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Em defesa de Sola Scriptura

Antes de referir-nos ao artigo traduzido e publicado em apologeticacatolica.org com


o título "Bíblia e Tradição...", convém resumir – para evitar mal-entendidos - o que
os evangélicos entendem por Sola Scriptura. Digo isto porque embora "Sola
Scriptura" – somente a Bíblia - possa tomar-se como uma declaração que não
necessita de comentários, na realidade não é assim. Ocorre mais ou menos como
com a teoria da Relatividade ... que não significa que "tudo é relativo". Sola
Scriptura significa:

1. Que a Bíblia é a única regra infalível da fé (doutrina) e da prática (costumes).

2. Que o ensino da Bíblia é suficiente para que as pessoas aceitem Jesus Cristo
como Senhor e Salvador, e fazendo o que ela diz, alcancem a vida eterna.

Corolários:

1. A Igreja de Jesus Cristo não necessita de revelações que não se achem


explicitamente ou por lógica e clara implicação na Bíblia.

2. Não há outra regra infalível de fé fora das Escrituras.

Por outro lado, Sola Scriptura NÃO significa:

1. Que a Bíblia contenha absolutamente tudo o que Deus disse e fez.

2. Que a Palavra de Deus não se tenha transmitido oralmente em muitas ocasiões e


situações históricas.

3. Que a Igreja careça de autoridade para interpretar, ensinar e defender a Palavra


de Deus.

4. Que toda a tradição não escrita deva ser rejeitada a priori e a fortiori.

Os cristãos evangélicos crêem que a Igreja é coluna e fundamento da verdade, que


deve ter mestres piedosos e conhecedores das Escrituras, e que muitas tradições
são expressões válidas da fé cristã. Aceitam as expressões normativas dos Credos
dos primeiros concílios ecuménicos, e tomam seriamente os ensinos dos Padres,
assim como dos muitos e muito bons mestres, doutores e comentaristas que Deus
deu à Igreja ao longo dos séculos. Não crêem que a Escritura seja de interpretação
privada (livre interpretação), mas sustentam o princípio do Livre Exame.

Se aceitam algumas coisas e rejeitam outras, o fazem com base no que consideram
ser os ensinos das Escrituras. O ensino da tradição – sim, mesmo da sua
própria tradição - , dos concílios, dos Padres, etc, deve conformar-se às Escrituras,
que são a Palavra final, inspirada e infalível de Deus.

Agora dirijamo-nos ao artigo em questão, e vejamos o quão firmemente estabelece


a sua tese, e no final incluirei um resumo das razões bíblicas que nos obrigam a
reafirmar o princípio de Sola Scriptura.

O autor (Armstrong) reconhece que os Protestantes não ignoram "a importância e


validade da história da Igreja, da Tradição, dos Concílios ecuménicos, ou da
autoridade dos Padres da Igreja e destacados teólogos. A diferença reside na
relativa posição de autoridade mantida pela Escritura e pelas instituições e decretos
da Igreja."

Note-se que o autor sabe perfeitamente que a diferença fundamental não é a


rejeição de toda outra autoridade além das Escrituras, ainda que aquela se
considere subordinada a estas. Contudo, depois se afirma que "A prevalência do
sola Scriptura, de acordo ao pensamento católico, facilitou uma estendidíssima
ignorância e desprezo da história da Igreja entre os protestantes comuns."

Suponho que a obscura referência aos protestantes "comuns" se referirá àqueles


mais ignorantes. Deveria ser óbvio que ainda que tal coisa seja verdade, não é
menos certo que os católicos "comuns" são tão ou mais ignorantes da história, e
por acréscimo das Escrituras. Limitam-se a assentir sem examinar tudo quanto a
sua Igreja diga que é certo. Quanto ao conhecimento da história entre os católicos,
pois, deve referir-se aos católicos cultos, que então deveriam comparar-se com os
protestantes instruídos; e neste caso o suposto desnível desaparece ou inclusive se
inverte.

"O Catolicismo afirma que a sua Tradição é nem mais nem menos que a
conservação do ensino de Cristo tal e como foi revelado e proclamado pelos
Apóstolos. Existe um desenvolvimento, mas apenas no sentido de um aumento do
entendimento que não na essência, desta Tradição apostólica. O Catolicismo afirma
ser o guardião e custódio do depósito original da fé a qual foi uma vez entregue aos
santos (Judas 3)."

Haverá que tomar cuidadosa nota deste parágrafo, segundo o qual, e em


conformidade com a doutrina católica, se sustenta que a Tradição que a Igreja de
Roma considera inspirada e portanto dotada de suprema autoridade não é toda a
tradição que possa ter essa ou outras igrejas, mas aquelas que remontam
directamente ao Senhor e aos Apóstolos.

"Deve anotar-se também que a palavra escrita e a massa enorme de literatura foi
propagada amplamente apenas desde a invenção da imprensa por volta de 1440.
Desse modo, essa palavra escrita não pôde ter sido a principal transmissora do
evangelho durante pelo menos catorze séculos. Os cristãos anteriores no tempo à
Reforma Protestante aprenderam sobretudo através das homilias, dos sacramentos,
da liturgia e seu calendário anual, das festas cristãs, das práticas devocionais,
instrução familiar, arquitectura eclesial e outro tipo de arte sacra que reflectia
temas bíblicos. Para todos esses crentes, o sola Scriptura teria sido claramente uma
absurda abstracção de impossível colocação em prática."

Eis aqui uma falácia repetida até à exaustão pelos apologistas católicos. É tão óbvia
que deveria pelo menos dar-lhes vergonha de repeti-la. A existência de milhares de
manuscritos bíblicos indica que, por muito tempo, os cristãos puderam fazer para si
cópias de parte ou de toda a Bíblia, mas este não é o ponto.

Os protestantes não afirmam que a Palavra escrita tenha sido o principal veículo de
transmissão, mas que é a fonte definitiva da Verdade revelada. Por ela é possível
julgar as homilias, os sacramentos, a liturgia, etc. A questão é se a nossa pregação
e as nossas práticas são conformes às Escrituras, não se cada cristão que existiu
tinha uma Bíblia. Portanto, o argumento além de falacioso é irrelevante.

"Apenas um preconceito prévio contra tal noção ou uma indevida fixação na


rejeição por parte de Cristo do corrupto, tradições humanas farisaicas, poderia
cegar alguém perante a considerável força dos dados escriturais. Dito de outra
forma, a Escritura não ensina o sola Scriptura, um conceito que se baseia no uso de
um documento (a Bíblia) contrariamente ao que o próprio documento testemunha
explícita e implicitamente."

A isto se responde no final.

"É absurdo para qualquer cristão desdenhar o que Deus ensinou a milhões de
outros cristãos ao longo dos séculos."

Não posso interpretar este parágrafo senão como um profundo preconceito contra
os evangélicos. Quem terá dito a este bom senhor que em conjunto desprezamos
os santos e os sábios do passado? A questão não é essa, isto não é o que se
discute. O que está em jogo é a norma final de autoridade: Bíblia ou Bíblia mais
tradição apostólica.

Note-se que aqui se contrapõe Sola Scriptura com "o que Deus ensinou a milhões
de outros cristãos ao longo dos séculos." Aqui deixa transparecer -
involuntariamente, suponho - a verdadeira origem e natureza da tradição católica,
a saber, a religiosidade popular das massas. Porém, esta tradição secular NÃO é a
que nominalmente defende Roma, já que teoricamente esta última tradição não foi
dada às massas nem ao longo de séculos, mas proviria directamente do Senhor e
dos seus Apóstolos, que a receberam num intervalo de décadas. Contudo, na
prática Roma confunde uma com outra, e de facto atribui sanção dominical e
apostólica a coisas que provêm da religiosidade popular.

"No Novo Testamento, em primeiro lugar, encontramos um testemunho bem claro


do facto de que a Escritura não contém todo o ensino de Cristo. Presumivelmente
ninguém negaria isto, mas os Protestantes costumam negar que qualquer dos Seus
ensinos não recolhidos na Escritura poderiam ter sido fielmente transmitidos
oralmente pela primitiva tradição apostólica."

Não existe razão a priori para negar que alguns ensinos do Senhor que não estão
nas Escrituras poderiam ter-se transmitido por tradição oral. Deus é soberano, e
pode fazer as coisas como a Ele lhe aprouver. Não corresponde a nenhum ser
humano dizer a Deus como fazer melhor as coisas... O problema surge quando
queremos determinar a este respeito qual foi a vontade de Deus.

É certo que a investigação histórica sugere que alguns ditos de Jesus poderiam ter-
se conservado fora do Novo Testamento (por exemplo, Joachim Jeremias, "Palabras
desconocidas de Jesús", trad. cast., Salamanca: Sígueme, 1979). Mas isto é por
sua própria natureza duvidoso, e em todo o caso não afecta as doutrinas centrais
do cristianismo.

Por outro lado, a própria Bíblia dá testemunho do pouco confiável que é a tradição
oral no médio ou longo prazo. "Por isso o dito se propagou entre os irmãos que
aquele discípulo não morreria, mas Jesus não disse que não morreria..." (João
21:23). João obviamente corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea.

Ora bem, segundo o dogma romano, o depósito da tradição apostólica oral ficou
fixado no primeiro século, e não é possível tirar nem acrescentar nada a ele (ainda
que se admita a noção de "desenvolvimento" tão habilmente proposta pelo Cardeal
Newman). Ainda que a Igreja de Roma tenha apelado a tal suposta Tradição oral
apostólica (como ao duvidoso "consenso unânime dos Padres) para definir alguns
dogmas, o protestante se pergunta – e o católico deveria perguntar-se - o
seguinte: por que estranha razão nos séculos decorridos desde o tempo dos
Apóstolos, a Igreja de Roma não determinou e enunciou os limites precisos da
tradição que diz zelosamente guardar? Por certo, as pretensões do romanismo
poderiam tomar-se mais seriamente se o Papa por si ou mediante uma comissão
realizasse tal tarefa. Até que se demonstre o contrário, cabe pensar que a tradição
apostólica oral não é mais real do que o traje novo do imperador.

O nosso apologista romano apela depois aos seguintes "textos de prova":

"Marcos 4:33 E lhes anunciava a Palavra com muitas parábolas como estas . . .

Em outras palavras, como se entende, muitas parábolas não estão recolhidas na


Escritura"

O Evangelho de Marcos não apresenta senão nove do total de 46 parábolas de


Jesus que se acham nos Evangelhos. Portanto, é lógico pensar que Marcos se refere
às outras 35, e portanto a afirmação que "muitas parábolas não estão recolhidas na
Escritura" é gratuita.

"Marcos 6:34 . . . e começou a ensinar-lhes muitas coisas.

Nenhuma destas muitas coisas está reflectida aí

João 16:12 Ainda tenho muito que vos dizer; mas vós não o podeis suportar agora.

Talvez, este muito foi falado durante as suas aparições depois da Ressurreição, às
quais se alude em Actos 1:2-3 (ver mais abaixo). Muito poucos destes ensinos se
guardaram por escrito, e aqueles que o foram, contêm apenas mínimos detalhes."

Se o Novo Testamento concluísse com os Evangelhos, o argumento baseado nestes


textos e em Actos 1:2-3 teria algum mérito. Contudo, os Apóstolos evidentemente
receberam e ensinaram "muitas coisas" que não se acham nos Evangelhos mas
estão registadas nos Actos, nas Epístolas e no Apocalipse. Em outras palavras,
cerca da metade do Novo Testamento está dedicada a estes ensinos. O romanista
se vê obrigado a ocultar este facto tão evidente para buscar apoio para a sua tese.

"João 20:30 Jesus realizou em presença dos discípulos muitos outros sinais que
não estão escritos neste livro."

Aqui se esqueceu do contexto, ao qual reconhece tanta importância na hora de


refutar os evangélicos. O versículo 31 continua: "Mas estes foram escritos para que
creiais que Jesus é o Cristo, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome." Nem o
propósito de João nem o de nenhum dos Sinópticos parece ser proporcionar um
registo exaustivo. O mesmo vale para João 21:25. Ao que parece o Espírito Santo
não o considerou necessário. Além disso, a afirmação de João refere-se somente ao
quarto Evangelho, que como é bem sabido é muito parco quanto aos milagres do
Senhor, enquanto os sinópticos contêm muitos outros sinais que fez Jesus.

"Se a qualquer protestante evangélico instruído se lhe pede que defina, segundo a
Bíblia, qual é a coluna e fundamento da verdade, seguramente responderia: "a
própria Bíblia, claro". Mas no entanto a Escritura não se pronuncia assim; declara,
em perfeito acordo com o Catolicismo e em oposição ao sola Scriptura:

. . . a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade. (1 Timóteo 3:15)

Outras traduções da Bíblia vertem fundamento como bastião, baluarte, ou pilar."


Os evangélicos instruídos conhecem certamente esta passagem, como também
aquela de Efésios que diz que a Igreja se edifica sobre o fundamento dos apóstolos
e dos profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a sua pedra angular. De modo que não
ignoram que a Igreja de Deus é coluna (stylos) e baluarte (edraioma) da verdade.
Antes o afirmam. A igreja deve defender a Verdade, que se acha na Palavra de
Deus. Não há contradição alguma com o princípio de Sola Scriptura.

"É bastante evidente que esta passagem [2 Timóteo 3:16] não fornece nenhum
argumento acerca de que a Sagrada Escritura, sem a Tradição, é a única regra de
fé; porque ainda que a Sagrada Escritura seja útil para estes fins, não obstante não
se diz que seja suficiente."

Aqui o apologista romano se enreda com as suas palavras, pois ele já reconheceu
que os protestantes em conjunto NÃO ensinam que as Escrituras sejam a única
regra de fé. Do contrário, rejeitaríamos todos os credos, concílios, catecismos, e de
facto tudo o que não fosse o próprio texto da Escritura. O que afirmamos,
sustentamos e defendemos é que é a regra suprema, final, inapelável. Todas as
demais devem conformar-se às Escrituras e subordinar-se a elas.

"O Apóstolo busca a ajuda da Tradição (2ª Tessalonicenses 2:15)."

Significativamente, este texto menciona-se mas não se cita: "Assim que, irmãos,
estai firmes e retende a doutrina que haveis aprendido, seja por palavra ou por
carta nossa."

Paulo não busca aqui uma ajuda extra da tradição, mas exorta os tessalonicenses a
reter a doutrina que receberam oralmente ou por escrito. Não há nenhuma razão
para pensar que o que Paulo ensinava oralmente fosse diferente do que expressou
por escrito no conjunto das suas epístolas. Por exemplo, quando fala do homem do
pecado uns versículos antes, no mesmo contexto, pergunta: "Não vos lembrais que
quando eu estava convosco vos dizia isto?" Em outros termos, está a colocar por
escrito o que já tinha ensinado oralmente. Além disso, naquelas coisas que não
resultam óbvias das epístolas – por exemplo, o que detém o "mistério da
iniquidade", v. 5-7 – os intérpretes católicos não se acham em melhor posição do
que os protestantes. Por exemplo, Lorenzo Turrado escreve: "Quanto ao
«obstáculo» a problemática é ainda maior. Não é possível precisar a natureza desse
obstáculo ou impedimento que está a deter a manifestação do Anticristo"
(Profesores de Salamanca - Biblia Comentada; Madrid: BAC, 2ª Ed., 1975, vol. VI
b, p. 360). Mas esta afirmação é incompreensível se, como afirma a Igreja Católica,
ela conservou os ensinos não escritos dos Apóstolos!!! Bastaria olhar para o
depósito da tradição apostólica em vez de fazer ociosas conjecturas. Mas a Tradição
oral falha miseravelmente justamente onde seria mais necessária.

"Mais ainda, o Apóstolo faz aqui referência às Escrituras que Timóteo tinha
aprendido na sua infância. Ora, uma boa parte do Novo Testamento não foi escrito
na sua meninice: algumas das Epístolas Católicas nem sequer tinham sido escritas
quando São Paulo escreveu isto, e nenhum dos livros do Novo Testamento estavam
postos então no cânon dos livros da Escritura. Ele se refere, então, às Escrituras do
Antigo Testamento, e se o argumento desta passagem prova alguma coisa, é que
as Escrituras do Novo Testamento não eram necessárias para a regra de fé. É
necessário sublinhar que esta passagem não fornece prova alguma da inspiração de
vários dos livros da Sagrada Escritura, inclusive dos que são admitidos como tais..
porque não se nos diz.. quais são os livros ou porções da Escritura inspirados."

Não há muita dúvida de que Paulo se refere primariamente ao Antigo Testamento.


No entanto, o nosso amigo católico confunde as coisas – suponho que
involuntariamente – com o seu argumento. A declaração de Paulo diz respeito à
natureza das Escrituras. Não é uma declaração respeitante ao cânon, ou seja, à
lista dos livros que se consideram inspirados. À semelhança de Jesus, quando disse
aos judeus que esquadrinhavam as Escrituras, dá-se por adquirido que existia um
conjunto definido e conhecido de livros que eram inspirados. De novo, Paulo se
refere ao valor da Escritura. Na medida em que aos livros que preservam o ensino
apostólico e hoje formam o nosso Novo Testamento se lhes reconhece o status de
Escritura, se lhes aplica igualmente e sem nenhuma dificuldade o dito por Paulo a
Timóteo.

Todo o resto do argumento, como o apelo a Efésios 4:11-15, se assanha


inutilmente com uma noção alheia ao princípio de Sola Scriptura, a saber, que a
norma única e exclusiva e que o ministério docente da Igreja carece de valor. O
apologista perde o seu tempo ao tentar convencer-nos do que já cremos... porque
o ensina a Escritura. Isso não significa, como injustificadamente conclui, que o
ministério docente e a Escritura estejam ao mesmo nível: aquele deve submeter-se
a esta.

"1ª Coríntios 4:6 . . . para que aprendais de nós mesmos a "não ir além do que
está escrito", e para que ninguém se ensoberbeça a favor de um contra outro.

... o significado parece bastante claro quando se toma em consideração todo o


contexto (pelo menos os versículos 3-6). Este princípio básico da interpretação
bíblica (o contexto) é frequentemente abandonado, inclusive por bons eruditos,
presumivelmente devido a preconceitos prévios.

Tem-se simplesmente que ler a frase que se segue ao "texto de prova" para ver o
que é que São Paulo está a querer dizer. Toda a passagem é uma exortação ética
para evitar o orgulho, a arrogância e o favoritismo, e desta maneira, não tem nada
que ver com a ideia da Bíblia e da palavra escrita como algum tipo de padrão global
de autoridade acima da Igreja.

... Assumindo que ele se está referindo ao Antigo Testamento (tal é a interpretação
mais directa), isto não provaria, de novo, nada, porque ele não estaria incluindo
todo o Novo Testamento, cujo cânon não foi determinado até 397 A.D."

Sobre esta passagem comenta o P. Lorenzo Turrado:

"Quanto a «não ir além do que está escrito» parece ser uma expressão proverbial
para indicar que em nossas apreciações não se deve ir além da norma objectiva, e,
neste caso, do que exige a natureza do ministério apostólico. Alguns autores, no
entanto, crêem que se trata de uma citação bíblica, aludindo a toda a Escritura em
geral, ou a algum dos textos citados anteriormente (cf. 1,19.31; 3,19). Cremos
mais provável a primeira explicação." (o.c, p. 42).

O contexto da passagem está claramente relacionado com as facções existentes em


Corinto, e Paulo estabelece aqui como princípio a validade superior do escrito sobre
as opiniões humanas ("carnais" segundo 3:1-4).

Ao dirigir-se aos coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo
recomenda que, "como está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf.
Jer 9: 23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "não ir além do que
está escrito." (4:6). Como quer que se veja este versículo, parece claro que para
São Paulo o escrito tinha um carácter normativo que ia para lá dos pareceres
individuais. O facto de que o NT estivesse então em processo de escrita não nega a
sua autoridade quando dito processo se completou.

"Apesar de nenhuma maneira ser evidente que toda a verdade religiosa está num
número de obras, ainda que sejam sagradas, as quais foram escritas em diferentes
épocas, e nem sempre formaram um livro; de facto, essa é uma doutrina muito
difícil de provar . . . É uma presunção estabelecida tão profundamente no sentir
popular dos protestantes, que é um trabalho de grande dificuldade o obter deles
um reconhecimento de que é uma presunção."

Não há razão para pensar que a Bíblia tem "tudo"; os evangélicos afirmam que tem
tudo o que necessitamos saber em ordem à salvação. Não existe inconveniente em
reconhecer o que é um facto histórico, a saber, que durante as suas primeiras
décadas desde o baptismo de Jesus até às primeiras epístolas, o cristianismo se
proclamou de maneira predominantemente oral (ainda que com base no Antigo
Testamento). Também é evidente que "toda a verdade religiosa" (que incluiria
grandes mistérios sobre o ser de Deus, por exemplo) não se encontra em nenhuma
"obra", nem sequer na Bíblia, já que aí está escrito "as coisas secretas pertencem a
Yahveh." A questão é se realmente existe outra fonte igualmente confiável que
suplemente o que à Bíblia lhe falta. Os católicos dizem que sim, mas na hora de
mostrar a evidência de tais supostas tradições apostólicas, tudo fica em declarações
vagas e insubstanciais. É difícil evitar a impressão de que estamos simplesmente
perante uma tentativa não de estabelecer a verdade, mas de sustentar a posição
romana.

Breve reafirmação do princípio de Sola Scriptura

É curioso que os nossos irmãos católicos, que frequentemente nos criticam quando
recorremos a "textos de prova", neste tema em particular utilizem precisamente
esse enfoque. No entanto, o conjunto do ensino do Novo Testamento nos mostra
que:

[1] Jesus advertiu muito seriamente contra invalidar as Escrituras – obrigatórias e


inspiradas - por causa da tradição oral (Mar 7: 8-9 e par.). Não estamos falando
aqui de quaisquer tradições, mas das tradições religiosas piedosamente
transmitidas e conservadas pelos mestres do seu tempo.

[2] Além da Sua própria Palavra de plena autoridade, o Senhor recorreu sempre às
Escrituras para decidir qualquer controvérsia.

[3] Jesus Cristo nunca acusou os judeus de ignorar as tradições orais, mas de não
compreender que as Escrituras davam testemunho d`Ele (João 5:39).

[4] Aos Saduceus, que rejeitavam a tradição oral dos fariseus, o Senhor não lhes
reprovou isso, mas sim o desconhecer "as Escrituras e o poder de Deus" (Mar 12:
24-27 e par.).

[5] Os Apóstolos e alguns dos seus condiscípulos (como Marcos ou Lucas)


consideraram apropriado – inspirados seguramente pelo Espírito Santo - pôr por
escrito os seus ensinamentos, como Moisés, Isaías e o resto dos autores humanos
do AT puseram por escrito os seus.

[6] São Paulo afirma a natureza essencialmente inspirada das Escrituras e a sua
absoluta suficiência quando escreve a Timóteo (2 Tim 3: 15-17); o facto de o
Apóstolo se referir ao AT não modifica o seu juízo sobre a natureza da Escritura
quanto ao seu carácter normativo.

[7] Os escritos apostólicos são considerados "Escritura" (2 Pedro 3: 15-16; 1 Tim


5:18 comparado com Lucas 10:7).

[8] Considera-se louvável que os que ouviam os Apóstolos vissem por si mesmos
se a pregação era consistente com o já revelado por escrito no AT (Actos 17:11).

[9] Ao dirigir-se aos Coríntios a propósito das contendas entre facções, São Paulo
recomenda que, "como está escrito, o que se gloria, glorie-se no Senhor" (1:31, cf.
Jer 9: 23-24). E mais adiante, no mesmo contexto, aconselha "a não ir além do que
está escrito" (4:6). Como quer que se veja este versículo, parece claro que para
São Paulo o escrito tinha um carácter normativo que ia para lá dos pareceres
individuais.

[10] A própria Bíblia dá testemunho do pouco confiável que é a tradição oral no


médio ou longo prazo. "Por isso o dito se propagou entre os irmãos que aquele
discípulo não morreria, mas Jesus não disse que não morreria..." (João 21:23). São
João obviamente corrige aqui, por escrito, uma tradição oral errónea.

Durante um intervalo de cerca de mil anos, o tempo que demorou a formar-se o


Antigo Testamento, Deus falou de muitas maneiras e em reiteradas oportunidades,
mas foi inculcando no povo judeu o valor das Escrituras. No caso do Novo
Testamento, o intervalo entre os ensinos divinos e a sua colocação por escrito foi
vinte vezes menor. A quantidade e qualidade de informação histórica, doutrinal e
prática do Novo Testamento não pode comparar-se com as tradições orais, muitas
vezes duvidosas, que se acham nos escritos dos Padres. O apelo válido à tradição
nos Padres refere-se à compreensão e aplicação da doutrina estabelecida
firmemente nas Escrituras. E, naturalmente, sabemos hoje que apelaram a esta
tradição interpretativa ... porque eles próprios o puseram por escrito.

Bênçãos em Cristo

Fernando D. Saraví

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