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A SUCESSÃO APOSTÓLICA:

Uma abordagem alternativa


Reverendo Cônego Jorge Aquino.

O tema da Sucessão Apostólica é muito significativo para


os Anglicanos. No entanto ele ainda precisa ser bem
compreendido para que não estejamos defendendo teses
não-necessariamente vinculadas com o Anglicanismo
clássico.

Antes de tudo, é digno de nota que a expressão


“sucessão apostólica” não se encontra no conhecido
Quadrilátero Chicago-Lambeth, criado pelo Reverendo
William Reed Huntington. Surpreendentemente, na sua
origem, aquilo que vemos como o quarto elemento
essencial do Anglicanismo diz respeito ao “Episcopado
Histórico, adaptado localmente nos métodos de sua
administração às diversas necessidades das nações e
dos povos chamados por Deus na unidade de Sua Igreja”.
Eis que surge aqui uma grande questão: porque existe
essa diferença na formulação da questão?

Um outro aspecto que é digno de nota me foi colocada


em uma carta pessoal que recebi do bispo Roy Morales-
Kuhn da Anglican Ortodox Church, na qual ele assim se
expressou sobre esse tema: “O conceito de algum tipo
de autoridade para a existência derivar de uma linha
ininterrupta de bispos consagrados nos últimos dois
milênios é uma falácia histórica. Devido à turbulência e ao
caos durante o nascimento da igreja primitiva, grande
parte de nosso entendimento da linha direta de
sucessores dos primeiros bispos consagrados pelos
Santos. Paulo, Timóteo, Tito e outros não podem ser
totalmente autenticados. O conceito começou a se reunir
nos últimos dias da igreja primitiva, a fim de combater
heresias”. Há nesta explicação feita pelo bispo Roy
Morales-Kuhn alguns elementos interessantes. Primeiro
ele é incisivo ao afirmar que este conceito de existência
de uma linha ininterrupta de bispos consagrados nos
últimos dois mil anos é claramente uma “falácia
histórica”. O que torna essa argumentação mais
interessante é que a totalidade das linhagens que
chegaram até mim, hoje, se iniciava com Padro, em
Roma. Ora, qualquer seminarista sabe que a presença
física de Pedro em Roma é uma possibilidade histórica
muito remota, ainda que a Igreja de Roma diga que ele foi
o primeiro papa. Creio que o que realmente importa,
segundo a argumentação do bispo Roy Morales, é que
aquele que se apresenta para o ministério episcopal
esteja disposto a manter-se fiel à fé que de uma vez por
todas, foi dada aos santos (Judas 1: 3).

Aparentemente, a posição exposta no site da GAFCON


também é bastante reveladora e segue em uma direção
similar. Lá lemos a seguinte afirmação sobre a “Sucessão
Apostólica”: “A fidelidade Anglicana à nossa herança
apostólica é simbolizada pela prática da imposição de
mãos pelos bispos na consagração de um novo bispo.
Esta prática é apontada como a continuação de uma linha
de sucessão apostólica que remonta aos primeiros dias
da Igreja, mas não estabelece um direito absoluto ao
reconhecimento e à autoridade espiritual. É um símbolo
vazio se os bispos deixarem de ser fiéis sucessores dos
apóstolos em seus ensinamentos. O apóstolo Paulo
expõe o que é exigido de um episcopado fiel, como
acontece com todos os ministros do evangelho, quando
ele instrui Tito que um superintendente ‘deve manter-se
firme à palavra confiável como ensinada, para que ele
possa dar instruções sobre sã doutrina. e também para
repreender aqueles que a contradizemʼ (Tito 1: 9)”. (Texto
disponível em: https://www.gafcon.org/about/orthodox-
anglican, acessado em 30 de outubro de 2019).

Há algumas questões que essa definição coloca. A


primeira delas é que a imposição das mãos dos bispos é
vista apenas como um símbolo da “fidelidade Anglicana à
nossa herança apostólica”. Não se fala de uma linha
ininterrupta de imposições de mãos, mas de uma fé
herdada de forma ininterrupta. Em segundo lugar, a
exposição feita acima deixa claro que essa imposição de
mãos ininterrupta “não estabelece um direito absoluto ao
reconhecimento e à autoridade espiritual”. Isso ocorreu
no passado – quando víamos bispos que mesmo estando
dentro da sucessão apostólica pregavam heresias -, e
pode ser encontrada nos dias de hoje, quando um
conhecido bispo da Diocese da California procurava falar
com o espírito de seu filho falecido em seções religiosas
próprias de outras religiões. Nesse sentido, o texto diz
que tal imposição ininterrupta de mãos não passa de “um
símbolo vazio se os bispos deixarem de ser fiéis
sucessores dos apóstolos em seus ensinamentos”.
Finalmente, o texto é muito claro quando afirma que o
que Paulo realmente desejava de seus sucessores era
que eles se mantivessem “‘firme à palavra confiável
como ensinada, para que ele possa dar instruções sobre
sã doutrina. e também para repreender aqueles que a
contradizem'(Tito 1: 9)”.

Percebemos, portanto, que o que interessava a Paulo era


guardar a fé apostólica diante daqueles que apregoavam
doutrinas erradas. Esse pensamento pode ser
encontrado na exposição feita por Colin Buchanan,
quando afirma que antes da época de Cipriano o tema da
sucessão dos apóstolos era uma das questões preferidas
de Irineu. Para ele, “Contra as seitas heréticas, ele apela
para ela como uma nota da verdadeira Igreja. Ele lista os
bispos de Roma desde os apóstolos, traça seus próprios
ensinamentos através de Policarpo até João, e ressalta
que não havia valentinianos antes de Valentinus, nem
marcionitas antes de Marcion. Podemos ver que aqui
também não temos insistência em sucessão apostólica
por si mesma, mas apenas para um certo fim. Se
examinarmos esse fim, veremos que a ‘sucessãoʼ não a
garantirá hoje” (BUCHANAN, 1961, p. 22). Em outras
palavras, a ideia de uma sucessão apostólica está
intimamente ligada à preservação da fé apregoada pelos
apóstolos e não a uma transmissão mágica de poder.
Irineu escrevia contra a heresia gnóstica, que se opunha
à tradição imutável da Igreja, ou seja, à sua tradição
apostólica.

A questão é aprofundada quando se compara a Sucessão


Apostólica com a recepção do depositum fidei
apostólico. Isso nos remete a uma questão levantada por
São Paulo sobre a verdadeira identidade dos filhos de
Abraão. No livro de Romanos, Paulo deixa bem claro que
os verdadeiros filhos de Abraão não são necessariamente
aqueles que receberam a circuncisão no corpo, mas os
que a receberam no coração, ou seja, os que creem.
Vejamos suas palavras: “Assim ele recebeu a circuncisão
como sinal, como selo da justiça que ele tinha pela fé,
quando ainda não fora circuncidado. Portanto, ele é o pai
de todos os que creem, sem terem sido circuncidados, a
fim de que a justiça fosse creditada também a eles
(Romanos 4: 11). O símbolo externo não é mais
importante do que a realidade interna (fé) da qual a
circuncisão é apenas um sinal.

Ora, Abraão é o Pai dos que creem, logo, seria natural


afirmar que os verdadeiros filhos de Abraão seriam
aqueles que permaneceriam na mesma fé de seu pai, e
não, simplesmente, aqueles que tiveram seus prepúcios
retirados. A retirada do prepúcio era um sinal de
pertencimento, tanto quanto a imposição das mãos de
um bispo que está dentro da sucessão apostólica
também o é. Mas assim como a retirada do prepúcio não
garante que aquela pessoa tenha a mesma fé que Abraão
teve, a imposição das mãos de um bispo que está dentro
da linhagem apostólica também não garante que o novo
bispo tenha o mesmo compromisso com os
ensinamentos dos apóstolos. É neste sentido que o bispo
Headlam diz que a sucessão apostólica é “um fato, não
uma doutrina”.

O episcopado é um fato “histórico”, e na qualidade de


“histórico”, ele deve ser compreendido como “O bispo é
um guardião e intérprete do ensino apostólico, o locus de
comunhão para a igreja local, o focus de sua unidade e
missão, seu representante nos conselhos da igreja
universal, e (com seus colegas bispos e sacerdotes)
parte do processo de discernimento e declaração da
vontade de Deus em cada geração. É na combinação de
todos esses fatores que a natureza ‘históricaʼ do
episcopado é estabelecida” (THOMAS. ANVIL. Vol 15, nº
2, 1998, p. 95).

Muito embora a circuncisão seja muito importante para


que alguém se diga descendente de Abraão, o sinal ou o
símbolo não é maior do que a coisa simbolizada, nem os
gestos maiores do que aquilo para o qual eles apontam.
Assim, a apresentação de uma lista ininterrupta que vai
até ao apóstolo Pedro de nada adianta se tal bispo não
acredita, não defende nem propaga a fé dos apóstolos.
Antes de mais nada, o bispo precisa ser o guardião do
ensino apostólico e o sinal de unidade – não de divisão –
da Igreja Católica de Cristo. O critério principal – embora
não o único – para que o bispo tenha a sua sucessão
garantida está na satisfação do critério estabelecido por
Vicente de Lerins, ou seja, se sua fé é parte do
depositum fidei de toda a Igreja Católica.

Referência Bibliográfica:

BUCHANAN, Colin. The Church of England and Apostolic


Succession. The Churchmam. Vol LXXV, Nº 1, 1961.

THOMAS. Philip. “The historic episcopate, locally


adapted”: an element of Anglican tradition. ANVIL. Vol 15,
nº 2, 1998

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