Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sefarad é o nome bíblico da terra ibérica onde, por mil anos, viveram os
judeus sefarditas, até serem expulsos, na primavera de 1492. A palavra
tornou-se símbolo e metáfora dos exílios, que não foram poucos num século
XX pródigo em totalitarismos, ditaduras e guerras, com milhões de pessoas
deslocadas, perseguidas e desarraigadas.
A odisseia dos judeus é o núcleo desse afresco da exclusão, e seus
personagens centrais, de carne e osso, são Franz Kafka e Milena Jesenska,
Walter Benjamin e Primo Levi, mas a galeria dos retratados é mais extensa,
incorporando os que se exilaram não apenas em terras alheias, como
também na própria alma, por se sentirem excluídos da sociedade, dos
amigos, da saúde, do amor. Todos cruzaram a pior fronteira, como dizia
Kafka, aquela que divide saúde e doença, vida e morte.
Antonio Muñoz Molina (1956), um dos mais premiados romancistas da
Espanha, empreende um vigoroso trabalho de memória ao resgatar histórias
anônimas ou conhecidas de aventuras, frustrações, ódios e amores vividos
por aqueles que parecem ter sido expulsos do paraíso da humanidade.
Para Antonio e Miguel,
para Arturo e Elena,
desejando-lhes que vivam plenamente
os futuros romances de suas vidas
"Sim", disse o oficial de justiça, "são acusados,
todos os que o senhor está vendo aqui são acusados."
"É mesmo?", disse K. "Então são meus colegas."
________________
1 Aceituna gordal: azeitona verde bem graúda que se consome como
Acordei duro de frio e não sei onde estou nem quem sou. Por segundos
fui um clarão de pura consciência, sem identidade, sem lugar, sem tempo,
apenas o despertar e a sensação do frio, do escuro onde estou imóvel,
encolhido, abrigando-me na temperatura de meu corpo, de lado, as mãos
entre as pernas e os joelhos contra o peito, os pés gelados apesar das botas e
meias de lã, as pontas dos dedos inertes, as articulações tão inchadas que se
tentasse me mexer talvez não conseguisse.
Há algo mais que o frio e a escuridão, um frio e uma escuridão como de
fundo de poço, como que emanando de pedra úmida e de terra gelada e
removida. Cheiro de esterco também, esterco misturado com lama, um
oceano de lama e esterco no qual se afundam botas militares, cascos de
cavalarias, rodas e engrenagens de máquinas de guerra.
O que me acordou foi uma sensação de perigo, um reflexo de alerta tão
poderoso que dissipou num instante todo o peso do sono. Ainda mais rápida
que a consciência atordoada, a mão direita, sob os cobertores, apalpa à cata
da pistola. As luvas de lã espanholas, a manga áspera da jaqueta cinza,
manchada de lama seca, a textura do capote que me serve de travesseiro e o
colchão de palha úmida sobre o qual eu estava dormindo: cada coisa é um
traço somado à minha identidade, à minha pessoa, que no entanto observo
de fora, alguém que apalpa entre tecidos ásperos procurando o metal de
uma pistola Luger.
Mas o braço inteiro pesa como chumbo, ainda paralisado pelo sono e
pelo frio, e um instinto de cautela me avisa que não devo fazer nenhum
barulho. Prendo a respiração querendo escutar alguma coisa, um rumor ou
um roçar que apenas mine o silêncio. Quero me dissolver na escuridão,
ficar tão imóvel como esses insetos que, para se salvarem, confundem-se
com um fiapo de capim ou uma folha seca.
Foi o perigo que o fez recordar quem ele é e onde se encontra. O perigo
e não o medo. Nunca sente medo, da mesma maneira que não se lembra de
algum dia ter sentido inveja. Sente frio, sente fome, a exaustão das marchas
brutais, o desespero de estar afundando sempre, desde o início do outono,
quando chegaram as chuvas, num lamaçal sem fronteiras, num mar de lodo
e esterco em que tudo naufraga, homens, animais e máquinas, mortos e
vivos.
Um segundo antes era apenas algo mais que um lampejo de alerta no
grande vazio do escuro, anônimo como uma brasa de cigarro brilhando um
só instante do outro lado da lama e da terra de ninguém, no nada imenso da
planície afogada no barro, que em poucas semanas terá se transformado
num deserto horizontal de neve. Agora sabe, recorda. Em castelhano antigo
"acordar" se dizia "recordar". O professor de literatura explica passeando de
um lado para outro do estrado empoeirado de giz, que ecoa vazio sob os
seus passos. Usa óculos redondos, um terno pouco limpo, uma piteira em
que dá tragadas curtas enquanto fala com paixão de Jorge Manrique e recita
de cor longos trechos de seus versos. Não sabe que dali a poucos meses será
fuzilado, piscando os olhos ofuscados, sem os óculos, diante dos faróis de
um caminhão. Recorde a alma dormida, pensa aquele que foi o seu aluno
predileto no Instituto Cardenal Cisneros de Madri. Avive o cérebro e
acorde. Recordou de chofre, irrompeu em si mesmo como se tivesse entrado
num quarto escuro e aos poucos fossem se definindo os objetos, o contorno
dos móveis e das janelas. Seu instinto animal de perigo o faz escutar de
novo, agora com os sentidos alertas, o ruído que o acordou.
Um ruído curto, metálico, trivial para quem não o conhece mas
inconfundível, o do roçar de um fuzil, seu choque tênue contra alguma
coisa, contra a roupa de quem o carrega no ombro. Levanta um pouco a
cabeça e vê uma nesga de luz debaixo da porta, nas frestas das tábuas mal
juntadas que separam a cocheira onde ele dorme do aposento principal da
cabana. Podia ter se instalado nesse aposento, como lhe disse o oficial
alemão do alojamento, ficaria perto da lareira e não teria de aguentar o
fedor de esterco. Na primeira noite, quando ele chegou, a mulher russa e
seu filho já tinham se retirado para a cocheira, ou melhor, tinham se
escondido nela, deixando-lhe a única cama. Estavam os dois abraçados,
mãe e filho, transformados num só monte de farrapos, dois pares de olhos
assustados e brilhantes na luz de sua lanterna. Disse-lhes em alemão que
saíssem, que não tinham nada a temer, indicou-lhes por sinais que não
queria dormir na cama, que eles dois a ocupassem. A mulher negava com a
cabeça, sussurrava em russo, ninava o filho, balançando-se os dois para a
frente e para trás. O menino tinha cabelo louro e ralo como de tinhoso,
maçãs do rosto chupadas e grandes olheiras azuladas na pele translúcida.
Mas a luz que filtrava do outro lado da porta não é a da lareira, nem a de
uma vela. É uma lanterna, apaga e acende, ele consegue escutar o clique
mínimo do interruptor, que alguém maneja em silêncio, não a mulher,
porque está certo de que ela não tem lanterna. Não tinha nem velas até ele
lhe trazer um pacote do armazém do posto de comando, nem fósforos para
acender o fogo, não havia nada na cabana de troncos com telhado de palha,
perdida no meio da lama e da desordem dos caminhos da frente de batalha,
intocada pelo desastre, apenas uma grande cama de ferro chegada ali sabe-
se lá por que acasos, a cama em que ele tinha desistido de dormir, apesar
das instruções do oficial do alojamento.
Há vozes no quarto, apenas sussurros, mas são vozes de homens, não da
mulher nem do menino. Passos também: passos de botas, mais que escutá-
los ele percebe sua vibração no chão onde está deitado. Voltam a acender a
lanterna, volta a soar o barulho de um fuzil chocando-se contra a roupa ou a
correagem de alguém, mais exatamente o anel que prende a correia à
culatra. Agora a lanterna se acende na direção dele, e o enxergão e a trouxa
de cobertores e capote na qual ele se deita são riscados pelos fios de luz que
vêm das frestas. Algo opaco se interpõe, um corpo que roça nas tábuas da
porta. E a mulher, tem certeza, distingue sua voz embora ela fale bem
baixinho, repete uma das poucas palavras em russo que ele aprendeu. Niet.
Agora ele compreende, adivinha, mas nem assim tem medo.
Guerrilheiros russos. Operam atrás de nossas linhas, sabotam instalações,
executam e penduram nos postes da linha do telégrafo colaboradores
conhecidos dos alemães. Armam emboscadas de noite e ao amanhecer não
sobra nem vestígio deles, a não ser o cadáver de um enforcado ou de um
estrangulado em silêncio. Não fogem, desaparecem na escuridão, somem na
vastidão sem limites da planície e dos bosques, no espaço que nenhum
exército consegue abarcar ou conquistar.
Pensa com toda a frieza, enquanto tenta que os dedos inchados de sua
mão direita lhe respondam, encontrem a pistola: eles usam fuzis, mas vão
me matar com um tiro, não quererão desperdiçar uma bala e muito menos
que alguém ouça seus tiros tão perto de nossos postos de vigilância.
Que estranho lembrar-se agora mesmo de Jorge Manrique: Como vem a
morte, tão caladinha. Empurrarão a porta de tábuas, um deles me iluminará
com a lanterna e apontará uma pistola para mim e talvez sem deixar que eu
me levante outro se inclinará sobre mim e cortará o meu pescoço, e,
experiente, se afastará para um lado a fim de que o jorro de sangue não o
atinja. Nesse frio o sangue exalará um vapor muito denso. Tudo
encharcado, melado, os cobertores, o capote, o colchão de palha podre, e eu
morto, não eu, outro, ninguém, porque os mortos não demoram muito em
perder todo e qualquer vestígio de identidade, eu morto sem ter alcançado
nem mesmo minha pistola, paralisado pelo frio, que continua a me
entorpecer as mãos e o corpo inteiro como uma mortalha prematura, que
não deixa que eu me mova, tal como, ao dormir, meus músculos não
respondem à minha vontade, e me desespero tanto com essa paralisia que
acordo e tenho um braço tão dormente que preciso mexê-lo com o outro,
como se fosse de madeira.
Isso é que me horroriza: não morrer, mas ficar mutilado. Porém, desse
perigo agora estou salvo. Um obus não vai me estraçalhar, nem a lagarta de
um tanque de combate vai esmagar minhas pernas agarradas na lama. Daqui
a pouco alguém vai empurrar esta porta velha de tábuas e vai cortar o meu
pescoço com um machete do exército russo ou com um facão cego de
cozinha ou com uma foice velha e eu não me mexo nem faço nada para
evitar isso, para me defender. Estou deitado, vendo no escuro os raios de luz
que continuam brilhando em meus olhos embora a lanterna tenha se
apagado e espero, como uma rês, que venham me matar, um guerrilheiro
russo que nunca viu minha cara, que se esquecerá dela quando tiver me
degolado, porque não é possível recordar a cara de um morto, que cai no
anonimato quando a vida desaparece, e por isso nos causam tão pouca
impressão os mortos que sempre há perto de nós, apodrecendo nas cercas de
arame, inchando na lama, os mortos empilhados sobre os quais nos
sentamos às vezes para descansar enquanto fazemos a refeição.
Agora ele compreende por que não acha a pistola. A mulher a terá
tirado, enquanto ele dormia, terá enfiado a mão sob o capote dobrado que
lhe serve de travesseiro e depois saído no silêncio de seus grandes pés
descalços, largos como sua cara e seus quadris, nos quais há uma espécie de
obstinada força cavalar, apesar da fome e da desgraça da guerra, que
transtornou o único mundo que ela conhecia e arrebatou seu marido,
fuzilado pelos alemães, conforme lhe explicou precariamente por sinais e
onomatopeias, enquanto a criança permanecia a seu lado, grudada nela,
agarrada a sua saia com as mãos pequenas e sujas, tênues de tão finas, os
olhos assustados e fixos no estrangeiro de uniforme, tão exagerados na cara
faminta como o tamanho de sua testa, de toda a cabeça em comparação com
o torso chupado, com os braços e as pernas mirrados, frágeis como
apêndices de uma criatura anfíbia.
Eu oferecia algo para comer à mãe e ao filho, uma ração ou uma lata de
conservas, e olhavam minha mão estendida como se não tivessem certeza
de que deviam se aproximar, com um receio de cachorros maltratados. A
mulher empurrava o menino, dizia-lhe alguma coisa em voz baixa, mas ele
não dava um passo, não pegava o que eu oferecia, agarrava-se com mais
força à saia da mãe sem afastar os olhos do pedaço de pão e do pacote de
biscoitos que eu tinha trazido, e eu via o fio de saliva descendo por seu
pescoço tão magro que parecia incapaz de aguentar o peso da cabeça
enorme. Deixava as coisas em cima da mesa e ia descansar na cocheira ou
me afastava um pouco da cabana, isba é a palavra russa. Voltava um
instante depois e a comida já não estava na mesa, mas nem a mãe nem o
filho estavam mastigando, nem havia vestígios de que tivesse sobrado
alguma coisa, tinham comido tudo, engolido com a pressa e o sufoco da
fome, ou tinham escondido uma parte no meio das roupas, ou debaixo da
cama, e me olhavam ao entrar como temendo que eu exigisse alguma coisa
deles, que lhes pedisse para devolver o que já não existia, os dois pares de
olhos azuis cravados nos meus, olhando-me com o pânico de saber que eu
poderia tirar impunemente a vida deles.
Nunca os vi comer, até essa tarde. Fazia vários dias que os guardas e
patrulhas estavam na linha de frente, havia rumores de um ataque russo e
não pude me retirar para ir dormir na isba. Mal conseguira dormir nas três
ou quatro últimas noites. Pior que a fome e o frio era, na guerra, a
desesperadora falta de sono. Quando passei pelo posto de comando do
batalhão para render a guarda entregaram-me um pacote de comida que
minha família tinha me mandado da Espanha. Cheguei à isba, morto de
fome e sono, e descobri aliviado que a mulher e a criança não estavam,
embora não imaginasse aonde pudessem ter ido. Estariam escavando no
barro em busca do que comer, perambulando como cachorros sem dono
perto de algum acampamento nosso. Mas o fogo estava aceso, e assim abri
o pacote, cheio de embutidos saborosos, que, parecia mentira, tinham
atravessado intactos toda a Europa e meia Rússia e chegado a mim, e
comecei a assar uns chouriços. Que delícia inconcebível, no meio de tanta
penúria, o crepitar da gordura vermelha arrebentando a tripa, o cheiro da
carne tão saborosa e tostada. Então percebi que a mulher e o menino
estavam parados na porta, os dois me olhando, olhando os chouriços que eu
estava assando no fogo, e também o embrulho de papelão aberto ao meu
lado. Tinham mais cara de fome do que nunca. Talvez não tivessem comido
nada além de cascas de batatas nos dias em que não lhes levei nada. Pus o
pacote em cima da mesa e fiz sinais para que se aproximassem.
Dessa vez, quando a mulher o empurrou, o menino não resistiu. Pegou
com as duas mãos o chouriço assado que eu tinha deixado num prato e
comeu-o sem levantar a cabeça e fazendo o mesmo ruído de um bicho.
A mulher olhava, mas não ousava se aproximar. Dei a entender que ia
me retirar. Vim para cá e fechei a porta, enrolei-me em meus cobertores e
dobrei o capote para usá-lo como travesseiro. Logo eu dormiria, mal
fechava os olhos e o sono atrasado de tantos dias me derrotava. Então a
mulher bateu na porta com batidas muito suaves.
Podia ver sua figura grande atrás das tábuas desconjuntadas. Disse-lhe
que entrasse e me levantei. Entrou me dizendo algo em russo,
atropeladamente, e fazendo gestos estranhos como o de se benzer. Tinha
gordura vermelha em volta da boca. Antes que eu desse por mim ela se
ajoelhou na minha frente e cobriu minhas mãos de beijos, lágrimas, saliva e
gordura de chouriço.
Agora volto a escutar sua voz, e embora fale tão baixo que só distingo
um rumor, tem o mesmo tom de monotonia e súplica de quando falava
comigo essa tarde. Niet, diz. Niet. A lanterna se acende e apaga e é o corpo
grande da mulher que bloqueia a luz. Se eu conseguir que minhas mãos
desinchem e se conseguir pegar a pistola e armar o gatilho antes que
irrompam os que vão me matar poderei pelo menos acabar com a vida de
um ou dois deles. Empurrarão a porta e permanecerei imóvel, segurando a
pistola debaixo dos cobertores, e quando dirigirem a lanterna para minha
cara levantarei a mão e dispararei à queima-roupa, e na confusão talvez
consiga me salvar.
Mas esse simples gesto é tão impossível como se me propusesse a
realizá-lo num sonho. Não faço nada, continuo rígido, jogado no chão, meio
recostado na parede, escutando essas vozes murmuradas, contando os
segundos que me faltam para morrer nesta região nórdica e desolada do
mundo, a menos de um quilômetro de Leningrado, a cidade que sempre
estávamos prestes a conquistar e à qual nunca chegamos, à qual já não
chegarei, embora nos dias claros vejamos suas cúpulas douradas brilhando
ao longe, no horizonte da planície.
Mas não encontro medo dentro de mim, nem mesmo agora, apenas uma
espécie de alívio. Que entrem logo, que o suplício não se prolongue. A
lanterna se apaga, volta a se acender e sinto um aperto no coração ao pensar
que, agora sim, vão empurrar a porta. Niet, disse a mulher, e atrás de um
rumor obscuro de voz masculina ouvi algo semelhante ao miado de um
gato, e era um choro, o do menino.
As vozes cessam. Vão entrar e não consigo mexer a mão paralítica e
pegar minha pistola. Abre-se uma porta, mas não é a que há diante de mim,
e sim a outra, de madeira mais tosca, a porta da isba, e ao abrir entra uma
correnteza que me alcança. Percebo a vibração dos passos das botas. Escuto
esse ruído ínfimo do fuzil, o anel da correia batendo na culatra. Agora a
porta se fechou, tudo volta a ser escuridão e silêncio.
Com gratidão, embora também com distância, com um desapego que foi
crescendo nele à medida que a guerra avançava, compreende de súbito que
a mulher salvou sua vida.
Convenceu os guerrilheiros a não matá-lo, dizendo-lhes que não é um
alemão nem age como eles, embora vista seu uniforme com as insígnias de
tenente. Talvez tenha mostrado a eles o pacote de comida, ou o que dele
sobrava, talvez tenha lhes dado algo para amainar a fome.
Um tenente alemão ocupa o lugar dele na cabana dias mais tarde,
quando ele entra de serviço na linha de frente. Na primeira noite, o alemão
se retira para dormir enquanto mãe e filho deitam-se no chão da cocheira, e
na manhã seguinte ele aparece estrangulado com um arame e pendurado no
poste do telégrafo que há perto da cabana. Mãe e filho são trancados na
cabana e alguém ateia o fogo, e quando tudo queimou os homens aplainam
o terreno com um trator-lagarta e fincam no barro um cartaz em alemão e
em russo recordando o castigo reservado a quem colabora com os
guerrilheiros.
Um momento. Estremece com um calafrio, encolhido no escuro,
apalpando lençóis, um travesseiro, debaixo do qual não está sua pistola.
Essas coisas não aconteceram ainda. Não posso me lembrar de algo que
ainda não ocorreu. Em abril ou maio de 1936 meu professor de literatura
não podia saber que no final desse verão estaria jogado e morto numa
valeta.
Novamente atordoado, tem a impressão de que volta a acordar, e mais
uma vez, por alguns segundos, não sabe onde está nem quem é. Onde estou
senão numa cabana russa, pertinho da frente de Leningrado, no outono de
1942. Não uso um uniforme alemão de inverno, mas um pijama leve, não
toco no tecido áspero de um cobertor militar, não tenho cheiro de estéreo
nem de palha podre de um colchão em cima do qual caí morto de cansaço
há algumas horas, e no qual acabo de acordar porque escutei os ruídos
silenciosos dos guerrilheiros que vieram me matar.
Agora, sim, sente pânico, não de ser morto mas de se achar perdido na
memória insegura e na desordem do tempo, pânico e sobretudo vertigem,
porque num só instante sua consciência pula para uma distância de mais de
meio século, de um continente inteiro. Tem a tentação de esticar a mão até a
mesa de cabeceira e acender o abajur, mas prefere ficar imóvel, encolhido,
como nessa noite de cinquenta e sete anos atrás, toda a vida passada num
relâmpago, nesse minuto em que a gente adormece e acorda de repente
quando a cabeça cai. Ele presta atenção aos sons que a vigília irá
ampliando, ao mecanismo do despertador, ao barulho, não muito longe, do
motor da geladeira, do tráfego noturno e serenado de Madri. Vê quem foi
como se visse outro, vários outros sucessivos.
Vê-se de fora, com curiosidade e certa ternura, embora também com
satisfação secreta de ter descoberto que não era um covarde, com o espanto
de ter sobrevivido onde tantos pereceram. Mas também sabe que a ausência
de medo, assim como a ausência de inveja, não é exclusivamente um
mérito, e sim um traço de caráter. Vê o garoto apaixonado por filosofia e
por literatura e língua alemã numa escola popular de Madri, o jovem que
não chegou a tempo de lutar na guerra espanhola e se alistou para ir para a
Rússia num impulso nocivo e temerário de romantismo. Vê-se pulando
sobre uma trincheira, à frente de um pelotão, atirando com uma pistola e
dando ordens aos gritos quando se sente vulnerável. Vê se aproximando
dele, surgindo no nevoeiro, um pelotão de cavaleiros russos com os sabres
levantados.
Mas de todas essas identidades sucessivas a mais estranha, a mais irreal
é a que encontrou agora, esta noite, recém-acordado de uma recordação tão
viva como um sonho.
Quem é o homem de oitenta anos que se mexe com dificuldade na
cama, que sabe que vai continuar acordado até raiar o dia, vendo caras de
mortos e lugares que não existem, a mulher russa e o garoto mirrado que se
esconde nas pregas de sua saia esfarrapada, as chamas da fogueira que ele
não viu resplandecer na planície afundada na lama, o rosto sem óculos do
professor fuzilado. Só deseja adormecer, e que durante uns minutos ou
segundos o agora se transforme de novo no então.
Valdemún
Ele fica como que atolado num silêncio trágico, numa atitude
insondável de remorso e penitência. Olha como prestes a dizer alguma
coisa, o olhar fixo e úmido, abre a boca, tomando ar para falar, mas assim
que começa batem à porta do escritório. Entra uma senhora idosa, magra,
com os óculos pendurados numa correntinha, a bibliotecária e secretária do
Ateneo. Quando quiserem descer, o maestro Andrescu manda dizer que já
está pronto.
Desaparecem um dia, mortos ou não, perdem-se e vão se apagando da
memória como se nunca tivessem existido, ou vão se transformando em
outra coisa, em figuras ou fantasmas da imaginação, já alheios às pessoas
reais que um dia foram, à existência que talvez continuem tendo. Mas às
vezes surgem de novo, pulam do passado, pelo telefone chega uma voz que
havia anos não se escutava ou alguém diz com naturalidade um nome que já
parecia totalmente imaginário, o nome de um morto ou de um personagem
de ficção. Muito longe de Tânger, muitos anos depois, em outra vida, a uma
distância temporal tão imensa que as recordações perderam toda exatidão, e
até quase toda substância, num trem em que viaja um grupo de literatos e
professores, através de uma paisagem de colinas verdes e brumas (mas esse
tempo também já vai ficando para trás, e a ocasião perde nitidez, assim
como as caras então usuais dos companheiros de trem), alguém diz o nome
do senhor Salama, seguido de uma expressão de brincadeira e assombro e
de uma gargalhada:
“Não me diga que você também conheceu o velho Salama, anos e anos
sem me lembrar dele. Que canseira me deu o cara, se alguém tivesse me
avisado a tempo eu não teria pisado em Tânger, e não tanto pela merda que
me pagavam naquele teatro, que estava desabando. Muito afetuoso, o judeu,
e muito prestativo, não é mesmo? Mas muito chato, não largava você nem
no sol nem na sombra, nunca, pegava você de manhã no hotel e o levava
para todo lado, prós cafundós e até para mijar, e o tempo todo com a mesma
história, com a lengalenga de que ninguém na Espanha ligava para ele, e
aqueles casos que contava da época em que chegou a Tânger, foi nos anos
40, não foi? Parece que era de uma família de dinheiro, dá, Checoslováquia
ou por aí, e que tiveram de pagar um dinheirão para que os nazistas os
deixassem sair. Pois é, dos detalhes não me lembro, porque faz séculos, era
naquela época em que a gente ia para todo canto, topava fazer espetáculos
para quem pedia, e aquele chato no telefone era muito simpático, falando
cheio de floreios, não é? Que claro que seria uma honra, se bem que
infelizmente a remuneração não pudesse ser muito generosa, que claro que
seria muito importante para apoiar a cultura espanhola na África... Por que
falava assim? Que cansativo, o judeu, todo dia para cima e para baixo com
as muletas, ele teve um acidente de carro, não teve? Não sou incapacitado
nem inválido, dizia, sou coxo. E, falando em coxo, agora me lembro, ele
não lhe contou a viagem num trem para Casablanca, quando conheceu uma
fulana? Pois é, curioso, porque dizem que contava para todo mundo,
quando bebia uns goles, e começava sempre pela mesma coisa, um poema
de Baudelaire: ele tampouco chegou a recitá-lo para você?”
Sem que a gente saiba, outros usurpam histórias ou fragmentos de nossa
vida, episódios que acreditamos guardar no cofre-forte da memória e que
são contados por pessoas que talvez a gente nem conheça, pessoas que os
escutaram e os repetem deformando-os, adaptando-os a seu bel-prazer ou
com desatenção, ou com um certo efeito de comicidade ou maledicência.
Em algum lugar, agora mesmo, alguém conta alguma coisa que tem a ver
intimamente comigo, algo que presenciou há anos e que eu talvez nem
lembre, e como não lembro tendo a supor que não existe para ninguém, que
se apagou do mundo tão completamente como da minha memória. Partes de
você mesmo vão ficando em outras vidas, como casas onde você viveu e
agora outros ocupam, fotografias ou relíquias ou livros que pertenceram a
você e que agora um desconhecido toca e olha, cartas que continuam
existindo quando quem as escreveu e quem as recebeu e guardou está morto
há muito tempo. Bem longe de você contam-se cenas da sua vida, e você
era alguém tão inventado como um personagem secundário de um livro, um
transeunte no filme ou no romance da vida de outro.
Só que há os detalhes, e dá preguiça inventá-los, falsificá-los, profanar,
com a usurpação de um relato, o que foi parte dolorosa e real da experiência
de alguém.
Quem é você para contar uma vida que não é sua? No trem, nas
Astúrias, a caminho de um congresso de literatura, para matar o tempo
arrastado da viagem, pela simples vaidade de contar com ironia uma
história que para a pessoa não significa nada, e tampouco para quem escuta,
o escritor que disse em voz alta o nome do senhor Salama, embora não
recordasse se era Isaac ou Jacob ou Jeremias ou Isaías, inicia um relato que
dura uns poucos minutos, e não sabe que de algum modo está ampliando
uma afronta, agravando uma humilhação.
O senhor Isaac Salama sobe num trem com destino a Casablanca, para
uma viagem de negócios. Pode-se imaginar que ele tem quarenta, quarenta
e tantos anos, que há algum tempo, desde que o pai se aposentou, dirige as
Galerias Duna, já em relativa decadência, como essas lojas grandes das
capitais das províncias espanholas que foram muito modernas no final dos
anos 50, nos primeiros anos da década de 60, e depois ficaram paradas no
tempo, imóveis numa modernidade envelhecida, pouco a pouco
arqueológica. Quando vai viajar de trem, o senhor Isaac Salama tem o
costume de chegar muito cedo à estação, já que assim pode ocupar seu
assento antes de qualquer outro viajante, e evitar que o vejam andando com
dificuldade e angústia sobre as duas muletas. Esconde-as debaixo do
assento, ou deixa-as bem disfarçadas no compartimento de bagagens, se
possível atrás de sua própria mala, embora também calculando os
movimentos necessários para recuperá-las sem dificuldade, e deixando ao
alcance das mãos as coisas necessárias para a viagem. Também procura usar
uma gabardine leve, jogando-a em cima das pernas. E a época em que os
trens ainda têm cabines pequenas com poltronas frente a frente. Se alguém
ocupa um assento ao lado dele, o senhor Isaac Salama pode passar toda a
viagem sem se mexer, ou esperando que o outro desça antes, e só em caso
extremo se levantará e apanhará as muletas para ir ao banheiro, arriscando-
se a ser visto no corredor, a que os outros se afastem olhando com pena ou
ar de deboche ou até lhe oferecendo ajuda, segurando uma porta ou lhe
estendendo a mão.
Já está quase na hora da partida do trem, e para satisfação do senhor
Salama ninguém entrou em sua cabine. Viajando em primeira classe isso
acontece com certa frequência.
Justo quando o trem começa a andar irrompe uma mulher, agitada com a
corrida que teve de dar para chegar no último minuto. Senta-se defronte do
senhor Salama, que encolhe as pernas paralíticas debaixo da gabardine. Ele
não se casou, mal se atreveu a olhar para uma mulher desde que ficou
inválido, tamanha a vergonha de sua diferença ultrajante, assim como
quando em criança o obrigaram a pôr na lapela do capote uma estrela
amarela.
A mulher é jovem, muito bonita, muito conversadora, culta, decerto
espanhola. Apesar da reticência do senhor Salama, pouco depois do início
da viagem já conversam como se se conhecessem desde sempre, ela
sobretudo, que tem o dom de explicar-se com clareza e fluidez, mas
também de acompanhar com sofreguidão o que lhe contam, e de pedir
detalhes sem parecer intrometida. Instintivamente, os dois se inclinam um
em direção ao outro, é possível que as mãos se toquem em certos gestos, os
joelhos da mulher, nus e sem meias, os do senhor Salama encolhidos e
escondidos debaixo do pano da gabardine. Conversam de perfil para a
paisagem que passa rápido pela janela para a qual nem um nem outro se
viram. O senhor Salama sente um desejo sexual muito forte, mas também
um desejo muito claro e trêmulo de ternura, uma promessa física de
felicidade que ele tem a impressão de ver refletida e correspondida nos
olhos da mulher.
Ambos gostariam que a viagem durasse para sempre: o deleite de
viajarem de trem, de se conhecerem melhor e terem pela frente tantas horas
de conversa, de afinidades mútuas recém-descobertas, até então não
compartilhadas com ninguém. O senhor Isaac Salama, cujo acidente o
deixou imobilizado para sempre na timidez torturada dos adolescentes,
agora descobre em si mesmo uma leveza da palavra que ele desconhecia,
um princípio de sedução e audácia que lhe devolve após tantos anos um
pouco do ímpeto jovial de seus primeiros tempos em Madri. Ela diz que vai
para Casablanca, onde vive com a família. O senhor Salama está prestes a
lhe dizer que também vai para essa cidade, portanto que descerão juntos do
trem e poderão continuar a se ver nos próximos dias. Mas então se lembra
daquilo que estivera ausente nas últimas horas ou minutos, sua obsessão e
sua vergonha, e não diz nada, ou mente, diz que é uma pena, tem de seguir
viagem até Rabat. Se descesse em Casablanca deveria apanhar as muletas,
que ela não chegou a ver, assim como não viu suas pernas, embora tenha
roçado nelas, cobertas pela gabardine.
Continuam conversando, mas começa a haver instantes de silêncio, o
que ambos percebem, ainda que ela tente animadamente preenchê-los com
palavras atrás das quais já existe uma zona de sombra, estranheza ou receio.
Talvez imagine ter cometido um equívoco, dito algo que não devia.
Enquanto isso o senhor Isaac Salama olha pela janela toda vez que o trem
chega a uma estação e calcula quantas ainda faltam para Casablanca, para a
despedida que lhe parece tão irrevogável como se já tivesse acontecido.
Irrita-se com raiva secreta de si mesmo, desafia-se, impõe-se prazos,
limites, concede-se tréguas de minutos, enquanto a mulher continua a
conversar e sorrir, enquanto toca nele com suas mãos desenvoltas, os
joelhos tão perto que se chocam quando o trem freia, e então o senhor
Salama aperta disfarçadamente a gabardine sobre as coxas, para que não
deslize e caia no chão. Vai lhe dizer que também está indo para Casablanca,
vai se levantar da poltrona quando o trem parar e pegará suas duas muletas,
não permitirá que ela tente ajudá-lo a levar a bagagem, porque em tantos
anos já adquiriu uma agilidade e uma força inimagináveis nos braços e no
torso, e quando lhe faltam as mãos é capaz de segurar uma coisa com os
dentes, ou manter o equilíbrio apoiando-se numa parede.
Mas no fundo sabe, e não deixou de saber um só instante, que não se
atreverá. À medida que o trem vai se aproximando de Casablanca a mulher
anota o próprio endereço e o telefone, e pede os dele, e o senhor Salama os
falsifica num papel, com uma letra ilegível. O trem parou e a mulher, de pé
na sua frente, fica meio atrapalhada, estranhando que ele nem se levante
para se despedir, que não a ajude a descer a mala. É pouco provável que
tenha visto as muletas, bem disfarçadas atrás da sacola do senhor Salama,
embora também seja tentador imaginar que tenha reparado nelas, com
perspicácia de mulher, e que já tivesse notado algo estranho nas pernas
juntas demais, cobertas pela gabardine. Não se decide a debruçar-se sobre o
senhor Salama para lhe dar um beijo, e estende-lhe a mão, sorri, encolhendo
os ombros, num gesto de fatalidade ou capitulação, diz-lhe que telefone se
resolver parar em Casablanca na volta, que ela lhe telefonará da próxima
vez que for a Tânger. No último instante o senhor Salama tem a tentação de
se levantar, ou de não soltar a mão da mulher e deixar que ela o levante com
seu apertão vigoroso. Tão forte é o impulso de não permitir que a mulher vá
embora que ele tem a impressão de que voltou a ter força nas pernas e de
que pode ficar de pé sem a ajuda de ninguém. Mas permanece imóvel, e
após um instante de dúvida a mulher solta sua mão, pega a mala, vira-se
para ele pela última vez e sai para o corredor, e ele já não consegue vê-la na
plataforma. Joga-se para trás no seu assento quando o trem começa a andar,
a caminho de uma cidade na qual ele não tem nada a fazer, na qual deverá
procurar um hotel para passar a noite, um hotel perto da estação, porque
terá de tomar bem cedinho um trem de volta para Casablanca. Ó tu a quem
eu teria amado, recitou o senhor Isaac Salama naquela tarde em seu
escritório do Athénée Espagnol, com a mesma gravidade com que teria
recitado os versículos do kaddish em memória de seu pai, enquanto entrava
pela janela aberta o som do apito de um barco e o cantochão de um
muezim, ó tu que sabias.
________________
2 Montera: chapéu de toureiro; banderilla bastão com ponta de ferro,
Fico lendo até muito tarde, resistindo ao sono para avançar um pouco
mais na leitura, para saber mais coisas da vida desse homem que até ontem
eu desconhecia, Willi Münzenberg, que no início do verão de 1940 foge
para o oeste pelas estradas da França, na grande debandada provocada pelo
avanço dos tanques alemães. Agora, que pela primeira vez nos seus
cinquenta anos de vida vê as coisas com quietude e clareza e adquiriu a
experiência e o equilíbrio para fazer corretamente o que deveria ser feito,
logo agora já nada mais importa, já não há tempo para nada. Não é a
primeira vez que foge, mas é a primeira vez que foge a pé e sem nada e sem
ter para onde ir e sabendo que em qualquer lado das fronteiras da guerra
onde possa buscar refúgio haverá delatores dispostos a entregá-lo, se é que
não cairá anonimamente sob a metralha entre uma fila de reféns escolhidos
ao acaso, ou estraçalhado por uma bomba ou uma mina. Será executado se
os alemães o agarrarem, mas também será se encontrarem seu rastro os
antigos camaradas e subordinados comunistas. Se tentar chegar à Inglaterra,
objetivo um tanto impossível, sabe que ali também será preso como espião,
e que com certeza os ingleses o usarão como refém em algum acordo com
os soviéticos ou os alemães.
Foi tudo e já não é nada nem tem nada, embora alguém se lembre de
que lhe restavam no bolso dois mil francos, com os quais pensava em
comprar um carro que lhe permitisse fugir para a Suíça.
Sabe que o pouco que resta dele mesmo, essa sombra fugitiva pelas
estradas da França, é uma presença inaceitável para muitos, uma
testemunha impertinente ou daninha que seria muito conveniente eliminar.
O que ele acreditava ser sua força, seu seguro de vida, é a causa de sua
condenação. Sabe algo mais: nos serviços secretos ingleses há agentes
soviéticos infiltrados que revelariam a Moscou o rastro de sua presença na
Inglaterra, de modo que tampouco estaria em segurança se o governo
britânico, lealmente, lhe oferecesse refúgio.
Se fecho os olhos, o livro quase escorrega de minhas mãos, enquanto
Willi Münzenberg caminha perdido entre a multidão que inunda as estradas,
que se dispersa pelos campos dos arredores como uma nuvem de insetos
toda vez que se aproximam os caças alemães voando muito baixo, primeiro
os motores ao longe e depois as silhuetas metálicas resplandecendo ao sol
de junho, e finalmente suas sombras, grandes aves de rapina de asas
imóveis e abertas, metralhando um comboio de veículos militares em fuga,
soltando suas bombas sobre uma ponte na qual se amontoam os fugitivos,
atrasados em seu avanço por causa de um caminhão enguiçado. Insetos em
fuga, como os pilotos veem lá de cima: figuras diminutas, gravetos negros e
oblíquos. Mas cada uma dessas ínfimas criaturas é um ser humano, tem um
nome e uma vida, uma cara que não é idêntica à de mais ninguém. Entre
elas Willi Münzenberg quer se confundir, quer ser ninguém para escapar às
manzorras e às fauces do Ciclope. Mas o olho do Ciclope que ele mais bem
conhece e mais teme, Josef Stálin, tudo vê, tudo esquadrinha, não permite
que ninguém escape nem se salve, e nem mesmo encolhendo-se até o
tamanho do inseto mais desprezível um condenado pode escapar de sua
perseguição, nem numa fortaleza do México protegida por muros, cercas de
arame farpado, guardas armados, torreões de vigilância, portões de ferro,
Trotsky conseguiu escapar de uma perseguição que durou mais de dez anos
e envolveu o mundo inteiro.
Quem, entre a multidão que foge ao seu redor, poderia imaginar a
história de Willi Münzenberg, um estrangeiro corpulento, malvestido e mal
barbeado, que passou os últimos meses num campo de concentração, um
desses campos nos quais o governo francês prendeu justamente aqueles
refugiados ou apátridas que mais têm por que temer os nazistas, segundo a
lógica criminosa da época: se estoura a guerra contra a Alemanha, os
refugiados alemães que vivem na França são o inimigo, de modo que é
preciso trancá-los, mesmo que sejam fugitivos do nazismo. Mas, uma vez
trancafiados, eles são a presa perfeita para o exército alemão e para a
Gestapo, da qual acreditaram ter escapado ao fugirem para a França. Em
1933, esse homem, Willi Münzenberg, chegou a Paris com a primeira leva
de fugitivos da perseguição nazista, após o incêndio do Reichstag, no qual
ocupara uma cadeira de deputado comunista. Mas nessa ocasião fugiu num
grande Lincoln Continental preto, dirigido por seu próprio motorista de
libré: não a pé, como agora, quando já não tem nada e não é ninguém,
quando não sabe onde está sua mulher e nem se está viva ou se poderá
voltar a vê-la, no meio da grande desordem da guerra, ela também uma
figura diminuta entre as multidões que fogem, parte do recenseamento
impossível dos deslocados e deportados, milhões de pessoas jogadas nas
estradas de uma Europa subitamente retrocedendo à barbárie, multidões
esperando em plataformas de estações de trem, nos cais das cidades do
litoral, amontoando-se perto das grades ou das portas fechadas das legações
estrangeiras para conseguir passaportes, documentos, vistos, carimbos
administrativos que possam marcar no destino de cada um a diferença entre
a vida e a morte.
Deixei o livro na mesa de cabeceira e apaguei a luz, e ao ficar de olhos
abertos no escuro me dei conta de que o sono que me vencia há um instante
agora desapareceu.
Perdi o sono, como se perde o trem por um minuto, por segundos, e
agora sei que tenho de esperar que volte, o que pode levar horas.
Münzenberg foi visto com vida pela última vez na mesa do bar de um
vilarejo, sentado com dois homens mais moços e falando com eles em
alemão. Talvez também fossem fugitivos do campo, e é muito provável que
um deles o tenha matado: talvez tenham se feito internar no campo de
prisioneiros para ganhar a confiança do homem que tinham ordens de
executar.
Fico quieto no escuro, escutando a respiração de quem dorme ao meu
lado. Münzenberg foge do avanço do exército alemão acompanhado por
esses homens e não sabe que são agentes soviéticos que o espionaram desde
que chegou ao campo de prisioneiros, e a quem foi encomendada sua
execução. Ou talvez saiba e não tenha forças para escapar, para prosseguir o
esforço de uma fuga exaustiva e inútil, a lenta prolongação de uma
perseguição de tantos anos. Vejo pela sacada, acima dos telhados, a grande
esfera do relógio do edifício da Telefônica, que a essa distância tem algo de
arranha-céu moscovita, talvez porque não custa nada imaginar que a luz
vermelha do pináculo é uma grande estrela comunista. Há muitos anos,
quando eu ainda não tinha ido a Nova York, vi em sonho um imenso prédio
de tijolos pretos com uma grande estrela vermelha no seu cume, em forma
de pirâmide, e alguém que ia ao meu lado e que eu não enxergava me disse,
apontando-a: "Esta é a estrela do Bronx".
Na insônia voltam os fantasmas dos mortos e também os fantasmas dos
vivos, dos ausentes a quem há tempos não vejo e de quem não me lembro,
episódios, atos, nomes de vidas anteriores, pontadas quase nunca de
saudades, quase sempre de arrependimento ou vergonha. Também volta o
medo em estado puro, o pânico infantil do escuro, das sombras ou dos
vultos que nele começam a se definir e assumem a forma de um bicho ou de
uma presença humana ou de uma porta prestes a se abrir. No inverno de
1936, no quarto de um hotel de Moscou, Willi Münzenberg permanecia
acordado e talvez fumando no escuro enquanto sua mulher dormia a seu
lado, e toda vez que escutava passos no corredor, aproximando-se do
quarto, pensava com estremecimento de pânico e clarividência de insônia,
já chegaram, já estão aqui. Pela janela de seu quarto via uma estrela
vermelha ou um relógio com os números em vermelho brilhando no
pináculo de um prédio, sobre a vasta escuridão de Moscou, sobre as ruas
por onde a essas horas só circulavam as caminhonetes pretas da NKVD.
Minha avó Leonor, que descanse em paz, de quem mal me recordo,
contava-me quando eu era menino que sua mãe, depois de morta, lhe
aparecia toda noite. Não fazia nada, não dizia nada, nem lhe dava medo, só
melancolia e ternura, e um sentimento de culpa, se bem que minha avó
nunca tivesse usado essa expressão, que não pertencia ao idioma camponês
que falava. Sua mãe a olhava calada, sorria para que não sentisse medo,
fazia-lhe um gesto com a cabeça, como para lhe indicar alguma coisa, pedir
alguma coisa, e depois desaparecia, ou minha avó readormecia, e na noite
seguinte acordava e voltava a vê-la, quieta e fiel, aos pés da cama, a mesma
onde você e eu dormimos agora.
Mamãe, o que você quer? Está precisando de alguma coisa?, minha avó
perguntava, com a mesma solicitude de quando sua mãe vivia, de quando já
estava muito doente e olhava para ela sem falar, seu rosto muito pálido no
travesseiro e seus olhos seguindo-a pelo quarto.
A mãe repetia esse gesto de quem quer dizer alguma coisa mas perdeu a
voz e se esforça e as palavras não conseguem sair de sua boca. Na manhã
de um domingo, na igreja, minha avó entendeu o que sua mãe queria lhe
dizer. Ela era tão pobre e tinha tantos filhos que não pudera mandar rezar
missas para sua mãe, e, embora não fosse muito praticante, o remorso não a
deixava em paz, uma inquietação surda que ela não contara a ninguém. Sem
aquelas missas provavelmente sua mãe não poderia sair do Purgatório. Deu
um jeito e conseguiu um pouco de dinheiro, pedindo emprestado a uma
cunhada, e com as moedas e notas velhas de cinco pesetas enroladas num
lenço, foi à igreja de Santa Maria para encomendar as missas. Nessa noite,
quando sua mãe reapareceu aos pés da cama, ao lado das grades douradas
de bronze, minha avó lhe disse que não se preocupasse, que muito breve já
nada lhe faltaria. Sua mãe não voltou a aparecer, a apresentar-se-lhe, como
ela dizia em sua língua de outro século. Sentiu alívio, mas também tristeza
pela ausência da mãe, definitiva, pois nunca mais a veria, nem mesmo em
sonho.
Esta é a cama em que você e eu dormimos, em que nasceu minha mãe,
em que agora à noite não consigo dormir. Meus pais acharam muito
estranho que quiséssemos trazer para Madri essa cama grande e velha, há
anos lá no fundo do sótão. Nessas grades que agora se perfilam na
penumbra, quando a pupila se adaptou ao escuro, a mãe de minha avó
apoiava sua mão pálida, minha bisavó, de quem em parte eu descendo, e
cujo nome nem sei, embora tenha herdado parte de seu patrimônio genético
que talvez defina um traço de meu rosto ou de meu caráter, de minha saúde
incerta. Que estranho viver nos lugares que foram dos mortos, usar as
coisas que lhes pertenceram, olhar-se nos espelhos onde apareceram seus
rostos, olhar-se com olhos que talvez tenham a forma ou a cor dos deles.
Durante a insônia voltam os mortos, aqueles que esqueci e aqueles que
jamais conheci, aqueles que assaltam a memória de quem, há sessenta anos,
sobreviveu a uma guerra, e parecem lhe dizer que também não os esqueça,
que diga em voz alta seus nomes, que conte como viveram, por que foram
arrastados tão depressa para essa morte que também poderia ter levado esse
alguém. De quem foi que peguei o lugar na vida, que destino foi cancelado
para que o meu se cumprisse, por que fui eu o escolhido e não outro.
Em noites em que no escuro esperei em vão o sono imaginei as insônias
desse homem, Willi Münzenberg, quando começou a entender que a época
de seu poder e de sua soberbia tinha terminado, e só lhe restava um futuro
em que ele fugiria sem trégua nem possibilidade de refúgio e acabaria
morrendo como um cachorro, como um bicho acossado e sacrificado, tal
qual morreram tantos amigos seus, antigos camaradas, heróis bolcheviques
transformados da noite para o dia em criminosos e traidores, em répteis
abjetos que era preciso esmagar, segundo as arengas do juiz bêbado e
demente dos grandes processos de Moscou. Executado como um cachorro,
como Zinoviev ou Bukarin, como seu amigo e cunhado, Heinz Neumann,
dirigente do Partido Comunista alemão, que vivia refugiado em Moscou e
em 1937 morreu talvez com um tiro na cabeça, inerme e desconjuntado
diante de seus verdugos, ou como aquele outro acusado, Josef K., que Franz
Kafka inventou nas insônias febris da tuberculose, sem saber que estava
formulando uma profecia exata. Mas nunca se soube realmente como Heinz
Neumann morreu, quantas semanas ou quantos meses foi torturado, onde
foi enterrado seu corpo.
No campo de extermínio de Ravensbrück a viúva de Heinz Neumann
escutava as histórias de Kafka que sua amiga Milena Jesenska lhe contava.
Em muitas noites de insônia Babette Gross viveu minuto a minuto a tortura
de não saber se o marido Willi Münzenberg estava morto ou numa prisão de
Stálin ou num campo alemão. Anos mais tarde, quando afinal lhe contaram
a verdade, imaginava o cadáver enforcado num bosque, pendurado num
galho, balançando dia após dia até que o galho ou a corda se partiu e o
corpo já rígido caiu no chão, foi se decompondo sem que ninguém o
encontrasse, enquanto ela não dormia perguntando a si mesma se devia ou
não pensar nele como num morto. Quando chegou o outono as folhas caídas
começaram a cobri-lo.
Você dormia ao meu lado e eu imaginava Willi Münzenberg fumando
no escuro enquanto escuta a respiração serena de sua mulher, Babette, uma
burguesa loura e altiva, filha de um magnata prussiano da cerveja,
comunista fanática nos primeiros anos da década de 20, e que viveu muitos
anos mais que ele, quase meio século, uma anciã que nas vésperas da queda
do muro de Berlim recebe um historiador americano e vai lhe sussurrando
num gravador histórias de um tempo e de um mundo desaparecidos,
imagens da noite em que o Reichstag ardeu, ou dos primeiros desfiles dos
Camisas Pardas pelas cidades alemãs, ou de Moscou em novembro de 1936,
quando ela e o marido esperaram, dias a fio no quarto de um hotel, que
alguém fosse visitá-los ou telefonasse anunciando o dia e a hora de um
encontro com Stálin que nunca aconteceu, ou que ouvissem umas batidas na
porta e fossem os homens que vinham prendê-los.
Tem gente que viu essas coisas: nada disso está perdido na desmemória
absoluta, essa que cai sobre os fatos e os seres humanos quando morre a
última testemunha que os presenciou, o último que escutou uma voz e
sustentou um olhar.
Conheço uma mulher que andou perdida por Moscou na manhã do dia
em que se anunciou a morte de Stálin. Estava grávida de oito meses e
voltou para casa porque temia que uma avalanche humana esmagasse a
criatura que já se mexia furiosamente no seu ventre. Ao falar com ela sinto
uma vertigem, como se cruzasse uma ponte alta no tempo, como se quase
me encontrasse na realidade que ela viu, e que se eu não a tivesse conhecido
seria para mim o relato de um livro. Conheço um homem que ganhou uma
Cruz de Ferro durante o cerco a Leningrado, e quando eu era bem jovem
apertei a mão de outro que tinha tatuado na pele pálida de um antebraço
muito magro o número de identificação dos prisioneiros de Dachau.
Conversei com alguém que aos seis anos morria de medo abraçado à mãe
num porão de Madri enquanto soavam as sirenes de alarme, os motores dos
aviões e os estrondos das bombas, e que aos dez anos estava internado num
barracão de Mauthausen. Era um homem miúdo, educado, ausente, que
tinha um nome metade espanhol e metade francês e não pertencia
totalmente a nenhum dos dois países. O cabelo preto bem puxado para trás,
os traços duros e a cara acobreada eram espanhóis, mas os modos e a língua
que usava eram franceses como os de qualquer um dos escritores que
conversavam e bebiam naquele coquetel literário, em Paris, onde nos
encontramos rapidamente, onde começou minha amizade com Michel del
Castillo.
Por acaso, tal como se encontra um desconhecido numa festa, encontrei
Willi Münzenberg num livro que alguém me enviou e que comecei a ler
distraidamente, e por causa dele perdi-me na insônia. Em dado momento da
leitura produziu-se, sem que eu percebesse, uma transmutação em minha
atitude, e quem havia sido só um nome e um personagem obscuro e menor
surgiu-me como uma presença poderosa, alguém que me dizia respeito
muito intensamente, ao que mais me interessa ou a quem sou no fundo de
mim mesmo, àquele que dispara os mecanismos secretos e automáticos de
uma invenção. Você é em grande parte o que outros sabem ou acreditam ou
dizem a seu respeito, o que veem ao olhá-lo; mas quem é você quando está
só no escuro e não consegue dormir, só com o seu corpo imóvel e preso à
cama, com a sua consciência sem desculpas, confrontada à lentidão
intolerável do tempo, à sua duração abstrata total, porque você não sabe que
horas são nem quer acender a luz para não acordar quem dorme ao seu lado,
não sabe se já está no mais profundo da noite ou se a primeira claridade da
manhã já se aproxima.
Entre os fantasmas dos vivos e dos mortos surge Willi Münzenberg.
Fica comigo nessa noite de insônia, e desde então volta muitas vezes,
inopinadamente, ao longo dos anos, encontro-o nas páginas de outros livros
ou sua presença impõe-se à minha imaginação. Toda a sua vida foi um jogo
entre a simulação e a invisibilidade, entre o poder oculto e árduo e o brilho
sem peso das aparências, e acabou sendo quase totalmente invisível,
apagado da História pelos mesmos poderes a que serviu com tanta eficácia,
e que talvez também o tenham apagado da vida, enforcando-o numa árvore
no início de junho de 1940, num bosque da França.
Ontem mesmo descobri que guardava sem saber uma excelente foto
dele, no segundo volume da autobiografia de Arthur Koestler, The invisible
writing. De repente os acasos se cruzam: comprei esse livro de capa
vermelha e papel áspero e amarelo, impresso em Londres em 1954, num
sebo de Charlottesville, Virgínia, num dia de inverno de 1993. A livraria
ficava num edifício de madeira vermelha que tinha algo de cabana e de
celeiro, quase na entrada de um bosque nevado. Ao folheá-lo agorinha
mesmo, procurando a data de edição, vi um detalhe que nunca tinha notado:
na face interna da capa há uma assinatura ilegível, e ao lado um lugar e uma
data, Oslo, janeiro de 1959.
Também não me lembrava da foto, que tem o claro-escuro admirável
dos retratos dos anos 30. Münzenberg olha direto nos olhos, com arrogância
e firmeza, talvez com uma ponta de perdição e desespero antecipado, com a
tristeza que têm nas fotos os mortos, as testemunhas de alguma verdade
terrível. E um homem forte, rude, mas não vulgar, o pescoço sólido e curto
e os ombros largos, o queixo ligeiramente levantado, os olhos perspicazes
com um toque de cansaço, a fronte larga, o cabelo meio despenteado, sinal
de sabe-se lá qual atividade incessante ou de um início de abandono. Vesse
de modo formal mas muito moderno, americano, com uma caneta-tinteiro
no bolso superior, paletó, gravata, camisa sem colarinho postiço.
Seu rosto tinha a simplicidade tensa de uma talha em madeira, mas com
uma franca expressão de amizade, diz Koestler, que trabalhou para ele em
Paris nos tempos em que foi feita a foto: um homem baixo, quadrado,
áspero, de ombros fortes, um ar de sapateiro de aldeia, do qual emanava
porém uma autoridade tão hipnótica que Koestler tinha visto banqueiros,
ministros, duques austríacos se inclinarem na sua frente com a obediência
de escolares.
Nasceu numa família muito pobre, num subúrbio proletário de Berlim,
em 1889. O pai era um taberneiro bêbado e brutal que estourou os miolos
limpando a escopeta de caça. Aos dezesseis anos era operário numa fábrica
de calçados e participava das atividades educativas dos sindicatos. Possuíra
desde sempre e num nível de genialidade o talento prático de organizar
coisas e uma energia que, em vez de se esgotar no debate e no trabalho,
parecia alimentar-se deles. Para não servir ao exército participando de uma
guerra que seus princípios internacionalistas o faziam repudiar, fugiu para a
Suíça, e nos círculos de refugiados de Berna conheceu Trotsky, que logo se
impressionou com sua inteligência, sua paixão revolucionária, sua
capacidade de organização. Trotsky o apresentou a Lênin: muito depressa
Münzenberg fez parte do círculo dos mais fiéis. Em um livro diz-se que era
um dos bolcheviques que viajaram com Lênin no vagão lacrado a caminho
da Rússia às vésperas da Revolução de Outubro. Meu amigo, ele contava
ter ouvido de Lênin, o senhor morrerá sendo de esquerda.
Mas Münzenberg jamais foi idêntico aos seus camaradas comunistas.
Sempre teve um comportamento estranho ou excessivo, mesmo nos tempos
de sua mais firme ortodoxia.
Gostava da boa vida, e, tendo nascido e vivido na pobreza, tinha uma
esplêndida vocação para os grandes hotéis, as roupas caras e os automóveis
de luxo. Era feito da mesma matéria dos grandes plutocratas americanos
surgidos do nada, enérgicos patrões de estradas de ferro ou de minas de
carvão e de ferro que enriqueceram graças à clarividência e à pilhagem, mas
sobretudo a uma forma irresistível de inteligência prática aliada a uma
vontade sem dó nem piedade. Quem o conheceu diz que, se tivesse
resolvido servir ao capitalismo e não ao comunismo, teria chegado a ser um
W. R. Hearst, um Morgan, um Frick, um desses patrões colossais que não se
satisfazem com todas as coisas que possuem, por mais extravagantes que
sejam, e jamais perdem a rusticidade de suas origens, jamais se acalmam,
nem com a idade nem com o poder nem com a posse, e continuam sendo
caipiras joviais no meio do luxo e trabalhadores incansáveis apesar de sua
insondável riqueza.
Nos primeiros anos da Revolução Soviética, quando Lênin vivendo
como um alucinado naqueles aposentos do Kremlin intoxicado pelo próprio
fanatismo, cercado de telefones e lacaios, ainda imaginava que toda a
Europa ia incendiar-se de uma hora para outra com levantes operários,
Münzenberg compreendeu antes de qualquer um que a revolução mundial
não chegaria logo, se é que chegaria um dia, e que o comunismo só poderia
se difundir no Ocidente de um modo oblíquo e gradual, não com a
propaganda espalhafatosa, grosseira e monótona que agradava aos
soviéticos, mas por meio de causas aparentemente desinteressadas e
apolíticas, graças à cumplicidade, em grande parte involuntária, de certos
intelectuais de enorme prestígio, celebridades independentes e de boa
vontade que assinassem manifestos a favor da paz, da cultura, da concórdia
entre os povos.
Willi Münzenberg inventou o afago político aos intelectuais
acomodados, a manipulação adequada de sua egolatria, de seu pouco
interesse pelo mundo real. Com certo desdém referia-se a eles como o
Clube dos Inocentes. Procurava gente moderada, com inclinações
humanitárias, certa solidez burguesa, e se possível com uma aura de
dinheiro e cosmopolitismo: André Gide, H. G. Wells, Romain Rolland,
Ernest Hemingway, Albert Einstein. Lênin teria fuzilado de imediato essa
categoria de intelectuais, ou os teria despachado para um porão da Lubianka
ou para a Sibéria. Münzenberg descobriu que podiam ser imensamente úteis
para tornarem atraente um sistema que ele, no fundo incorruptível de sua
inteligência, devia achar aterrador pela incompetência e pela crueldade,
mesmo nos anos em que ainda o considerava legítimo.
Aos poucos foi se tornando o empresário do Komintern, seu embaixador
secreto na Europa burguesa, que ele adorava, e a cuja destruição tinha
dedicado a vida. Fundava empresas e jornais que lhe servissem de biombo
para manipular os fundos de propaganda vindos da Rússia, mas tinha um
tamanho talento de verdadeiro homem de negócios que cada uma dessas
empresas prosperava e multiplicava os investimentos clandestinos em rios
de dinheiro, com os quais então ele financiava novos projetos de
conspiração revolucionária e negócios fulminantes e audaciosos que
deixavam de servir de biombo ou simulacros para se transformarem em
verdadeiras proezas do capitalismo.
Era um dirigente da Terceira Internacional, mas andava por Berlim e
depois por Paris num grande automóvel Lincoln, sempre acompanhado de
sua mulher loura e envolta em peles, ainda mais rude e atarracado em
contraste com ela, embora Koestler diga que bastava vê-los juntos para se
adivinhar uma cumplicidade perfeita, uma ternura inquebrantável. Inventou
as grandes causas nobres a que ninguém de boa vontade podia deixar de
aderir. A medida de seu triunfo só se compara com a de seu anonimato:
ninguém sabe que Willi Münzenberg foi o primeiro a imaginar as
mobilizações internacionais de solidariedade e os congressos internacionais
de escritores e artistas em defesa da paz ou da cultura. Por experiência
própria sabia que bolcheviques ásperos e reais como Stálin ou como o
próprio Lênin tinham muito pouco encanto para o público no Ocidente:
atrair para a causa da União Soviética um prêmio Nobel de Literatura ou
uma atriz de Hollywood era uma formidável jogada de relações públicas,
termo que também poderia ter inventado. Descobriu que o radicalismo
imaginário e a simpatia por revoluções muito distantes eram um atrativo
irresistível para intelectuais de certa posição social.
Seu primeiro sucesso de organização e propaganda maciça foi a
campanha mundial de envio de alimentos para as regiões da Rússia
assoladas pelas grandes fomes de 1921. O Socorro Internacional dos
Trabalhadores, dirigido por ele, conseguiu que dezenas de navios
carregados de alimentos chegassem à Rússia e que se criasse no mundo
todo uma corrente poderosa de simpatia humanitária pelo sofrimento e pelo
heroísmo do povo soviético. A caridade amorfa de outros tempos
transformava-se em vigorosa solidariedade política, e o benfeitor podia se
sentir confortavelmente a um passo da militância ativa. Münzenberg
idealizou selos, emblemas, folhetos de propaganda com fotografias da vida
na URSS, cromos em cores, pesos de papel com bustos de Marx e Lênin,
postais de operários e soldados, qualquer coisa que se pudesse vender a
baixo preço e desse ao comprador a sensação de que suas poucas moedas
eram um gesto solidário, não uma esmola, uma forma prática e cômoda de
fazer uma ação revolucionária.
Em 1925 foi Münzenberg quem idealizou e dirigiu, por meio de
inúmeros comitês, publicações, passeatas, imagens nos noticiários de
cinema, a grande onda de solidariedade a Sacco e Vanzetti. Suas
publicações comerciais proporcionavam o dinheiro para custear sua
propaganda política, e também multiplicavam a ressonância pública das
campanhas que empreendia. Nos anos terríveis da inflação na Alemanha, no
terremoto do Japão em 1923, na greve geral da Inglaterra em 1926, o
Socorro Internacional dos Trabalhadores sustentava as caixas de resistência
e organizava restaurantes populares, escolas e albergues para crianças órfãs.
Foi a necessidade de imprimir e difundir maciçamente panfletos políticos
que despertou em Willi Münzenberg seu interesse por gráficas e editoras.
Em 1926 possuía na Alemanha dois diários de enorme circulação, um
semanário ilustrado com tiragem de um milhão de exemplares e que era, diz
Koestler, a contrapartida comunista da Life, e uma série de publicações que
incluía revistas técnicas para fotógrafos e para fãs do rádio e do cinema. No
Japão, sua organização controlava direta ou indiretamente dezenove jornais
e revistas. Na União Soviética, produzia os filmes de Eisenstein e
Pudovkin, e na Alemanha organizava a distribuição do cinema soviético e
financiava os espetáculos de vanguarda de Erwin Piscator e Bertolt Brecht.
Cinematecas, clubes de leitura ou esportes, sociedades de excursionismo,
grupos de ativistas em favor da paz se transformavam pelo mundo afora em
sucursais insuspeitas do grande Clube dos Inocentes.
Münzenberg perdeu tudo o que possuía e controlava na Alemanha após
a chegada de Hitler à Chancelaria. Mas era como um desses magnatas
americanos que sofriam espantosas bancarrotas e em pouco tempo tinham
começado a refazer do nada e com a mesma energia invencível uma nova
fortuna. Mal chegou a Paris, exilado, comprou uma editora e organizou o
sustento econômico da resistência clandestina na Alemanha. Com uma
cegueira de dar calafrios, o Partido Comunista alemão tinha considerado até
o último instante que os nazistas eram um adversário menor, porque o
verdadeiro inimigo da classe trabalhadora eram os social-democratas. O
desastre de janeiro de 1922 acabou de convencer Willi Münzenberg de que
o sectarismo suicida de seus companheiros de partido devia ser abandonado
em benefício de uma grande aliança de todas as forças democráticas
dispostas a resistir à maré sinistra do fascismo. Em poucos meses publicou
um dos livros mais vendidos do século XX, o Livro marrom do terror
nazista, e alcançou seu maior êxito, a obra-prima de seu instinto formidável
para a propaganda de massas: a campanha internacional a favor de Dimitrov
e dos outros acusados no processo do incêndio do Reichstag.
Quando se avizinhavam os tempos mais negros do terror e do
extermínio, durante a era Stálin, o talento publicitário de Willi Münzenberg
conseguiu que perante a opinião progressista do mundo a União Soviética
aparecesse como o grande adversário do totalitarismo, mais corajoso e
decidido do que as corruptas democracias burguesas.
Num tribunal de Leipzig, Dimitrov tinha enfrentado galharda e
solitariamente os juízes e os grandes figurões do nazismo e os tinha exposto
ao ridículo, ao mesmo tempo que demonstrava sua inocência e desbaratava
a conspiração para atribuir aos comunistas o incêndio do Reichstag.
Münzenberg nunca parava, de sua imaginação nunca deixavam de fluir
planos e invenções, ideias para livros ou artigos que ele ditava a toda para
as suas secretárias, resumidos em umas poucas linhas que outros deveriam
imediatamente desenvolver, projetos de revistas ou de novas formas de
ativismo político, intuições que se tornavam êxitos editoriais, clubes e
comitês e campanhas, listas de nomes prestigiosos a serem recrutados para
uma nova causa, ajudar os trabalhadores na Revolução das Astúrias em
1934 ou protestar contra a invasão italiana da Abissínia. Entrava como um
furacão em seus escritórios de Paris, tão compacto e enérgico que topar com
ele seria o mesmo que chocar de frente com um trator, falava aos gritos pelo
telefone, fumava com desleixo seus excelentes charutos, enchendo de cinza
as lapelas largas de seu terno de magnata, ditava rascunhos ou memorandos
até três ou quatro horas da madrugada, telegramas que deviam ser enviados
imediatamente a Moscou ou a Nova York ou a Tóquio, examinava os
números de vendas de livros e tiragens de jornais, calculando
instantaneamente as margens de lucro ou os prejuízos, improvisava em voz
alta os regulamentos do Comitê Mundial para o Alívio das Vítimas do
Fascismo Alemão ou a lista dos alimentos e remédios a figurarem
prioritariamente no carregamento de um navio fretado por sua organização
em Marseille e destinado aos trabalhadores em greve no porto de Shangai.
Está em todo lado, executa uma prodigiosa quantidade de tarefas, gente
que circula por vários países lhe obedece e teme, gente que muitas vezes
nem sabe que age a seu serviço: e no entanto também é invisível, ou parece
ser quem não é, e tudo o que faz tem uma parte clara e legal e outra oculta,
uma zona que permanece sempre na sombra, tal como ele mesmo, deputado
no Reichstag e conspirador, empresário apaixonado pelos charutos caros e
automóveis com chofer, e militante comunista, homem do mundo, que entra
nos salões de braço com uma mulher mais alta e mais distinta do que ele, e
espião sarcástico das idiotices e depravações dos ricos, a quem ao mesmo
tempo admira, por quem se sente fascinado, com uma inextinguível
admiração de criança pobre que vê de longe as vidas brilhantes dos
poderosos, que cheira pela rua os perfumes das mulheres envoltas em
estolas de pele e sente por elas um desejo alimentado de raiva social.
Propagandista da revolução proletária, amava a boa vida e o luxo com a
paixão que só pode sentir quem foi muito pobre. Usufruía do brilho e da
proximidade das coisas, mas possuí-las de verdade era-lhe indiferente. Nada
do que tinha era seu, ou apenas de um modo conjetural, provisório, porque
estava em nome de confusas empresas comerciais que funcionavam como
biombo do ativismo e da espionagem soviética.
Na longa insônia a imaginação se desloca e se emaranha em si mesma
com uma insana veemência febril, perturbando a consciência extenuada
com uma proliferação de imagens, palavras e nomes que têm toda a
intolerável variedade arbitrária do mundo real e a desordem e a estranheza
dos sonhos.
Nusenberg em Paris, incansável, insone, ditando ou falando ao telefone,
as multidões em fuga pelos caminhos da Europa, a velocidade vertiginosa
das rotativas, das rodas dos trens, das hélices dos aviões, Münzenberg
subindo de braço dado com sua mulher a escadaria da Ópera, entrando com
ela numa recepção em homenagem a alguma dessas eminências
internacionais a quem ele chama em segredo "os inocentes", André Gide,
Romain Rolland, Wells, Bertrand Russel, Münzenberg esquecendo-se de
que essa vida exterior é um simulacro, tal como o são seus grandiloquentes
congressos pela paz, talvez transformando aos poucos sua impostura em
verdadeira identidade, um homem de negócios casado com uma mulher tão
maravilhosa em sua beleza loura como em suas maneiras e em seu
vestuário, um ativista político que vai aos poucos compreendendo que ele
também pertenceu ao Clube dos Inocentes, foi vítima das mesmas mentiras
que ajudou a difundir.
Ainda não se dá conta, mas já há quem o vigie cumprindo ordens de
Moscou, quem desconfie dele e acrescente seu nome à lista dos que vão ser
eliminados proximamente.
Com Lênin e Trotsky, com Bukarin, sempre pôde se entender, e, seja
como for, aqueles eram outros tempos, ele e Babette ainda alimentavam
intactos o romantismo e a cegueira da Revolução. Meu amigo, o senhor
morrerá sendo de esquerda. Viu Stálin de perto pouquíssimas vezes, mas
acha-o tão impenetrável como a estátua rudimentar de um ídolo. Em
outubro de 1936, um emissário apresentou-se nos escritórios de Paris, um
homem que Münzenberg nunca tinha visto, e que o desagradou por sua
aspereza, por sua pinta óbvia de delator ou agente penitenciário. Ao entrar
na sala, o homem inspecionou de rabo de olho e com cara de reprovação o
luxo do tapete, das cortinas e dos quadros, as formas sólidas e audaciosas
dos móveis, as cadeiras tubulares, a mesa art déco em que Willi
Münzenberg apoiava os cotovelos com informalidade camponesa, cercado
de papéis e telefones. O homem disse-lhe sem rodeios nem cerimônia que
sua presença era requerida urgentemente em Moscou.
Também há um possível traidor na história, uma sombra ao lado de
Münzenberg, o subordinado rancoroso e dócil, culto e poliglota —
Münzenberg só falava alemão, e com um forte sotaque de classe baixa, seu
contraponto físico, Otto Katz, também chamado André Simon, esguio,
evasivo, velho amigo de Franz Kafka, organizador do congresso de
intelectuais antifascistas de Valencia, emissário de Münzenberg e do
Komintern entre os intelectuais de Nova York e os atores e roteiristas de
Hollywood, as estrelas da gaúche caviar e do radical chie; espião
permanente, bajulador assíduo de Hemingway, de Dashiell Hammett, de
Lillian Hellman, estalinistas fervorosos e cínicos. Otto Katz, André Simon,
é a eminência parda por trás das grandes maquinações de Münzenberg e
também a sombra que informa cada um de seus atos e suas palavras aos
novos hierarcas de Moscou. Apressadamente, Münzenberg dá por certa a
sua lealdade, e, sendo tão agudo em sua percepção dos caracteres e das
fraquezas humanas, não percebe o poço de ressentimento que há sob a
suavidade de Otto Katz, a paciência minuciosa com que vai guardando em
segredo, como pequenas contas não pagas, as afrontas que sofre ou imagina
sofrer, as humilhações ou as ofensas que a energia descontrolada e barroca
de Münzenberg lhe teria infligido ao longo dos anos. Koestler diz de Katz
que era obscuro e distinto, com um encanto levemente sórdido. Falava
correntemente e escrevia em francês, inglês, alemão, russo e checo. Nos
cafés de Praga e de Viena tinha conversado com Milena Jesenska sobre
literatura. Sempre piscava um olho ao acender o cigarro, hábito tão
entranhado que também piscava quando se concentrava muito em alguma
coisa, mesmo sem estar fumando. Durante a Guerra Civil Espanhola dirigiu
a Agência Oficial de Notícias do governo republicano, que lhe entregou a
administração dos fundos secretos destinados a influir em certas
publicações e junto a políticos franceses. Willi Münzenberg o resgatara da
miséria e do desespero em Berlim, onde rondava, no início dos anos 20,
pelos albergues de mendigos e bêbados e pelas pontes dos suicidas. Em
1938, quando Münzenberg foi expulso do Partido Comunista alemão,
acusado de trabalhar em segredo para a Gestapo, Otto Katz foi dos
primeiros a renegá-lo publicamente e chamá-lo de traidor.
— Esse rato, Otto Katz, deu-lhe o beijo de Judas. Otto Katz tramou sua
morte, embora não tenha sido quem apertou o nó da corda até estrangulá-lo.
Fala uma mulher, muitos anos mais tarde, uma senhora de noventa anos,
diante de um gravador, na penumbra de um apartamento em Munique. A
idade desfez os traços altivos de seu rosto, mas não seu porte imperioso
nem o brilho de seus olhos, assim como o tempo não amainou seu desprezo
pelo distante traidor, que também está morto, que também foi expulso e
condenado, executado com uma corda no pescoço, em 1952, numa cela em
Praga. Tampouco houve piedade para os verdugos. Otto Katz, diz a senhora,
pronunciando esse sobrenome como se o cuspisse entre seus velhos lábios
apertados, borrados de um batom de cor forte.
Também sigo pelos livros o rastro dessa mulher, procuro seu rosto nas
fotografias, indago entre os labirintos da internet querendo achar o livro que
escreveu nos anos 40 para vingar a memória do marido e denunciar e
envergonhar os que, a seu ver, tramaram a morte dele. Vejo cenas, imagens
não convocadas pela vontade nem baseadas em nenhuma recordação,
dotadas de precisões sonâmbulas nas quais não sinto que minha imaginação
intervenha: as cortinas fechadas do apartamento de Munique, em outubro de
1989, a fita rodando com um chiado tênue no pequeno gravador diante dela,
e no qual ficará preservada sua voz, que jamais escutei, que me chegou
através das palavras silenciosas de um livro descoberto por acaso, lido sem
pausa numa noite de insônia.
Intuí, ao longo de dois ou três anos, a tentação e a possibilidade de um
romance, imaginei situações e lugares, como fotos avulsas ou como esses
fotogramas de filmes que antigamente eram exibidos, montados em grandes
cartazes, nas entradas dos cinemas. Em cada um deles havia uma sugestão
muito forte de alguma coisa, mas desconhecíamos o argumento e os
fotogramas jamais eram consecutivos, e isso fazia com que as imagens
fragmentadas fossem mais poderosas, livres do peso e das convenções
vulgares de um enredo, reduzidas a clarões, a revelações no presente, sem
antes nem depois. Quando não tinha dinheiro para entrar no cinema eu
passava as horas mortas olhando, um depois do outro, os fotogramas
avulsos do filme, e não precisava supor ou inventar uma história que os
unisse e encaixasse como num quebra-cabeça. Cada um deles transmitia
uma valiosa imagem de mistério, justapunha-se aos outros sem nenhuma
ordem, iluminavam-se mutuamente em ligações plurais e instantâneas, que
eu podia desfazer ou modificar como quisesse e nas quais nenhuma imagem
anulava as outras ou criava uma primazia segura entre elas, e tampouco
perdia em benefício do conjunto sua singularidade irredutível.
O estalo do soalho de nossa casa nova ou um pesadelo de doença ou
desgraça me acordavam de repente e era Willi Münzenberg acordando no
meio da noite em sua casa de Paris ou no quarto gelado de um hotel de
Moscou e temendo que seus executores já estivessem chegando,
perguntando-se quanto tempo ainda faltava para que um tiro ou uma facada
cancelassem a grande simulação e a miragem e o delírio de sua existência
pública e a longa ternura de sua vida conjugal com Babette, que dormia a
seu lado e o abraçava em sonhos como você me abraça com uma firme
determinação de sonâmbula.
O trem para numa pequena estação da Sierra de Madri: a garoa, as
ladeiras com árvores e névoa, o cheiro forte da vegetação molhada —
roselhas, pinheiros, os telhados pontiagudos de ardósia dão a sensação de se
ter chegado muito mais longe, a um lugar escondido na montanha, onde
talvez haja sanatórios ou residências para doentes precisando de repouso e
ar puro e frio. O trem é rápido e moderno, mas o prédio da estação é de
pedra nua e as molduras das janelas são de tijolo vermelho, e o letreiro com
o nome do vilarejo está escrito em ladrilhos amarelos. Na plataforma não há
ninguém, mais ninguém desceu do trem. Um cheiro de bosque, madeira e
terra encharcadas logo inunda os pulmões, e o ar parado e a garoa batem em
meu rosto com seus dotes instantâneos de apaziguamento. O trem se afasta
e vou andando por um caminho de terra, carregando minha sacola, até uma
região de quintas onde algumas luzes começam a ser acesas. Em 1937,
temendo por sua vida, tão agitado e exausto que às vezes sentia no peito
uma dor muito aguda, a proximidade de um ataque do coração, Willi
Münzenberg refugiou-se por alguns meses numa clínica de repouso, num
lugar chamado La Vallée des Loups, O Vale dos Lobos. O nome do médico
que a dirigia também parece indício ou promessa de algo: doutor Le
Sapoureux. Mas Münsember é tão inepto para o repouso físico como para o
sossego da inteligência, e mal chega à clínica passa as noites em claro
escrevendo um livro. Ao descer sozinho na plataforma da pequena estação
da Sierra fui Willi Münzenberg procurando à noite o caminho para o
sanatório.
Chegamos numa tarde de inverno a um hotel do norte, em Vitoria.
Deram-nos um quarto no último andar, e ao abrir a janela vi embaixo um
parque nevado, com pérgulas e estátuas, um coreto de música, e ao fundo,
sobre os telhados brancos, um céu cinza em que se esfumava um grande
descampado: Münzenberg e Babette conseguiram sair da Rússia e após uma
noite de trem hospedam-se num hotel perto da estação de uma cidade
báltica, ainda exaustos com a falta de sono e o medo que sentiram ao se
aproximarem da fronteira, temendo que no último momento os guardas
soviéticos que inspecionavam seus passaportes os mandassem descer do
trem.
Caminho por Madri ou Paris e a passagem de um vagão do metrô faz
tremer o chão sob meus passos: Münzenberg sente que o mundo está
tremendo sob seus pés com o anúncio de um cataclismo, e pelo visto
ninguém, além dele, percebe a proximidade e a magnitude do desastre,
ninguém nas varandas dos cafés nem no esplendor noturno dos bulevares,
enquanto o chão está começando a vibrar sob as pisadas de botas e sob o
peso das lagartas dos tanques, sob as bombas que caem em Madri,
Barcelona, Guernica, sem que ninguém na Europa queira escutá-las,
enquanto Hitler prepara seus exércitos e consulta seus mapas e Stálin
concebe o grande teatro público dos processos de Moscou e os infernos
secretos dos interrogatórios e das execuções.
Assisto a uma representação de A flauta mágica e, sem quê nem pra
quê, no meio do entusiasmo e da alegria da música, o homem sentado ao
lado de uma mulher loura é Münzenberg, e a fuga do herói perdido nos
bosques e perseguido por dragões e conspiradores sem rosto também é a
sua fuga: talvez tenha entrado clandestinamente na Alemanha e, conquanto
não goste de ópera, tenha ido a essa apresentação de A flauta mágica num
teatro de Berlim repleto de uniformes pretos e cinza para estabelecer
contato com alguém. Mas a cena não é verossímil: talvez Münzenberg
pudesse entrar na Alemanha incógnito, mas na ópera de Berlim Babette
Gross teria sido reconhecida de imediato, a burguesa comunista, a
escandalosa e arrogante desertora de sua casta social, da grande pátria
ariana.
Mas dá preguiça ou tédio inventar, rebaixar-se a uma falsificação
inevitavelmente entremeada de literatura. Os fatos da realidade desenham
tramas inesperadas que a ficção é incapaz de se atrever a criar: Babette
Gross tinha uma irmã chamada Margarete, também romanticamente
intoxicada de radicalismo político nos primeiros tempos alucinados e
convulsos da República de Weimar. Margarete, tal como a irmã, casou-se
com um revolucionário profissional, Heinz Neumann, dirigente do Partido
Comunista alemão. Nos primeiros dias de fevereiro de 1933, Hitler recém-
nomeado chanceler do Reich, Willi Münzenberg e Babette fogem da
Alemanha no grande Lincoln preto e se refugiam em Paris. Neumann e
Margarete escapam para a Rússia. Ele cai em desgraça e é preso e
executado com um tiro na nuca; sua mulher é enviada para um campo no
norte gelado da Sibéria.
Na primavera de 1939, quando é firmado o pacto germano-soviético,
uma das cláusulas garante a entrega à Alemanha dos cidadãos alemães que
fugiram do nazismo e buscaram asilo político na União Soviética. Nenhuma
fronteira é refúgio e todas são ciladas que se fecham como alçapões sobre
os pés caminhantes dos condenados. Margarete é transferida, de trem, da
Sibéria até a fronteira da Polônia recém-dividida, e os guardas soviéticos a
entregam aos guardas dos SS, e após três anos num campo soviético ela
passa outros cinco num campo de extermínio alemão.
Ali, em Ravensbrück, onde as presas comunistas a tratam como a uma
traidora, conhece uma checa, Milena Jesenska, que vinte anos antes tinha
sido o grande amor de Franz Kafka, e circulado nas mesmas rodas boêmias
e radicais de Praga frequentadas por Otto Katz antes de emigrar para Berlim
e lá cruzar com Willi Münzenberg. No campo de Ravensbrück, Margarete,
que nunca tinha ouvido falar de Kafka, escuta pela voz de Milena a história
do caixeiro-viajante que certa manhã acorda transformado num enorme
inseto, e a do homem que, sem saber que crime cometeu, é submetido a um
julgamento fantasmagórico em que de antemão ele é condenado e depois
executado como um cachorro num descampado, em plena noite. Milena,
muito doente, vencida pela fome, morre em maio de 1944, quando falta
pouquíssimo para chegarem ao campo as notícias de que os Aliados
desembarcaram na Normandia e os russos já avançam pelo Leste. Mas para
Margarete a aproximação do Exército Vermelho não é esperança de
liberdade, e sim ameaça de outro cativeiro, repetição de um pesadelo.
Escapa do campo alemão na desordem dos últimos dias, foge pela Europa
de dois exércitos, dos alemães em fuga e dos soviéticos que avançam, de
dois possíveis infernos aos quais sobreviveu com inacreditável firmeza por
oito anos.
Em 1989, com noventa anos, sua irmã Babette conta essas coisas a um
jornalista americano, Stephen Koch, que está escrevendo o livro sobre Willi
Münzenberg que descobrirei por acaso sete anos depois. Babette mora em
Munique, só e lúcida, ainda muito ereta, com o brilho intacto da juventude
no fundo dos olhos. Há uma firmeza fanática em seu jeito de olhar às vezes
para o homem muito mais moço, a diabólica determinação de viver e de
prevalecer que ainda mantém certos velhos em vida. Pouco depois se muda
para Berlim e o apartamento onde vive não fica muito longe do muro: certas
noites terá escutado o barulho das multidões que se manifestavam do outro
lado, chegará a seu quarto o estrondo dos foguetes, os cantos das
comemorações, na noite de 9 de novembro, quando terminou de desabar na
Europa o mundo em que ela, seu marido, sua irmã e seu cunhado tinham
acreditado sessenta anos antes, e ajudado a construir.
A mulher fala com voz baixa e clara, num inglês antiquado e perfeito, o
das classes altas britânicas dos anos 20, e sua voz, como seus olhos, é muito
mais jovem que ela. Tudo aconteceu há tanto tempo que é como se nunca
tivesse existido. Tudo o que sabe e recorda deixará de existir dali a poucos
meses, quando Babette, já muito doente, morrer. Aí desaparecerão com ela
e se perderão o rosto de Willi Münzenberg, o cheiro de seu corpo e dos
cigarros que fumava, o testemunho de seu entusiasmo, da maneira como foi
sendo minado, primeiro pelo receio e depois pelo pânico, a desconfiança de
que estava começando a ser perseguido, de que para ele não haveria perdão.
A lucidez também, a descoberta de que ele mesmo, formidável inventor de
mentiras, também havia sido enganado, ou não tinha desejado ver o que
estava diante de seus olhos, o que tentou contar num livro apressado e
tumultuado quando já era tarde demais, quando os intelectuais que ele havia
enfeitiçado, utilizado e,, desprezado durante tanto tempo deram-lhe as
costas, quando seu nome já estava sendo difamado, apagado
cuidadosamente dos testemunhos de seu tempo.
Chegavam mensageiros para transmitir-lhe a ordem de que devia viajar
a Moscou. Ele inventava postergações, pretextos para adiar a viagem,
porque era impensável que se negasse abertamente a obedecer. Outros que
ele conhecia tinham ido a Moscou e nunca regressaram, seus rastros e até
seus nomes eram apagados, ou eram denunciados publicamente nos jornais
e revistas do Partido como responsáveis por traições monstruosas. Willi
Münzenberg bem sabia como se organizava uma campanha de espontânea
indignação internacional, como a realidade podia ser maleável caso se
utilizassem com inteligência as técnicas publicitárias de persuasão, a
repetição maciça e insistente de alguma coisa.
Não podia ir a Moscou justamente agora, dizia, no primeiro verão da
guerra na Espanha, quando precisava mais uma vez exibir todos os seus
talentos de organizador e propagandista em defesa da última de suas
grandes causas, a mais próxima de seu coração, após a queda da Alemanha,
a solidariedade internacional com a República Espanhola, com o governo
da Frente Popular.
Mas as mensagens, as ordens secretas continuavam chegando, cada vez
mais secas e urgentes, menos veladamente ameaçadoras, ao mesmo tempo
que chegavam notícias de detenções e interrogatórios. Em novembro de
1936 Münzenberg e Babette Gross viajaram para Moscou. Ele ainda era um
alto dirigente do Komintern e do Partido Comunista alemão, mas na estação
não havia ninguém para recebê-los. Um casal de estrangeiros com roupas
luxuosas de inverno, no meio da tristeza e da penúria soviéticas das
plataformas, o homem com seu chapéu de feltro e o manto comprido feito
sob medida, a mulher de salto alto, meias de seda, rosto empoado e
cabeleira loura emergindo da gola do casaco de pele, e ao lado deles a
bagagem empilhada de viajantes de trens de luxo e dos melhores camarotes
dos transatlânticos, malas de couro com ferragens douradas e rótulos de
hotéis internacionais, baús, frasqueiras, caixas de chapéus: a imagem de um
anúncio ou do fotograma de um filme no papel acetinado de uma revista
ilustrada dos anos 30, uma dessas revistas que Willi Münzenberg concebia e
publicava.
Ninguém tampouco os esperava no hotel que lhes fora indicado e não há
nenhum recado para eles no quarto. Da janela, num altar muito alto do hotel
enorme, recém-construído e já lúgubre, com mulheres uniformizadas e
armadas montando guarda no fundo dos corredores, com um silêncio que
nem vozes nem campainhas de telefone quebram, Willi Münzenberg e
Babette veem ao longe, muito alta, acima dos telhados escuros, uma estrela
vermelha brilhando no topo de um arranha-céu. Este é o mundo a que
dedicaram suas vidas, a única pátria a que era lícito um internacionalista
jurar lealdade. Sobre uma mesa de cabeceira há um telefone preto, mas está
desligado ou enguiçado, e ainda assim o olham com a esperança ou o medo
de que comece a tocar. Como de hábito, ao entrarem na URSS tiveram seus
passaportes retirados, e não têm passagens nem data de regresso.
A única recomendação que Willi Münzenberg recebeu é a de esperar.
Será recebido e ouvido quando chegar a hora. Sua incapacidade de
permanecer inativo torna a espera mais intolerável que o medo. O homem e
a mulher acostumados à boa vida, à brilhante agitação social de Berlim e
Paris, ficam sozinhos e confinados num hotel de Moscou, no tédio sombrio
da espera e do medo, mal se aventurando a sair para as ruas onde o inverno
é rigoroso, ruas lúgubres à noite quando se lembram das luzes das capitais
da Europa onde sempre viveram. Se saem para passear serão seguidos. Se
descem ao saguão ou ao restaurante do hotel alguém dá conta de seus
passos, e se alteiam um pouco a voz ao conversar o garçom que lhes serve
xícaras de chá repetirá cada palavra que disserem. Serão escutados se
falarem ao telefone, e se enviarem um postal a Paris alguém o estudará sob
a luz forte de uma lâmpada procurando nele mensagens secretas, e o
guardará para usá-lo no momento oportuno como prova material de alguma
coisa, espionagem ou traição.
Após alguns dias idênticos alguém bate à porta. Os rostos tensos e
pálidos de Münzenberg e Babette deparam, depois de um instante de
incerteza, com as caras tão familiares e no entanto agora tão estranhas de
Heinz e Margarete Neumann, os únicos que se decidiram ou se atreveram a
visitá-los. Talvez se atrevam porque já sabem que estão condenados, porque
também vivem isolados numa solidão de doentes contagiosos. Só se
aproxima sem receio de um infectado quem carrega a mesma infecção. Os
quatro juntos, as duas irmãs louras e os dois homens de origem operária, as
quatro vidas encurraladas. Falam em voz baixa, bem pertinho uns dos
outros, os quatro de manto, no quarto gelado do hotel de Moscou,
sussurrando por medo dos microfones, tantas coisas para se contarem após
tantos anos de separação, tão pouco tempo para dizer tudo, para trocar
advertências, a qualquer momento homens de capas de couro preto muito
semelhantes às da Gestapo podem bater à porta do quarto ou derrubá-la aos
pontapés.
Despedem-se e sabem que nunca mais se verão, os quatro juntos, e
poucos meses depois Heinz Neumann é preso e desaparece nas salas e nos
calabouços da prisão Lubianka, diante da qual há uma estátua gigantesca de
Feliz Dzerzinsky, o aristocrata polonês que fundou a polícia secreta de
Lênin, e que Münzenberg conheceu muito bem nos primeiros tempos da
Revolução.
Mas o passado não conta mais, e até pode se tornar um aspecto do
sentimento de culpa. Diz Arthur Koestler que ministros e duques se
inclinavam perante a autoridade enérgica e rude de Willi Münzenberg, mas
em Moscou ninguém o recebe, ninguém responde a seus telefonemas. Foi
tudo e não é ninguém: o passado é tão remoto, tão irreal na distância, como
as luzes noturnas de Paris e Berlim recordadas na monotonia lúgubre das
noites de Moscou, nas quais os únicos faróis são os dos automóveis pretos
da polícia secreta.
Ele, Münzenberg, organizou a formidável campanha internacional que
transformou Dimitrov em herói, não do comunismo, mas da grande
resistência popular e democrática contra os nazistas. Graças a ele os juízes
alemães tiveram de deixar em liberdade Dimitrov, que agora, em Moscou, é
o chefe supremo do Komintern. Mas Dimitrov não responde aos recados de
Münzenberg, nunca está em sua sala quando ele tenta visitá-lo e não se sabe
daqui a quanto tempo voltará para Moscou, i O Clube dos Inocentes, dos
crédulos, dos idiotas de boa vontade, dos enganados e sacrificados sem
recompensa: fui um deles, pensa Münzenberg em suas insônias no quarto
do hotel, ajudei Hitler e Stálin a arrasarem a Europa com idêntica
bestialidade, contribuí para inventar a lenda do enfrentamento mortal entre
eles, fui um peão quando imaginava, inebriado por minha soberbia,
comandar o jogo na sombra.
Talvez sua vida não lhe importe muito, ainda menos que todo o
dinheiro, todo o poder e o luxo que manipulou e perdeu: importa-lhe o que
Babette pode sofrer, ela pode ser arrastada e sucumbir às consequências dos
erros que ele cometeu, de todas as mentiras que contribuiu para espalhar
manipulando e profanando os impulsos mais generosos, as vaidades mais
grotescas, a candura inextinguível dos inocentes.
Para salvar Babette ele não se rende, assedia os dirigentes do Komintern
que em outra época foram amigos ou subordinados seus e agora fingem não
conhecê-lo, esgrime velhas credenciais que já não servem para nada, sua
campanha mundial de socorro aos operários soviéticos nos anos da fome,
seu bolchevismo de primeira hora, dos primeiros tempos mitológicos da
Revolução, a confiança com que Lênin o distinguia. O senhor morrerá
sendo de esquerda. No mausoléu da Praça Vermelha, sinistro e gelado como
um frigorífico, com uma iluminação tênue de capela, olhou de perto a
múmia de seu antigo protetor, seu rosto irreconhecível, com uma
consistência opaca de cera, as pálpebras fechadas de seus olhos asiáticos.
Viemos ao reino dos mortos e não querem nos deixar voltar.
Afinal consegue um encontro com um burocrata poderoso, protegido de
Stálin: no escritório de Togliatti, Münzenberg grita, vinga-se, dá murros na
mesa, organiza o espetáculo impressionante de sua cólera de magnata, como
se ainda possuísse jornais com tiragens de milhões de exemplares e carros
de luxo, como se os tivesse possuído de verdade algum dia. Tem de voltar o
quanto antes para Paris, diz, vai organizar a maior campanha de propaganda
que já houve, o recrutamento de voluntários, a coleta de fundos, remédios,
alimentos, o fornecimento de armas, a solidariedade dos intelectuais do
mundo todo com a República Espanhola.
Togliatti, que é obtuso e manso, dissimulado, covarde, um herói da
resistência comunista e democrática contra Mussolini quase totalmente
inventado pela máquina de propaganda política de Münzenberg, concorda
ou finge concordar com seu pedido de regresso: marca um dia para a
viagem e garante a Münzenberg que seu passaporte e o de Babette estarão
esperando por eles no quartel de polícia da estação. Talvez Münzenberg lhe
pergunte se sabe alguma coisa de Heinz Neumann, e o que é possível fazer
por Heinz e Greta Neumann: Togliatti sorri, solícito mas também reservado,
mostrando com cautelosa vilania sua superioridade atual em relação ao
antigo dirigente poderoso da Internacional. Diz que nada se pode fazer, ou
que nada vai acontecer, que logo tudo estará resolvido, sugere que não
convém a Münzenberg perguntar isso agora, justamente quando está prestes
a partir.
Novamente o homem e a mulher com abrigos dispendiosos e chapéus na
plataforma da estação, com sapatos de verniz, uma grande pilha de malas
perto deles, estranhos e sem dúvida insolentes, lapelas largas e golas de
pele, olhados de banda, vigiados, cheios de medo, impacientes, inseguros,
vão ou não ser autorizados a partir.
Aproxima-se a hora da saída do trem mas os passaportes não estão no
quartel de polícia, conforme prometeu Togliatti. Ao redor deles estende-se a
rede de uma armadilha e não sabem se a cada passo que dão estão mais
perto de caírem nela ou se cada minuto ou dia de prorrogação é uma etapa
prevista no processo que culminará com sua condenação. Mas não voltarão
ao hotel, agora que o trem já anunciou a partida não vão vacilar e se trancar
e continuar esperando. Münzenberg pega com força o braço de sua mulher,
tão alta e graciosa ao seu lado, e a guia até o estribo, dá instruções para que
subam com a bagagem até sua cabine. Se vão prendê-los, que o façam agora
mesmo. Mas ninguém se aproxima, ninguém barra seu caminho no corredor
do trem, que se põe lentamente em marcha na hora prevista.
Em cada estação, em cada parada, olham para a plataforma procurando
os soldados ou os homens à paisana que subirão para prendê-los, que lhes
pedirão os passaportes e os farão descer do trem aos gritos e com maus
modos, ou em silêncio, cercando-os, guiando-os com suavidade, para não
assustarem à toa os passageiros.
Foi a viagem de trem mais longa de nossas vidas, conta Babette Gross
ao jornalista americano cinquenta e três anos depois. Na luz suja do
segundo amanhecer chegaram à estação fronteiriça. Acreditávamos que era
ali que estariam nos esperando, para prolongarem ao máximo a caçada.
Com passo firme, enquanto os passageiros faziam fila na plataforma nevada
para o controle de passaportes, Willi Münzenberg dirigiu-se ao quartel de
polícia, com o cinto do abrigo bem apertado e as lapelas levantadas contra o
frio, a aba do chapéu caindo de banda sobre seu rosto alemão rústico e
carnudo.
Num envelope fechado, os dois passaportes esperavam por ele.
Sou muito dotado para intuir esse tipo de angústia, para perder o sono
imaginando que você e eu vamos nesse trem. Apavoram-me os papéis, os
passaportes e certificados que podem se perder, as portas que não consigo
abrir, as fronteiras, a expressão inescrutável ou ameaçadora de um policial
ou de alguém que use uniforme ou exiba na minha frente alguma
autoridade. Amedrontam-me a fragilidade das coisas, da ordem, e a
quietude de nossas vidas sempre em suspenso, dependendo de um fio que
pode arrebentar, a realidade cotidiana tão certa e conhecida que de repente
pode se quebrar num cataclismo, num desastre. Nos anos que lhe restam de
Vida Willi Münzenberg foge e não se rende, toma consciência da magnitude
e da proximidade cada vez mais certa do horror, seus olhos claros dilatados
de lucidez e espanto, sua inteligência ainda alimentada por uma vontade
incessante. Em 1938 é expulso do Partido Comunista alemão, sob a
acusação de ser espião e provocador a serviço da Gestapo e ninguém sai em
sua defesa. Ainda lhe resta energia para fundar outro jornal, para denunciar
em suas páginas a dupla ameaça do comunismo e do fascismo e apelar para
a resistência popular contra ambos, para o despertar urgente da letargia
idiotizada e covarde das democracias, que abandonaram a República
Espanhola e toleraram o rearmamento agressivo e a brutal empáfia de
Hitler, que lhe entregaram a Checoslováquia achando que conseguiriam
saciá-lo, ou pelo menos apaziguá-lo temporariamente. Em seu jornal, Willi
Münzenberg vaticina que Hitler e Stálin assinarão um pacto para dividirem
o domínio da Europa, e também que não muito tempo depois Hitler se
virará contra seu aliado e invadirá a União Soviética, mas ninguém lê esse
jornal, ninguém dá crédito a esses delírios de um homem que parece
enlouquecido, dedicado a confirmar com a extravagância do próprio
comportamento e das próprias palavras as piores suspeitas que vinham se
formulando contra ele, a construir para si mesmo o descrédito e a ruína com
a mesma desenfreada energia com que em outros tempos levantou um
império econômico e um labirinto de organizações internacionais.
Tão estranho como o fato de um dia esse homem ter existido é o de
quase não existirem vestígios de sua presença no mundo. Quem sabe ainda
estará vivo alguém que o tenha conhecido e se lembre dele. Babette Gross,
que sobreviveu a ele tantos anos, também é uma sombra. Numa fita gravada
por Stephen Koch sua voz ainda vibra, falando inglês com um sotaque
antiquado e empolado, e na lembrança desse homem resta o brilho
orgulhoso de seus olhos no fundo das órbitas que já transluziam a forma da
caveira.
Mas há uma parte final da história que essa mulher não sabia e que
ninguém pode contar, a não ser que ainda viva o homem que amarrou uma
corda em volta do pescoço grosso de Willi Münzenberg e depois o
pendurou no galho de uma árvore, no meio de um bosque cerrado francês,
na primavera de 1940. Não há testemunhas, nunca se chegou a saber quem
eram os homens que estavam com Willi Münzenberg na última vez que
alguém o viu, sentado à porta de um café, num vilarejo francês, num
entardecer ameno de junho, bebendo alguma coisa e conversando, em
atitude de perfeita naturalidade, como se a guerra não existisse, como se os
tanques alemães não estivessem avançando torrencialmente pelas estradas
que levam a Paris.
Os três homens foram embora do café e ninguém se lembra de tê-los
visto, três desconhecidos sem nome na grande maré da guerra e da
vergonha da capitulação. Meses mais tarde, em novembro, ao entrar no
bosque com a primeira luz do dia, um caçador segue seu cachorro que
fareja excitado com o focinho bem perto da terra e encontra um cadáver
meio escondido pelas folhas outonais, encolhido numa posição muito
peculiar, os joelhos dobrados contra o peito, o crânio quase partido pelo
atrito de uma corda que foi se afundando nele durante o processo de
decomposição. Com os olhos abertos no escuro da insônia imagino uma luz
tênue, entre azulada e cinza, desbotada na névoa, o ruído das folhas roçando
nas botas molhadas do caçador, a respiração ofegante e os grunhidos, a
impaciência condoída, o suspiro sufocado do cão enquanto enfia o focinho
na terra fofa e porosa. Fico pensando nos vestígios que permitiram atribuir a
esse cadáver desfigurado e anônimo a identidade de Willi Münzenberg, e se
a caneta-tinteiro que vi na foto do livro de Koestler ainda estava no bolso
superior de seu paletó.
Olympia
Debaixo da capa
De Luis Candeias
Meu coração não corre,
Voa que voa.
Toda a praça está às escuras, como boca de lobo, nada dessa iluminação
que puseram depois para que os turistas a vissem, e que lhe tirou o sabor, é
como eu digo, veio a eletricidade e se acabou o mistério. Ele dobra a
primeira esquina, a da Prefeitura, vai andando bem colado ao muro,
temendo que alguém o veja de uma janela, e no fundo não crê que vai ser
verdade o que a freira lhe prometeu de manhã, muito menos que vá se
atrever a entrar à meia-noite no convento como um ladrão ou um don Juan
Tenorio, porque ele mesmo reconhece que na juventude, se era muito
fogoso também era muito covarde, e de repente invadia-lhe o pânico de ser
descoberto e armar-se um escândalo na cidade, e ele ser apontado com o
dedo, expulso por blasfêmia da confraria da Santa Ceia e da Sociedade
Beneficente Corpus Christi, forçado talvez a fechar o negócio com que
ganhava a vida, modestamente, é claro, mas também sem dificuldades
naqueles tempos tão difíceis, banido para sempre do camarote presidencial
da praça de touros, para o qual costumava ser convidado nas tardes de
tourada, em sua qualidade de assessor, e onde cruzava, fumando um charuto
extraordinário e usando um cravo na lapela de seu terno risca de giz, o das
grandes ocasiões, com as autoridades máximas da cidade, o prefeito, o
delegado de polícia, o comandante da Guardia Civil, o pároco de San
Isidoro, aquele don Estanislao de quem vocês se lembram, que apesar da
batina e da fama de austeridade exemplar era um furioso apaixonado pelos
touros, e que em 1947 deu a extrema-unção ao insigne Manolete, naquela
praça maldita de Linares.
Turvava-o a consciência do perigo que estava prestes a correr, e contudo
não se detinha, nem dava meia-volta e ia para casa, para o abrigo seguro de
sua cama. Ainda estava em tempo, não tinha terminado de atravessar a
praça, nenhuma luz tinha se acendido na janela mais alta do torreão, mas os
ditames da prudência não afetavam seus passos, e para justificar-se e
continuar se aproximando da portinhola lateral do convento dizia para si
mesmo que tudo podia ter sido um gracejo ou um delírio da freira, ainda
transtornada pela febre, de modo que não fazia mal que ficasse rondando
pela praça, já que a luz prometida não seria acesa, e ele nem poderia se
aproximar da porta e tentar empurrá-la, porque ela não cederia, estaria tão
fechada a sete chaves como qualquer porta da cidade a essa hora da noite,
quanto mais a porta de um convento, com ferrolho e voltas de uma grande
chave e tranca de madeira, assim como fechávamos as nossas antes de
dormir nos maus tempos da guerra, quando numa noite qualquer podiam vir
buscar você, e você sumia e eles o matavam, deixando-o atirado numa vala,
com as meias frouxas e os sapatos caídos longe do corpo, sobretudo se você
era pessoa de ordem e de fé, como sempre fui apesar dessa minha fraqueza
pelos pecados da carne.
Mas a luz se acendeu e apagou três vezes e ele se aproximou da esquina
do convento, com as pernas bambas, pensando que apesar de tudo a
portinhola podia não ceder, e de fato, no início encontrou certa resistência,
que ao mesmo tempo o aliviou na sua covardia e foi um golpe baixo e
doloroso na sensação de iminência física que o trespassara com um acesso
de turgidez sexual ao ver a luz na janela. As portas fechadas sempre o
haviam desencorajado, mas esta, tão compacta na aparência, baixa e
estreita, com várias fileiras de cravos enferrujados, deslizou em silêncio
com um segundo empurrão um pouco mais decidido, e quando a fechou
atrás de si e viu-se num breu ainda mais impenetrável que o da praça na
noite sem lua, pensou com fatalismo aterrador, com desenfreada luxúria,
que já não era possível recuar, e subiu os três lances de escadas tateando
pelas paredes, assustando-se com os ruídos e os ecos tênues provocados por
seus passos, sentindo teias de aranha roçarem em seu rosto, e nas palmas
das mãos a frieza úmida que porejava da pedra. Finalmente viu à esquerda
uma janela estreita como uma seteira, apenas um raio de fosforescência na
negrura: nesse patamar, à direita, apalpou a madeira de uma porta, e quando
se preparava para empurrá-la sentiu o pânico de ter se enganado na conta
dos lances de escada. Manteve-se encolhido, sem se atrever a fazer nada,
sem se mexer paralisado no escuro em que já começavam a se definir para
suas pupilas adaptadas a moldura e as folhas da porta. Teve a impressão de
escutar um som muito suave, algo roçando ou uma respiração que não era a
sua, e antes de perceber que a porta estava se abrindo a mão de alguém,
rápida e certeira, agarrou-o pela barra da capa e o puxou para dentro,
provocando-lhe um calafrio, e uma voz avisou em seu ouvido que
inclinasse a cabeça porque o teto era muito baixo, e em seguida, enquanto a
porta se fechava, ele foi arrastado, deixando-se levar, foi deitado num
colchão estreito e áspero, foi apalpado, auscultado, despojado de sua roupa
por gestos desajeitados e exagerados, guiado, com uma mescla de rude
inexperiência e determinação, lambido e mordido, bolinado, esmagado por
um corpo carnoso e nu que se enrolava no seu sem que ele soubesse muito
bem, no atordoamento da excitação e do escuro, que zonas ou membros
estavam sendo tocados ou agarrados. Foi sacudido como um molambo,
esmagado contra uma parede gelada que arranhava suas costas, amordaçado
pela mão suarenta quando sua respiração ficou muito forte, foi derrubado
como que por uma onda do mar e segurado ao cair no chão, e quando afinal
houve uma trégua e ele mesmo se sentiu exausto e aliviado, na quina dura
do colchão, e tocou e cheirou a substância líquida que molhava sua barriga,
conseguiu refletir em tudo o que lhe havia acontecido nos últimos minutos,
e chegou à conclusão de que tinha sangue nas pontas dos dedos, e de que
pela primeira vez na vida acabava de desvirginar uma mulher. Ave Maria
Puríssima, ela murmurou, num longo e plácido suspiro, e ele, não sem certa
inquietação pela irreverência, retrucou no ouvido dela:
— Concebida sem pecado.
— Escute aqui, é verdade que depois cai bem um cigarro?
— Divinamente.
— Pois eu fumaria um.
Finalmente viu seu rosto, na luz do isqueiro, e não o reconheceu, porque
nunca tinha visto seu cabelo, castanho e crespo, embora muito curto, com
um toque de aspereza, como o pelo do púbis que quase o havia arranhado.
Também era a primeira vez que fumava, mas logo tomou gosto, apesar da
tosse e da tonteira, e gostava muito, disse a ele, lembrava-se de quando era
menina e ficava tonta nos cavalinhos do carrossel. O problema das
mulheres, se quer que lhe diga sinceramente, é que quando a coisa terminou
e o homem quer dormir ou ir para casa elas ficam com uma vontade imensa
de conversar, de se comunicar, como se diz hoje em dia. Acomodaram-se
como puderam no colchão impossivelmente estreito, jogaram por cima toda
a roupa que tinham, mas ainda assim, mesmo muito apertados um contra o
outro, e não havia outro jeito, tiritavam de frio, e ele voltou a sentir o medo
de ser descoberto e a urgência de ir embora, mas ela o prendia entre as
pernas com uma destreza recém-aprendida e já infalível e dizia que ainda
havia tempo, que acendesse outro cigarro, nem sequer tinham tocado as
badaladas das duas da manhã.
Ela falava bem baixinho, tão perto de seu ouvido que ele sentia o roçar
úmido de sua respiração e de seus lábios, pintados de vermelho para ele,
conforme lhe explicou, com um batom roubado na perfumaria da rua Real
num descuido da vendedora e de sóror Barranco, e tinha vontade de rir
quando se lembrava, a bruxa não confia em mim e não tira o olho do que
faço mas sou mais rápida que ela, que aliás está ficando cega, o que é muito
merecido por todo o veneno de víbora que cospe sempre que fala, inclusive
quando reza o terço. No fundo, essa linguagem não lhe agradava, parecia-
lhe tão imprópria para uma freira como o deleite que sóror Maria del
Gólgota demonstrava ao fumar, até aprendeu a fazer volutas com a fumaça,
expulsando-a devagar de seus lábios pintados. Sóror Maria del Gólgota, que
suplício de nome, se eu na verdade me chamo Francisca, ou melhor, Fanny,
como meu pai me chamava, que descanse em paz, e que era apaixonado
pelas coisas inglesas, o coitado queria que eu aprendesse a falar inglês, a
jogar tênis, a escrever à máquina e a dirigir automóveis, que fosse à
universidade e estudasse algo sério, não essas tolices para senhoritas
ociosas como Magistério ou Filosofia e Letras, mas Medicina, pelo menos,
ou Física e Química. Também fazia meu irmão estudar e praticar esportes,
mas visivelmente eu era a sua preferida, e além disso dizia que, sendo
menina, eu precisava de mais talentos e astúcias para me defender no
mundo, e minha mãe, embora o deixasse agir, por ser fraca de caráter, por
trás renegava, essa garota, o pai vai transformá-la numa mulher-macho,
quem vai querer namorar uma engenheira ou uma campeã automobilística,
e meu pai, que vergonha, parece mentira, tenho uma mulher tão retrógrada
que é contra o avanço do próprio sexo.
Imitava vozes, embora falasse tão baixo, elaborava populosos
espetáculos teatrais no segredo da escuridão de sua cela e do sussurro ao pé
do ouvido, a voz grave e lenta do pai, a voz queixosa da mãe, a do irmão,
seu cúmplice e herói desde que os dois eram bem pequenos, o coaxar de rã
da voz de sóror Barranco e os diversos tons de ridículo e perfídia das outras
freiras da congregação. Acho que não me aguentam, que querem me
envenenar, esses enjoos que eu tenho são muito estranhos, sóror Barranco
trazia para a minha cela caldos e bebidas quentes e eu desconfiava, tome,
irmã, que esse caldinho vai lhe cair muito bem, pois ressuscita até um
morto. Que beba você, sua bruxa, comecei a melhorar assim que parei de
tomar os caldos e as bebidinhas dela, e ela, venha, irmã, vamos levantar
esse ânimo, olhe como lhe fez bem ontem à noite o reconstituinte que lhe
trouxe, se bem que eu tenha certeza de que foram mais eficazes nossas
orações para a Santíssima Virgem.
Ele cochilava com esse zunzum em seu ouvido, que ao mesmo tempo o
deixava aflito, pois, como diz, apesar de um pouco libertino continuava
sendo um bom católico, e sóror Maria del Gólgota, ou Fanny, embora fosse
mais gostosa do que miolo de pão branco saindo do forno, palavras textuais,
lhe parecia desrespeitosa demais com as coisas sacras, e ele sentia a
consciência mais pesada por ouvir sem reclamar seus impropérios de livre-
pensadora do que por estar na cama com ela. Isso é que era desagradável,
disse-me muito sério, da última vez que puxei por ele, quando sua cabeça
ainda não estava dando o prego, é que ela falava muito, o tempo todo, no
ouvido, chucuchu chucuchu, apertada contra mim, naquela caminha que
estalava tanto e a qualquer momento podia desabar sob o nosso peso,
contando-me aquelas histórias fantásticas de seus pais e seu irmão, que às
vezes ela dizia estar na África e às vezes na Terra do Fogo, e de como uma
tia conseguiu trancá-la no convento e depois a forçou a se tornar noviça,
para o seu bem, minha filha, não pela sua felicidade no outro mundo, pois já
sei que você não acredita nele, igual a seu pai, mas para que tenha alguma
segurança neste, e não acabe de cabeça raspada e humilhada em público,
como a sua pobre mãe, coitada, que não tinha culpa de nada, e olhe como se
transtornou, e como tivemos de interná-la sabe Deus até quando.
Fazia tudo brusca e avidamente, com a mesma agitação meio
apaixonada meio tirânica com que o despira e o instara a derrotar as
estreituras dolorosas de sua virgindade. Extasiava-se dando uma longa
tragada no cigarro, apertava-o entre as coxas até que suas articulações
estalavam, enfiando a língua movediça na boca do sapateiro, detalhe que ele
não apreciava muito, por não achar próprio de mulheres decentes.
Desfrutava os beijos, os cigarros, os minutos, e talvez, acima de tudo, o
deleite de dizer em voz alta todas as palavras que havia muitos anos a
perturbavam no segredo de seu pensamento, mantendo uma eterna ebulição
de devaneios e rebeldias impossíveis, uma intoxicação tão poderosa de
recordações, desejos, histórias, nomes e lugares que volta e meia perdia por
completo o sentido da realidade. Mas tocavam as badaladas das duas da
manhã e ela lhe pedia que se vestisse, com a mesma impaciência com que,
duas horas antes, o despira, punha em seu bolso um envelope com as
guimbas e cinzas para apagar qualquer vestígio, guiava-o pela mão escada
abaixo, sem tatear, sem incerteza, pois muitas vezes parecia ter o dom
inquietante de ver no escuro. Abriu um instante a portinhola e fez-lhe um
gesto para que saísse bem depressa, e um segundo depois ele estava sozinho
na extensão escura da praça, atordoado, contundido, ainda tão
desconcertado que não desfrutava plenamente de sua vaidade satisfeita e de
seu desejo realizado, e não podia acreditar que realmente tinha se infiltrado
à meia-noite num convento e desvirginado uma freira.
Na sua portinha de sapateiro e na barbearia ao lado, de Pepe Morillo, os
homens costumavam alardear suas conquistas, ou o duvidoso mérito de suas
proezas com as putas. Ele sempre se calava e sorria por dentro. Se vocês
soubessem. Nem ao seu confessor podia contar aquela aventura, e por isso
causava-lhe uma inquietação a mais a certeza de viver em pecado mortal.
Só a mim ele contou, e isso mais de quarenta anos depois, quando já fazia
tempo que estava aposentado e vivendo em Madri. Vocês precisavam ver o
sorrisinho dele, nós dois na sala de jantar da casa, cercados de recordações
de nossa cidade e de gravuras e imagens de santos, e de cartazes de
touradas. Ai, meu amigo, como gostei de touros e de mulheres, e que
momentos maravilhosos eles me fizeram passar, que Deus me perdoe.
Isso ele não perdeu, esse meio sorriso, essa expressão malandra de
guardar um segredo que talvez não recordasse, abobalhado e amnésico
diante da televisão, cabeceando prestes a dormir, cochilando e feliz, horas a
fio, atento tanto a um programa de desenhos animados como a um concurso
de palavras difíceis ou aos conselhos matutinos de um médico, encadeando
num fluir contínuo imagens e palavras de filmes, de telejornais, de novelas
sul-americanas, animando-se de repente quando vê na tela uma garota
muito bonita ou nua, a quem é possível que diga algo, verificando antes se
sua mulher não está perto, um galanteio como os que se diziam na
juventude dele às mulheres que passeavam de braços dados nas tardes de
domingo pela rua Real. Quando eu era pequeno o homem que possuía a
única televisão da vizinhança dizia galanteios grosseiros às apresentadoras e
às mulheres com minissaia que apareciam nos anúncios. Perguntam-lhe e
ele não responde, ou não escuta, ou diz algo confuso respondendo a uma
pergunta que não lhe fizeram. Da mesma forma, começa a rir diante da
televisão ou fica olhando para você e seus olhos se enchem de lágrimas.
Você põe comida na frente dele e ele come tudo, porque isto sim, o apetite
não perde, e no instante seguinte não se lembra e me pergunta quando é que
vamos comer, por isso está ficando gordo. Digo-lhe para sair, pegar um
pouco de ar, não passar o dia inteiro vendo tevê, mas quando cruza a porta a
inquietação já me invade, que ele não vá se perder e não saber voltar, do
jeito que anda bobo e do jeito que Madri é grande, e além disso tenho de
prestar muita atenção, para ver se amarrou os sapatos ou se não está saindo
sem meias, pois antes era tão vaidoso e gostava tanto de se arrumar, e se
punha nos trinques mesmo que fosse só para ir ao mercado, ali na esquina.
Fica horas com o mesmo sorriso impávido de complacência, aprovando
bondosamente tudo o que vê, tudo o que ouve, as conversas das vizinhas e
os travestis na banca de Sandra, os anúncios e os telejornais, as vozes das
peixeiras no mercado, os conselhos médicos do programa matutino de
televisão, as caras dos mortos e mortas em vida que cruzam com ele na
praça de Chueca e nas esquinas mais sombrias do bairro, quando sai com
seu manto grande e seu chapéu tirolês. Mas acho que de algumas coisas ele
se lembra, ou pelo menos essas coisas lhe despertam alguma coisa, embora
não chegue a perceber de todo, pois de vez em quando vou vê-lo e no início
ele não me reconhece, sento-me ao seu lado na sala de jantar e me olha
como perguntando quem serei eu, embora se esforce em acompanhar minha
conversa, e enquanto me diz alguma coisa e tento puxar alguma de suas
histórias antigas seus olhos se voltam para a televisão e ele esquece que há
mais alguém na sala. Mas tenho um truque infalível: chego bem perto dele,
quando sua mulher não está por ali, e digo baixinho, Ave Maria Puríssima, e
os olhos do sujeito brilham, ficam úmidos, e ele dá o sorriso sem-vergonha
de antes, quando me falava de mulheres, e me responde automaticamente:
— Concebida sem pecado.
Sentia remorso toda vez que repetia essas palavras, toda manhã que via,
na hora de sempre, as duas silhuetas de túnica marrom atrás da porta
envidraçada e ele apagava o cigarro, guardava-o numa gaveta, baixava a
cabeça fingindo concentrar-se em seu trabalho, arrancar o salto gasto e torto
de um sapato velho ou pôr aqueles pequenos reforços metálicos que na
nossa cidade se chamavam chapinhas, remendos de tempos de pobreza em
que quase ninguém podia se permitir comprar sapatos novos. Sentia nele a
dupla inspeção alarmante e magnética de sóror Barranco e de sóror Maria
del Gólgota, Fanny no segredo de seus encontros blasfemos, de suas noites
escuras e de sua luxúria às cegas na cela gelada, e quando as duas diziam ao
mesmo tempo Ave Maria Puríssima ele já distinguia na voz da mais moça o
tom equívoco do convite, da recordação e do desafio repetido, e custava-lhe
responder com a mesma diligência de outros tempos. Ao dizer a fórmula
Concebida Sem Pecado, que havia repetido desde criança sem nunca prestar
atenção, mostrava-a em seu significado literal, e sentia uma mistura muito
estranha de deleite e contrição ao pensar nos muitos pecados que ele e a
monja estavam cometendo como cúmplices, pecados mais mortais ainda
porque ela se alegrava em cometê-los, com uma temeridade não só
moralmente escandalosa como cheia de perigos.
Custava-lhe levantar a cabeça e fugia dos dois olhares tão fixos nele, e
ao mesmo tempo que receava que algum sinal de sóror Maria del Gólgota
fosse interceptado pela outra freira também temia não receber nenhum sinal
alentador de que nessa noite a portinhola estaria aberta. Tendo ido para a
cama com tantas mulheres até então, não havia lhe passado pela cabeça
apaixonar-se por nenhuma, e tinha uma ideia entre higiênica e grosseira das
relações sexuais. Que essa aventura lhe causasse tantos contratempos, tais
incertezas e confusões interiores, era algo que irritava profundamente seu
sentido masculino de comodidade, a perfeita simplicidade de espírito em
que até então tinha vivido. Vamos ver se você é capaz de me explicar isso,
você que estudou e sabe tantas coisas. Se eu gostava tanto daquilo, como é
que também tinha medo? Se decidia que já não ia mais visitá-la, por que
saía de casa antes de ouvir as doze badaladas e morria de impaciência se ela
custava a acender a luz no torreão?
Ela era muito gostosa, a verdade é essa, era mais gostosa do que cem
pães e cem queijos e era uma delícia tentá-la na escuridão, cheirá-la, vê-la
tão branca um instante na luz do isqueiro ou da brasa do cigarro.
Mas havia aquele principal inconveniente que ele notou na primeira
noite e só fez se agravar, e era o quanto ela falava depois da faena, como ele
gostava de dizer na sua linguagem taurina. Antes, não: desde que ele
entrava na cela até os dois gozarem, a mulher era uma sombra silenciosa e
movediça que ele só escutava respirar, ofegar, gemer, mas quando
sossegava, grudava-se nele, como um carrapato ou como uma argola que
prendesse suas coxas, e começava a lhe falar no ouvido, sacudindo-o com
raiva se percebia que estava pegando no sono, seus lábios roçando e sua voz
sussurrando sem parar, e ele escutando mesmo quando já não estava ao lado
dela, quando voltava embuçado para casa depois das duas da madrugada ou
quando acordava por causa de um pesadelo de desgraça ou escândalo,
quando estava sozinho na lojinha de sapateiro e se esquecia de ouvir as
canções no rádio, porque a voz dela tornava a soar no seu ouvido, zumbia
como um inseto ou o rumor do sangue ou as batidas do coração,
transformava-se em outras vozes, com as quais foi se acostumando aos
poucos, vozes de sua vida pregressa e de sua família-fantasma, o pai
querendo que a filha se tornasse doutora em Ciências Físicas ou engenheira
civil e a mãe rezando terços, a tia enlutada e venenosa que apanhou a moça
e o irmão na delegacia de uma estação de fronteira, quando fugiam para a
França escondidos num vagão de carga, porque tinham planejado juntar-se à
Resistência contra os alemães ou se porem a serviço do governo da
República espanhola no exílio. Como Santa Teresa e o irmão, quando
fugiram de casa para ir às terras dos mouros e converter infiéis ou se
tornarem mártires, com a diferença de que nós já não tínhamos casa, porque
meu pai foi fuzilado pelos homens da milícia nacional que entraram no
povoado, no final da guerra, e minha mãe teve a cabeça raspada e tatuaram
em seu crânio uma foice e um martelo, e passearam com ela e outras
comunistas ou esposas de comunistas pelo centro do povoado e a obrigaram
a ir junto com elas no amanhecer para esfregar o chão da igreja, de joelhos
sobre as pedras geladas. Tudo por causa do ódio que tinham de meu pai, o
homem mais bondoso e mais pacífico e ordeiro do mundo, e nem no verão
deixava de usar seu terno com colete, seu colarinho duro e sua gravata-
borboleta. Porque saía à rua com essa roupa os milicianos já tinham estado
prestes a fuzilá-lo, no início da guerra, e três anos depois os revoltosos o
levaram, com seu terno, seu colete, seu colarinho duro e sua gravata-
borboleta, para o paredão de fuzilamento, e ele disse ao meu irmão, ainda
bem que, pelo menos, não vão matar os membros da minha família.
O pai fuzilado, a mãe louca, a viagem furtiva durante dias e noites até a
fronteira num trem de carga, o irmão e ela dormindo em cima de palha com
cheiro de esterco e fazendo planos lunáticos para se juntarem à resistência
contra Hitler e Franco, as ladeiras cobertas de amendoeiras e macieiras em
flor e os becos íngremes daquele povoado onde os dois passaram em
perfeita felicidade os anos da guerra, enquanto a mãe rezava e o pai
administrava uma escola para crianças que tinham sido deslocadas de suas
cidades de origem, e continuava passeando de terno, gravata, chapéu e
botinas de republicano ordeiro, apesar do susto que lhe tinham dado no
início os milicianos libertários, e que já não voltou a se repetir, pelo menos
até chegarem os outros, que o tiraram de casa aos pontapés e chutes na
bunda, daquela casa com pátio e parreiras e poço de água fresca onde os
quatro tinham vivido praticamente como a família dos Robinson suíços
daquele livro que ela e o irmão adoravam. Não fiquem nervosos, vocês já
vão ver que nada acontecerá comigo, que tudo não passa de um engano, ela
lhe dizia ao ouvido com a voz do pai, mas não tornaram a vê-lo em vida, ou
melhor, só o irmão o viu, quando foi lhe levar um pouco de comida e
cigarros na cavalariça onde o mantinham preso, e o que mais o
impressionou não foi entrar naquele curral cheio de condenados à morte,
mas ver seu pai sem a barba feita e sem o colarinho postiço da camisa, com
o terno amarrotado e muito sujo, como nunca o tinha visto.
Mas não era seu pai, e sim seu irmão, o herói de todas as suas narrações,
seu companheiro de brincadeiras infantis e aventuras pelas ladeiras brancas
de macieiras e amendoeiras, o cúmplice de suas leituras e o instigador de
seus projetos de fugas e de engajamento em revoluções sociais, em
exércitos guerrilheiros, em células clandestinas de resistência antifascista,
em viagens de exploração à Terra do Fogo ou à Patagônia ou ao deserto de
Gobi ou ao centro da África. E ela foi agarrada, trancada num convento e
forçada a ser freira sob ameaças obscuras e terríveis que jamais chegou a
explicar claramente, tão minuciosa como era, mas pelo menos seu irmão
tinha conseguido escapar, e de vez em quando, durante todos aqueles anos,
ela recebia por canais tortuosos uma carta dele. Vive na América, não sei se
no norte ou no sul, mas na América, locomove-se tanto e tem tantos
negócios que não passa muito tempo em lugar nenhum, e tanto pode estar
em Chicago como em Nova York ou Buenos Aires, mas sempre quer saber
notícias minhas e por causa das bruxas que me mantêm sequestrada as
cartas dele não chegam nem eu posso lhe enviar nenhuma correspondência,
pedir-lhe ajuda para que venha me salvar.
Ajude-me você, dizia-lhe ao ouvido, roçando sua orelha com os lábios e
a respiração agitada, ajude-me a fugir daqui e iremos juntos para a América
em busca de meu irmão. O que o retém aqui, se um homem é livre para ir
aonde sua santa vontade lhe ditar, não é como uma mulher, que vive presa,
embora não esteja trancada num convento.
Aqui você não tem nada e jamais chegará a ter alguma coisa, toda a vida
consertando sapatos velhos naquela portinha, cheirando a suor velho que as
pessoas deixam nos sapatos, tão moço e tão forte, com essas mãos tão
grandes e essa vibração que tem no corpo, não haveria obstáculo
intransponível se fosse embora daqui, para a América, para onde vão os
homens que têm a coragem de devorar o mundo, como foi meu irmão, e
onde as mulheres não vivem trancadas nem usam sempre luto nem se
matam parindo filhos e trabalhando no campo e esfregando ajoelhadas os
pisos e lavando roupa no inverno em tanques de água fria com esses
pedaços de sabão de manteiga que esfolam as mãos. Aqui não sou nada, não
seria ninguém se fugisse sozinha, para onde irá uma mulher que fugiu de
um convento e não tem documentos, nem um homem que a defenda ou a
represente, nem pai, nem marido nem irmão, não é como na América, onde
mulher vale tanto quanto homem, se não mais, muitas vezes. Ali as
mulheres fumam em público, igual aos homens, usam calças, vão de carro
para o escritório, se divorciam quando têm vontade, dirigem a toda pelas
estradas, que são muito largas e sempre em linha reta, não é como aqui, e os
carros não são pretos e velhos, mas imensos e coloridos, e as cozinhas são
iluminadas e brilhantes e estão cheias de aparelhos automáticos, de modo
que você aperta um botão e o chão é esfregado, e tem uma máquina que tira
o pó e outra que lava a roupa, deixando-a até passada e dobrada, e as
geladeiras não precisam de barras de gelo, e todas as casas têm garagem e
jardim, e muitas têm piscina. Nas piscinas as mulheres tomam sol com
maiôs de duas peças e bebem refrescos deitadas em redes enquanto os
aparelhos automáticos fazem todo o trabalho da casa. Bebem refrescos e
fumam, sem que ninguém pense que sejam putas, e pintam as unhas, não só
das mãos mas também dos pés, e se têm alguma queixa do marido se
divorciam, e aliás ele é obrigado a lhes pagar uma pensão todo mês até que
encontrem outro marido, e casam sem ter de fazer cursos de cristianismo
nem papelada nem petição e sem precisar de um dote, casam de um dia para
outro, e se divorciam da mesma forma, e quando se cansam da vida num
lugar sobem no seu carrão colorido e vão para outra cidade, no outro lado
do país, vão para a Califórnia ou para a Patagônia ou para Las Vegas ou
para a Terra do Fogo, olhe que nomes mais bonitos, só ao dizê-los já parece
que os pulmões se enchem de ar, ou vão para Chicago ou Nova York, e
vivem em arranha-céus de quarenta ou cinquenta andares, não em casinhas
térreas como as daqui, em apartamentos que não precisam de janelas porque
têm todas as paredes de vidro, e nos quais nunca faz calor nem frio, pois
quando a temperatura sobe ou desce um pouco além da conta começam a
funcionar uns aparelhos que eles chamam de climatização.
Mas como é que nós vamos embora, mulher, com que dinheiro
compraríamos a passagem de navio, ele dizia, para dizer alguma coisa, e ela
logo ficava furiosa com sua pusilanimidade, ralhava com ele em seu
sussurro sonífero: já pensei em tudo, você vende ou passa adiante o seu
negócio e algum dinheiro lhe darão, estando num ponto tão bom, e posso
dar um jeito de roubar umas coisas de muito valor que há no convento,
candelabros de prata e um relicário de ouro maciço, posso até cortar da
moldura um quadro da Imaculada que, dizem, é de Murillo, e duvido que
não nos deem por ele uns bons milhares de pesetas. Ele ficava gelado só de
pensar nisso, roubo sacrílego, além de profanação e blasfêmia, não só a
desonra pública e a excomunhão, como também a cadeia. Agora começava
a entender tudo, aquela freira demente procurava algo mais, além de saciar
seu calor ímpio queria usá-lo como instrumento de sua fuga e cúmplice de
suas manobras delituosas, não só inadequadas para uma moça que, afinal de
contas, era filha de um comunista que a educara no amor livre e no ateísmo,
fomentando um descaramento sexual que decerto podia ser delicioso, mas
também inadequadas para uma mulher decente, ainda mais para uma esposa
de Cristo.
Não dormia, nunca se concentrava no que fazia, nem no trabalho nem
nas atividades beneficentes ou da confraria, nem na obrigação nem na
devoção, como eu digo, até se esquecia de escutar no rádio os programas de
versinhos e de touros. Não tinha medo, mas pânico, não só de ser flagrado
ao entrar ou sair do convento naquelas noites hibernais de tempestade que
eram tão escuras e desertas como de ser arrastado para o seu delírio, e ficar
tão transtornado que acabasse perdendo o senso comum que sempre o havia
acompanhado e guiado e terminasse perdendo tudo o que tinha, e também
tudo o que era, o que chegara a ser. Tinha medo de vê-la aparecer toda
manhã ao lado de sóror Barranco, e até que ela fosse embora não sossegava,
porque achava que a velha já estava começando a desconfiar e o vigiava ao
mesmo tempo que vigiava a outra a fim de conseguir novos indícios do que
já suspeitava, provas que os empurrariam juntos para uma catástrofe em que
ele não tinha o menor interesse romântico de se meter. Mas se ela não
aparecia também se assustava, imaginando que tinha adoecido de novo e
que no delírio da febre revelava o segredo de seus encontros na cela, ou que
já tinha fugido e estava escondida e quando anoitecesse iria buscá-lo, tal
como anunciara ameaçadoramente muitas vezes. Isso acontece comigo
porque eu quebro minhas normas e me envolvo com uma mulher bonita, e
uma mulher bonita que, para completar, não tem marido nem ninguém para
prendê-la, além dessas freiras velhas que não ficam sabendo de nada. E
preciso procurar amantes que sejam feiosas e casadas e saibam guardar uma
certa decência até mesmo no adultério, e que se possível tenham também
uma posição econômica sólida, porque assim é mais difícil pensarem nessa
ideia delirante e romântica de largar tudo e fugir com alguém, causando-lhe
todo tipo de incomodidades e sobressaltos.
Que filósofo, esse sujeito, você tinha de ter deixado por escrito seus
preceitos, para que nós, seus discípulos, os seguíssemos ao pé da letra, eu
lhe dizia, e ele caía na risada e me fazia um gesto para falar mais baixo,
para que sua mulher não ficasse sabendo. Seus preceitos e também suas
memórias, mestre insigne, a não ser que você me conte tudo e me nomeie
seu biógrafo oficial e testamenteiro de seu legado.
Mas já é tarde demais, já não se lembra ou não conta, embora os
médicos tenham examinado sua cabeça e digam que não tem nada, graças a
Deus, que não lhe deu essa doença dos velhos, pelo menos ainda não, o mal
de Alzheimer, que aí eles ficam impossíveis e não lembram mais nem
reconhecem. Diz o médico da cabeça que talvez ele tenha tido uma
depressão, por não fazer nada e não conhecer quase ninguém em Madri,
mas que depressão, digo-lhe eu, se este aí nunca esteve triste, e agora cai na
gargalhada por qualquer coisa e sozinho, olhando a tevê, que estou fazendo
alguma coisa na cozinha e ouço umas gargalhadas e saio e é ele que está se
mijando de rir, embora não tenha nenhuma graça o que estão passando, que
tanto faz ser um enterro ou uma dessas notícias de guerras e fomes dos
telejornais.
Não se lembra do tédio, da angústia, do medo das últimas vezes, de
como ela estava ficando perturbada, cada vez mais áspera e peremptória em
suas exigências eróticas, como se em poucas semanas tivesse adquirido toda
a depravação em que outras caem ao fim de longos anos de vício, cada noite
mais tagarela, mais louca e monótona em suas histórias do passado e em
seus planos dementes para o futuro, um futuro que aliás ela situava cada dia
mais perto, e até se empenhava em discutir as melhores datas possíveis para
a fuga, e exigia dele promessas e juramentos, fazendo ameaças terríveis,
tendo visões insensatas da liberdade e da riqueza que os aguardava na
América, onde não demoraria em encontrar"seu irmão aventureiro e
multimilionário, em possuir um carro imenso pintado de vermelho ou
amarelo ou azul com para-choques prateados e uma casa com jardim e
piscina e todo tipo de eletrodomésticos.
Uma noite, contra seu costume, ela não o arrastou imediatamente, em
silêncio, para o catre pouco resistente e ascético, mas apertou seu corpo na
escuridão e segurou seu rosto com as duas mãos e lhe disse no ouvido com
a voz rouca e alterada que, antes de possuí-la — ela adorava essa palavra
melodramática —, teria de jurar que no prazo de uma ou duas semanas,
antes que terminasse a temporada de colheita de azeitonas, finalmente
fugiriam juntos. Ele não lhe dissera duas ou três noites antes, embusteiro,
para se livrar, que já tinha mais ou menos arranjado a transferência de seu
negócio para um sapateiro da vizinhança? Como um gancho ou uma garra,
a mão direita da freira, que em tão pouco tempo se especializara
assustadoramente em carícias e manipulações, apoderou-se de sua braguilha
e começou a apertá-lo gradualmente, e sua voz sussurrou em seu ouvido
algo que muitos anos depois ainda o deixava de cabelo em pé quando se
lembrava, provocando-lhe um encolhimento viril tão instantâneo como
irreparável: se você me trair eu arranco tudo isso aí.
Mas essa noite foi a última. De manhã ele acordou com calafrios e
tonteiras e não teve forças nem para sair da cama. Abatido e febril, sentia o
alívio de não ir trabalhar e não ter de enfrentar a inspeção diária de sóror
Barranco e de sóror Maria del Gólgota. No terceiro dia a febre piorou e foi
preciso chamar o médico, que diagnosticou um princípio muito perigoso de
pneumonia e ordenou a internação imediata no hospital de Santiago. Em
sua vigília angustiosa ele atribuía a desgraça de sua doença a um castigo
divino e revivia todo o frio passado no mau tempo da praça e na cela glacial
de sóror Maria del Gólgota: o pecado da carne, agravado pela blasfêmia, e o
desleixo de não se abrigar tinham se conjurado para jogá-lo numa cama de
hospital e talvez também na sepultura, e nos suplícios do inferno. Rezou
terços, fez promessas fervorosas de santificação e penitências, de sair
descalço na procissão durante os próximos vinte anos levando nas costas
um crucifixo de madeira maciça, de submeter-se a chicotadas e cilícios, até
imaginou que se tornava frade e passava o resto da vida fazendo penitência
num convento para pagar as aberrações cometidas em outro.
Um mês depois voltou para a sua portinha e sua mesa de sapateiro, mas
tinha a impressão de haver se passado muito mais tempo, e lembrava-se dos
dias anteriores à sua doença com o desapego das coisas remotas. Nas
primeiras duas ou três manhãs mal teve força ou ânimo para trabalhar, e
aguardou com uma mescla de desejo e medo a visita das duas freiras. Mas
não apareceram, e o vizinho do lado, o barbeiro Pepe Morillo, disse-lhe que
tinha ouvido falar que sóror Barranco estava muito doente, problemas da
idade, e que por alguma razão desconhecida a outra freira estava proibida
de sair.
Nessa noite, abrigando-se muito bem, atreveu-se a ir à praça de Santa
Maria. Bateram as doze badaladas, mas na janela do torreão do convento
nenhuma luz se acendeu, e ele decidiu, com decepção e alívio, que o mais
prudente era voltar para casa e meter-se na cama, e levar a sério o
cumprimento das promessas feitas nos dias negros da doença, da qual tinha
certeza de ter se salvado graças à dupla eficácia milagrosa das orações e da
penicilina. Quando já ia embora virou um instante a cabeça e a luz estava
acesa na torre, e debaixo pôde ver a silhueta tentadora e meio
fantasmagórica de sóror Maria del Gólgota. Mas não foi sua vontade nem
seu propósito de se corrigir que triunfaram contra a poderosa persuasão do
pecado: foi um calafrio que sacudiu todo o seu corpo, e um início de dor
renovada no peito, devolvendo-lhe o medo da pneumonia, o desagrado de
ter de se despir e depois se vestir num lugar gelado e muito incômodo, no
qual não havia como se cobrir totalmente. E depois, as urgências daquela
mulher, sua voz de sonhadora sussurrando desvarios em seu ouvido
enquanto ele ia ficando com sono e tudo que queria era ir embora, e as
tábuas duras da cama que se cravavam nas suas costas, enquanto imaginava
sua cama mole e quente, para ele sozinho, a segurança de sua casa...
Venceu a tentação nessa noite e em mais algumas, mas à medida que ia
se recuperando da fraqueza com que voltara do hospital despertaram os
antigos instintos, apaziguados por certo tempo, não devido à penitência,
mas à fraqueza física, e na noite seguinte ele se viu, a contragosto,
zanzando na praça de Santa Maria, tão excitado que custava a caminhar
com naturalidade, emburricado, como dizia brutalmente, usando uma dessas
palavras saborosas de nossa terra que já estão quase perdidas, nosso rico
acervo popular. Nessa noite ele estava desembestado, como um miúra,
como um cabrão, disposto a tudo, a comê-la viva e nunca mais voltar. A luz
acendeu-se no torreão, e com o sangue fervendo e o coração na boca foi até
a portinhola e a empurrou com menos cuidado que de outras vezes, mas
estava fechada, e custou a se conter para não dar murros na porta. Afastou-
se do edifício, voltou para o lugar de onde podia ver a janela do torreão. A
luz acendeu-se de novo, mas agora que ele estava mais perto viu ou pensou
ver sóror Maria del Gólgota lhe sorrindo e levantando a túnica, e lhe
mostrando com desafio e sarcasmo suas tetas nuas, fazendo um sinal,
indicando talvez que tornasse a empurrar a porta.
Empurrou-a de novo, mas continuava fechada, e nunca mais esteve
aberta, e nem ele viu a luz acesa na torre em nenhuma das noites que ficou
rondando pela praça.
— E nunca mais soube nada dela? Não voltou a vê-la?
A gente sempre quer que as histórias terminem, bem ou mal, que
tenham um fim tão claro como seu princípio, uma aparência de sentido e
simetria. Mas na verdade pouquíssimas coisas se concluem de vez, a não
ser pelo acaso ou pela morte, e outras não chegam a acontecer, ou se
interrompem quando estavam começando, e delas nada resta, nem na
memória distraída ou desleal de quem as viveu. Passam-se os anos e nosso
amigo chega a essa idade com que nós o conhecemos, cada vez tem mais
cartazes de touros e de Semana Santa em sua lojinha minúscula, e quando
falta espaço prega uns em cima dos outros. Ascende a presidente de sua
confraria, é nomeado assessor oficial para as corridas de touros, é
entrevistado pelo jornal da província como uma glória de nossa modesta
vida local e prega o recorte numa das vidraças de sua porta, de modo que
possa ser visto por quem passa na rua. O recorte vai ficando amarelo,
algumas lojas da vizinhança começam a fechar, inclusive a barbearia ao
lado, e o negócio de remendar sapatos, pelo visto, tem tão pouco futuro
como o de cortar cabelo, porque as pessoas jogam fora os sapatos gastos e
compram novos nas sapatarias modernas que foram abrindo em outras
zonas mais populosas da cidade. Mas ele tem suas economias, assegurou a
velhice tão cautelosamente como assegurava a satisfação regular de suas
necessidades sexuais, e resolve que convém casar, porque está chegando a
uma idade em que um homem já não é o que era, se bem que ainda
conserve o aspecto necessário para atrair uma esposa madura e prestativa
que cuidará dele quando realmente começar a perder suas faculdades,
momento em que, se teve a imprudência de não se casar antes, não terá
outro jeito senão entrar na decrepitude solitária ou no asilo. O tipo de
mulher que lhe interessa, o perfil, para sermos exatos, ele tem muito
claramente no espírito: viúva, com uma pensão aceitável, algumas posses,
um apartamento livre de hipoteca, por exemplo, e sem filhos. Durante um
tempo considerou como candidata a subtenenta da Intendência, já viúva do
subtenente, e com pensão sólida e vivendo em casa própria, mas a achou
velha demais para seus objetivos, não por motivos carnais, mas porque
tampouco lhe convinha carregar alguém que duplicasse os inconvenientes
da idade, em vez de remediá-los. Inopinadamente, certa manhã, na fila da
Caixa Econômica, aonde tinha ido para atualizar sua preciosa caderneta de
poupança, conheceu uma mulher perfeita, que ultrapassava de longe suas
expectativas mais audaciosas: professora, solteira, de boa aparência, cabelo
pintado e colo abundante, embora com modos felizmente discretos, um
salário esplêndido e uma substanciosa acumulação de triênios, um
apartamento no centro de Madri, herança de família, e um posto numa
escola de Móstoles. Casaram-se em seis meses, e sem esperar a venda do
local onde funcionava a sapataria, no início de setembro foram para a
capital, a tempo de a nova esposa começar as aulas na escola. No dia 27 de
setembro, é claro, vésperas da nossa festa do santo padroeiro, ele já estava
de volta, porque tinha de assistir às corridas de são Miguel e são Francisco
em sua qualidade de assessor técnico da presidência. Um possível
comprador havia se interessado pela portinha de sapateiro. Marcou encontro
com ele para mostrar a loja numa daquelas manhãs frescas de início de
outono, e sentiu certa angústia ao andar pela rua Real, tão deserta nessa
hora em que antigamente fervia de gente, e ao abrir sua velha porta de
vidro, após ter subido a persiana metálica fechada havia muitos meses. No
chão havia papéis velhos, e um punhado de cartas que, antes de ir embora,
nem sequer tinha se dado ao trabalho de examinar, imaginando com tédio
que seriam propagandas de ofertas sem nenhum interesse. Examinou-as
agora, porém, tirando a poeira, matando tempo enquanto não chegava o
duvidoso comprador. Entre elas havia um cartão-postal em cores muito
fortes, no qual se via a estátua da Liberdade, a bandeira americana, o perfil
dos arranha-céus de Nova York. No reverso, não via o nome nem a
assinatura de quem o enviava, e além de seu endereço só encontrou umas
palavras escritas com uma letra cuidadosa e rebuscada, quase cafona, como
aquela que antigamente era ensinada nos colégios de freiras. Lembrança da
América.
________________
3 Trabalho feito pelo "espada" — toureiro especializado em matar com a
Você não é uma só pessoa e não tem uma só história, e nem seu rosto
nem sua profissão nem as outras circunstâncias da sua vida passada ou
presente permanecem invariáveis.
O passado se move e os espelhos são imprevisíveis. Toda manhã você
acorda pensando ser o mesmo da noite anterior e reconhecendo no espelho
um rosto idêntico, mas às vezes no sono você foi perturbado por fragmentos
cruéis de dor ou de paixões antigas que dão à manhã uma luz levemente
turva, e esse rosto que parece o mesmo está sempre mudando, modificado
pelo tempo a cada minuto, como uma concha pelo atrito da areia e pelas
pancadas e pelos sais do mar. A todo instante, mesmo que se mantenha
imóvel, você está mudando de lugar e de tempo graças às descargas
químicas infinitesimais que formam a sua imaginação e a sua consciência.
Regiões inteiras e perspectivas distantes do passado abrem-se e fecham em
leque como as linhas retas dos olivais ou os sulcos para quem olha da janela
de um trem que avança a toda a velocidade sabe-se lá para onde. Por alguns
segundos um sabor ou um odor ou uma música no rádio ou o som de um
nome fazem-no ser quem você foi trinta ou quarenta anos antes, com uma
intensidade maior do que a consciência de sua vida atual. Você é um
menino assustado no primeiro dia de aula ou um garoto de cara redonda e
olhos fugidios e uma sombra de bigode sobre o lábio superior e quando se
olha no espelho é um homem de quarenta e tantos anos que começa a ter o
cabelo preto entremeado de fios brancos e em quem ninguém consegue
encontrar rastros de um rosto infantil, e nem dessa espécie de vaga e
permanente juventude em que você se imagina instalado desde que entrou
na vida adulta, na primeira delas, no trabalho e no casamento, nas
obrigações e nos sonhos secretos e na criação dos filhos. Você é cada uma
das pessoas diversas que foi e também as que imaginava que seria, e cada
uma das pessoas que nunca foi, e das outras que desejava ardentemente ser
e agora agradece por não ter sido.
Ao mesmo tempo que você, transformam-se o seu quarto e a cidade ou
a paisagem que você vê da janela, a casa onde mora, a rua por onde anda,
tudo se afastando e fugindo assim que aparece do outro lado do vidro, sem
nunca parar, desaparecendo para sempre. Cidades, lembranças e nomes de
cidades onde, pelo visto, você ia viver para sempre e das quais fugiu para
não voltar, imagens de cidades onde passou uns dias, recém-chegado e já
prestes a partir, e que atualmente formam na memória uma espécie de
desordem de cartões-postais de cores fortes e antigas, como os azuis dos
postais das cidades marítimas nos anos 60. Ou nem isso: cidades que nada
mais são do que seus nomes bonitos, despojados de toda substância pelo
passar do tempo, Tânger, Copenhague, Hamburgo, Washington DC,
Baltimore, Göttingen, Montevidéu.
Quem você era quando andava por qualquer uma delas, submergindo
com medo e fervor no anonimato que lhe ofereciam, na suspensão e na
perda de uma identidade invisível para qualquer pessoa que cruzasse com
você.
Talvez o que menos mude, através de tantos lugares e tempos, seja o
quarto onde você se refugia, esse quarto de onde, segundo Pascal, nunca
deveríamos sair para que não nos acontecesse uma desgraça. Estar só num
quarto é talvez uma condição necessária da vida, escreveu Franz Kafka a
Milena. Há em meu quarto atual um computador em vez de uma máquina
de escrever, mas ele lembra muito qualquer quarto que ocupei ao longo de
minha vida, de minhas vidas, do primeiro que tive aos dezessete anos, com
uma mesa de madeira e uma sacada que dava para o vale do Guadalquivir e
para a silhueta azul da serra de Mágina. Eu me trancava nele para ficar
sozinho com minha máquina de escrever, meus discos, meus cadernos,
meus livros, e ao mesmo tempo que me sentia afastado e protegido a sacada
me permitia observar a vastidão do mundo, para onde queria fugir o quanto
antes, pois aquele refúgio, como quase todos, era também uma clausura, e a
única janela pela qual eu desejava observar era a do trem noturno que me
levaria muito longe.
Laura Garcia Lorca, que nasceu em Nova York e fala um espanhol claro
e castiço, às vezes com um toque de fonética inglesa, mostrou-me em
Granada, na Huerta de San Vicente, o quarto de seu tio Federico, o último
que teve, do qual precisou partir num dia de julho de 1936, em busca de um
refúgio que não encontraria. Todas as desgraças acontecem com o homem
porque ele não sabe ficar sozinho em seu quarto. Vi o quarto de Lorca e
parecia uma recordação de quartos vividos ou sonhados, e também a
expressão exata de um desejo. Eu tinha morado naquele lugar, queria viver
um dia num quarto como esse. As paredes brancas, o chão de cerâmica
vermelha como a que havia em minha casa quando eu era criança, a mesa
de madeira 3a cama austera e confortável, de ferro pintado de branco, a
grande sacada aberta para a Vega, para a extensão de plantações salpicadas
de casas brancas, para a silhueta azulada ou malva da Sierra, com seus
cumes de neve tingidos de rosa nos crepúsculos. Lembro-me do quarto de
Van Gogh em Aries, tão acolhedor como austero, mas com sua linda
geometria já torcida pela angústia, o quarto que se abria para uma paisagem
tão meridional como o da Vega de Granada e que também continha as
poucas coisas necessárias à vida, e que nem assim salvou do horror o
homem que nele se refugiava.
Fico pensando como seria o quarto de Amsterdam em que Baruch
Spinoza, descendente de judeus expulsos da Espanha e depois de Portugal,
expulso ele mesmo da comunidade judaica, redigia seus tratados filosóficos
de seca clareza e polia as lentes com que ganhava a vida: imagino-o com
uma janela por onde entra uma luz clara e cinza como a dos quadros de
Vermeer, nos quais sempre há quartos aconchegantes que protegem da
intempérie seus habitantes absortos, a quem um detalhe recorda a vastidão
do mundo lá fora, um mapa das índias ou da Ásia, uma carta vinda de muito
longe, pérolas pescadas no oceano Indico. Uma mulher de Vermeer lê uma
carta, outra olha compenetrada e ausente para a luz da janela e talvez esteja
esperando a chegada de uma carta. Fechado no seu quarto, talvez o único
lugar em que não era totalmente apátrida, Baruch Spinoza dá forma à
curvatura de um vidro que permitirá ver coisas tão diminutas que o olho
humano não distingue, e quer abarcar, sem outra ajuda além de sua
inteligência, a ordem e a substância do universo, as leis da natureza e da
moral humana, o mistério rigoroso de um Deus que não é o de seus
antepassados, por quem foi renegado e expulso da sinagoga, nem tampouco
o Deus dos cristãos, que talvez o queimassem vivo se ele vivesse num país
menos tolerante que a Holanda.
Numa carta a Milena Jesenska, Franz Kafka esquece por um instante
sua destinatária e escreve a si mesmo: Afinal de contas, você é judeu e sabe
o que é o temor.
E então me vem à memória Primo Levi em seu apartamento burguês de
Turim, onde nasceu e morreu, jogando-se ou caindo por acaso no vão da
escada, onde viveu toda a sua vida, a não ser durante dois anos, entre 1943
e 1945. Em setembro de 1943, quando os milicianos fascistas o prenderam,
Primo Levi saíra de seu quarto seguro e de seu apartamento em Turim para
se juntar à resistência, e levava uma pequena pistola que mal sabia manejar,
e na verdade nunca tinha dado um tiro. Fora um bom aluno, formando-se
em Química com notas excelentes, com o mesmo gosto pelo que aprendia
nos laboratórios e nas aulas e pela literatura, que para ele teve sempre a
mesma obrigação de clareza e exatidão que a ciência. Um homem jovem,
miúdo, aplicado, de óculos, educado numa família ilustrada e burguesa,
numa cidade culta, trabalhadora, austera, acostumado desde pequeno a uma
vida serena, em harmonia com o mundo exterior, sem a menor sombra de
qualquer diferença que o separasse dos outros, nem mesmo sua condição de
judeu, já que na Itália, e mais ainda em Turim, um judeu era, aos olhos dos
outros e de si mesmo, um cidadão idêntico a qualquer um, mais ainda se
pertencia, como Primo Levi, a uma família laica, alheia à língua hebraica ou
a qualquer prática religiosa. Seus antepassados tinham emigrado da
Espanha em 1492. Deixou seu quarto, sua casa segura, onde havia nascido,
e provavelmente ao chegar ao portão estremeceu com o pensamento de que
não voltaria, e quando regressou, três anos depois, magro como uma
assombração, sobrevivente do inferno, deve ter sentido que na verdade
estava morto, que era o fantasma de si mesmo voltando à casa intocada, ao
portão idêntico, ao quarto agora estranho em que nada havia se modificado
durante sua ausência, em que nenhuma mudança visível teria se produzido
se ele tivesse morrido, se não houvesse escapado do lodaçal de cadáveres
do campo de extermínio.
De que quantidade mínima de pátria, de que dose de enraizamento ou de
lar um ser humano precisa, perguntava-se Jean Améry, lembrando-se de sua
fuga da Áustria em 1938, talvez na noite de 15 de março, no expresso que
saía às onze e quinze da manhã de Viena para Praga, de sua viagem
atribulada e clandestina pelas fronteiras da Europa até o refugio provisório
em Antuérpia, onde conheceu a incerteza absoluta dos judeus desterrados, a
hostilidade do nativo pelos estrangeiros, as humilhações da polícia e dos
funcionários que examinam papéis e atribuem ou negam autorizações e o
fazem voltar no dia seguinte e no próximo e olham o refugiado como a um
suspeito de um crime, o mais grave de todos, o de ter sido despojado da
nacionalidade que ele pensava inalienavelmente ser sua e não ser aceito de
todo em nenhuma outra parte.
Precisamos ao menos de uma casa onde nos sintamos seguros, diz
Améry, um quarto do qual não possa nos tirar com maus modos no meio da
noite, do qual não devamos fugir às pressas ao ouvir passos nas escadas e
apitos da polícia.
Você é quem viveu sempre na mesma casa e no mesmo quarto e
percorreu as mesmas ruas a caminho do trabalho onde permanece das oito
da manhã às três da tarde todo dia, de segunda a sexta, e também é quem
foge sem parar e não encontra amparo em parte alguma, quem atravessa
fronteiras à noite por trilhas de contrabandistas, quem viaja com
documentos falsos ou duvidosos num trem e permanece insone enquanto os
outros passageiros dormem ruidosamente ao seu lado, temendo que os
passos que se aproximam pelo corredor sejam os de um policial, calculando
o tempo que falta para chegar à fronteira, para que os homens de uniforme
que examinam seus documentos lhe indiquem com um gesto que você
espere aqui ao lado, e então os outros viajantes, os que têm passaportes em
ordem e nada temem, o olharão com cara de desconfiança, e também de
alívio, porque o infortúnio que caiu sobre você deixa-os ilesos, e eles
começam a ver no seu rosto os sintomas da culpa, do delito, da diferença,
ainda mais letal por não ser perceptível à primeira vista, e por ser
independente da vontade e dos atos da pessoa, marca que não se vê e no
entanto não se pode apagar, mancha indelével que não está no rosto nem na
presença externa, mas no sangue, o sangue do judeu ou do doente, o de
quem sabe que será expulso se sua condição for descoberta. Trancado no
seu quarto de doente, num sanatório para tuberculosos, Franz Kafka lembra
os comentários antissemitas feitos por outro doente na mesa do refeitório e
escreve uma carta incitado pela insônia e pela febre: A situação insegura
dos judeus, inseguros em si mesmos, inseguros entre os homens, explica
perfeitamente que acreditem que só lhes é dado possuir o que agarram com
as mãos ou entre os dentes, e que além do mais só essa posse do que está ao
alcance de suas mãos lhes dá algum direito à vida, e que aquilo que um dia
perderam jamais recuperarão, se afastará tranquilamente deles para sempre.
No quarto de um hotel em Port Bou, Walter Benjamin se matou porque
já não lhe restava outro caminho por onde continuar fugindo de seus
perseguidores alemães. A Jean Améry, quando a Gestapo predeu, quando
foi interrogado e em seguida torturado pelos SS, atribuíram duas
identidades possíveis de inimigo e de vítima: podia ser um alemão, desertor
do exército, e nesse caso o fuzilariam por traição após um conselho de
guerra; podia ser judeu, e então seria enviado para um campo de
extermínio. Jean Améry tinha sido preso em Bruxelas, onde ele e seu
grupinho de resistentes de língua alemã imprimiam panfletos e os jogavam
à noite nas proximidades dos quartéis da Wehrmacht, arriscando a vida em
troca da esperança fútil de que algum soldado alemão ficasse de consciência
pesada ao lê-los. Jean Améry, que na época se chamava Hans Mayer, foi
preso em maio de 1943. Primo Levi, uns meses mais tarde, armado com a
pequena pistola que não sabia manejar, tão daninha para o III Reich como
os panfletos de Améry. Nenhum dos dois havia professado o judaísmo, e
Primo Levi se considerava italiano acima de tudo, assim como Améry
nunca pensou até 1935 que fosse outra coisa senão um austríaco.
Mas os dois, ao serem presos, confrontados com a escolha de uma
identidade, escolheram declarar-se judeus, juntar-se ao número das vítimas
absolutas, condenadas não por seus atos nem por suas palavras, não por
professarem uma religião ou uma ideologia, não por jogarem panfletos que
não iam influenciar ninguém nem por se embrenharem na montanha sem
roupas nem sapatos de inverno e sem outras armas além de uma pistola
ridícula, e sim pelo simples fato de terem nascido.
Você é aquele que desde a manhã de 19 de setembro de 1941 tem de sair
para a rua usando bem visível sobre o peito uma estrela-de-davi preta sobre
um retângulo amarelo, tal como os judeus nas cidades medievais, mas agora
com todo tipo de instruções regulamentares sobre seu tamanho e disposição,
minuciosamente explicadas no decreto correspondente, que também prevê
sanções para quem sair sem a estrela ou tentar dissimulá-la, tapando-a, por
exemplo, com uma pasta ou com os embrulhos das compras, ou até com o
braço que segura um guarda-chuva. No gueto de Varsóvia, a estrela era
azul, e a braçadeira, branca.
Você é qualquer um e não é ninguém, é quem você inventa ou recorda
ou quem outros inventam e recordam, os que o conheceram há tempos, em
outra cidade e em outra vida, e guardaram de você uma imagem congelada
de quem você era na época, uma dessas fotos esquecidas que achamos
estranhas e até rejeitamos quando voltamos a vê-las ao fim dos anos. Você é
quem imaginava futuros quiméricos que agora lhe parecem pueris, e quem
tanto amou mulheres das quais agora nem se lembra, e quem se envergonha
de ter sido, e quem foi às vezes sem que ninguém soubesse. Você é o que os
outros, agora mesmo, em algum lugar, contam a seu respeito, o que alguém
que não o conheceu conta que lhe contaram, e o que alguém que o odeia
imagina que você é. Muda de quarto, de cidade, de vida, mas há sombras e
duplos seus que continuam morando nos lugares de onde você partiu, que
não deixaram de existir porque você já não vive neles. Em criança corria
pela rua imaginando que cavalgava, e era ao mesmo tempo o cavaleiro a
esporear o cavalo correndo a galope, e também o menino que via essa
cavalgada num filme, e no dia seguinte contava-o com fervor aos amigos
que não foram vê-lo no cinema de verão, e o que escutava outro contar
histórias ou filmes, com o olhar atento e as pupilas brilhantes, o que pede
mais uma história para que sua mãe não vã embora nem apague a luz, o que
termina de contar uma história a seu filho e vê nos olhos dele,
reconhecendo-se neles, todo o entusiasmo nervoso da imaginação, a
vontade de continuar escutando, e de que não se cale a voz afetuosa que
conta nem fique escuro no quarto rapidamente invadido pelas sombras do
medo.
Você muda de vida, de quarto, de cara, de cidade, de amor, mas mesmo
se despojando de tudo algo sempre permanece, que você carrega desde que
tem memória e muito antes de chegar ao uso da razão, o núcleo ou a medula
do que você é, do que nunca se apagou, não uma convicção nem um desejo,
mas um sentimento, às vezes amortecido, como uma brasa oculta sob as
cinzas da lareira da noite anterior, mas quase sempre muito agudo, pulsando
em seus atos e tingindo as coisas de uma duradoura distância: você é a
sensação do desarraigamento e da estranheza, de não estar totalmente em
lugar nenhum, de não compartilhar as certezas de pertencer a alguma coisa,
essas certezas que para outros parecem tão naturais ou tão fáceis, a
segurança com que muitos se acomodam ou possuem, ou se deixam
acomodar ou possuir, dando como óbvia a firmeza do chão em que pisam, a
solidez das próprias ideias, a duração futura de suas vidas. Você é sempre
um hóspede que não tem certeza de ter sido convidado, um inquilino que
teme ser expulso, um estrangeiro a quem falta um documento para
regularizar sua situação, um garoto gordinho e baixinho entre os fortes e os
brutos do pátio da escola, o rapaz lento de pés chatos entre os soldados do
quartel, o efeminado e retraído entre os agressivamente machos, o aluno-
modelo que por dentro morre de solidão e vergonha e gostaria de ser um
desses bagunceiros da classe que caçoam dele, o pai de família
embalsamado de tédio e rancor conjugal que olha de soslaio as mulheres
enquanto passeia de braço dado com a sua num domingo de tarde, por uma
rua de sua cidade do interior, o funcionário interino que não consegue um
contrato fixo, o preto ou o marroquino que pula de um barco clandestino
numa praia de Cádiz e, encharcado e morto de frio, adentra de noite num
país desconhecido, fugindo dos faróis e das lanternas dos policiais da
Guardia Civil, o republicano espanhol que cruza a fronteira da França em
janeiro ou fevereiro de 1939 e é tratado como um cachorro ou um leproso e
enviado a um campo de concentração, a uma praia selvagem, trancado
numa geometria sinistra de barracões e cercas de arame farpado, a
geometria e a geografia natural da Europa desses anos, desde as praias
infames de Argelès-sur-Mer onde se amontoam como gado os republicanos
espanhóis até os últimos confins da Sibéria, de onde regressou viva
Margarete Buber-Neumann para ser enviada, não à liberdade, mas ao
campo alemão de Ravensbrück.
Você é o que não sabe que poderia ser se fosse posto para fora de sua
casa e de seu país, se fosse preso por uma patrulha da Gestapo enquanto
lançava panfletos ao amanhecer numa rua de Bruxelas e o pendurassem
num gancho preso às algemas que prendem suas mãos às suas costas, de
modo que quando se levanta a corrente e seus pés saem do chão e você
ouve o ruído das articulações do seu braço se desconjuntando, se fosse
trancado num vagão de gado onde há outras quarenta e cinco pessoas e
tivesse de passar ali dentro cinco dias inteiros de viagem, e escutasse de dia
e de noite o choro de uma criança de colo que a mãe não pode amamentar
nem calar e você tivesse de lamber o gelo que se forma nos interstícios das
tábuas do vagão, porque nos cinco dias não se distribui alimento nem água,
e quando afinal a porta se abre numa noite gelada você vê à luz dos
refletores o nome de uma estação que nunca viu nem escutou antes e que
nada lhe sugere, só uma forma aguda de terror, Auschwitz. Ninguém sabe
de antemão se vai ser covarde ou corajoso quando chegar a hora, disse-me
meu amigo José Luis Pinillos, que numa vida remota, quando era um rapaz
de vinte e dois anos, lutou com uniforme alemão na frente de Leningrado: a
gente não sabe se, quando vir chegar o inimigo, pulará para cima dele ou
ficará paralisado, branco como um cadáver, literalmente cagando-se pelas
pernas abaixo. Não sou quem eu era na época, e estou muito longe das
ideias que para lá me levaram, mas tem algo que sei e aprecio saber, sei que
fui insensato e temerário, mas não fui covarde, e sei também que não é
mérito meu ter sido assim, pois outros o foram, inclusive alguns que
bancavam os valentões antes que começassem a zunir os disparos. Mas
também estou vivo, e outros morreram, valentes ou covardes, e muitas
noites, quando não consigo dormir, lembro-me deles, creio que voltam para
me pedir que não os esqueça, dizer que existiram.
Você não sabe o que teria sido, o que poderia ser, mas sabe o que de um
modo ou de outro sempre foi, visivelmente ou em segredo, na verdade e
também nos devaneios da imaginação, embora talvez não aos olhos dos
outros. E se você fosse de fato o que os outros percebem, e não o que você
imagina ser, tal como não é quem você vê no espelho, assim como a sua voz
não soa como você a escuta? Hans Mayer, nacionalista austríaco, filho de
mãe católica, ele mesmo agnóstico, apaixonado por literatura e filosofia,
vestindo nos dias de festa a calça curta com peitilho e as meias três-quartos
do traje folclórico, louro, de olhos claros, compreendeu que era judeu não
porque seu pai fosse, nem porque algum traço físico ou costume ou crença
religiosa determinassem essa filiação, mas porque outros decretaram que
ele era, e a prova indelével de seu judaísmo acabou sendo o número de
prisioneiro tatuado no antebraço. Em seu quarto de Praga, na casa de seus
pais, em seu escritório da companhia de seguros contra acidentes de
trabalho, nos quartos dos sanatórios, no quarto do hotel da cidade
fronteiriça de Gmünd onde aguardava a chegada de Milena Jesenska, Franz
Kafka inventou antecipadamente o culpado perfeito, o réu de Hitler e de
Stahn, Josef K., o homem condenado, não porque tenha feito alguma coisa,
ou porque tenha se distinguido por qualquer coisa, mas porque foi
designado culpado, e não tem defesa por não saber qual é a acusação, e,
quando vão executá-lo, em vez de revoltar-se acata mansamente a vontade
dos verdugos, inclusive com vergonha de si mesmo.
Você pode acordar uma bela manhã na hora ingrata do trabalhador que
madruga e descobrir com menos estranheza do que vergonha que se
transformou num enorme inseto, pode entrar no café de todos os dias
achando que nada mudou em você nem no mundo exterior e comprovar no
jornal que já não é quem pensava ser e não está a salvo da perseguição e da
infâmia. Você pode chegar ao consultório do médico achando-se
invulnerável à morte, titular de um tempo de vida praticamente ilimitado, e
sair meia hora depois sabendo que tem algo que o afasta e o separa dos
outros, embora ainda ninguém possa perceber no seu rosto, algo que, ao
contrário deles, que se imaginam eternos, você carrega consigo, dentro de
si, pela mesma rua por onde veio tão despreocupado, uma sombra que eles
não veem e na qual não pensam, embora ela também os ronde e os espere.
Você é o médico que aguarda na penumbra de seu consultório o paciente a
quem deve dar a notícia de sua doença, e teme o momento da chegada e o
das palavras neutras necessárias, mas sobretudo você é o outro, o doente
que ainda não sabe, que ainda vem tranquilamente por uma rua habitual
matando tempo porque chegou cedo à hora marcada, folheando um jornal
que acaba de comprar e que ficará esquecido na mesinha da sala de espera,
um jornal com uma data igual a qualquer outra na sucessão dos dias e que,
contudo, marcará a fronteira, o antes e o depois, o último dia de uma vida e
o começo de outra em que você já não pode ser o mesmo, em que se
lembrará de quem foi até esse momento como de alguém mais distante de
você do que um desconhecido.
Você é quem sobe a escada com o jornal debaixo do braço, quem por
pouco não esqueceu a hora da consulta, e quase a desmarcou, de tão trivial
parecia a prescrição dos exames, o resultado, você é quem empurra a porta
do consultório e dá seu nome à secretária, sem saber que esse nome já não
designará a mesma pessoa, você é quem se acomoda num sofá da sala de
espera e olha o relógio sem saber que está marcando os últimos minutos de
sua antiga vida, quem ainda imagina que possui um patrimônio intacto de
tempo futuro, virtualmente ilimitado, uma garantia de vigor e saúde. Você
olha o relógio, cruza as pernas, abre o jornal, no consultório de um médico
ou num café de Viena em novembro de 1935, e então acontece algo que vai
mudar para sempre a sua vida, expulsá-lo da normalidade e do país aos
quais você imaginava pertencer, e nos quais de repente você sabe que é
estrangeiro. Você é o hóspede de um hotel que uma noite acorda com um
acesso de tosse e de repente cospe sangue.
No jornal você lê as leis de pureza racial que acabam de ser
promulgadas em Nuremberg e descobre que, mesmo sem parecer nem ter
pensado ou desejado um dia, você é um judeu e está fadado à perseguição e
ao extermínio. A secretária aparece sorrindo na porta da sala de espera e diz
que o doutor já está pronto para recebê-lo, e quando você se levanta para
segui-la deixa sobre a mesa o jornal que não começou a ler, e ao sair do
consultório, transformado em outro, já não se lembrará de apanhá-lo. Um
dia, ao acordar, Gregori Samsa se viu transformado num enorme inseto. As
vezes eu cruzava nas ruas da cidade que imaginava ser a minha com judeus
pobres emigrados do Leste, com seus abrigos compridos de brilho
gordurento e seus chapéus pretos, nas têmporas os cachos muitos suados, e
eles me davam certa repugnância, e eu me sentia aliviado por não ser igual
a eles, não ter nenhuma semelhança com aquelas figuras obstinadamente
singulares e arcaicas que se moviam pelas ruas desertas de Viena tal como
pelas aldeias da Polônia, da Galícia ou da Ucrânia das quais emigraram.
Ninguém me confundirá com um deles, pensava, ninguém impedirá a
minha entrada num parque ou num café, nem fará caricaturas grosseiras na
imprensa marrom que publica diariamente calúnias e diatribes contra os
judeus. Mas agora sei que mesmo se meu aspecto exterior não permite
adivinhar, mesmo se tenho cara de saúde e ar de respeitabilidade, estou tão
marcado quanto eles. Você é o que outros veem em você, e transfigura-se
diante dos olhos deles, e o homem saudável e louro que lê o jornal num café
de Viena, numa manhã de domingo, vestindo calça curta e meias três-
quartos e peitilho tirolês, e será muito breve, aos olhos do garçom que o
serviu tantas vezes, tão repulsivo como o judeu pobre e ortodoxo que é
humilhado, por diversão, pelos jovens de braçadeiras vermelhas e camisas
pardas, e você viajará com ele num vagão de gado e acabará tendo
exatamente o mesmo ar de cadáver ambulante nos lamaçais do campo de
extermínio, vestindo agora o mesmo boné e o mesmo uniforme listrado e
compartilhando no final a mesma morte por asfixia, a escuridão e o pânico
na câmara de gás. Você é o que não sabia e o que talvez o médico tenha
adivinhado ao vê-lo pela primeira vez, com seu olhar especialista em
elucidar o que ainda permanece secreto, o médico que brinca com uma
concha branca entre os dedos e segura também discretamente o mouse do
computador, procurando no arquivo os dados que confirmam a sua opinião,
a condenação segura, o nome que nenhum dos dois pronuncia. Quando você
chega à rua, depois de uma hora no máximo, de início ofuscado pelo sol,
pois seus olhos se habituaram à penumbra do consultório, a cidade já não é
a mesma que pensava conhecer, e agora os homens e as mulheres que
cruzam com você já não são seus semelhantes, e até a textura da realidade
mudou, embora superficialmente permaneça idêntica, tal como o seu rosto e
o seu aspecto geral são os mesmos quando você os vê de soslaio no espelho
de uma vitrine. Você anda pela cidade que já não é sua com uma sensação
de amargo despertar, de ter aberto os olhos para a luz estranha do
amanhecer e descoberto com menos assombro do que vergonha que se
transformou em algo inusitado, num grande inseto, num doente, em alguém
que sabe que vai morrer; mas a sensação também é a de estar sonhando, a
de se mover no interior de um pesadelo, mais sinistro porque todas as coisas
que aparecem nele são as coisas normais, e os lugares de cada dia, e a luz é
a de uma manhã ensolarada em Madri. Você anda por uma calçada familiar
de Berlim pisando nos vidros das vitrines apedrejadas durante a noite,
cheirando a gasolina com que foram queimadas as lojas dos seus vizinhos
judeus. E agora cai sobre você, retorna inundando-o do mais distante
passado, o sentimento da estranheza e da distância, a suspeita amarga e
depois confirmada de não pertencer ao mesmo mundo, à normalidade dos
outros, e junto com a estranheza e a distância, inseparável delas, volta ou
chega o medo, não o desagrado abstrato diante da ideia de morrer, mas um
princípio de vertigem ou de fragilidade que estremece todo o seu corpo,
enfraquece ligeiramente os seus joelhos, o pânico diante da iminência da
morte, que o separa dos outros, que o isola enquanto você caminha agora
mesmo como por uma cela invisível, enquanto passa perto da mesma banca
onde comprou, na vinda, o jornal que só agora se lembra de ter deixado
entre as revistas da sala de espera, aberto e não lido, o jornal de folhas
grandes presas por um bastidor de madeira envernizada que o garçom do
café recolhe da mesa junto com uma xícara vazia e um cinzeiro com
guimbas.
Depois você se lembrará das manchetes, a foto do chanceler Hitler num
estrado de Nuremberg, gesticulando diante de uma panóplia de bandeiras e
águias, as letras grandes que anunciavam o seu futuro destino, que
atribuíam a você uma identidade de empesteado, ainda ignorada por
qualquer pessoa que cruzasse com você nessa cidade em que desde há
pouco tempo você sabe que é um estrangeiro, embora ainda não o obriguem
a usar uma estrela amarela na lapela, ou uma braçadeira branca com uma
estrela azul. De agora em diante você andará pela cidade identificando os
seus semelhantes sem que eles saibam e desviando o olhar para que a
vergonha e o remorso não oprimam o seu coração, ainda fingindo, enquanto
lhe for possível ou permitido, que você pertence ao reino dos outros, os
bons cidadãos arianos que não têm nada a temer e breve começarão a negar-
lhe o cumprimento na escada ou a fingir que não o veem, os de linhagem e
sangue limpo, fortalecidos pela convicção de serem saudáveis, certos de
que estão a salvo, de que nunca figurarão na lista dos possíveis doentes e
vítimas.
Você é Jean Améry vendo uma paisagem de prados e árvores pela janela
do carro que o leva preso ao quartel da Gestapo, você é Evgenia Ginzburg
ouvindo pela última vez o ruído peculiar da porta de sua casa sendo
fechada, e nunca voltará a essa casa, você é Margarete Buber-Neumann que
vê a esfera iluminada de um relógio na madrugada de Moscou, minutos
antes de a caminhonete levá-la presa para a escuridão da prisão, você é
Franz Kafka descobrindo com espanto, estranheza, quase com alívio, que o
líquido quente que está vomitando é sangue. Você é quem olha sua
normalidade perdida do outro lado do vidro que o separa dela, quem entre
as frestas das tábuas de um vagão de deportados olha as últimas casas da
cidade que você acreditou ser sua e à qual nunca voltará.
Narva
Ao voltar para casa procurei nas enciclopédias esse nome que nunca
tinha ouvido antes, mas que na imaginação já vinha repetindo durante o
trajeto no táxi, e que de início não tinha escutado bem, porque meu amigo
não fala muito alto e sua voz às vezes se perdia na barulheira do restaurante
onde fomos almoçar. É novembro e as tardes já são muito mais curtas, e o
horário de inverno, ainda tão recente, traz de súbito um anoitecer
antecipado, um crepúsculo que nas ruas mais estreitas e escuras estava
quase começando quando nos despedimos, na porta do prédio onde ele
mora, um edifício de apartamentos modernos que de certa forma não
combina com seu temperamento nem com sua idade, nem com a vida que
teve. Quem poderia adivinhar a vida desse homem olhando-o um instante
ao cruzar com ele na rua ou na entrada desse prédio anônimo, como eu teria
cruzado se não o conhecesse: um velho vigoroso, com olhos pequenos e um
olhar vivíssimo, mas já um tanto curvado, de cabelo muito branco, liso,
ralo, como o de Spencer Tracy na velhice, ou como o de meu avô paterno,
que também esteve numa guerra, mas evidentemente não como voluntário,
e talvez não tenha chegado a saber muito bem por que o levavam, nem
entendido a magnitude do cataclismo que arrastou sua vida, da qual a
minha, se paro para pensar, é em parte um eco distante.
Meu amigo tem oitenta anos, quase a idade de meu avô paterno ao
morrer, mas não pensa na morte, diz-me, tal como não pensava quando
estava na frente russa no inverno de 1943, um sargento muito jovem que
breve seria promovido a tenente por méritos de guerra e ganharia uma Cruz
de Ferro. Não se pensa na morte quando se tem vinte anos e a todo instante
se está prestes a morrer, quando se avança com uma pistola na mão pela
terra de ninguém e de repente se recebe na cara e no uniforme jorros de
sangue de alguém que ia ao seu lado e acaba de ser atingido por uma rajada
de metralhadora, e no instante seguinte é um despojo de vísceras jogado na
lama: não se pensa na morte, mas no frio que faz, ou no rancho que custa a
chegar, no sono, porque na guerra o pior era o frio e a falta de sono, diz meu
amigo, e bebe um gole curto e reflexivo de vinho, sentado na minha frente,
mais velho"que qualquer dos fregueses do restaurante, todos homens, quase
idênticos em suas idades e em seus ternos de executivos médios, alguns
conversando num inglês escasso mas desenvolto, nesse tom alto demais que
é costume adotar num local público quando se fala no telefone celular.
Conversas se cruzam com a nossa, apitos e musiquinhas de telefones
celulares, ruídos de pratos e copos, e tenho de me esforçar para não perder
uma parte das palavras que diz meu amigo, inclino-me para ele por cima da
mesa, especialmente quando fala um nome estrangeiro, o de um general
alemão ou de um setor russo da frente, o nome dessa cidade cuja existência
até então eu desconhecia, uma das tantas cidades do mundo das quais
jamais se ouvirá falar, assim como tanta gente não sabe nem o nome de
minha pequena cidade natal, tão prolixamente real para mim, tão minuciosa
em sua existência, em seu total de vivos e mortos, de vivos que já não vejo
quase nunca e de mortos que vão ficando cada vez mais para trás no
esquecimento, embora ocasionalmente voltem de repente, como voltou meu
avô paterno, falecido há mais de catorze anos.
Lembro-me da frase de Pascal, mundos inteiros nos ignoram. E no
entanto essa cidade estrangeira vai assumindo uma presença em minha
imaginação, graças ao meu amigo, que pronuncia seu nome num restaurante
de Madri: a primeira vez que a mencionou, não prestei atenção, porque
estava mais interessado na história que ele ia contando, e depois tornou a
dizê-lo e não entendi, talvez porque um fragmento de conversa na mesa ao
lado ou o sinal tão agudo de um telefone celular nos perturbaram. Portanto,
interrompi seu relato e voltei a perguntar o nome da cidade, da qual até
então só tinha entendido que fica na Estônia. Mas quem pode imaginar
como é a Estônia, o que há por trás desse nome, dentro dele, como no
interior daquelas pequenas redomas de vidro com paisagens nevadas que
havia antigamente nas casas, com a neve caindo quando eram sacudidas: a
neve também cai no inverno dessa cidade estoniana, uma cidade pequena,
diz meu amigo, no interior, à beira de um rio com o mesmo nome dela,
Narva, o rio Narva, por onde desciam grandes blocos de gelo, diz-me,
lembrando-se de repente, e esse pormenor resgatado permite-lhe saber que
foi no início do inverno que ele chegou à cidade.
Depois voltei de táxi para casa, da ensolarada vastidão outonal do oeste
de Madri até as ruas já sombrias do centro, nas quais a noite está mais perto,
a noite e também o frio um tanto úmido dos fins de tarde no inverno, névoa
e umidade e cheiro de bosque no caminho percorrido à beira de um rio que
está começando a congelar e desemboca no Báltico treze quilômetros mais
longe da cidade que leva seu nome. Ia num táxi por Madri mas viajava
pelas lembranças e pelos lugares que meu amigo tinha me relatado, nos dez
ou quinze minutos da corrida cabiam tantos anos distantes como na vida de
alguém, assim como na Madri que eu mal olhava pela janela também podia
ver a capital escura e em ruínas a que meu amigo retornou após suas
aventuras na guerra da Europa, já descrente, mas ainda não de todo
desiludido, guardando com pudor e orgulho sua Cruz de Ferro, que ainda
conserva como um talismã da juventude já longínqua, quase improvável na
distância.
Ouvia sem prestar atenção as vozes do rádio do táxi e a diatribe do
taxista contra alguma coisa, contra o governo ou contra a situação do
trânsito, mas pensava nesse nome, soletrava-o sem dizê-lo, fixava-me o
objetivo de procurá-lo na Enciclopédia Britânica quando chegasse em casa,
Narva, onde meu amigo esteve em 1943 e aonde voltou trinta anos depois
com a intenção algo impraticável de encontrar alguém, uma mulher que
tinha visto uma só vez, numa noite, durante um baile para oficiais alemães a
que foi convidado por ser um dos poucos espanhóis da Divisão Azul que
falava alemão, e também por gostar de Brahms e, em determinado
momento, ter cantarolado um trecho melódico de sua Sinfonia n2 3: a
guerra era feita de acasos assim, de correntes de casualidades que
arruinavam ou salvavam uma pessoa, e sua vida podia depender, não de seu
grau de heroísmo, cautela ou astúcia, mas de se abaixar para amarrar uma
bota um segundo antes que chegasse uma bala ou um estilhaço de metralha
no ponto do ar onde tinha estado sua cabeça, ou de trocar com um
companheiro seu turno numa patrulha de exploração da qual ninguém
voltaria vivo. Ele tinha se salvado assim muitas vezes, escapando por um
triz da desgraça que se abatia sobre outros, por casualidades, por frações de
segundo: quem sabe se ao ir para essa cidade da Estônia com uma
permissão de dois dias também não tinha evitado uma ocasião segura de
morrer, se a melodia tão querida de Brahms, na época um dos nomes
sagrados sobre os quais ele fundava seu amor pela Alemanha, não tinha
mudado sutilmente o curso de sua vida, não só preservando-a como
obrigando-o também a começar a abrir os olhos, a descobrir um espanto
para o qual nada o havia preparado, e que lhe deixou marca muito mais
duradoura que a vertigem insensata da coragem e do perigo.
Tinham feito uma inspeção no nosso setor e o comandante do meu
batalhão me pediu que fosse como guia dos oficiais alemães. Acompanhei-
os durante vários dias, e embora os alemães não confiassem muito em nós,
um deles, um capitão quase da minha idade, simpatizou comigo, e tudo
porque eu gostava de Brahms, olhe o tipo de coisa que acontecia na guerra,
íamos andando calados, os três oficiais alemães e eu, perto de um parapeito
entre dois ninhos de metralhadoras, num desses dias calmos em que, pelo
visto, nada se moveria na frente de batalha, e sem me dar conta eu
cantarolava. Então o capitão começou a cantarolar a mesma melodia, mas
não de qualquer jeito, e sim com todas as suas notas, e foi andando mais
devagar, para melhor usufruir a lembrança da música. Meu amigo também
cantarola, de boca fechada e revirando os olhos, e consigo acompanhar a
música muito mais claramente do que diversas palavras suas, apesar do
barulho do restaurante, das vozes e dos talheres e dos telefones celulares:
logo a reconheço porque também gosto muito dela, uma melodia poderosa e
sentimental que lembra música de cinema, uma dessas músicas de cinema
que já existiam antes que o cinema existisse. Finalmente me deu o estalo,
antes que algum alemão me dissesse, o terceiro movimento da Sinfonia nº 3
de Brahms. Os outros dois oficiais tinham ficado para trás, um apontando
para o outro, talvez se reprovando alguma deficiência nas defesas
espanholas, e o capitão, ao meu lado, revirava os olhos e balançava
levemente a cabeça, e com a mão direita parecia desenhar a música no ar, o
dedo indicador enluvado de preto era a batuta com que dirigia a si mesmo, e
me mostrava as linhas onduladas da melodia, a repetição de um tema
tristíssimo, que parece ao mesmo tempo a expressão máxima da dor e seu
consolo mais misericordioso. Contou-me que na vida civil era professor de
filosofia num Gimnasium e tocava clarinete na orquestra de sua cidade e
num conjunto de câmara. Mencionei então o quinteto para clarinete de
Brahms e o alemão se emocionou chegando às raias de uma afetação um
tanto embaraçosa, mas essas não foram as palavras exatas que meu amigo
disse: de repente notei, diz ele, que tinha jeito de bicha, como vocês dizem
agora, apesar do uniforme e de ser alto e forte, disse-me que, quando tocava
esse concerto, em certos trechos custava a conter as lágrimas, ficava sem
fôlego para continuar soprando o clarinete. Era sempre como se tocasse
essa música pela primeira vez, e cada interpretação era mais profunda, mais
difícil, mais triste, com todo o peso da vida de Brahms. Só havia outro
quinteto para clarinete que ele apreciava tanto como o de Brahms: logo
adivinhei e disse, o de Mozart, e a emoção da música recordada e da
cumplicidade estabelecida entre nós animou-o a dizer, baixando o tom de
voz, que também gostava muito de Benny Goodman, embora na Alemanha
já fosse impossível encontrar discos seus. Mas então os outros oficiais se
juntaram a nós, e o capitão mudou de cara, voltou a ficar tão rígido como
antes, tão militar quanto os outros, e não tornou a me falar de música, quase
não me dirigiu a palavra até nos despedirmos. Eram muito estranhos
aqueles alemães, diz meu amigo, nunca se sabia o que passava pela cabeça
deles, o que estavam pensando ou sentindo quando olhavam para alguém
com aqueles olhos tão claros, aquela dedicação e aquela intensidade que
punham em tudo. O fato é que semanas mais tarde o comandante de meu
batalhão me chamou para dizer que eu teria uns dias de folga, porque os
oficiais alemães que acompanhei como guia e intérprete tinham ficado
muito contentes comigo e pedido que eu fosse autorizado a ir a uma festa
nessa cidade da retaguarda, Narva. Na estação fui recebido pelo capitão
louco por Brahms e Benny Goodman. Lembro-me de que entramos na
cidade por uma estrada perto de um rio, à beira de um bosque, e de que
ainda havia um pouco de sol, se bem que já começasse a fazer muito frio.
Quem não viveu as coisas exige detalhes que, para o narrador
verdadeiro, não têm importância: meu amigo fala do frio e dos blocos de
gelo boiando rio abaixo, mas minha imaginação acrescenta a hora e a luz da
tarde, a mesma que havia na rua quando saímos do restaurante, e os pesados
capotes cinza com lapelas largas dos uniformes alemães, assim como a
envergadura tão desigual dos dois homens, o espanhol meio mirrado, pelo
menos em comparação com o capitão apaixonado por clarinete, os dois de
luvas pretas, quepes de viseiras pretas, golas levantadas contra o frio,
falando de música, lembrando passagens tristes de Brahms e Mozart,
canções de George Gershwin interpretadas pela orquestra de Benny
Goodman, que havia anos não tocava nas estações de rádio alemãs.
Então vi algo que jamais esqueci. Meu amigo deixa na mesa o garfo e a
faca, toma um gole de vinho com um desses gestos vivos e meio furtivos
com que vou me acostumando, tão estranhos num homem de oitenta anos,
essa vivacidade como de quem tem na vida muitas tarefas pela frente,
coisas para aprender, livros a resenhar para revistas especializadas em sua
profissão, na qual ele é uma eminência internacional, compromissos,
viagens ao estrangeiro. Fica muito sério e fala me fitando com seus olhos
pequenos e emboscados debaixo das sobrancelhas brancas e das rugas das
pálpebras, mas não creio que esteja me vendo, ou que esteja totalmente no
mesmo lugar e no mesmo tempo que eu, num restaurante em Madri, com
barulho de vozes e apitos de telefones celulares. Vi chegando em nossa
direção um cortejo de gente que enchia toda a largura da estrada, só
homens, alguns quase crianças e outros tão velhos que andavam
cambaleando e se apoiavam mutuamente. Iam andando ordenadamente,
juntinhos mas em formação, todos calados, cabeças baixas, como nesses
enterros que víamos passar pelas ruas estreitas dos vilarejos, e os que
encabeçavam a marcha seguravam alguma coisa na frente deles, um pau
horizontal como essas cancelas dos postos fronteiriços, do qual pendia um
rolo de arame farpado que devia arranhar as pernas deles quando andavam.
Ouviam-se os passos e o ruído do arame ao arrastar no chão, e o dos fuzis
dos guardas ao roçarem em seus uniformes. O alemão e eu também ficamos
calados e nos afastamos para um lado da estrada. Havia muitos homens, não
sei quantos, talvez algumas centenas, vigiados por uns poucos soldados SS,
e a cada cinco ou seis fileiras levavam outras barras horizontais com rolos
de arame farpado, imagino que para agarrar quem quebrasse a formação ou
tentasse fugir.
Nunca tinha visto rostos tão magros e tão pálidos, nem mesmo os dos
prisioneiros russos, nem aquele jeito de andar desses homens, marcando o
passo mas arrastando os pés, olhando para o chão e de ombros encolhidos.
Lembro-me de um velho de barba comprida e muito branca, mas sobretudo
de um jovem, que ia na primeira fila, no meio, muito alto, amarelo, com
cara de morto, com um desses abrigos compridos que se usavam na época e
um chapéu azul-marinho, é como se o estivesse vendo, assim como vejo
você, com um pincenê, e o rosto muito escuro de barba, nem disso me
esqueci, não porque estivesse havia dias sem se barbear, mas por ter a barba
muito cerrada, mais escura ainda em contraste com a palidez do rosto. Foi o
único que levantou um pouco a cabeça, mas não muito, e ficou me olhando,
passava ao meu lado e ia se virando para mim, só para mim, torcendo o
pescoço tão comprido, com o gogó muito saliente, e não olhava para o
alemão. Virou a cabeça e continuou me olhando entre as cabeças encolhidas
dos outros, como se quisesse me dizer alguma coisa só com os olhos, que
pareciam maiores no rosto tão macilento e tão magro.
Eles continuariam a escutar o ruído multiplicado e monótono dos passos
quando a coluna de prisioneiros os deixou aos poucos para trás,
confundindo-se com o rumor da correnteza do rio. Os dois homens ficaram
calados, o capitão alemão e o espanhol recém-promovido a tenente, os dois
parecendo iguais por causa dos capotes cinza e dos quepes com abas pretas
que tapavam seus olhos. Já teria desaparecido a luz do sol e o frio estaria
mais intenso e mais úmido, e dentro do bosque, mais para longe da estrada,
a noite já estaria avançando, como no fundo de certos becos do centro de
Madri quando ainda há sol nas janelas dos edifícios mais altos, no azul puro
e gelado de novembro.
Meu amigo, intrigado com o que tinha visto, perguntou ao alemão quem
eram aqueles homens, e o outro ficou ao mesmo tempo surpreso e achando
graça, surpreso com sua ignorância, achando graça de sua ingenuidade de
oficial jovem, quase recém-chegado à guerra, de espanhol rude ainda não
totalmente digno de ser admitido na superior fraternidade alemã, apesar da
pureza de seu sotaque, de sua coragem na frente de batalha e de sua
devoção a Brahms: Juden!, meu amigo se lembra de ter ouvido do alemão,
que ao pronunciar essa palavra mostrou no rosto, por alguns segundos, uma
expressão inusitada, como se o fizesse participar de um segredo picante, de
uma piada grosseira de quartel. Ouço, agora repetida, essa palavra, Juden, e
meu amigo imita o tom e a expressão de sarcasmo e desprezo do alemão,
que lhe deu uma cotovelada e piscou um olho, novamente ambíguo, tal
como ao rememorar a melodia de Brahms fingindo roçá-la com as pontas
dos dedos, mas agora com uma expressão vulgar, desconhecida, radiante,
com a comicidade reles típica das bebedeiras ou dos bordéis.
Na época, eu não sabia de nada, mas o pior é que me negava a saber,
não via o que estava diante dos meus olhos. Eu tinha me alistado na Divisão
Azul porque acreditava fanaticamente em tudo o que nos contavam, não
quero esconder nem quero me desculpar, acreditava que a Alemanha era a
civilização, e a Rússia, a barbárie, as estepes da Ásia de onde tinham vindo
durante séculos todos os invasores selvagens da Europa. Ortega tinha dito: a
Alemanha é o Ocidente, e nós acreditávamos porque ele dizia.
A Alemanha era a música que me emocionava, o alemão era o idioma
da poesia e da filosofia, do direito e da ciência. Você não sabe com que
paixão estudei alemão em Madri, antes da nossa guerra, como me
envaidecia quando os alemães para quem servia de intérprete na Rússia
elogiavam meu sotaque. Mas essa palavra alemã, dita nesse tom, Juden, foi
como um chiado desagradável, o aviso de alguma coisa que até então eu
tinha me negado a ouvir, embora certamente tivesse ouvido muitas vezes, já
lhe disse que não quero me desculpar, não posso dizer o que muitos
disseram depois, que não sabiam, que não chegaram a saber de nada. Não
sabíamos porque não estávamos dispostos a saber. Mas, mesmo que
conseguisse me esquecer do tom do oficial alemão dizendo Juden e da cara
daquele homem de óculos torcendo o pescoço para continuar me olhando na
estrada de Narva, eu já não tinha a possibilidade de continuar sendo
inocente, ou de me julgar inocente. A gente pode se esforçar em não saber,
pode fechar os olhos e não querer abri-los, mas, uma vez que abre, o que os
olhos viram já não se pode apagar, não se pode dar marcha a ré no tempo e
fazer como se não existisse o que se escutou.
Primeiro, foi essa palavra, Juden. Mas depois, menos de duas horas
mais tarde, encontrou aquela mulher no baile, uma ruiva lindíssima, de
olhos verdes, ela entrou no salão cheio de gente, barulho, música, e ele logo
a distinguiu tão nitidamente como se não houvesse mais ninguém, e no
primeiro olhar que trocaram soube que não era alemã, assim como ela
adivinhou que, apesar do uniforme, ele não parecia nada com os outros
militares, não olhava nem andava como eles. A cidade deveria estar no
escuro, quase sem luzes nas esquinas, uma cidade báltica no inverno da
guerra, ocupada pelo exército alemão, submetida ao toque de recolher,
atravessada por um rio que muito breve começará a congelar, e do qual sobe
uma neblina que molha os paralelepípedos e os trilhos dos bondes e dá mais
densidade à luz dos faróis dos veículos militares.
Mas meu amigo não me conta como era o lugar onde se passava o baile,
e eu, sem perguntar, vou imaginando enquanto o escuto falar, talvez um
desses edifícios oficiais que vi nos países nórdicos, colunas brancas e
estuques de um amarelo pálido: uma praça de calçamento de pedra, com os
paralelepípedos brilhando na umidade da noite, atravessada por trilhos e
cabos de bondes, e no fundo aquela mansão particular requisitada ou o
prédio público, o único onde há janelas iluminadas, e de onde a música
irradia para a praça com o mesmo brilho inusitado da luz elétrica nos
grandes lustres barrocos do salão de baile. Luz repentina e ofuscante na
cidade escura, música no silêncio atemorizado das ruas.
Para quem vinha da frente de batalha, aquele lugar teria uma irrealidade
resplandecente como de miragem cinematográfica, a raridade de uma
normalidade civil esquecida que ainda existe embora o soldado mal consiga
recordá-la. Mas meu amigo continua contando, tão alheio a esse tipo de
detalhe como ao sabor da comida que belisca sem se importar com as
gargalhadas dos executivos de estabelecimentos bancários que, na mesa ao
lado, festejam alguém ou brindam em espanhol e em inglês o êxito de uma
operação financeira. Ele apaga tudo, o salão de baile de 1943 e o restaurante
deste instante, o som da orquestra e dos telefones celulares, o brilho dos
galões nos uniformes alemães e o estalo das botas pretas sobre o soalho
reluzente, os saltos batendo com força no chão à guisa de cumprimento, a
humilhação que deve ter sentido ao se encontrar entre tantos desconhecidos,
quase todos militares de patente mais alta que a dele. A única coisa que
permanece em seu relato é a figura da mulher com quem dançou, e que nem
sequer tem nome na sua lembrança, ou talvez meu amigo o tenha dito e não
consegui escutar, e agora estou tentado a inventar um nome para ela, Gerda
ou Grete, ou Anicka, Anicka chamava-se uma mulher que foi amiga de
Milena Jesenska no campo de extermínio.
Fixei-me nela assim que entrei no salão. Havia oficiais do exército e dos
SS, uniformes azuis da Luftwaffe. Entre todos aqueles militares eu era o
único não-alemão.
Talvez por isso a mulher tenha ficado me olhando quando passei perto
dela, assim como, antes, já tinha reparado que ela não era alemã. Uma ruiva
alta com um vestido decotado, de um tecido muito leve, meias de seda um
perfume no cabelo e na pele que eu gostaria de cheirar de novo antes de
morrer. Você ainda é muito moço e não sabe que há coisas que o tempo não
apaga. Quanto tempo se passou calcula mentalmente meu amigo, absorto,
com o sorriso agarrado a uma lembrança cuja doçura as palavras não
conseguem transmitir: cinquenta e seis anos, e era novembro, como agora, e
ele conserva intacta a sensação de abraçar a cintura dela reparando sob o
tecido na firmeza suave de um corpo mais desejável ainda após tanto tempo
sem mulheres.
Estava em pé, muito séria, perto de um homem corpulento, vestido à
paisana, com um terno vistoso de risca de giz, e pelo modo de falarem sem
se olhar tinham, ele e ela, um jeito de casal entediado. Meu amigo não me
explica se custou a vencer a timidez, se dançou com outras mulheres antes
de se aproximar dela, e como não está inventando uma história não tem
necessidade de episódios intermediários, de me dizer que fim tinha levado o
capitão que o acompanhava. Agora mesmo, em sua memória, está sozinho
com a mulher ruiva, como contra um fundo preto, e a mulher nem tem
nome, pois meu amigo o esqueceu ou não o entendi, e não quero atribuir-
lhe um, um nome de mulher que tivesse um destino idêntico ao que
certamente esperava por ela.
Dançavam e ela sussurrava em seu ouvido, inclinando-se um pouco
sobre ele, mas ao mesmo tempo olhando para outro lugar, com um ar
distraído de formalidade, como se estivessem num daqueles salões do
tempo em que os homens pagavam para dançar com as mulheres durante os
dois ou três minutos de uma canção. Tinha ido tão longe para encontrar essa
mulher, tinha atravessado toda a extensão da Europa e a devastação e a
lama da Rússia e lutado no cerco de Leningrado para tê-la nos braços e
apertá-la gradualmente contra sua cintura enquanto cheirava seu cabelo e
sua pele e escutava sua voz, só os dois, abraçados, entre todas as pessoas
que enchiam a pista de dança, apenas acompanhando a melodia, voltando a
se procurarem quando terminava uma música em que se viram obrigados a
dançar com outra pessoa. Porém, essa mulher na plenitude esplêndida dos
trinta e poucos anos não transparecia só simpatia ou desejo, mas também
desespero, uma forma de pânico que ele jamais presenciara, tal como jamais
abraçara um corpo igual ao dela, e esse pânico estava em seus olhos e em
sua voz e também no seu modo de apertar a mão do parceiro quando
deslizavam lentamente pela pista de dança, crispando os dedos, como
querendo sacudi-lo com uma urgência que no início ele imaginou ser
sexual, e que talvez também fosse parcialmente, embora parecesse um
desespero que tudo afogava e desalojava qualquer outro impulso que não
fosse o do medo, o de um instinto de sobrevivência matizado de remorso e
vergonha. Falava muito perto de seu ouvido, e ao mesmo tempo vigiava de
soslaio os casais próximos e nunca perdia de vista o homem vestido de
escuro, imóvel num canto do salão. Sorria-lhe, revirava os olhos, deixando-
se levar pela deliciosa e leve tonteira da música para dançar, mas suas
palavras não tinham nada a ver com a expressão tranquila e um tanto
fatigada de seu rosto, e sim com alguma coisa que havia no fundo de seus
olhos verdes, com o modo de suas unhas quase se cravarem no dorso da
mão dele.
— Você não é igual a eles, embora use o mesmo uniforme, tem de ir
embora daqui e contar o que estão fazendo conosco. Estão matando a todos
nós, um por um, quando eles chegaram a Narva éramos dez mil judeus, e
agora somos menos de dois mil, e nesse ritmo não duraremos mais além do
inverno. Não perdoam ninguém, nem as crianças, nem os mais velhos, nem
os recém-nascidos. Levam-nos de trem não sabemos para onde e ninguém
volta, só voltam os trens com os vagões vazios.
— Mas você está viva e livre, e eles a convidam para os bailes.
— Porque vou para a cama com aquele porco que estava comigo
quando você entrou. Mas quando se cansar de mim ou achar que é perigoso
ter uma namorada judia acabarei como os outros.
— Fuja.
— E para onde irei? A Europa inteira é deles.
— Como o convidaram, se ele não é militar?
— E que ele é o fornecedor de roupa e comida para o exército. Além
disso, compra por dez tostões as propriedades dos judeus.
— Você tem de voltar com ele esta noite?
— Esta noite, não. A mulher dele o está esperando. Dão um jantar para
uns generais.
— Vou acompanhá-la até sua casa.
— Você é um tanto audacioso.
— Amanhã à tarde devo voltar para a frente.
Queria continuar abraçado escutando-a, não podia admitir que ela se
separasse dele no final da dança, a não ser que, instantes depois, terminasse
a música que estava tocando e algum oficial alemão o afastasse educada e
firmemente para dançar a próxima com ela, que por prudência não se
negaria, porque o homem do terno escuro a vigiava de longe e talvez já
tivesse observado, aborrecido, que fazia muito tempo que ela não trocava de
par, e já tivesse adivinhado o que ela dizia ao ouvido desse jovem tenente
de aspecto tão pouco alemão apesar do uniforme. Tão forte quanto o desejo
era sua ânsia de protegê-la e a necessidade urgente de saber, e só temia a
grande escuridão daquilo que até então ignorara, a suspeita espantosa do
que era inacreditável e no entanto ele já não podia negar. Olhava ao redor as
caras vermelhas dos alemães, a elegância dos uniformes idênticos ao seu,
que lhe causara tanta excitação na primeira vez que o vestiu, e começava a
perceber um instinto de repulsa por algo monstruoso que estava muito perto
e contudo era invisível, tão invisível pelo menos como o pânico da mulher
que dançava com ele reclinando delicadamente a cabeça ao ritmo da música
e sorria revirando os olhos e cravando as unhas no dorso de sua mão,
repetindo baixinho as palavras que o meu amigo continuou escutando muito
depois na recordação, e que ainda voltam ao seu espírito nas noites em
claro, quando a lucidez excessiva da insônia e a escuridão povoam-se de
vozes e caras de mortos, todos os que conheceu naqueles anos da juventude,
a imensidão dos mortos sepultados e esquecidos em toda a extensão da
Europa. Parece-lhe, disse-me, que os mortos falam com ele, exigem que dê
testemunho do que viveram e sofreram, ele que sobreviveu, que só por
acaso, ou porque outros morreram em seu lugar, conseguiu salvar-se. Mas
de todas as caras da época lembra mais nitidamente a do homem de pincenê
que se virava para ele como querendo lhe dizer alguma coisa e a da mulher
com quem dançou, já não sabe quanto tempo, quantas músicas seguidas,
apaixonando-se por ela e sendo inoculado por seu terror e sua clarividência,
por seu fatalismo de vítima antecipadamente hipnotizada pelo caráter
inevitável do sacrifício: como seria sua voz, com que sotaque falaria
alemão. Agora, enquanto revivo isso escrevendo o que meu amigo me
contou, gostaria de inventar que a mulher ruiva era de origem sefardita, e
que lhe digo umas palavras em ladino, estabelecendo com ela, na longínqua
cidade da Estônia, no meio de tantos oficiais alemães, a cumplicidade
melancólica de uma pátria secretamente comum.
Mas não é preciso inventar nada, nem acrescentar nada, para que essa
mulher, sua presença e sua voz surjam entre nós, apareçam no restaurante
onde meu amigo e eu conversamos cercados de ruídos e gente, de uma
névoa densa de palavras, vapor de comidas, cigarros, telefones celulares.
Ele, que não quis nem conseguiu esquecê-la em mais de meio século,
legou-me agora essa mulher, de sua memória transferiu-a para a minha
imaginação, mas não quero inventar para ela uma origem nem um nome,
talvez nem tenha esse direito: não é um fantasma, nem uma personagem de
ficção, é alguém que pertencia à vida real tanto quanto eu, teve um destino
tão único quanto o meu, embora inimaginavelmente mais atroz, uma
biografia que não pode ser superada pela sombra bela e mentirosa da
literatura nem reduzida a um dado aritmético, ínfimo algarismo no número
imenso dos mortos.
Há cinquenta e seis anos me lembro dela, e sempre me pergunto se
conseguiu sobreviver, ou se morreu num daqueles campos a respeito dos
quais na época nada sabíamos, não porque funcionassem em segredo
absoluto, já que isso é impossível, seria como manter em segredo o
funcionamento da rede ferroviária de um país inteiro, mas porque não
estávamos dispostos a saber, e quando soubemos ainda não queríamos
acreditar no que já não se podia negar, porque era inacreditável, achávamos
que estava fora da ordem natural do mundo, e nos dávamos conta de que
nossa ignorância não nos tornava menos cúmplices nem menos culpados.
Voltei a Narva, trinta anos depois, quando viajei pela primeira vez a
Leningrado, para um congresso de psicologia organizado pela Unesco.
Custou muito, mas consegui que me dessem autorização para visitar a
cidade, embora tenham me imposto um guia soviético que não me deixou
sozinho nem um minuto. Agora o nome estava escrito na estação com
caracteres cirílicos, e já não existia o caminho perto do rio, porque tinham
construído um bairro inteiro com esses prédios horrorosos cor de cimento.
Você achará absurdo, e na época também achei, mas assim que cheguei a
Narva olhei todas as mulheres, com o coração na mão, como se fosse
possível encontrá-la, e reconhecê-la após trinta anos. Não procurava uma
mulher um pouco mais velha que eu, uma senhora de mais de sessenta anos,
mas a mesma jovem ruiva com quem dancei naquela noite, apaixonando-me
por ela a cada minuto que passava, morto de desejo, tão excitado que sentia
tonteira ao olhá-la e me envergonhava só de pensar que ela pudesse
perceber o que estava acontecendo comigo, ou que outra pessoa notasse,
apesar do tecido muito grosso da calça e da túnica de minha farda alemã.
O guia ou vigilante soviético olhava ostensivamente o relógio e fazia
cara de tédio, lembrava a ele que tinham de voltar logo para a estação, não
podiam perder o trem de volta a Leningrado, mas ele continuava
caminhando sem ligar para o outro, deixando-o alguns passos para trás,
rápido e meio encurvado, como andava quando saímos do restaurante,
olhando tudo com seus olhos pequenos e sagazes, comovido pela súbita
irrealidade do tempo, porque tinham se passado trinta anos e de repente, ao
dobrar uma esquina, reconheceu sem a menor dúvida a praça de calçamento
de pedra e o palácio onde se realizara o baile, os trilhos dos bondes, com a
mesma decrepitude suja da fachada do palácio, onde segundo o guia
funcionava a sede dos sindicatos estonianos. Não se lembrava de tantos
cabos pendurados de um lado a outro da praça, e é claro que não poderia ter
se lembrado da estátua gigantesca de Lênin que havia no meio, em torno da
qual circulavam os bondes com solavancos de sucata. Mas percebia o fio
gelado e úmido do ar, o cheiro do rio que não devia estar muito longe,
misturado com esse cheiro geral de repolho fervido e gasolina mal
queimada que lhe pareceu o cheiro indelével da União Soviética. Era
verdade que o tempo não existia: escutava os passos de centenas de homens
sobre a terra pisoteada de uma estrada e o roçar das pontas do arame
farpado, e um rosto magro e muito pálido se virava para ele, um olhar o
interpelava atrás das lentes de um pincenê, afastando-se muito devagar pelo
caminho e na distância dos anos, na distância invencível entre os que
morreram e os que se salvaram, os que agora estavam debaixo da terra e os
que andavam sobre ela com a leveza frívola de quem não sabe que em
qualquer lugar podem estar pisando em valas comuns e sepulturas sem
nome.
Que estranho ficar em pé no ponto do bonde, diante do palácio, e ver-
me como eu era trinta anos antes: porque não é que me lembrasse, diz meu
amigo, literalmente eu me via, como você vê alguém na rua, de supetão, e
custa a reconhecê-lo porque se passou muito tempo desde a última vez. Era
como estar vendo outra pessoa, tão jovem, tão diferente de mim, um tenente
de vinte e três anos com uniforme alemão, e sabendo no entanto que esse
desconhecido era eu mesmo, porque podia sentir o que ele sentia naquele
momento, a excitação e o medo da espera, o temor de que aparecesse seu
amigo, o capitão, e desconfiasse ou simplesmente lhe dissesse que tinha de
acompanhá-lo ao quartel onde pernoitariam. Antes de se separar dele para
dançar com um comandante dos SS ela tinha lhe dito que deixasse passar
uma meia hora e a esperasse do outro lado da praça, no abrigo do ponto do
bonde. Viu-a afastar-se entre os pares que dançavam, abraçada agora ao
homem de uniforme preto mais alto que ela, virando disfarçadamente a
cabeça para procurá-lo enquanto o outro lhe dizia alguma coisa. Tinha de
lhe dar tempo para que tratasse bem certos amigos de seu amante, o qual
não parara de observá-la e de vez em quando lhe fazia sinais secos e
precisos, para que se despedisse dele dizendo que não precisava de ninguém
que a acompanhasse até em casa, pois vivia ali perto, a dois pontos de
bonde. Não a deixarei sozinha nem um minuto, ele lhe tinha dito, não com
temeridade, mas com a mesma ausência de incerteza e medo com que às
vezes pulava uma trincheira sentindo-se imune às balas, exaltado e leve,
com uma pistola na mão, rouco de gritar ordens para os soldados que
avançavam atrás dele, pisando na lama e nos rolos de arame farpado e nos
cadáveres jogados em terra de ninguém. Não penso em deixá-la sozinha,
voltou a lhe dizer, quando a música que dançavam chegou ao fim e ela
tentou se soltar, porque o comandante dos SS esperava sua vez. Se quiser
me ajudar faça o que lhe digo, ela pediu, olhando-o com um desespero que
dilatava suas pupilas, com antecipada distância, e sorrindo em seguida para
o oficial alemão, que um momento antes de pegá-la nos braços inclinou
educadamente a cabeça para o meu amigo.
Trinta anos depois viu-se de novo do outro lado da praça, viu sua
própria figura solitária na parada do bonde e a claridade que projetavam nos
paralelepípedos úmidos de neblina os janelões do palácio onde continuava o
baile, e escutou muito fraca a música da orquestra, e as pisadas fortes que
ele mesmo dava querendo esquentar os pés, e que repetiam o eco no amplo
espaço deserto. Era ao mesmo tempo o tenente jovem que contava os
minutos sobressaltado de ilusão e desesperança toda vez que se abria a
porta do palácio e o homem de cinquenta e tantos anos que o via esperar, e
sentia a impaciência gradualmente angustiante de quem não sabe o que vai
acontecer no minuto seguinte e a piedade melancólica de ver tudo no
passado, de saber que o homem jovem continuará esperando mais de uma
hora, tiritando cada vez mais, desolado, e voltará ao salão de baile em busca
da mulher ruiva, e não a verá, nem a ela nem ao protetor com o pomposo
terno escuro, o único civil entre tantos uniformes, muito menos o
comandante dos SS que se inclinou tão cerimonioso diante dele enquanto a
enlaçava. Esteve à sua procura na pista de dança, e depois numa sala onde
serviam bebidas e canapés, e percorreu corredores em que não havia
ninguém e salões e bibliotecas iluminados por grandes lustres de cristal.
E nunca mais a vi, diz, fazendo um gesto para o alto com as duas mãos,
como para indicar algo que se desmancha no ar. Ocorreu-lhe que talvez
tivesse saído sem que ele visse e agora estivesse esperando no ponto do
bonde, e que se ele não se apressasse ela se cansaria e iria embora, e não
seria possível descobrir seu endereço. Mas no vestíbulo encontrou o capitão
com quem tinha vindo e que o estava procurando havia algum tempo, disse-
lhe, pois já era muito tarde e tinham de voltar para o quartel.
Já não há conversas nem telefones celulares ao redor. Sem perceber,
somos os últimos no restaurante. Um garçom o ajuda a vestir o paletó azul-
marinho, gesto que acentua seus movimentos difíceis dos ombros. Vendo-o
andar na minha frente para a saída lembro-me do que esqueci enquanto o
escutava, que é um homem de oitenta anos.
Na rua somos surpreendidos pela luz amarela e prematura do entardecer,
um ponto tênue de umidade no ar. Meu amigo se oferece para me levar em
casa de carro. Ainda gosto muito de dirigir, embora de vez em quando um
desses malcriados se meta comigo quando vê que sou tão velho. "Avança,
coroa, antes que te passem uma mortalha", me disse um outro dia, no sinal.
Eu perguntei, "que me passem uma mortalha vivo ou morto?", e o cara
ficou vermelho, subiu o vidro da janela e me ultrapassou dando uma
acelerada. As crenças são muito prejudiciais, eu é que sei, mas o problema é
a espécie, a nossa. Somos primatas agressivos, muito mais perigosos que os
gorilas ou os chimpanzés, temos no cérebro a crueldade e a ânsia de
dominação, para não falar dessa parte mais antiga que é a de nossos
antepassados, os répteis. Tudo está em Darwin, para nossa desgraça. E não
me fale dessa teoria atual, que diz que para a evolução da espécie foi mais
útil o instinto de cooperação do que a luta pela vida e pela sobrevivência
dos mais fortes. Os primatas cooperam para esmagar os outros, e quem fica
de fora está condenado. Olhe como cooperavam entre si, tão bem, os
nazistas, e os comunistas, quantos milhões e milhões de mortos uns e outros
deixaram. Mas não só eles, pense na Bósnia, ou em Ruanda, ainda há
pouco, ontem mesmo, um milhão de pessoas assassinadas em poucos
meses, e não com os avanços técnicos que tinham os alemães, e sim a
machadadas e pauladas.
Quem sabe que horrores estarão passando neste exato momento,
enquanto você e eu conversamos. Já não durmo muito de noite, acordo e
fico no escuro esperando o amanhecer, e então me lembro de todos os
mortos que vi, os que eram amigos meus e os desconhecidos, todos os
mortos que ficavam apodrecendo na terra de ninguém, entre nossas linhas e
as posições dos russos, os mortos que víamos nas sarjetas das estradas à
medida que íamos nos aproximando da frente de batalha, ou amontoados
nos caminhões, duros de frio. É um mero acaso que eu não tenha sido um
deles, e quando estou deitado, no escuro, sabendo que não vou dormir, sem
vontade de acender a luz e pegar um livro, tenho a impressão de ver todos
eles, um por um, e ficam me olhando como aquele judeu de pincenê, e
falam comigo, dizem que se estou vivo tenho a obrigação de falar por eles,
tenho de contar o que lhes fizeram, não posso ficar de braços cruzados e
deixar que sejam esquecidos, e que se perca totalmente o pouco que ainda
resta deles. Nada restará quando minha geração tiver se extinguido,
ninguém que se lembre, a não ser que alguns de vocês repitam o que nós
contamos.
Passamos diante do parque onde está o templo egípcio de Debod, e
penso que nesse mesmo lugar ficou o quartel de la Montana, e que também
aqui caminhamos sobre túmulos sem nome e valas comuns: lembro-me de
fotografias, filmes em preto-e-branco dos primeiros dias da guerra civil,
quando meu amigo era um rapazinho de dezesseis anos estudando na escola
grego e latim e alemão e passando noites em claro lendo Nietzsche e Rilke,
Juan Ramón Jiménez e Ortega y Gasset, e que de jeito nenhum poderia
imaginar que só poucos anos mais tarde seria condecorado como herói de
guerra.
Não muito longe de onde estamos agora, nesses jardins onde se erguem
as ruínas de um templo egípcio e por onde passeiam mães com crianças e
aposentados aproveitando o sol da tarde, houve, há mais de sessenta anos,
uma esplanada cheia de mortos. Nesta mesma calçada por onde meu amigo
e eu caminhamos caíam as bombas durante o cerco franquista a Madri.
Mas não lhe digo nada, só escuto, ele me fala da fragilidade das pernas
quando se passa de certa idade e da lentidão com que chegam à memória
certas lembranças e certos nomes, por causa da deterioração dos
neurotransmissores. Quando nos despedimos, na porta do prédio moderno
onde vive (talvez o que houvesse antes tenha sido destruído pelos
bombardeios da guerra), vejo-o de costas cruzando o portão, a caminho do
elevador, encurvado e diligente, apenas com uma sombra de lentidão nos
movimentos.
Se vivesse, se vive, a mulher que meu amigo conheceu e perdeu naquela
cidade chamada Narva teria noventa anos. Também penso agora a mesma
coisa que ele teria dado tudo para saber ao longo de quase toda a sua vida:
se essa mulher se salvou, se agora mesmo, nesta noite, no momento exato
em que escrevo estas palavras, ela está em algum lugar, e se lembra de um
tenente muito jovem com quem dançou numa noite de fevereiro de 1943.
Qual é o seu nome
Amado mio
Love me forever
And let forever
Begin tonight.
________________
4 Porque me deu na veneta. (N.T.)
5 Lo comido por lo servido: trabalho que rende uma miséria; comer
insosso e beber salgado. Menos da una piedra: antes pouco do que nada;
meio pão é melhor que nenhum. Más vale pájaro en mano que ciento
volando: mais vale um pássaro na mão do que dois voando. (N.T.)
Sefarad
Na rua Valencia
Os oleiros
Com a água e o barro
Fazem panelas.
Quando ainda era moça consegui ter umas aulas de literatura espanhola
na Columbia University com don Francisco Garcia Lorca, e ele gostava que
eu lhe cantasse esses versos, dizia que nada pode ser mais exato, repetia-os
em voz alta, para que prestássemos bem atenção, pois não havia nem um
adjetivo, nem uma palavra que não fosse comum, e no entanto o resultado,
dizia-nos, é ao mesmo tempo poético e tão informativo como uma frase
num guia, tal como nos romances antigos.
Fala muito, hipnotiza-nos contando, mas na verdade não chegamos a
saber nada de sua vida verdadeira, nem sequer seu nome, embora só
tenhamos percebido esse detalhe depois, e não sem espanto, quando fomos
embora. Como será o apartamento onde vive, sozinha sem a menor dúvida,
talvez na companhia de um gato, escutando as vozes e as músicas cubanas
que sobem de La Flor de Broadway, aonde vai jantar regularmente, onde
come um prato de feijão com carne de porco e arroz e talvez fique tonta
com um daiquiri, sozinha numa mesa com toalha xadrez de plástico,
fumando depois enquanto saboreia um café e olha para a rua e para os
homens e as mulheres com esses olhos de infalível exame sexual. O que ela
faz durante tantas horas e tantos dias em que não chega ninguém para
consultar os livros da biblioteca, os tesouros sepultados que ela cataloga e
examina, com uma expressão de severa eficácia em sua cara envelhecida, os
olhos revirados atrás dos óculos presos com uma fita preta. Exemplares
únicos que só se podem encontrar aqui, primeiras edições, coleções inteiras
de revistas eruditas, folhetos de cordel, cartas autografas, toda a literatura
espanhola e todos os saberes e indagações possíveis sobre a Espanha
reunidos nessa grande biblioteca que ninguém frequenta. Mas ela já não
precisava abrir os volumes de poesia da coleção de Clásicos Castellanos
porque na época de suas aulas com o professor Garcia Lorca tinha
adquirido, incitada por ele, disse-nos, o hábito de aprender de cor os
poemas de que mais gostava, de modo que sabia grande parte do
Romancero, e os sonetos de Garcilaso, Góngora, Quevedo, e todo o San
Juan de la Cruz e quase todo o fray Luis de León, e Bécquer e Espronceda,
que tinham sido paixões de sua primeira adolescência fantasiosa e literária,
compartilhadas com seu irmão, um pouco mais velho que ela, e com quem
recitava meio a meio o Tenorio ou Fuenteovejuna ou La vida es sueño.
Talvez a isso tivesse dedicado todos esses anos em que trabalhava na
biblioteca da Hispanic Society, a aprender de cor a literatura espanhola, a
recitá-la em silêncio ou em voz baixa, mexendo os lábios como se rezasse,
enquanto ia toda manhã ao trabalho pelas calçadas caribenhas da Broadway
ou viajava para o sul de Manhattan em ônibus lentos ou nos vagões repletos
do metrô, enquanto de noite jazia na insônia de sua cama solitária ou
percorria os salões do museu sem se fixar quase em nenhum dos quadros e
objetos cuja disposição também já sabia de cor, como os nomes e as datas
datilografadas nas etiquetas. Mas havia um quadro defronte do qual sempre
parava, e sentava-se para olhá-lo devagar, com uma emoção melancólica
que jamais diminuía, inclusive se fortalecia à medida que se passavam os
anos e tudo naquele lugar dava a impressão de permanecer tão invariável
como num reino encantado. As etiquetas, os cartazes e os catálogos
amarelavam, os sanitários dos banheiros iam se tornando relíquias cada vez
mais antigas, o cabelo crespo e duro dos zeladores cubanos e porto-
riquenhos ia ficando grisalho, os bolsos de suas jaquetas cinza iguais às dos
bedéis espanhóis iam furando e os punhos das mangas iam ficando puídos,
e ela mesma ia sendo transformada pelo tempo numa desconhecida toda vez
que se olhava no espelho, com exceção dos olhos, cujo brilho era tão fino e
bonito como quando tinha trinta anos e viu-se pela primeira vez sozinha e
dona de si mesma na América, possuída por um entusiasmo de viver que
podia alcançar extremos de desassossego e delírio talvez ainda mais
fervorosos do que a mania de colecionar, desenfreada e lunática, do senhor
Huntington. Gosto de sentar diante desse quadro de Velázquez, o retrato
dessa menina morena, que ninguém sabe quem foi, nem como se chamava,
nem por que Velázquez a pintou, disse-nos.
Aposto que vocês já o viram, mas não partam antes de olhá-lo um
pouco mais, pois é possível que não voltem e nunca o revejam. Com os
anos a gente deixa de se fixar nas coisas, habitua-se a elas e já não as olha,
não só por indiferença, mas também por higiene mental. Os vigias de
qualquer museu enlouqueceriam se vissem permanentemente todos os
quadros que os rodeiam, com todos os seus detalhes. Entro aqui e não vejo
mais nada, depois de tantos anos, mas essa menina de Velázquez sempre
vejo, tem um ímã que me atrai, e ela sempre me olha, e mesmo conhecendo
de cor seu rosto sempre descubro algo novo, como imagino que a mãe ou o
pai descobrem no rosto do filho, ou um amante no da pessoa amada. Os
quadros, aqui e em qualquer museu, representam poderosos ou santos, gente
enfatuada de arrogância, ou transtornada pela santidade ou pelo tormento do
martírio, mas essa menina não representa nada, não é a Virgem menina nem
uma infanta nem a filha de um duque, não é nada mais do que ela mesma,
uma menina sozinha, com uma expressão de seriedade e doçura, perdida
num devaneio de melancolia infantil, perdida também neste lugar, nos
salões pomposos e um tanto velhuscos da Hispanic Society, como uma
menina encantada num palácio de conto de fadas dentro do qual o tempo
parou de passar há um século. Tem um olhar de sinceridade e ao mesmo
tempo de timidez e reserva, e seus olhos escuros pousam agora mesmo nos
meus, enquanto estou escrevendo, ainda que neste instante eu esteja muito
longe dela e daquele dia nublado em Nova York, na véspera da partida. Só
se passaram uns meses, e as recordações permanecem nítidas e firmes, mas
se penso detidamente nessas horas da Hispanic Society, no rosto da menina
de Velázquez, na voz e nos olhos de fogo da mulher que não chegou a nos
dizer seu nome, tudo tem o tremor, a consistência frágil do que não sabemos
se chegou a acontecer de verdade. Guardo provas, detalhes materiais, o
cartão Metrocard que usamos para tomar o ônibus que nos levou tão longe,
os postais que compramos na loja da Hispanic Society, loja muito precária,
na qual ainda restam estoques de postais em preto e branco de quase um
século atrás, e guias e catálogos de publicações que poderiam estar nessas
vitrines das livrarias que vendem em leilão tudo o que há de mais
deteriorado e manuseado. Mas nesse lugar imprevisível, uma loja tão
modesta, com um toque de tabacaria popular espanhola — como não
compará-la com as lojas de outros museus de Nova York, espetaculares
supermercados de luxo — ocupa um salão enorme, inexplicável em sua
organização do espaço, inteiramente cercado de grandes balcões de madeira
escura, como as bancadas de uma casa de tecidos gigantesca do início do
século ou como essas cômodas imensas que se veem nas sacristias das
catedrais, e onde se guardam as roupas litúrgicas. A loja ocupa um canto
escuro, uma parte do balcão, atrás do qual se senta uma senhora muito velha
com todo o jeito de quem vai começar a tricotar a qualquer momento,
quando forem embora esses dois raros visitantes que agora examinam uma
coleção desbotada de postais. E todas as paredes, do chão ao teto, estão
ocupadas por quadros imensos, ou por uma só pintura que cobre sem
interrupção toda a sua amplitude, e na qual estão representados, como num
delírio barroco de Carnaval ou na desordem das lâminas de uma
enciclopédia, todos os trajes regionais, os ofícios e as danças antigas, as
paisagens da Espanha, toda a bijuteria do romantismo folclórico pintado de
empreitada por Joaquín Sorolla, qual uma Capela Sistina consagrada a
glorificar a paixão espanhola de Mr. Huntington, a celebrar nas grandes
pinceladas de cor cada tipo racial, cada poeirenta peça de roupa ou adorno
feminino ancestral ou particularidade antropológica, os cavaleiros
andaluzes com seus chapéus de aba larga e os aldeãos bascos com suas
boinas, e os catalães com suas barretinas e alpargatas, e os castelhanos com
suas caras rugosas e tostadas, e os aragoneses dançando jotas com lenços
vermelhos amarrados na nuca: e também os laranjais, os olivais, as águas
cantábricas em que dão duro os pescadores do norte, os celeiros galegos e
os moinhos de La Mancha, as ciganas andaluzas com vestidos de babados e
as falleras valencianas com suas saias duras de goma e suas pedrarias e seus
penteados rígidos como de damas ibéricas, as hortas e os descampados, os
céus violáceos de El Greco e a luz clara e suculenta do Mediterrâneo,
metros e metros quadrados de pintura, uma profusão de rostos como
máscaras e roupas como fantasias que têm toda a densidade e a vertigem de
um baile de Carnaval, e também a minúcia angustiante de um catálogo ou
de um regulamento, o habitante de cada província com seus traços regionais
e seu traje pertinente, cada um deles preso à canga de seus costumes eternos
e à sua paisagem regional, cada indivíduo tão classificado em sua origem e
em seu torrão natal como os pássaros e os insetos em suas categorias
zoológicas.
Mas o que agora tenho diante de mim, em meu gabinete, perto do
teclado do computador e da concha branca e polida pela água que Arturo
encontrou há dois verões na praia de Zahara, é um dos postais que
compramos na loja da Hispanic Society, o retrato dessa menina morena,
delicada, solitária, de perfil contra um fundo cinza, que agora me olha como
naquele meio-dia, quando fomos olhá-la pela última vez antes de partir, na
véspera de nossa viagem de volta, quando já quase não estávamos em Nova
York embora ainda nos faltasse um dia inteiro até o voo para Madri e o
tempo se esvaísse entre nossos dedos com uma inconsistência de papel
queimado, de folhas de cinza, minutos e horas sem sossego, como o tempo
atribulado e fugaz dos amantes clandestinos que, mal se encontram, já
sabem que começou para eles a contagem regressiva da separação. Quando
alguém inventa, tem a crença vã de que se apodera dos lugares e das coisas,
das pessoas sobre quem escreve: em meu escritório, sob a luz do abajur que
ilumina minhas mãos e o teclado, o mouse, a concha cujas estrias gosto de
acariciar distraidamente com as pontas dos dedos, o postal da menina de
Velázquez, posso ter a sensação de que nada do que invento ou recordo está
fora de mim, deste espaço fechado. Mas os lugares existem mesmo que eu
não esteja neles e mesmo que eu não volte lá, e as outras vidas que vivi e os
homens que fui antes de chegar a ser quem sou junto a você talvez
perdurem na memória de outros, e neste mesmo momento, a seis horas e
seis mil quilômetros de distância deste escritório, a menina que me olha da
pálida reprodução de um postal olha e sorri ligeiramente numa tela
verdadeira e tangível, pintada por Velázquez por volta de 1640, levada a
Nova York por volta de 1900 por um multimilionário americano, pendurada
num grande salão na semipenumbra de um museu que pouquíssima gente
visita. Quem sabe se agora mesmo, quando em Nova York são duas e
quinze da tarde e aqui começa um anoitecer de dezembro, haverá alguém
olhando o rosto dessa menina, alguém que perceba ou reconheça em seus
olhos escuros a melancolia de um longo desterro.
Retrato de niña, Velázquez, c. 1640. Hispanic Society of America, Nova
York.
Nota de leituras
Inventei muito pouco nas histórias e nas vozes que se cruzam neste
livro. Algumas, ouvi contar e estavam há tempos em minha memória.
Outras, encontrei-as nos livros.
Descobri Willi Münzenberg lendo El fin de la inocência, de Stephen
Koch (Tusquets, 1995) e segui sua pista em El pasado de una ilusión
(Fondo de Cultura Econômica), de François Furet, livro tão admirável como
seu título, e no segundo volume das memórias de Arthur Koestler, The
invisible writing, assim como em um número surpreendente de páginas da
internet. O belo nome de Milena Jesenska, vi-o pela primeira vez nas
impressionantes Cartas a Milena, de Franz Kafka, numa edição de bolso da
editora Alianza, que guardei durante muito tempo. Foi esse nome sozinho
no título de um livro, Milena — também da Tusquets —, que me levou a
descobrir sua autora, Margarete Buber-Neumann, de quem tinha encontrado
algumas pistas em Koch e em Furet, como um personagem menor de nota
de rodapé. Os dois volumes de sua autobiografia, cuja versão francesa
rastreei no catálogo do Seuil — Déportée en Sibérie, Déportée à
Ravensbrück —, me foram enviados rapidamente de Paris por minha
editora Annie Moram. É curioso que nesse tema sombrio dos infernos
erigidos pelo nazismo e pelo comunismo abundem tantos testemunhos de
mulheres: foram-me vitais Contra toda esperanza (Alianza Editorial), de
Nadezhda Mandelstam, e sobretudo Journey into the whirlwind, de Evgenia
Ginzburg, cujo nome eu tinha lido pela primeira vez num livro
extraordinário de Tvestan Todorov que descobri em tradução inglesa,
Facing the extreme — moral life in the concentration camps.
De Todorov aprendi muito lendo, da editora Taurus, El hombre
desterrado. Sobre a situação dos judeus da Espanha li extensamente Los
orígenes de la Inquisición, o estudo tendencioso e ciclópico de Benzion
Netanyahu, e o muito mais curto e também mais equilibrado clássico de
Henry Kamen, La Inquisición española (Crítica), sem esquecer um livro
que me parece extraordinário, apesar de sua extrema concisão, Historia de
una tragédia, de Joseph Perez, também publicado na Espanha pela editora
Crítica. Meu amigo Emílio Lledó leu no original alemão os extensíssimos
diários do professor Victor Klemperer; só conheço a versão inglesa em dois
volumes, publicada com o título I will bear witness: a diary of the nazi
years.* É triste pensar que livros de tanta profundidade quase nunca são
acessíveis ao leitor de língua espanhola.
Mas quase me esquecia de citar dois dos escritores mais decisivos em
minha educação dos últimos anos, sem os quais é muito provável que este
livro não houvesse me ocorrido e que eu nem tivesse encontrado o estado
de espírito necessário para escrevê-lo. Refiro-me a Jean Améry e a Primo
Levi. Foi por acaso que descobri o livro de Jean Améry sobre Auschwitz, e
sem ter tido antes a menor informação sobre sua existência, numa livraria
de Paris, em 1995.
Foi publicado pela Actes Sud com o título Par-delà le crime et le
châtiment, e não tenho notícia de que alguma editora espanhola tenha se
interessado por ele. Graças a Mario Muchnick, no entanto, o leitor espanhol
tem acesso à grande trilogia memorialística de Primo Levi, que inclui Si
esto es un hombre, La trégua** e Los hundidos y los salvados. O que se
pode aprender sobre o ser humano e sobre a História da Europa no século
XX nesses três volumes é terrível e também instrutivo, e honestamente não
creio que seja possível ter uma consciência política cabal sem tê-los lido,
nem uma ideia da literatura que não inclua o exemplo desse modo de
escrever.
Há outros livros, mas esses que indiquei são os que mais me
alimentaram enquanto escrevia Sefarad. Também procurei prestar atenção
em muitas vozes: entre elas, devo mencionar com gratidão e emoção as de
Francisco Ayala e José Luis Pinillos, e a voz sonora e jovial de Amaya
Ibárruri, que numa tarde de inverno me convidou para um café e me contou
alguns episódios do extraordinário romance de sua vida; a de Adriana
Seligmann, que me falou dos pesadelos em alemão de seu avô; e a de Tina
Palomino, que veio a minha casa numa tarde em que eu já imaginava ter
concluído este livro e fez-me compreender — quando escutei a história que,
sem se dar conta, ela estava me dando de presente — que sempre resta algo
mais que merecia ser contado.