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A BÍBLIA NÃO É A ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA

Uma Breve Reflexão a Respeito do Método Teológico e o Estabelecimento de


Doutrinas

Por Alan Rennê Alexandrino Lima

Introdução
Originalmente publicada entre os anos de 1768 e 1771, a Encyclopaedia
Britannica é considerada a mais acadêmica de todas as enciclopédias já publicadas.
Uma estudiosa chamada Gillian Thomas chegou a afirmar, numa obra sobre a décima
primeira edição da enciclopédia, que a Britannica deve ser considerada como o ápice
de todo o conhecimento humano1, dado o seu caráter amplamente generalista, que
procura discursar a respeito da maior gama de assuntos possível. É possível encontrar
praticamente qualquer coisa que se procure, desde verbetes relacionados a geografia,
biografia, biologia, medicina, literatura mundial, física, química, astronomia, filosofia,
teologia etc.
Uma enciclopédia possui a função de ser uma obra de referência que possibilite
a consulta a qualquer assunto de interesse humano. Como o sentido etimológico do
termo indica, uma enciclopédia intenta disponibilizar conhecimento geral. Está curioso
a respeito de algum assunto? É só consultar o verbete e, imediatamente, a curiosidade
será sanada. Deseja adquirir uma visão geral a respeito da função das vacinas? Tem o
interesse em aprender o básico sobre a história do judô? É só consultar a enciclopédia
mais próxima.
Algo muito comum no meio da cristandade é o tratamento dispensado à Bíblia
como se esta se tratasse de uma enciclopédia com verbetes disponíveis a respeito de
todos os assuntos da fé cristã. Todo pastor ou professor de escola dominical já deparou
com uma situação na qual alguém o aborda com perguntas do tipo: “Onde é que eu
acho, na Bíblia, um versículo sobre a Trindade?”, “Por favor, você poderia me dar um
texto que diga que Jesus é Deus-homem?”, “Em qual lugar do Novo Testamento afirma
que não se pode dançar no culto?”, “Onde é que é possível encontrar um texto que
afirme que o dia de descanso passou do sábado para o domingo?”, ou ainda a afirmação:
“Mas não existe nenhum texto na Bíblia que diga que crianças devem ser batizadas!”
Todas estas perguntas denotam que o interlocutor deseja um versículo/verbete que diga
de forma sistemática tudo aquilo que ele necessita saber sobre determinado assunto. São
questionamentos que evidenciam o desejo por algo já pronto, que não demande
reflexão, raciocínio lógico, deduções, inferências e a construção de um entendimento
baseado no todo da revelação bíblica.
Não obstante, é importante compreender que não é dessa maneira que as
Sagradas Escrituras devem ser tratadas. A Bíblia não foi dada por Deus à Igreja para
servir como uma espécie de obra de referência com verbetes disponíveis concernentes a
todas as questões de fé e vida. A Bíblia não é uma obra semelhante a uma teologia

1
Gillian Thomas. A Position to Command Respect: Women and the Eleventh Britannica.
Lanham, MD: Scarecrow Press, 1992. p. 1.
dogmática. O teólogo reformado holandês Herman Bavinck (1854-1921) faz uma
observação extremamente pertinente a este respeito. Ele faz uso de uma metáfora
elucidativa:
A Sagrada Escritura não é dogmática. Ela contém todo o
conhecimento de Deus de que precisamos, mas não na forma de
formulações dogmáticas. A verdade foi depositada na Escritura como
fruto da revelação e da inspiração, em uma linguagem que é a
expressão imediata da vida e, portanto, sempre se mantém viçosa e
original. Mas ela ainda não tinha se tornado objeto de reflexão e ainda
não tinha atingido a consciência pensante do crente. Aqui e ali, por
exemplo, na carta aos Romanos, pode haver um começo de
desenvolvimento dogmático, mas não mais que um começo. O
período da revelação tinha de ser encerrado antes que a reprodução
dogmática pudesse começar. A Escritura é uma mina de ouro: é a
igreja que extrai o ouro, põe sua estampa sobre ele e o converte
em dinheiro circulante.2

É inegável, pela afirmação de Bavinck, que a Escritura fornece conhecimento. O


que necessita ser compreendido é que tal conteúdo não se apresenta sistematizado,
organizado em sistemas como ocorre em obras de teologia dogmática. Numa obra desta
natureza, quando se deseja pesquisar a respeito da queda da humanidade no pecado,
basta buscar no índice o lugar exato pela categoria hamartiologia e, pronto, tudo o que
se necessita saber está disposição. A Bíblia não foi escrita dessa maneira. O conteúdo
disponibilizado na Escritura necessita ser alvo de reflexão, inquirição, associação e
processamento dogmático. O conhecido teólogo princetoniano Charles Hodge afirma
que a teologia consiste de algo mais que o mero conhecimento de fatos registrados nas
Escrituras. De acordo com ele, “a Bíblia contém as verdades que o teólogo precisa
coligir, autenticar, organizar e demonstrar em sua relação natural umas com as outras”. 3
O trabalho do teólogo é semelhante ao de um mineiro. Para extrair o ouro ele
precisa adentrar aos recessos mais profundos da mina e manusear diversas ferramentas a
fim de extrair o metal precioso. Há partes da mina que a composição das paredes é mais
rochosa, o que demanda o uso de mais força e de ferramentas mais especializadas. De
modo semelhante, o teólogo mergulha nas páginas da Bíblia e labuta de maneira séria e
árdua, inclusive em oração, a fim de extrair das páginas do livro sagrado a preciosa
doutrina evangélica. Há partes da Escritura que são mais complexas ou, como coloca a
Confissão de Fé de Westminster: “Na Escritura não são todas as coisas igualmente
claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos”.4 Assim, em determinados trechos
das Escrituras o teólogo encontrará mais dificuldade para extrair o sumo da revelação
divina. Bavinck observa ainda que, “processar dogmaticamente o conteúdo das
Escrituras, porém, não é apenas o trabalho de um teólogo individual, ou de uma igreja

2
Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã,
2012. p. 116. Ênfase acrescentada.
3
Charles Hodge. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 1.

4
A Confissão de Fé de Westminster. 1.7. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. p. 22.
ou escola em particular, mas de toda a igreja através dos séculos, de toda a nova
humanidade regenerada por Cristo”.5
Precisamos compreender, portanto, o que torna necessário este modo de fazer
teologia. Após discutir brevemente tal necessidade, é preciso abordar um dos modos
legítimos pelo qual o ouro da Escritura é extraído, estampado e colocado em moeda
circulante.

A Distinção Criador/Criatura
Visando a instrução e a edificação da Igreja, o conteúdo registrado nas Sagradas
necessita ser devidamente organizado e sistematizado. Um dos benefícios existentes na
sistematização do conteúdo escriturístico é a possibilidade de se relacionar num todo
coerente as verdades que nos são dadas por Deus, o autor das Escrituras Sagradas. O Dr.
Heber Campos assim se expressa em relação à necessidade da extração e organização
dos dados bíblicos:
Pela sistematização aprendemos a associar ideias importantes em
grupos, para que o material fique bem organizado e facilite para a
nossa mente finita o que é simples para a mente infinita. Se não
houver a sistematização da verdade, as estruturas do nosso
pensamento rapidamente ficam complicadas. Por isso, precisamos que
as ideias sejam concatenadas de maneira a facilitar a nossa apreensão
da verdade.6

Nós, seres humanos, em razão da nossa finitude, temos uma dupla necessidade
que não existe em Deus. Primeiro, por ser infinito em seu ser e perfeições, Deus não
necessita de uma organização sistêmica. Sua mente em si mesma tem o conhecimento
de todas as coisas sem que estas precisem ser necessariamente organizadas como nós
precisamos, devido à nossa finitude de mente. Em segundo lugar, em razão da infinitude
do seu conhecimento, Deus tem à sua disposição todo o conhecimento necessário de
forma simultânea e instantânea. O teólogo dogmático Louis Berkhof afirma que Deus
“vê as coisas de uma vez em sua totalidade, e não fragmentadas uma após à outra”. 7
Esta é outra forma de afirmar que o conhecimento de Deus é perfeito. Por ser perfeito
em conhecimento, Deus não está sujeito ao aprendizado e sucessivo acúmulo de
informações. Já o ser humano é sempre fragmentado e parcial em seu conhecimento. A
relação entre o conhecimento que Deus tem em si mesmo e o conhecimento
disponibilizado ao ser humano é sumariado por Bavinck: “Pois o conhecimento que
Deus tem de si mesmo é absoluto, simples, infinito e, em sua plenitude, é
incomunicável à consciência finita”.8 Dessa forma, é imprescindível ao ser humano o
emprego de ferramentas que lhe proporcionem o crescimento em termos de

5
Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 117.
6
Heber Carlos de Campos. Teologia da Revelação. São Paulo: Centro de Pós-Graduação
Andrew Jumper, 2010. p. 29. (Apostila de curso).
7
Louis Berkhof. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 65.

8
Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 214.
conhecimento teológico. A sistematização do conteúdo revelado nas Escrituras atende a
esta necessidade. Como expressou Robert Burridge, a extração, organização e
sistematização de ideias é algo próprio da humanidade finita:
O Criador tem uma mente unificada absoluta que nós tentamos
entender através de sua revelação. Como Criador, ele nos designou
para sermos capazes de conhecer exatamente o que ele quer que
conheçamos [...] Ao grau em que usamos consistentemente os
métodos de Deus, nosso estudo produzirá ideias consistentes com a
verdade como ela existe absolutamente na mente de Deus.9

É óbvio, então, que embora podendo conhecer aquilo que Deus resolve revelar
em sua Palavra, nosso conhecimento tanto do Ser divino quanto das suas obras é
analógico, ou seja, o conhecimento de que dispomos “concorda com, corresponde a,
mas não é completamente idêntico com o que está na mente perfeita de Deus. Existe
uma ‘analogia’ entre o que Deus fala às suas criaturas e o que Deus conhece infinita e
perfeitamente”.10 Isso pode ser visto, por exemplo, em Deuteronômio 18.21-22: “Se
disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não falou? Sabe
que, quando esse profeta falar em nome do SENHOR, e a palavra dele se não cumprir,
nem suceder, como profetizou, esta é a palavra que o SENHOR não disse; com soberba,
a falou o tal profeta; não tenhas temor dele”. O princípio que pode ser observado nesta
passagem é que “é exigido dos profetas que a sua mensagem seja consistente com tudo
aquilo que Deus revela e concorde com tudo o que Deus faz ou permite”.11 R. Scott
Clark observa que a conhecida passagem de Deuteronômio 29.29 também fundamenta o
entendimento do conhecimento analógico que o ser humano tem de Deus: “As coisas
encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a
nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”.
Clark afirma que esta passagem, bem como outras, fundamenta a distinção entre o
conhecimento de Deus em si mesmo (en si) e o conhecimento revelado a nós (erga
nos).12 Assim, dada a nossa finitude e uma vez que não dispomos de conhecimento
perfeito, completo, instantâneo e simultâneo, como ocorre com Deus, é essencial a
existência do labor teológico para a formação de dogmas e doutrinas.13

9
Bob Burridge. Knowing the Truth. <http://www.genevaninstitute.org/syllabus/unit-one-
prolegomena/prolegomina-knowing-the-truth/>.

10
Ibid.
11
Ibid.

12
R. Scott Clark. Recovering the Reformed Confession: Our Theology, Piety, and Practice.
Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing, 2012. p. 124.

13
É importante atentar para a distinção existente entre “dogmas” e “doutrinas”. Louis Berkhof,
por exemplo, faz a seguinte afirmação: “Embora a palavra ‘dogma’ algumas vezes seja usada
na religião e na teologia com sentido amplo, sendo praticamente sinônimo de ‘doutrina’,
geralmente tem um sentido mais restrito. Doutrina é a expressão direta, às vezes ingênua, de
uma verdade religiosa. Não é necessariamente formulada com precisão científica, e mesmo
quando o é, pode ser meramente a formulação de uma só pessoa. Um dogma religioso, por
sua vez, é uma verdade religiosa baseada sobre autoridade, oficialmente formulada por
Compreender esta verdade nos conduz ao próximo tópico.

A Progressividade da Revelação
Deus revela a si mesmo, seu ser e obras, ao ser humano. O que deve ser
entendido a este respeito é que a revelação não foi dada pelo Senhor de uma só vez. A
plenitude da verdade divina não foi entregue à humanidade logo no começo da história.
Deus gradualmente revelou as verdades em espaços de longo intervalo, de acordo com
as necessidades dos homens, numa medida que era suficiente para a compreensão e
absorção por parte dos recipientes da revelação.
Portanto, a revelação divina é um processo que começou no Jardim do Éden e
culminou na revelação que Jesus Cristo deu enquanto esteve entre nós e na revelação
que ele deu posteriormente aos apóstolos, como Paulo, por exemplo. Nesse processo
histórico houve um progresso no conteúdo e na quantidade de revelação. Gradualmente
Deus foi mostrando aos homens a natureza do seu caráter através de preceitos no
decorrer da história. Cada aspecto novo da revelação era baseado numa revelação
anterior de forma que a Escritura é um conjunto harmônico de verdades reveladas. Por
exemplo, quando João introduziu o “Cordeiro de Deus” aos seus discípulos, ele o fez
baseado numa revelação anterior do cordeiro que era sacrificado na páscoa, de forma
que a mensagem posterior se tornou inteligível por causa da anterior. Quando Jesus
apresentou a si mesmo como o Eu Sou já havia uma noção anterior da divindade no AT
como sendo o “Eu Sou”. Uma revelação está fundamentada numa anterior, mas com seu
caráter progressivo, acrescentando novos vislumbres, detalhes e especificidades da
verdade em relação à anterior.
Geerhardus Vos explica a ideia de progressividade da revelação da seguinte
forma: “Ela não foi completada num único ato exaustivo, mas se desdobrou numa longa
série de atos sucessivos”.14 É interessante que Clark H. Pinnock, um dos principais
adeptos do Teísmo Aberto, numa obra publicada em 1971, fez a seguinte afirmação
sobre a natureza da revelação de Deus registrada na Bíblia:
Nós não encontramos revelação especial na forma de teologia
proposicional, mas de um modo histórico, pois a revelação se
desdobra em sucessivos fascículos, numa série de situações
revelacionais na história. Toda revelação é “encarnacional”, imersa na
história e na linguagem humanas. É um crescimento orgânico da muda
à planta plenamente madura, a partir dos primórdios do livro de
Gênesis à glória da Nova Aliança de nosso Senhor. A revelação se
interpõe através de numerosas modalidades e avança continuamente
até que a edição culminante e a coroação final sejam publicadas em
Jesus Cristo.15

qualquer assembleia eclesiástica”. Cf. Louis Berkhof. A História das Doutrinas Cristãs. São
Paulo: PES, 1992. pp. 17-18.
14
Geerhardus Vos. Biblical Theology: Old and New Testaments. Grand Rapids, MI:
Eerdmans Publishing, 1948. p. 5.
15
Clark H. Pinnock. Biblical Revelation: The Foundation of Christian Theology. Chicago, IL:
Moody Press, 1971. pp. 29-30.
Vos destaca que a revelação não poderia ser dada de outra forma que não a
progressiva, uma vez que ela está ligada aos atos redentivos de Deus: “De forma
abstrata, ela poderia ter sido concebida de outra maneira. Mas como matéria de fato, não
poderia ser, porque a revelação não se firma por si só, mas está (quanto à Revelação
Especial) inseparavelmente ligada a outra atividade de Deus, que chamamos de
Redenção”.16 E a própria redenção não poderia acontecer de outra forma senão através
de sucessão história, em diversos desdobramentos históricos. Dessa forma, a própria
“revelação é a interpretação da redenção; ela deve, portanto, se desdobrar em etapas
como ocorre com a redenção”.17 Benjamin Warfield faz a mesma observação a respeito
da progressividade da revelação, mas assinala que a revelação não pode ser confundida
com a redenção em si. Antes, ela deve ser vista como parte dos atos redentores de Deus:
A revelação é, naturalmente, geralmente feita pela instrumentalidade
dos atos e a série dos grandes atos redentores de Deus pelos quais ele
salva o mundo constitui a revelação por excelência da graça de Deus –
na medida em que estes atos de redenção são abertos à observação e
são percebidos em sua importância. Mas a revelação, afinal, é o
correlato do entendimento e tem como finalidade imediata apenas a
produção de conhecimento, embora não o conhecimento voltado para
si mesmo, mas para a salvação [...] A revelação, assim, aparece, no
entanto, não como mero reflexo dos atos redentores de Deus na mente
dos homens, mas como um fator na obra redentora de Deus, um
componente da série de seus atos redentores, sem o qual esta série
seria incompleta e inoperante quanto ao seu fim principal [...] A
revelação é, em poucas palavras, por si só um ato redentor de Deus e
de modo nenhum o menos importante na série de atos de redenção de
Deus.18

Isto pode ser claramente percebido em todos os estágios da revelação, por


exemplo, no Antigo Testamento. A revelação entregue, primeiramente, a indivíduos e,
posteriormente, a famílias e à nação de Israel sempre foi um meio utilizado por Deus
para se fazer conhecido e dar a conhecer como os recipientes dessa revelação poderiam
desfrutar de um relacionamento pactual amoroso com ele. Pensemos na revelação de
Deus pela qual ele sacrifica animais e com a pele destes cobre a vergonhosa nudez de
nossos primeiros pais, Adão e Eva (Gênesis 3.21), passando pela revelação de que, para
que Isaque pudesse viver um cordeiro teria de ser oferecido em seu lugar (Gênesis 22.1-
13), pela declaração de Levítico 16 de que os dois bodes levariam sobre si a iniquidade
de todo o povo, até o dia em que o profeta João Batista declarou: “Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1.29). Em todas essas ocasiões a revelação

16
Geerhardus Vos. Biblical Theology: Old and New Testaments. p. 5.
17
Ibid. p. 6. É preciso destacar uma espécie de disclaimer feito por Vos sobre a maneira como
revelação e redenção se relacionam: “Ainda assim, é óbvio também que os dois processos não
são inteiramente coextensivos, pois a revelação chega a um fim num ponto em que a redenção
ainda continua”. Cf. Ibid.
18
Benjamin Warfield. A Inspiração e a Autoridade da Bíblia: A Clássica Doutrina da
Palavra de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p.65.
em si mesma serviu como um ato redentor de Deus, na medida em que ela produziu
conhecimento para a salvação, para que o povo pudesse desfrutar de um relacionamento
salvífico com Deus.
Uma passagem clássica que mostra a progressividade da revelação é Hebreus
1.1-2: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais,
pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de
todas as coisas, pelo qual também fez o universo”. A expressão “muitas vezes e de
muitas maneiras” aponta para a ideia de uma sucessão ou cumulação de informação
redentiva ou, em outras palavras, para a ideia de progressividade. Em sua exposição de
Hebreus, o puritano John Owen também entendeu que a expressão “muitas vezes e de
muitas maneiras” encerrava em si a ideia de progressividade da revelação:
O que é pretendido por essa expressão é a descoberta gradual da
mente e da vontade de Deus pela adição de uma coisa após outra,
diversos períodos, à medida que a igreja podia comportar a luz deles, e
à medida que ela estava servindo ao seu principal desígnio de reservar
toda a preeminência ao Messias. A maneira como tudo isso serve de
argumento ao propósito do apóstolo aparecerá em breve. Deve-se
tomar essa expressão de forma absoluta, para denotar o progresso
inteiro da revelação divina desde o início do mundo.19

A ideia por trás de toda esta formulação é a de que, à medida que a história
humana avançava, Deus adicionava mais detalhes, maiores informações e maior luz a
uma verdade já revelada anteriormente.
A relevância da progressividade da revelação para o método teológico está em
que, para que um determinado dogma seja formado ou uma determinada doutrina seja
estabelecida como matéria de fé na igreja cristã, não basta a apresentação de um
versículo. A título de exemplificação, o estabelecimento da doutrina da Trindade jamais
poderá repousar na apresentação de um texto ou um simples versículo que diga, de
maneira expressa, que existe uma subsistência de três pessoas no Ser divino, como é
frequentemente exigido por aqueles que defendem algum tipo de teologia unicista. O
ponto a ser estabelecido é que a doutrina da Trindade pode ser claramente observada à
medida que a revelação bíblica avança, indo de um estágio com menos luz para outro
com mais luz. Em Gênesis 1 tanto o nome ִ֑ ‫( ֱא‬Elohim) – um substantivo
‫ֹלהים‬
masculino com terminação plural – como o uso de verbo e pronome no plural
(“façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”) nos permitem
concluir tão somente pela existência de uma pluralidade na divindade. Não é possível
chegar ao entendimento de que Gênesis 1 ensina a doutrina da Trindade porque não há
luz suficiente para tal. Somente à medida que a revelação bíblica progride e culmina
com a revelação do Novo Testamento, é que podemos chegar a esta compreensão. Vê-
se, pois, que a Bíblia não é enciclopédia na qual consta um verbete intitulado
“Trindade”, que reúne todas as informações necessárias para o entendimento desse
dogma.

19
John Owen. The Works of John Owen: Exposition of Hebrews Chapters 1:1-3:6. Vol. 19.
Edinburgh, UK: The Banner of Truth Trust, 1991. pp. 17-18.
A Crescente Necessidade no Cristianismo Primitivo
Outro fator que deve ser observado quanto à necessidade do labor teológico é a
progressiva complexidade que caracterizou a maneira como a igreja cristã passou a
fazer teologia ao longo da sua caminhada. Quando comparados o período dos Pais
Apostólicos e o dos Pais Apologetas já é possível perceber uma nítida diferença na
maneira como os dogmas e doutrinas da igreja eram formados. No primeiro período a
dogmática ainda se encontrava em sua forma embrionária ou mais primitiva.
Estritamente falando, de acordo com Bavinck, no período dos pais apostólicos ainda
não havia algo como um dogma ou uma dogmática. Não havia a preocupação com
desenvolvimentos dogmáticos a respeito, por exemplo, das duas naturezas de Cristo ou
da união hipostática. A grande preocupação característica desse período era de cunho
moral. Tanto é assim que os primeiros documentos cristãos concentram grande parte da
sua atenção em questões éticas e morais. Um exemplo claro é o Didaquê, escrito entre
70 e 150 d.C. Esta obra é dividida em duas partes, sendo que a primeira (capítulos 1-6)
apresenta um conjunto de instruções morais intitulado “Os Dois Caminhos”. No
capítulo 1 encontramos o seguinte, a título de amostragem:
Existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há
uma grande diferença entre os dois. Este é o caminho da vida:
primeiro, ame a Deus que o criou; segundo, ame a seu próximo como
a si mesmo. Não faça ao outro aquilo que você não quer que façam a
você. Este é o ensinamento derivado dessas palavras: bendiga aqueles
que o amaldiçoam, reze por seus inimigos e jejue por aqueles que o
perseguem. Ora, se você ama aqueles que o amam, que graça você
merece? Os pagãos não fazem o mesmo? Quanto a você, ame aqueles
que o odeiam e assim você não terá nenhum inimigo (vv. 1-3).20

Já a segunda parte do Didaquê consiste de orientações de natureza litúrgica


(capítulos 7-10), sobre a vida em comunidade e orientações quanto ao tratamento
daqueles que se apresentavam como profetas (capítulos 11-15) e um capítulo de
natureza escatológica (16). O que fica claro a partir da citação acima é que, de fato, no
período dos chamados Pais Apostólicos não havia preocupação com a reflexão teológica
de natureza mais complexa.21 Bavinck faz um excelente resumo dos escritos conhecidos
como Pais Apostólicos:
Eles ainda agem completamente sobre a base de uma fé ingênua,
simples. O Cristianismo não foi o produto de pesquisa e reflexão
humana, mas de revelação e, em primeiro lugar, portanto, exigia fé.
Eles tentaram, até onde puderam, absorver e reproduzir o ensino oral e
escrito dos apóstolos. Eles assumiram os conceitos bíblicos de Deus,
de Cristo como Senhor, de sua morte e ressurreição, do Espírito Santo,
de fé, arrependimento, igreja, batismo, comunhão, ofícios, oração,

20
Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin (Orgs.). Didaquê: O Catecismo dos Primeiros
Cristãos para as Comunidades de Hoje. São Paulo: Paulus, 1997. pp. 4-5.
21
O mesmo padrão pode ser observado em outros Pais Apostólicos, como 1 e 2 Clemente, as
Cartas de Inácio de Antioquia, o Martírio de Policarpo e as Explanações dos Ditos do Senhor.
vigília, jejum, almas, vida ressurreta, imortalidade, etc. Contudo, eles
não articulavam, analisavam ou relacionavam uma com a outra.22

A ênfase desse período não estava no conhecimento teológico em si, mas na vida
piedosa, no cultivo das virtudes cristãs, na pureza etc. Somente a partir do 2º século a
teologia cristã buscou ampliar sua atuação, em virtude dos novos desafios enfrentados
pelos cristãos. O historiador Alderi Souza de Matos chama a atenção para o fato de que,
“à medida que se expandia e se tornava mais conhecido, o cristianismo atraiu
crescentemente a atenção das autoridades e da sociedade pagã”.23 O resultado foi uma
crescente hostilidade à fé cristã, que tomava formas variadas, incluindo “contestações
sofisticadas vindas de intelectuais pagãos como Luciano de Samosata, Galeno, Celso e
Porfírio”.24 Este fator aliado às perseguições movidas pelos imperadores romanos serviu
como catalisador de um novo tipo de reflexão cristã. Bavinck faz uma observação
extremamente interessante a respeito dos ataques movidos por autores pagãos contra o
cristianismo:
Todos os argumentos posteriormente lançados contra o Cristianismo
podiam ser encontrados nesses escritores – argumentos, por exemplo,
contra a autenticidade e verdade de muitos livros da Bíblia (o
Pentateuco, Daniel e os Evangelhos) e contra a revelação e os
milagres em geral; argumentos contra um grupo de dogmas, como a
encarnação, a satisfação, o perdão, a ressurreição e a punição eterna;
argumentos também contra normas de moralidade, tais como o
ascetismo, o desprezo pelo mundo e a falta de cultura; e, finalmente,
acusações escandalosas de adorar uma cabeça de bode e de cometer
assassinato de crianças, adultério e todos os tipos de imoralidade. 25

Foi a partir daí que as Sagradas Escrituras foram, de fato, enxergadas como uma
mina, e o ouro dos dogmas e doutrinas passaram a ser extraídos através do emprego da
reflexão metódica e analítica. A fim de combater as alegações dos escritores pagãos a
respeito da doutrina da ressurreição, não bastava que os Pais Apologistas citassem e
repetissem textos das Sagradas Escrituras. Tertuliano foi o primeiro teólogo a fazer uso
do termo Trindade, mas ele não fez isso apenas por meio da citação de textos das
Escrituras. Ele teve de empregar raciocínio, fazer deduções e associações para poder
chegar à compreensão da Triunidade do Ser divino. A teologia cristã teria sido abortada
cedo se tivesse se limitado a procurar apenas textos-prova para se defender dos ataques
desferidos contra o cristianismo.

Conclusão

22
Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 121. Ênfase
acrescentada.
23
Alderi Souza de Matos. Fundamentos da Teologia Histórica. São Paulo: Mundo Cristão,
2008. p. 32.
24
Ibid.
25
Herman Bavinck. Dogmática Reformada: Prolegômenos. Vol. 1. p. 122.
Acredito estar evidente que dogmas e doutrinas não se estabelecem com a
simples citação de alguns versículos. Se fosse este o caso doutrinas centrais da fé cristã
nunca teriam vindo à existência como, por exemplo, a doutrina da Trindade. Nenhuma
passagem das Sagradas Escrituras afirma de maneira categórica que, “cada uma das três
pessoas é Deus, ainda que haja somente um Deus. Cada uma das três pessoas tem
personalidade distinta e cumpre um propósito específico na consumação e aplicação da
redenção”.26 Associação entre diversas passagens tanto do Antigo quanto do Novo
Testamento teve de ser feita, princípios hermenêuticos tiveram de ser aplicados e
raciocínio lógico foi empregado – para citar apenas alguns passos –, para que este
precioso dogma cristã fosse estabelecido de forma oficial na cristandade.
Millard J. Erickson, teólogo sistemático de tradição batista delineia alguns
passos constituintes do processo de produção teológica, quais sejam27:
1. A compilação dos dados bíblicos;
2. A unificação dos dados bíblicos;
3. A análise do sentido dos ensinamentos bíblicos;
4. O exame dos tratamentos históricos;
5. A consulta a outras perspectivas culturais;
6. A identificação da essência da doutrina;
7. A iluminação de fontes extrabíblicas;
8. Expressões contemporâneas da doutrina;
9. A formação de um tema hermenêutico central; e
10. A estratificação dos tópicos.
Todos os cristãos ortodoxos concordam com os passos apontados acima,
devendo existir alguma variação de natureza apenas semântica. Todos concordam que
dogmas e doutrinas não são feitos com apenas um versículo. Não obstante, a
experiência demonstra que quando se trata de uma doutrina com a qual não
simpatizamos, logo abandonamos os princípios acima e nos agarramos à exigência de
algum texto-prova. Reduzimos a Escritura de uma mina de ouro teológica a uma mera
enciclopédia.

***********************

26
Ryan McGraw. By Good and Necessary Consequence. Grand Rapids, MI: Reformation
Heritage Books, 2012. p. 46.
27
Millard J. Erickson. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015. pp. 70-82.

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