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Exegética Bíblica - Abril/2023

A Verdade na Sagrada Escritura

O tema da inerrância das Sagradas Escrituras é um dos temas mais debatidos no


campo da Teologia Bíblica nos últimos 200 anos, porque com o desenvolvimento da ciência
histórica, das ciências naturais e da crítica literária, muitas afirmações bíblicas que se
referem à história ou à natureza passaram a ser vistas como absolutamente falsas.
Que a Sagrada Escritura não engane e não possa enganar (inerrância de fato e de
direito) porque é Palavra de DEUS, isto está subentendido no próprio dogma da Inspiração,
de conformidade com a fé judaica e cristã. Todavia, já no judaísmo estavam bem presentes
as discordâncias, ao menos aparentes, entre os livros do AT; e a tradição rabínica
assegurava que uma das bênçãos que se receberia na volta de Elias seria a
explicação das aparentes discordâncias entre Ezequiel e a Torá (cf. b Menahoth 45a). As
dificuldades cresceram para o cristianismo primitivo, obrigado a uma comparação entre AT
e NT; mas os escritores cristãos só puderam dar uma resposta ditada pela fé: uma
abordagem crítica do problema era impossível.
Desde o início do cristianismo, os Padres da Igrejas procuraram dar uma resposta a
essas aparentes contradições e erros na Bíblia. Santo Irineu escreveu: “Se não podemos
encontrar uma solução para todas as dificuldades que aparecem na Bíblia, assim mesmo
não deixaria de ser uma grande impiedade querer procurar um DEUS diferente daquilo que
ele é. Deveríamos confiar tais coisas a DEUS que nos fez, reconhecendo que as Escrituras
são perfeitas porque foram pronunciadas pela Palavra de DEUS e por seu Espírito”.
As discordâncias da Bíblia foram um dos motivos pelos quais os antigos escritores
cristãos de boa vontade recorreram à interpretação alegórica de algumas passagens
bíblicas, como a única maneira que lhes permitia reencontrar aquela verdade divina que de
outra forma parecia comprometida. Isto valia para o AT, mas também para Evangelhos no
que se refere às discordâncias aparentes entre os Sinóticos e João.
Santo Agostinho afirmava ter a seguinte conduta quando se deparava com esse
problema: “Se nestes escritos encontro alguma coisa que tenha a aparência de ser
contrária à verdade, sem a mínima hesitação penso que a cópia (no qual leio) é falha, ou
que o tradutor não foi capaz de traduzir fielmente o pensamento, ou que não compreendo
nada”.
Lembremos que Santo Agostinho sabia que a intenção dos autores da Bíblia e de
Deus não era escrever um livro de física ou de história, pois, segundo ele, “(O Senhor)
queria fazer cristãos, não cientistas”, e, ainda: “O Espírito de DEUS que falava através dos
autores sagrados não quis ensinar aos homens coisas que não seriam de nenhuma
utilidade para a sua salvação”.
Santo Tomás também uma resposta a essa problemática, afirmando o princípio de
fé: “«Quidquid in Sacra Scriptura, verum est” (O que está nas Sagradas Escrituras é
verdadeiro). Entretanto, Santo Tomás sempre considerou que as Escrituras podem ter
várias interpretações e, portanto, aquelas que são contrárias à razão devem ser
desconsideradas, para que não exponhamos a nossa fé ao ridículo (cf. Suma Teológica, I,
q. 68, a. 1).
Entretanto, a resposta desses teólogos, muito útil aos dias de hoje, precisou de uma
resposta oficial do Magistério, principalmente a partir de contestações advindas das ciências
modernas e da crítica literária.
Em direção ao Concílio Vaticano II
Com os progressos da arqueologia e o estudo das línguas orientais e das literaturas
extra-bíblicas, o conhecimento do antigo Oriente Médio e da sua história se tornou mais
preciso e parecia contestar o valor da Bíblia como fonte de informação histórica. As
respostas da exegese católica foram no início de certo tipo: isto é, limitar o âmbito da
Sagrada Escritura.
O Card. Newman era da opinião que a inerrância da Bíblia aplicava-se apenas aos
textos diretamente relacionados a questões de fé e de moral, e não aos “detalhes históricos
ou anedóticos”. Assim, para o Cardeal Newman, a Bíblia poderia conter erros em suas
partes menos importantes, como, por exemplo, nas genealogias ou em detalhes narrativos.
Entretanto, já avisamos que a opinião do Cardeal Newman foi rejeitada pelo Magistério da
Igreja (OBS: Cardeal Newman é um grande teólogo, mas infalível só a Igreja!!).
Outra opinião que, depois, foi rejeitada pelo Magistério era a de que a verdade da
Bíblia só se referia às verdades de fé e de moral. Essa opinião foi defendida,
principalmente, pelo Mons. Maurice D’Hulst, no séc. XIX. O problema com essa teoria é
reduzir a fé cristã a uma mera doutrina sem bases históricas. Ao contrário, a nossa fé deve
ter bases históricas verdadeiras para não se perder num intelectualismo estéril.
Devido a essas opiniões - e a outras que não temos de tratar aqui - o Papa Leão XIII
escreveu um documento importantíssimo para o estudo bíblico, que recomendo àqueles
que querem se aprofundar: Providentissimus Deus, do ano de 1893. A Encíclica afirmava:
“É totalmente ilícito, ou restringir a inspiração a algumas partes somente da Sagrada
Escritura, ou conceder que o mesmo autor sagrado tenha errado. Não se pode tolerar a
maneira de agir daqueles que, para desfazer-se das objeções (contra a verdade da
Escritura), não hesitam em afirmar que a inspiração divina se refere às coisas de fé e moral,
e nada mais ... A inspiração divina é incompatível com qualquer erro: por sua essência, ela
não só exclui todo erro, mas o exclui com a mesma necessidade com a qual DEUS, suma
Verdade, não é autor de erro algum. Esta é a fé antiga e o costume da Igreja”.
Assim, o Papa diretamente afirmou que não podemos dissecar o texto bíblico,
afirmando que apenas uma parte é inerrante. Todo o texto bíblico foi inspirado!!! Entretanto,
a resposta do Papa teve o intuito de coibir as opiniões erradas. Entretanto, ainda deixou em
aberto a questão de como resolver as contradições internas e externas da Bíblia. O Papa
Pio XII, em outro documento importantíssimo, a Encíclica Divino Afflante Spiritu, deu mais
um passo na resolução do problema:
“Quando alguns presumem lançar em rosto dos autores sagrados ou algum erro
histórico ou inexatidão ao relatar os fatos, vendo as coisas bem de perto, verifica-se que se
trata simplesmente daqueles modos usuais e nativos de dizer ou de narrar que os antigos
costumavam usar na mútua troca das idéias na convivência humana, e que realmente se
usavam licitamente por tradição comum”
Aqui, o Papa Pio XII explicita que, muitas vezes, o texto sagrado contém aparentes
erros porque não consideramos a forma pela qual os antigos transmitiam o que queriam. Os
antigos não possuíam a ciência narrativa e histórica como hoje possuímos. A preocupação
deles não era tanto com a exatidão histórica, mas com a verdade a ser transmitida, mesmo
em detrimento de um detalhamento e de uma exatidão rigorosas, aos moldes modernos.
Entretanto, a solução do Papa ainda precisava de mais detalhamentos, que vieram a
ser dados pelo Concílio Vaticano II, na Dei Verbum:
“Portanto, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos se deve
ter como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo havemos de acreditar que os Livros
da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade relativa à nossa
salvação, que DEUS quis fosse consignada nas sagradas Letras” (DV 11)
Aqui o Concílio explicita o que quer dizer a Verdade Bíblica. Que Verdade Deus quis
nos ensinar por meio da Bíblia? Na formulação acima, “a verdade relativa à nossa
salvação”. Isto é, Deus não pretendeu escrever um livro de física ou de história, mas um
livro que revelasse - decerto, por meio de história - a verdade relativa à nossa salvação.
A interpretação da Sagrada Escritura tem a tarefa primária de descobrir e explicar a
Revelação e a realidade salvífica que DEUS nos deu em JESUS CRISTO. Ninguém deve
abeirar-se da Escritura simplesmente porque «ela não erra», mas porque nela nos é dado
encontrar o “Verbum salutis”, “a Palavra da Salvação” (At 13,26).
Isso quer dizer que as Sagradas Escrituras não contém verdades históricas?
Definitivamente, não é isso que o Concílio quis dizer. Ao contrário, o Concílio quis apenas
salientar que toda a história relatada nas Escrituras deve ser lida a partir da “verdade
relativa à nossa salvação”. Assim, um fato histórico contemplado com esses óculos ganha
contornos que o historiador moderno é incapaz de perceber e que, por isso, diria que a
Bíblia é errônea. Tomemos como exemplo a nossa vida. Um historiador poderia contar
todos os fatos dela, mas, certamente, nós, que olhamos o nosso passado e vemos a mão
de Deus em nossa vida, teremos uma visão muito mais profunda de nossa história, por mais
que possamos não nos atentar tanto aos detalhes como um historiador.
Agora veremos, com mais detalhes, como a bíblia se relaciona com as ciências
naturais e com a ciência histórica, a partir de um livro de P. Grelot (La Bibbia e la Teologia):

No âmbito da metafísica e da filosofia

«No que se refere à metafísica, os sagrados livros não oferecem nenhuma tentativa de
explicação racional das coisas, elaborada através da reflexão abstrata e que possa
desembocar na construção de um sistema coerente como o de Platão, Aristóteles ou Fílon.
Deste ponto de vista técnico, a Bíblia nada ensina. Em compensação, traz em si a
afirmação, explícita ou difusa de certas realidades ou de certos valores que não caem sob
os sentidos e que, de certa forma, regem toda a metafísica: a unicidade do DEUS vivo, a
relação do mundo com DEUS definida em termos de criação, a antropologia imune de
qualquer dualismo etc.; afirmando-os, a Revelação retifica dados racionais que se haviam
obscurecido, relacionando-os ao mesmo tempo com o desígnio salvífico»

Em outras palavras: a Bíblia não é um livro de filosofia, de metafísica ou de antropologia.


Assim, não vemos nela um conceito claro de alma, corpo, espírito etc. Muito por causa
disso, a teologia sempre se preocupou de beber de sistemas filosóficos, como o aristotélico,
por exemplo, para explicitar melhor o contido na Bíblia.

No âmbito das ciências naturais

Já vimos que a Bíblia não pretende instruir-nos sobre a conformação física das coisas; os
autores sagrados falam disto seguindo as opiniões comuns da sua época, como já haviam
intuído Santo Agostinho e São Tomás. As idéias podem mudar, a ciência pode e deve
progredir, sem que a mensagem bíblica venha a sofrer com isto. Ao enfrentar estes
problemas, é fundamental que não se cometam extrapolações. O biblista e o teólogo devem
vigiar para que não se emprestem à Bíblia afirmações que ela não faz; mas também o
cientista deve estar atento a não introduzir, na sua teoria, de maneira sub-reptícia, alguma
afirmação metafisicamente errônea. «Por exemplo, a idéia de criação, corretamente
entendida, deixa intacta a questão de como DEUS cria, quais as partes que ele confia às
causas segundas na produção dos efeitos devidos ao seu ato criador, das etapas através
das quais passou a história evolucionista da criação etc.»185. Também na delicada questão
da afirmação bíblica da unidade do gênero humano e da nossa universal solidariedade «em
Adão», comparada com o problema paleontológico do «monofiletismo» ou «polifiletismo»
(estes, mais do que «monogenismo» ou «Poligenismo», são os termos científicos do
problema), é necessária muita cautela. A Própria Encíclica Humani generis de Pio XII, de
1950, usava uma linguagem matizada, em forma negativa: «... Ora não aparece de algum
modo como estas afirmações se possam harmonizar (não diz: «De modo algum se podem
harmonizar») com o que as fontes da Revelação e os atos do Magistério da Igreja nos
ensinam sobre o pecado original ...» (DS 3897). E, com efeito, a reflexão dos teólogos
empenhou-se em explicar a doutrina bíblica e católica do pecado original também num
contexto de hipótese «filetística» da criação do homem.
Assim, a mensagem bíblica sempre será válida, pois sua base fundante independe de
eventuais descobrimentos científicos.

No âmbito da história

O problema da «história» na revelação bíblica e na sua interpretação envolve muitos


aspectos, entre os quais está o da variedade do gênero literário «histórico»; aqui interessa-
nos aplicar o objeto formal específico da revelação bíblica no âmbito da história.
É ainda P. Grelot que escreve: «A concepção positivista da história-ciência, que
dominou todo o século XIX e de que ainda são tributários muitos dos nossos
contemporâneos, infelizmente pesa nas discussões referentes a este campo. A história não
é um objeto de ciência como os outros; para além daqueles fenômenos externos que ela
tende a reconstruir para poder dizer-se exata, é-lhe também necessário conjugar-se com a
experiência humana que constituiu sua unidade e lhes deu um sentido: somente sob esta
condição ela se torna verdadeira... Nesta perspectiva, é importante não confundir a
história exata com a história verdadeira.
O ensinamento dos livros sagrados não pode ignorar a história porque a revelação
não se refere a verdades abstratas ou a uma espiritualidade desencarnada, mas a um fato:
a realização da salvação por meio de CRISTO, como ponto de chegada de uma longa
preparação histórica e ponto de partida para uma nova etapa no desígnio salvífico de
DEUS. Mas vê-se logo em que perspectiva se situa a Escritura para falar de história:
ela considera os acontecimentos sob o ponto de vista das relações entre os homens
e DEUS, do drama espiritual em que estas relações vêm à luz graças à situação
particular do povo de DEUS. Os acontecimentos adquirem ali um sentido enquanto atos
de DEUS no tempo... É evidente que a materialidade dos fatos como tais é aqui menos
importante do que a sua relação com o mistério da salvação que determina o seu
significado. A experiência passada do povo e DEUS é assim captada em outro nível de
profundidade: aquele ao qual só a fé dá acesso. Em resumo, o ensinamento positivo dos
autores sagrados refere-se à história como mistério, qualquer que seja a natureza dos
materiais por eles empregados para exprimir o aspecto fenomênico»
Portanto, a Bíblia vê a história enquanto relação dos homens com Deus e, por
isso, não se preocupa tanto com a materialidade dos fatos em si mesma.

Fonte principal: Apostila do curso Institutum Sapientiae

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