e o remorso não oprimam o seu coração, ainda fingindo, enquanto
lhe for possível ou permitido, que você pertence ao reino dos outros, os
bons cidadãos arianos que não têm nada a temer e breve começarão a negar-
lhe o cumprimento na escada ou a fingir que não o veem, os de linhagem e
sangue limpo, fortalecidos pela convicção de serem saudáveis, certos de
que estão a salvo, de que nunca figurarão na lista dos possíveis doentes e
vítimas.
Você é Jean Améry vendo uma paisagem de prados e árvores pela janela
do carro que o leva preso ao quartel da Gestapo, você é Evgenia Ginzburg
ouvindo pela última vez o ruído peculiar da porta de sua casa sendo
fechada, e nunca voltará a essa casa, você é Margarete Buber-Neumann que
vê a esfera iluminada de um relógio na madrugada de Moscou, minutos
antes de a caminhonete levá-la presa para a escuridão da prisão, você é
Franz Kafka descobrindo com espanto, estranheza, quase com alívio, que o
líquido quente que está vomitando é sangue. Você é quem olha sua
normalidade perdida do outro lado do vidro que o separa dela, quem entre
as frestas das tábuas de um vagão de deportados olha as últimas casas da
cidade que você acreditou ser sua e à qual nunca voltará.
Narva

Ao voltar para casa procurei nas enciclopédias esse nome que nunca
tinha ouvido antes, mas que na imaginação já vinha repetindo durante o
trajeto no táxi, e que de início não tinha escutado bem, porque meu amigo
não fala muito alto e sua voz às vezes se perdia na barulheira do restaurante
onde fomos almoçar. É novembro e as tardes já são muito mais curtas, e o
horário de inverno, ainda tão recente, traz de súbito um anoitecer
antecipado, um crepúsculo que nas ruas mais estreitas e escuras estava
quase começando quando nos despedimos, na porta do prédio onde ele
mora, um edifício de apartamentos modernos que de certa forma não
combina com seu temperamento nem com sua idade, nem com a vida que
teve. Quem poderia adivinhar a vida desse homem olhando-o um instante
ao cruzar com ele na rua ou na entrada desse prédio anônimo, como eu teria
cruzado se não o conhecesse: um velho vigoroso, com olhos pequenos e um
olhar vivíssimo, mas já um tanto curvado, de cabelo muito branco, liso,
ralo, como o de Spencer Tracy na velhice, ou como o de meu avô paterno,
que também esteve numa guerra, mas evidentemente não como voluntário,
e talvez não tenha chegado a saber muito bem por que o levavam, nem
entendido a magnitude do cataclismo que arrastou sua vida, da qual a
minha, se paro para pensar, é em parte um eco distante.
Meu amigo tem oitenta anos, quase a idade de meu avô paterno ao
morrer, mas não pensa na morte, diz-me, tal como não pensava quando
estava na frente russa no inverno de 1943, um sargento muito jovem que
breve seria promovido a tenente por méritos de guerra e ganharia uma Cruz
de Ferro. Não se pensa na morte quando se tem vinte anos e a todo instante
se está prestes a morrer, quando se avança com uma pistola na mão pela
terra de ninguém e de repente se recebe na cara e no uniforme jorros de
sangue de alguém que ia ao seu lado e acaba de ser atingido por uma rajada
de metralhadora, e no instante seguinte é um despojo de vísceras jogado na
lama: não se pensa na morte, mas no frio que faz, ou no rancho que custa a
chegar, no sono, porque na guerra o pior era o frio e a falta de sono, diz meu
amigo, e bebe um gole curto e reflexivo de vinho, sentado na minha frente,
mais velho"que qualquer dos fregueses do restaurante, todos homens, quase
idênticos em suas idades e em seus ternos de executivos médios, alguns
conversando num inglês escasso mas desenvolto, nesse tom alto demais que
é costume adotar num local público quando se fala no telefone celular.
Conversas se cruzam com a nossa, apitos e musiquinhas de telefones
celulares, ruídos de pratos e copos, e tenho de me esforçar para não perder
uma parte das palavras que diz meu amigo, inclino-me para ele por cima da
mesa, especialmente quando fala um nome estrangeiro, o de um general
alemão ou de um setor russo da frente, o nome dessa cidade cuja existência
até então eu desconhecia, uma das tantas cidades do mundo das quais
jamais se ouvirá falar, assim como tanta gente não sabe nem o nome de
minha pequena cidade natal, tão prolixamente real para mim, tão minuciosa
em sua existência, em seu total de vivos e mortos, de vivos que já não vejo
quase nunca e de mortos que vão ficando cada vez mais para trás no
esquecimento, embora ocasionalmente voltem de repente, como voltou meu
avô paterno, falecido há mais de catorze anos.
Lembro-me da frase de Pascal, mundos inteiros nos ignoram. E no
entanto essa cidade estrangeira vai assumindo uma presença em minha
imaginação, graças ao meu amigo, que pronuncia seu nome num restaurante
de Madri: a primeira vez que a mencionou, não prestei atenção, porque
estava mais interessado na história que ele ia contando, e depois tornou a
dizê-lo e não entendi, talvez porque um fragmento de conversa na mesa ao
lado ou o sinal tão agudo de um telefone celular nos perturbaram. Portanto,
interrompi seu relato e voltei a perguntar o nome da cidade, da qual até
então só tinha entendido que fica na Estônia. Mas quem pode imaginar
como é a Estônia, o que há por trás desse nome, dentro dele, como no
interior daquelas pequenas redomas de vidro com paisagens nevadas que
havia antigamente nas casas, com a neve caindo quando eram sacudidas: a
neve também cai no inverno dessa cidade estoniana, uma cidade pequena,
diz meu amigo, no interior, à beira de um rio com o mesmo nome dela,
Narva, o rio Narva, por onde desciam grandes blocos de gelo, diz-me,
lembrando-se de repente, e esse pormenor resgatado permite-lhe saber que
foi no início do inverno que ele chegou à cidade.
Depois voltei de táxi para casa, da ensolarada vastidão outonal do oeste
de Madri até as ruas já sombrias do centro, nas quais a noite está mais perto,
a noite e também o frio um tanto úmido dos fins de tarde no inverno, névoa
e umidade e cheiro de bosque no caminho percorrido à beira de um rio que
está começando a congelar e desemboca no Báltico treze quilômetros mais
longe da cidade que leva seu nome. Ia num táxi por Madri mas viajava
pelas lembranças e pelos lugares que meu amigo tinha me relatado, nos dez
ou quinze minutos da corrida cabiam tantos anos distantes como na vida de
alguém, assim como na Madri que eu mal olhava pela janela também podia
ver a capital escura e em ruínas a que meu amigo retornou após suas
aventuras na guerra da Europa, já descrente, mas ainda não de todo
desiludido, guardando com pudor e orgulho sua Cruz de Ferro, que ainda
conserva como um talismã da juventude já longínqua, quase improvável na
distância.
Ouvia sem prestar atenção as vozes do rádio do táxi e a diatribe do
taxista contra alguma coisa, contra o governo ou contra a situação do
trânsito, mas pensava nesse nome, soletrava-o sem dizê-lo, fixava-me o
objetivo de procurá-lo na Enciclopédia Britânica quando chegasse em casa,
Narva, onde meu amigo esteve em 1943 e aonde voltou trinta anos depois
com a intenção algo impraticável de encontrar alguém, uma mulher que
tinha visto uma só vez, numa noite, durante um baile para oficiais alemães a
que foi convidado por ser um dos poucos espanhóis da Divisão Azul que
falava alemão, e também por gostar de Brahms e, em determinado
momento, ter cantarolado um trecho melódico de sua Sinfonia n2 3: a
guerra era feita de acasos assim, de correntes de casualidades que
arruinavam ou salvavam uma pessoa, e sua vida podia depender, não de seu
grau de heroísmo, cautela ou astúcia, mas de se abaixar para amarrar uma
bota um segundo antes que chegasse uma bala ou um estilhaço de metralha
no ponto do ar onde tinha estado sua cabeça, ou de trocar com um
companheiro seu turno numa patrulha de exploração da qual ninguém
voltaria vivo. Ele tinha se salvado assim muitas vezes, escapando por um
triz da desgraça que se abatia sobre outros, por casualidades, por frações de
segundo: quem sabe se ao ir para essa cidade da Estônia com uma
permissão de dois dias também não tinha evitado uma ocasião segura de
morrer, se a melodia tão querida de Brahms, na época um dos nomes
sagrados sobre os quais ele fundava seu amor pela Alemanha, não tinha
mudado sutilmente o curso de sua vida, não só preservando-a como
obrigando-o também a começar a abrir os olhos, a descobrir um espanto
para o qual nada o havia preparado, e que lhe deixou marca muito mais
duradoura que a vertigem insensata da coragem e do perigo.
Tinham feito uma inspeção no nosso setor e o comandante do meu
batalhão me pediu que fosse como guia dos oficiais alemães. Acompanhei-
os durante vários dias, e embora os alemães não confiassem muito em nós,
um deles, um capitão quase da minha idade, simpatizou comigo, e tudo
porque eu gostava de Brahms, olhe o tipo de coisa que acontecia na guerra,
íamos andando calados, os três oficiais alemães e eu, perto de um parapeito
entre dois ninhos de metralhadoras, num desses dias calmos em que, pelo
visto, nada se moveria na frente de batalha, e sem me dar conta eu
cantarolava. Então o capitão começou a cantarolar a mesma melodia, mas
não de qualquer jeito, e sim com todas as suas notas, e foi andando mais
devagar, para melhor usufruir a lembrança da música. Meu amigo também
cantarola, de boca fechada e revirando os olhos, e consigo acompanhar a
música muito mais claramente do que diversas palavras suas, apesar do
barulho do restaurante, das vozes e dos talheres e dos telefones celulares:
logo a reconheço porque também gosto muito dela, uma melodia poderosa e
sentimental que lembra música de cinema, uma dessas músicas de cinema
que já existiam antes que o cinema existisse. Finalmente me deu o estalo,
antes que algum alemão me dissesse, o terceiro movimento da Sinfonia nº 3
de Brahms. Os outros dois oficiais tinham ficado para trás, um apontando
para o outro, talvez se reprovando alguma deficiência nas defesas
espanholas, e o capitão, ao meu lado, revirava os olhos e balançava
levemente a cabeça, e com a mão direita parecia desenhar a música no ar, o
dedo indicador enluvado de preto era a batuta com que dirigia a si mesmo, e
me mostrava as linhas onduladas da melodia, a repetição de um tema
tristíssimo, que parece ao mesmo tempo a expressão máxima da dor e seu
consolo mais misericordioso. Contou-me que na vida civil era professor de
filosofia num Gimnasium e tocava clarinete na orquestra de sua cidade e
num conjunto de câmara. Mencionei então o quinteto para clarinete de
Brahms e o alemão se emocionou chegando às raias de uma afetação um
tanto embaraçosa, mas essas não foram as palavras exatas que meu amigo
disse: de repente notei, diz ele, que tinha jeito de bicha, como vocês dizem
agora, apesar do uniforme e de ser alto e forte, disse-me que, quando tocava
esse concerto, em certos trechos custava a conter as lágrimas, ficava sem
fôlego para continuar soprando o clarinete. Era sempre como se tocasse
essa música pela primeira vez, e cada interpretação era mais profunda, mais
difícil, mais triste, com todo o peso da vida de Brahms. Só havia outro
quinteto para clarinete que ele apreciava tanto como o de Brahms: logo
adivinhei e disse, o de Mozart, e a emoção da música recordada e da
cumplicidade estabelecida entre nós animou-o a dizer, baixando o tom de
voz, que também gostava muito de Benny Goodman, embora na Alemanha
já fosse impossível encontrar discos seus. Mas então os outros oficiais se
juntaram a nós, e o capitão mudou de cara, voltou a ficar tão rígido como
antes, tão militar quanto os outros, e não tornou a me falar de música, quase
não me dirigiu a palavra até nos despedirmos. Eram muito estranhos
aqueles alemães, diz meu amigo, nunca se sabia o que passava pela cabeça
deles, o que estavam pensando ou sentindo quando olhavam para alguém
com aqueles olhos tão claros, aquela dedicação e aquela intensidade que
punham em tudo. O fato é que semanas mais tarde o comandante de meu
batalhão me chamou para dizer que eu teria uns dias de folga, porque os
oficiais alemães que acompanhei como guia e intérprete tinham ficado
muito contentes comigo e pedido que eu fosse autorizado a ir a uma festa
nessa cidade da retaguarda, Narva. Na estação fui recebido pelo capitão
louco por Brahms e Benny Goodman. Lembro-me de que entramos na
cidade por uma estrada perto de um rio, à beira de um bosque, e de que
ainda havia um pouco de sol, se bem que já começasse a fazer muito frio.
Quem não viveu as coisas exige detalhes que, para o narrador
verdadeiro, não têm importância: meu amigo fala do frio e dos blocos de
gelo boiando rio abaixo, mas minha imaginação acrescenta a hora e a luz da
tarde, a mesma que havia na rua quando saímos do restaurante, e os pesados
capotes cinza com lapelas largas dos uniformes alemães, assim como a
envergadura tão desigual dos dois homens, o espanhol meio mirrado, pelo
menos em comparação com o capitão apaixonado por clarinete, os dois de
luvas pretas, quepes de viseiras pretas, golas levantadas contra o frio,
falando de música, lembrando passagens tristes de Brahms e Mozart,
canções de George Gershwin interpretadas pela orquestra de Benny
Goodman, que havia anos não tocava nas estações de rádio alemãs.
Então vi algo que jamais esqueci. Meu amigo deixa na mesa o garfo e a
faca, toma um gole de vinho com um desses gestos vivos e meio furtivos
com que vou me acostumando, tão estranhos num homem de oitenta anos,
essa vivacidade como de quem tem na vida muitas tarefas pela frente,
coisas para aprender, livros a resenhar para revistas especializadas em sua
profissão, na qual ele é uma eminência internacional, compromissos,
viagens ao estrangeiro. Fica muito sério e fala me fitando com seus olhos
pequenos e emboscados debaixo das sobrancelhas brancas e das rugas das
pálpebras, mas não creio que esteja me vendo, ou que esteja totalmente no
mesmo lugar e no mesmo tempo que eu, num restaurante em Madri, com
barulho de vozes e apitos de telefones celulares. Vi chegando em nossa
direção um cortejo de gente que enchia toda a largura da estrada, só
homens, alguns quase crianças e outros tão velhos que andavam
cambaleando e se apoiavam mutuamente. Iam andando ordenadamente,
juntinhos mas em formação, todos calados, cabeças baixas, como nesses
enterros que víamos passar pelas ruas estreitas dos vilarejos, e os que
encabeçavam a marcha seguravam alguma coisa na frente deles, um pau
horizontal como essas cancelas dos postos fronteiriços, do qual pendia um
rolo de arame farpado que devia arranhar as pernas deles quando andavam.
Ouviam-se os passos e o ruído do arame ao arrastar no chão, e o dos fuzis
dos guardas ao roçarem em seus uniformes. O alemão e eu também ficamos
calados e nos afastamos para um lado da estrada. Havia muitos homens, não
sei quantos, talvez algumas centenas, vigiados por uns poucos soldados SS,
e a cada cinco ou seis fileiras levavam outras barras horizontais com rolos
de arame farpado, imagino que para agarrar quem quebrasse a formação ou
tentasse fugir.
Nunca tinha visto rostos tão magros e tão pálidos, nem mesmo os dos
prisioneiros russos, nem aquele jeito de andar desses homens, marcando o
passo mas arrastando os pés, olhando para o chão e de ombros encolhidos.
Lembro-me de um velho de barba comprida e muito branca, mas sobretudo
de um jovem, que ia na primeira fila, no meio, muito alto, amarelo, com
cara de morto, com um desses abrigos compridos que se usavam na época e
um chapéu azul-marinho, é como se o estivesse vendo, assim como vejo
você, com um pincenê, e o rosto muito escuro de barba, nem disso me
esqueci, não porque estivesse havia dias sem se barbear, mas por ter a barba
muito cerrada, mais escura ainda em contraste com a palidez do rosto. Foi o
único que levantou um pouco a cabeça, mas não muito, e ficou me olhando,
passava ao meu lado e ia se virando para mim, só para mim, torcendo o
pescoço tão comprido, com o gogó muito saliente, e não olhava para o
alemão. Virou a cabeça e continuou me olhando entre as cabeças encolhidas
dos outros, como se quisesse me dizer alguma coisa só com os olhos, que
pareciam maiores no rosto tão macilento e tão magro.
Eles continuariam a escutar o ruído multiplicado e monótono dos passos
quando a coluna de prisioneiros os deixou aos poucos para trás,
confundindo-se com o rumor da correnteza do rio. Os dois homens ficaram
calados, o capitão alemão e o espanhol recém-promovido a tenente, os dois
parecendo iguais por causa dos capotes cinza e dos quepes com abas pretas
que tapavam seus olhos. Já teria desaparecido a luz do sol e o frio estaria
mais intenso e mais úmido, e dentro do bosque, mais para longe da estrada,
a noite já estaria avançando, como no fundo de certos becos do centro de
Madri quando ainda há sol nas janelas dos edifícios mais altos, no azul puro
e gelado de novembro.
Meu amigo, intrigado com o que tinha visto, perguntou ao alemão quem
eram aqueles homens, e o outro ficou ao mesmo tempo surpreso e achando
graça, surpreso com sua ignorância, achando graça de sua ingenuidade de
oficial jovem, quase recém-chegado à guerra, de espanhol rude ainda não
totalmente digno de ser admitido na superior fraternidade alemã, apesar da
pureza de seu sotaque, de sua coragem na frente de batalha e de sua
devoção a Brahms: Juden!, meu amigo se lembra de ter ouvido do alemão,
que ao pronunciar essa palavra mostrou no rosto, por alguns segundos, uma
expressão inusitada, como se o fizesse participar de um segredo picante, de
uma piada grosseira de quartel. Ouço, agora repetida, essa palavra, Juden, e
meu amigo imita o tom e a expressão de sarcasmo e desprezo do alemão,
que lhe deu uma cotovelada e piscou um olho, novamente ambíguo, tal
como ao rememorar a melodia de Brahms fingindo roçá-la com as pontas
dos dedos, mas agora com uma expressão vulgar, desconhecida, radiante,
com a comicidade reles típica das bebedeiras ou dos bordéis.
Na época, eu não sabia de nada, mas o pior é que me negava a saber,
não via o que estava diante dos meus olhos. Eu tinha me alistado na Divisão
Azul porque acreditava fanaticamente em tudo o que nos contavam, não
quero esconder nem quero me desculpar, acreditava que a Alemanha era a
civilização, e a Rússia, a barbárie, as estepes da Ásia de onde tinham vindo
durante séculos todos os invasores selvagens da Europa. Ortega tinha dito: a
Alemanha é o Ocidente, e nós acreditávamos porque ele dizia.
A Alemanha era a música que me emocionava, o alemão era o idioma
da poesia e da filosofia, do direito e da ciência. Você não sabe com que
paixão estudei alemão em Madri, antes da nossa guerra, como me
envaidecia quando os alemães para quem servia de intérprete na Rússia
elogiavam meu sotaque. Mas essa palavra alemã, dita nesse tom, Juden, foi
como um chiado desagradável, o aviso de alguma coisa que até então eu
tinha me negado a ouvir, embora certamente tivesse ouvido muitas vezes, já
lhe disse que não quero me desculpar, não posso dizer o que muitos
disseram depois, que não sabiam, que não chegaram a saber de nada. Não
sabíamos porque não estávamos dispostos a saber. Mas, mesmo que
conseguisse me esquecer do tom do oficial alemão dizendo Juden e da cara
daquele homem de óculos torcendo o pescoço para continuar me olhando na
estrada de Narva, eu já não tinha a possibilidade de continuar sendo
inocente, ou de me julgar inocente. A gente pode se esforçar em não saber,
pode fechar os olhos e não querer abri-los, mas, uma vez que abre, o que os
olhos viram já não se pode apagar, não se pode dar marcha a ré no tempo e
fazer como se não existisse o que se escutou.
Primeiro, foi essa palavra, Juden. Mas depois, menos de duas horas
mais tarde, encontrou aquela mulher no baile, uma ruiva lindíssima, de
olhos verdes, ela entrou no salão cheio de gente, barulho, música, e ele logo
a distinguiu tão nitidamente como se não houvesse mais ninguém, e no
primeiro olhar que trocaram soube que não era alemã, assim como ela
adivinhou que, apesar do uniforme, ele não parecia nada com os outros
militares, não olhava nem andava como eles. A cidade deveria estar no
escuro, quase sem luzes nas esquinas, uma cidade báltica no inverno da
guerra, ocupada pelo exército alemão, submetida ao toque de recolher,
atravessada por um rio que muito breve começará a congelar, e do qual sobe
uma neblina que molha os paralelepípedos e os trilhos dos bondes e dá mais
densidade à luz dos faróis dos veículos militares.
Mas meu amigo não me conta como era o lugar onde se passava o baile,
e eu, sem perguntar, vou imaginando enquanto o escuto falar, talvez um
desses edifícios oficiais que vi nos países nórdicos, colunas brancas e
estuques de um amarelo pálido: uma praça de calçamento de pedra, com os
paralelepípedos brilhando na umidade da noite, atravessada por trilhos e
cabos de bondes, e no fundo aquela mansão particular requisitada ou o
prédio público, o único onde há janelas iluminadas, e de onde a música
irradia para a praça com o mesmo brilho inusitado da luz elétrica nos
grandes lustres barrocos do salão de baile. Luz repentina e ofuscante na
cidade escura, música no silêncio atemorizado das ruas.
Para quem vinha da frente de batalha, aquele lugar teria uma irrealidade
resplandecente como de miragem cinematográfica, a raridade de uma
normalidade civil esquecida que ainda existe embora o soldado mal consiga
recordá-la. Mas meu amigo continua contando, tão alheio a esse tipo de
detalhe como ao sabor da comida que belisca sem se importar com as
gargalhadas dos executivos de estabelecimentos bancários que, na mesa ao
lado, festejam alguém ou brindam em espanhol e em inglês o êxito de uma
operação financeira. Ele apaga tudo, o salão de baile de 1943 e o restaurante
deste instante, o som da orquestra e dos telefones celulares, o brilho dos
galões nos uniformes alemães e o estalo das botas pretas sobre o soalho
reluzente, os saltos batendo com força no chão à guisa de cumprimento, a
humilhação que deve ter sentido ao se encontrar entre tantos desconhecidos,
quase todos militares de patente mais alta que a dele. A única coisa que
permanece em seu relato é a figura da mulher com quem dançou, e que nem
sequer tem nome na sua lembrança, ou talvez meu amigo o tenha dito e não
consegui escutar, e agora estou tentado a inventar um nome para ela, Gerda
ou Grete, ou Anicka, Anicka chamava-se uma mulher que foi amiga de
Milena Jesenska no campo de extermínio.
Fixei-me nela assim que entrei no salão. Havia oficiais do exército e dos
SS, uniformes azuis da Luftwaffe. Entre todos aqueles militares eu era o
único não-alemão.
Talvez por isso a mulher tenha ficado me olhando quando passei perto
dela, assim como, antes, já tinha reparado que ela não era alemã. Uma ruiva
alta com um vestido decotado, de um tecido muito leve, meias de seda um
perfume no cabelo e na pele que eu gostaria de cheirar de novo antes de
morrer. Você ainda é muito moço e não sabe que há coisas que o tempo não
apaga. Quanto tempo se passou calcula mentalmente meu amigo, absorto,
com o sorriso agarrado a uma lembrança cuja doçura as palavras não
conseguem transmitir: cinquenta e seis anos, e era novembro, como agora, e
ele conserva intacta a sensação de abraçar a cintura dela reparando sob o
tecido na firmeza suave de um corpo mais desejável ainda após tanto tempo
sem mulheres.
Estava em pé, muito séria, perto de um homem corpulento, vestido à
paisana, com um terno vistoso de risca de giz, e pelo modo de falarem sem
se olhar tinham, ele e ela, um jeito de casal entediado. Meu amigo não me
explica se custou a vencer a timidez, se dançou com outras mulheres antes
de se aproximar dela, e como não está inventando uma história não tem
necessidade de episódios intermediários, de me dizer que fim tinha levado o
capitão que o acompanhava. Agora mesmo, em sua memória, está sozinho
com a mulher ruiva, como contra um fundo preto, e a mulher nem tem
nome, pois meu amigo o esqueceu ou não o entendi, e não quero atribuir-
lhe um, um nome de mulher que tivesse um destino idêntico ao que
certamente esperava por ela.
Dançavam e ela sussurrava em seu ouvido, inclinando-se um pouco
sobre ele, mas ao mesmo tempo olhando para outro lugar, com um ar
distraído de formalidade, como se estivessem num daqueles salões do
tempo em que os homens pagavam para dançar com as mulheres durante os
dois ou três minutos de uma canção. Tinha ido tão longe para encontrar essa
mulher, tinha atravessado toda a extensão da Europa e a devastação e a
lama da Rússia e lutado no cerco de Leningrado para tê-la nos braços e
apertá-la gradualmente contra sua cintura enquanto cheirava seu cabelo e
sua pele e escutava sua voz, só os dois, abraçados, entre todas as pessoas
que enchiam a pista de dança, apenas acompanhando a melodia, voltando a
se procurarem quando terminava uma música em que se viram obrigados a
dançar com outra pessoa. Porém, essa mulher na plenitude esplêndida dos
trinta e poucos anos não transparecia só simpatia ou desejo, mas também
desespero, uma forma de pânico que ele jamais presenciara, tal como jamais
abraçara um corpo igual ao dela, e esse pânico estava em seus olhos e em
sua voz e também no seu modo de apertar a mão do parceiro quando
deslizavam lentamente pela pista de dança, crispando os dedos, como
querendo sacudi-lo com uma urgência que no início ele imaginou ser
sexual, e que talvez também fosse parcialmente, embora parecesse um
desespero que tudo afogava e desalojava qualquer outro impulso que não
fosse o do medo, o de um instinto de sobrevivência matizado de remorso e
vergonha. Falava muito perto de seu ouvido, e ao mesmo tempo vigiava de
soslaio os casais próximos e nunca perdia de vista o homem vestido de
escuro, imóvel num canto do salão. Sorria-lhe, revirava os olhos, deixando-
se levar pela deliciosa e leve tonteira da música para dançar, mas suas
palavras não tinham nada a ver com a expressão tranquila e um tanto
fatigada de seu rosto, e sim com alguma coisa que havia no fundo de seus
olhos verdes, com o modo de suas unhas quase se cravarem no dorso da
mão dele.
— Você não é igual a eles, embora use o mesmo uniforme, tem de ir
embora daqui e contar o que estão fazendo conosco. Estão matando a todos
nós, um por um, quando eles chegaram a Narva éramos dez mil judeus, e
agora somos menos de dois mil, e nesse ritmo não duraremos mais além do
inverno. Não perdoam ninguém, nem as crianças, nem os mais velhos, nem
os recém-nascidos. Levam-nos de trem não sabemos para onde e ninguém
volta, só voltam os trens com os vagões vazios.
— Mas você está viva e livre, e eles a convidam para os bailes.
— Porque vou para a cama com aquele porco que estava comigo
quando você entrou. Mas quando se cansar de mim ou achar que é perigoso
ter uma namorada judia acabarei como os outros.
— Fuja.
— E para onde irei? A Europa inteira é deles.
— Como o convidaram, se ele não é militar?
— E que ele é o fornecedor de roupa e comida para o exército. Além
disso, compra por dez tostões as propriedades dos judeus.
— Você tem de voltar com ele esta noite?
— Esta noite, não. A mulher dele o está esperando. Dão um jantar para
uns generais.
— Vou acompanhá-la até sua casa.
— Você é um tanto audacioso.
— Amanhã à tarde devo voltar para a frente.
Queria continuar abraçado escutando-a, não podia admitir que ela se
separasse dele no final da dança, a não ser que, instantes depois, terminasse
a música que estava tocando e algum oficial alemão o afastasse educada e
firmemente para dançar a próxima com ela, que por prudência não se
negaria, porque o homem do terno escuro a vigiava de longe e talvez já
tivesse observado, aborrecido, que fazia muito tempo que ela não trocava de
par, e já tivesse adivinhado o que ela dizia ao ouvido desse jovem tenente
de aspecto tão pouco alemão apesar do uniforme. Tão forte quanto o desejo
era sua ânsia de protegê-la e a necessidade urgente de saber, e só temia a
grande escuridão daquilo que até então ignorara, a suspeita espantosa do
que era inacreditável e no entanto ele já não podia negar. Olhava ao redor as
caras vermelhas dos alemães, a elegância dos uniformes idênticos ao seu,
que lhe causara tanta excitação na primeira vez que o vestiu, e começava a
perceber um instinto de repulsa por algo monstruoso que estava muito perto
e contudo era invisível, tão invisível pelo menos como o pânico da mulher
que dançava com ele reclinando delicadamente a cabeça ao ritmo da música
e sorria revirando os olhos e cravando as unhas no dorso de sua mão,
repetindo baixinho as palavras que o meu amigo continuou escutando muito
depois na recordação, e que ainda voltam ao seu espírito nas noites em
claro, quando a lucidez excessiva da insônia e a escuridão povoam-se de
vozes e caras de mortos, todos os que conheceu naqueles anos da juventude,
a imensidão dos mortos sepultados e esquecidos em toda a extensão da
Europa. Parece-lhe, disse-me, que os mortos falam com ele, exigem que dê
testemunho do que viveram e sofreram, ele que sobreviveu, que só por
acaso, ou porque outros morreram em seu lugar, conseguiu salvar-se. Mas
de todas as caras da época lembra mais nitidamente a do homem de pincenê
que se virava para ele como querendo lhe dizer alguma coisa e a da mulher
com quem dançou, já não sabe quanto tempo, quantas músicas seguidas,
apaixonando-se por ela e sendo inoculado por seu terror e sua clarividência,
por seu fatalismo de vítima antecipadamente hipnotizada pelo caráter
inevitável do sacrifício: como seria sua voz, com que sotaque falaria
alemão. Agora, enquanto revivo isso escrevendo o que meu amigo me
contou, gostaria de inventar que a mulher ruiva era de origem sefardita, e
que lhe digo umas palavras em ladino, estabelecendo com ela, na longínqua
cidade da Estônia, no meio de tantos oficiais alemães, a cumplicidade
melancólica de uma pátria secretamente comum.
Mas não é preciso inventar nada, nem acrescentar nada, para que essa
mulher, sua presença e sua voz surjam entre nós, apareçam no restaurante
onde meu amigo e eu conversamos cercados de ruídos e gente, de uma
névoa densa de palavras, vapor de comidas, cigarros, telefones celulares.
Ele, que não quis nem conseguiu esquecê-la em mais de meio século,
legou-me agora essa mulher, de sua memória transferiu-a para a minha
imaginação, mas não quero inventar para ela uma origem nem um nome,
talvez nem tenha esse direito: não é um fantasma, nem uma personagem de
ficção, é alguém que pertencia à vida real tanto quanto eu, teve um destino
tão único quanto o meu, embora inimaginavelmente mais atroz, uma
biografia que não pode ser superada pela sombra bela e mentirosa da
literatura nem reduzida a um dado aritmético, ínfimo algarismo no número
imenso dos mortos.
Há cinquenta e seis anos me lembro dela, e sempre me pergunto se
conseguiu sobreviver, ou se morreu num daqueles campos a respeito dos
quais na época nada sabíamos, não porque funcionassem em segredo
absoluto, já que isso é impossível, seria como manter em segredo o
funcionamento da rede ferroviária de um país inteiro, mas porque não
estávamos dispostos a saber, e quando soubemos ainda não queríamos
acreditar no que já não se podia negar, porque era inacreditável, achávamos
que estava fora da ordem natural do mundo, e nos dávamos conta de que
nossa ignorância não nos tornava menos cúmplices nem menos culpados.
Voltei a Narva, trinta anos depois, quando viajei pela primeira vez a
Leningrado, para um congresso de psicologia organizado pela Unesco.
Custou muito, mas consegui que me dessem autorização para visitar a
cidade, embora tenham me imposto um guia soviético que não me deixou
sozinho nem um minuto. Agora o nome estava escrito na estação com
caracteres cirílicos, e já não existia o caminho perto do rio, porque tinham
construído um bairro inteiro com esses prédios horrorosos cor de cimento.
Você achará absurdo, e na época também achei, mas assim que cheguei a
Narva olhei todas as mulheres, com o coração na mão, como se fosse
possível encontrá-la, e reconhecê-la após trinta anos. Não procurava uma
mulher um pouco mais velha que eu, uma senhora de mais de sessenta anos,
mas a mesma jovem ruiva com quem dancei naquela noite, apaixonando-me
por ela a cada minuto que passava, morto de desejo, tão excitado que sentia
tonteira ao olhá-la e me envergonhava só de pensar que ela pudesse
perceber o que estava acontecendo comigo, ou que outra pessoa notasse,
apesar do tecido muito grosso da calça e da túnica de minha farda alemã.
O guia ou vigilante soviético olhava ostensivamente o relógio e fazia
cara de tédio, lembrava a ele que tinham de voltar logo para a estação, não
podiam perder o trem de volta a Leningrado, mas ele continuava
caminhando sem ligar para o outro, deixando-o alguns passos para trás,
rápido e meio encurvado, como andava quando saímos do restaurante,
olhando tudo com seus olhos pequenos e sagazes, comovido pela súbita
irrealidade do tempo, porque tinham se passado trinta anos e de repente, ao
dobrar uma esquina, reconheceu sem a menor dúvida a praça de calçamento
de pedra e o palácio onde se realizara o baile, os trilhos dos bondes, com a
mesma decrepitude suja da fachada do palácio, onde segundo o guia
funcionava a sede dos sindicatos estonianos. Não se lembrava de tantos
cabos pendurados de um lado a outro da praça, e é claro que não poderia ter
se lembrado da estátua gigantesca de Lênin que havia no meio, em torno da
qual circulavam os bondes com solavancos de sucata. Mas percebia o fio
gelado e úmido do ar, o cheiro do rio que não devia estar muito longe,
misturado com esse cheiro geral de repolho fervido e gasolina mal
queimada que lhe pareceu o cheiro indelével da União Soviética. Era
verdade que o tempo não existia: escutava os passos de centenas de homens
sobre a terra pisoteada de uma estrada e o roçar das pontas do arame
farpado, e um rosto magro e muito pálido se virava para ele, um olhar o
interpelava atrás das lentes de um pincenê, afastando-se muito devagar pelo
caminho e na distância dos anos, na distância invencível entre os que
morreram e os que se salvaram, os que agora estavam debaixo da terra e os
que andavam sobre ela com a leveza frívola de quem não sabe que em
qualquer lugar podem estar pisando em valas comuns e sepulturas sem
nome.
Que estranho ficar em pé no ponto do bonde, diante do palácio, e ver-
me como eu era trinta anos antes: porque não é que me lembrasse, diz meu
amigo, literalmente eu me via, como você vê alguém na rua, de supetão, e
custa a reconhecê-lo porque se passou muito tempo desde a última vez. Era
como estar vendo outra pessoa, tão jovem, tão diferente de mim, um tenente
de vinte e três anos com uniforme alemão, e sabendo no entanto que esse
desconhecido era eu mesmo, porque podia sentir o que ele sentia naquele
momento, a excitação e o medo da espera, o temor de que aparecesse seu
amigo, o capitão, e desconfiasse ou simplesmente lhe dissesse que tinha de
acompanhá-lo ao quartel onde pernoitariam. Antes de se separar dele para
dançar com um comandante dos SS ela tinha lhe dito que deixasse passar
uma meia hora e a esperasse do outro lado da praça, no abrigo do ponto do
bonde. Viu-a afastar-se entre os pares que dançavam, abraçada agora ao
homem de uniforme preto mais alto que ela, virando disfarçadamente a
cabeça para procurá-lo enquanto o outro lhe dizia alguma coisa. Tinha de
lhe dar tempo para que tratasse bem certos amigos de seu amante, o qual
não parara de observá-la e de vez em quando lhe fazia sinais secos e
precisos, para que se despedisse dele dizendo que não precisava de ninguém
que a acompanhasse até em casa, pois vivia ali perto, a dois pontos de
bonde. Não a deixarei sozinha nem um minuto, ele lhe tinha dito, não com
temeridade, mas com a mesma ausência de incerteza e medo com que às
vezes pulava uma trincheira sentindo-se imune às balas, exaltado e leve,
com uma pistola na mão, rouco de gritar ordens para os soldados que
avançavam atrás dele, pisando na lama e nos rolos de arame farpado e nos
cadáveres jogados em terra de ninguém. Não penso em deixá-la sozinha,
voltou a lhe dizer, quando a música que dançavam chegou ao fim e ela
tentou se soltar, porque o comandante dos SS esperava sua vez. Se quiser
me ajudar faça o que lhe digo, ela pediu, olhando-o com um desespero que
dilatava suas pupilas, com antecipada distância, e sorrindo em seguida para
o oficial alemão, que um momento antes de pegá-la nos braços inclinou
educadamente a cabeça para o meu amigo.
Trinta anos depois viu-se de novo do outro lado da praça, viu sua
própria figura solitária na parada do bonde e a claridade que projetavam nos
paralelepípedos úmidos de neblina os janelões do palácio onde continuava o
baile, e escutou muito fraca a música da orquestra, e as pisadas fortes que
ele mesmo dava querendo esquentar os pés, e que repetiam o eco no amplo
espaço deserto. Era ao mesmo tempo o tenente jovem que contava os
minutos sobressaltado de ilusão e desesperança toda vez que se abria a
porta do palácio e o homem de cinquenta e tantos anos que o via esperar, e
sentia a impaciência gradualmente angustiante de quem não sabe o que vai
acontecer no minuto seguinte e a piedade melancólica de ver tudo no
passado, de saber que o homem jovem continuará esperando mais de uma
hora, tiritando cada vez mais, desolado, e voltará ao salão de baile em busca
da mulher ruiva, e não a verá, nem a ela nem ao protetor com o pomposo
terno escuro, o único civil entre tantos uniformes, muito menos o
comandante dos SS que se inclinou tão cerimonioso diante dele enquanto a
enlaçava. Esteve à sua procura na pista de dança, e depois numa sala onde
serviam bebidas e canapés, e percorreu corredores em que não havia
ninguém e salões e bibliotecas iluminados por grandes lustres de cristal.
E nunca mais a vi, diz, fazendo um gesto para o alto com as duas mãos,
como para indicar algo que se desmancha no ar. Ocorreu-lhe que talvez
tivesse saído sem que ele visse e agora estivesse esperando no ponto do
bonde, e que se ele não se apressasse ela se cansaria e iria embora, e não
seria possível descobrir seu endereço. Mas no vestíbulo encontrou o capitão
com quem tinha vindo e que o estava procurando havia algum tempo, disse-
lhe, pois já era muito tarde e tinham de voltar para o quartel.
Já não há conversas nem telefones celulares ao redor. Sem perceber,
somos os últimos no restaurante. Um garçom o ajuda a vestir o paletó azul-
marinho, gesto que acentua seus movimentos difíceis dos ombros. Vendo-o
andar na minha frente para a saída lembro-me do que esqueci enquanto o
escutava, que é um homem de oitenta anos.
Na rua somos surpreendidos pela luz amarela e prematura do entardecer,
um ponto tênue de umidade no ar. Meu amigo se oferece para me levar em
casa de carro. Ainda gosto muito de dirigir, embora de vez em quando um
desses malcriados se meta comigo quando vê que sou tão velho. "Avança,
coroa, antes que te passem uma mortalha", me disse um outro dia, no sinal.
Eu perguntei, "que me passem uma mortalha vivo ou morto?", e o cara
ficou vermelho, subiu o vidro da janela e me ultrapassou dando uma
acelerada. As crenças são muito prejudiciais, eu é que sei, mas o problema é
a espécie, a nossa. Somos primatas agressivos, muito mais perigosos que os
gorilas ou os chimpanzés, temos no cérebro a crueldade e a ânsia de
dominação, para não falar dessa parte mais antiga que é a de nossos
antepassados, os répteis. Tudo está em Darwin, para nossa desgraça. E não
me fale dessa teoria atual, que diz que para a evolução da espécie foi mais
útil o instinto de cooperação do que a luta pela vida e pela sobrevivência
dos mais fortes. Os primatas cooperam para esmagar os outros, e quem fica
de fora está condenado. Olhe como cooperavam entre si, tão bem, os
nazistas, e os comunistas, quantos milhões e milhões de mortos uns e outros
deixaram. Mas não só eles, pense na Bósnia, ou em Ruanda, ainda há
pouco, ontem mesmo, um milhão de pessoas assassinadas em poucos
meses, e não com os avanços técnicos que tinham os alemães, e sim a
machadadas e pauladas.
Quem sabe que horrores estarão passando neste exato momento,
enquanto você e eu conversamos. Já não durmo muito de noite, acordo e
fico no escuro esperando o amanhecer, e então me lembro de todos os
mortos que vi, os que eram amigos meus e os desconhecidos, todos os
mortos que ficavam apodrecendo na terra de ninguém, entre nossas linhas e
as posições dos russos, os mortos que víamos nas sarjetas das estradas à
medida que íamos nos aproximando da frente de batalha, ou amontoados
nos caminhões, duros de frio. É um mero acaso que eu não tenha sido um
deles, e quando estou deitado, no escuro, sabendo que não vou dormir, sem
vontade de acender a luz e pegar um livro, tenho a impressão de ver todos
eles, um por um, e ficam me olhando como aquele judeu de pincenê, e
falam comigo, dizem que se estou vivo tenho a obrigação de falar por eles,
tenho de contar o que lhes fizeram, não posso ficar de braços cruzados e
deixar que sejam esquecidos, e que se perca totalmente o pouco que ainda
resta deles. Nada restará quando minha geração tiver se extinguido,
ninguém que se lembre, a não ser que alguns de vocês repitam o que nós
contamos.
Passamos diante do parque onde está o templo egípcio de Debod, e
penso que nesse mesmo lugar ficou o quartel de la Montana, e que também
aqui caminhamos sobre túmulos sem nome e valas comuns: lembro-me de
fotografias, filmes em preto-e-branco dos primeiros dias da guerra civil,
quando meu amigo era um rapazinho de dezesseis anos estudando na escola
grego e latim e alemão e passando noites em claro lendo Nietzsche e Rilke,
Juan Ramón Jiménez e Ortega y Gasset, e que de jeito nenhum poderia
imaginar que só poucos anos mais tarde seria condecorado como herói de
guerra.
Não muito longe de onde estamos agora, nesses jardins onde se erguem
as ruínas de um templo egípcio e por onde passeiam mães com crianças e
aposentados aproveitando o sol da tarde, houve, há mais de sessenta anos,
uma esplanada cheia de mortos. Nesta mesma calçada por onde meu amigo
e eu caminhamos caíam as bombas durante o cerco franquista a Madri.
Mas não lhe digo nada, só escuto, ele me fala da fragilidade das pernas
quando se passa de certa idade e da lentidão com que chegam à memória
certas lembranças e certos nomes, por causa da deterioração dos
neurotransmissores. Quando nos despedimos, na porta do prédio moderno
onde vive (talvez o que houvesse antes tenha sido destruído pelos
bombardeios da guerra), vejo-o de costas cruzando o portão, a caminho do
elevador, encurvado e diligente, apenas com uma sombra de lentidão nos
movimentos.
Se vivesse, se vive, a mulher que meu amigo conheceu e perdeu naquela
cidade chamada Narva teria noventa anos. Também penso agora a mesma
coisa que ele teria dado tudo para saber ao longo de quase toda a sua vida:
se essa mulher se salvou, se agora mesmo, nesta noite, no momento exato
em que escrevo estas palavras, ela está em algum lugar, e se lembra de um
tenente muito jovem com quem dançou numa noite de fevereiro de 1943.
Qual é o seu nome

Eu permanecia imóvel, esperando, deixava passar o tempo, vivia


observando as coisas de trás de uma janela, horas a fio, no escritório aonde
só chegava alguém no meio da manhã, emissários do mundo exterior, em
geral artistas de segunda ou terceira classe, poetas da província em busca de
um recital ou de uma subvenção para publicar um livro de versos, gente que
batia medrosamente à porta e podia ficar durante horas na pequena
antessala, aguardando um contrato ou um pagamento, a chance de uma
audiência, de entregar um dossiê mal fotocopiado que de alguma maneira
chegaria, por minhas mãos, ao diretor, meu chefe, e de quem dependiam as
decisões cruciais, que levavam muito tempo para ser tomadas, volta e meia
emperradas nas lentidões arcaicas da administração, ou simplesmente
atrasadas por negligência ou descuido, porque o diretor não olhava os
documentos que eu deixava em cima de sua mesa ou porque me esquecia de
despachá-los ou me dava preguiça de tomar as providências, letárgico por
causa da indolência e da solidão no escritório, ausente de meus próprios
atos e das pessoas com quem tinha contato, sempre meio fora de foco na
minha frente, menos reais do que as que habitavam minha imaginação ou
minhas lembranças, ou esse espaço confuso de bruma em que não eram
claros os limites entre o recordado e o inventado. Numa carta de Franz
Kafka eu reconhecia os sintomas exatos de minha doença, de minha
absoluta inércia: estava como morto, com uma carência absoluta de
qualquer desejo de comunicação, como se não pertencesse a este mundo,
mas tampouco a nenhum outro; como se durante todos os anos transcorridos
até agora só tivesse feito mecanicamente o que se desejava de mim,
esperando na verdade uma voz que me chamasse.
Escrevia cartas, esperava-as, e quando recebia alguma e respondia
rápida e tumultuadamente, deixava que se passassem uns dias antes de
retornar à atitude de espera, porque sabia que a próxima carta ia demorar
pelo menos duas semanas, se não atrasasse tanto como as decisões
inescrutáveis aguardadas pelos solicitantes na antessala do meu gabinete.
Os dias que se seguiam a uma nova carta eram um tempo neutro, em
suspenso, pois a expectativa devia serenar, e também o medo de que não
viesse mais nenhuma carta. Contudo, também nesses dias eu esperava,
menos intensamente, pelo simples hábito de esperar, e se entre as cartas e os
documentos que um contínuo trazia toda manhã eu via a borda listrada de
um envelope aéreo invadia-me um sobressalto insensato de esperança
renovada, embora a última carta só tivesse chegado dois ou três dias antes.
Mas essa avidez de cartas é insensata. Por acaso não basta uma só, uma só
certeza? É evidente que basta, e contudo ficamos tensos e bebemos a carta e
não sabemos de nada, a não ser que não desejamos nunca parar de bebê-la.
Eu trabalhava sozinho, fora do edifício central da repartição, numa das
salas alugadas para os novos gabinetes, lugares provisórios que sempre
pareciam fugazes, quase clandestinos, muitas vezes sem uma tabuleta
oficial na porta, ou só com uma plaquinha improvisada, no fundo de
corredores estreitos ou de escadas íngremes, pertinho da sede central mas
de algum modo às suas costas, nos becos que a rodeavam, onde havia
tabernas antigas e um pequeno comércio, biroscas de bêbados sinistros e
lojas que não muitos anos antes vendiam disfarçadamente camisinhas e
revistas pornográficas. Nos becos tão estreitos que mal davam passagem ao
sol, havia sempre um leve cheiro de esgoto, de penumbra úmida,
intensificado nas esquinas onde havia os últimos vestígios do que tinha sido
o bairro das putas, um labirinto que antigamente se chamava La Manigua, e
era agora apenas umas duas ruelas de onde às vezes emergiam suas últimas
sobreviventes, mulheres velhas, gordas e pintadas ou jovens e lívidas,
estimuladas pela heroína, com os saltos tortos e um cigarro cruzando a
mancha vermelha da boca, assombrações no fundo de pórticos tenebrosos.
Eu permanecia imóvel sentado atrás da mesa do gabinete, esperando, e
podiam se passar horas sem que ninguém chegasse, manhãs em que só
havia uma ou duas pessoas, além do contínuo ou de um funcionário que
entrava para me pedir alguma coisa, consultar uma pasta de meu arquivo;
ali eu tinha guardados por ordem alfabética os dossiês que os artistas me
enviavam por correio ou me entregavam, e em ordem cronológica os
relatórios das apresentações já realizadas, em pastas de cor creme nas quais
guardava escrupulosamente tudo, o cartaz do espetáculo, uma entrada, os
recortes de imprensa, caso houvesse algum, os dados sobre o público que
assistira ao espetáculo, público que com relativa frequência era
desalentador, correspondente ao peso um tanto modesto e ao pouco
interesse das apresentações que eu me encarregava de programar,
destinadas não aos palcos importantes da cidade, mas aos centros culturais
dos bairros, pouco mais que salões de festas das escolas, ou tablados ao ar
livre em pracinhas e parques nos meses de verão, época em que também me
cabia organizar uma festa de rua a que sempre se acrescentava, nos cartazes,
o adjetivo popular, festas populares com lanternas de celofane e conjuntos
locais de rock, carrosséis e teatrinhos de marionetes.
O escritório ocupava o canto mais estreito de um edifício triangular,
com uma confeitaria no térreo e um despachante no primeiro andar. Da
confeitaria chegavam cheiros doces e quentes de forno; do despachante,
uma agitação de passos, vozes e telefones que contrastavam com o sossego
silencioso que quase sempre reinava em minha sala.
Havia duas janelas, uma dando para a praça del Carmen e outra para a
rua Reyes Católicos, mas a entrada ficava num beco estreito e de pouca
circulação, de modo que era fácil, ao chegar toda manhã ao trabalho, ter a
sensação de se entrar num perfeito observatório secreto, tão propício para a
espionagem como para a fuga. Entrava e saía sem que ninguém me visse e
das janelas podia ver quem passava por aquele cruzamento central da
cidade, muitas vezes conhecidos meus que eu gostava de observar nessa
atitude de quem caminha sozinho e não pensa estar sendo observado.
Sempre me pareciam desconhecidos, pessoas diferentes daquelas com quem
eu convivia. Quem é, de verdade, aquele que caminha sozinho,
provisoriamente livre dos laços que o ligam aos outros, da identidade que os
olhos dos outros lhe atribuem?
Como Manuel Azana na sua adolescência de menino gordo e míope, eu
queria ser o capitão Nemo. Trancado das oito da manhã às três da tarde
entre aquelas paredes, eu era o capitão Nemo no seu submarino e Robinson
Crusoé na sua ilha, e também o Homem Invisível e o detetive Phillip
Marlowe e o Bernardo Soares de Fernando Pessoa e qualquer dos
funcionários dos escritórios de Franz Kafka, sombras dele mesmo e de seu
trabalho na companhia de seguros em Praga. Imaginava pertencer, tal como
eles, a uma linhagem de desterrados secretos, estrangeiros no lugar onde
sempre viveram e foragidos sedentários que escondem sua estranheza
íntima e seu exílio congênito sob uma aparência de perfeita normalidade, e
sentados numa mesa de escritório ou percorrendo de ônibus o trajeto até o
trabalho podem ter deslumbrantes iluminações de aventuras que não
acontecerão com eles, de viagens que jamais farão. Em seu escritório do
Serviço de Águas de Alexandria, Constantino Cavafis imagina a música que
Marco Antônio ouviu na véspera de sua perdição definitiva, o cortejo de
Dioniso que o abandona. Num restaurante modesto de Lisboa ou no trajeto
de um bonde Fernando Pessoa mede pensativamente os versos de um
poema sobre uma fastuosa viagem de transatlântico ao Oriente. A um hotel
de Turim chega um homem absorto e de óculos, sereno, bem vestido,
embora com" algo de estranho que o impede de parecer um viajante,
registra-se só para essa noite, e ninguém sabe que é Cesare Pavese e que em
sua bagagem ínfima leva uma dose de veneno com que dali a algumas horas
acabará com a própria vida. Eu imaginava o suicídio com um detalhismo
mórbido e supunha literariamente que se matar com um tiro ou deixar-se
morrer lentamente pelo álcool eram formas radicais de heroísmo. Ao ver os
bêbados terminais nas tabernas sombrias dos becos sentia um misto sórdido
de atração e repulsa, como se cada um deles escondesse uma verdade
terrível cujo preço fosse a autodestruição. Cruzava com homens de olhar
carrancudo e gestos desvairados e imaginava Baudelaire nos delírios finais
de sua vida, perdido em Bruxelas ou em Paris, e Sören Kierkegaard,
peregrino e náufrago nas ruas de Copenhague, tramando diatribes bíblicas
contra seus conterrâneos e seus semelhantes, escrevendo mentalmente
cartas de amor a uma mulher, Regina Olsen, de quem tinha se afastado,
talvez morrendo de medo, quando já era noivo dela, e que depois se casou
com outro homem, o que ele não perdoava. Trancado em meu gabinete eu
lia cartas e diários e cadernos de notas de Sören Kierkegaard, e aprendia
com Pascal que os homens quase nunca vivem no presente, mas na
recordação do passado ou no desejo ou no medo do futuro, e que todas as
desgraças sobrevêm ao homem por ele não saber ficar sozinho em seu
quarto.
Kafka recebia as cartas de Milena em seu domicílio familiar ou preferia
recebê-las no escritório? Mandava as suas para ela endereçadas à caixa
postal dos Correios de Viena, para que o marido não as visse. Lendo tantos
livros eu na verdade não sabia nada. Não sabia que Milena Jesenska era
mais do que a sombra à qual se dirigem as cartas de Kafka ou que transita
às vezes pelas páginas de seu diário, era uma mulher corajosa e real que
burilou obstinadamente o próprio destino indo contra as circunstâncias
hostis e um pai tirânico, escreveu livros e artigos em favor da emancipação
humana e amou apaixonadamente vários homens, continuou escrevendo
com temerária valentia quando os nazistas já estavam em Praga e foi presa e
mandada para um campo de extermínio, onde morreu em 17 de maio de
1944, vinte e dois anos depois do homem cujas cartas eu lia no meu
gabinete, e que talvez tivesse morrido na câmara de gás, tal como suas três
irmãs mais velhas, se a tuberculose não a tivesse matado.
Eu vivia cercado de sombras que suplantavam as pessoas reais e me
importavam mais que elas, e soletrava nomes de cidades em que não tinha
estado, Praga ou Lisboa, ou Tânger, ou Copenhague, ou Nova York, de
onde me chegavam as cartas, meu nome e o endereço desse gabinete
escritos nos envelopes com uma caligrafia que, só de vê-la, já era para mim
não apenas a antecipação mas também a substância da felicidade. Guardava
numa gaveta de minha mesa as Cartas a Milena, e às vezes as levava no
bolso para a viagem de ônibus. Alimentava meu amor pela ausência da
mulher amada e pelos exemplos de amores fracassados ou impossíveis que
tinha conhecido no cinema e nos livros. Mão dispensadora da felicidade, diz
Franz Kafka numa carta escrita pela mão de Milena, e essa mão de uma
mulher que eu então não sabia ter morrido num campo de extermínio era
também a mão lembrada e ausente que escrevia meu nome nos envelopes
chegados da América.
Eu vivia escondido nas palavras escritas, nos livros ou cartas ou
rascunhos de coisas que nunca chegavam a existir, e fora daquele devaneio,
daquele gabinete que combinava mais comigo do que minha própria casa e
era, de um modo estranho e oblíquo, meu domicílio íntimo, e não só o lugar
onde eu trabalhava e recebia cartas, fora de minhas imaginações e do
espaço infeliz e um bocado vazio delimitado por suas paredes, o mundo era
uma névoa confusa, uma cidade que eu via de fora como se não vivesse
nela, assim como fazia meu trabalho com tanta indiferença como se na
verdade não fosse eu que o fizesse. Minha vida era o que não me acontecia,
meu amor era uma mulher muito distante que talvez não voltasse, meu
verdadeiro ofício era uma paixão à qual na realidade eu não me dedicava,
embora me enchesse tantas horas, embora tivesse começado a publicar com
pseudônimo artigos em um jornal local, tendo depois a sensação de ser uma
carta dirigida a ninguém, ou talvez a uns poucos leitores tão isolados como
eu em nossa província melancólica, em nossa rançosa distância de tudo, da
verdadeira vida e da realidade contadas nos jornais de Madri, em que as
pessoas pareciam existir com mais força indubitável do que nós.
Eu lia em Pascal: Mundos inteiros nos ignoram. Lia tão sofregamente,
com o mesmo desejo de cegueira e amnésia com que Robert de Niro aspira
o cachimbo de ópio naquele filme de Sérgio Leone que estreou na época,
Era uma vez na América. Emergia tão transtornado dos livros como dos
filmes, como quando se sai do escuro do cinema e ainda faz sol na rua.
Certas tardes aceitava compromissos de trabalho que na verdade não era
obrigado a aceitar ou inventava pretextos para ir ao escritório por algumas
horas, e ali ficava, sentado atrás da mesa, olhando para a porta que dava
para a pequena antessala, imaginando ser um detetive particular, tão
puerilmente, quase aos trinta anos, como imaginava aos doze anos ser o
conde de Montecristo ou Jim Hawkings, ou então matava o tempo
observando a rua, sem perigo de que alguém me visse lá de baixo ou de que
algum visitante viesse me interromper. Tinha lido em Flaubert: Todo homem
guarda em seu coração uma câmara real; selei a minha. Tinha a cabeça
cheia de frases de livros, filmes ou músicas, e sentia que nessas palavras e
nas das cartas estava meu único consolo possível contra o exílio em que me
via confinado. Lia o diário de Pavese, envenenando-me com seu niilismo
maléfico e sua misoginia torpe, que eu considerava lucidez, tal como às
vezes considerava clarividência e entusiasmo os efeitos de um excesso de
álcool. A morte virá e terá teus olhos. Lia como o opiômano fuma e como o
alcoólatra bebe, com vontade metódica de alheamento. Escrever e ler era ir
tecendo ao meu redor os fios do casulo protetor e sufocante em que me
enrolava, minha vestimenta e minha poção de homem invisível, escapar
imóvel por um túnel que ninguém conseguiria descobrir, arranhando a
parede da cela com a mesma paciência de Edmond Dantès em O conde de
Montecristo. A linha azul de tinta da caneta era o fio de seda que eu
segregava sem descanso para ir me escondendo, para ir inventando ao meu
redor um mundo que não existia, habitado por homens e mulheres quase
totalmente imaginários, que o convívio áspero com a realidade me
suavizava. A pena roçando de leve o papel, as batidas nas teclas da máquina
de escrever, ainda mecânica e muito barulhenta, como as máquinas de
escrever dos fabulosos escritores de cinema, as que a gente imaginava
serem usadas por Chandler ou Hammett, heróis literários e bêbados
glorificados na época, que eu reverenciava com essa vulgaridade que nos
torna idênticos a nossos contemporâneos, permitindo-nos ao mesmo tempo
sentirmo-nos solitários originais e incorruptíveis. Sonhos de álcool e
fumaça de cigarro dos anos 80, tão modorrentos retrospectivamente como
uma grande parte de minha existência alienada de então, distantes como a
lembrança daquele gabinete e da mulher a quem escrevia as cartas, sem me
dar conta de que gostava dela, não apesar de viver do outro lado do oceano
e com outro homem, mas justamente por isso, porque meu amor era feito de
distância e impossibilidade, e se aquela mulher tivesse voltado largando
tudo e se oferecendo para ir embora comigo talvez eu tivesse ficado
paralisado, aterrorizado, e tivesse fugido dela como é possível que Franz
Kafka tenha recuado diante da paixão decidida e terrena de Milena
Jesenska, preferindo o refúgio das cartas, a absolvição e o refúgio da
distância.
Não havia placa nem alguma indicação de que no edifício funcionasse
uma repartição oficial, nem mesmo um lembrete na caixa de correio. Tudo
prosseguia nos lentos passos administrativos, e até que o Departamento de
Administração Interna instalasse a placa na fachada e na porta do gabinete
se passariam muitos meses, se é que, tendo em vista a precariedade
caprichosa com que tudo acontecia, não ocorresse inesperadamente a
transferência para outro local, outro apartamento alugado nas proximidades
ou um escritório desocupado no prédio principal, e eu teria de recomeçar a
me instalar, a mesa e o armário de metal com as pastas e a máquina de
escrever, as pastas de rascunhos que nunca chegavam a uma forma
definitiva, ou satisfatória, os livros que enchiam as horas de espera e sono
indolente, as cartas guardadas à chave numa gaveta, relidas com a
parcimônia necessária para que seu efeito não se atenuasse, para que não
fosse tão longo o tempo de espera até a próxima carta.
Era uma vida sem a medula do presente: passado e futuro, e um
parêntese no meio, um espaço vazio, como os espaços que separam as
palavras escritas, a batida automática do polegar na barra de espaço da
máquina, a linha que separa duas datas num calendário, o tempo mínimo
que transcorre entre duas batidas do coração. Habitava em passados
ilusórios ou longínquos e em futuros quiméricos, entre o instante em que,
na bandeja do correio, chegava a carta anterior, no meio dos envelopes
vulgares e administrativos, e a hora ou o dia futuro em que veria uma nova
carta, distinguindo-a de longe, já quando o contínuo aparecia na porta com
a grande pasta da correspondência debaixo do braço, inconsciente do
tesouro que me trazia.
A vida real estava num plano distante, como num diorama ao fundo de
um palco. A vida real e o tempo presente eram justo o espaço da espera, o
espaço de separação entre o recordado e o desejado, um espaço tão
despojado e neutro como a salinha onde às vezes alguém esperava até ser
recebido por mim, alguém com um pedido, à espera de um contrato para
uma apresentação ou de uma entrevista com algum de meus superiores, se
possível o diretor, que era quem tomava as decisões e a quem eu submetia
meus relatórios, mas muito raramente ele aparecia no gabinete, dedicado a
tarefas de maior relevância e representação no edifício principal, onde tinha
sua própria sala, e onde recebia as personalidades em visita à cidade, os
artistas de primeira grandeza cujas apresentações eram programadas no
teatro central ou no grande auditório: gerentes de companhias catalãs de
teatro de vanguarda, solistas famosos, diretores de orquestra.
Nas primeiras horas da manhã eu procurava na página de cultura do
jornal as notícias da chegada dessas personalidades, suas entrevistas e fotos,
volta e meia apertando a mão de certos superiores meus, sobretudo o
diretor, que sorria muito nessas fotos, em pose inclinada para a celebridade,
a fim de ter certeza de que não ficaria fora do quadro. Eu recortava tudo e
guardava numa pasta, colando o recorte sobre uma cartolina, ao pé da qual
datilografava a ocasião e a data.
Os artistas que eu contratava não costumavam ocupar mais do que um
pequeno boxe num canto pouco visível do jornal, notinhas anônimas ou
assinadas por iniciais, ocasionalmente as minhas, porque mais de uma vez o
redator de plantão reproduzia a nota que eu tinha mandado para a editoria
de cultura. Muitos deles chamavam a si mesmos teatreiros, e essa palavra
me repugnava um pouco, fazia-me lembrar a arte indigente com que
interpretavam, a pobreza de seus figurinos e cenários, a espontaneidade
tosca de seus espetáculos, nos quais pareciam perdurar a penúria e o
improviso dos maus cômicos de outras épocas, só que agora tudo isso era
renovado pelo ranço hippie, pela criação requentada, pela pinta de
mercadoria em liquidação, que caracterizavam as participações coletivas e
as comunidades decrépitas. Pintavam de palhaços seus rostos e vestiam-se
com farrapos e tocavam tambor ou pulavam sobre pernas de pau em seus
desfiles de teatro de rua. As mulheres vestiam malhas suadas e não
depilavam as axilas, e comportavam-se com um pudor sem sensualidade
que me causava um desprazer físico. Eu lhes pagava pouco, porque os
orçamentos que manipulava eram muito baixos, e além disso demoravam
muito a receber, e apresentavam-se toda manhã no meu gabinete, escutavam
minhas explicações sem entender muito bem, e talvez sem acreditar nelas,
todos os trâmites necessários, a peregrinação misteriosa dos papéis de uma
sala para outra, da Secretaria para a Administração e para a Tesouraria, os
atrasos, os descuidos e as negligências, nos quais eu mesmo incorria, e que
podiam significar mais uma ou duas semanas de espera, justificada por
mentiras em que fui aos poucos me especializando: disseram-me na
Secretaria que hoje mesmo será assinada a liberação do pagamento, amanhã
sem falta tento acelerar os trâmites na Administração.
Esperavam, tal como eu, viviam no tempo em branco, na pequena
antessala de meu gabinete, inóspita e pobre como a de um médico de
reputação duvidosa, ou a de um desses detetives de romance, esperavam ser
contratados ou simplesmente recebidos ou pagos, traziam seus dossiês, suas
fotocópias confusas, seus currículos medíocres ou inventados, e a mim, sem
que nada disso me importasse, nem eles nem suas vidas nem seus
espetáculos nem meu trabalho, a mim cabia animá-los ou inventar
postergações, inventar desculpas para o atraso de uma decisão, de um
contrato ou de um pagamento, sugerir novos procedimentos administrativos
que eles não acatariam, já que nem sequer entendiam a linguagem em que
eu explicava. Havia um poeta cigano de cabeleira branca e crespa e
costeletas que garantia ter traduzido para o calo as obras completas de
Garcia Lorca e parte do Novo Testamento, e como prova andava com o
manuscrito inteiro de sua tradução num grande cartapácio, mas só o abria
um instante e me mostrava receoso a primeira página, temendo ser plagiado
ou roubado, e negava-se a deixar no meu gabinete o calhamaço a que vinha
dedicando sua vida, com medo de que se extraviasse no escritório, entre
tantos papéis, ou que houvesse um incêndio no forno da confeitaria do
térreo e o seu Lorca em romani queimasse. Perguntei por que não me
entregava um xerox, e que para ele mesmo convinha ter outra cópia,
prevendo a perda dos originais, mas também não confiava nos empregados
das fotocopiadoras, que num descuido podiam queimar as páginas de seu
livro ou, sem que ele percebesse, podiam fazer outra cópia e vendê-la, ou
publicá-la assinada com outro nome. Não, ele não podia se separar de seu
manuscrito, que transportava muito apertado entre os braços quando se
sentava do outro lado de minha mesa ou esperava na antessala que o diretor
chegasse, e não descansaria até vê-lo publicado, com seu nome em letras
bem grandes na capa e sua foto na contracapa, para que não houvesse a
menor dúvida sobre a identidade do autor, a cara de cigano de gravura ou de
daguerreótipo romântico que todo mundo conhecia na cidade.
Ainda vejo claramente na lembrança a cara rústica e morena e o cabelo
branco, e de repente surge um pormenor inesperado, os grandes anéis de
chumbo ou de ferro que o tradutor romani usava nas mãos, cujo peso era
acentuado ao caírem sobre o vidro de minha mesa ou sobre a grande pasta
gorda de folhas manuscritas que aquele homem estava sempre defendendo
contra o mundo, contra a adversidade e o roubo, contra a indiferença e a
lentidão administrativa que ele enfrentava todo dia, sentado na antessala
com a pasta no colo, ou perambulando pelos arredores do edifício central
com a esperança de flagrar o diretor, ou até um superior de máxima
importância, e conseguir assim, num ataque no meio da rua, o que a espera
paciente nunca lhe proporcionava, a entrevista em que lhe seria concedida a
verba necessária para publicar sua obra magna, ou pelo menos uma parte,
talvez o Romancero gitano, que ele me recitava primeiro em castelhano e
depois em romani, fechando os olhos e apertando as pálpebras, avançando a
mão direita com o indicador esticado, como um cantador em transe.
Via-o de minha janela, como via tanta gente, homens e mulheres,
conhecidos e desconhecidos, figuras que passavam pelo diorama irreal de
minha vida naquela época, via-o cruzar a faixa de pedestres com passo
resoluto e sua pasta apertada entre os braços, para que um pé de vento ou
um ladrão não a arrancassem, e de certo modo esse homem que eu
distinguia na multidão e cujos movimentos e gestos eu podia prever de meu
observatório não era o mesmo que minutos mais tarde entrava em minha
sala e me perguntava se eu achava que nessa manhã o diretor viria.
Fingia lhe dar atenção, e depois fingia estar muito ocupado, arrumando
recortes e ofícios em cima da mesa ou cotejando números de um relatório
econômico. Queria ficar sozinho o quanto antes, retornar ao livro ou à carta
que o visitante havia interrompido, e aos poucos a impaciência se tornava
irritação, embora eu tentasse contê-la. Não, esta manhã o diretor não virá,
me telefonou para que eu cancele todas as suas audiências porque está
numa reunião muito importante, e o homem fechava de novo sua pasta,
levantava-se apertando-a entre as mãos grandes de pedreiro ou ferreiro,
enfeitadas com anéis lembrando um tosco esplendor asiático, e um minuto
depois de sair da sala eu o via atravessar a rua concentrado e um pouco
mais lento do que quando vinha, mas igualmente resoluto, concedendo-se
mais um prazo de espera sem se render ao desânimo, talvez recitando na
imaginação alvoroçada versos de Lorca e sermões evangélicos em
castelhano e romani: mas agora penso, de repente, exatamente quando
escrevo, que aquele homem não era mais alienado do que eu, e pergunto-me
como me enxergaria alguém que, na época, me observasse de uma janela
sem que eu percebesse, enquanto andava por essas mesmas ruas tão
intoxicado de palavras e quimeras como o poeta calo, a figura de um
conhecido que a essa distância vira um estranho e mal vê o que existe ao
seu redor, a cidade habitada pelos fantasmas turvos do desejo e dos livros.
Não viam Phillip Marlowe, nem o Homem Invisível, nem Franz Kafka,
nem Bernardo Soares: somente um funcionário sério e vulgar de uns trinta
anos que todo dia sai do escritório à mesma hora e lê um livro no ponto do
ônibus, às vezes enquanto anda pela rua, e periodicamente, uma vez por
semana, joga uma carta na caixa Exterior-Urgente que há numa lateral do
prédio dos Correios.
Agora, alguém que espera na antessala pede-me licença,
cerimoniosamente, para entrar no meu gabinete. Escondo na gaveta a carta
ou o livro que estava lendo. De todas as caras e nomes da época, apagados
há muito tempo, surge uma figura, já sem nome, e mais outra que conserva
intacto o seu. Imagens separadas, como fotogramas de duas histórias
diferentes, mas ambas, no início, instaladas no mesmo lugar e na mesma
atitude, na penumbra da antessala melancólica onde os solicitantes esperam
horas ou dias. Primeiro um homem, e depois uma mulher, e após essa
precisão vem outra, a dos dois sotaques diferentes com que falam comigo.
Escuto no silêncio em que só se ouve o teclado, vejo como que fechando os
olhos, embora estejam abertos diante da tela na qual as palavras surgem
quase com a mesma falta de premeditação das imagens: a mulher não está
só, tem uma criança no colo, ou sentada em seus joelhos, porque não é um
bebê, e sim uma criança de dois ou três anos. Que sorte, ela me diz, falando
com um sotaque do Rio de La Plata, montevideano ou portenho, fico tão
feliz que ele não possa se lembrar.
O homem fala um espanhol meticuloso e meio rígido, que aprendeu em
seu país, já não me lembro se Romênia ou Bulgária, quando era adolescente
e imaginava a Espanha não como um país real, e sim como um reino
fabuloso da literatura e da música, sobretudo da música, as peças de
inspiração espanhola que ele estudava no Conservatório, em seus anos
distantes de menino prodígio, quando assombrava seus professores tocando
de memória ao piano passagens difíceis de Albéniz, De Falla ou Debussy,
invocações de jardins ao luar e de palácios muçulmanos com esplendores de
pedraria e rumores de fontes. Lia traduções de Washington Irving e
escutava e aprendia depressa a tocar a Rapsódia española, de Ravel, e o
Entardecer en Granada, de Debussy, que não conhecia a cidade quando
escreveu essa música, contou-me o pianista, e que na verdade nunca foi à
Espanha, tendo-a tão perto e tendo escrito tantas músicas que a invocavam.
Disse-me que a primeira vez que passeou pelo Alhambra, após fugir de seu
país, essa música de Debussy foi soando perfeitamente em sua imaginação,
e que ele tinha a impressão de reconhecer as coisas à medida que ia vendo-
as, tendo sido antecipadas não nas fotografias nem nas gravuras dos livros
mas nas tênues notas do piano.
No início foi um solicitante como outro qualquer, mais bem vestido,
com modos mais corretos, tão meticulosos como seu manejo da língua
espanhola, alguém que aguardava na meia-luz da antessala, folheando uma
revista sobre a mesinha, como se estivesse na sala de espera de um médico.
Também trazia seu dossiê, sua pasta de recortes e fotocópias, mas a
conservava mais organizada do que os outros, com detalhes mais
caprichados, as folhas protegidas em envelopes de plástico transparente,
algumas com fotos e programas coloridos de recitais por cidades do centro
da Europa, às vezes com textos em caracteres cirílicos. Na capa da pasta
havia sua foto em tamanho grande, uma foto profissional de artista, embora
meio antiquada, uma versão mais jovem e robusta do homem que estava na
minha frente, com a cabeleira comprida de impetuoso concertista
romântico, um fraque muito apertado, o cotovelo apoiado na tampa de um
piano, a mão na face e o dedo indicador na testa, numa atitude de devaneio,
de consumado virtuosismo. Ou talvez esteja me lembrando da capa do disco
de música espanhola que ele tinha gravado no momento mais promissor de
sua carreira, e que fez questão de me oferecer embora previamente tivesse
me dito que lhe restavam pouquíssimas cópias, porque todos os seus discos
e livros, tudo o que tinha de escasso e valioso, salvo suas credenciais de
músico, tudo tinha sido deixado para trás quando partiu para o outro lado da
fronteira que na época dividia a Europa e parecia destinada a durar para
sempre. Não desertei, não fugi, dizia-me: fui embora, como se diz em
espanhol, e tinha muito cuidado ao enunciar o circunlóquio castiço, porque
me dio la real de la gana4 porque não queria passar o resto da vida
obedecendo, temendo que meu vizinho ou meu colega fosse um espião ou
que houvesse microfones escondidos até no camarim do auditório onde eu
ia tocar. Mas não foi por um impulso de dissidência política, me garantia,
sentado em minha sala, enquanto eu queria que ele fosse embora para ficar
de novo sozinho, e ele esperava o tempo passar torcendo para que o diretor
aparecesse nessa manhã: Sabe por que fui mesmo embora, por que não
suportava mais viver no meu país? Por tédio. Porque tudo era sempre igual,
a cara do chefe do governo em todos os cartazes e em todos os jornais e na
televisão e sua voz no rádio, e porque tudo era muito difícil, e às vezes
impossível, as coisas que para vocês no Ocidente são normais, comprar um
vidro de xampu ou procurar um número de telefone na lista. No meu país
não há listas telefônicas, e é dificílimo conseguir uma fotocópia, ou uma
autorização para viajar ao estrangeiro, e se você tenta introduzir uma
máquina de escrever, eles a confiscam na alfândega e além disso o colocam
na lista dos suspeitos. Mas por que estou falando do meu país? Meu país
agora é a Espanha.
Deixou o dossiê de lado, assegurando-se de que o álbum estava bem
preso para que não caísse nenhuma fotografia, nenhum programa ou
recorte, procurou no paletó justíssimo — de veludo, agora me lembro, com
lapelas muito largas, como de um dandismo obsoleto ou equivocado, um
paletó mais de cantor popular do que de pianista —, e por instantes fez cara
de susto e apalpou todos os bolsos, olhando-me com um sorriso de
embaraço e desculpa, como se eu fosse um policial lhe pedindo os
documentos: foram poucos segundos, pois os dedos ansiosos logo tocaram
no que procuravam, as capas flexíveis de um passaporte tão bem tratado
que parecia novo, assim como a carteira de identidade que o pianista me
mostrou em seguida, com sua foto colorida sob o plástico liso e seu
estranho nome romeno ou eslavo que já esqueci.
Seus dedos longos e pálidos encostavam nesses documentos com
delicada reverência, com o espanto incrédulo de que existissem de verdade,
com a incerteza de que pudessem se perder. Tantos anos vivendo num país
de onde desejava partir para visitar outro, conhecido apenas pelos livros e
pela música, pelos nomes sonoros das partituras que aprendia sem a menor
dificuldade no Conservatório, tanto medo nas vésperas da decisão final,
quando pulou pela janela do banheiro de um camarim para não ser visto por
seus companheiros de turnê pela Espanha nem pelos agentes da polícia
política que os vigiavam, tanto tempo esperando, fazendo declarações em
gabinetes policiais e apresentando papéis, vivendo em albergues da Cruz
Vermelha ou em pensões insignificantes, com o medo permanente de ser
expulso ou, pior ainda, repatriado, que palavra horrorosa, disse-me, sem
dinheiro, sem identidade, numa terra de ninguém, entre a vida da qual tinha
fugido e aquela que não conseguia começar, despojado das proteções
sociais e dos privilégios que desfrutou como pianista de renome em seu
país, inseguro quanto às expectativas de empreender aqui uma nova
carreira, sendo um desconhecido.
A expressão deslumbrada de quem alimentou um sonho por muito
tempo e conseguiu realizá-lo contrastava em seu rosto, em seu olhar, em
toda a sua presença, com os sintomas de uma capitulação melancólica e
gradual diante das adversidades que enfrentava ao realizar seu sonho. Tinha
sido um menino prodígio no conservatório de Bucareste ou Sofia, e sua
coleção de recortes e programas atestava uma carreira notável por salas de
concertos do Leste europeu. Mas agora perdia manhãs inteiras na antessala
de meu gabinete aguardando a decisão sobre um contrato que lhe garantiria,
no máximo, duas ou três apresentações em centros culturais da periferia, em
salões de festas com má acústica e pianos medíocres e mal afinados.
Não se permitia o desânimo, e caso entrasse em minha sala e eu lhe
dissesse que o diretor não viria ou que ainda não tinham começado o
processo de sua contratação, ele me dava um sorriso discreto e agradecia e
inclinava a cabeça antes de sair com um misto de velha cortesia centro-
europeia e rigidez comunista, com um instinto de obediência medrosa
diante de qualquer funcionário, o que talvez jamais perderia.
Era um homem jovem, miúdo, que na minha lembrança já muito fraca
se apresenta parecido com Roman Polanski: certamente já não era tão
moço, mas conservava, tal como Polanski nas fotos, um ar invariável de
juventude, uma espécie de vivacidade fugaz no olhar e nos gestos, que a
certa distância apagavam os sinais da idade já muito marcados nas feições.
Dava aulas particulares, procurava e aceitava concertos praticamente em
qualquer lugar, cobrando muito pouco, cachês às vezes tão baixos que, ao
fazer as contas, dizia a si mesmo, com um desses circunlóquios espanhóis
que tanto apreciava, era lo comido por lo servido. Mas também dizia, menos
da una piedra, e más vale pájaro en mano que en ciento volando,5 em seu
espanhol consciencioso aprendido com tanta paixão numa capital de bondes
decrépitos, invernos longuíssimos e noites prematuras, falado sozinho com
uma felicidade íntima de escapada e rebeldia, com a consciência de que ao
estudar essa língua estava antecipando um atributo necessário e tangível do
sonho que alimentava sua vida, tal como ao aprender a tocar no piano as
passagens mais difíceis da suíte Ibéria de Albéniz ou a Rapsódia española
de Ravel. E agora, mesmo vendo que os frutos de seu sonho realizado eram
tão mesquinhos, porque na Espanha os méritos de sua longa carreira de
virtuose de piano não contavam para nada, e ele tinha de se apresentar, nas
raras vezes que conseguia um contrato, em lugares lamentáveis, mesmo
vendo por sua roupa decente e surrada que vivia sob a agonia constante da
necessidade, ainda assim não se permitia render-se ao desalento, e
continuava demonstrando um entusiasmo agradecido por todas as coisas de
seu novo país, uma felicidade que vista de fora parecia um tanto patética,
como a de um apaixonado cuja amante nós sabemos que o maltrata e
desdenha e que no entanto continua tendo por ela uma devoção ilimitada,
desproporcional às dádivas tão escassas que recebe.
Esqueci muitas coisas da época, aquelas que quis apagar de minha
memória para não ser infectado de remorso e vergonha, de repugnância por
mim mesmo. Mas agora me lembro de uma história que esse homem, o
pianista búlgaro ou romeno, me contou, não sei se na minha sala ou num
dos bares dos becos onde nós, funcionários de baixo escalão, íamos tomar
café da manhã, numa das vezes em que me convidou para um café ou uma
aguardente, a fim de comemorar modestamente o fato de ter sido, afinal,
contratado para um concerto, ou recebido por meu chefe após dias ou
semanas de tortuosas postergações administrativas.
Ele estava voltando para a Espanha, vindo de Paris, num trem noturno
que chegou ao amanhecer à fronteira de Irún. Era a primeira vez que
viajava com sua nova identidade espanhola. Tinha participado de um
festival beneficente de artistas de seu país no exílio. Não conseguiu dormir
a noite toda, por causa do incômodo do assento de segunda classe, agravado
pela descortesia dos passageiros e dos alfandegários franceses, que
praticamente a cada estação o forçavam a levantar-se porque seu bilhete era
o mais barato e não tinha direito a reserva. Mas estava nervoso, sobretudo,
porque era a primeira vez que ia entrar na Espanha com sua nova
documentação, o passaporte e a carteira de identidade recebidos muito
pouco tempo antes. No compartimento às escuras, entre os passageiros que
roncavam, apalpava os bolsos do paletó e do manto procurando a toda hora
sua passagem, seu passaporte, sua carteira de identidade, e tinha sempre a
impressão de havê-los perdido, ou de ter um documento mas faltar outro, e,
quando os encontrava, guardava-os de novo num lugar talvez mais seguro,
no forro do casaco ou num bolso com zíper de sua sacola, mas esse novo
esconderijo era tão improvável que o esquecia se, por instantes, fosse
vencido pelo sono. Abria os olhos assustado, procurava os documentos e,
agora sim, é que tinha certeza de tê-los perdido, ou de que um desses
ladrões que rondam pelos trens noturnos os teria roubado. Lembrava-se das
horas de angústia e medo nos postos fronteiriços dos países comunistas, da
revista lentíssima de papéis e dos sinais de alarme quando estava prestes a
cruzar uma fronteira e talvez fosse detido por causa de um erro burocrático
em algum documento. Resolveu não dormir mais, guardar todos os
documentos juntos num só bolso e não tirá-los de novo dali nem tocar
neles. Tentava ver a hora na escassa luz violeta acesa no teto do vagão, e
nas paradas fixava-se nos nomes das estações procurando calcular quantas
ainda faltavam até Irún, impaciente para chegar e também assustado, mais
nervoso à medida que o trem parecia aumentar a velocidade ao se
aproximar da fronteira. Tinha, como tantas vezes na vida, a sensação de não
partilhar a normalidade das pessoas que o cercavam, os viajantes espanhóis
ou franceses que dormiam tranquilos no compartimento, seguros da ordem
das coisas, perfeitamente instalados no mundo, ao contrário dele, que
sempre tivera tendência a se sentir um intruso, a não dar nada como líquido
e certo e a temer que ocorresse um imprevisto.
Vencido pelo cansaço da noite em claro, dormia profundamente quando
o trem parou com um estrondo de freios. Abriu os olhos e, no início, ainda
preso a um pesadelo, pensou que o trem tinha chegado à fronteira de seu
antigo país, e que os guardas de uniformes cinza o deteriam quando vissem
que não tinha os documentos de identidade em ordem, o passaporte velho
que também me mostrou, uma relíquia do negro passado, a prova material
de que havia existido.
Desceu do trem apertando muito forte numa das mãos a sacola e na
outra o passaporte espanhol. Previamente se assegurara de que também
trazia, bem acessíveis no bolso, todos os documentos do processo de
naturalização, caso fosse preciso apresentá-los. Entrou na fila, do lado
espanhol da fronteira, indo para a cabine onde havia dois policiais da
Guardia Civil com cara de tédio ou sono. O senhor não vai acreditar, mas
minhas pernas tremiam, pois em toda a minha vida tive medo nas fronteiras,
e quando fui dizer bom-dia aos guardas notei que minha saliva tinha secado.
Então, quando se aproximava da cabine com a boca seca e as palmas das
mãos suando, com a sensação crescente de que bambeava as pernas,
aconteceu o que ele ainda continuava recordando com espanto e gratidão, o
que nenhum outro passageiro tinha se dado ao trabalho de perceber. Olhava
um dos guardas e sua impressão era de que ele o encarava com um olhar de
suspeita ou receio. Mas armou-se de coragem, como naquela vez que pulou
pela janela de um banheiro, e apresentou com a máxima naturalidade o
passaporte, aberto cuidadosamente na página em que havia sua foto,
preparado para dar explicações sobre a discordância entre sua nacionalidade
e seu nome, para mostrar rapidamente a documentação necessária. Mas o
guarda, sem nem sequer olhar o passaporte, sem prestar atenção ao seu
rosto, fez-lhe um gesto de pressa com a mão, disse-lhe, com certa rudeza
espanhola, que passasse, e esse gesto da mão e as duas palavras ásperas que
o guarda lhe disse pareceram-lhe as boas-vindas mais lindas que jamais
recebera, o sinal indubitável de sua cidadania. Com sua mão fina e branca
de músico imitava na minha frente o gesto do guarda, ainda agradecido,
maravilhado com o presente que nenhum dos outros passageiros
modorrentos do trem teria sido capaz de apreciar, repetindo como um
esconjuro as palavras do guarda, venga, pase, joder, acentuando o jota forte
que ele custava tanto a imitar, e pronunciava com elegância e orgulho,
como cada palavra da língua que já não era a dos livros e dos devaneios da
imaginação, mas a de sua vida prática e diária.
Apareciam e desapareciam os rostos dos desconhecidos na sala de
espera, ou do outro lado da mesa de meu gabinete, e eu costumava olhar
para eles com tão pouca atenção como escutava suas palavras, pedidos ou
exigências de coisas que não estavam a meu alcance providenciar, e que
pouco me importavam, embora tivesse aprendido a fazer cara de quem
escuta com muita atenção, profissionalmente, às vezes tomando nota, ou
fingindo, desenhando figurinhas ou sinais na folha branca defronte de mim,
dentro de uma pasta de ofícios, enquanto informava os trâmites necessários,
inventava explicações impessoais para o atraso de um pagamento que, sem
dúvida, estaria prestes a chegar, se bem que minha intervenção não pudesse
acelerá-lo, embora fosse possível que uma palavra a tempo do diretor
tivesse um efeito benéfico, caso ele, tão ocupado em tarefas de mais relevo
e responsabilidade, aceitasse demonstrar um pouco de interesse pelo
assunto. Vivia esperando, refugiado em meu parêntese de espaço e tempo
como numa toca, mas o que estava esperando além da próxima carta era
muito confuso para mim, uma névoa de coisas vagas e indecisões que eu
não tentava dissipar.
Permanecia imóvel, no provisório de minha espera, encolhido no
interior menos acessível de mim mesmo, numa quietude como a de quem
ouviu o despertador e sabe que tem de se levantar, mas se concede uns
minutos, um só minuto antes de abrir os olhos e pular da cama. Não sabia se
estava esperando o retorno daquela que me escrevia as cartas, pois enquanto
viveu neste lado do mar e na mesma cidade que eu também não me deu
muita bola, ou pelo menos não por muito tempo. Nunca a senti mais longe
de mim, mais inexpugnável, do que nas poucas vezes que a tive em meus
braços. Se a procurava, ela fugia de mim, mas se eu, desalentado,
abandonava essa busca era ela que se aproximava de mim, sempre com uma
promessa intacta, apagando de minha alma o ressentimento e a insegurança,
e eu voltava a desejá-la tanto que, cúpido e embevecido, me dirigia para ela
como para um ímã, e num instante, mal a tocava, ela já estava fugindo de
novo. Agora que vivia tão longe é que eu a sentia mais perto de mim, na
distância e nas cartas, na minha ignorância quase absoluta sobre a vida que
ela levava.
Na verdade era tão pouco tangível quanto as atrizes do cinema em
preto-e-branco, que me subjugavam até eu despertar de uma espécie de
paixão quimérica, o elenco completo e previsível, Lauren Bacall, Ingrid
Bergman, Gene Tierney, Ava Gardner, Rita Hayworth. Em Gilda, que vi
tantas vezes, Rita Hayworth foge de Glenn Ford e de Buenos Aires e, num
cabaré de Montevidéu, vestida de branco, canta e dança uma música
chamada Amado mio.

Amado mio
Love me forever
And let forever
Begin tonight.

No filme, Montevidéu não é nada mais que um nome, nem mesmo um


cenário ou uma dessas falsas telas panorâmicas diante das quais os atores
falam ou fingem dirigir um carro. A mulher que apareceu naquela manhã na
sala de espera de meu gabinete, com um menino no colo, uma bolsa cheia
de marionetes, tinha fugido de Montevidéu para Buenos Aires em 1974, e
quatro anos depois de Buenos Aires para Madri, grávida, ainda sem saber,
esperando um filho de um homem que fora levado uma noite por militares
ou policiais à paisana e de quem nunca mais soube nada. Enquanto
conversávamos, o menino brincava com os bonecos de madeira de sua mãe,
sentado no chão de minha sala, e ela o vigiava de rabo de olho, com um
desassossego que não se acalmava um só instante, consumida de pânico e
urgências secretas, uma mulher de trinta e tantos anos de cabelo e olhos
muito pretos, a cabeleira lisa e brilhando como uma crina, os olhos grandes,
muito maquiados de rímel, com um toque de exagero italiano, também no
nariz e na boca, as mãos fortes, meio masculinas, hábeis no manejo dos fios
e dos bonecos, que inopinadamente tirou da bolsa com um gesto amplo e
começou a manejar na minha frente, depois de ligar um gravador que
também trazia na sua bagagem de mambembeira. Sobre o metal cinza da
mesa e a confusão de meus papéis Chapeuzinho Vermelho entrava num
bosque dando pulinhos ao ritmo da música do gravador e o lobo a
espreitava atrás de uma pilha de ofícios, e a voz com forte sotaque do Rio
de la Plata contava a história e se desdobrava em outras vozes, a voz aguda
da menina, o vozeirão sombrio do Lobo, a voz fraca e fanhosa da avó. O
menino tinha se levantado e, enfeitiçado, aproximava-se da mesa, que batia
na altura dos seus olhos, enfeitiçado e medroso, temendo que o Lobo Mau
também pudesse estar espreitando-o, sem olhar nem um instante para as
mãos de sua mãe nem para os fios de onde pendiam os bonecos.
A demonstração não durou mais que dois ou três minutos, e quando a
música chegou ao tchã-tchã final e a fita parou os bonecos fizeram uma
grande reverência em uníssono e ficaram caídos e desconjuntados sobre os
papéis de minha mesa, mas o menino continuava olhando com seus olhos
de espanto, esperando que revivessem. Viu só, disse a mulher, em qualquer
lugar posso montar meu teatrinho, e guardou os bonecos e o gravador na
bolsa e o menino logo voltou a tirá-los um a um, examinando-os devagar,
querendo descobrir o segredo de sua vitalidade extinta, tão absorto neles e
em si mesmo que não reparava na minha presença nem na da mãe, nem
olhava uma só vez ao redor, para a sala um tanto suja onde estava, tão
inóspita talvez como o quarto de pensão em que os dois viviam desde sua
chegada à cidade, com a preocupação de não saber por quanto tempo
poderia pagá-lo, disse-me a mãe, pedindo nervosa que eu organizasse uma
turnê de apresentações nas escolas infantis, nas turmas dos pirralhos das
escolas públicas.
Também trazia seu dossiê, exibia suas fotocópias e seus recortes, suas
credenciais de outro país que aqui não lhe serviam, diplomas de cursos em
escolas de arte dramática de Montevidéu e Buenos Aires que na Espanha
não lhe adiantariam nem para encontrar trabalho de esfregar chão. Eu
repetia a ladainha habitual sobre os pedidos e os trâmites e os prazos de
espera e ela sustentava meu olhar com uma expressão de incredulidade e
quase de sarcasmo em seus olhos muito pretos, cheios de rímel, como me
dando a entender que não acreditava no que eu contava e que pouco se
importava, e que nem eu mesmo acreditava. Mas estava apressada para ir a
outro encontro, em outro gabinete parecido com o meu, na Câmara
Municipal, pegou o dossiê em cima da mesa e escreveu na página de rosto o
número de telefone da pensão, uma dessas pensões tenebrosas onde eu tinha
me hospedado uma vez nos meus tempos de estudante necessitado. Sabia,
assim como eu, que não havia a menor razão de me deixar o telefone, e que
teria de voltar muitas infrutíferas vezes, mas nós dois também sabíamos que
não havia outro jeito e que teria de perseverar e esperar, mesmo sentindo-se
humilhada em sua dignidade toda vez que ligava para saber se havia alguma
novidade, se já havia alguma decisão, toda vez que empurrava de novo a
porta de meu escritório e se sentava na antessala escura, sempre segurando
a mão do menino ou carregando-o no colo, porque não podia deixá-lo
sozinho na pensão, e não tinha a quem entregá-lo, o menino que nunca
chegaria a conhecer seu pai nem saber quando e como ele tinha morrido.
Agora será um jovem de pouco mais de vinte anos: verá a foto que sua mãe
me mostrou, numa de suas manhãs de espera no gabinete, a cara de um
homem com jeito de rapazinho, óculos de armação grossa, o cabelo
volumoso e crespo à moda dos anos 70 e as costeletas compridas, o
fantasma de alguém que tem quase sua idade e no entanto é seu pai, e não
está civilmente vivo nem morto, nem enterrado em lugar nenhum, nem
consta de um registro administrativo de óbitos, mas está perdido numa
espécie de limbo, desaparecido, morrendo sempre, sem o descanso, para os
que sobreviveram a ele e guardam sua memória, saber quando morreu e
onde o enterraram, se é que não o jogaram de um helicóptero no rio da
Prata, com os olhos vendados e as mãos algemadas, ou já morto, com o
ventre cortado por uma faca para que os tubarões dessem conta de seu
cadáver.
A mulher começou a chorar e o menino, que brincava no chão, perdido
em suas imaginações, de repente pareceu estar acordando, e virou-se para
ela, olhando-a muito sério, como se tivesse podido entender o que a mãe
contara em voz baixa. Pediu-me um lenço de papel e quando levantou os
olhos vi que um fio de rímel manchava seu rosto. Já vai passar, disse,
desculpando-se, afastando do rosto o cabelo liso e negro. Acendi seu
cigarro e seus grandes olhos escuros, brilhantes de lágrimas, me sorriram,
mas dessa vez não era o sorriso habitual de cortesia ou afago à minha
posição administrativa, e sim um sorriso destinado a mim, a quem tinha
escutado com atenção e pedido detalhes, a quem tinha oferecido a precária
hospitalidade de um gabinete, o tempo longo e sossegado para a
confidencia. Pensei com uma ponta de íntima mesquinhez masculina que
era uma mulher desejável, que talvez eu tivesse uma chance de levá-la para
a cama.
Mas seu nome eu lembro. Disse-me no primeiro dia, quando pedi seus
dados para preencher uma de minhas fichas detalhadas e inúteis, que
permitiam fingir um princípio de organização e equanimidade, e que eu
datilografava impecavelmente e depois classificava por ordem alfabética,
cada uma delas numa gaveta do arquivo de metal, onde havia uma pequena
etiqueta de cartolina de cores diferentes, segundo o assunto correspondente,
Teatro, ou Música Clássica, ou Rock, ou Flamengo, ou Artistas Diversos,
grupo em que estava incluído o tradutor de Garcia Lorca para o romani.
Talvez o nome tenha me chamado tanto a atenção porque não
combinava com seu aspecto italiano, com seu cabelo e seus olhos tão
pretos. Adriana, disse, Adriana Seligmann. As vezes, ao escutar um nome,
de uma mulher ou de uma cidade, você percebe em suas sílabas a vibração
de uma história como que cifrada nele, a chave de uma mensagem secreta,
toda uma existência contida numa palavra. Cada um carrega dentro de si o
próprio romance, talvez não o relato inteiro de sua vida, mas um episódio
que se cristalizou para sempre, e se resume num nome, que possivelmente
ninguém sabe e que é inadmissível dizer em voz alta. Rosebud, Milena,
Narva, Gmünd. Mais que nunca eu vivia na época alimentado de palavras e
apaixonado por nomes, nomes de mulheres para mim inacessíveis porque
não me atrevia a aproximar-me delas ou porque não existiam ou porque,
mesmo se tivessem uma existência real, o que via e me deixava apaixonado
era um sonho projetado por minha fantasia e meu desejo, nomes de cidades
mais bonitas ainda por eu não conhecê-las, e para onde era pouco provável
que um dia viajasse.
Agora a mulher distante e desejável parada na minha frente, do outro
lado da mesa, voltou a se sentar e me contou a história de seu nome. Muitas
vezes vi alguém que parece sofrer de repente uma mudança quando decide
contar algo de suma importância, a história ou o romance de sua vida,
alguém que dá um passo e suspende o tempo real do presente para
submergir num relato, e enquanto fala, embora o faça premido pela
necessidade de ser ouvido, olha como se tivesse ficado só, e o interlocutor
nada mais é do que uma tela de ressonância, talvez a membrana delgada em
que vibram as palavras da narrativa. Nunca sou mais eu mesmo do que ao
guardar o silêncio e escutar, do que ao deixar de lado minha cansativa
identidade e minha própria memória para concentrar-me totalmente no ato
de escutar, de ser plenamente habitado pelas experiências e lembranças de
outros.
Meu avô paterno chamava-se Seligmann, Saúl Seligmann, disse a
mulher. Em criança eu sabia vagamente que ele tinha vindo da Alemanha
ainda moço, mas nunca o ouvi falar da vida que levara antes de chegar a
Montevidéu. Lembro-me de ir de mãos dadas com meu pai visitá-lo em seu
ateliê de alfaiate. Deixava o que estivesse fazendo e me punha sentada em
seu colo, e me contava histórias com uma voz que tinha certo sotaque
estrangeiro. Aposentou-se e foi viver fora de Montevidéu, na outra margem
do rio, como dizemos. Tinha comprado uma quinta em El Tigre, para ficar
realmente só, como gostava, segundo meu pai dizia, creio que com certa
mágoa. Então praticamente deixei de vê-lo. Quando tinha doze anos meus
pais se separaram e durante uma temporada me mandaram para a casa de El
Tigre, de meu avô. Era uma casa de madeira, numa pequena ilha, com uma
varanda alta pintada de branco, um embarcadouro cercado de árvores. Após
os últimos meses passados com meus pais, aquele retiro na casa de meu avô
foi o paraíso. Lia os livros de sua biblioteca e escutava seus discos de ópera
e de tangos. Se lhe perguntava alguma coisa sobre a Alemanha ele me dizia
que tinha ido embora de lá muito jovem, e que se esquecera de tudo, até do
idioma. Mas descobri que não era verdade, embora talvez ele não soubesse.
Numa das primeiras noites que dormi na casa fui acordada por uns gritos.
Temi que tivesse entrado ladrão. Mas tive coragem de me levantar e
atravessei o corredor até o quarto de meu avô. Era ele quem gritava.
Gritava, conversava com alguém, discutia, parecia estar suplicando, mas eu
não entendia nada, porque falava em alemão. Gritava como nunca ouvi
alguém gritar. Parecia que chamava uma pessoa, dizia um nome, tão forte
que sua própria voz acabou por acordá-lo. Eu ia me esconder, mas percebi
que ele não me via na luz do corredor, embora estivesse de olhos abertos.
Ofegava e transpirava. No dia seguinte perguntei se tinha tido pesadelos,
mas me disse que não se lembrava de nada. Todas as noites se repetiam as
mesmas vozes, os gritos em alemão na casa silenciosa, o nome que ele
repetia, que eu não chegava a entender claramente, não sei se dizia Greta ou
Gerda. Quando meu avô morreu encontramos debaixo de sua cama uma
maleta cheia de cartas em alemão e fotografias de uma jovem. Grete era a
assinatura de todas as cartas, que pararam de chegar em 1940. Em criança
eu não gostava de meu sobrenome, mas agora o uso como um presente que
ele tivesse me dado, como essas cartas que gostaria de ter lido e não
entendia. Levei-as comigo quando fui para Buenos Aires, e também as fotos
de Grete. Vivia pensando em dá-las a alguém que soubesse alemão para que
as traduzisse, mas sempre deixava para depois. A vida se enche de
compromissos e a gente pensa que terá tempo para tudo, e de repente um
dia tudo termina, já não temos nada do que imaginamos ser nosso, nem o
marido, nem a casa, nem os papéis, nada além do medo e do espanto, da
separação que nunca termina. Que fim terão levado essas cartas, e o que
fariam com elas os que assaltaram minha casa? Pelo menos eu tinha alguma
coisa que não puderam me tirar, embora não soubesse quando escapei, não
sabia que acabava de engravidar.

________________
4 Porque me deu na veneta. (N.T.)
5 Lo comido por lo servido: trabalho que rende uma miséria; comer

insosso e beber salgado. Menos da una piedra: antes pouco do que nada;
meio pão é melhor que nenhum. Más vale pájaro en mano que ciento
volando: mais vale um pássaro na mão do que dois voando. (N.T.)
Sefarad

Lembro-me de uma casa judia num bairro de minha cidade natal,


chamado Alcázar, porque ocupa o espaço, ainda parcialmente amuralhado,
do alcáçar medieval, a cidadela fortificada que pertenceu primeiro aos
muçulmanos e, desde o século XIII, aos cristãos, desde 1234 para sermos
exatos, quando o rei Fernando III de Castela, chamado o Santo nos meus
livros escolares, tomou posse da cidade recém-conquistada. Para que
aprendêssemos a data com facilidade mandavam as crianças se lembrar dos
primeiros quatro algarismos, consecutivos: um, dois, três, quatro, e
repetíamos em coro a cantilena como se fosse uma tábua de multiplicar.
Fernando III, o Santo, conquistou nossa cidade dos mouros em mil duzentos
e trinta e quatro.
No local elevado do Alcázar, quase inacessível pelas ladeiras sul e leste,
houve primeiro a mesquita maior e depois, em seu próprio terreno, a igreja
de Santa Maria, que ainda existe, embora esteja há muitos anos fechada
para obras de restauração que nunca terminam. Tem ou tinha um claustro
gótico, o único lugar realmente antigo e valioso da construção, que muitas
vezes foi restaurada sem maiores cuidados, sobretudo no século XIX,
quando a ela se acrescentou, por volta de 1880, um portal confuso e vulgar,
e dois campanários sem nenhum interesse. Mas eu sabia distinguir o toque
de seus sinos entre todos os outros que se ouviam na cidade ao cair da tarde,
porque eram os sinos de nossa paróquia, e também sabia quando dobravam
por morte e para missa de defuntos, e reconhecia nos domingos, ao meio-
dia e ao entardecer, o repique caudaloso que anunciava a missa cantada.
Outros sinos igualmente próximos tinham um som muito mais grave e de
bronze solene, como os da igreja dei Salvador, ou mais agudo e diáfano,
como os do convento das freiras, que ficavam num torreão digno de uma
fortaleza, tão pouco acolhedor como todo o edifício, com seu portão sempre
fechado e seus altos muros de pedra escurecida de líquens e de musgo,
porque neles sempre batia a sombra fria do norte. De vez em quando aquele
portão preto com grandes cravos se abria e surgiam as freiras, sempre em
dupla, tão pálidas que pareciam vindas de além-túmulo, com seus hábitos
marrons e seus rostos apertados por um pano branco debaixo das toucas, a
pele mais branca que o pano, e me davam tanto medo que eu temia que
fossem me sequestrar, e apertava mais forte a mão de minha mãe, de véu
preto na cabeça para ir à igreja.
Lembro-me das grandes pedras desiguais do claustro de Santa Maria,
algumas eram lápides com nomes de mortos muito antigos talhados na
pedra, quase apagados pelos séculos e pelos passos das pessoas, e de um
jardim para o qual se abriam seus arcos ogivais e onde havia um pé de louro
tão alto que a vista de uma criança se perdia lá em cima sem vislumbrar seu
final. No jardim escurecido pela sombra gigante do loureiro e cheio de
samambaias e mato sempre havia, inclusive no verão, um cheiro fortíssimo
de vegetação e terra úmida, e ecoava o escarcéu dos pássaros que faziam
ninho nesse mato cerrado, os longos assobios das andorinhas e das
arapongas nas tardes demoradas do verão. De muito longe distinguia-se o
grande jorro verde-escuro do loureiro, como um gêiser de vegetação que
subia mais alto que os campanários da igreja e os telhados do bairro, e
balançava nas tardes de vendaval. Quando era um garotinho e entrava no
claustro Santa Maria de mãos dadas com minha mãe sentia tonteira ao
chegar ao jardim para ver o loureiro, e sempre observava o frio úmido da
terra e da pedra e ficava surdo com o fragor dos pássaros levantando voo de
repente, quando os sinos redobravam.
Tinha certeza de que o loureiro chegava ao céu, como o matagal de
vagens mágicas daquela história que me contavam as mulheres de minha
casa, e que muitos anos depois eu lia para meu filho mais velho, sempre
ansioso por histórias quando ia para a cama, desde os dois ou três anos, já
impaciente ao perceber antecipadamente que a história ia acabar, pedindo-
me que a esticasse um pouco mais, lesse ou contasse outra, e melhor ainda,
inventasse uma sob medida, dando aos personagens os traços de
personalidade e os poderes mágicos que ele apreciava, pondo-lhes nomes
que ele devia aprovar. Lendo o conto perto da cabeceira da cama de meu
filho eu imaginava seu pequeno herói subindo para o céu e emergindo do
outro lado das nuvens pelos galhos daquele loureiro prodigioso da Santa
Maria, tal como tinha imaginado em criança, quando me contavam a
história. Se olhava muito fixo para cima, mesmo se não houvesse vento, o
loureiro balançava ligeiramente, mais inquietante porque o balanço era
quase imperceptível. Quando um vento forte o agitava, o ruído de suas
folhas tinha uma força como a da ressaca do mar, que eu nunca tinha
escutado, a não ser em filmes, ou quando aproximavam de mim um
caramujo e me diziam que ainda soava dentro dele um eco do mar de onde
o haviam trazido.
Lembro-me de ir à igreja de Santa Maria todas as tardes, no verão de
meus doze anos, rezar ave-marias para a Virgem de Guadalupe, padroeira
de minha cidade, a quem pedia que intercedesse por mim para ser aprovado
em educação física, no mês de setembro, porque nos exames de junho eu
tinha sido reprovado de modo humilhante, embora não injustificado. Eu não
dava certo em nenhum esporte, era incapaz de subir numa corda ou pular
num potro e nem sequer sabia dar uma cambalhota. Foi crescendo em mim
um sentimento de exclusão amargamente acentuado com a perda das
confortáveis certezas da infância e com as primeiras confusões e os temores
da passagem para a adolescência. Sentia-me sempre envergonhado e isolado
dos outros, meu rosto redondo demais se enchendo de espinhas, o buço
escurecendo o lábio superior, ainda infantil, os pelos brotando nos lugares
mais estranhos de meu corpo, o arrependimento agudo e secreto da
masturbação, que segundo os ensinamentos torpes dos padres era não só
pecado mas também o princípio de uma série de doenças atrozes. Que
estranho ter sido esse menino solitário, gordinho e acanhado que toda tarde
de verão, quando o calor amainava, ia ao bairro do Alcázar e entrava nos
claustros frescos de Santa Maria e rezava para a Virgem, pisando em
lápides de mortos sepultados cinco ou seis séculos antes, devoto e
envergonhado por dentro, porque nesse verão tinha aprendido a se
masturbar, olhando sempre de soslaio para dentro dos decotes e para as
pernas nuas das mulheres, para o peito branco, de mamilo grande e escuro e
veias finas azuladas, de uma cigana descalça que amamentava o filho
sentada na porta de um dos casebres de gente pobre que havia no final do
bairro, perto das ruínas da muralha. Às vezes, na grande praça defronte da
igreja, eu via de longe, sentados num banco de pedra, os quatro ou cinco
malandros da minha turma, que já fumavam e entravam nas tabernas, e se
passasse na frente deles, mesmo fingindo não vê-los, debochariam de mim,
como tinham debochado no ginásio e no pátio do colégio diante de minha
covardia física, mais ainda se percebessem para onde eu estava indo, eu, o
cê-dê-efe gordinho aprovado em tantas matérias mas incapaz de passar em
educação física, e que agora rezava todas as tardes para a Virgem, e várias
vezes ia se confessar e depois ficava para a missa e comungava, com o
remorso e o temor de não ter se atrevido a confessar tudo, a dizer ao padre,
que tinha feito perguntas formais e traçado no escuro o sinal-da-cruz ao
mesmo tempo que murmurava a penitência e a absolvição, que havia mais
um pecado, que ele não podia nem mesmo enunciar a não ser por distantes
eufemismos, pois tinha cometido um ato impuro. Muito cedo a doutrina
católica nos habituava à contenda solitária consigo mesmo, às contorções
do sentimento de culpa: um ato impuro era um pecado mortal, e se não
fosse confessado não podia ser absolvido, e se a gente se aproximasse para
comungar em pecado mortal estava cometendo outro, tão grave como o
primeiro, que a ele se somava na ignomínia secreta da consciência.
Na igreja de Santa Maria casei pela primeira vez, aos vinte e seis anos.
Talvez pelo atordoamento e pelo nervosismo da cerimônia e pela vertigem
de ver tanta gente não cheguei dessa vez a prestar atenção no grande
loureiro do claustro, mesmo que agora me invada a suspeita alarmante de
que talvez o tivessem abatido, nada de estranho numa cidade tão viciada em
arboricídio. O jovem, de bigode, cabelo cortado à navalha, terno azul-
marinho e gravata cinza-pérola, parece ainda mais remoto que o menino
piedoso e secretamente envergonhado de catorze anos antes. Durante esse
tempo havia aperfeiçoado as aptidões que já vislumbrava como suas no
início da adolescência, o hábito de fingir que era e fazia o que se esperava
dele e ao mesmo tempo de se rebelar furiosamente em silêncio, a astúcia vã
de esconder o que imaginava ser sua identidade verdadeira e de alimentá-la
com livros e sonhos e uma dose gradual de rancor, enquanto externamente
apresentava uma atitude de mansa aquiescência.
Assim vivia num exílio imóvel, num distanciamento que quase nunca se
amenizava, e no entanto era tão falso como uma perspectiva de campo
aberto pintada num muro ou como essas transparências de cinema em que
um ator dirige a toda a velocidade um conversível na beira de um precipício
sem que o vento despenteie o seu cabelo nem se sucedam e fujam no para-
brisa as sombras das árvores.
O bairro do Alcázar, atrás da igreja de Santa Maria, limitado ao sul e a
oeste pelo caminho que circunda a muralha em ruínas e pelos terrenos das
hortas, tem ruas estreitas e de pedra e pracinhas onde pode haver um
casarão com grande arco de pedra e duas ou três amoreiras ou álamos. As
casas mais antigas do bairro são do século XV. Estão caiadas, salvo os
dintéis das portas, que mostram o tom amarelento da pedra arenosa em que
foram talhados, a mesma dos palácios e das igrejas. O branco da cal e o
amarelo dourado da pedra contrastam numa delicada harmonia que tem a
elegância luminosa do Renascimento e a austera beleza da arquitetura
popular. Janelas altas e estreitas com grades apertadas como gelosias e
grandes muros fechados por cercas e jardins recordam o hermetismo da
casa muçulmana herdado intacto pelos conventos de clausura. Há casarões
com janelinhas estreitas como seteiras onde às vezes nos escondíamos em
criança e com grandes argolas nas fachadas, argolas de ferro tão pesadas
que não tínhamos força para levantá-las, e nas quais nos diziam que os
senhores antigos amarravam seus cavalos. Nesses casarões moravam os
nobres que administravam a cidade e se defendiam, fortalecidos, atrás dos
muros do Alcázar, em seus levantes feudais contra o poder dos reis.
Protegida por esse mesmo muro ficava a Judería: os nobres precisavam do
dinheiro dos judeus, de suas habilidades administrativas, da destreza de
seus artesãos, e, por isso, tinham interesse em protegê-los contra as
periódicas explosões de fúria do povo beato e brutal, excitado por
pregadores fanáticos, por lendas sobre profanações da hóstia e rituais
sanguinários celebrados pelos judeus para infamar a religião cristã.
Roubavam hóstias consagradas nas quais cuspiam e enfiavam pregos, e
depois as pisoteavam e esmagavam com tenazes para nelas repetir os
suplícios que eles tinham infligido à carne mortal de Jesus Cristo.
Sequestravam crianças cristãs e as degolavam nos porões das sinagogas, e
bebiam seu sangue ou manchavam com ele a farinha branca e sagrada das
hóstias.
Alguém me falou dessa casa judia e dei voltas pelo bairro do Alcázar
até conseguir encontrá-la. Fica num beco estreito, como que encolhida, e
lembro-me dela habitada, com vozes de gente e ruído de televisão chegando
à rua pelas janelas abertas, nas quais havia vasos com gerânios. Tem uma
porta baixa, e nas duas pontas da grande pedra do dintel há duas estrelas-de-
davi talhadas, inscritas num círculo, não tão gastas pelo tempo que não se
possa perceber seu desenho com exatidão. É uma casa pequena, embora
sólida, que deve ter pertencido, não a uma família abastada, e sim a um
escrivão ou a um pequeno comerciante, ou ao professor de uma escola
rabínica, a uma família que viveria, nos anos anteriores à expulsão, dividida
entre o medo e o esforço de normalidade, imaginando que os excessos
ameaçadores do fanatismo cristão se acalmariam, como tantas outras vezes,
e que nessa pequena cidade e atrás da proteção dos muros do Alcázar não
iam se repetir as matanças terríveis de alguns anos atrás em Córdoba, nem
as do final do século anterior. A casa, no beco, tem algo de suspeito e
oculto, como a atitude de alguém que, para não chamar a atenção, baixa a
cabeça e encolhe os ombros e procura andar perto da parede. O que você
faria se soubesse que da noite para o dia podem expulsá-lo, que bastarão
uma assinatura e um selo de lacre ao pé de um decreto para que a sua vida
inteira se estraçalhe, para que você perca tudo, sua casa e seus bens, sua
vida de todos os dias, e seja atirado nas estradas, exposto à vergonha,
obrigado a se despojar de tudo o que pensava ser seu e a empreender uma
viagem num navio que o levará sabe-se lá para onde, para um país onde
também será apontado e rejeitado, ou nem mesmo isso, para um naufrágio
no mar, no mar terrível que você nunca viu. As duas estrelas-de-davi são a
única prova que atesta a existência de uma comunidade numerosa, como as
impressões fósseis de uma folha estranha que pertencia à imensidão de um
bosque destruído há milênios por um cataclismo. Não poderiam acreditar
que realmente iam ser expulsos, que em poucos meses teriam de abandonar
a terra onde nasceram e onde já viviam seus antepassados mais distantes, as
ruas da cidade que imaginaram ser sua, e onde de repente não recebiam
nada além de demonstrações de ódio. Quem pode acreditar que sua casa, na
qual está modelada a forma de sua vida, lhe será tirada dali a poucos dias, e
que gente desconhecida virá ocupá-la e nada saberá de quem vivia ali e que
acreditava viver na sua própria casa? A casa tinha uma porta com pregos
enferrujados e uma aldrava de ferro, e pequenas molduras góticas nas
quinas do dintel.
Talvez a chave que coubesse no grande olho da fechadura tivesse sido
levada pelos expulsos, que foram legando-a, de pai para filho, durante as
sucessivas gerações do desterro, tal como a língua e os sonoros nomes
castelhanos, e os romances e os cantos infantis que os hebreus de Salônica e
Rodes levariam na longa viagem infernal para Auschwitz. De uma casa
parecida com esta partiriam para sempre a família de Baruch Spinoza e a de
Primo Levi. Eu caminhava pelos becos de pedra da Judería de Úbeda
imaginando o silêncio que os devia ter inundado nos dias posteriores à
expulsão, como o silêncio que teria ficado nas ruas do bairro sefardita de
Salônica quando os alemães o evacuaram em 1941, onde já não se voltaria a
escutar as vozes das meninas que pulavam corda enquanto cantavam
cantigas como as que cheguei a escutar em minha infância, cantigas de
mulheres que se disfarçavam de homens para combater nas guerras contra
os mouros, ou de rainhas encantadas. Nos púlpitos das igrejas, os
franciscanos e os dominicanos pregavam para a multidão analfabeta, os
sinos dobravam com repiques de triunfo enquanto os desterrados iam
abandonando o bairro do Alcázar, na primavera e no verão de 1492, outra
data que aprendíamos de cor na escola, porque era a de maior glória na
história da Espanha, dizia-nos o professor, quando se reconquistou Granada
e se descobriu a América, e nossa pátria recém-unificada começou a ser um
império. De Isabel e Fernando o espírito impera, cantávamos apoiando com
pisadas marciais os momentos de ênfase do hino, morreremos beijando a
sagrada bandeira. Façanha tão importante dos Reis Católicos como a vitória
contra os mouros em Granada, e decisão tão sábia como o apoio a Colombo
havia sido a expulsão dos judeus, que nos desenhos de nossa enciclopédia
escolar tinham narizes aduncos e cavanhaques pontudos, e a quem se
atribuía a mesma obscura perfídia que a outros inimigos jurados da
Espanha, dos quais nada mais sabíamos além de seus nomes terríveis:
maçons e comunistas. Quando estávamos brigando com outros meninos na
rua e um deles nos cuspia, gritávamos sempre: Judeu, que cuspiu no Senhor.
Nos quadros do desfile da nossa Semana Santa os verdugos e os fariseus
tinham os mesmos traços grosseiros dos judeus da enciclopédia escolar.
Na Ultima Ceia, Judas metia tanto medo aos meninos como um drácula
de cinema, com seu nariz ganchudo e sua barba pontuda e a cara esverdeada
de traição e cobiça com que se virava para olhar secretamente a bolsa com
os trinta dinheiros.
No hotel Excelsior, em Roma, muitos anos e várias vidas mais tarde,
conheci o escritor romeno e sefardita Emile Roman, que falava
fluentemente italiano e francês, mas também um estranho e cerimonioso
espanhol aprendido na infância, e que devia parecer com o que falavam em
1492 os habitantes daquela casa do bairro do Alcázar.
Mas nós não nos chamávamos sefarditas, disse-me, nós éramos
espanhóis. Em Bucareste, em 1944, um passaporte expedido às pressas pela
embaixada espanhola permitiu salvar sua vida. Com o mesmo passaporte
que o livrara dos nazistas ele fugiu anos mais tarde da ditadura comunista, e
nunca mais voltou à Romênia, nem mesmo após a morte de Ceausescu.
Agora escrevia em francês e vivia em Paris, e, como estava aposentado,
passava as tardes na sede de uma irmandade de velhos sefarditas chamada
Vida Longa. Era um homem muito alto, parado, de gestos graves, pele
olivácea e grandes mãos rituais. No bar do hotel Excelsior um indivíduo de
gravata-borboleta vermelha e smoking prateado tocava sucessos
internacionais num órgão elétrico. Sentado na minha frente, perto dos
janelões que davam para o trânsito da Via Veneto, Emile Roman bebia aos
golinhos uma xícara pequena de café expresso e falava apaixonadamente
das injustiças cometidas cinco séculos antes, nunca esquecidas, não
reparadas e nem mesmo amortecidas pelo tempo e pelas sucessivas
gerações, o inapelável decreto de expulsão, as casas e os bens vendidos às
pressas para respeitar o prazo de dois meses concedido aos expulsos, dois
meses para abandonar um país em que tinham vivido seus antepassados por
mais de mil anos, quase desde o início da outra Diáspora, disse Emile
Roman, as sinagogas desertas, as bibliotecas dispersas, as lojas vazias e as
oficinas fechadas, cem mil ou duzentas mil pessoas forçadas a partir de um
país com apenas oito milhões de habitantes. E sem falar dos que não se
foram, dos que preferiram se converter por medo ou conveniência e
calcularam que ao receber o batismo seriam aceitos. Mas isso tampouco
adiantou, pois se já não podiam ser perseguidos pela religião que abjuraram
agora era seu sangue que os condenava, e não só a eles, mas também a seus
filhos e netos, de modo que quem ficou acabou sendo tão estrangeiro como
quem partiu, e até mais, pois não só eram desprezados pelos que deveriam
ser seus irmãos na nova religião, mas também pelos que permaneceram
fiéis à religião que eles tinham abandonado. O pecador mais infame podia
se arrepender e, se cumprisse a penitência, livrar-se da culpa, o herege
podia abjurar seus erros, o pecado original podia ser redimido graças ao
sacrifício de Cristo: mas para o judeu não havia redenção possível, pois sua
culpa era anterior a ele e independente de seus atos, e inclusive ele era mais
confusamente suspeito se sua aparência fosse de exemplaridade. Mas nisso
a Espanha não foi uma exceção, não foi mais cruel ou mais fanática que
outros países da Europa, ao contrário do que se costuma pensar. Se a
Espanha se distinguiu em alguma coisa, não foi em expulsar os judeus, mas
em expulsá-los tão tarde, porque no século XIV tinham sido expulsos da
França e da Inglaterra, e não creia que com mais deferências, e em 1492
muitos dos que saíram da Espanha procuraram refúgio em Portugal, e o
obtiveram em troca de uma moeda de ouro por pessoa, mas seis meses mais
tarde também foram expulsos, e os que se converteram para não precisar
partir não tiveram uma vida melhor que a dos conversos da Espanha, e
também receberam o nome infame de marranos. Mas houve marranos que,
após várias gerações de submissão ao catolicismo, voltaram a professar o
judaísmo, a família de Baruch Spinoza, por exemplo, e ele, que tinha uma
inteligência racional e livre demais para obedecer a qualquer dogma, foi
oficialmente expulso da comunidade judaica, logo ele, que vinha de uma
linhagem de judeus expulsos da Espanha.
Ser judeu era imperdoável, deixar de sê-lo era impossível, disse com sua
lenta ira melancólica Emile Roman, cujo nome verdadeiro era Samuel Béjar
y Mayor. Não sou judeu pela fé de meus antepassados, que meus pais nunca
praticaram, e que quando eu era jovem me importava tanto como para você
a crença de seus avós nos milagres dos santos católicos. O que me fez judeu
foi o antissemitismo. Durante algum tempo ainda podia ser como uma
doença secreta, que não exclui o indivíduo da comunidade porque não se
revela em sinais exteriores, em manchas ou pústulas que podem condená-lo
como a um leproso da Idade Média. Mas um dia, em 1941, tive de costurar
uma estrela-de-davi amarela no peito de meu abrigo, e desde então a doença
já não podia ser escondida, e se eu esquecia um instante que era judeu e não
podia ser mais que um judeu, os olhares de quem cruzava comigo na rua ou
na plataforma do bonde (enquanto nos foi permitido andar de bonde) se
encarregavam de recordá-lo, de me fazer sentir minha doença e minha
estranheza. Alguns conhecidos viravam a cara para não ter de nos
cumprimentar ou para não serem vistos conversando com um judeu.
Havia quem se afastasse, como quem se afasta de um mendigo imundo
ou de alguém com uma deformidade muito desagradável. Os que foram
meus compatriotas tinham virado estrangeiros. Mas o estrangeiro era eu, e a
cidade onde havia nascido e vivido sempre já não era minha, e a qualquer
momento, enquanto andava pela cidade, qualquer um podia me injuriar, ou
me empurrar para a rua porque eu não tinha direito de caminhar pela
calçada, ou se tinha a má sorte de cruzar com um bando de nazistas
arriscava-me a receber uma surra ou a sofrer a humilhação de sair correndo
para que não me alcançassem, como um menino acanhado que os fortões e
os bonitões da rua se divertem em atormentar.
Leu Jean Améry? Deve ler, é tão importante como Primo Levi, só que
muito mais desesperado. A família de Primo Levi tinha emigrado para a
Itália em 1492. Os dois estiveram em Auschwitz, onde não chegaram,
porém, a se encontrar. Levi não partilhava o desespero de Améry, nem
podia aceitar seu suicídio, mas também acabou se matando, ou pelo menos
foi essa a conclusão da polícia. Na verdade, Améry não se chamava Améry,
nem Jean. Nasceu na Áustria e chamava-se Hans Mayer. Até os trinta anos
viveu acreditando ser austríaco, e sua língua e sua cultura, alemãs. Até
gostava de salientar essa ligação com a cultura austríaca, e volta e meia
vestia o traje folclórico de calça curta e meias três-quartos. Um dia, de
repente, em novembro de 1935, sentado num café, em Viena, tal como
estamos nós dois sentados, abriu o jornal e leu a proclamação das leis
raciais de Nuremberg, e descobriu que não era o que pensara e sempre
quisera ser, e o que seus pais o ensinaram a pensar que era, um austríaco.
De repente era o que jamais tinha imaginado: um judeu, e, para completar,
era apenas isso, toda a sua identidade se reduzia a essa única condição.
Havia entrado no café com a certeza de ter uma pátria e uma vida e
quando saiu já era um apátrida, no máximo uma possível vítima, mais nada.
Seu rosto era o mesmo, mas ele já tinha se transformado em outro, e ao se
olhar devagarinho no espelho não custava a começar a distinguir os sinais
da transformação, embora por sua aparência física ninguém pudesse
averiguar sua origem, os traços do estigma. Pagaria seu café ao mesmo
garçom de todas as manhãs, que se inclinaria ligeiramente para ele quando
recebesse a gorjeta, mas agora sabia que muito provavelmente o garçom o
olharia com o desprezo reservado a um mendigo inoportuno se soubesse
que ele era judeu. Fugiu para o Ocidente, para a Bélgica, quando ainda era
tempo, em 1938, mas naquela época as fronteiras da Europa se
transformavam de um dia para o outro em armadilhas ou cercas de arame
farpado, e ele, que havia escapado para outro país, acordou um dia ouvindo
pelos alto-falantes os gritos dos verdugos que imaginou ter deixado para
trás no seu próprio país. Em 1943 foi preso pela Gestapo em Bruxelas.
Semanas a fio submeteram-no a torturas horrorosas e pouco depois o
mandaram para Auschwitz. Após a Libertação ele renegou seu nome
alemão e a língua alemã que acreditara ser sua, e resolveu se chamar Jean e
não Hans, e Améry e não Mayer, e nunca mais pisar na Áustria nem na
Alemanha. Leia o livro que escreveu sobre o inferno do campo. Ao
terminá-lo eu não conseguia ler nem escrever nada. Diz que no momento
em que a pessoa começa a ser torturada quebra-se para sempre seu pacto
com os outros homens, e embora se salve e fique livre e continue vivendo
muitos anos a tortura jamais cessará, e já não poderá olhar nos olhos de
ninguém, nem confiar em ninguém, nem deixar de perguntar-se, na frente
de um desconhecido, se ele é ou foi torturador, se lhe custaria muito sê-lo, e
quando uma vizinha velha e educada lhe dá bom-dia ao cruzar com ele na
escada pensa que essa velha amável pode ter denunciado à Gestapo seu
vizinho judeu, ou olhado para o outro lado quando o vizinho foi arrastado
escadas abaixo, ou gritado Heil Hitler até enrouquecer, durante a passagem
dos soldados alemães.
Há poucos anos, convidaram-me para ir à Alemanha, dar uma palestra
numa cidade muito bonita, de conto de fadas, com ruas de pedra e casas de
telhados góticos, parques, muita gente passeando de bicicleta, Göttingen,
onde tinham vivido os irmãos Grimm. Lembro-me do ruído como que de
seda que faziam os pneus das bicicletas ao deslizarem sobre os
paralelepípedos úmidos ao anoitecer, e do som de suas campainhas. Era um
dia ensolarado, e desde cedo fui de um lado para outro, sempre com pessoas
muito prestativas e afetuosas, tentando satisfazer de imediato qualquer
desejo que eu formulasse, com uma eficácia que podia ser aflitiva. Se eu
dizia que tinha interesse em visitar um museu, imediatamente começavam a
telefonar e no instante seguinte já tinham à minha disposição folhetos
informativos, tabelas com os horários, modos possíveis de transporte. Pela
manhã levaram-me para dar uma palestra na universidade, depois se
angustiaram apresentando-me possibilidades diversas de locais para
almoçar, se eu preferia comida italiana, ou chinesa, ou vegetariana, e
quando disse meio por acaso que me apetecia um italiano, desdobraram-se
para saber qual seria o melhor entre os vários possíveis. De tarde, com toda
a sonolência da comida e o cansaço acumulado da viagem, levaram-me a
uma livraria para fazer uma leitura.
Eu lia um capítulo de meu livro, e em seguida o tradutor o lia em
alemão. Mal comecei a ler, desanimei ao pensar em todas as páginas que
ainda tinha pela frente, e fiquei aborrecido e irritado com o que eu mesmo
tinha escrito. Levantava os olhos do livro ao engolir saliva ou tomar fôlego
e via diante de mim as caras sérias e atentas do público, ouvindo-me
disciplinadamente sem entender uma palavra, e que além do mais tinha
pagado para suportar esse suplício. Envergonhava-me do que havia escrito,
sentia-me culpado pelo tédio que aquela gente devia estar sentindo, e para
encurtar o mau momento li em disparada e pulei parágrafos inteiros. Meus
olhos estavam fechando quando o tradutor começava a ler em alemão, mas
eu tentava me manter de cabeça erguida e atento, como se entendesse
alguma coisa, e procurava nos rostos agora menos inanimados da plateia
possíveis reações ao que eu havia escrito tempos atrás numa língua que não
parecia nada com a que ouviam. Distinguia um sorriso, um gesto de
concordar com alguma coisa escrita por mim e que eu não sabia o que era, e
no final senti-me tão aliviado que nem liguei para a veemência dos
aplausos, embora tenha sorrido e inclinado um pouco a cabeça, com a
baixeza habitual de quem é lisonjeado. Que tormento receber parabéns,
responder a perguntas de pessoas tão profundamente interessadas que eu
quase sentia vergonha de dar tão pouca importância ao interesse delas pelo
que eu dizia. Era como andar na areia e afundar a cada passo, como bracejar
na areia, e eu, tudo o que desejava era sair dali o quanto antes e não ter de
escrever outra dedicatória nem mostrar interesse diante de outra explicação,
e me livrar dos organizadores angustiantemente prestativos, que já
tramavam e organizavam meus próximos passos, olhavam o relógio
calculando o tempo que faltava para fechar o museu a que eu queria tanto ir,
discutiam se seria mais rápido e cômodo me levarem de táxi ou de bonde,
verificavam se eu ainda estava com os folhetos, um deles olhava num mapa
para ver se perto do museu havia um restaurante italiano a que pudessem
me levar para jantar, tendo em vista que já conheciam minha predileção
pela comida italiana. Ficaram consternados e senti-me horrivelmente
culpado quando lhes disse que preferia ir para o hotel, onde jantaria
qualquer coisa, embora um deles tenha se oferecido para telefonar a fim de
que lessem a carta e eu pudesse ir tomando uma decisão e também para que
lhe dissessem o horário de abertura e fechamento do restaurante e, se fosse
o caso, as possibilidades de escolha oferecidas pelo room service. Que não
se incomodassem, eu disse, quase supliquei, pois não estava com fome e
poderia tomar uma cerveja e comer um saco de batatas fritas do minibar do
quarto, mas logo me arrependi de ter dito isso, pois surgiu a dúvida de haver
ou não minibar no quarto... Não podia acreditar que estava só quando afinal
me deixaram, despedindo-se de mim com um afeto absolutamente
imerecido, nos degraus da portaria, eles tão amáveis e eu amaldiçoando-os
por dentro, antecipando quase dolorosamente a proximidade do momento
em que poderia deitar na cama, sem fazer nada, sem falar com ninguém,
sem ter de abrir caminho por um menu escrito só em alemão, tirar os
sapatos e dobrar o travesseiro e ficar deitado olhando o teto, desfrutando de
todas as horas que tinha diante de mim para ficar sozinho, passear a meu
bel-prazer, por onde me desse vontade, com as mãos nos bolsos, sem rumo,
sem ninguém a meu lado para me submeter a uma implacável cortesia.
Cochilei um pouco, no conforto alemão do quarto, pequeno e com vigas
no teto e chão de madeira encerada, como no desenho de um conto de
fadas, jogando em cima de mim um desses edredons leves e quentes que
não há em nenhuma outra parte do mundo, recostado no travesseiro grande,
macio, cheirando a lavanda, mas não queria cair no sono, porque era cedo,
embora já estivesse anoitecendo, e se dormisse agora poderia acordar em
plena forma às duas da madrugada, e passar o resto da noite numa dessas
insônias terríveis de quarto de hotel. Desci à portaria tomando a precaução
de verificar que nenhum de meus anfitriões estava nas redondezas, e ao
chegar à rua também olhei para um lado e outro, lembrando-me dos espiões
dos romances de John le Carré que li tanto na juventude, homens comuns
com óculos e mantos que andam por cidadezinhas alemãs e de vez em
quando se viram e olham nos espelhos dos carros estacionados para checar
se não são seguidos por um agente da Stasi. Havia uma névoa fria no ar,
uma umidade e um cheiro de rio e vegetação encharcada. À medida que ia
me recuperando do cansaço e da sonolência, sentia esse princípio de euforia
que costuma me animar quando saio do hotel pelas ruas de uma cidade
estrangeira e não tenho diante de mim nenhuma obrigação. Sou todo olhos,
não sou ninguém e ninguém me conhece, e se estou com você nós andamos
abraçados com uma deliciosa leveza que nos devolve aos primeiros dias em
que nos conhecemos, porque essa cidade à qual chegamos é tão nova e
promissora como foi a nossa quando teve a mesma claridade inaugural de
nossa vida recém-iniciada de amantes.
Lembro-me de muito poucas coisas, muito nítidas: uma rua de pedra,
com casas de telhados em ponta, tetos de palha e vigas de madeira
cruzando-se nas fachadas, janelas pequenas com postigos de madeira
semifechados, através dos quais se viam interiores iluminados, forrados de
lambris, de livros. Lembro-me do rumor sigiloso das bicicletas, da vibração
das rodas ao girarem no silêncio da rua sem carros, dos pneus roçando
aderentes nos paralelepípedos úmidos. Escutava às minhas costas a nota
aguda de uma campainha e logo um ciclista tranquilo passava por mim,
homem ou mulher, não necessariamente jovem, às vezes uma senhora de
cabelo branco e óculos e chapéu antiquado, ou um executivo de terno azul-
marinho debaixo do impermeável. Vi torres góticas com relógios dourados
e vi bondes que passavam no fundo de uma rua num silêncio quase tão
fantasmagórico como o das bicicletas. Numa esquina chamou-me a atenção
a vitrine muito iluminada de uma confeitaria, da qual chegava um barulho
intenso e jovial, embora também amortecido, como revestido da quietude
geral da cidade, conversas e tilintar de colherzinhas e xícaras, e um aroma
quente de doces sendo preparados, muito nítido no ar tão frio, e de
chocolate e café. Por estar com fome e ter ficado com frio durante o passeio
tão longo venci a timidez que tantas vezes me impede de entrar sozinho
num local cheio de gente, o acanhamento espanhol que se acentua se estou
em país estrangeiro. Devia ser uma confeitaria do início do século,
conservada intacta, com estuques e dourados do barroco austro-húngaro,
espelhos emoldurados de mogno e lustres de salão de baile, candelabros de
mármore e colunas finas de ferro pintadas de branco, um brilho de
purpurina nos capiteis. Havia jornais grandes alemães presos em paus de
madeira, com letras muito miúdas e apertadas, parecendo também jornais
do início do século, ou pelo menos da guerra de 1914. As garçonetes
vestiam corpetes brancos decotados e saias rodadas antigas, tinham tranças
formando uma rosca ou presas nas têmporas, e eram louras e de rostos
vermelhos e redondos, e moviam-se velozes e meio sufocadas entre as
mesas cheias de gente, segurando no alto com uma só mão bandejas
carregadíssimas de bules de chá e jarras de porcelana com café ou chocolate
e fatias de tortas, as tortas imensas, deliciosas que reluziam nas vitrines,
numa variedade que eu nunca tinha visto, nem voltei a ver depois.
Sentado num canto, perto de uma mesa bem pequena, enquanto
esperava o chá e a torta de queijo e amoras que eu pedira entendendo-me
por sinais com a garçonete, entretive-me olhando os rostos ao redor,
aproveitando o interior aquecido, a tranquilidade de não ter de prestar
atenção ao idioma que escutava, já que o ignorava totalmente, portanto
podia poupar o esforço de captar conversas. Havia gente velha, sobretudo,
mais mulheres que homens, casais de aposentados prósperos ou grupos de
senhoras com chapéus e abrigos, e o tom geral era de sólido e civilizado
deleite, cabeças que assentiam e mãos que levantavam xícaras de chá com o
mindinho esticado, risos prudentes, conversas vivas e tão herméticas para
mim como os pares de olhos claros que às vezes registravam minha
presença com uma ligeira piscada de curiosidade ou talvez de rejeição. Eu
era sem dúvida o único estrangeiro no local, e num espelho que havia na
minha frente pude me ver de súbito como que de fora, tal qual me veria a
garçonete que me trazia o chá e a torta ou o homem de olhos muito azuis e
cabelo muito branco que havia se virado ligeiramente para mim e me
examinava enquanto continuava a contar algo à senhora a seu lado, de
brincos dourados, cabelo pintado de preto retinto e luvas brancas, muito
maquiada, ruge nas faces, rugas inúmeras e finas no lábio superior e em
torno da boca muito vermelha. Vi meu cabelo tão preto, meus olhos
escuros, a camisa branca sem gravata e o queixo já escuro de barba que me
davam um ar indubitável de búlgaro ou turco, o paletó de meu terno formal
um tanto amarrotado após vários dias de viagem e negligência, e que
parecia um desses paletós usados pelos emigrantes, os que usam nas fotos
dos anos 6o os emigrantes espanhóis na Alemanha. Estava muito cansado,
porque as viagens a trabalho me esgotam e os desconhecidos me deixam
tonto e durmo mal nos hotéis, e começava a ver os rostos e as coisas ao meu
redor como atrás de uma névoa, embora ninguém fumasse na confeitaria e
não houvesse mais fumaça do que a das xícaras ou do bafo de frio das
pessoas que entravam. Que estranho não ter percebido antes que todos, a
não ser as garçonetes, pareciam velhíssimos, velhos e velhas tão
cuidadosamente conservados como a decoração e as molduras de gesso da
confeitaria e igualmente decrépitos, dentaduras postiças, bengalas,
peruquinhas, perucas louras ou empoadas de branco, óculos de muito grau,
sapatos e meias ortopédicas, chapeuzinhos de Miss Marple e mãos
pergaminhosas e artríticas segurando, trêmulas, pedaços de torta e xícaras
de delicada porcelana. As garçonetes eram jovens, é claro, inclusive muito
jovens, descuidadas como adolescentes rosadas e carnudas, mas de certo
modo eram tão velhas como a clientela e o local, com suas saias bufantes,
suas trancas em rosca ou caídas, seus corpetes e decotes com rendas,
carnais sem sensualidade, com caras rechonchudas infantis e pesadas como
mulheres maduras. Olhei o homem de cabelo tão branco e fino como
algodão e de olhos claríssimos que um momento antes me deu a impressão
de estar me examinando com ar de reprovação, e ocorreu-me que teria uns
setenta e tantos anos, talvez oitenta, embora fosse muito delgado e ossudo,
com o rosto e as mãos morenas, como tostadas pelos rigores do tempo, e
um ar altivo, de militar aposentado. Calculei então que em 1940 não teria
muito mais de trinta anos, e numa espécie de revelação súbita e arbitrária
imaginei-o de farda, os olhos tão claros sombreados pela aba de um quepe.
Que teria feito esse homem na Alemanha nos anos 30, e mais tarde, durante
a guerra, onde teria estado? Sem me dar conta devo tê-lo olhado com uma
atenção não dissimulada e excessiva, pois nele percebi um gesto de irritação
quando seus olhos cruzaram com os meus. Mas desviei os olhos e fixei-me
em outras pessoas que estavam no local, sob a luz dos lustres refletindo nas
molduras douradas e se multiplicando nos espelhos, e em cada rosto de
homem ou mulher queria imaginar os traços e as atitudes de cinquenta ou
sessenta anos atrás, de modo que ia se produzindo nelas um princípio
inquietante e depois ameaçador de transformação, uma pontada negra de
suspeita, e eu via como jovens e cruéis essas feições deterioradas e serenas,
e as bocas com dentaduras postiças que tomavam golinhos de chocolate ou
chá abriam-se em gritos de entusiasmo fanático, as mãos com manchas
escuras no dorso e articulações deformadas pela artrite que seguravam, com
tanta elegância, as xícaras levantavam-se oblíquas como baionetas numa
saudação unânime: quantos dos que estavam ao meu redor teriam gritado
Heil Hitler, o que haveria na consciência, na memória de cada um deles,
homem ou mulher, como me teriam olhado ao cruzarem comigo se eu
tivesse uma estrela amarela cosida no peito do abrigo, se estivesse nessa
mesma confeitaria e tivessem entrado homens de chapéus caindo de banda
no rosto e capotes pretos de couro e se aproximado de mim para me pedir
os documentos, um desconhecido de aspecto estrangeiro e meridional que
logo levanta suspeitas e olhares de soslaio, que protege sua xícara de chá
entre as mãos para esquentá-las e não sabe que alguém, um cidadão
consciencioso, já chamou a Gestapo para informar sua presença, como
chamavam na época tantas pessoas, sem que ninguém as obrigasse, por
puro sentido de dever cívico ou patriótico: talvez um dos velhos que agora
lancham na confeitaria tivesse dado um telefonema desses, formulado uma
denúncia, como as que ainda permanecem nos arquivos como provas
indeléveis da mesquinharia quase universal, da dose íntima de infâmia que
sustentaram o edifício sanguinário da tirania; talvez também haja entre essa
gente um perseguido ou um denunciado da época, embora estatisticamente
a possibilidade seja muito mais limitada. Mas já estou achando que há mais
olhos parados em mim, e minha cara no espelho que dilata o espaço e
multiplica as pessoas também se modificou, vejo-me mais esquisito, mais
escuro, distingo-me mais dos outros à medida que vou sentindo o incômodo
de minha diferença. Gostaria de estar com um livro ou um jornal, algo com
que me distrair e ocupar as mãos, mas apalpo os bolsos do manto e não
tenho nada, a não ser meu passaporte e minha carteira, e quando minha
paciência se esgota eu me armo de coragem e me levanto para ir embora, e
imediatamente volto a me sentar e até creio que enrubesço porque a
garçonete chegou com a bandeja e um sorriso cordial de boneca, dizendo-
me algo que não entendo. Pago-lhe antes que vá embora, bebo um pouco de
chá e belisco a torta doce demais. Enjoado com o calor excessivo, vou para
a rua e agradeço a solidão e o ar limpo e frio, entro num parque achando
que é o mesmo que cruzei quando vim do hotel e ao sair por um portão alto
que dá para uma rua iluminada e moderna que não lembro ter visto antes
compreendo que me perdi, com toda a brusca lucidez do acordar de um
sonho.
Uma caminhada solitária se confunde com outra, como um sonho que
vem desembocar em outro, e a noite alemã se dissolve numa tarde chuvosa
dez anos depois e do outro lado do oceano, mas há um cheiro comum de
vegetação úmida e terra encharcada, e quem caminha não tem certeza de ser
o mesmo de então. Em algum momento, durante todo esse tempo, descobriu
o que todo mundo acredita saber e no entanto ninguém aceita. Agora sabe, e
esse conhecimento nunca está muito longe de sua consciência, que é mortal,
e sabe porque esteve prestes a morrer, e sabe também que o tempo que vive
agora é uma dádiva metade do acaso e metade da medicina, e que esse
passeio no meio da tarde por ruas arborizadas e tranquilas de Nova York
podia não estar acontecendo, e que se ele não atravessasse agora mesmo,
ligeiramente tonto, a Quinta Avenida na altura da rua Onze, para o oeste,
com sua gabardine e seu guarda-chuva, não aconteceria rigorosamente
nada, ninguém perceberia sua ausência, não haveria a menor mudança no
mundo, nas casas de tijolos vermelhos com degraus altos de pedra de que
ele gosta tanto, nas fileiras de gingkos com suas folhas em forma de leque,
ainda muito verdes, um verde muito suave, tão brilhante como o das
glicínias que trepam pelas fachadas até os peitoris, enredando-se às vezes
na geometria metálica das escadas de incêndio. Também sabe que poderia
nunca ter voltado à cidade, e, como só lhe restam um ou dois dias antes de
partir, teme que esta seja a última vez, e essa consciência da fragilidade da
vida, do fio tão tênue da vida de cada um, tão fácil de ser cortado, dá mais
valor a esse passeio que repetiu muitas vezes, e que não é impossível que
agora esteja fazendo pela última vez. Entre nomes de cidades e mulheres
que imantaram, desde criança, sua vida e sua imaginação agora há um nome
novo, que irrompeu como um escorpião, no rol de suas palavras cruciais.
Tal como Franz Kafka nunca escreve em suas cartas a palavra
tuberculose, ele nunca pronuncia a palavra leucemia, nem pensa nela, nem a
profere em silêncio, com pavor de, só ao pronunciá-la, ser invadido pelo
veneno de sua picada.
Caminha para oeste deixando-se levar pela preferência de seus passos,
procurando as ruas recônditas de paralelepípedos que há bem perto do rio
Hudson, à beira da vasta desolação portuária dos cais abandonados onde em
outros tempos atracaram os transatlânticos. Agora veem-se as estacas
colossais apodrecendo na água cinza, e nas rachaduras das plataformas onde
os barcos escoravam o costado crescem juncos e mato cerrado, como entre
as colunas despedaçadas de um templo em ruínas. Em alguns molhes é
proibido entrar. Outros se transformaram em parques infantis, em
instalações desportivas. Inúmeros fugitivos da Europa pisaram nessas
grandes pranchas de madeira, olharam a cidade com medo e espanto.
Beirando toda a margem do rio passa um caminho para corredores e
patinadores, para as pessoas que levam tranquilamente seu cachorro para
passear. Do outro lado da vastidão oceânica do rio vê-se a costa de New
Jersey, uma linha baixa de árvores interrompida por feios galpões
industriais, por uma torre de apartamentos, por uma construção ingente de
tijolos que, de longe, parece a porta de ameias da muralha de uma cidade
babilônica ou assíria, e que tem seu equivalente exato em frente a ela do
lado de cá do rio. Essas construções pareciam mais misteriosas porque não
tinham janelas e eu não conseguia imaginar sua utilidade. Eram como torres
de Nínive ou Samarcanda erigidas não no meio do deserto, mas à beira do
Hudson: depois fiquei sabendo que contêm os respiradores e ventiladores
colossais do túnel Lincoln, que passa por baixo do rio, tão tenebroso e tão
longo que quem o atravessa de táxi tem a sensação angustiante de que
nunca vai chegar à saída, e de que a cada segundo vai ficar sem ar.
Ao longe, para o sul, levanta-se a escarpa dos arranha-céus mais
modernos da parte baixa de Manhattan, os que cresceram em torno das
Torres Gêmeas, as quais só têm certa beleza quando a névoa as rodeia ou
quando o sol avermelhado do crepúsculo lhes confere um brilho como de
prismas de cobre. Nessa tarde nublada e de garoa as águas do Hudson têm o
mesmo cinza do céu e a parte mais alta dos prédios se perde entre as
grandes nuvens movediças e escuras, e nelas brilham como brasas sob uma
leve cinza as luzes vermelhas dos para-raios. Quase perdidas na bruma
distinguem-se a estátua da Liberdade e as torres finas de tijolos de Ellis
Island.
Voltei à cidade e já estou me despedindo dela. Quero conservar cada
lugar, cada minuto dessa última tarde, o vermelho do tijolo dessas ruas
escondidas, o cheiro das flores escuras das glicínias, o dos pequenos jardins
selvagens que existem às vezes atrás de um tapume de madeira, entre dois
edifícios, e nos quais há uma umidade escura e uma vegetação cerrada que
me trazem à lembrança o jardim da igreja de Santa Maria nas tardes de
muita chuva, quando a água caía das gárgulas entre os arcos do claustro e
ressoava dentro das abóbadas. Caminhei rumo ao leste, deixando para trás a
Quinta Avenida, e um pouco antes de chegar à Sexta, quase na esquina da
rua Onze, encontrei o cemitério sefardita que certa vez meu amigo Bill
Sherzer me mostrou, e no qual nunca tinha reparado antes, embora
costumasse andar muito por esses lugares, pela parte baixa das avenidas,
que por ali são mais vazias e boêmias, no cruzamento de Chelsea e de
Greenwich Village, com bancas de livros e discos de segunda mão e lojas
de roupas extravagantes, mesinhas de café nas calçadas e vitrines de
prodigiosas casas italianas de laticínios e conservas. Muitas vezes fomos
fazer compras numa delas, a Balducci's, mas nunca tínhamos prestado
atenção nesse jardim estreito e sombrio do outro lado de uma grade, que no
início do século XIX era o cemitério da comunidade judaica hispano-
portuguesa, segundo diz uma placa em que também não teríamos reparado
se Bill não nos mostrasse. Fugindo da Rússia, da fome e dos pogroms, seus
avós chegaram a Ellis Island no início do século XX.
Entre as árvores, as samambaias, a hera, o mato, veem-se umas poucas
lápides de pedra, escurecidas pela umidade e pela intempérie, tão gastas que
mal se distinguem as inscrições que um dia houve nelas, caracteres hebreus
ou latinos, um nome espanhol, uma estrela-de-davi. Mas o portão de grade
está fechado e não é possível entrar no pequeno cemitério, e se eu pudesse
encostar nas lápides dificilmente perceberia algo mais do que rugosidades e
asperezas da pedra, cujas quinas se arredondaram com o tempo, gastaram-
se a tal ponto que, aos poucos, se apaga a marca do trabalho humano, tal
como essas colunas quebradas e esses fragmentos de capiteis que nos
escombros dos foros de Roma vão retornando à primitiva rudeza mineral.
Quem conseguiria resgatar os nomes talhados há duzentos anos nessas
lápides, nomes de gente que existiu com tanta plenitude como eu mesmo,
que teve recordações e desejos, que talvez possa ter traçado sua linhagem
remontando, ao longo dos sucessivos exílios, até uma cidade como a minha,
até uma casa com duas estrelas-de-davi no dintel e um bairro de ruas muito
estreitas que terminou deserto entre a primavera e o verão de 1492. Diante
da grade do cemitério diminuto, imprensado entre muros altos de edifícios,
tenho a sensação melancólica de reencontro com meus compatriotas
fantasmas, na tarde de neblina e garoa de Nova York, reencontro e
despedida, porque vou embora amanhã e não sei se voltarei, se haverá uma
tarde futura em que me detenha justamente neste mesmo lugar, diante das
lápides com nomes apagados, perdidos, como tantos outros, para o catálogo
imemorial das diásporas espanholas, para a geografia das sepulturas
espanholas em tantos exílios pelo vasto mundo. Lápides, sepulturas sem
nome, listas infinitas de mortos. Na periferia de Nova York há um cemitério
de colinas onduladas e verdes e árvores imensas que se chama As Portas do
Céu, com lagos dos quais se levantam em tardes de outono populosos
bandos de pássaros migratórios. Entre milhares de lápides, no meio de uma
geometria de túmulos com nomes irlandeses, há uma com nome espanhol,
tão modesta, tão parecida com qualquer outra, que é muito difícil percebê-
la.
Federico Garcia Rodríguez (1859-1945) Como esse homem poderia
imaginar que sua sepultura não estaria no cemitério de Granada, mas do
outro lado do mundo, entre os bosques próximos do rio Hudson, ou que seu
filho morreria antes dele e não teria sequer uma sepultura visível, uma
simples lápide que rememorasse o ponto exato do barranco onde o
executaram. Sepulturas modestas e valas comuns balizam os caminhos da
grande diáspora espanhola: gostaria de visitar o cemitério francês onde foi
enterrado em 1940 don Manuel Azana, em plena derrocada europeia, ler o
nome de Antonio Machado no túmulo do cemitério de Colliure. Outros
mortos para quem tampouco houve sepulturas nem inscrições perduram na
multidão alfabética de seus nomes: numa página da internet encontrei, em
letras brancas sobre fundo preto, a lista dos sefarditas da ilha de Rodes
deportados para Auschwitz pelos alemães. Seria preciso lê-los um por um
em voz alta, como recitando uma oração severa e impossível, e entender
que nem um só desses nomes de desconhecidos pode se reduzir a um
número numa estatística atroz. Cada um teve uma vida que não parecia a de
ninguém, tal como sua cara e voz foram únicas, e o horror de sua morte foi
único, embora acontecendo entre tantos milhões de mortes semelhantes.
Como se atrever à frivolidade vã de inventar, existindo tantas vidas que
mereceram ser contadas, cada uma delas um romance, malha de
ramificações que conduzem a outros romances e a outras vidas.
Mas agora me lembro da manhã desse penúltimo dia em Nova York,
você e eu já meio atordoados com a iminência da viagem, nesse tempo
estranho de ninguém às vésperas da partida, quando já não estamos de todo
no lugar de onde ainda não partimos, e quando todas as coisas, lugares,
hábitos que passageiramente pareceram aceitar-nos já dão a impressão de
nos rejeitar, lembram-nos que somos apenas estrangeiros de passagem, e
que não ficará nenhuma marca de nossa presença no apartamento que
ocupamos tão pouco tempo, e no qual porém, dia após dia, fomos
instalando os sinais domésticos de nossa vida, a roupa no armário, que, ao
ser aberto, já cheirava ao perfume que você usa, tal como nosso armário de
Madri, nossos livros na mesa de cabeceira, os seus cremes e o meu pincel
de barba e meu creme de barbear na prateleira do banheiro, a parte de nós
mesmos que trouxemos na viagem, a que devemos levar de novo tal como a
tralha dos nômades, apagando antes da partida, um por um, todos os
vestígios que fomos deixando, até o cheiro de nossos corpos nos lençóis,
que levamos para a lavanderia bem cedinho no dia da viagem Qualquer
gesto trivial projeta a sombra estranha do adeus. Fui contando com avareza
os dias que ainda nos restavam, e nessa manhã que agora recordo, já
plenamente desperto, na cama de outros que foi nossa durante umas
semanas, ainda preguiçoso e imóvel, abraçado a você, que está dormindo
com uma expressão de sossegado deleite, como se mesmo dormindo se
deliciasse com o sono profundo, penso que ainda temos este dia completo, e
minha vontade é conservá-lo intacto e saboreá-lo aos pouquinhos, como
esses minutos que nos concedemos quando o despertador já tocou e ainda
podemos esperar um pouco antes de levantar. Depois, ligo o rádio enquanto
preparo o café, mas a sensação de cotidianidade que me oferece a voz do
locutor de todas as manhãs é falsa porque a estou escutando pela penúltima
vez, e já não me adianta nada o desembaraço que adquiri nos gestos
necessários para procurar a lata de café no armário exato e o^pacote de leite
na geladeira, o automatismo com que abro a gaveta das colherzinhas ou
rodo o botão do gás ou ponho o filtro na cafeteira. Dali a pouco, amanhã
mesmo, de tarde, seremos dois fantasmas neste lugar, os ocupantes
anteriores, desconhecidos e invisíveis, para a nova inquilina que não
veremos, a quem deixaremos um envelope na portaria com a chave do
apartamento, e que também já tem algo de sombra invasora, usurpadora do
espaço de nossa intimidade, não só da cama em que dormimos e fizemos
amor e da mesa em que toda manhã arrumei antes de você se levantar as
xícaras do café, mas também da luz perpassada de umidade entrando bem
cedinho pelas vidraças que dão para a varanda, e da paisagem que víamos
dali, debruçados num parapeito a catorze andares de altura, como na
amurada de um fantástico transatlântico, sobretudo à noite, nas noites de
ventania e relâmpagos daquele mês de maio, tempestades com uma fúria de
monção, raios cruzando oblíquos entre as grandes nuvens escuras que
escondiam os arranha-céus, ou os transformavam em esplendores
fantasmagóricos erguendo-se ao longe no meio da chuva, perdendo-se entre
as rajadas velozes da névoa assumindo as cores dos holofotes que
iluminavam os apartamentos mais altos do Empire State, violeta às vezes,
vermelho e azul, amarelo forte. Quão pouca é a vontade de voltar ao nosso
país, do qual nos chegaram quase diariamente notícias de obscurantismo e
sangue, que desejo de distância prolongada, de exílio.
Antes de partirmos de verdade já estamos partindo aos poucos, mas
ainda nos resta um dia para fingirmos diante de nós mesmos, um para o
outro, e também para si próprio, que nossa presença nesta casa, nesta
cidade, é verdadeira e firme, tão real como a do porteiro que nos dá um
cordial bom-dia com seu sotaque cubano, ou como a do bengali da loja da
esquina onde compro todo dia o jornal e os cartões telefônicos. Passei parte
de minha vida, ou uma ou várias de minhas vidas, querendo ir embora dos
lugares onde estava, e agora, quando o tempo corre tão depressa, o que mais
desejo é permanecer, instalar-me duravelmente nas cidades que me
agradam, ter uma sensação tranquila de costume, como se eu fosse um
veterano do lugar, como a que desfruto quando penso em todos os anos em
que você e eu estamos juntos. Nunca, a não ser em criança, fui tentado a
colecionar alguma coisa, mas gosto de guardar entre as páginas dos
cadernos ou dos livros os testemunhos vulgares e valiosos de um momento
preciso, caixas de fósforos com o nome de um restaurante, entradas,
passagens de ônibus, qualquer documento mínimo que ateste uma data e
uma hora, nossa presença num lugar, o itinerário curto de uma viagem. Não
tenho apego às coisas, nem mesmo aos livros ou discos, mas tenho aos
lugares em que conheci a misteriosa exaltação do melhor de mim mesmo, a
plenitude de meus desejos e minhas afinidades, e o que gostaria de
amealhar como um colecionador avarento e obsessivo são os instantes, as
horas inteiras, os minutos que passei escutando determinada música ou
olhando pinturas nas salas de um museu, o gosto de caminhar com você
numa tarde pela margem do Hudson enquanto o sol incendeia de ouro e
cobre os vidros dos arranha-céus e essa luz vira fogo numa fotografia, a
aflição da aventura e da incerteza que foi nos invadindo nessa penúltima
manhã em Nova York à medida que víamos desfilarem atrás da janela de
um ônibus as últimas casas luxuosas do Upper East Side, os primeiros
descampados e prédios em ruínas do Harlem.
Os últimos dias de qualquer viagem tendem a ser nublados e como que
ralos, contaminados pela estranheza de quem vai partir, sublinhados de
cinza. À medida que íamos para o norte diminuía o número de passageiros
no ônibus, e gradualmente, quase imperceptivelmente, desapareciam os
rostos brancos e saxões, e em vez de anciãs muito pálidas e alquebradas
havia mães muito jovens com bebês nos braços ou crianças bem pequenas,
negras ou hispânicas, senhoras gordas de cabelo pintado de louro, unhas
compridas e o falar cantado do Caribe, avós negras que permaneciam em
seus assentos com a majestade de matronas etíopes e que ao se levantarem,
quando chegava o ponto onde desceriam, locomoviam-se com muita
dificuldade, balançando a cada passo, em cima de seus enormes tênis, os
corpos desproporcionais e tortos, como afetados por uma dolorosa doença
dos ossos. E à medida que os passageiros dos ônibus deixavam de ser
brancos também mudava, atrás da janela, a cidade que víamos, mais vasta e
mais vazia, deteriorada, mais pobre, com menos trânsito, poucas vitrines
nas calçadas quase desertas, desagregando-se em vastidões despovoadas,
em perspectivas de terrenos com cercas de arame e edifícios queimados ou
em ruínas ao fundo, terrenos de casas derrubadas das quais talvez ainda
restasse de pé um muro com os buracos das janelas tapados por tábuas em
xis, sinistros como rabiscos. De vez em quando passávamos por um trecho
de rua em que, por algum motivo, perdurava uma sombra de vida vicinal,
uma calçada e uma fila de casas salvas do abandono, com uma loja de
aparência modestamente próspera na esquina e homens solitários sentados
nos degraus, mães jovens que levavam pela mão crianças pequenas e vasos
de gerânios em alguma janela.
Já fazia muito tempo que os últimos turistas tinham descido do ônibus,
os que iam aos museus da parte alta, o Metropolitan ou o Guggenheim, e já
não víamos à nossa esquerda as árvores do Central Park, coroadas ao longe
pelas torres de apartamentos da West Side Avenue, com seus pináculos
como zigurates ou templos de remotas religiões asiáticas ou cúpulas ou
faróis de cenários de cinema expressionista com cristas e gárgulas.
Atravessando aquelas velhas áreas despovoadas o ônibus já quase vazio
ia muito depressa, e de vez em quando o motorista se virava para nos olhar
ou estudava pelo retrovisor nosso aspecto estranho. Passamos perto de uma
praça ajardinada ao estilo francês, tendo ao centro uma estátua de bronze de
Duke Ellington. Era como se o pedestal fosse um palco, e Duke Ellington,
empertigado e de smoking, apoiava-se num piano de cauda também fundido
em bronze. (Agora não sei se vi de verdade ou se me lembro de alguém ter
me contado que em outro lugar de Nova York há uma estátua de Duke
Ellington montado a cavalo.) Já fazia mais de uma hora que tínhamos
entrado no ônibus, na parada de Union Square. Mas estávamos tão longe e
tínhamos andado tão devagar que parecia muito mais tempo, e também não
havia indícios de que fôssemos chegar logo ao nosso destino, a rua 155.
Estrangeiros na cidade, agora o éramos duplamente e mais ainda nesses
bairros que nunca havíamos visitado, onde não tínhamos certeza de
encontrar nosso caminho.
O ponto da rua 155 ficava na esquina de uma avenida muito larga, com
prédios não muito altos e espalhados, sendo que o dia cinzento e os muros
baixos dos terrenos baldios acentuavam a sugestão de solidão e limite. Não
havia nas redondezas ninguém a quem perguntar. Casas pobres, igrejas,
lojas fechadas, uma bandeira americana tremulando no alto de um edifício
de tijolos com um aspecto ao mesmo tempo de prédio abandonado e oficial.
De repente invadiam-nos o desânimo e o medo de nos termos perdido,
talvez de nos encontrarmos a qualquer momento numa zona perigosa, dois
turistas estrangeiros que se distinguem a léguas de distância e que não
sabem onde estão, que percebem apreensivos que entre os poucos carros
que circulam não veem a mancha amarelo-ouro de nenhum táxi.
Agora caminhamos perto dos muros de um grande cemitério que
inicialmente pensamos ser um parque ou um bosque. A leste intuem-se as
vastas distâncias do Hudson, e num cruzamento, onde termina o cemitério,
vê-se do outro lado da avenida, como uma aparição ou miragem, o edifício
que estávamos procurando, imponente e neoclássico, tão estranho como nós
nessa paisagem periférica, a sede da Hispanic Society of America, onde nos
contaram que há quadros de Velázquez e Goya, e uma grande biblioteca que
ninguém visita, pois quem vai a esse lugar, tão longe de tudo, num bairro
que, no sul de Manhattan, facilmente se imagina como sendo devastado e
perigoso?
Há uma grade, e atrás dela um pátio com estátuas, entre dois edifícios
com cornijas de mármore e colunas, nomes espanhóis esculpidos em toda a
fachada. Há uma enfática estátua equestre de El Cid, e no muro de um dos
edifícios um grande baixo-relevo de Dom Quixote montado em Rocinante,
cavaleiro e cavalgadura igualmente derrotados e esqueléticos. Perto da
porta de entrada, uma mulher de cabelo branco preso com uma travessa e
aspecto geral de abandono fuma um cigarro, nessa atitude meio obstinada e
meio furtiva dos fumantes americanos, que têm de enfrentar as intempéries
se quiserem dar umas tragadas, defendendo-se do frio perto de uma coluna
ou abrigados num canto do edifício, tragando rápido o cigarro e depois
disfarçando, temerosos da censura de quem passa a seu lado. A mulher olha
para nós um instante, e depois nós dois recordaremos que seus olhos nos
impressionaram, brilhando como faíscas em seu rosto maltratado como se
atrás de uma máscara, os olhos vivos e orgulhosos de uma mulher muito
mais moça do que sua aparência, uma funcionária ou secretária americana
já perto da aposentadoria, que vive só e não se preocupa muito em se
arrumar, corta o cabelo de qualquer jeito e usa suéteres escuros e calças
masculinas, sapatos entre ortopédicos e esportivos, óculos presos a uma
correntinha, e parece tão antiga que nem sequer prescindiu do hábito de
fumar.
No vestíbulo procuramos em vão a bilheteria. Um porteiro velho e
robusto, sentado com indolente despreocupação numa poltrona de convento
indica-nos que podemos entrar tranquilamente, e por seu rosto e sua atitude
e o sotaque com que fala inglês logo se nota que é cubano. Usa uma jaqueta
cinza de uniforme, parecida com a de um bedel espanhol, uma jaqueta de
bedel espanhol de muitos anos atrás, estragada após muitos anos de uso,
muitos triênios de sonolento ócio administrativo. Basta pisarmos no
vestíbulo e notamos, apreensivos, que quase ninguém vem a este lugar,
onde tudo sofre um desgaste uniforme, o das coisas não renovadas, que
continuam durando quando já estão gastas e obsoletas, embora ainda
possam ser usadas. O cartaz com os horários, pregado no vidro da entrada,
está impresso numa tipografia antiga, e foi amarelando, obedecendo ao
mesmo princípio de lenta erosão do tempo a que se submeteram a jaqueta
do porteiro, ou as fotos emolduradas dentro de uma vitrine que lembram a
fundação, nos anos 20, da Hispanic Society, os grandes automóveis pretos
das autoridades espanholas e americanas que assistiram à inauguração, o
edifício então erguido num espaço onde não havia mais nada, arrogante e
branco no classicismo de sua arquitetura, seus mármores recém-polidos
brilhando com o esplendor do novo em folha, do que parecia ter pela frente
um futuro triunfal. No céu, sobre as cabeças cobertas com cartolas e
chapéus de palha, vê-se um aeroplano que seria na época tão
vertiginosamente moderno como os automóveis dos cavalheiros e damas
presentes à inauguração. Mas o papel das fotos empenou, e os cantos
internos das molduras apresentam mordidas diminutas de traças.
Estamos agora num vasto salão escuro que lembra um pátio de palácio
espanhol, com madeiras trabalhadas e poltronas e cadeiras platerescas e
arcos de uma pedra escura avermelhada que escurece mais ainda com a
pouca luz do dia, filtrada pelas claraboias do teto. O espaço nos nega uma
identificação precisa, já que poderia ser não só o pátio de um palácio para o
qual se abrem galerias, como também a sacristia desordenada e imensa de
uma catedral, ou o depósito de um museu cuja natureza exata é tão confusa
como suas normas organizativas, ou como o princípio que rege as
aquisições. No início do século o milionário Archer Milton Huntington,
possuído por uma paixão insensata de espanholismo romântico, de erudição
insaciável e onívora, percorria o país comprando tudo, comprando qualquer
coisa, tanto o coro de uma catedral quanto um cântaro de barro vitrificado,
quadros de Velázquez e de Goya e casulas de bispos, machados paleolíticos,
flechas de bronze, Cristos ensanguentados da Semana Santa, custódias de
prata maciça, azulejos de cerâmica valenciana, pergaminhos iluminados do
Apocalipse, um exemplar da primeira edição de La Celestina, dos Diálogos
de amor de Judá Abravanel, chamado León Hebreo, judeu espanhol
refugiado na Itália, o Amadís de Gaula de 1519, a Bíblia traduzida para o
castelhano por Yom Tob Árias, filho de Levi Árias, e publicada em Ferrara
em 1513, porque na Espanha já não poderia ser publicada, o primeiro
Lazarillo, o Palmerín de Inglaterra na mesma edição que Dom Quixote
deve ter lido, a primeira edição de La Galatea, as ampliações sucessivas do
terrível Index librorom prohibitorum, o Quijote de 1605, e tantos outros
livros e manuscritos espanhóis que ninguém apreciava e foram vendidos
por qualquer preço àquele homem que viajava de automóvel pelas estradas
intransitáveis do país e vivia num permanente entusiasmo por tudo, com
uma prodigiosa gula aquisitiva, o multimilionário Mr. Huntington, indo de
um lado para outro com sua violenta energia americana, pelos povoados
mortos e rurais de Castela, seguindo a rota de El Cid, comprando qualquer
coisa e dando ordens expeditivas para que fossem enviados à América
tapetes, quadros, grades, retábulos inteiros, resíduos da glória espanhola
mais enfática, relíquias de opulência eclesiástica, mas também testemunhos
da vida popular dos necessitados, os pratos de barro em que os pobres
tomariam suas gachas de trigo e as botijas graças às quais provavam o luxo
da água fresca nas terras secas do interior. Dirigiu escavações arqueológicas
em Itálica e comprou de uma só vez, do alucinado marquês de Jerez de los
Caballeros, sua coleção de dez mil volumes. E para abrigar todo o butim
descomunal de suas viagens pela Espanha construiu este palácio, numa
ponta de Manhattan à qual nunca chegaram a prosperidade e a febre
especulativa que talvez o senhor Huntington tivesse antecipado: tudo está
nas paredes, nas vitrines, nos cantos, cada coisa com uma etiqueta sumária,
data e lugar de origem, sempre escrita em papel amarelado, mosaicos
romanos e lamparinas de óleo, tigelas neolíticas, espadas medievais,
Virgens góticas, como um mercado das pulgas do Rastro em que tivessem
ido parar, arrastados na confusão da grande avalanche do tempo, todos os
testemunhos e as heranças do passado, os despojos das casas dos ricos e das
casas dos pobres, os ouros das igrejas, as cômodas trabalhadas fabricadas
em Bargas, as tenazes com que se atiçou o fogo e as tapeçarias e os quadros
que estavam pendurados nas paredes de igrejas agora abandonadas e as
lápides quase apagadas das sepulturas dos poderosos e as pias de mármore
que continham a água benta na penumbra fria das capelas. E também os
nomes, nomes sonoros de localidades espanholas nas etiquetas das vitrines,
e entre eles, de repente, perto de uma bacia de cerâmica verde vitrificada
que logo reconheço, o nome de minha cidade natal, onde ainda havia,
quando eu era menino, um bairro de oleiros cujos fornos continuavam
sendo iguais aos dos tempos dos muçulmanos, uma rua larga e ensolarada
que se chama rua Valencia e desemboca no campo. Dali veio essa bacia que
agora mostro a você atrás de um vidro numa das salas solitárias da Hispanic
Society de Nova York, e que a esta distância me restitui ao coração exato da
infância: no centro há o desenho de um galo, rodeado por um círculo, e ao
olhá-lo quase percebo nas pontas dos dedos a superfície vitrificada da
cerâmica e a protuberância das linhas do desenho, que é um galo imemorial
e também parece um galo de Picasso, e se repetia nos pratos e nas bacias de
minha casa, e também na pança das vasilhas para água. Lembro-me das
grandes bacias em que as mulheres amassavam a carne picada e os
temperos para os embutidos da matanza, dos pratos de barro dentro dos
quais se cortavam o tomate e o pimentão verde das saladas, naturezas
mortas austeras e saborosas da comida popular. Esses objetos sempre
estiveram nas mesas e pareciam ter os atributos de uma perenidade
litúrgica, e contudo desapareceram em pouquíssimo tempo, uns poucos
anos, deslocados pela invasão dos plásticos e das embalagens industriais.
Foram embora como as casas em cuja penumbra brilhavam suas formas
largas e curvas, e como os mortos que moraram nelas.
Essa bacia também me traz recordações, diz bem perto de nós a mulher
que vimos fumando na porta. Desculpa-se por interromper-nos, por ter
ficado escutando: reconheci seu sotaque, e vivi há muito tempo nessa
cidade. Sua voz é quase tão jovem como seus olhos, igualmente alheia à
idade inscrita nas feições do rosto e no desleixo americano de seu modo de
vestir. Trabalho na biblioteca, se lhes interessar terei muito prazer em
mostrá-la. Há tantos tesouros, e tão pouca gente sabe. De vez em quando
vêm professores, gente muito erudita que estuda coisas espanholas, mas
podem se passar semanas, até meses inteiros, sem que ninguém apareça
para me pedir um livro. Quem virá tão longe, quem vai imaginar que aqui
há quadros de Velázquez, El Greco, Goya, tão perto do Bronx, que temos
guardados o primeiro Lazarillo e o primeiro Quijote e La Celestina de 1499.
Os turistas chegam até a rua Noventa para ver o Guggenheim e imaginam
que o que há mais adiante é um mundo tão desconhecido e perigoso como o
coração da África.
Moro aqui perto, entre vizinhos cubanos e dominicanos, onde não se
ouve falar inglês. Debaixo de meu apartamento há um restaurante cubano
chamado La Flor de Broadway.
Fazem ropavieja e os daiquiris mais saborosos de Nova York e deixam
os fregueses fumarem tranquilamente nas mesas, que têm toalhas xadrez
plastificadas, como as que havia na Espanha quando eu era bem mocinha.
Que luxo, fumar um cigarrinho tomando um café preto depois de comer.
Vocês já sabem como aqui isso se tornou coisa rara, deixarem fumar na
mesa de um restaurante. O fumo faz mal aos meus brônquios, e as pessoas
me olham torto quando entram aqui e me veem fumando na porta da rua,
mas já estou muito velha para mudar, e adoro cigarros, saboreio cada um
que fumo, eles me fazem companhia, me ajudam a conversar ou a passar o
tempo quando estou só. Além disso, quando era bem jovem queria fugir da
Espanha e vir para América porque aqui as mulheres podiam fumar e usar
calças e dirigir automóveis, como eu via nos filmes de antes da guerra.
A mulher falava um espanhol elegante e diáfano, como o que se pode
escutar em certos lugares de Aragón, mas em seu sotaque havia vestígios
caribenhos e norte-americanos, e sua voz metálica tornava-se totalmente
anglo-saxônica quando pronunciava uma palavra em inglês. Tinha nos
convidado a tomar uma xícara de chá em sua sala, e aceitamos em parte
porque já sentíamos o cansaço físico dos museus e em parte porque em seu
modo de falar e nos olhar havia algo hipnótico, mais ainda naquele lugar
desabitado e silencioso, na manhã cinzenta do último dia de nossa viagem.
Inquietava-nos e ao mesmo tempo subjugava-nos essa mulher que não nos
tinha dito seu nome, que falava com uma voz espanhola de muitos anos
antes e nos examinava com olhos muito mais jovens do que seu rosto e sua
figura, do que suas mãos sardentas e enrugadas, com articulações de artrite,
do que sua respiração de fumante, embora o fumo não tivesse manchado
seus dedos nem enrouquecido sua voz. A sala era pequena, desarrumada,
com cheiro de papel velho, móveis de escritório dos anos 20, como os que
se veem em certos quadros de Edward Hopper. De um arquivo a mulher
tirou três xícaras e três pacotinhos de chá que deixou em cima dos papéis da
mesa, e com um gesto de desculpa perfeitamente norte-americano ausentou-
se para buscar um pouco de água quente.
Olhamo-nos sem dizer nada, sorrimos para estabelecer certa
cumplicidade numa situação tão estranha, e a mulher voltou logo, nos
examinou com seus olhos tão vivos como querendo adivinhar se durante
sua ausência dissemos algo a seu respeito. Os óculos pendurados no
pescoço estão presos por uma fita preta. Parece uma secretária de
departamento universitário, perto da aposentadoria, mas seus olhos me
interrogam tão desavergonhadamente como se estivessem protegidos pelo
anonimato de uma máscara, e a mulher que me olha não é a mesma que
joga a água quente nas xícaras de chá e se mexe com cautela e cortesias de
rígida etiqueta americana, e penteia de qualquer maneira o cabelo grisalho e
usa calças, suéteres e sapatos de uma austeridade prática um tanto
desoladora. Olha-me como se tivesse trinta anos e avaliasse os homens nos
termos crus do que têm de atraente ou de disponibilidade sexual; olha para
você querendo adivinhar se somos amantes ou casados e se na forma como
nos dirigimos um ao outro há sintomas de desejo ou de distância. E
enquanto seus olhos magnéticos estudam cada pormenor da sua presença e
da minha, dos nossos rostos e da nossa roupa, as mãos dela, de velha,
desdobram-se no ritual da hospitalidade acadêmica servindo chá e
oferecendo envelopes de açúcar e de sacarina e esses palitos de plástico que
nos Estados Unidos substituem tão desagradavelmente as colherzinhas, e
sua voz diáfana, antiga, espanhola, com toques cubanos e saxões, conta-nos
coisas a respeito do milionário megalômano que construiu a Hispanic
Society na esquina da Broadway com a rua 155 acreditando que essa zona
do Harlem ia brevemente virar moda entre os ricos, e a respeito da
estranheza de passar a vida tão longe da Espanha e no entanto cercada de
tantas coisas espanholas, tão longe da Espanha e de qualquer lugar, até da
própria Nova York, diz, assinalando com um gesto a janela, de onde se vê
uma calçada pobre e popular que, porém, é a da Broadway, uma linha de
casas de tijolos vermelhos cruzadas por escadas de incêndio e coroadas por
caixas-d'água, e mais acima o horizonte aberto e cinzento, as grandes torres
enegrecidas das habitações populares do Bronx.
Já faz mais de quarenta anos que vim da Espanha, e nunca voltei nem
penso em voltar, mas me lembro de alguns lugares da sua cidade, de alguns
nomes, da praça de Santa Maria, onde o vento soprava tão forte nas noites
de inverno, da rua Real — não era assim que se chamava? Se bem que,
agora, estou me lembrando de que na época tinham trocado o nome dela
para rua de José Antônio. E essa rua onde ficavam as olarias, eu tinha
esquecido o nome mas ao ouvi-lo falar com sua mulher da rua Valencia
logo percebi que se referia a ela, e me lembrei de uma canção que na época
se cantava:

Na rua Valencia
Os oleiros
Com a água e o barro
Fazem panelas.

Quando ainda era moça consegui ter umas aulas de literatura espanhola
na Columbia University com don Francisco Garcia Lorca, e ele gostava que
eu lhe cantasse esses versos, dizia que nada pode ser mais exato, repetia-os
em voz alta, para que prestássemos bem atenção, pois não havia nem um
adjetivo, nem uma palavra que não fosse comum, e no entanto o resultado,
dizia-nos, é ao mesmo tempo poético e tão informativo como uma frase
num guia, tal como nos romances antigos.
Fala muito, hipnotiza-nos contando, mas na verdade não chegamos a
saber nada de sua vida verdadeira, nem sequer seu nome, embora só
tenhamos percebido esse detalhe depois, e não sem espanto, quando fomos
embora. Como será o apartamento onde vive, sozinha sem a menor dúvida,
talvez na companhia de um gato, escutando as vozes e as músicas cubanas
que sobem de La Flor de Broadway, aonde vai jantar regularmente, onde
come um prato de feijão com carne de porco e arroz e talvez fique tonta
com um daiquiri, sozinha numa mesa com toalha xadrez de plástico,
fumando depois enquanto saboreia um café e olha para a rua e para os
homens e as mulheres com esses olhos de infalível exame sexual. O que ela
faz durante tantas horas e tantos dias em que não chega ninguém para
consultar os livros da biblioteca, os tesouros sepultados que ela cataloga e
examina, com uma expressão de severa eficácia em sua cara envelhecida, os
olhos revirados atrás dos óculos presos com uma fita preta. Exemplares
únicos que só se podem encontrar aqui, primeiras edições, coleções inteiras
de revistas eruditas, folhetos de cordel, cartas autografas, toda a literatura
espanhola e todos os saberes e indagações possíveis sobre a Espanha
reunidos nessa grande biblioteca que ninguém frequenta. Mas ela já não
precisava abrir os volumes de poesia da coleção de Clásicos Castellanos
porque na época de suas aulas com o professor Garcia Lorca tinha
adquirido, incitada por ele, disse-nos, o hábito de aprender de cor os
poemas de que mais gostava, de modo que sabia grande parte do
Romancero, e os sonetos de Garcilaso, Góngora, Quevedo, e todo o San
Juan de la Cruz e quase todo o fray Luis de León, e Bécquer e Espronceda,
que tinham sido paixões de sua primeira adolescência fantasiosa e literária,
compartilhadas com seu irmão, um pouco mais velho que ela, e com quem
recitava meio a meio o Tenorio ou Fuenteovejuna ou La vida es sueño.
Talvez a isso tivesse dedicado todos esses anos em que trabalhava na
biblioteca da Hispanic Society, a aprender de cor a literatura espanhola, a
recitá-la em silêncio ou em voz baixa, mexendo os lábios como se rezasse,
enquanto ia toda manhã ao trabalho pelas calçadas caribenhas da Broadway
ou viajava para o sul de Manhattan em ônibus lentos ou nos vagões repletos
do metrô, enquanto de noite jazia na insônia de sua cama solitária ou
percorria os salões do museu sem se fixar quase em nenhum dos quadros e
objetos cuja disposição também já sabia de cor, como os nomes e as datas
datilografadas nas etiquetas. Mas havia um quadro defronte do qual sempre
parava, e sentava-se para olhá-lo devagar, com uma emoção melancólica
que jamais diminuía, inclusive se fortalecia à medida que se passavam os
anos e tudo naquele lugar dava a impressão de permanecer tão invariável
como num reino encantado. As etiquetas, os cartazes e os catálogos
amarelavam, os sanitários dos banheiros iam se tornando relíquias cada vez
mais antigas, o cabelo crespo e duro dos zeladores cubanos e porto-
riquenhos ia ficando grisalho, os bolsos de suas jaquetas cinza iguais às dos
bedéis espanhóis iam furando e os punhos das mangas iam ficando puídos,
e ela mesma ia sendo transformada pelo tempo numa desconhecida toda vez
que se olhava no espelho, com exceção dos olhos, cujo brilho era tão fino e
bonito como quando tinha trinta anos e viu-se pela primeira vez sozinha e
dona de si mesma na América, possuída por um entusiasmo de viver que
podia alcançar extremos de desassossego e delírio talvez ainda mais
fervorosos do que a mania de colecionar, desenfreada e lunática, do senhor
Huntington. Gosto de sentar diante desse quadro de Velázquez, o retrato
dessa menina morena, que ninguém sabe quem foi, nem como se chamava,
nem por que Velázquez a pintou, disse-nos.
Aposto que vocês já o viram, mas não partam antes de olhá-lo um
pouco mais, pois é possível que não voltem e nunca o revejam. Com os
anos a gente deixa de se fixar nas coisas, habitua-se a elas e já não as olha,
não só por indiferença, mas também por higiene mental. Os vigias de
qualquer museu enlouqueceriam se vissem permanentemente todos os
quadros que os rodeiam, com todos os seus detalhes. Entro aqui e não vejo
mais nada, depois de tantos anos, mas essa menina de Velázquez sempre
vejo, tem um ímã que me atrai, e ela sempre me olha, e mesmo conhecendo
de cor seu rosto sempre descubro algo novo, como imagino que a mãe ou o
pai descobrem no rosto do filho, ou um amante no da pessoa amada. Os
quadros, aqui e em qualquer museu, representam poderosos ou santos, gente
enfatuada de arrogância, ou transtornada pela santidade ou pelo tormento do
martírio, mas essa menina não representa nada, não é a Virgem menina nem
uma infanta nem a filha de um duque, não é nada mais do que ela mesma,
uma menina sozinha, com uma expressão de seriedade e doçura, perdida
num devaneio de melancolia infantil, perdida também neste lugar, nos
salões pomposos e um tanto velhuscos da Hispanic Society, como uma
menina encantada num palácio de conto de fadas dentro do qual o tempo
parou de passar há um século. Tem um olhar de sinceridade e ao mesmo
tempo de timidez e reserva, e seus olhos escuros pousam agora mesmo nos
meus, enquanto estou escrevendo, ainda que neste instante eu esteja muito
longe dela e daquele dia nublado em Nova York, na véspera da partida. Só
se passaram uns meses, e as recordações permanecem nítidas e firmes, mas
se penso detidamente nessas horas da Hispanic Society, no rosto da menina
de Velázquez, na voz e nos olhos de fogo da mulher que não chegou a nos
dizer seu nome, tudo tem o tremor, a consistência frágil do que não sabemos
se chegou a acontecer de verdade. Guardo provas, detalhes materiais, o
cartão Metrocard que usamos para tomar o ônibus que nos levou tão longe,
os postais que compramos na loja da Hispanic Society, loja muito precária,
na qual ainda restam estoques de postais em preto e branco de quase um
século atrás, e guias e catálogos de publicações que poderiam estar nessas
vitrines das livrarias que vendem em leilão tudo o que há de mais
deteriorado e manuseado. Mas nesse lugar imprevisível, uma loja tão
modesta, com um toque de tabacaria popular espanhola — como não
compará-la com as lojas de outros museus de Nova York, espetaculares
supermercados de luxo — ocupa um salão enorme, inexplicável em sua
organização do espaço, inteiramente cercado de grandes balcões de madeira
escura, como as bancadas de uma casa de tecidos gigantesca do início do
século ou como essas cômodas imensas que se veem nas sacristias das
catedrais, e onde se guardam as roupas litúrgicas. A loja ocupa um canto
escuro, uma parte do balcão, atrás do qual se senta uma senhora muito velha
com todo o jeito de quem vai começar a tricotar a qualquer momento,
quando forem embora esses dois raros visitantes que agora examinam uma
coleção desbotada de postais. E todas as paredes, do chão ao teto, estão
ocupadas por quadros imensos, ou por uma só pintura que cobre sem
interrupção toda a sua amplitude, e na qual estão representados, como num
delírio barroco de Carnaval ou na desordem das lâminas de uma
enciclopédia, todos os trajes regionais, os ofícios e as danças antigas, as
paisagens da Espanha, toda a bijuteria do romantismo folclórico pintado de
empreitada por Joaquín Sorolla, qual uma Capela Sistina consagrada a
glorificar a paixão espanhola de Mr. Huntington, a celebrar nas grandes
pinceladas de cor cada tipo racial, cada poeirenta peça de roupa ou adorno
feminino ancestral ou particularidade antropológica, os cavaleiros
andaluzes com seus chapéus de aba larga e os aldeãos bascos com suas
boinas, e os catalães com suas barretinas e alpargatas, e os castelhanos com
suas caras rugosas e tostadas, e os aragoneses dançando jotas com lenços
vermelhos amarrados na nuca: e também os laranjais, os olivais, as águas
cantábricas em que dão duro os pescadores do norte, os celeiros galegos e
os moinhos de La Mancha, as ciganas andaluzas com vestidos de babados e
as falleras valencianas com suas saias duras de goma e suas pedrarias e seus
penteados rígidos como de damas ibéricas, as hortas e os descampados, os
céus violáceos de El Greco e a luz clara e suculenta do Mediterrâneo,
metros e metros quadrados de pintura, uma profusão de rostos como
máscaras e roupas como fantasias que têm toda a densidade e a vertigem de
um baile de Carnaval, e também a minúcia angustiante de um catálogo ou
de um regulamento, o habitante de cada província com seus traços regionais
e seu traje pertinente, cada um deles preso à canga de seus costumes eternos
e à sua paisagem regional, cada indivíduo tão classificado em sua origem e
em seu torrão natal como os pássaros e os insetos em suas categorias
zoológicas.
Mas o que agora tenho diante de mim, em meu gabinete, perto do
teclado do computador e da concha branca e polida pela água que Arturo
encontrou há dois verões na praia de Zahara, é um dos postais que
compramos na loja da Hispanic Society, o retrato dessa menina morena,
delicada, solitária, de perfil contra um fundo cinza, que agora me olha como
naquele meio-dia, quando fomos olhá-la pela última vez antes de partir, na
véspera de nossa viagem de volta, quando já quase não estávamos em Nova
York embora ainda nos faltasse um dia inteiro até o voo para Madri e o
tempo se esvaísse entre nossos dedos com uma inconsistência de papel
queimado, de folhas de cinza, minutos e horas sem sossego, como o tempo
atribulado e fugaz dos amantes clandestinos que, mal se encontram, já
sabem que começou para eles a contagem regressiva da separação. Quando
alguém inventa, tem a crença vã de que se apodera dos lugares e das coisas,
das pessoas sobre quem escreve: em meu escritório, sob a luz do abajur que
ilumina minhas mãos e o teclado, o mouse, a concha cujas estrias gosto de
acariciar distraidamente com as pontas dos dedos, o postal da menina de
Velázquez, posso ter a sensação de que nada do que invento ou recordo está
fora de mim, deste espaço fechado. Mas os lugares existem mesmo que eu
não esteja neles e mesmo que eu não volte lá, e as outras vidas que vivi e os
homens que fui antes de chegar a ser quem sou junto a você talvez
perdurem na memória de outros, e neste mesmo momento, a seis horas e
seis mil quilômetros de distância deste escritório, a menina que me olha da
pálida reprodução de um postal olha e sorri ligeiramente numa tela
verdadeira e tangível, pintada por Velázquez por volta de 1640, levada a
Nova York por volta de 1900 por um multimilionário americano, pendurada
num grande salão na semipenumbra de um museu que pouquíssima gente
visita. Quem sabe se agora mesmo, quando em Nova York são duas e
quinze da tarde e aqui começa um anoitecer de dezembro, haverá alguém
olhando o rosto dessa menina, alguém que perceba ou reconheça em seus
olhos escuros a melancolia de um longo desterro.
Retrato de niña, Velázquez, c. 1640. Hispanic Society of America, Nova
York.
Nota de leituras

Inventei muito pouco nas histórias e nas vozes que se cruzam neste
livro. Algumas, ouvi contar e estavam há tempos em minha memória.
Outras, encontrei-as nos livros.
Descobri Willi Münzenberg lendo El fin de la inocência, de Stephen
Koch (Tusquets, 1995) e segui sua pista em El pasado de una ilusión
(Fondo de Cultura Econômica), de François Furet, livro tão admirável como
seu título, e no segundo volume das memórias de Arthur Koestler, The
invisible writing, assim como em um número surpreendente de páginas da
internet. O belo nome de Milena Jesenska, vi-o pela primeira vez nas
impressionantes Cartas a Milena, de Franz Kafka, numa edição de bolso da
editora Alianza, que guardei durante muito tempo. Foi esse nome sozinho
no título de um livro, Milena — também da Tusquets —, que me levou a
descobrir sua autora, Margarete Buber-Neumann, de quem tinha encontrado
algumas pistas em Koch e em Furet, como um personagem menor de nota
de rodapé. Os dois volumes de sua autobiografia, cuja versão francesa
rastreei no catálogo do Seuil — Déportée en Sibérie, Déportée à
Ravensbrück —, me foram enviados rapidamente de Paris por minha
editora Annie Moram. É curioso que nesse tema sombrio dos infernos
erigidos pelo nazismo e pelo comunismo abundem tantos testemunhos de
mulheres: foram-me vitais Contra toda esperanza (Alianza Editorial), de
Nadezhda Mandelstam, e sobretudo Journey into the whirlwind, de Evgenia
Ginzburg, cujo nome eu tinha lido pela primeira vez num livro
extraordinário de Tvestan Todorov que descobri em tradução inglesa,
Facing the extreme — moral life in the concentration camps.
De Todorov aprendi muito lendo, da editora Taurus, El hombre
desterrado. Sobre a situação dos judeus da Espanha li extensamente Los
orígenes de la Inquisición, o estudo tendencioso e ciclópico de Benzion
Netanyahu, e o muito mais curto e também mais equilibrado clássico de
Henry Kamen, La Inquisición española (Crítica), sem esquecer um livro
que me parece extraordinário, apesar de sua extrema concisão, Historia de
una tragédia, de Joseph Perez, também publicado na Espanha pela editora
Crítica. Meu amigo Emílio Lledó leu no original alemão os extensíssimos
diários do professor Victor Klemperer; só conheço a versão inglesa em dois
volumes, publicada com o título I will bear witness: a diary of the nazi
years.* É triste pensar que livros de tanta profundidade quase nunca são
acessíveis ao leitor de língua espanhola.
Mas quase me esquecia de citar dois dos escritores mais decisivos em
minha educação dos últimos anos, sem os quais é muito provável que este
livro não houvesse me ocorrido e que eu nem tivesse encontrado o estado
de espírito necessário para escrevê-lo. Refiro-me a Jean Améry e a Primo
Levi. Foi por acaso que descobri o livro de Jean Améry sobre Auschwitz, e
sem ter tido antes a menor informação sobre sua existência, numa livraria
de Paris, em 1995.
Foi publicado pela Actes Sud com o título Par-delà le crime et le
châtiment, e não tenho notícia de que alguma editora espanhola tenha se
interessado por ele. Graças a Mario Muchnick, no entanto, o leitor espanhol
tem acesso à grande trilogia memorialística de Primo Levi, que inclui Si
esto es un hombre, La trégua** e Los hundidos y los salvados. O que se
pode aprender sobre o ser humano e sobre a História da Europa no século
XX nesses três volumes é terrível e também instrutivo, e honestamente não
creio que seja possível ter uma consciência política cabal sem tê-los lido,
nem uma ideia da literatura que não inclua o exemplo desse modo de
escrever.
Há outros livros, mas esses que indiquei são os que mais me
alimentaram enquanto escrevia Sefarad. Também procurei prestar atenção
em muitas vozes: entre elas, devo mencionar com gratidão e emoção as de
Francisco Ayala e José Luis Pinillos, e a voz sonora e jovial de Amaya
Ibárruri, que numa tarde de inverno me convidou para um café e me contou
alguns episódios do extraordinário romance de sua vida; a de Adriana
Seligmann, que me falou dos pesadelos em alemão de seu avô; e a de Tina
Palomino, que veio a minha casa numa tarde em que eu já imaginava ter
concluído este livro e fez-me compreender — quando escutei a história que,
sem se dar conta, ela estava me dando de presente — que sempre resta algo
mais que merecia ser contado.

Madri, dezembro de 2000


________________
* Os diários de Victor Klemperer, tradução de Irene Teodora Helena
Aron, Companhia das Letras, 1999.
** Publicados pela Companhia das Letras.
ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELO
ACQUA ESTUDIO EM ELECTRA E IMPRESSA PELA
GEOGRÁFICA EM OFSETE SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT
DA COMPANHIA SUZANO PARA A
EDITORA SCHWARCZ
EM MAIO DE 2003
Digitalizado por Virgínia Vendramini

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