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1.

Introdução

O teólogo reformado americano Keith Mathison, em sua obra The shape of Sola
Scriptura, trabalha com quatro conceitos da relação entre a Escritura e a tradição, os quais ele
denomina como Tradition 0, Tradition I, Tradtion II e Tradition III. Em virtude da praticidade
dos termos e do excelente trabalho que ele faz no livro, utilizaremos essa nomenclatura
durante o artigo. Nesse prisma, a Tradition 0 se refere à concepção anabatista do Nuda
Scriptura, isto é, a escritura nua, sem a consideração por tradições e autoridades eclesiásticas
A Tradition I é a concepção dos reformadores clássicos, a Sola Scriputra. Por fim, a Tradition
II e a Tradition III se referem às concepções católico-romanas, sendo a primeira a ideia de
que a Escritura e a Tradição oral são duas fontes paralelas de revelação, devendo ser
reverenciadas com a mesma autoridade, e a segunda diz que em adição a essas, o magistério
da Igreja, encabeçado pelo papa é, além de guardião e intérprete da tradição, outro meio pelo
qual o Espírito Santo continua falando à Igreja.
O presente artigo é uma defesa do Tradition I, o Sola scriptura, especialmente contra
o Tradition II, o partim-partim, pois, embora muitos apologistas romanos modernos partam
de um conceito de suficiência material, será aqui demonstrado que essa é uma abordagem que
contém uma concessão implícita ao Sola Scrpitura, visto que o que se depreende da doutrina
oficial estabelecida pelo Concílio de Trento, seu catecismo e seus defensores, Belarmino na
obra de Verbo Dei, e Stapleton, escrevendo contra Whitaker, é a doutrina do partim-partim,
ou seja, a concepção de que a palavra de Deus infalível se encontra parcialmente na Escritura
e parcialmente na Tradição oral, ambas guardadas e determinadas pelo magistério.
Nesse sentido, Giuseppe Alberigo, historiador católico, na obra “História dos
Concílios ecumênicos”, demonstra que, originalmente, a redação da 4ª Sessão (que trata da
autoridade da Escritura e da Tradição) era diferente. A primeira versão afirmava que Deus
entregou a Sua revelação à Igreja "partim Scriptura, partim Traditionem", ou seja, que uma
parte da revelação estava em um e outra estava em outra parte, sendo elas complementares
em conteúdo (não em síntese, se uma interpretasse a outra). Dois representantes do Concílio,
em particular, levantaram uma objeção a essa redação, que foram Bonacci e Nacchianti.
Ambos levantaram tanto tumulto contra essa redação, que interromperam a sessão para fazer
uma nova proposição. Como evidenciado pelos escritos e correspondências dos legados
durante o Concílio, a Igreja de Roma tinha expresso interesse em afirmar duas fontes
complementares de doutrina, mas essa discussão dificultou que isso fosse feito de uma vez. O
resultado para alegrar todos os partidos foi uma artimanha: ambiguidade literária. A redação
final afirma que a revelação foi entregue na "Scriptura *et* Traditionem", e isso deixa a
interpretação subjetiva, que foi realmente suficiente para fazer com que ambos os partidos
acreditassem que a doutrina deles fora promulgada. As bulas papais posteriores, os escritos
de Belarmino e até o Catecismo produzido pelo Concílio, publicados após o encerramento do
mesmo, porém, ensina o que a primeira redação afirmava.
Portanto, este ensaio visa mostrar um panorama da defesa dos teólogos protestantes
do século XVII da Tradition I em resposta aos polemistas católicos, Belarmino e Stapleton,
que sustentavam, em conformidade com os decretos de Trento, o Partim-Partim, ou Tradition
II.
2. Definição de Termos

O primeiro passo a ser dado ao discutir o assunto é definir o que é e o que não é a
doutrina do Sola Scriptura, para, assim, evitar espantalhos e se oferecer uma apologia
consistente. O Sola Scriptura NÃO ensina de que somente a bíblia escrita é autoridade na
Igreja, de modo que ela deve ser lida individualmente, sem a devida reverência à história da
Igreja, aos concílios, aos credos, confissões ou às autoridades eclesiásticas, isto é, lida pela
livre interpretação do que está escrito. Ao contrário, o Sola Scriptura é a doutrina
protestante que ensina que a bíblia é perfeita em seu propósito de mostrar a revelação
de Deus para nós e todo seu plano de salvação, de modo que contém todas as doutrinas
necessárias para nos fazer conhecer a salvação e o salvador (suficiência material). Além
disso, ela é regula infalível e perfeita (norma normans), segundo a qual todas as
autoridades que dela decorrem (norma normata) e tiram seu fundamento de validade
são julgadas.
Vejamos o que algumas das principais confissões de fé das tradições da reforma
dizem sobre o tema:

[Confissão de fé de Westminster, artigo I]: 6. “Todo o conselho de Deus concernente a todas as


coisas necessárias para a sua glória e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente
declarado nas Escrituras ou pode ser lógica e claramente delas deduzido. Às Escrituras nada se
acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens;
reconhecemos, entretanto, ser necessária a iluminação interior do Espírito de Deus para a salvadora
compreensão das coisas reveladas na Palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de
Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas
pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser
observadas. (...) 10. O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser
determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões
particulares, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando
nas Escrituras.”

[39 artigos de religião]: VI. “As Escrituras Sagradas contêm todas as coisas necessárias para a
salvação; de modo que tudo o que nela não se lê, nem por ela se pode provar, não deve ser exigido de
pessoa alguma que seja crido como artigo de Fé ou julgado como exigido ou necessário para a
salvação. Pelo nome de Escrituras Sagradas entendemos os Livros canônicos do Antigo e Novo
Testamentos, de cuja autoridade jamais houve qualquer dúvida na Igreja (...) XX. A Igreja tem poder
de decretar Ritos ou Cerimônias e autoridade nas Controvérsias da Fé; todavia, não é lícito à Igreja
ordenar coisa alguma contrária à Palavra de Deus escrita, nem expor um lugar das Escrituras de modo
que repugne a outro. Portanto, mesmo que a Igreja seja testemunha e guarda das Escritura Sagradas,
todavia, assim como não é lícito decretar 6 coisa alguma contra elas, também não deve obrigar que
seja acreditada coisa alguma que nelas não se encontra, como necessária para a salvação.”
Perceba também que a doutrina do Sola Scrpitura, ou Tradition I, não nega o fato de
que, por muitos anos, a Igreja cristã existiu sem um Novo Testamento escrito, pois ela ensina
que a verdadeira autoridade infalível sobre a Igreja é o ensino apostólico e seria absurdo
supor que Deus teria deixado sua Igreja sem uma autoridade infalível por tantos anos até que
o novo testamento fosse redigido. Desse modo, a Tradition I ensina que a tradição apostólica,
isto é, tudo o que foi entregue pelos apóstolos como depósito de fé, por meio do ensino oral
ou pelos ritos cristãos (At 2.42, 1 Co 11.2, 2 Tes 2.13-15, 2Tm 2.2) foi, posteriormente,
sintetizada na Sagrada Escritura para que ela nos fosse o fundamento da fé, porquanto retrata
com perfeição o ensino apostólico, sobre o qual a Igreja está edificada (Ef 2.20). Isso nos
ensina Irineu de Lyon (adversus Haereses, I,1):
“Não foi por mais ninguém que tivemos conhecimento da economia da nossa
salvação, mas somente por aqueles pelos quais nos chegou o evangelho, QUE ELES
PRIMEIRO PREGARAM E, DEPOIS, PELA VONTADE DE DEUS, PASSARAM PARA
AS ESCRITURAS, para que para nos fosse FUNDAMENTO E COLUNA da fé."
J.N.D Kelly, no livro Patrística: Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da
fé cristã, pg 28, explica que, em sua maneira de ver, Irineu, cria que a própria tradição era
confirmada pelas Escrituras e que, na verdade, as Escrituras e a tradição oral da igreja são
idênticas em conteúdos, embora entregues de formas diferentes. Segundo Kelly (pg 25):
“O que os apóstolos viram e anunciaram como testemunhas oculares, os profetas testificaram
nos mínimos detalhes; bastava procurar nas escrituras para demonstrar que não havia um só item na
mensagem dos apóstolos que não havia sido predito pelos profetas”.
Ele continua dizendo que
“Logicamente, já que deve ter ocorrido em ordem cronológica, o testemunho oral antecedia os
documentos, e seria mais correto afirmar que ESTES ÚLTIMOS ERAM VALORIZADOS
JUSTAMENTE PORQUE SE ACREDITAVA QUE GUARDAVAM TAL TESTEMUNHO.
Reconhecidamente, não há indício algum de crenças existentes na igreja no período que não tenham
sido comprovadas nos livros conhecidos mais tarde como o novo Testamento.”
Note que Irineu escreve o que foi acima citado no contexto de debate com os
gnósticos, os quais, advogavam que, além das Escrituras, Cristo entregou secretamente para
alguns, um conhecimento distinto que só era conhecido pelos mestres gnósticos. A isso. S.
Irineu responde apelando para a regra de fé e dizia que toda a revelação de Cristo foi entregue
publicamente pelos apóstolos e passados para a Escritura, para que ela fosse o fundamento e
norma da Igreja, e que, por sua vez, era protegida e corretamente explicada pelos ministros
devidamente ordenados em uma linha de sucessão contínua que tinha origem nos próprios
apóstolos.
Ora, essa é a perfeita definição do que crê a doutrina do Sola Scrpitura. O ensino dos
apóstolos foi perfeitamente sintetizado na Escritura, que nos é a regula e norma para toda a
doutrina. Ela é materialmente idêntica à sua formulação credal, o credo apostólico, e ela deve
ser lida e ensinada somente pela e dentro da Igreja, pelos ministros que foram devidamente
chamados e ordenados para exercer esse ofício, visto que a própria bíblia nos remete a eles,
na medida em que foram capacitados pelo Dom de ensinar e comissionados para isso.
Ef. 4.11-13: “E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para
evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o
desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade
da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de pessoa madura, à medida da estatura da
plenitude de Cristo.”
1 Coríntios 12:28: “A uns Deus estabeleceu na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo
lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, os que têm dons de
curar, ou de ajudar, ou de administrar, ou de falar em variedade de línguas."
Hebreus 13.17: “'Obedeçam aos seus líderes e sejam submissos a eles, pois zelam pela alma
de vocês, como quem deve prestar contas. Que eles possam fazer isto com alegria e não gemendo; do
contrário, isso não trará proveito nenhum para vocês.”
Isso pode ser demonstrado também nas confissões luteranas, pois a Confissão de
Augsburgo, artigo XIV, diz que “sem chamado regular [e a devida ordenação], ninguém deve
publicamente ensinar, pregar ou administrar os sacramentos na igreja.”
Desse modo, a Sola Scriptura ensina que, embora toda a doutrina esteja disposta de
forma clara e materialmente suficiente nas Escrituras, o ofício de interpretá-la publicamente e
ensiná-la pertence à Igreja, representada pela corporação de presbíteros devidamente
chamados e ordenados para isso, descartando, assim, a noção de uma livre interpretação
individualista.
Por fim, o Sola Sriptura ensina que, sendo a bíblia a norma pelo qual toda doutrina e
prática deve ser julgada, ela é necessariamente primaz e superior à igreja ou às tradições,
embora estas últimas possuam autoridade derivada da Escritura como norma normata. Isso se
deve porque a Escritura é a síntese do ensino apostólico e materialmente idêntica à tradição
ensinada por eles, pois a distinção entre a palavra escrita e palavra oral apostólica é apenas no
que tange à forma ou acidente (escrita e oral), não havendo uma oposição ou diferenciação
material ou substancial (de conteúdo) entre elas. Assim, visto que a Igreja, compreendida
primeiramente como a congregação dos santos que creem em Cristo, veio a existir em virtude
da pregação e do ensino apostólico, e esse ensino é idêntico às escrituras, segue-se que a
Escritura é primaz sobre a Igreja, porquanto a causa é primaz sobre seu efeito, e o que é
causado não pode surpassar a potência da causa que o moveu e o atualizou. Por essa razão, a
bíblia diz que a Igreja está fundamentada pelo ensino dos profetas e apóstolos (Ef 2.20) e
deles retira seu fundamento de autoridade. Como diz François Turrentini, “assim como a lei
não deriva sua autoridade dos juízes a ela subordinados que a interpretam, mas do seu autor, a
Escritura não deriva sua autoridade da Igreja, porquanto é a lei do supremo Legislador, o
Espírito Santo.“ J. Gerhard conclui dizendo:
“O que quer que a Igreja ensine correta e salutarmente, ela deve tirar isso das Escrituras. Por
natureza, então, a voz da Escritura é anterior e mais digna do que a voz da Igreja. A verdadeira Igreja
é a assembleia dos verdadeiros fiéis. ‘A fé vem de ouvir a Palavra’ (Romanos 10:17), e a Palavra é
apresentada apenas nas Escrituras. Portanto, a Escritura é a regra da Igreja, não vice-versa. Cremos na
Igreja como testemunha. Cremos nas Escrituras como o primeiro e supremo princípio da crença, a
partir do qual devemos buscar aquilo em que devemos acreditar sobre os outros artigos de fé, bem
como sobre a própria Igreja.”

3. Apologia
Dada a definição acima, para provar a doutrina do Sola Scriptura, é necessário
demonstrar que a Escritura é a síntese do ensino apostólico, que é materialmente suficiente,
que é a regula pela qual são medidas todos os dogmas e que é o juiz último sobre as
controvérsias na Igreja. Assim, prova-se a doutrina da Sola Scriptura

A) Pela ciência dos apóstolos de estarem redigindo a Escritura sagrada

Se os apóstolos sabiam que o que estavam escrevendo era Escritura sagrada inspirada
pelo Espírito Santo, não é absurdo supor que eles buscaram colocar nelas todo conteúdo de
sua pregação. O antecedente se prova pela própria Escritura, pois S. Paulo diz a Timóteo
(1Tm 4.13) para dedicar-se à leitura pública da Escritura, à exortação e ao ensino. Ora, o que
S. Paulo ordena ler e ensinar não difere do que ele diz a Timóteo em 2 Tm 2.2, referente ao
que o jovem presbítero ouviu dele e de muitas testemunhas. Além disso, o próprio Paulo
afirma que sua palavra, que ele colocou posteriormente por escrito, é palavra de Deus
inspirada:
(2 Tessalonicenses 2:13) : Temos mais uma razão para, incessantemente, dar graças a Deus: é
que, ao receberem a palavra que de nós ouviram, a qual é de Deus, vocês a acolheram não como
palavra humana, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual está atuando eficazmente em
vocês, os que creem."
(1 Coríntios 14:37): "Se alguém se considera profeta ou espiritual, reconheça que é
mandamento do Senhor o que estou escrevendo para vocês."
S. Pedro também indica que as cartas paulinas [todas elas] tinham o status de
escritura:
(2 Pedro 3.15-16): Tenham em mente que a paciência de nosso Senhor significa salvação,
como também o nosso amado irmão Paulo lhes escreveu, com a sabedoria que Deus lhe deu. Ele
escreve da mesma forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm
algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem, como também o fazem
com as demais Escrituras, para a própria destruição deles.”
Não obstante, os Apóstolos também insistiam que seus escritos fossem lidos para toda
a congregação (1 Tessalonicenses 5:27, Apocalipse 1:3, 1 Timóteo 4:13). Ora, se os
Apóstolos como autoridade doutrinária suprema na Igreja, comissionados pelo próprio Cristo,
sabiam estarem escrevendo da parte de Deus, fizeram questão de registrar por escrito e
incentivaram as igrejas a lerem suas cartas, então, é possível deduzir que eles estabeleceram a
Escritura como norma suprema, onde estariam sintetizados seus ensinamentos.
E esse é um princípio que já possuía precedente na própria Escritura judaica, pois, o
próprio Deus, em um momento anterior, advertiu Isaías de escrever o que ele exortava oralmente e o
mesmo a Moisés.
(Isaías 30:8): "Agora vá e escreva isso numa tabuinha diante deles, escreva-o num livro, para
que fique registrado para os dias vindouros, para sempre, perpetuamente."
(Exôdo 34.27): Disse o SENHOR a Moisés: “Escreva essas palavras; porque é de acordo com
elas que faço aliança com você e com Israel”
Portanto, concluímos que foi da vontade de Deus que todo o ensino apostólico fosse
passado por escrito a fim de que ficasse registrado os termos da nova aliança para sempre,
perpetuamente, como diz Whitaker (A disputation on holy Sripture, Chap 6):
“A mesma razão que impeliu os profetas a escrever tudo o que disseram, levou os apóstolos
também a seguir um curso semelhante. Pois se os profetas escreveram tudo o que falaram, por que não
deveríamos supor que os apóstolos e evangelistas, procedendo com a mesma prudência, governados
pelo mesmo Espírito e tendo o mesmo fim em vista, comprometeram-se igualmente a escrever a soma
dessa doutrina que entregaram às igrejas?"

B) Pela suficiência das Escrituras

Da perfeição da Escritura como síntese do ensino apostólico inspirado pelo Espírito


Santo, segue a sua suficiência para performar segundo seu propósito, qual seja, trazer ao
homem a revelação de Deus ao homem e o tornar apto para a salvação e piedade. Com efeito,
se as escrituras são perfeitas segundo seu propósito de nos revelar a vontade Deus quanto a
nossa salvação, segue-se que ela não precisa ser suplementada com tradições não escritas que
contêm novas revelações. A perfeição e a consequente suficiência a escritura se prova:

I. Pelo que a própria escritura testemunha de si mesma:


(provérbios 30.5-6): Cada palavra de Deus é comprovadamente pura, ela é um escudo para
quem nele se refugia. Nada acrescente às palavras dele, do contrário, ele o repreenderá e
mostrará que você é mentiroso.
(Salmos 119. 160): “A verdade é a essência da tua palavra e todas as tuas justas ordenanças
são eternas”
(Salmo 19.7) A lei do Senhor é perfeita, e revigora a alma. Os testemunhos do Senhor
são dignos de confiança, e tornam sábios os inexperientes.
(2 Timóteo 3.15-17): “Porque desde criança você conhece as Sagradas Letras, que são
capazes de torná-lo sábio para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus. Toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e
para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente
preparado para toda boa obra.”
Perceba que S. Paulo empregou duas palavras [artios] e [exartizo] para
destacar a suficiência da Escritura. Neste texto ele toma a palavra do modo de um
particípio no pretérito perfeito para indicar uma ação completada. Além disso, no
versículo 15 diz que "As escrituras podem [dynamai] fazer-te sábio para salvação". A
palavra dynamai é um particípio que atribui capacidade ou poder e é frequentemente
utilizada para descrever o poder de Deus. Logo, a palavra não deixa possibilidade de
que as escrituras fracassem em sua tarefa (Revelar o Cristo). Isso, somado com o fato
de Paulo saber que os Apóstolos estavam registrando seus ensinos por escrito, atesta a
suficiência das Escrituras para conhecer o plano de salvação.
Em resposta aos argumentos de Belarmino, Tiletanos, Stapleton e outros
apologistas romanos de que o texto em questão se refere apenas ao Antigo testamento
e que a utilidade não implica em suficiência, Gerhard diz:
“Pelo contrário, Romanos e as outras epístolas que o apóstolo escreveu existiam antes
de ele vir para Roma. Lucas termina Atos com a vinda de Paulo à cidade, na época em que já
havia escrito seu Evangelho, e Mateus e Marcos escreveram antes dele. Embora todos os
livros do Novo Testamento ainda não existissem quando o apóstolo escreveu isso, os livros
sagrados que existiam naquela época foram capazes de tornar Timóteo e todos os devotos
‘sábios para a salvação e equipá-los para todo o bem’. Portanto, é correto atribuir esse elogio
a eles [tendo ainda a ciência de que os apóstolos sabiam que já estavam redigindo escrituras
inspiradas]. Assim, invertemos o argumento. Se numa época em que todos os livros do Novo
Testamento ainda não existiam, o apóstolo podia declarar sobre a Escritura a verdade de que
ela é perfeita e suficiente, quanto mais podemos atribuir essa perfeição a ela hoje, quando
todos os livros do Novo Testamento existem? Se o primeiro é verdadeiro, o último também é
verdadeiro.”

II. Por sua causa eficiente, o Espírito Santo


Como diz S. Pedro em 2 Pe 1.20, nenhuma profecia advém de particular interpretação, mas
homens santos falaram inspirados pelo Espírito Santo, que é sua causa eficiente, isto é, o
autor. Ora, se o Espírito Santo é divino e registrou seus oráculos por meio dos profetas nas
sagradas escrituras, segue-se que as Sagradas escrituras são perfeitas, porquanto em Deus não
há falha ou mentira. Ademais, prova-se a perfeição da Escritura, redigida sob inspiração do
Espírito, pela sua causa final, qual seja, trazer aos homens a relevação de Deus e tudo que o
faz apto para a salvação e piedade. Se essa causa final é almejada pelo próprio Deus, que usa
da causa instrumental, os profetas e apóstolos inspirados pela causa eficiente, o Espírito
Santo, é impossível supor que ela não possa ser perfeita em si mesma para o fim a qual foi
redigida.

III. Pelo o que as Escrituras dizem de nada se acrescentar ou tirar nada delas (Dt 4.2, Dt 12.32, Pv
30.5-6, Gl 1.8, Ap 22. 18-19)
IV. Pelo conteúdo material.
S. Paulo diz em Atos 20.27 que declarou TODO o conselho de Deus para a nossa salvação.
Posteriormente (At 26.22), ele afirma que não pregou nada além de que Moisés os profetas
ensinaram. Portanto, nas escrituras proféticas está todo o conselho de Deus para a nossa
salvação. (suficiência material)
V. Pelo testemunho dos pais.
Cirilo de Jerusalém, cat. 4: “É necessário que nada seja ensinado precipitadamente
sem as Sagradas Escrituras. Você não deve simplesmente acreditar em mim quando digo essas
coisas sem receber provas delas nos livros sagrados.” Ibid.: “Deve-se não ensinar nem a
menor coisa sobre os mistérios divinos sem as Sagradas Escrituras (..) com respeito aos
mistérios divinos e salvadores da fé, nenhuma doutrina, por mais banal que seja, pode ser
ensinada sem o apoio das divinas Escrituras.”
Vicente de Lérins, Advers. prof. vocum nov., c. 41: “O cânon da Escritura é suficiente
para todas as coisas.” [Ambrose] De vocat. gent., bk. 2, c. 3: “Omiti o que não aprendi
abertamente da autoridade da Sagrada Escritura como se fosse um segredo. O que a sequência
das Escrituras inclui é suficiente para o conhecimento. Quem falará onde a Sagrada Escritura
não fala?”
Cipriano, Sermão de bapt.: “Ele descobrirá que as regras para todas as doutrinas
emanam dela (Escritura) e que tudo o que a disciplina eclesiástica contém nasce dela e retorna
a ela.” Na homilia 5 sobre Levítico, Orígenes também ensina que tudo o que “pertence aos
assuntos divinos e à nossa religião deve ser buscado nas Sagradas Escrituras e deve ser
examinado a partir delas.”
S. Atanásio, C. gent 1: "As Escrituras santas e inspiradas são plenamente suficientes
para a proclamação da verdade."Gerson, De examin. doctrin., parte 2, n. 17: “A Sagrada
Escritura nos foi transmitida como regra suficiente e infalível para governar todo o corpo e
membros da Igreja até o fim dos tempos”.
VI. Por silogismo modus ponens:
p1: Se algo é perfeito em relação ao propósito pelo qual foi feito (causa final), então é
também suficiente para isso.
p2. As Escrituras são perfeitas para o propósito para qual foram feitas: trazer a
revelação de Deus e nos tornar aptos para a salvação e piedade.
C. Logo, as Escrituras são suficientes para conhecermos a revelação de Deus no que
concerne a salvação e a piedade e, portanto, sendo suficientes, dispensam a
suplementação por tradições não escritas. (I. p ➡️q. II. p. III. q)
C) Da Escritura como norma e Regula para a Igreja
Da perfeição da Escritura resulta esta vanglória: é a única e perfeita norma, como
também a regra segundo a qual se deve ensinar a fé e prática na Igreja, testar todos os
espíritos e julgar todas as controvérsias religiosas. Confirmamos isso com os seguintes
argumentos:
I. Do seu próprio título ou nomenclatura:

A Sagrada Escritura é chamada de “cânon” e “escritura canônica”. Portanto, deve ser


também a norma e a regra dos dogmas da Igreja, pois “cânon” significa “vara de medir”,
“regra”, “padrão ou norma.” Por essa razão, as escrituras se colocam e são reconhecidas
como a regula pelo qual toda doutrina ou autoridade deve ser medida e julgada.
(Gálatas 6.16): “E todos quantos andarem conforme essa regra [canoni], paz e
misericórdia sobre eles e sobre o Israel de Deus.”
Os próprios pais também ensinam claramente o motivo a escritura é chamada
canônica. Cipriano, em seu discurso sobre o batismo de Cristo, diz que “todas as regras da
doutrina emanaram da Escritura” Basil, contra Eunom . Lib. I., chama as escrituras de "o
cânon do que é direito e o padrão da verdade.” Agostinho (De perfect Viduit. Cap. 1.) escreve
assim sobre este assunto:
“A sagrada escritura fixou a regra de nossa doutrina, para que não pareçamos ser mais sábios
do que deveríamos, mas sejamos sábios, como diz o apóstolo, sobriamente, conforme Deus deu a cada
homem a medida da fé. Que eu não pense, então, que ao ensiná-los estou fazendo algo mais do que
expor a vocês as palavras do grande Mestre e discursar sobre o que o Senhor lhes deu.”

II. Da norma utilizada no julgamento final:


Qualquer que seja a norma do juízo final, também pode ser a norma da fé e da vida
nesta vida. Mas agora, a Escritura será a norma do julgamento final segundo a qual naquele
Dia do Juízo uma sentença de absolvição será pronunciada sobre os eleitos e uma sentença de
condenação será pronunciada contra os ímpios (Daniel 7:10; João 12:48; Romanos 2:16;
Apoc. 20:2). Portanto, também nesta vida a Escritura pode ser a norma suficiente de fé e vida.

III. Da própria condição de uma norma


As características de uma norma são as seguintes: (1) Autoridade pública: a
autoridade suprema e divina deve tê-la ordenado. (2) Unidade, imutabilidade e infalibilidade.
(3) Autoridade de princípio e sua generalidade: a norma da religião deve ser um princípio
geral ao qual todas as coisas em sua classe são trazidas de volta. (4) Semelhança ou igualdade
com aquilo que normatizou. (5) Entre a norma e o que é normatizado deve existir uma
homogeneidade ou identidade.
Essas características, no entanto, se encaixam apenas nas Escrituras; pois: (1) É
inspirada por Deus e estabelecida publicamente na Igreja (2 Tm 3:[16]). (2) É comum a todos
porque o acesso a ela é sempre aberta a todos. (3) É certa e de veracidade indubitável, pois
veio de Deus mesmo (1 Timóteo 1:15). É invariável e inabalável (Mateus 5:18). É imóvel e
inquebrável (João 10:35). É sempre semelhante a si mesmo, pois os livros do Novo
Testamento estão em consonância com os do Antigo Testamento, e não há contrariedade
genuína em todo o códice da Bíblia, isto é, nos livros canônicos. (4) É primeira porque todas
as coisas são reduzidas a ela, como a primeira verdade e princípio supremo da fé (Mateus
17:5; João 5:39; João 14:6). (5) É adequada para o que se mede porque ensina todas as coisas
necessárias para a salvação perfeita e claramente (2 Tim. 3:16). Portanto, a Escritura
certamente deve ser reconhecida como a única regra de fé na Igreja.
E disso também testificam os antigos. Irineu em Adversus haereses bk. 4, c. 69,
chama a Escritura de “o cânone inabalável da verdade”. Basílio, em Contra Eunom., bk. 1 diz
“Então se um cânone e uma regra não carecem de nada que o torne um cânone e uma regra,
então ele (o cânone) não aceita nenhuma adição que o torne mais preciso, pois uma adição
ocorre devido a um defeito [e a regula só o é, pois, é perfeita, caso contrário não seria regula
de medir]." Tostatus (bispo de Ávilla 1410-1455), sobre Gênesis 4, p. 16: “Porque entre todas
as verdades, a verdade divina é a mais certa e imutável, todas as outras verdades devem ser
reguladas por ela. Eles são verdadeiros na medida em que se conformam a ela. Na medida em
que os homens se desviam dela, porém, desviam-se da natureza da verdade”. Finalmente, a
Sagrada Escritura é chamada de “canônica” Sl. 19:[4] e Gál. 6:16, e nem mesmo os próprios
papistas podem negar isso, pois Belarmino escreve: “Os livros proféticos e apostólicos são a
verdadeira Palavra de Deus e a regra de fé segura e inabalável. Uma regra de fé, entretanto,
tem que ser perfeita; caso contrário, nem sequer é uma regra” (De verbo Dei, bk. 1, c. 1).
Belarmino, porém, para não cair na doutrina do Sola Scriptura, embora admitindo que
a escritura é uma regra de fé, diz que ela não é a única regra perfeita e infalível. Ele diz
(Ibid): “Eu digo, em segundo lugar, que, embora a Escritura não tenha sido feita
especialmente para ser uma regra de fé, ainda assim é uma regra de fé, não completa, mas
parcial. Veja, a regra total de fé é a Palavra de Deus ou a revelação de Deus feita à Igreja,
dividida em duas regras parciais (partim-partim): Escritura e tradição”.
Gerhard responde que é correto dizer que a Palavra de Deus é a única e total regra de
fé e que Belarmino deveria provar, no entanto, que, depois que o cânon da Escritura foi
publicado, esta Palavra foi apresentada parcialmente nas Escrituras e parcialmente em
tradições fora das Escrituras. Mas como ele não pode provar isso, ele deve se apegar ao que é
certo e abandonar o que é incerto. Isto é, ele deveria abraçar conosco a Palavra escrita de
Deus como a única regra de fé e repudiar tradições duvidosas e incertas. Além disso, A
Escritura ou é a regra total de fé, ou não é a regra de fé de forma alguma. Pois se nossa fé for
mais ampla do que a Escritura, a Escritura não poderá ser a regra de fé porque deve haver
homogeneidade entre a norma e o que é normatizado. Varinus define “cânon” como aquilo
que é “uma medida não enganosa que não admite absolutamente nenhuma adição ou
subtração”. Basílio, Contra Eunom., bk. 1: “Enquanto um cânone e regra não faltam nada
para ser um cânone e regra, eles não aceitam adição para torná-los mais precisos, pois a
adição ocorre por causa de um defeito. Onde houver um defeito, no entanto, eles não devem
mais ser chamados de 'regra' e 'cânon'.”

IV. Do fato de que o culto divino foi estabelecido e reformado com base nas Escrituras (2
reis 18 e 22), o que demonstra serem elas a regra pelo qual se mede a liturgia e a
piedade. E;
V. Do apelo de Cristo e dos apóstolos à Escritura: (Lc 24.26, Mt 19.4, Jo. 5.46, At 7.2,
At 18.28, At 13.33, At 26.22, At 17.11). Sobre esse último versículo é proveitoso
comentar que se os Bereanos não foram reprovados, antes foram reputados nobres,
por examinar o ensino do apóstolo pela norma dos escritos proféticos, então nós
também somos permitidos a examinar o ensino do papa de acordo com as Escrituras.
E a isso S. Paulo exorta, pois diz (1 Ts 5.21) para examinar todas as coisas, retendo o
que é bom. Qual haveria de ser o meio de examinar todas as coisas senão conforme a
regra infalível e fixa das escrituras?

D) Das escrituras como juiz máximo das controvérsias na Igreja

Esse tópico está intimamente ligado com o tópico anterior. Porém, antes de expor o
argumento, faz-se necessário esclarecer que o juízo envolvendo as controvérsias na Igreja é
duplo. Há o Juiz absoluto e principal, isto é, o próprio Deus, o autor da Escritura, ou, o que é
o mesmo, o Espírito Santo. Depois, há também o juiz ministerial e inferior, isto é, a Igreja, e
nela especialmente os pastores e doutores da Igreja, cuja responsabilidade é julgar as
controvérsias da fé de acordo com a Escritura. Isto é, há precisamente um juiz julgador e um
juiz que deve ser julgado, há um “juiz a quem” e um “juiz de quem”, como dizem os
advogados. Assim, concedemos à Igreja, representada pelo seu colégio de presbíteros, a
função de juiz ministerial, pois a ela incumbe interpretar as escrituras e guardar seu
verdadeiro significado, mas não de juiz supremo, magisterial e ainda não de legislador,
porquanto ela está debaixo do juízo do juiz final, o Espírito Santo que julga segundo a sua
regula, a Escritura.
Ora, se o Espírito Santo é o juiz supremo e último das coisas da fé e as Escrituras são
seus oráculos, como professamos no credo niceno, então as Escrituras são o juiz e norma
suprema das coisas da fé. O Espírito declara seu julgamento mediatamente, pelas escrituras,
como um instrumento. Isso significa, portanto, que, havendo qualquer antinomia entre a
tradição ou os preceitos da igreja com as Escrituras (especialmente em seu sentido claro e
inequívoco), esta última deve prevalecer, porquanto é superior.
Adiantando a objeção de que a bíblia insistiu a Igreja, ou como eles querem, o papa,
como juiz absoluto e infalível com o texto de 1 Tm 3.15, o qual chama a igreja de coluna e
baluarte da verdade, Turrentini responde (compêndio de teologia apologética, volume I):
“A igreja é a coluna da verdade por seu dever de divulgá-la e fazê-la conhecida (uma vez que
é obrigada a tornar conhecida a lei de Deus e a verdade celestial) e por seu dever de guardiã. Pois, a
Igreja deve não só manifestar a verdade, como também vindicá-la e defendê-la. Portanto, ela é
chamada não apenas de coluna (stylos), como também de baluarte (hedraiõma) da verdade, pela qual
esta se torna conhecida, é vindicada e preservada íntegra contra todas as formas de corrupção. Mas ela
não é chamada funamento (themelion) [como o é a Escritura em ef 2.20], no sentido de comunicar à
própria verdade seu alicerce (hypostasin) e solidez.”
A Igreja, então, é definida como guardiã, baluarte, testemunha, instrumento pelo qual
as escrituras são proclamadas e conhecidas. Ela não fala por si própria, mas transmite aquilo
que a Escritura diz, porquanto seu dever é torná-la sua voz. Por isso, quando S. Agostinho diz
que “não creria no evangelho, se a autoridade da Igreja Católica não o houvesse movido a
isso”, ele não quis dizer que o evangelho deriva sua autoridade da Igreja, mas que a Igreja o
tornou conhecido pelo seu Testemunho contra os maniqueístas, sendo um instrumento para
levar e ensinar as escrituras.
Isso posto, é colocado o argumento. Qualquer que seja a única, imutável e infalível
regra com a qual o juiz ministerial (a Igreja) deve julgar, esta é, em sentido próprio, o juiz
último das controvérsias na Igreja. Visto, porém, que os ministros devem julgar as
controvérsias locais de acordo com a regra da Escritura, de onde derivam sua autoridade,
segue-se que ela, ou Espírito Santo que fala por meio delas como supremo legislador, é o juiz
máximo das controvérsias na igreja. Isso também nos testificam os pais da igreja, pois
Agostinho, comentando sobre as cartas de outro pai da igreja, Cipriano, diz:
[Carta n° 19, 32]: “Não considero as cartas de Cipriano como canônicas, mas as avalio pelas
canônicas; e o que neles concorda com a autoridade das divinas Escrituras, recebo com seus elogios,
mas o que não concorda, rejeito com sua permissão”. E acrescenta: “Porque o que citas não é
canónico, recuso-me a aceitar o que não está de acordo, segundo a liberdade a que o Senhor nos
chamou”. E depois: “Portanto, não aceito esta opinião de Cipriano, que os hereges devem ser
rebatizados.”
O doutor da graça, à Jerônimo, continua:
“Outros escritores (além dos canônicos) eu leio de tal maneira que, por maiores que sejam
em santidade ou saber, não considero uma coisa verdadeira porque eles pensem assim, mas porque
eles foram capazes de me persuadir ou através de outros autores canônicos ou por alguma razão crível
que eles não se afastam da verdade”.
Clemente de Alexandria, Stromat., bk. 7, pág. 156: “Usamos as Escrituras como um juiz para
descobrir coisas. Nada é acreditado até que tenha sido indicado nelas, portanto não é o princípio que
precisa de julgamento. Portanto, compreendemos merecidamente com fé o princípio [a Escritura] e
tiramos dele nossas provas da verdade”. Basílio, Epístola 80 ad Eustath. med.: “Que a Escritura
inspirada por Deus seja nosso árbitro. Todo aquele que achar que os dogmas estão em harmonia com
as palavras divinas, sobre eles terá, por todos os meios, o voto da verdade.
Em reposta à objeção de que as Escrituras são ambíguas e admitem múltiplos
significados, e que, por isso, precisamos de um papa infalível para nos dizer qual o
verdadeiro sentido, Gerhard responde que, embora, existam textos realmente obscuros e que a
função de interpretá-los cabe a igreja pelos métodos de exegese, a Escritura é dotada de
perfeição e perspicuidade, ou seja, no que é essencial à salvação e piedade, fala de maneira
clara e transparente (Sl 19.8, 119.105,Pv 6.23), pois se a Escritura não pode dizer qual é o seu
verdadeiro significado nem pode interpretar a si mesma, então o propósito da Escritura, que é
“tornar os homens sábios para a salvação”, é destruído. Se o papa em seus decretos e
decretais, em suas bulas e resumos pode apresentar seu próprio significado tão claramente
que quem lê os decretos do papa se vangloria de compreender o significado do pretendido,
por que Espírito Santo não seria capaz de falar nas Escrituras tão claramente, de modo que
poderíamos extrair delas o significado certo e genuíno? Se a Escritura não pode expressar
claramente seu verdadeiro significado, por que Irineu afirma (Adv. haeres., bk. 2, c. 46):
“Essas coisas que Deus submeteu ao nosso conhecimento foram colocadas claramente e sem
ambiguidade nas Escrituras nessas mesmas palavras”? Se pela carta de um amigo escrita com
clareza, podemos aprender suas ideias, por que não podemos aprender o verdadeiro
significado das Escrituras, a qual é a carta de Deus Todo-Poderoso escrita para nós?
Portanto, desse tópico se conclui que há um juiz ministerial, a Igreja, a qual julga
segundo uma norma que lhe é primaz e superior, a Escritura. E um Juiz supremo e absoluto (o
Espírito Santo), que julga até mesmo o juiz ministerial, por meio da Escritura. Caso contrário,
se o magistério possuísse autoridade sobre a Escritura para dizer o que é a bíblia e o que não
é, e determinar o seu sentido, ele se colocaria acima da Escritura. Se, como pretendem os
adversários, o magistério da Igreja é quem nos diz o que é a Tradição e quais tradições devem
ser guardadas e como elas devem ser entendidas, ele se coloca acima da Tradição. Se diz
quais pais devemos seguir e o que eles quiseram expressar, se coloca acima dos pais.
Portanto, nesse esquema, o magistério da Igreja se torna a maior autoridade, a qual a todos
julga, mas por ninguém é julgado e, assim, torna-se autônomo, uma lei para si mesmo.
Entretanto, a bíblia diz claramente que a Igreja é o corpo de Cristo, sujeito a seu cabeça,
Jesus. E se as Escrituras são os oráculos de Cristo, então a Igreja deve estar subordinada a
elas como o corpo ao cabeça.

4. Da relação entre a Sola Scriptura e as tradições

O teólogo luterano Martin Chemenitz, na obra, O exame do concílio de Trento,


volume I, discorre sobre a recepção evangélica das tradições guardadas pela Igreja. Nesse
sentido, ele mostra 8 conceitos de tradição, e indica que as igrejas luteranas podem aderir
plenamente aos 7 primeiros. Vejamos quais são esses conceitos e o motivo da rejeição do
último.
I. As coisas que Cristo e os apóstolos nos entregaram oralmente e que, posteriormente,
passaram por Escrito (1 Co 15.3). [A própria definição do Tradition I];
II. Os livros canônicos que foram guardados pela Igreja por um período interrupto de tempo e
por uma sucessão ininterrupta e fielmente transmitido à posteridade. (tópico a ser explorado
com detalhes mais adiante);
III. Aquilo que foi entregue pelos apóstolos e guardado pela Igreja por meio da sucessão de
presbíteros. Essa tradição é pública e materialmente idêntica às Escrituras, o que se prova pela
enumeração dessas tradições por Irineu, todas elas provadas pela Escritura;
IV. A verdadeira exposição do sentido e o significado natural da Escritura, ou seja, interpretação;
V. Dogmas que, embora não explícitos, estão na bíblia e dela podem ser deduzidos logicamente,
como o foram pela Igreja no decorrer do tempo. Exemplos: Batismo infantil, Processão do
Espírito Santo, Trindade, entre outros;
VI. O consenso universal dos pais da Igreja;
VII. Aquilo de que quando os antigos fazem menção a tradições não escritas, eles não se referem
necessariamente aos dogmas de fé aceitos sem o testemunho da Escritura, mas sim aos ritos e
costumes que, por sua antiguidade, são traçados até os apóstolos. Exemplos: Sinal da cruz,
Epiclesis, Renúncia a Satanás no batismo etc.
VIII. Tradições que pertencem à fé e moral, as quais não podem ser provados pela escritura, mas
que o Concílio de Trento ordena que se recebam com igual reverência e veneração (Sessão 4).
Exemplos: Comunhão sob apenas uma espécie, Assunção da Virgem Maria, Celibato clerical
obrigatório, abstinência compulsória de carne às sextas-feiras, tesouro de méritos e
dispensação de indulgências, purgatório, invocação dos santos, infalibilidade papal e muitas
outras doutrinas e práticas que, embora não possam ser provadas com uma exegese honesta
das Escrituras, foram incorporadas na tradição da igreja por meio de bulas papais, pelo direito
canônico, por decretos de concílios e pela prática litúrgica.
A razão da rejeição desse conceito de tradição é evidente: ele pressupõe que a
Escritura não é plenamente suficiente para trazer toda a revelação de Deus no que concerne à
salvação e à piedade, se colocando como um meio paralelo de revelação. Essas são
consideradas tradições de homens, as quais Jesus diz (Mateus 15) serem vãs e afastarem o
povo do que Deus realmente ordenou. Os demais motivos que levaram os reformadores a
rejeitarem esse conceito de tradição como infalivelmente autoritativa já foram expostos
acima. Cabe, agora, ouvir o testemunho dos pais, aos quais, teoricamente, seriam confiadas a
guarda dessas tradições não escritas.
Jerônimo, em Hag. 1:11: “No entanto, a espada de Deus também golpeia as outras coisas que
eles descobrem e inventam livremente como que por tradição apostólica sem a autoridade e
testemunho das Escrituras.” e ainda em Adv. Helvid., vol. 3, f. 6: “Assim como não negamos as coisas
que foram escritas, rejeitamos as que não foram escritas”.
Irineu, adversus haereases, Livro 4, c. 36: “Nenhuma outra tradição que seja vangloriada
sob o título ou nome dos apóstolos deve ser aceita além daquelas que estão incluídas na
Escritura e concordam com ela.”
Cipriano, Epístola 10 ad Pomp.: “De onde vem essa sua tradição? Vem da autoridade do
Senhor? Pois Deus dá testemunho de que devemos fazer as coisas que estão escritas.”
Sobre o texto de João 21, o qual diz que muitas das coisas que Jesus fez não foram
escritas nesse livro, mas os milagres relatados o foram para que lendo, crêssemos que Jesus é
o Filho de Deus, os apologistas católicos inferem que, se nem tudo foi escrito, então,
restariam tradições orais não escritas guardas pelo magistério pelas quais nos são reveladas
outras doutrinas (que ironicamente eles identificam como as suas próprias). Entretanto, o
texto corrobora justamente com a posição da Sola Scrpitura, pois diz que, embora nem tudo
que Jesus fez tenha sido registrado, aquilo que foi escrito no evangelho de S. João é suficiente
para conhecermos o Cristo como o Filho de Deus e , crendo, termos vida em seu nome. Essa
interpretação é dada por Cirilo:
(Livro 12 sobre João 21): “Nem tudo o que o Senhor fez está escrito. Em vez disso, os
escritores escreveram o que acreditavam ser suficiente tanto para o comportamento quanto
para os dogmas, para que brilhando com uma fé correta e obras possamos alcançar o reino dos
céus.”
Por fim, deixo essa citação de Tertuliano de Cartago:
(Adv herg. 22, de carne Chr.6): "Por essa razão, as escrituras possuem autoridade absoluta;
tudo o que ensinam é necessariamente verdadeiro e a desgraça recai sobre aquele que aceita doutrinas
que nelas não se encontram."

5. Respostas às objeções

A) Sobre a questão do Cânon.


I. Se a igreja católica romana, determinou o cânon, então é anterior a ele e,
portanto, primaz, conferindo-lhe, com isso, sua autoridade.
II. Se a bíblia não diz quais livros a constituem, então o apto do Sola Scriptura
precisa buscar fontes externas à própria bíblia para saber o que é a Escritura.

Nós respondemos. Quanto a primeira objeção, cabe ressaltar, a princípio, que a


autoridade da sagrada Escritura não deriva da autoridade da Igreja, mas a tem por si mesma,
enquanto palavra de Deus, pois, como já demonstrado, foi a escritura entendida
materialmente, isto é, por sua substância (a pregação apostólica e profética) que deu origem a
Igreja, a qual veio a existir pela fé nela. A forma escrita, porém, embora posterior à Igreja,
não é, de forma alguma, distinta em substância da forma oral pregada pelos apóstolos. Por
isso, afirmamos que a Escritura, por seu conteúdo, é anterior à igreja e, portanto, primaz.
Dessa forma, a Igreja não pode emprestar a autoridade à Escritura quanto a si mesma, a
menos que queria fazer depender a causa de seu efeito, o princípio daquilo que se deriva dele
e o fundamento, do edifício. Não se nega, todavia, que a bíblia nos é conhecida por meio da
Igreja, que atua como testemunha ou baluarte. Como diz, Gerhard:
[Commonplace I, § 39] “Concedemos que a Igreja é, em primeiro lugar, testemunha; segundo, guarda;
terceiro, defensor; quarto, arauto; e, quinto, intérprete da Sagrada Escritura. Negamos, no entanto, que
por causa disso a autoridade da Escritura, seja simplesmente ou no que nos diz respeito ou mesmo
unicamente, dependa da Igreja”.
Turrentini continua a dissertar sobre a autoridade da Igreja e sua relação com a
Escritura em relação a nós:
[Compend. apolg., Volume I, pg 131): “Pois a Bíblia, com suas marcas, são o argumento em
virtude do qual eu creio. O Espírito Santo é a causa eficiente e o princípio baseado no qual eu sou
induzido a crer. Mas a Igreja é o instrumento e o meio pelos quais eu creio. Consequentemente, se a
pergunta é por que ou em virtude do que eu creio que a Bíblia é divina, respondo que assim creio em
virtude da própria Escritura, que, por suas marcas, comprova justamente isso. Caso se pergunte como
ou com base no que eu creio, responderei: com base no Espírito Santo, que produz tal convicção em
mim. Finalmente, caso me perguntem por qual meio ou instrumento eu creio nela, responderei: por
meio da igreja, que Deus usa na proclamação das Escrituras a mim.”
Logo, se a autoridade da Escritura não depende de sua determinação pela Igreja, mas
de sua inerente autoridade, em virtude da sua causa eficiente, o Espírito Santo, deve-se
concluir que, ao contrário do que supõem os papistas, a bíblia não foi formada ou tornada
autoritativa pela decisão arbitrária de um magistério unificado, nem de uma decisão papal ou
decreto conciliar, mas como diz Bavinck, “o cânon bíblico foi formado pouco a pouco, por
Deus, o diretor das mentes e do tempo.” E isso se deu por um longo processo, envolvendo
igrejas de diversas jurisdições espalhadas pelo mundo, que reconheceram, milagrosamente, o
mesmo cânone neotestamentário por meio de sua prática litúrgica e seu uso nas igrejas locais,
como atesta Justino (Apol 67.4) e Eusébio de Cesaréia (Hist. eclesi. 3.39), bem como pela sua
identidade com a profissão credal. Ademais, é lícito citar Baker:
“O fato de que a Igreja como um todo veio substancialmente a receber os mesmos 27 livros
como canônicos é notável quando lembramos que esse resultado não foi imposto. Tudo o que as
igrejas espalhadas pelo Império podiam fazer era darem testemunho de suas próprias experiências
com os documentos e partilharem todo e qualquer conhecimento que pudessem ter sobre a origem
desses documentos. Quando se leva em conta a diversidade de contextos culturais e de orientações
quanto aos aspectos essenciais da fé cristã dentro das igrejas, o fato de terem concordado quanto a
quais livros pertenciam ao N.T serve para indicar que essa decisão final não teve apenas origem
apenas no nível humano.”
J.N.D Kelly e Paulo Won ensinam que o processo de formação do cânon bíblico foi
gradual e pautado, não na submissão a um magistério centralizado e sua decisão decretiva,
mas no reconhecimento e recepção dos livros a partir dos seguintes critérios:
1. Apostolicidade: Se não ficasse comprovado que um livro era de autoria de um
apóstolo ou autorizado por eles, era prontamente rejeitado como sendo não
inspirado. Isso porque os Apóstolos foram testemunhas visuais e receberam de
Jesus a infalibilidade doutrinária. Assim, somente a eles cabia a revelação da
fé.
2. A catolicidade: Esse critério levava em consideração se as Igrejas
universalmente espalhadas receberam e reconheceram, por meio de sua prática
litúrgica e devocional, a autoria apostólica e a consequente inspiração dos
livros.
3. Harmonia material com a ortodoxia: Segundo esse parâmetro, nenhum escrito
neotestamentário poderia apresentar dissonância doutrinária em relação uns
aos outros e ao credo como formulação da pregação apostólica.
Ademais, prova-se que a formação do Cânon foi um processo gradual e universal pela
existência e desenvolvimento das listas que indicavam a recepção desses livros, o cânone
marcionita, o cânon muratoriano, o cânon eusebiano e, por fim, o cânon cartaginense. Por
essa razão, a autoridade dos livros canônicos depende de si mesma, ou de sua causa eficiente,
pois esses foram reconhecidos em virtude da sua apostolicidade, ortodoxia e catolicidade. Em
suma, afirmamos que a igreja não decidiu arbitrariamente a lista de livros canônicos, mas
recebeu dos apóstolos seu ensino e seus escritos e os preservou por meio da vida litúrgica até
que, gradualmente, formou a lista que hoje conhecemos, pois, assim como o valor de uma
pedra preciosa não é determinado pelo geólogo que a descobre e guarda, mas por sua
preciosidade inerente, o valor da bíblia não é determinado pela Igreja que a guarda, mas por
si mesma. E isso os próprios papalistas devem reconhecer, pois Belarmino diz:
[De verb. Dei, bk. 1, c. 10, § Itaque]: “Admitimos que a Igreja não pode, de modo
algum, fazer de um não canônico um livro canônico. Em vez disso, só pode declarar o
que se deve considerar canônico”
Quanto à segunda objeção, respondemos que a bíblia nos diz o que é a Escritura (Hb
4.12, 2 Pe 1.20, PV 30.5), a saber, os oráculos divinos levados à forma escrita por inspiração
do Espírito Santo. Ora, saber quais livros são Escritura é discernir quais livros foram
inspirados pelo Espírito Santo, isto é, os escritos proféticos e apostólicos. Se foi da vontade
de Deus se revelar pelas Escrituras, Ele, de forma alguma, deixará que sua revelação ao
homem se perca, ou seja insuficiente. Por sua providência, Deus usa a igreja, que a própria
Bíblia diz ser a guardiã e testemunha da Bíblia, para preservar, receber e reconhecer os
sagrados escritos. E isso se dá pela compreensão dos critérios de apostolicidade, harmonia
material e universalidade na recepção dos livros. Portanto, sabemos quais livros são
canônicos porque a bíblia nos diz que o que é Escritura, a saber, os escritos inspirados, que
não provém de interpretação humana, mas da inspiração do Espírito. Não negamos o
testemunho da Igreja (pelo segundo conceito de tradição) para nos ajudar a identificar e
receber esses livros e isso de modo algum faz a autoridade dos livros canônicos depender da
Igreja.
Mas alguém ainda pode objetar: Se aceitam a tradição que testifica sobre o cânon
bíblico, por que não aceitar todas as demais tradições eclesiásticas? A isso respondemos
questionando como os judeus puderam reconhecer o cânon bíblico antes de Cristo, sendo que
o próprio Cristo e seus apóstolos o aceitam ao mesmo tempo em que criticam as tradições não
escriturísticas farisaicas, as quais eram louvadas por sua antiguidade (Mat 15). Da mesma
forma em que se crê que Deus, pela sua providência, organizou as coisas de forma que os
oráculos do Espírito passados para a forma escrita chegassem ao conhecimento dos judeus
sem que todas as suas tradições fossem feitas infalíveis, Ele faz, com sua providência, que os
oráculos do Espírito nos escritos apostólicos cheguem até nós sem tornar todas as tradições
da igreja que os preservou infalíveis. Daí, também, se responde à objeção de que um cânon
infalível, exige uma igreja infalível, pois, se assim fosse, a “Igreja” israelita
veterotestamentária seria também infalível, visto que o A.T o é. Ora, visto ser consenso que a
“Igreja” judaica não era infalível, pois, se fosse, não rejeitaria o Cristo, e, mesmo assim, seu
cânone é infalível, negamos a conclusão ao mesmo tempo em que demonstramos ser possível
uma comunidade de fé existir e ser preservada sem um magistério infalível. Por fim, cabe
ressaltar que, se Deus, por sua providência infalível, pode preservar e nos fazer reconhecer os
escritos sagrados, é plenamente possível crermos em um cânon inerrante, mesmo sem a
necessidade de reconhecer uma testemunha (a Igreja) infalível, porquanto a infalibilidade não
é condição necessária para a perfeição em determinada tarefa ou função.

2. Se o Sola Scriptura é logicamente inconsistente

O Argumento é o seguinte: p1. O Sola Scriptura ensina que toda doutrina necessária à
salvação e piedade se encontra na bíblia. p2. O Sola Scriptura não se encontra na bíblia. C.
logo, o Sola Scriptura se auto-refuta.
Não preciso me alongar nessa resposta, posto que a premissa 2 já foi suficientemente
respondida na sessão da apologia. Respondo, porém, invertendo o argumento. De onde vem,
então, a autoridade infalível da Igreja? Os apologistas romanos não tardam em buscar provar
isso pela Escritura. Mas, ora, não é o magistério da Igreja que determina a escritura e seu
sentido? Sendo assim, usa-se a própria conclusão da infalibilidade do magistério para
interpretar a Escritura a fim de provar o magistério, o que é um argumento circular e sofista.
Admitindo, porém, que essa autoridade infalível advém não só da Escritura, mas também da
tradição oral, o sofismo se mantém. Ora, não é o magistério da Igreja o encarregado de nos
promulgar e interpretar a tradição? Se o magistério infalível é premissa para conhecermos e
recebermos as tradições e, simultaneamente, a conclusão, trata-se novamente de um
argumento circular. Se a resposta for: “A autoridade infalível da Igreja antes da Escritura
advém da instituição de Cristo”, eu pergunto “E como conhecemos a veracidade dessa
instituição?” A resposta é invariavelmente “pela Escritura (Mt 16.16) ou/e pela tradição”, o
que nos levará ao mesmo problema da circularidade exposto anteriormente.
O apologista romano pode ainda questionar: “Mas vocês também reconhecem a
autoridade da Escritura por meio da Escritura, isso seria um auto-testemunho que padece do
mesmo vício da circularidade.” Aqui, devemos ter o cuidado para denotar que o auto-
testemunho da Escritura parte do próprio Deus, pois sua causa eficiente é o Espírito Santo,
em unidade com as demais pessoas da Santíssima Trindade. Se o o auto-testemunho de uma
pessoa divina não fosse válido, isso significaria que o testemunho de Cristo seria inválido.
Observe essa passagem:
(João 8. 13-14): ”Os fariseus lhe disseram: ‘Você está testemunhando a respeito de si próprio.
O seu testemunho não é válido!’ Respondeu Jesus: ‘Ainda que eu mesmo testemunhe em meu
favor, o meu testemunho é válido’, pois sei de onde vim e para onde vou. Mas vocês não sabem de
onde vim nem para onde vou.”
Se os católicos estiverem certos sobre a falaciosidade do auto-testemunho, então eles
negam, assim como os judeus, o testemunho do próprio Cristo. Não obstante, a escritura
prova-se por si mesma, como demonstra Turrentini:
“A autoridade inerente da Escritura prova-se pela natureza dos mais elevados gêneros e dos
primeiros princípios, pois essas coisas são conhecidas por si mesmas e não são suscetíveis
(anapodeikta) de prova que não possa ser demonstrada por qualquer outra; do contrário, a coisa
continuaria infinitamente. Daí Basílio dizer que ‘é necessário que os primeiros princípios de toda
ciência sejam auto-evidentes’. A Escritura, que é o primeiro princípio da ordem sobrenatural, é
conhecida por si só e não tem necessidade de argumentos derivados de fora para comprovar-se e
fazer-se conhecida a nós. Se Deus esculpiu tais marcas nos primeiros princípios que podem ser
conhecidos imediatamente por todos os homens, não podemos nutrir dúvida de que ele as colocou
nesse primeiro princípio sacro (no mais elevado grau necessário à nossa salvação).”
Em síntese, assim como todo argumento lógico, na lógica clássica, parte da aceitação
universal de princípios auto-evidentes, quais sejam, os princípios fundamentais da lógica, a
bíblia, por ser o princípio e regra pelo qual se constrói todo edifício doutrinário, também deve
ser auto-evidente e, assim, pode testemunhar de si mesma e tem autoridade de si mesma, ou
de seu autor. O mesmo não pode ser dito da Igreja, a qual não tem sua autoridade reconhecida
de modo auto-evidente e nem pode testemunhar de si mesma, porquanto, como demonstrado,
é o edifício que está construído sobre um fundamento que lhe é anterior e o é por princípio: o
ensino dos profetas e apóstolos (Ef 2,20)

3. Se o Sola Scriptura leva uma anarquia interpretativa ou se torna a doutrina crida pela
igreja instável e insegura pela falta de infalibilidade do intérprete

Para responder essa objeção, basta diferenciar a doutrina do Sola Scriptura, Tradition
I, da doutrina da Nuda Scriptura, Traditon 0. A objeção funciona perfeitamente quando
aplicada ao segundo, pois a Nuda Scriptura, rejeita a autoridade das tradições, dos credos,
dos concílios, dos pais e da Igreja para vindicar uma noção individualista e subjetivista da
livre-interpretação, o que, realmente, conduz a uma anarquia eclesiástica e teológica. A Sola
Scriptura, por sua vez, pressupõe que a verdadeira interpretação bíblica só existe na Igreja,
com a Igreja e pela Igreja, pois entende a Igreja como juiz ministerial, testemunha, bastião,
baluarte e guardiã da bíblia. Por isso, abraçamos de bom grado a tradição, os credos, o
testemunho dos pais, os concílios e as confissões de fé que não contrariem as sagradas
Escrituras, a qual testifica que é dotada de perspicuidade e clareza em seus pontos
fundamentais explícitos ou implícitos. Para os defensores da Sola Scriptura, portanto, a bíblia
como única fonte infalível de doutrina deve ser interpretada pelos ministros da igreja, a
corporação de presbíteros, chamados e ordenados para isso pelo próprio Senhor e pela Igreja
em uma sucessão contínua, a luz dos credos históricos, do consenso dos pais, dos métodos de
exegese e do ensino de 2 mil anos que a história nos proporcionou. Em caso de controvérsias,
como diz Calvino, o antídoto é a convocação de um sínodo de presbíteros que, a partir da
Escritura e submissos a ela, julgarão, ministerialmente, os casos, como já ocorreu na história,
por exemplo, da Igreja Luterana com as controvérsias que resultaram na fórmula de
concórdia, um documento confessional elaborado por ministros reunidos em torno das
Sagradas Escrituras.

Conclusão
Portanto, em vistas aos numerosos argumentos acima expostos, concluímos que a
doutrina evangélica do Sola Scrpitura não é só plausível, como também lógica e bíblica. Esse
longo ensaio abordou os principais argumentos utilizados pelos apologistas protestantes do
século XVII em defesa do Sola Scrpitura, bem como as respostas às principais objeções a
eles. Cremos que com isso, o leitor poderá estar equipado com argumentos sólidos em defesa
dessa bela e gloriosa doutrina. Que a palavra de Deus tenha primazia sobre as nossas vidas e
direcione todos os nossos pensamos e que, assim como Lutero, possamos bradar que nossa
consciência está cativa à Palavra de Deus!

Referências e bibliografia
The shape of Sola Scriptura, Keith Mathinson
Compêndido de Teologia apologética, volume I, François Turrentini
On the nature of Theology and on Scripture, J. Gerhard
Examination of the Council of Trent, volume I, Martin Cheminitz
A disputation on Holy Scriptures, Whitaker
E Deus falou na língua dos homens, Paulo Won
Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé Cristã, J.N.D Kelly
Teologia da Reforma, Mattew Barret
A história dos concílios ecumênicos, Giuseppe Alberigo
Documentos do concílio de Trento, Montfort
The relationship between sola scriptura and Tradition, Just and Sinner podcast

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