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René Latourelle, S. J.

Professor na Universidade Gregoriana

Teologia da Revelação

Edições Paulinas
Latourelle, René.
L383t Teologia da Revelação / René Latourelle. — 3. ed·
3.ed. — São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
(Coleção teologia hoje; 18)
Bibliografia.
ISBN 85-05-00349-7
1. Revelação 2. Teologia dogmática I. Título.
85-0779 CDD-231.74

índices para catálogo sistemático:


1. Deus: Revelação: Teologia dogmática cristã 231.74
2. Revelação: Teologia dogmática cristã 231.74

oleção TEOLOGIA HOJE

Antropologia teológica, B. Mondin


Os grandes teólogos do século XX—vol. 1: Os teólogos católicos; vol. 2: Os
teólogos protestantes e ortodoxos, B. Mondin
O culto a Maria hoje, W. AA.
Teologia da revelação, R. Latourelle
As novas eclesiologias, B. Mondin
Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história, B. Forte .
O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré — vol. I: Fé e ideologia; vol Π/l :
História e atualidade; vol. Π/2: As cristologias, J. L. Segundo
Ensaio de ética sexual, J. Snoek
Vida e reflexão — Contributo da Teologia da Libertação ao pensamento
teológico, W. AA.
Titulo' original
Théologie de la Révélation
Tradução da 3‘ edição (1969)
Desclée de Brouwer, Bruxelles - Paris
Les Éditions Bellarmin, Montreal
Tradução de Flávio Cavalca de Castro, CSSR.
Nihil obstat’. Pe. Paulo Pazzaglini, ssp. · São Paulo, 20-11-1972
Imprimatur·, t B. de Ulhôa Vieira, vig. get· - São Paulo 22-11-1972

© 1972 BY EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO


INTRODUÇÃO

Deus não é um Presente ausente. “Muitas vezes e de


muitos modos falou Deus outrora a nossos pais, nos pro­
fetas; nestes últimos tempos, falou a nós no Filho” (Hebr
1,1). “A Deus ninguém jamais o viu; manifestou-no-lo o
Unigênito de Deus, que está no seio do Pai” (Jo 1,18).
Rompeu Deus o silêncio: saiu de seu mistério, dirigiu-se
ao homem e desvendou-lhe os segredos de sua vida pessoal;
comunicou-lhe seu desígnio inaudito de uma aliança que
levasse a uma participação de vida. Deus, o Deus vivo,
falou à humanidade. Esse o fato imenso que domina ambos
os Testamentos. Essa palavra, inicialmente longínqua, con­
fusa, intermitente, como que numa série de sons destaca­
dos cujo nexo os ouvidos mal percebiam, entrega-se toda
inteira em Jesus Cristo, Filho do Pai, Verbo do Pai, tor­
na-se Evangelho e ressoa, clara e distinta como uma men­
sagem: a “palavra da Boa-nova” (At 15,7), a “palavra do
Senhor” ( iTes 1,8; 2Tes 3,1), a “palavra de Deus” (iTes
2,13), a “palavra de verdade” (2Cor 6,7; Ef 1,13; Col
1,5; 2Tim 2,15), a “palavra de vida” (Flp 2,16), a “men­
sagem de salvação” (At 13,26), “o Evangelho da graça”
(At 20,24).
A revelação ou a palavra de Deus à humanidade é a
primeira realidade cristã: o primeiro fato, o primeiro mis­
tério, a primeira categoria. Toda a economia da salvação,
na ordem do conhecimento, repousa sobre esse mistério
da automanifestaçãó de Deus numa confidência de amor.
A revelação é o mistério primordial, o que nos comunica
todos os outros, pois é a manifestação do desígnio salvifico
de Deus, premeditado desde toda a eternidade e que ele
realizou em Jesus Cristo (Ef 1,9-10; Rom 16,25-27). Pela
revelação conhecemos os dons da salvação e os meios que
nos levam à sua consecução. A revelação é o acontecimento
6 INTRODUÇÃO j

decisivo e primeiro do cristianismo, condicionante da opção.


de fé, pois, se Deus falou à humanidade e se isso for soli-
damente comprovado, a opção de fé não será uma opção às
cegas, mas uma opção de homem, de acordo com sua na-
tureza de ser inteligente e livre. A revelação, finalmente, -
é a primeira das categorias que fundamentam toda pesquisa
teológica. Revelação, inspiração, tradição, significam para
a ciência teológica o mesmo que as noções básicas para as
ciências humanas. Implicadas em todos os passos, essas ca­
tegorias são as primeiras que se devem conhecer, definir,
explicar.
A revelação é o fato primeiro, o primeiro mistério - a
primeira categoria do cristianismo. E, contudo, essa reali­
dade foi bastante pouco estudada até agora. Em 1911, o
P. Lebreton já observava que os teólogos descuidaram de­
mais as “concepções fundamentais da revelação e da fé” *.
Cinqüenta anos depois, em 1961, A. Léonard, na introdu­
ção a uma obra coletiva sobre a teologia da palavra de Deus,
repete a mesma queixa. A revelação, observa, é “a realida­
de primária e fundamental” do cristianismo. “Por isso é
tanto mais de se admirar que a teologia católica não tenha
quase examinado e desenvolvido todas as variações desse
tema. . . Parece que na teologia ele desempenhou o papel
dessas evidências fundamentais que, implicitamente, estão
subjacentes a tudo que se diz... Em teologia tudo depende
da revelação divina, tudo a ela se refere, nada se explica a
não ser à sua luz. Talvez por isso permaneça, paradoxalmen­
te, como uma dessas grandes verdades implícitas tão evi­
dentes e certas que não precisam ser explicitadas” 2. Significa­
tivo também que o tema da revelação geralmente seja si­
lenciado pelos historiadores do dogma. Harnack, Schwane,
Tixeront, De Groot, Loofs, Seeberg e Landgraf não têm um
capítulo sequer sobre a questão.
Em teologia, contudo, há um tratado sobre a revela­
ção. Tratado que estuda o fato da revelação e o conjunto

1 J. Lebreton, “Són Éminence le Cardinal Billot”, Études, 129


(1911): 521-522.
2 Λ. Léonard, “Vers une théologie de la parole de Dieu”, em:
La Parole de Dieu e» Jésus-Christ (Paris, 1961), p. 12.
INTRODUÇÃO 7

de sinais que nos permitam estabelecê-lo com certeza. Ta-


reflexão sobre o fato da revelação, parte da função apoloz
gética da teologia, é necessária na Igreja que, se deixasse de
refletir sobre a intervenção divina na história e sobre os
sinais dessa intervenção, se exporia afinal ao perigo do
fideísmo. Empenhada na aventura da fé, já não saberia
nem por que nem como se empenharia.
Contudo, por mais sólido que fosse, o estudo apolo­
getico do fato da revelação não esgotaria a riqueza dessa ,
realidade que, como já o dissemos, não é somente um fato, ,
mas um mistério. Estabelecido que Deus falou, e que a
aparição do Cristo na história é o ponto mais denso dessa
intervenção, já teríamos, sem dúvida, feito muito, mas não
tudo. Teríamos demonstrado que a revelação existe, mas
ainda não teríamos dito tudo o que ela é. Estaríamos na
periferia da revelação. Restar-nos-ia ainda descobrir sua
natureza, seus aspectos, suas dimensões, sua profundidade.
Paralelamente a uma apologética da revelação há, pois, lugar
para uma dogmática da revelação, do mesmo modo como
ao lado de uma apologética da Igreja e da ressurreição há
uma dogmática da Igreja e da ressurreição.
O presente estudo gostaria de ser uma contribuição a
essa dogmática da revelação. Considera a revelação do ponto
de vista da revelação, do mesmo modo como se tratam os
outros mistérios da fé: criação, encarnação, redenção etc.
Da fé, parte para a inteligência da fé, apoiando-se à Es- · ·
critura como fonte inspirada e à Igreja como instituição
divina. Fides quarens intellectum·, é uma busca do espí­
rito, uma prospecção do mistério já aceito na fé.
Uma teologia da revelação, assim entendida, parece
corresponder adequadamente aos anseios de nossa época, .
que redescobriu o mistério da palavra de Deus. Proliferam,
em toda parte, os estudos sobre a Escritura, tradição, pre­
gação, liturgia, consideradas como palavra de Deus ou como
seus efeitos. O termo “palavra de Deus” usa-se para in­
dicar quase todos os mistérios da salvação e realidades cris­
tãs. Sinal evidente que se procura dar à palavra de Deus o
lugar de honra que lhe compete na fé e na vida dos
cristãos.
Permanece verdade, porém, que o termo palavra de
8 INTRODUÇÃO

Deus se aplica primariamente à revelação, ou seja: à inter­


venção primeira de Deus que sai de seu mistério, dirigin­
do-se à humanidade e comunicando-lhe seu desígnio salvi­
fico. A Escritura, a tradição contêm essa palavra; a pre­
gação da Igreja transmite-a; a liturgia, celebra e atualiza.
Mas, tudo deriva da palavra original que vem de Deus. *
Atualmente a teologia da revelação e da palavra de
Deus se parece com um imenso canteiro de obras. Todos
os elementos para a vasta construção encontram-se na reno­
vação bíblica e patrística do século vinte, nas rèflexões sobre
a natureza e o estatuto da teologia, nas queixas e nas ten­
tativas da teologia querigmática, nas pesquisas sobre o sen­
tido do ministério da pregação na Igreja, nos estudos sobre
o desenvolvimento dogmático e nas monografias sobre a
revelação e a fé. Parece que um novo tratado dogmático
se elabora, um tratado da revelação, destinado a ter lugar
entre os grandes tratados teológicos como os da fé e dos
sacramentos. Dogmática da revelação que seria um com­
plemento do tratado apologético e uma preparação ao da fé.
“O importante, escreve John Baillie, é que haja correspon­
dência total entre a inteligência da revelação e a inteligência
da fé que a recebe” 3. Fé e revelação, sendo noções cor-
relativas, como palavra e resposta, uma reflexão sobre a
revelação necessariamente haverá de fecundar e vivificar
uma teologia da fé.
Além de enriquecer a reflexão teológica, uma dogmá­
tica da revelação corresponde às atuais preocupações ecumê­
nicas. Com efeito, o ecumenismo não é apenas problema
eclesiológico, mas também problema de metodologia. Uma
teologia, com preocupações ecumênicas, deve procurar apre­
sentar a doutrina da Igreja fielmente, sem dúvida, mas com
fidelidade que favoreça o diálogo com os cristãos separa­
dos. Ora, principalmente entre os protestantes, sendo a Es­
critura o único centro de atenção, compreende-se que a pa­
lavra de Deus ocupe o primeiro lugar tanto na vida espi­
ritual como na pesquisa teológica. Na educação protestante,
o homem está sozinho diante da palavra de Deus; palavra
3 J. Baillie, The Idea of Revelation in Recent Thought (London,
1956), p. 99.
INTRODUÇÃO 9

que é o ambiente vital de sua vida interior, que se reno­


va num encontro diário com a Escritura. Conseqüentemen-
te a teologia da palavra de Deus ganha uma importância
muito grande e recebe tratamento privilegiado. De fato,
todos os grandes nomes da teologia protestante contempo­
rânea (K. Barth, R. Bultmann, E. Brunner, P. Tillich, R.
Niebuhr, H. W. Robinson, e outros) consagram capítulos
e até mesmo obras completas ao tema da revelação. Dar,
portanto, à palavra de Deus toda a importância que lhe
compete entre as realidades cristãs é de algum modo con­
tribuir para uma aproximação entre os cristãos.
Nosso estudo comporta cinco partes que se sucedem
conforme ao método habitual em teologia, conjugando-se
o trabalho especulativo ao positivo na elaboração dos da­
dos por este obtidos: 1. Noção4 bíblica de revelação; 2.
O tema da revelação nos Padres da Igreja; 3. Noção de
revelação na tradição teológica; 4. Noção de revelação e
Magistério da Igreja; 5. Reflexão teológica.
Na segunda e na terceira parte, evidentemente não
seria possível interrogar todos os Padres da Igreja nem to­
dos os teólogos que escreveram sobre o tema da revelação.
Pesquisa imensa e atualmente impossível, pois sobre o tema
não há senão raras monografias. Em vez de multiplicar os
autores apresentando de cada um apenas fragmentos, pre­
ferimos interrogar mais atentamente certo número de mes­
tres representativos do pensamento de uma época. Quanto
ao período patrístico nossa pesquisa abrangeu uns vinte
autores; da tradição teológica, uns 15 nomes mais repre­
sentativos. Nosso ponto constante de referência foi a re­
velação enquanto correlativa à fé.
A quarta parte estuda a noção de revelação nos documen­
tos do Magistério: documentos do Magistério extraordinário
nos concílios, do Magistério ordinário também, principal­
mente nas encíclicas. Esses .documentos quase todos, são dos
séculos XIX e XX. Prolongam e sancionam a elaboração
teológica dos séculos anteriores, refletindo ao mesmo tempo
4 Damos ao termo noção o sentido que tem em alemão (Begriff);
aqui noção designa toda a realidade da revelação, sob seus diversos
aspectos.
10 INTRODUÇÃO

as preocupações atuais da Igreja. Portanto, do ponto de


vista histórico, esta parte une-se estreitamente às prece­
dentes.
Nosso estudo de maneira alguma pretende ser exaus­
tivo. Apresenta-se, repetimos, como simples ensaio, uma
tentativa para um tratado dogmático da revelação. Se,
a esse título, puder prestar algum serviço e permitir que
outros vão mais longe na mesma direção, dar-nos-emos por
satisfeitos.

Segunda edição

Além das correções de pormenores, esta segunda edi­


ção contém os seguintes acréscimos:
1. Um artigo sobre a Epístola aos hebreus;
2. Um artigo sobre Duns Scot;
3. Um artigo sobre a encíclica Ecclesiam suam de
Paulo VI;
4. Um capítulo todo sobre a Constituição De divina
revelatione do Vaticano II.
Esse último capítulo apresenta-se como comentário por­
menorizado dos parágrafos conciliares sobre a natureza
e a transmissão da revelação. Outras páginas — principal­
mente as conclusões da quarta parte — foram retocadas
levando-se em conta os ensinamentos do Concilio. A biblio­
grafia, finalmente, foi atualizada.

Terceira edição

Esta edição reproduz o texto da segunda. Um suple­


mento bibliográfico (p. 577) apresenta as principais obras
e artigos publicados, de 1966 a 1968, sobre o tema da
revelação.
primeira parte

NOÇÃO BÍBLICA DE REVELAÇÃO


A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO

Caracteriza-se a religião do Antigo Testamento pela


afirmação de uma intervenção de Deus na história, inter­
venção devida unicamente à sua livre decisão. É concebida
essa intervenção como o encontro de alguém com alguém:
de alguém que fala com alguém que ouve e responde. Diri­
ge-se Deus ao homem como um senhor a seu servo, inter-
pela-o, e o homem, que ouve a Deus, responde pela fé
e pela obediência. O fato e o conteúdo dessa comunicação,
nós o chamamos de revelação *.
1 Sobre o tema da revelação no Antigo Testamento, ver principal­
mente: O. Grether, Name und Wort Gottes im Alten Testament
(Giessen, 1934); L. Duerr, Die Wertung des gottlichen Wortes im A. T.
und im Antiken Orient (Leipzig, 1938); H. Niebecker, Wesen und Wir-
klichkeit der iibernatiirlichen Offenbarung (Freiburg, 1940), W. Eichrodt,
Théologie des Alten Testaments (2 vol., Berlin, 1948), 2;32-38; A. Robert,
“La parole divine dans 1’Ancien Testament”, Dictionnaire de la Bible,
Supplément, 5; 442-465; S. Mowinckel, “La connaissance de Dieu chez
les prophètes de l’Ancien Testament”, Revue d’histoire et de philosophie
religieuses, 22 (1942 ) 69-106; C. Larcher, “La parole de Dieu en tant
que révélation dans l’Ancien Testament”, em: La Parole de Dieu en
Jésus-Christ (Paris, 1961), pp. 35-67; G. E. Mendenhall, Law and
Covenant in Israel and the Ancient Near East (Pittsburgh, 1955); W.
Moran, “De Foederis mosaici Traditione”, Verbum Domini, 40 (1962)
3-17; A. Oepke, “Αποκαλύπτω”, Theologisches Worterbuch, 3, 565-597;
O. Procksch, “Wort Gottes em A. T.”, Theologisches worterbuch, 4,
89-100; W. E. Wright, God who acts (London, 1952); P. Van Imschoot,
Théologie de l’Ancien Testament (2 vol., Paris-Tournai-New York-Rome,
1954 e 1956), I, 142-255; E. Jacob, Théologie de l’Ancien Testament
(Paris, 1955), pp. 103-109, 148-184;L. Koehler, Old Testament Theo­
logy (London, 1957), pp. 99-126; J. L. Mckenzie, “The Word of God
in the Old Testament”, Theological Studies, 21 (1960) 183-206; Th. C.
Vriezen, An Outline of the Old Testament Theology (Oxford, 1958), pp.
233-267; A. Barucq, “Oracle”, Dictionnaire de la Bible, Supplément,
6, 752-787; H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Tes­
tament (Oxford, 1946); J. Levie, La Bible, parole humaine et message
de Dieu (Paris-Louvain, 1958), (trad. A Bíblia, mensagem de Deus em
palavra humanas - São Paulo, 1963); H. H. Rowley, The Faith of Israel
14 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

Tomada em sua totalidade, como um fenômeno comple­


xo que compreende uma multiplicidade de formas e de meios,
essa revelação apresenta-se, antes de mais nada, como a ex­
periência da ação de uma potência soberana que modifica
o curso normal da história e da existência individual. Ação
que não é, porém, uma manifestação violenta de poder,
emoldurada sempre e amoldada por palavras: é uma potên­
cia que dialoga, anuncia, explica, manifesta um plano. Deus
não fala à massa, mas escolhe inicialmente um povo e, nesse
povo, intermediários que transmitirão sua palavra e exigi­
rão, em seu nome, uma resposta.
Ainda que o Antigo Testamento não tenha um termo
técnico para traduzir a idéia de revelação2, a expressão “pa­
lavra de Javé” permanece a expressão privilegiada, a mais
freqüente e significativa para exprimir a comunicação di­
vina. Nas teofanias, a manifestação sensível está a serviço
da palavra3. O mais importante não é ver a divindade, mas
ouvir sua palavra? O chamado de Deus a Abraão apresen-
ta-se-lhe como simples falar divino (Gên 12,lss). É igual­
mente significativo o fato de Moisés, que podia conversar
com Deus, como um amigo com seu amigo (Êx 33,11),
não poder ver sua face (Êx 33,21-23). Na revelação do
Sinai, a força da narrativa recai na palavra de Deus. Quanto
aos profetas, “é de se notar, diz Mowinckel, que as palavras
são o essencial mesmo nas visões”4. Observa Kõhler que
a revelação por visões é também revelação pela palavra5.
É por sua palavra que Deus, progressivamente, introduz o
homem no conhecimento de seu ser íntimo. “A palavra
de Deus, no Antigo Testamento, dirige e inspira uma his­
tória que se inicia pela palavra divina pronunciada na cria-

( London, 1956), pp. 23-47; R. B. Y. Scott, The Relevance of the Pro­


phets (New York, I96010); James G. S. S. Thomson, The Old Tes­
tament View of Revelation (Grand Rapids, Michigan, 1960); W. Bulst,
Offenbarung (Düsseldorf, 1960); P. Grelot, Sens chrétien de l’Ancien Tes­
tament (Paris-Tournai-New York-Rome, 1962), pp. 126-134.
2 H. Schulte, Der Begriff der Offenbarung im Neuen Testament
(München, 1949), pp. 38-40; P. Van Imschoot, Théologie de l’Ancien
Testament, I, 142.
3 S. Mowinckel, “La connaissance de Dieu chez les prophètes de
l’Ancien Testament”, Rev. d’hist. et de ph. rel., 22 (1942) 79.
* Ibid., p. 83
5 L. Koehler, Théologie des Alien Testaments (19533), p. 87.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 15

ção e que termina com a palavra feita carne” 6. Traçar,


pois, a história da palavra de Deus é traçar ao mesmo tem­
po a história da revelação7.

I. AS ETAPAS DA HISTÓRIA DA REVELAÇÃO

1. Ainda é hesitante a pesquisa quanto à fase mais


antiga da revelação, fase que parece centrada nos fatos teo-
fânicos e nas manifestações de tipo oracular.
O Gênesis narra que Javé apareceu sob formas huma­
nas a Abraão, junto aos terebintos de Mamré (Gên 18,lss),
anunciando-lhe o nascimento de Isaac e a destruição de So­
doma. Aparece-lhe ainda Javé para concluir uma aliança
e mudar seu nome de Abrão em Abraão (Gên 17,lss).
Isaac e Jacó tiveram aparições semelhantes (Gên 26,2;32,
25-31;35,9). Impossível, contudo, determinar a natureza
exata dessas manifestações, que poderíam ter sido visões
sensíveis, afetando os sentidos exteriores, ou apenas visões
interiores, apresentadas de forma antropomórfica apta a in­
dicar o caráter intenso e direto da experiência interior. Não
há dúvida de que essas tradições patriarcais foram conser­
vadas em textos que a pesquisa contemporânea atribui apro-
ximativamente ao século décimo (J) ou ao nono-oitavo (E);
textos, porém, que transmitem tradições muito mais anti­
gas. Pode-se admitir, contudo, que essas experiências fo­
ram retocadas pelos narradores.
O ambiente oriental usava algumas técnicas para tentar
penetrar os segredos dos deuses: adivinhações, sonhos, sor­
tilégios, agouros etc. O Antigo Testamento, durante muito
tempo, conservou algumas dessas técnicas, purificando-as
6 E. Jacob, Theólogie de l’Ancien Testament, p. 104. “Si l’on excepte
le nom de Dieu, remarque F. J. Leenhardt, il n’est pas de mot qui
occupe une place et qui joue un rôle comparable à ceux qui reviennent
au mot Parole dans toute la tradition chrétinne, et, avant Jésus-Christ,
dans l’hèbraïsme d’où elle est issue” (F. J. Leenhardt, “La signification
de la notion de parole dans la pensée chrétienne”, Rev. d’hist. et de ph.
tel., 55 [1955], 261).
7 A. Robert, “La parole divine dans l’Ancien Testament”, Diet, de
la Bible, Suppl., 5, 442-465; C. Larcher, “La parole de Dieu en tant que
révélation dans l’Ancien Testament”, em La Parole de Dieu en Jésus-Christ,
PP. 35-67.
16 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

de suas aderências politeísticas ou mágicas (Lev 19,26; Dt


18,10s; iSam 15,23;28,3), atribuindo-lhes, contudo, certo
valor. Nos momentos importantes ou difíceis, por exem­
plo, antes de uma guerra ou aliança, Israel interroga, con­
sulta Javé, seu Deus, que ele sabe estar presente a todas
as suas ações (ISam 9,1-10; Jos 7,6-15; ISam 10,20-21).
Mas, enquanto entre seus vizinhos semitas ou egípcios o
adivinho procura coagir os deuses mediante ritos conside­
rados infalivelmente eficazes, Israel espera uma resposta
que depende do bel-prazer de Javé. Essas consultas, quase
sempre em favor dos chefes da nação, são feitas pelos vi­
dentes e principalmente pelos sacertodes ( ISam 14,36;22,
15). Nos oráculos, o sacerdote usa os Urim e Thum mim,
guardados no ephod; as respostas são dadas em fórmulas
breves, sim ou não (Dt 33,8; Êx 28,30; Lev .8,8; Núm
27,21; ISam 14,41 ;23,10ss)8. Significativo também que Is­
rael tenha sempre recusado aceitar certas formas clássicas
da técnica de adivinhação, por exemplo, a hepatoscopia,
muito usada nos sacrifícios divinatórios do antigo oriente.
Como a maioria dos povos antigos, admitiam os he-
breus que Deus sê pudesse servir de sonhos para dar a
conhecer suas vontades (Gên 20,3;28,12-15;37,5-10; Jz 7,
13ss; ISam 28,6; iRs 3,5-14). José tem uma taça de adi­
vinhação (Gên 44,2.5) e é perito na interpretação de so­
nhos (Gên 40-41). Progressivamente, porém, distinguem-
-se os sonhos que Deus envia aos profetas autênticos (Núm
12,6; Dt 13,2) e os dos adivinhos profissionais que apre­
goam sonhos mentirosos (Jer 23,25-32; Is 28,7-13).
Nos profetas, essas técnicas arcaicas tendem a desapa­
recer, dando lugar à experiência da palavra que prevalece9.
2. A aliança do Sinai é um momento decisivo na
história da revelação. Não pode ser compreendida a não ser
à luz de todo o processo histórico, cuja meta e acabamento
8 P. Van Imschoot, Théologie de VAncien Testament, I, 148-154;
H. H. Rowley, The Faith of Israel, pp. 28-29; A. Barucq, “Oracle”,
Diet, de la Bible, Suppl., 6, 679-681; H. W. Robinson, Inspiration and
Revelation in the Old Testament, pp. 202-204.
• Contudo, encontram-se sonhos no gênero apocalitico (Daniel, Za­
carias), quando então eles têm uma significação e se tornam também
palavra.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 17

ela constitue 10. Javé, que provara a Israel o seu poder e


a sua fidelidade livrando-o do domínio egípcio, pela Aliança
faz desse povo sua propriedade e torna-se chefe da nação.
Todas as tradições ligam à Aliança certas leis que são as
condições de Javé, as cláusulas por ele impostas a Israel
Leis que são as “palavras” da Aliança (Êx 20,1-17) ou as
“dez palavras” (Êx 34,28). O característico dessas deba-
rim, que originalmente poderiam ter existido de forma muito
mais simples e não decalógica, é o estilo apodítico, que
não encontramos senão em Israel e em alguns tratados hiti-
tas do segundo milêniou. As palavras da Aliança são a
revelação da vontade divina, que respeitada ou transgre­
dida trará a bênção ou a maldição; exprimem o exclusivismo
do Deus de Israel e suas exigências morais. A Aliança trans­
formou em comunidade as tribos que tinham saído do Egito,
dando-lhes uma lei, um culto, um Deus, uma consciência
religiosa. Torna-se Israel um povo governado por Javé.
Todo seu destino, de agora em diante, está ligado a es­
sa vontade divina historicamente manifestada e alicerçada
no acontecimento da libertação 13. Os profetas não deixarão
de aplicar aos acontecimentos contemporâneos as implica­
ções do regime da Aliança M. Os mishpatim ou costumes do
Código da Aliança (Êx 20,22-23719), se bem que sejam de
uma fase ulterior que supõe uma canonização das leis con-
suetudinárias dos antepassados, são considerados também
10 H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Tes­
tament, p. 153.
11 W. Eichrodt, Theology of the Old Testament (trad. J. A·.
Baker, London, 1961), I, 37-38; G. E. Mendenhall, Law and Covenant
in Israel and the Ancient Near East, pp. 37 e 43; W. Moran, “De Foe­
deris mosaici Traditione”, Verbum Domini, 40 (1962) 7-13.
12 W. Eichrodt, Theology of the Old Testament, I, 71, 72; G. E.
Mendenhall, Law and Convenant in Israel and the Ancient Near East,
pp. 7. 10. 27. 28; A. Alt, Die Urspriinge des israelitischen Rechts
(Leipzig, 1934); W. Kornfeld, Studien zum Heiligkeitsgesetz (Wien,
1952), pp. 53-66.
13 W. Eichrodt, Theology of the Old Testament, I, 39; G. E.
Mendenhall, Law and Covenant in Israel and the Ancient Near East,
p. 5. Acrescentemos que, pela Aliança, Israel se reconhece introduzido
numa existência dialogai; colocado, daí por diante, num contexto de
chamado e de resposta.
14 W. Eichrodt, Theology of the Old Testament, I, 42; A. Robert,
“La parole divine dans 1’Ancien Testament”, Diet, de la Bible, Suppl.,
5, 444.
18 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

como expressão da vontade de Deus. Por suas fórmulas


imperativas, já, porém, mais circunstanciadas ou casuísticas,
são um prolongamento do Decálogo.
3. O profetismo constitui uma nova etapa na histó­
ria da palavra. Já o eloísta ou o javista, quando narram
a história das origens da nação, tomam um ponto de vista
profético. Consideram certos fatos como “julgamentos” e
vêem nos patriarcas seres carismáticos, dirigidos pela pala­
vra de Javé (Gên 12;13;15;16;18;26;28). Balaão, apesar
de pagão, tem o papel de um profeta inspirado (Núm 22-
-23 ). Principalmente Moisés é considerado como o protótipo
dos profetas (Dt 34,10-12; 18,15.18). Se bem que Josué já
apareça como confidente e porta-voz de Javé, foi somente
a partir de Samuel ( iSam 3,1-21 ) que o profetismo se
tornou frequente; parece quase permanente até o século
quinto, mesmo sendo sempre antes carismático que insti­
tucional.
No tempo dos profetas escritores, a palavra de Javé
impõe-se cada vez mais como a expressão da vontade divina
e como poder decisivo na história de Israel. Os profetas
anteriores ao exílio (Amós, Oséias, Miquéias, Isaías) são
os guardiães e defensores da ordem moral imposta pela
Aliança. Sua pregação é um chamamento à justiça, à fide­
lidade, ao serviço do Deus todo-poderoso e três vezes santo.
Como, porém, Israel é infiel às condições da Aliança, as
mais das vezes o dabar divino condena e anuncia castigos
(Am 4,l;5,l;7,10-ll; Os 8,7-14; 13,15; Miq 6-7; Is 1,10-
20;16,13;28,13-14;30,12-14;37,22;39,5-8). Castigos que
não serão revogados. O tema da irreversibilidade e do di­
namismo da palavra divina afirma-se claramente em Is 31,2;
Os 6,5, e ainda mais explicitamente em Is 9,7: “Lança o
Senhor uma palavra contra Jacó e ela cai sobre Israel”.
Aqui aparece a palavra como puro dinamismo. Cai como
flecha e desenvolve seus efeitos por etapas sucessivas.
Jeremias ocupa lugar importante na reflexão teológica
sobre a revelação, pois tentou determinar os critérios da
autêntica palavra de Deus. Tais critérios são: a realiza­
ção da palavra do profeta (Jer 28,9;32,6-8; Dt 18,21-22),
a fidelidade a Javé e à religião tradicional (Jer 23,13-32),
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 19
o testemunho enfim, tantas vezes heróico, do próprio pro­
feta sobre a sua vocação (Je 1,4-6;26,12-15 ). Jeremias
foi consagrado profeta como que num rito: colocou-
-Ihe Deus na boca sua palavra como um objeto material
(Jer 1,9). Alimento saboroso (Jer 15,16), ou fonte de
tormentos (Jer 20,9.14), a palavra de Deus escraviza-o e
coage-o como uma realidade objetiva e superior. A pala­
vra, da qual é o destinatário ou o órgão, está geralmente
relacionada com a. fidelidade que Israel deve à Aliança de
Javé. Jeremias é o defensor da Lei e da Aliança. Como
os outros profetas, exorta, promete, ameaça (Jer 2,4;7,2;17,
20;22,2.19;34,4;22,5;26,12-13;19,2;20,l). Também apre­
senta a palavra como uma entidade independente, de dina­
mismo irresistível (Jer 5,14;23,29;25,13;26,12 ) 15.
4. O Deuteronomio, originário dos ambientes do nor­
te trabalhados pela pregação profética dos séculos nono e
oitavo (segundo Welch, Alt, von Rad), encontra-se na con­
fluência de duas correntes: a legalista, expressão do sacer­
dócio, e a profética. Aprofunda-se, sob essa dupla influên­
cia, a teologia da Lei. O Deuteronomio, procurando cor­
rigir o presente à luz do passado, relaciona mais que nun­
ca a Lei ao tema da Aliança. A história de Israel, com
suas desgraças, aparece como a conseqüência lógica duma
infidelidade constante e renovada. Javé, revelando sua von­
tade prometera sua bênção à obediência: o castigo de Is­
rael é o julgamento de Deus sobre a desobediência de seu
povo 16. Israel, pois, se quiser viver, deve pôr em prática todas
as palavras da Lei (Dt 29,28) que, saída da boca de Javé,
é fonte de vida (Dt 32,47). O Deuteronomio amplia em
diversos sentidos o dabar divino. Os relatos do Sinai em­
pregam o termo debarim para designar o Decálogo (Êx 20).
O Deuteronomio, que também chama o Decálogo de: as
“dez palavras” (Dt 4,13;10,4) estende a expressão a todas
as cláusulas da Aliança (Dt 28,69), isto é: ao conjunto
das leis morais, civis, religiosas e criminais. Firma-se de
tal modo a coesão de todas essas prescrições que “palavra”
acaba sendo a designação de toda a Lei mosaica (Dt 28,69;
15 A. Robert, ibid., 5, 446-447.
16 G. von Rad, Studies in Deuteronomy (London, 1956), p. 77.
20 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

30,14;32,47 ). Nas leis do Sinai, o dabar divino era sim­


ples mandamento, sem comentários. No Deuteronomio, pelo
contrário, os preceitos são acompanhados de evocações his­
tóricas, promessas e ameaças (Dt 4,32), que devem inspi­
rar o amor e o respeito pela lei. Finalmente, interioriza-se
a palavra da Lei. Os “mandamentos e as leis” que Javé
prescrevera (Dt 27,10) já não se concebem como simples im­
perativos, mas como uma realidade íntima no coração do ho­
mem: “A palavra está perto de ti, tu a tens em tua boca
e no coração, para poder cumpri-la” (Dt 30,11-14). Con­
siste a Lei em amar a Deus de todo o coração e de toda
a alma (Dt 4,29) ”,
5. Paralelamente às correntes proféticas e deuteronô-
micas, forma-se uma literatura histórica (Juizes, Samuel,
Reis) que abarca fontes e documentos muito mais antigos.
Essa literatura histórica é em realidade uma história da sal­
vação e uma teologia da história. Nas desgraças e nos su­
cessos de Israel, o livro dos Juizes vê uma ilustração do
regime da Aliança. Principalmente no livro dos Reis desen­
volve-se a concepção do dabar divino presente na história
para dirigi-la. A Aliança concluída por Javé e as condi­
ções por ele impostas, supõem que o curso dos aconteci­
mentos é regulado pela vontade divina, levadas em conta
as atitudes do povo eleito. Desde então Israel sempre pen­
sou sua religião em categorias históricas. Em última aná­
lise, é a palavra de Deus que faz a história e a torna com­
preensível. Ao longo de toda a história dos Reis, as pala­
vras de Javé vão escandindo o curso dos acontecimentos, ma­
nifestando seu sentido religioso ( IRs 2,4;3,11-14;6,11-13;
8,46-52;9,3-9;Il,31-39;12,15;14,6-16;15,29-30;16,l-4; 2Rs
9,7-10;21,10-15;22,16-20;24,2-4).
Importante nessa literatura histórica é o texto da pro­
fecia de Natan (2Sam 7) que dá à Aliança conexões com
a realeza e inicia o messianismo real. Com essa profecia
a dinastia de Davi torna-se para sempre a aliada direta de
17 A. Robert, “La parole divine dans l’Ancien Testament”, Did. de
la Bible, Suppl., 5, 448; G. von Rad, Studies in Deuteronomy, pp. 77-91;
C. Larcher, “La parole de Dieu en tant que révélation dans l’Ancien
Testament”, em La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 59-60.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 21

Javé (2Sam 7,16;23,5), ponto central na história da salva­


ção. De agora em diante, repousa sobre o rei a esperança de
Israel: primeiro o rei presente, depois um rei futuro, esca-
tológico, à medida que as infidelidades dos reis históricos
tornam mais remota a esperança de um rei conforme ao
ideal davídico. Essa profecia é o início de uma teologia,
elaborada pelos profetas. Teologia eminentemente de pro­
messa, voltada sempre para o futuro, mais que a teologia
da Aliança do Sinai, cujas exigências são principalmente
cotidianas 18.
6. Quando do exílio, a palavra profética, sem deixar
de ser uma palavra viva, torna-se sempre mais uma pala­
vra escrita. Significativo que a palavra confiada a Eze­
quiel está escrita num rolo que o profeta deve comer
para depois anunciar seu conteúdo (Ez 3,lss). Suas men­
sagens ganharão, escritas, a estabilidade dos decretos di­
vinos. Ezequiel é o ministro duma palavra irrevogável, que
anuncia os acontecimentos dando-lhes um desenrolar infalível.
(Ez 12,25-28;24,14). Com ele, as vezes, o dabar não é
apenas uma mensagem, mas uma ordem formal e veemen­
te, um poder que opera efeitos físicos. Uma primeira ca­
racterística da profecia de Ezequiel é o número e a am­
plitude das visões (Ez l;2,8-3,9;8-ll;37;40,l-48,35). Há
palavras que comentam essas visões que, por si mesmas,
são um ensinamento. Uma segunda característica é o tom pas­
toral da palavra de Ezequiel. Após a queda de Jerusalém
(Ez 33,1-21), já não existe Israel como nação. Torna-se
então a palavra de Javé uma palavra de conforto e espe­
rança para os exilados abatidos. Ezequiel começa a formar
o novo Israel, como o faria um diretor espiritual (Ez 33,
1-9). Deixando entrever que a palavra que decretara e in­
fligira o castigo continua sendo uma promessa, Ezequiel,
contudo, preocupa-se que não haja engano quanto a sua na­
tureza e exigências: não basta ouvir a palavra, é preciso dela
viver (Ez 33,31). Ezequiel, “pela importância dada ao
mashal, ao ensinamento moral e individual, orienta-nos cla-

18 A. Gelin, art. “Messianisme”, Diet, de la Bible, Suppl., 5, 1174-1177;


H. van den Bussche, “Le texte de prophétie de Nathan sur la dynastie
davidique”, Eph. Theol. lov. (1948), 354-394.
22 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

ramente para uma noção sapiencial da palavra, para uma


reflexão fria” 19.
Dêutero-Isaías (Is 40-55), que devemos 1er no con­
texto do exílio, considera o dabar divino em seu dinamis­
mo a uma só vez cósmico e histórico. Manifesta-se a trans­
cendência de javé primeiramente em a natureza. O exér­
cito dos céus obedece ao Criador: Javé chama pelo nome
os astros, os quais obedecem (Is 40,26;45,12;48,13). Sua
absoluta soberania sobre a criação é o fundamento e a ga­
rantia de sua ação onipotente na história: porque Javé, pela
sua palavra, fez do nada tudo surgir, por isso é o senhor
das nações como das forças da natureza. O aspecto his­
tórico do dabar inspira toda a primeira parte da coleção
(Is 40,1-48,22). A palavra domina a história e de ante­
mão lhe revela o curso (Is 45,19;48,16). Está no início
e no termo dos acontecimentos: ela que os prediz, suscita,
realiza. Em Is 48,3-8, a realização das profecias anteriores
aparece como garantia das coisas futuras também anuncia­
das: da libertação, da volta, da restauração, do universalis­
mo escatológico. Nas mãos de Deus estão os polos extre­
mos da história (Is 41,4;44,6;48,12). História que é in­
teligível porque se desenvolvendo segundo um plano que
a palavra revela progressivamente aos homens. Finalmente,
em Is 55, o autor canta a eficácia infalível da palavra que
executa as vontades divinas com a mesma fidelidade dos
eléméntos da natureza: “Assim como a chuva e a neve do
céu descem e não voltam para lá sem terem antes irrigado
a terra e a terem fecundado e feito germinar. . . assim será
da palavra que sair da minha boca: não voltará a mim
vazia, mas, antes, operará tudo o que me agrada, e obterá
o escopo para o qual a mandei” (Is 55,10-12). Audaciosa
personificação, que apresenta a palavra como realidade di­
nâmica, criadora da história20.
7. A literatura sapiencial é testemunha de uma tra­
dição muito antiga em Israel ( lRs 5,9-14; 10,1-13.23-25 ) ;
19 A. Robert, “La parole divine dans l’Ancien Testament”, Did. de
la Bible, Suppl., 5, 451: “nous orient nettement vers une notion sapien-
tielle de la parole, par la place qu’il fait au mashal, à enseignement moral
et individuel, à la réflection froid”.
20 Ibid., 5, 453-455.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 23

na época persa e helenista, porém, é que está mais em voga:


às coleções existentes (por exemplo, Prov 10,l-22,16;25-
29) juntam-se numerosas criações ( Jó, Eclesiastes, Eclesiás­
tico, Sabedoria ). Ainda que a literatura sapiencial do Antigo
Testamento pertença a uma corrente de pensamento inter­
nacional (Grécia, Egito, Babilônia, Feriícia) presente desde
o segundo milênio21, contudo, em Israel essa corrente trans-
formou-se bem cedo num instrumento de revelação.
O mesmo Deus, que ilumina os profetas, usou a ex­
periência humana para dar o homem a conhecer-se a si
mesmo (Prov 2,6;20,27). Inicialmente essa sabedoria é
simples reflexão, positiva e realista, sobre o homem e seu
comportamento, para ajudá-lo a se orientar na vida com
prudência e discrição (Prov 1,1-6). Na Grécia essa refle­
xão será mais especulativa e se transformará em filosofia.
Em Israel, muito cedo o tesouro de experiência dos sábios
foi vivifiçado pelo sopro da religião de Javé. Assumindo a
experiência humana, Israel interpreta-a e aprofunda à luz
de sua fé em Javé, senhor dos homens e da vida22. E até
mais: muitas vezes pertencem à revelação os dados sob os
quais se inclina a reflexão sapiencial: a criação (Eclo 43),
a história que torna patentes os caminhos de Deus (Eclo 44-
50), os livros históricos, a Lei e os profetas (Eclo 39,lss).
Sob a influência dessa fé em Javé, a antítese sabedoria-
-loucura torna-se progressivamente uma oposição entre jus­
tiça e iniqüidade, piedade e impiedade. Sábio é quem cum­
pre a lei de Deus (Eclo 15,l;19,20;24,23; Ecl 12,13), pois
toda sabedoria provém de Deus (Prov 2,6). Somente ele
a possui plenamente; manifesta-a em suas obras e comuni­
ca-a aos que o amam (Eclo 1,8-10; Sab 9,4; Jó 28,12-27).
A sabedoria, como a palavra, saiu da boca do Altíssimo;
agia nas origens da criação e veio estabelecer-se em Israel
(Eclo 24,3-31). Assim a sabedoria se identifica finalmente
com a palavra de Deus, criadora e reveladora (Sab 7-9).
8. O saltério, formado aos poucos, ao longo de toda
uma história, é principalmente uma resposta à revelação;
21 H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testa­
ment, pp. 235-237.
22 Ibid., pp. 252-253.
24 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

mas é também revelação, pois a oração dos homens, pelos


sentimentos que manifesta, dá à revelação toda a sua di­
mensão. A grandeza, a majestade, a potência, a fidelidade,
a santidade de Javé reveladas pelos profetas, refletem-se
nas atitudes do crente e na intensidade de sua oração23.
Espelhos da revelação, os salmos são também sua reatuali-
zação cotidiana no culto do templo. Não nos admiremos,
pois, se ali reencontrarmos os diferentes aspectos da pala­
vra já indicados. Muitas vezes a palavra de Javé indica os
preceitos impostos por Deus a seu povo (SI 17,4; 107,11 ). -
O salmo 119 amplia essa visão celebrando a torá como a
encarnação de toda a revelação divina, que às vezes
ordena, ameaça às vezes ou faz promessas. Há também no
saltério oráculos que são recordação dos compromissos an­
teriormente assumidos por Javé (SI 99,7;85,9;89,20;12,6;
62,12;60,8; 105,11;68,23). O salmista põe ainda em evi­
dência a veracidade, a fidelidade da palavra de Javé, segura
e sem mescla. Mesmo quando o dabar não é proferido em
forma oracular, tem muitas vezes o valor de uma promessa.
Assim, no salmo 56, põe o fiel sua esperança na palavra
de Javé cuja veracidade jamais falha. Finalmente, muitos
salmos celebram a palavra criadora de Javé: o mundo surge
do nada ao som da palavra que produz, organiza e governa
(SI 33,6.9). Os elementos naturais, mesmo o tufão, obe­
decem às ordens de Deus (SI 147,15-18;107,25;148,8). Em
resumo: para os salmistas a palavra de Deus é ao mesmo
tempo promessa e potência que se exerce em a natureza
e na história24.
9. Concluindo este esboço, ponhamos em evidência
o papel da escritura na história da revelação. O processo
que levou à fixação da palavra foi inicialmente muito lento.
Até ao fim da época dos reis, foi principalmente de forma
ocasional que se escreveram as antigas tradições e os oráculos
proféticos. Nem parece que pretendesse formar um cânon.
Após o exílio somente é que se constituíram essas gran­
des compilações, redigidas em camadas sucessivas, com da-
23 Ibid., pp. 262-265.
24 A. Robert, "La parole divine dans l’Ancien Testament”, Diet, de
la Bible, Suppl. 5, 458-461.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 25
dos muito antigos, chamadas código deuterocanônico e có­
digo sacerdotal. Assim fixada, foi possível 1er e meditar
a palavra de Deus e contemplar a fiel realização de suas
promessas. Reveste-se a palavra de Deus de caráter dura­
douro de eternidade: ela permanece irrevogável e infalí­
vel. Por outro lado, fixando-se, corre o risco de perder
um tanto do dinamismo que tivera nos profetas25 ; será pre­
ciso também atualizá-la sempre, aplicando-a às novas situa­
ções históricas, numa releitura constante que por si mesma
será um aprofundamento.

II. VALOR NOÉTICO E DINÂMICO DA PALAVRA DE DEUS

O esboço de história da revelação já nos dá uma idéia


sobre o sentido e o valor da palavra de Deus em Israel. Se
é constestada a etimologia do termo dabar “, seu uso dá-nos
a conhecer seu alcance preciso. Dabar é “o que sai da
boca” (Núm 30,13) ou “dos lábios” (Jer 17,16) do ho­
mem, mas que tem sua fonte no coração. O dabar expri­
me, exterioriza o que o homem já proferiu em seu coração
(Gên 17,17; SI 14,1) ou o que lhe vem ao coração (Jer
3,16; Is 65,17), ou ao seu espírito (Ez ll,5;20,32). A
palavra não é, pois, a simples expressão de idéias abstra­
tas; está carregada de sentido, tem um conteúdo noético
que vem da concentração do coração sobre um objeto ou
de pensamentos que dele se apossam, traduzindo ao mesmo
25 E. Jacob, Théologie de ΓAncient Testament, p. 108.
36 O. Procksch e E. Jacob dão-lhe o sentido radical de “estar por
detrás e empurrar”. Diz Jacob: “le dabar pourrait être défini comme la
projection en avant de ce qui est à l’arrière, c’est-à-dire le passage à
l’acte de ce qui est d’abord dans le coeur” (Théologie de l'Ancien Tes­
tament, p. 104). E O. Procksch diz: “O dabar é o pano de fundo de
uma coisa, o sentido que lhe é próprio; é esse sentido que é expresso
pela palavra... Cada palavra contém, não apenas um sentido, mas tam­
bém uma energia” {Théologie des Alten Testaments, p. 469). A seus olhos
essa explicação justifica o aspecto noético e dinâmico da palavra. A.
Robert conclui que: “le plus sûr est de supposer ici, comme si fré­
quemment ailleurs, deux racines parallèles, l’une signifiant parler, l’autre
être en arrière” (Diet, de la Bible, Suppl., 5, 442). Ver também F. J.
Leenhardt, “La signification de la notion de parole dans la pensée
chrétienne”, Rev. d’hist. et de phil. rel.,. 35 (1955 ) 263-264. O método
de O. Procksch foi criticado por J. Barr, “Hypostatization of Linguistic
Phenomena in modern Theological Interpretation”, Journal of Semitic
Studies, 7 (1962), 88-92.
26 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

tempo um estado de alma, que de algum modo impregna


a palavra pronunciada, articulada27. Pedersen tem razão
quando afirma que a “palavra. . . é a expressão corporal
do conteúdo da alma... ; por detrás da palavra subsiste a
totalidade da alma que a criou. Se quem proferiu a pa­
lavra é uma alma enérgica, então sua palavra exprimirá
mais realidade que a de uma alma fraca. Quem dirige uma
palavra a outro, faz nascer um pouco de sua própria alma
na alma do outro” M. Por isso a palavra é eficaz, agindo
como um prolongamento da energia física de quem a proferiu.
Para Israel a palavra tem duplo valor: noético e dinâ­
mico. É expressão de pensamentos, intenções, projetos, de­
cisões; é discurso inteligível; esclarece o sentido dos acon­
tecimentos; ela “nomeia” as coisas, pois o nome é a reali­
dade enquanto inteligível. Por outro lado, é uma força
ativa, um poder que realiza o que significa; opera o que
o homem medita e decide em seu coração. Palavra de de­
sejo, de promessa, de preceito, permanece sua ação enquanto
dura o processo que desencadeou. Sua eficácia é tanto
maior, quanto mais potente a vontade que lhe deu origem
(como a dos reis, de Deus) ou mais profunda a fonte de
que jorrou (amor, ódio). A palavra libera uma energia que
já não poderá ser recuperada: sua eficácia aparece princi­
palmente nas mudanças de nome que determinam uma
nova atribuição ou vocação (Gên 17,5.15;35,10) e nas
formas de bênção ou maldição (Gên 27; Jz 17,1-2; 2Sam
12,1-8; Núm 5,12-13). O realismo da palavra é confir­
mado ainda pelo fato de dabar designar não apenas a pa­
lavra, mas também a coisa, a realidade, o acontecimento
que ela suscita (Gên 22,1;24,66; IRs 11,41). Em resumo,
a palavra é uma força atuante cujo dinamismo se funda­
menta no dinamismo mesmo de quem a pronunciou. Mal
se distingue da pessoa, cujo modo de ser e de agir ela é.
Por isso é reveladora. Ninguém fala sem se revelar

27 Larcher, “La parolé de Dieu en tant que révélation dans


l’Ancien Testament”, em La Parole de Dieu en Jésus-Christ, p. 37-40.
28 J. Pedersen, Israel, its Life and Culture (London, Í946), p. 107.
29 J. K. McKenzie, “The Word of God in the Old Testament”,
Theological Studies, 21 (I960), 187-191; E. Jacob, Théologie de l’Ancien
Testament, pp. 103-104; P. van Imschoot, Théologie de l’Ancien Testa-
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 27

Assim a palavra de Javé, é ao mesmo tempo noética e


dinâmica; discurso do ‘Deus de verdade e ato salvador do
Deus vivo; anúncio e realização da salvação; luz e poder.
A palavra de Deus cria o mundo, impõe a lei, suscita a
história; a mesma palavra manifesta ao homem a vontade
de Deus, seu desígnio salvifico. A palavra de Deus realiza
infalivelmente o que ela diz. Envia-a Deus como se envia
um mensageiro vivo e está atento para que se cumpra. A
palavra de Deus permanece para sempre, fiel e eficaz.

III. REVELAÇÃO CÓSMICA E REVELAÇÃO HISTÓRICA

Só tardiamente a reflexão teológica de Israel se ocupa


com a palavra criadora (se bem que a idéia da criação possa
ter surgido e circulado muito antes de aparecer nos textos
sagrados). Principalmente através da história é que Israel
conheceu Javé, quando no Egito experimentou seu poder
libertador. Meditando continuamente sobre esse poder ili­
mitado de Javé, que utilizava os elementos naturais na sal­
vação de seu povo (pragas do Egito, travessia do mar,
teofania do Sinai), chegou à crença na criação, após ma­
turação orgânica e homogênea influenciada pelo meio am­
biente. Compreendeu Israel que o mesmo Deus que o
suscitara do nada da escravidão, também do nada fizera
surgir o cosmos. Sua soberania é universal. Gên 1 afirma
que Deus tudo criou por sua palavra: dá nome aos seres, e
a seu chamado eles surgem do nada; a palavra de Deus
dá-lhes existência e subsistência. O salmo 33 é ainda mais
expressivo: “Uma palavra do Senhor criou os céus, e um
alento de sua boca a todos ornou. . . porque ele diz, e é
criado, ele ordena e tudo existe” (SI 33,6.9). Uma vez
que a criação é o que foi dito por Deus, ela é também re­
velação. Os seres são um eco da palavra daquele que os
nomeou, manifestam sua presença, sua majestade, sua sabe­
doria (SI 19,2-5; Jó 25,7-14; Prov 8,22-31; Eclo 42,15-43,
ment, I, 201-202; L. Duerr, Die Wertung des gottlichen Wortes im A.
T. und antiken Orient (Leipzig, 1938), pp. 149ss; G. van der Leeuw,
La religion dans son essence et ses manifestations (Paris, 1948), pp.
395-397.
28 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

33; Sab 13,1-9). Deus aparece como que velado numa


nuvem (Êx 13,21), abrasador como fogo ardente (Êx 3,2;
Gên 15,17), atroante na tempestade (Êx 19,16; SI 29,2ss),
suave como a brisa leve ( IRs 19,128s)30. E ainda mais:
a fonte sacerdotal, que repensa a criação em termos litúr-
gicos, vê o universo como a expressão da vontade de Deus
que, pelos astros e estações, regula os tempos litúrgicos, os
sábados e as festas (Gên 2,2-3). Também por sua pala­
vra governa Deus os fenômenos da natureza: a neve, a
geada, os ventos (SI 107,25;147,15-18;148,8; Jó 37,5-13),
as águas do abismo (Is 44,27;50,2). Às suas ordens as­
tros e elementos combatem por Israel (SI 46,7; 106,9-12;
107,25). Afora a revelação primitiva narrada nos primei­
ros capítulos do Gênesis, a revelação histórica (para dis-
tingui-la da cósmica) começa com Abraão, Moisés e os
profetas. Torna-se então a palavra plénamente inteligível.
Dirige-se Deus ao homem, interpela-o, torna-o participante
de seu desígnio, fala-lhe. Torna-se a revelação mistério de
um encontro pessoal entre o Deus vivo e o homem. A
Lei e a palavra profética são as formas privilegiadas dessa
revelação31.
A palavra, quando se impõe às coisas, é criadora;
quando se impõe aos homens, torna-se lei. As “dez pala­
vras” do Sinai (Êx 34,28; Dt 4,13;10,4), pronunciadas
por Javé sobre a montanha, por entre fogo, constituem uma
revelação da vontade do Deus da Aliança; Javé afirma-se
então como o Senhor. O termo palavra aplicada aos costu­
mes do Código da Aliança (Êx 20,22-23,19), significa que
tudo na vida cotidiana dos hebreus está submetido à von­
tade de Javé e se passa na sua presença O Deuteronômio
depois aplica o termo palavra a todas as prescrições da
Aliança, de tal modo que palavra serve para designar toda
a Lei mosaica (Dt 28,69). Por fim, o conjunto dos livros
sagrados, principalmente a Lei, serão considerados como
30 Israel, porém, não confunde Deus e a tempestade, Deus e a nuvem
etc. A palavra de Deus nem sempre é inteligível, mas é sempre manifes­
tação do Deus pessoal. A nuvem, a tempestade, o fogo, a brisa leve,
manifestam a presença do Senhor e suas propriedades.
31 E. Jacob, Théologie de l'Ancien Testament, p. 104.
32 H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testa­
ment, p. 212.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 29

palavra de Deus 33. Nesse estágio, a Lei absorve tudo: lei,


sabedoria, profecia. Expressão da vontade divina, é o ca­
minho de vida e de salvação (Dt 30,14;32,47;8,3 ). Con­
forme for aceita ou recusada será perdão ou julgamento,
vida ou morte.
A revelação profética é a outra forma da revelação
histórica. A expressão “palavra de Javé”, em 225 casos
num total de 241, serve para designar a palavra recebida
ou proferida pelo profeta. Devido à sua importância, essa
forma de revelação exige um tratamento especial.

IV. A REVELAÇÃO PROFÉTICA

A revelação do Sinai constitui sempre o bloco cen­


tral da revelação; mas, se perdurou no Antigo Testamento,
principalmente através da época dos reis e do exílio, se foi
aprofundada e desenvolvida, foi mérito principalmente dos
profetas. Quando retomam as leis e exigências da Aliança,
fazem-no de maneira tão vigorosa que nos dão a impressão
de criar coisas inteiramente .novas, como se fossem arautos
de uma religião que transcende e quase se opõe à da Lei.
É que eles têm uma fonte secreta. De fato, a autoridade
e originalidade do profeta vêm de sua experiência privile­
giada: ele conhece Javé, pois Javé lhe falou e confiou sua
palavra. Foi admitido a uma intimidade toda especial junto
de Deus: chamado a partilhar do seu conhecimento, seus
desígnios, suas vontades, para interpretá-los junto aos ho­
mens Semelhante aos anjos que participam do conselho
divino (Jó 1,6;2,1; Zac 1,1 Iss), o profeta “assiste ao con­
selho de Javé” (Jer 23,18.22; lRs 22,19-23) que lhe re­
velou seus desígnios (Am 3,7). Conhece os segredos do
altíssimo (Núm 24,16-17), pois ouviu as palavras de Javé
(iSam 15,16). Possui a palavra de Javé que lhe falou.
Essa é a experiência fundamental do profeta. Nele
33 A. Robert, "Le sens du mot Loi dans le psaume 119", Revue
Biblique (1937), pp. 182-206.
34 S. Mowinckel, “La connaissance de Dieu chez les prophètes de
L’Ancien Testament”, Revue d’hist. et de phil. rel., 22 (1942), 75-76;
H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testament, pp.
166-170; W. Eichrodt, Theology of the Old Testament, I, 344.
30 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

está a palavra de Javé (Jer 5,13). Foi colocada em sua


boca (Jer 1,9;5,14), ele a engoliu como um alimento (Ez 3,
1-3). Diversas vezes repete Jeremias que na posse da pa­
lavra reside a diferença decisiva entre o verdadeiro e o
falso profeta (Jer 23,16-31). “Assim fala Javé” é habi­
tualmente a introdução da mensagem profética, ou: “ouvi a
voz do Senhor” (Is 6,8), ou “assim me falou Ja­
vé” (Is 8,11; Jer 11,21;15,1), ou “meus ouvidos rece­
beram esta revelação” (Is 22,14), ou: “veio a mim a
palavra de Javé”35. Que essa palavra seja no profeta um
pensamento como que repentino ou uma idéia lentamente
formada, ela sempre lhe “é dada”, “veio a ele”. Vinda
que é um acontecimento sobrenatural. A experiência da
palavra produz no profeta a firme convicção de que está
ouvindo uma palavra divina e não humana. Tem consciên­
cia de não ter criado essa palavra que nele está, mas dele
não vem (Jer 1,4-10), e que tantas vezes, aliás, vai contra
seus instintos e sentimentos naturais36. Diz Mowinckel: “O

35 É evidente que nessas expressões é preciso levar em conta as fór­


mulas redacionais; porém, já a sua freqüência é significativa. Os profetas
afirmam que Deus lhes falou e que sua palavra chegou até eles. Deve­
mos notar também que o termo palavra de Deus não se verifica sempre
do mesmo modo, nem com a mesma intensidade. Na vida dos profetas há
momentos privilegiados, quando a palavra de Deus apodera-se deles de
forma mais intensa. O momento mais importante é o de sua vocação. Por
várias razões não podemos indentificar sempre a palavra de Deus com
revelações diretas e formais. Essas razões são as seguintes: a) Os orá­
culos recebidos pelos profetas podem ter sido muito curtos, assim como
também uma visão pode exigir uma longa explicação, b) Normalmente
o profeta deve, ainda sob o impulso recebido, comentar a palavra de
Deus, c) Às vezes se trata de nova tomada de consciência de verdades
já conhecidas, em vista de situação nova, d) Acontece que às vezes
os profetas reelaboram verdades já comunicadas a outros profetas; um
profeta pode depender espiritualmente de outro, como Jeremias de Oséias.
Alguns tiveram discípulos que retomaram e explicitaram os ' oráculos
do mestre. ■ e) A palavra recebida atualiza-se muitas vezes por ocasião
de fatos concretos, em função de acontecimentos da história. A palavra
do profeta ilumina a história, seja voltando ao passado de Israel, prin­
cipalmente sobre a eleição e a Aliança, seja estabelecendo uma relação
entre a história de Israel e a de outros povos, seja manifestando o es­
copo visado por Deus. Quanto a isso, crí.: C. Larcher, “La parole de
Dieu en tant que révélation dans l’Ancien Testament”, em La Parole de
Dieu en ]ésus-Christ, pp. 56-58.
36 S. Mowinckel, “La connaissance de Dieu chez les prophètes de
l’Ancien Testament”, Rev. d'hist. et de phil. rel., 22 (1942), 81-83. O
critério subjetivo que garante ao profeta ter ele sido verdadeiramente
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 31
conhecimento especial de Deus, próprio aos profetas, consiste
em terem recebido a palavra de Javé, conhecendo-lhe a von­
tade e os desígnios, e, portanto, a faceta de seu ser vol­
tada para o mundo”37.
O profeta recebeu a palavra não para guardá-la, mas
para publicar e nunciar. É a boca de Javé (Jer 15,19;
Êx 7,1-2), como Aarão era o profeta de Moisés cujas pala­
vras proclamava (Êx 4,16). Jeremias é constituído pro­
feta porque Deus o enviou e lhe pôs na boca suas palavras.
O profeta é o arauto de Javé, escolhido, chamado para
proclamar as palavras que dele recebeu e ouviu. É o ho­
mem da palavra (Jer 18,18) M. Está entre os homens como
intérprete, autorizado por Deus, de tudo que acontece no
mundo (tempestades, cataclismos, penúrias, prosperidades),
na humanidade (pecados, mortes, obstinações) e na histó­
ria (derrotas, vitórias, sucessão de impérios)39. É preciso
sublinhar o caráter objetivo e dinâmico da palavra. Javé
dirige a palavra ao profeta: chega-lhe esta como realidade
ativa, carregada da força que o próprio Deus lhe comunica.
O primeiro efeito dessa palavra manifesta-se no próprio
profeta que a recebe: é tomado por uma força externa que
o acomete e domina. Às vezes fonte de alegria (Jer 15,16),
outras de opróbio (Jer 20,7-9), a palavra age como fogo

objeto de uma comunicação divina é a própria experiência da palavra.


Essa experiência impõe-se-lhe com força tal que ele, num julgamento
intuitivo e imediato, reconhece a palavra e ao mesmo tempo a Deus
como seu autor. Alguém fala nele, ao passo que ninguém fala nos falsos
profetas (Jer 5,13;14,14;23;29,8-9; Ez 13,1-16). O critério é dado junto
com a palavra. Sem raciocínio explícito, o profeta percebe no efeito em
si produzido a causa divina; na palavra reconhece o seu autor. A origem
divina da palavra não é deduzida, mas experimentada vivendalmente,
de modo imediato, simultâneo. Cfr. H. W. Robinson, Inspiration and
Revelation in the Old Testament, pp. 194 e 274; J. Skinner, Prophecy
and Religion (Cambridge, 1949), p. 196; I. Seierstad, Die Offenba-
rungserlebnisse der Propheten Amos, Jesaja und Jeremia (Oslo, 1946),
pp. 236-237.
37 “La connaissance spéciale de Dieu, propre aux prophètes consist
en ceci qu’ils ont reçu la parole de Yahvé, qu’ils connaissent sa volonté,
ses desseins, donc aussi le côté de son être tourné vers le monde”. S.
Mowinckel, “La connaissance de Dieu chez les prophètes de l’Ancien
Testament”, Rev. d’hist et de phil. rel., 22 (1942), 85.
38 Th C. Vriezen, An Outline of Old Testament Theology, p. 241.
39 H. W. Robinson, Inspiration and Revelation-in ,the Old Testa­
ment, pp. 161-164.
32 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

devorador (Jer 20,8-9), como uma força irreprimível (Jer


6,11). Impossível escapar-lhe. Javé falou, o profeta deve
testemunhar. Nele a palavra é como uma luz e uma energia.
Foi essa a experiência de Amós (Am 3,8), de Jeremias
(Jer 20,7-9), de Isaías (Is 8,11), de Ezequiel (Ez 3,14),
de Elias (IRs 18,46), de Eliseu (2Rs 3,15 ) *. O profeta
está ligado a Deus por sua palavra.
A palavra de Deus, além da ação sobre o profeta, tem
uma eficácia própria, independendo do profeta: um valor
sacramental. Quando Javé lança sua palavra nada lhe pode
barrar o movimento: segue seu caminho e realiza sua obra41.
Destruição, morte, fome, salvação, fuga de exércitos: tudo
acontece segundo a palavra que é verdade ( IRs 15,29; 16,
12; 2Rs l,17;7,16;9,26;10,17). A palavra do profeta, que
é palavra de Deus em palavras humanas, participa dessa
eficácia. Recebe Jeremias poder “sobre as nações e sobre
os reinos, para extirpar e abater, para destruir e demolir,
para construir e plantar” (Jer 1,9-10; lSam 16,4; 2Rs 2,
24). A palavra de Deus é como o martelo que despedaça
as pedras (Jer 5,14;23,29), ou como a espada que mata
(Os 6,5). Não é jamais estéril (Is 45,23;31,2). “Permanece
perene” como o próprio Javé (Is 40,6-8) 42. Não que
seja uma força indomável. Deus continua sendo o Se­
nhor e dirige-lhe os efeitos conforme seus planos; e esse
plano revelado pouco a pouco é a salvação e a vida do
homem. Por isso, principalmente no Antigo Testamento,
Deus tem paciência, atende, deixa-se dobrar, perdoa e até
mesmo se arrepende.
Campo de ação da palavra profética é a história, da
qual é criadora e intérprete. A revelação de Deus, com
efeito, chegou ao povo hebreu pela experiência da ação di-
40 P. van Imschoot, Théologie de l’Ancien Testament, I, 171-172;
S. Mowinckel, “La connaissance de Dieu chez les prophètes de l’Ancien
Testament”, Rev. d’hist. et de ph. rel., 22 (1942), 77; E. Jacob, Théolo­
gie de l’Ancien Testament, pp. 105-106.
41 H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testa­
ment, p. 170.
42 J. L. McKenzie, “The Word of God in the Old Testament”,
Theological Studies, 21 (1960), 196-197; E. Jacob, Théologie de l’Ancien
Testament, p. 106; P. van Imschoot, Théologie de l’Ancien Testament,
I, 203; Th C. Vriezen, An Outline of Old Testament Theology, pp.
238-239.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 33

vina em seu favor. Também a religião bíblica é essencial­


mente crença em fatos divinos, em intervenções de Deus
na trama da história humana43. Tais fatos são principal­
mente os que marcaram o nascimento de Israel como nação:
libertação do cativeiro do Egito, marcha pelo deserto, con­
quista da terra prometida. Por quarenta anos Javé caminhou
com seu povo, conduziu-o como pastor. Só ele o protegeu,
defendeu, salvou. Nesses acontecimentos apóia-se a fé de
Israel, e seu credo consiste em recitá-los (Dt 26,5-10). Nos .
tempos seguintes, os profetas constantemente se referem a
eles, seja para chamar Israel de volta à felicidade, à Aliança,
seja durante o exílio, para anunciar um novo Êxodo, nova
Aliança (Êx 36-37; Is 54-55).44.
A ação divina, que faz da história uma obra de sal­
vação ou de condenação, é duplamente o efeito da palavra:
é a palavra de Javé que suscita e dirige os acontecimentos,
como também é a palavra de Javé que lhes interpreta o
sentido. Por sua palavra, antecipa-se Deus ao acontecimen­
to, anuncia-o, pois Aquele que é o primeiro e o último sabe
o que afinal acontecerá (Is 41,4;43,10;44,6;48,12). “Não,
o Senhor nada faz sem revelar o seu segredo aos seus ser­
vos” (Am 3,7). Todas as etapas decisivas da história de
Israel foram precedidas pela palavra: criação (Gên 1,3),
dilúvio (Gên 6,7), vocação de Abraão (Gên 12,1), voca­
ção de Moisés e saída do Egito (Êx 3,14,30-31), marcha
desde o Horeb até Canaã (Dt 1,6;6,2.18.31;3,1.27.28),
vocação de Samuel (lSam 3), realeza (ISam 8,7;9,17;
10,17-24), eleição de Davi (ISam 15,10; 16,12), aliança
com a dinastia de Davi na profecia de Natã (2Sam 7), di­
visão do reino de Israel (lRs ll,31s), queda da casa de
Acab (lRs 21,17-24), o exílio (Jer 25,1-13), ruína de Je­
rusalém (Ez 1-23), retorno do cativeiro (Is 40,2;43,l-5;
44,21-23;48,20-21 ). Para Israel, a história é um processo
que Javé dirige para um término que prefixou45.
A palavra profética não apenas anuncia e suscita a
história, mas também a interpreta. Está o profeta imerso

43 E. Jacob, Théologie de l’Ancien Testament,. pp. 153-154


44 Ibid., 154-155.
45 J. L. McKenzie, “The Word of God in the Old Testament”,
Theological Studies, 21 (1960), 198-199.

2 - Teologia da revelação
34 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

na história de seu tempo e é na atualidade dessa história


que Deus lhe manifesta sua vontade e seu desígnio de sal­
vação. O Deus do Antigo Testamento é um Deus de inter­
venções e o profeta é que as interpreta, percebe e procla­
ma o seu valor salutar. Percebe o profeta o sentido divino
dos acontecimentos e o dá a conhecer aos homens de seu
tempo. Interpreta a história do ponto de vista de Deus *.
Se a própria realização da salvação na história já é palavra
de Deus, seu conteúdo preciso torna-se inteligível apenas
mediante a palavra do profeta. Revelação-acontecimento e
revelação-palavra, são como que as duas faces da palavra
de Deus. A história da salvação é uma seqüência de interven­
ções divinas interpretadas pelo profeta. Para um israelita,
narrar a história é o mesmo que interpretá-la à luz do que
Deus manifestou a seus confidentes. Foi através dos acon­
tecimentos do Êxodo, interpretados por Moisés, que o povo
hebreu conheceu Javé como o Deus vivo e pessoal, único,
onipotente, fiel, que salva seu povo e com ele faz aliança
para que, povo escolhido, lhe seja fiel na obra comum de
salvação (Dt 6,20-24). Conseqüentemente, Deus, seus atri­
butos, seus desígnios, se revelam, não abstrata, mas con­
cretamente na história e pela história. A mensagem de re­
velação está incorporada na história. Há progresso no co­
nhecimento de Deus, mas através dos acontecimentos que
a palavra de Deus anuncia, realiza, interpreta47.

V. OBJETO DA REVELAÇÃO

Podemos dizer que o objeto ou o conteúdo da reve­


lação veterotestamentária é duplo: revelação do próprio Javé
e revelação de seu desígnio de salvação. O Deus do Antigo
Testamento revela-se inicialmente como um Deus vivo e pes-

46 H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testa­


ment, pp. 125-128, Id. Record and Revelation (Oxford, 1951), pp.
303-304; H. Butterfield, Christianity and History (London, 1954), p.
3; G. E. Wright, God who acts, p. 13.
47 W. Eichrodt, “Offenbarung und Geschichte im Alten Testa­
ment”, Theol. Zeitschrift, 4 (1948), 322-323; Th. C. Vriezen, An Ou­
tline of Old Testament Theology, pp. 31-34; H. M. Féret, Connaissance
biblique de Dieu (Paris, 1955), pp. 36-40.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 35

soai, como Aquele que é (eficazmente), em oposição aos


ídolos mudos e mortos. Como o Deus onipotente, senhor do
cosmos e senhor das nações, que exige sejam obedecidas suas
leis. Os profetas, aos poucos vão educando Israel para uma
compreensão sempre mais profunda dos atributos divinos:
Amós põe em evidência sua justiça; Oséias, seu amor terno
e ciumento; Isaias, sua grandeza e transcendência; Jere­
mias ensina uma religião mais interior; Ezequiel lembra
as exigências da santidade de Deus; o Dêutero-Isaías leva
para uma religião mais universalista. Ao mesmo passo
que em Israel se percebe mais claramente a transcendência
de Deus, mais também se percebe sua proximidade e sua inti­
midade. Porque o Altíssimo, o Deus três vezes santo e
misterioso, é também um Deus que sai de seu mistério,
que trava um diálogo com o homem: faz-se Emanuel e
Esposo. Evolução patente no tema da Aliança. Entre o
Deus transcendente e o Deus da Aliança, entre o Deus
oculto e o Deus da palavra, há como que uma tensão cons­
tante que constitui, digamos, a dinâmica da revelação vete-
rotestamentária. Ambos os polos exercem igual atração. Re­
sulta um delicado equilíbrio entre o Deus do mistério
e o Deus da revelação. Da solução desse contraste é que
resulta finalmente a harmonia do sentimento religioso do
fiel do Antigo Testamento.
O outro aspecto da revelação veterotestamentária é
a salvação. Com efeito, a Aliança prende-se a um desígnio
divino (a um mistério, como o dirá são Paulo) oculto até
a plenitude dos tempos, mas cujos primeiros traços pro­
gressivamente os foi revelando Deus no Antigo Testamento.
Uma promessa de salvação reluz desde o protoevangelho
(Gên 3,15). Por ocasião do êxodo, o Deus que Israel
conhece é um Deus que salva seu povo do cativeiro, com­
bate a seu lado, entrega-lhe a terra prometida. Nasce a
Aliança nesse clima de salvação. Posteriormente a idéia da
Aliança se prolonga na idéia do reino. Pela profecia de Natã
(2Sam 7,16), Javé conclui uma aliança eterna com Davi
e sua dinastia. A experiência do reino, porém, como a da
Aliança, acaba num fracasso. Pelo menos aparentemente.
Pois Deus persiste em seu desígnio com uma continuidade
misteriosa, manifestando no próprio fracasso uma nova di-
36 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

mensão da economia da salvação. Mesmo diante da infi­


delidade de Israel e de seus reis, Javé anuncia, pelos pro­
fetas, uma nova Aliança, um novo reino, um novo rei (Jer 11,
3.5;24,5-7; Ez 11,19-20; J1 3,1-5; Zac 8,1-17;13,9; Is 2·,3;
11 ). Nos períodos de crise, é de um rei que Israel espera a sal­
vação. Pensam alguns que o próprio Javé, sem nenhum rei
humano, estabelecerá seu reinado; idéia que encontramos
nos salmos do Reino (SI 97;98; Zac 14,16). Segundo ou­
tros, a salvação virá com o misterioso filho de homem que
vem sobre as nuvens do céu para receber investidura e
missão.
Em alguns ambientes sacerdotais de Jerusalém e em
Qumrân, espera-se um Messias de raça sacerdotal. Ou­
tros, finalmente, esperam a salvação pelo servo de Javé,
profeta e rei, que salvará pelo sofrimento. Israel vive dessa
esperança de uma salvação que virá.

VI. RESPOSTA DO HOMEM À REVELAÇÃO

Se Deus fala, o homem deve escutar. Não se recebe


a revelação bíblica numa contemplação da divindade, como
nos mistérios gregos e na gnose oriental, mas escutando
a palavra. Nesta terra ninguém pode ver a Deus (Êx 33,20).
Deus dá testemunho de si mesmo, pela palavra comunica-se ao
homem, mas foge à visão. Em sua realidade profunda é sem­
pre o Deus insondável, o Totalmente Outro: esquiva-se o seu
mistério. Samuel responde a Deus que o interpela: “Fala,
Senhor, que o teu servo escuta” (ISam 3,10). Escutar in­
dica a primeira atitude do homem ante a revelação: não de
modo material e passivo, mas em disponibilidade totalmente
ativa. A palavra ouvida deve ser assimilada pela fé e pela
submissão, numa entrega de todo o ser, como o fez Abraão
(Gên 15,6;24,7). Resposta à palavra deverá ser a docili­
dade do espírito e da conduta (Miq 6,8). Israel, pela re­
velação, conheceu a Deus, ou seja: foi admitido gratuita­
mente a uma comunhão de pensamento e vontade com Javé.
Êsse conhecimento exige como resposta de Israel um apego
total a Javé pelos laços da fé, da obediência e do amor.
Quem ouviu a palavra de Javé deve cumpri-la, vivendo se-
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 37
gundo as exigências da Aliança. Foi essa a pregação cons­
tante dos profetas (Miq 6,8; Os 6,6; Jer 5,l-9;9,2-5;22,
15ss ) *. Conforme às mudanças de situação, deve o homem
constantemente renovar essa fidelidade a Javé49.
Revelação e fé são correlativas. A fé do Antigo Testa­
mento, com efeito, corresponde exatamente ao tipo de reve­
lação que lhe foi feita. No Antigo Testamento a revelação
era essencialmente lei e promessa de salvação; a fé, princi­
palmente obediência e confiança. Falando a Abraão, ordena-
-Ihe Deus que abandone sua pátria, prometendo-lhe ao mesmo
tempo uma numerosa posteridade (Gên 12,1-3; 15,5-6). Deus
empenha sua fidelidade ao mesmo tempo que dá sua lei ao
pov© de Israel (Êx 19,3-8). Desde então, para um hebreu,
acreditar é obedecer e confiar; é reconhecer Javé como o
único Deus Salvador de Israel, o que lhe deu a lei e pro­
meteu a salvação; é aceitar a sua vontade e fiar-se em suas
promessas. A fé em Maria, a flor do Antigo Testamento,
é pura obediência e pura confiança: obediência da serva do
Senhor (Lc 1,38), confiança que exalta o Deus fiel a suas
promessas 50.
/

VII. TRAÇOS CARACTERÍSTICOS DA REVELAÇÃO

A revelação veterotestamentária tem traços específicos


que a distinguem de qualquer outro tipo de conhecimento:
1. A revelação é essencialmente interpessoal. Antes
que manifestação de alguma coisa é manifestação de Alguém
48 S. Mowinckel, “Connaissance de Dieu chez les prophètes de
l’Ancien Testament”, Rev. d’hist. et de ph. rel., 22 (1942), 88-89; W.
Eichrodt, Theology of the Old Testament, I, 389.
49 Th. C. Vriezen, An Outline of Old Testament Theology, p. 240.
50 P. Demann, “Foi juive et foi chrétienne”, Cahiers Sioniens, 6
(1952), 89-103. Quanto a isso, a fé do Novo Testamento apresenta mu­
dança de acentuação. Permanece o aspecto de obediência, mas o -de
confiança não se manifesta com a mesma intensidade. Em o Novo Testa­
mento domina o aspecto de conhecimento. A fé do Antigo Testamento
ansiava por uma salvação prometida, ainda obscura, objeto de esperança
e de confiança. Com a vinda de Cristo, essa salvação é fato consumado.
Desde então nossa fé tem um conteúdo explícito e atual: o Cristo é o
Filho de Deus, enviado pelo Pai, que sofreu, morreu por nós, ressusci­
tou, está à direita do Pai, donde enviou seu Espírito. Tudo isso é objeto,
não apenas de esperança e de confiança, mas objeto de conhecimento e
38 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

a alguém. É Javé ao mesmo tempo sujeito e objeto da re­


velação, Deus que revela e Deus revelado, Deus que se dá
a conhecer e se faz conhecer. Javé, o Deus vivo, estabelece com
o homem relações de pessoa a pessoa. Alia-se-lhe como um
Senhor com seu servo; depois, progressivamente, como um
Pai com seu filho, amigo com amigo, esposo com esposa.
A palavra de Deus introduz o homem numa κοινωνία, numa
comunhão com Deus, para a salvação.
2. A revelação bíblica é uma iniciativa divina. Não
é o homem que descobre a Deus: é Javé que, antes, se ma­
nifesta, quando quer, a quem ele quer. Javé é liberdade
absoluta. Foi ele quem primeiro escolheu, prometeu, fez
Aliança. Sua palavra que contradiz a maneira humana e
carnal de Israel julgar, faz brilhar ainda mais a liberdade
e continuidade de seu desígnio. Manifesta-se ainda a liber­
dade divina na variedade de meios escolhidos para a reve­
lação: a natureza, a existência humana, a história; na varie­
dade das pessoas escolhidas (sacerdotes, sábios, profetas,
reis, aristocratas ou camponeses e pastores); na diversidade
dos modos de comunicação (teofanias, sonhos, consultas,
visões, êxtases, arrebatamentos ) ; na diversidade dos modos
de expressão ou de gêneros literários (oráculos, exortações,
autobiografias, descrições, hinos, reflexões sapienciais ).
3. É a Palavra que dá unidade à economia da reve­
lação. Essa primazia da palavra não é um postulado da fé,
mas um fato perceptível pelo simples conhecimento his­
tórico. As filosofias gregas e as religiões do período helê-
nico procuram a visão da divindade. A religião do Antigo
Testamento, pelo contrário, é a religião da palavra ouvida.
Deus revela e se revela pela sua palavra. Essa prevalência
do ouvir sobre o ver é uma das características essenciais
da revelação bíblica. Após o pecado, é pela fé na palavra
que Deus traz a humanidade de volta à visão. Fala Deus
de re-conhecimento. Para o Novo Testamento, crer, é aceitar a pregação
dos apóstolos referente a esses acontecimentos; a fé é aceitação do qué-
rigma cristão como verdadeiro (At 2,44;4,4.32;8,13). Em conseqüência,
pois, da vinda de Cristo, a fé do Novo Testamento tem caráter mais
explícito e mais doutrinai que a fé do Antigo Testamento. Cfr. J. Alfaro,
“Fides in terminologia biblica”, Gregorianum, 42 (1961), 504-505. Cfr.
também P. Grelot, Sens chrétien de l’Ancien Testament, pp. 142-145.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO 39

ao profeta e envia-o para falar. O profeta comunica os


desígnios e as vontades de Deus e o homem é convidado à
obediência da fé. Mas, nem tôda visão é excluída, pois,
de algum modo e em graus diversos, a palavra já afasta os
véus que obscurecem o espírito e preludia a visão. Se não
chegam os homens até a intimidade do Mistério, pela pa­
lavra eles já podem, de algum modo, dele se aproximar.
Notemos ainda que, se a palavra exige do homem mais aten­
ção que a visão, ela indica um maior respeito da liberdade
humana pôr parte de Deus: dirige-se ele ao homem, inter-
pela-o, deixando-lhe a liberdade da aceitação ou da recusa.
A palavra, que entre os homens é o intercâmbio mais espi­
ritual, será também o meio por excelência para o intercâm­
bio espiritual entre Deus e o homem.
4. Pela revelação o homem é posto em confronto
com a palavra, uma palavra que exige fé e execução. O
pecado, desde logo, será recusar-se a escutar, não respon­
der aos apelos do Senhor, endurecer-se na resistência (Jer
7,13; Os 9,17). Conforme fôr aceita ou recusada, a reve­
lação será para o homem graça ou condenação, morte ou
vida (Is 1,20). A sorte do homem dependerá da opção
decisiva a favor ou contra a palavra. O objetivo porém da
revelação é a vida e a salvação do homem, sua comunhão
com Deus (Is. 55,2).
5. A revelação é toda orientada para a esperança
de uma salvação que há de vir. Toma impulso a partir da
promessa feita a Abraão e tende para sua realização. Para o
profeta o presente é apenas a realização parcial do futuro
anunciado, esperado, preparado e prometido, mas ainda
oculto. O presente não tem sentido pleno a não ser pela
promessa, feita no passado, daquilo que será o futuro. Cada
revelação profética marca uma realização da palavra, mas
deixa, ao mesmo tempo, lugar para a esperança de uma
realização ainda mais decisiva. O tempo bíblico não é, pois,
tempo cíclico, mas linear: algo de novo acontece na história
sob a direção de Deus. A história tende para a plenitude
dos tempos, que será a realização dos desígnios de Deus
no Cristo e pelo Cristo.
40 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

VIII. CONCLUSÃO

A pesquisa que até agora fizemos possibilita-nos deli­


mitar mais precisamente a noção de revelação veterotesta-
mentária. Mostra-se-nos a revelação como a intervenção
gratuita e livre do Deus santo e oculto que, progressiva­
mente, se manifesta e torna conhecido seu desígnio salvifico
de estabelecer uma aliança com Israel, e depois com todos
os povos, para, afinal, realizar na pessoa de seu Ungido a
promessa outrora feita a Abraão, abençoando em sua pos­
teridade todos os povos da terra. Intervenção que se con­
cretiza no âmbito da história, relacionada com os aconteci­
mentos da história interpretados pela palavra dirigida aos
profetas, numa comunicação que se revestiu de múltiplas
formas. Em termos da mística profética, a revelação é a
manifestação progressiva, em palavras, dos desígnios de
graça de Javé que desposa seu povo, a humanidade toda,
unindo-se-lhe para sempre na pessoa de seu Ungido. Agir
esse conceituado como palavra de Deus que convida para a
fé e a obediência; palavra essencialmente dinâmica, realiza­
ção da salvação ao mesmo tempo que anúncio51.

51 Por fidelidade ao esquema de nosso estudo, agrupamos os elemen­


tos deste capítulo segundo a via expositionis. Teria sido possível também
organizá-los segundo a via inventionis. O processo seria o seguinte: 1)
Introdução·, primeiro lance de olhos sobre o Antigo Testamento como
revelação; ausência de vocabulário técnico, mas presença de um elemento
comum, sempre encontrado: o dabar divino; qual o alcance exato desse
dabar? 2) Parte descritiva·, etapas da revelação, formas e meios de re­
velação; gêneros literários 3) Exame dos resultados: onipresença do diá­
logo, formando o contexto dos acontecimentos da salvação; relações entre
a palavra e a Aliança e o profetismo; poder da palavra na boca de Javé
(palavra de criação, de salvação, de julgamento) e na boca de seus men­
sageiros; conteúdo da palavra; a palavra é mais que a nossa “palavra”.
4) Reexame dos elementos segundo a via expositionis: revelação cósmica
e história; revelação profética; resposta do homem. 5) Síntese.
2.

A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO

A noção de revelação apresenta, em o Novo Testamen­


to, maior complexidade e diversidade de tons que no An­
tigo Testamento. Entre ambas as Alianças deu-se um aconte­
cimento de capital importância: “Muitas vezes e de muitos
modos falou Deus outrora a nossos pais, nos profetas; nes­
tes últimos tempos falou a nós no Filho” (Hebr 1,1). A
Palavra íntima de Deus, na qual totalmente se exprime e
conhece tudo, fez-se homem em Jesus Cristo, tornou-se Evan­
gelho, palavra de salvação para chamar o homem à salva­
ção. Em Jesus Cristo, Verbo encarnado, o Filho está pre­
sente entre nós. Em termos humanos que podemos com­
preender e assimilar, ele fala, prega ensina, atesta o que
viu e ouviu no seio do Pai. O Cristo é o cume e a pleni­
tude da revelação. Mistério inesgotável, cujo esplendor
desvendam, revelam os escritores sagrados, cada qual se de­
morando num aspecto. A tradição sinótica descreve prin­
cipalmente a economia da manifestação histórica do Cristo,
ligando sua função de revelador a seu título de Messias,
doutor e pregador. Os Atos apresentam os apóstolos como
testemunhas e arautos do Cristo. São Paulo desenvolve a
idéia da revelação a partir do tema do mistério e do Evan­
gelho. A Epístola aos hebreus compara a economia de am­
bas as Alianças, exaltando as excelências da revelação em
Cristo. Para São João, a função reveladora de Cristo radi­
ca-se na sua qualidade de Logos e Filho. As diversas ten­
tativas de penetração no mistério são como os diversos
ângulos de visão de uma só catedral, que permitem captar
toda a realidade na sua unidade e complexidade.
Utiliza o Novo Testamento grande número de vocá-
42 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

bulos para traduzir essa economia da revelação \ As pala­


vras mais comuns são, entre os verbos: αποκαλύπτειν, φανερούς
γνωρίζειν φωτίζειν κηρύσσειν εύαγγελίζεσθαι καταγγέλλειν Si.
δάσκειν, μαρτυρείς λέγειν, λαλεϊν; entre OS substantivos: ά^οκά/
λυψις* έπιφάνεια κήρυγμα εύαγγέλιον μάρτυς* μαρτυρία μαρτύ.
ριον διδάσκαλος* διδακή έπιστάτης* γνώσις* μυστήριον λόγος*
άλήθεια. para delimitarmos, pois, a noção de revelação será
insuficiente o estudo de apenas um vocábulo, por exemplo:
άποκαλύπτειν. Se os termos nos devem manter alerta, não
nos podemos guiar somente por eles. Mais que às palavras
devemos, estar atentos ao tema da revelação, à sua realida­
de e à realidade conexa, ou seja, à fé. É o único caminho
que nos parece possível.

I. A TRADIÇÃO SINÓTICA

1. Os vocábulos

Na tradição sinótica os termos que principalmente des­


crevem a ação reveladora de Cristo são: pregar, no sentido
de proclamar (χηρύσσειν), pregar o Evangelho (χηρύσσειν τό
εύαγγέλιον )} evangelizar ( εύαγγελίζεσθαι ), ensinar ( διδάσκειν·)}
revelar (άποκαλύπτειν)2. Ο Cristo é ο Rabbi, ο Doutor, que
interpreta as Escrituras com a autoridade de um mestre
de Israel. Títulos que atestam o respeito dos discípulos e
do povo pela palavra sapientíssima de Jesus. Para o povo,
Jesus é também um profeta, repleto do Espírito, em cuja
boca estão as palavras de Deus. Como os profetas ele prega
e apresenta sinais. Cristo não recusa esses títulos mas nem
tampouco os reivindica. Pois é mais que um profeta e
rabbi: é o Filho que partilha dos segredos do Pai. À luz dos
1 H. Schulte, Der Begriffe der Offenbarung im Neuen Testament
(München, 1949).
2 Quanto aos principais termos que os Sinóticos usam para designar
a revelação, veja principalmente: G. Friedrich, “κηρύσσω, κήρυγμα”,
Theol. Wòrterbuck, 3: 701-717; Id. “εύαγγελίζομαι, εύγγέλιον”, ibid.,
2: 705-735; K. H. Rengstorf, “διδάσκω, διδάσκαλος*”, ibid., 2: 138-168;
G. Kittel, “άκούω”, ibid., Í, 216-223; A. Oepke, “άποκαλυπτω, άπο-
καλύψις*”, ibid., 3, 565-597; D. Mollat, art. “Évangile”, Diet, de spirit.,
4, 1747-1751; H. Niebecker, Wesen und Wirklichkeit der Ubernatur-
lichen Offenbarung (Freiburg, 1940).
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 43

acontecimentos paixão-ressurreição que desvendaram sua ver- *


dadeira identidade, os títulos de Rabbi, Doutor, Profeta,
foram abandonados por inadequados e substituídos pelos
de Cristo, Senhor e Filho de Deus. Que os sinóticos os
tenham conservados apesar de seu arcaísmo, é um teste­
munho de sua fidelidade histórica3.
Habitualmente os sinóticos apresentam a Cristo pre­
gando e ensinando: os termos κηρύσσειν e διδάσκειν são os
mais usados. Mateus e Lucas agrupam-nos, às vezes, na
mesma frase: “E Jesus percorria toda a Galiléia, ensi­
nando nas suas sinagogas, pregando a Boa-nova do reino"
(Mt 4,23;11,1; Lc 20,1). Aparecem novamente juntos em
diversos textos dos Atos (At 4,2;5,42;15,35;28,31 ). Mar­
cos diz indiferentemente que o Cristo ensina (Mc 1,22)
ou prega (Mc 1,39), percorre as aldeias ensinando (Mc
6,6) ou pregando (Mc 1,38). Segundo Lucas, Cristo en­
sina ou anuncia a Boa-nova no templo (Lc 19,47 ;20,l), ele
prega ou ensina nas cidades e aldeias, pelos caminhos
e por toda a região (Lc 13,22;23,5). Pode-se, contu­
do, perceber matizes diversos em ambos os termos.
Κηρύσσειν significa proclamar (de um modo ainda glo­
bal ) a novidade inaudita do Reino de Deus realizado
em Jesus Cristo, enquanto o termo διδάσκειν significa
instruir detalhadamente nos mistérios da fé e precei­
tos morais. Ao passo que o quérigma corresponde prin­
cipalmente ao aspecto dinâmico da palavra, a διδαχή evj.
dencia antes seu aspecto noético. O ensinamento acom­
panha normalmente o choque do primeiro anúncio da sal­
vação 4.

2. O Cristo como pregador

Pela sua pregação Cristo continua a tradição dos pro­


fetas, que eram os arautos de Deus, os mensageiros e in­
térpretes de sua palavra (Êx 4,15-16;7,1; Jer 1,9). Deus
os envia para gritar aos ouvidos (Jer 2,2; Is 58,1), publi­
car, anunciar (Jer 4,5;50,2; Zac 1,14.17), proclamar o

3 V. Taylor, The Names of Jesus (London, 1954), pp. 12-17.


4 P.-A. Liégé, art. “Évangélisation”, Catholicisme, 4, 756.
44 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

seu Dia, a sua vontade, suas intenções, promessas, ameaças.


Κηρύσσειν é freqüente em Joel e Jonas como apelo à peni­
tência. Jonas, arauto típico do Antigo Testamento, prega
(3,4 ) e como conseqüência Nínive decreta um jejum (3,5)
e proclama a penitência (3,7). João Batista, “o profeta
do Altíssimo” (Lc 1,76-77), é a voz anunciada por Isaías
(Is 40,3.6), que vai adiante de Javé anunciando sua che­
gada. Nele resplandece a palavra de Deus. Sob a
ação potente do Espírito “proclama um batismo de peni­
tência para remissão dos pecados” (Lc 3,3). É o arauto
do Messias que vem (Mc 1,6-8; Mt 3,11-12; Lc 3,16-17).
Qs sinóticos caracterizam a missão do Batista com o verbo
κηρύσσειν (Mt 3,1; Mc 1,4.7; Lc 3,3)5.
Cristo inicia seu ministério à moda dos profetas e
do Batista, pregando a Boa-nova do Reino, e a penitência
que introduz no Reino: “Começou Jesus a pregar e a di­
zer: convertei-vos, porque está próximo o reino dos céus”
(Mt 4,17; Mc 1,14-15). Na sinagoga de Nazaré aplica a
si mesmo as palavras do Dêutero-Isaías que mostram o
Messias como profeta consagrado à evangelização dos po­
bres (Lc 4,18-19; Is 61,1-2). Em Mateus, Cristo dá como
sinal de sua autenticidade messiânica o fato de que “aos
pobres é anunciada a Boa-nova” (Mt 11,5). Essencialmente
sua pregação é o Evangelho do Reino ou do Reinado: Cris­
to anuncia a inauguração desse Reino cuja iminência fora
anunciada pelo Batista (Mc 1,15).
Tendo reconhecido na pregação e nos milagres de
Jesus o estilo dos grandes profetas, o povo o considera um
deles. Exclamam as turbas após a ressurreição do filho
da viúva de Nairn: “Surgiu entre nós um grande profeta”
(Lc 7,16). Uns, vêem nele João Batista; outros Elias;
outros, Jeremias ou algum dos profetas (Mt 16,14). Os
fariseus e sacerdotes têm medo de prendê-lo, pois as mul­
tidões o consideram como um profeta (Mt 21,46). Os
discípulos de Emaús falam de Jesus Nazareno como de um
“profeta poderoso em obras e palavras” (Lc 24,19). Mais
ainda, baseando-se em Dt 18,18, as turbas designam Jesus
como o profeta esperado para o fim dos tempos (Mc 6,

5 A. Rétif, Foi au Christ et Mission (Paris, 1953), pp. 57-60.


A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 45
14s;8,28; Mt 21,11). Conforme São João os que assisti­
ram os milagres dos pães proclamam: “Este é, na verdade, ο
profeta que deve vir ao mundo” (Jo 6,14).
Contudo, o Cristo - quando fala de si mesmo não rei­
vindica o título de profeta. Tem consciência, sem dúvida,
de sua afinidade com os profetas: como eles penetra os
segredos de Deus (Mc 4,11), prevê, para si a sorte dos
profetas (Mt 13,57; Lc 13,33). Como revelador, porém,
pela excelência de sua pessoa, sobrepassa os profetas. É
maior que Jonas (Mt 12,40), Moisés e Elias (Mc 9,2-10;
Mt 17,1-13; Lc 9,28-36), Davi (Mc 12,35-37; Mt 22,41-
■46; Lc 20,41-44) e João Batista (Lc 7,18-23; Mt 11,2-6).
Na parábola dos vinhateiros coloca-se acima dos profetas
como o filho acima dos servos (Mc 12,1-12). Leva à per-
icição a lei e os profetas (Mt 5,17). Ele não diz: “Assim
fala Javé”, mas: “Eu, porém, digo-vos” (Mt 5,22.28.32) 6.
O Cristo não somente prega, chama também outros a
participar de sua missão: “E constituiu doze deles, para
andarem com ele, e para os mandar pregar” (Mc 3,14).
Envia-os “a pregar o reino de Deus e curar os enfermos”
(Lc 9,2; Mt 10,7-8). Dá-lhes esse poder, já durante sua
vida e principalmente após sua ressurreição: “Ide por todo
o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura” (Mc 16,
15.20). O Evangelho não pode ficar oculto: “deve ser
pregado a todas as gentes” (Mc 13,10), “em todo o mun­
do” (Mt 24,14). Os que acolherem a mensagem dos após­
tolos serão salvos; os outros, condenados (Mc 16,16; Mt
10,14; Lc 10,12-17). Entre a pregação de Cristo e a dos
apóstolos há continuidade.

3. O Cristo como Doutor


O Cristo ensina·, chamam-no Rabbi (Mc 9,5; 11,21;
14,45; Mt 23,7;26,25), διδάσκαλος- ou έπιστάτης (termo pró­
prio a Lucas que o emprega seis vezes). O povo ou os
doutores da lei dão-lhe, umas quarenta vezes, o título de
διδάσκαλος-; mais cinqüenta vezes aparece o' termo διδάσκειν

6 O. Cullmann, Christologie du Nouveau lestament (Paris, 1958),


pp. 18-38, 42-47; F. Gils, Jésus Prophète d’après les Synoptiques (Louvain.
1957), pp. 9-47.
46 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

para descrever seu ministério. Já aos doze anos Jesus en­


sina no templo entre os doutores (Lc 2,46-47). Durante
sua vida pública ensina na sinagoga (Mc 1,21; Mt 4,23;
9,35), ou sobre a montanha (Mt 5,1-2). Às vésperas de
sua paixão, no-lo mostram os evangelistas “ensinando no
templo” (Mc 12,35; Lc 19,47;20,l; Mt 21,23). Contra
os que o vêm prender, Cristo protesta: “Todos os dias
me sentava a ensinar no templo, e não me prendestes” (Mt
26,55; Mc 14,49). Ele tem discípulos, como os doutores
de Israel (Mc 4,34;6,37-41; 11,1-6); forma-os e instrui como
os rabinos de seu tempo. Muitas vezes o ensino é ocasio­
nal: responde às perguntas, corrige as atitudes (ciúme, ins­
tinto de vingança, vaidade, violência). Inculca-lhes os prin­
cípios da nova moral: pobreza, humildade, caridade. Mas
há também um ensino sistemático. Manifesta-lhes o sen­
tido das parábolas, “porque a vós foi dado serdes postos a
par dos mistérios do reino dos céus” (Mt 13,10-12; Lc
8,9-10). Dá-lhes esclarecimentos sobre sua paixão e res­
surreição (Mc 8,31;9,30-31 ). Entretem-se com eles de mo­
do particular, como após a Ceia, quando lhes dá o essen­
cial de sua doutrina. Instrui também o povo: senta-se, ex­
plica, interroga (Mt 13,1-53; Mc 10,1 ;4,1-10). Com os
escribas e fariseus, discute e polemiza (Mc 8,ll;10,2;3,
22-30).
O Cristo ensina, mas seu ensinamento tem caracterís­
ticas absolutamente únicas. Desde o início seus ouvintes
são arrebatados: “E maravilhavam-se por causa de sua dou­
trina, pois os ensinava como quem tem autoridade” (Mc
1,22; 11,28; Lc 4,31-32; Mt 7,28-29). Impõe-se pela sabe­
doria de sua doutrina e pela autoridade de sua pessoa.
“Subleva o povo, acusavam-no, ensinando por toda a Judéia,
a começar da Galiléia até aqui” (Lc 23,5). O Cristo não é
um simples rabi: é o Mestre (Mt 23,10). Os doutores de
Israel limitam-se a comentar a lei; o Cristo interpreta, cor­
rige, aprofunda. Às prescrições de uma moral imperfeita,
substitui exigências que penetram até o âmago dos cora­
ções. Fala com a autoridade de Javé: “Eu, porém, digo-
-vos” (Mt 5,22.28.32). Quem constrói sobre suas pala­
vras, constrói sobre a rocha; senão, caminha para sua pró­
pria ruína (Mt 7,24-28). “Passarão o céu e a terra, mas
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 47
as minhas palavras não hão de passar” (Mt 24,35). Nun­
ca se desdisse de uma só de suas palavras. Envia, final­
mente, seus apóstolos a ensinar tudo quanto prescreveu, e
está com eles até o fim dos séculos (Mt 28,20).

4. O Cristo como Filho do Pai

Se o Cristo é em si mesmo a mais alta manifestação


profética possível, se ensina com tão grande autoridade,
deve-se ao fato de ser ele o filho único, o herdeiro (Mc
12,6), a quem o Pai tudo confiou (Mt 11,27), e que o
Pai envia depois de seus servidores, os profetas (Mc 12,6).
Como um filho amado (Mc 1,11; 12,6) ele chama a Deus
“meu pai” (Mt 7,21 ; 10,32-33 ; 11,27; 12,50 ). “ . . .Ninguém
conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho
o quiser revelar” (Mt 11,25-27). Ninguém conhece (Lc:
γινώσχειν; Mt: έπιγινώσκειν) com aquele conhecimento que é
também experiência, a vida íntima e profunda do Filho,
senão o Pai; e ninguém conhece a vida íntima, e profun­
da do Pai, senão o Filho. Ambos conhecem-se pelo sim­
ples fato de estarem face e face, como duas grandezas iguais
e da mesma ordem. E ninguém pode participar desse mis­
tério de conhecimento mútuo sem uma revelação gratuita.
O Cristo, que é o Filho, é o perfeito Revelador do Pai;
só ele conhece o Pai e seus segredos, cujo conhecimento
comunica a quem bem lhe apraz7”. Aos discípulos esco­
lhidos “foi dado”, como uma graça, conhecer os mistérios
do Reino dos céus (Mt 13,11; Mc 4,10-12).
Também o Pai revela o Filho: aos “pequenos”, que
reconhecem sua indigência diante de Deus, ele revela o mis­
tério da pessoa do Cristo; foi por revelação do Pai que
Pedro reconheceu a Cristo pelo que é na realidade (Mt 16,
7 Sobre esse importante logion dos Sinóticos, veja: J. Dupont,
Gnosis (Paris, Louvain, 1949), pp. 58-62; A. Feuillet, “Jésus et la
Sagesse divine d’après les Évangiles Synoptiques”, Revue Biblique, 62
(1955), 161-196; L. Cerfaux, “L’Évangile de Jean et le logion johannique
des Synoptiques”, em L’Évangile de Jean (Col. “Recherches bibliques”,
Louvain, 1958), pp. 147-159; Id. “Les sources scripturaires de Mt 11,
25-30”, Eph. th. lov., 30 (1954), 740-746; 31 (1955), 331-342; L.
Charlier, “L’action de grâces de Jésus (Mt 11,25-30)”, Bible et vie
chrétienne, 1957, pp. 87-99.
48 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

17). Ambas as revelações completam-se: a do Pai faz acolher


a de Jesus sobre o Pai e os mistérios do Reino. Em vão soa a
palavra de Jesus se o Pai não dá às almas a compreensão do
que ele diz. O Filho não pode ser reconhecido pelo que
é sem uma luz concedida pelo Pai: graça recusada ao orgu­
lho dos “sábios”. A aceitação da revelação divina é obra
da graça.

5. A fé, resposta do homem

Os apóstolos, introduzidos por Cristo no mistério do


Pai e do Filho, acolheram com fé sua palavra. Resposta
condizente com a pregação da Boa-nova é a fé ( Mc
16,15-16). São os homens convidados a escutar e com­
preender (Mt 13,23), isto é, a aceitar na fé a palavra de
Deus e viver de acordo (Mc 4,20; Mt 7,24-27; Lc 6,47-
-49;8,21; 11,28). Cristo faz a oposição entre os que ouvem
a palavra e a põem em prática e os que ouvem sem passar
a vivê-la: casa alicerçada sobre rocha e casa alicerçada sobre
areia (Mt 7,24-27).
Para muitos, infelizmente, a palavra é estéril (Mc 4,
15-19). Com efeito, Deus revela-se de forma tão desorien-
tadora que a revelação se pode tornar para os homens pe­
dra de escândalo, ocasião de incredulidade. Os habitantes
de Nazaré rejeitam a Cristo por que conhecem sua origem
modesta (Mc 6,3). As palavras de Cristo sobre o perigo
das riquezas (Mc 10,23-27), o Messias sofredor (Mc 8,31;
9,31), são incompreensíveis até para os discípulos. A sua
atitude ante os costumes judaicos (Mc 7,lss; Lc 11,38-40),
ante o sábado (Mc 3,1-6; Lc 13,10-17; 14,1-6), seu relacio­
namento com os publicanos e pecadores (Mt 11,19; Lc 7,
34; Mc 2,16), sua pretensão de perdoar os pecados (Mc
2,5s; Lc 7,48), sua morte na cruz (Mc 15,29-32): são ou­
tras tantas pedras de tropeço.
Cada qual será julgado por sua atitude diante da pa­
lavra. Sendo a revelação anúncio de salvação, coloca os
homens diante de uma opção da qual depende sua salvação
ou condenação: “...pregai o Evangelho a toda criatura.
Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 49

condenado” (Mc 16,15-16). O anúncio do Reino está,


pois, ligado ao apelo à conversão, ou seja, a uma volta com­
pleta de todo ser a Deus. Jesus assim começa sua prega­
ção: “...está próximo o Reino de Deus; convertei-vos e
acreditai na Boa-nova” (Mc 1,15; Mt 3,2; 4,17). Tiro e
Sidônia, no dia do juízo, serão julgadas com menos seve­
ridade que as cidades da Galiléia que aos milagres de Cristo
opuseram sua recusa (Mt 11,20-24; Lc 10,13-15). Erguer-
-se-ão os ninivitas para condenar os judeus que rejeitaram
quem é maior que Jonas e Salomão (Mt 12,41; Lc 11,31).
No dia do julgamento os pregadores testemunharão contra
os que não quiseram escutar sua mensagem (Mc 6,11; 13,
9; Mt 10,15; Lc 10,12)Λ

6. Conclusão

Na tradição sinótica, portanto, Cristo é o Revelador


enquanto proclama a Boa-nova do Reino dos céus e ensina
com autoridade a palavra de Deus. Afinal, se ele revela,
é por ser o Filho que conhece os segredos todos do Pai.
Quando Cristo tiver terminado sua obra, os apóstolos de­
verão, por sua vez, revelar o que o Mestre lhes confiou; em
outras palavras, deverão pregar o Evangelho da salvação, en­
sinar, convidar os homens à fé. A fé, dom de Deus, revelação
do Pai, é a resposta do homem à pregação do Evangelho.
O conteúdo essencial da revelação é a salvação oferecida à
humanidade sob a imagem do Reino de Deus, anunciado
e instaurado por Cristo. Chegou p tempo à sua plenitude:
em Jesus Cristo está presente e atuante o Reino de Deus9.
O Cristo é, ao mesmo tempo, quem anuncia o Reino e aquele
em quem o Reino se realiza.

II. ATOS DOS APÓSTOLOS

Os Atos refletem a linguagem da Igreja primitiva e


sua nova fé. Pouco a pouco vai-se tornando mais preciso
8 J. Schmid, Das Evangelium nach Matthaus (Regensburg, 1956),
ρρ. 201-203.
9 D. Mollat, art. “Évangile", Dictionnaire de spiritualité, 4, 1748.
50 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

o vocabulário do Novo Testamento, a partir das expres­


sões de Jesus e do uso dos LXX 10.
Cristo dera a seus apóstolos a missão de “proclamar
a Boa-nova” (χηρύσσειν τό εύανγγέλων) no mundo inteiro
(Mc 16,15), “fazer discípulos” (Mt 28,19), e de “ensi­
nar” (διδάσκει) tudo quanto prescrevera (Mt 28,20). Por
ocasião de sua ascenção prometera-lhes seu Espírito: “Se­
reis minhas testemunhas (μάρτυρες·) tanto em Jerusalém,
como em toda a Judeia e Samaria, e até às extremidades da
terra” (At 1,8). Diante de Cornélio, declara Pedro que
o Cristo lhes “impôs pregar ao povo (χηρύσσειν) e atestar
( διαμαρτύρεσται ) ” que eJe £ o juiz dos VIVOS e mortos (At
10,42). Testemunhar, proclamar o Evangelho, ensinar, per­
tencem à função apostólica. Dóceis à palavra do Senhor,
os apóstolos saíram, de fato, “pregando” (Mc 16,20), “en­
sinando” (At 2,42;4,2.18;5,25.42;11,26;17,19;18,11;21,
21), “atestando” ( l,22;2,32;3,15;5,30-32; 10,39; 13,31 ).

1. Os apóstolos testemunham

A primeira parte dos Atos insiste nos termos testemu­


nhas e testemunhar. Testemunhar caracteriza a atividade
apostólica nos primeiros tempos após a ressurreição. Os»
que viram o ressuscitado, testemunham sua volta à vida,
tomando partido por ele ante os inimigos 11. Testemunho
que tem, ao mesmo tempo, valor religioso e jurídico 12.
Testemunhas são, em primeiro lugar, os apóstolos (At

10 Quanto aos vocábulos, além dos artigos do Theologisches Wor-


terbuch, já citados no parágrafo anterior, veja: H. Strathmann, “μάρ-
τυς·, μαρτυρέω, μαρτυρία”, TW 4, 492-514. Quanto à função dos após­
tolos na revelação, veja principalmente: R. Asting, Die Verkündigung
des Wortes Gottes im Urchristentum (Stuttgart, Í939); L. Cerfaux,
“Témoins du Christ d’après le Livre des Actes”, Recueil Cerfaux (2 vol.,
Gembloux, 1954), 2, 157-174; A. Rétif, Foi au Christ-et Mission (Paris,
1953); N. Brox, Zeuge und Martyrer (München, 1961); Ph.-H. Menoud,
“Jésus et ses témoins”, Église et Théologie, junho 1960, pp. 1-14; A.-M.
Hunter, Un Seigneur, une Église, un salut (Paris, 1950); J. Schmitt,
Jésus ressuscité dans la prédication apostolique (Paris, 1949); C. H.
Dodd, The Apostolic Preaching and its Developments (London, 1936).
11 L. Cerfaux, “Témoins du Christ d’après le Livre des Actes”,
Recueil Cerfaux 2, 157.
12 A. Rétif, Foi au Christ et Mission, pp. 40-47.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 51
l,8.22;2,32;3,15;5,32;10,39.41;13,31). São três as suas
características 13. São escolhidos por Deus (At 10,41; 1,26) M.
Associados a Cristo durante sua vida, viram-no após a ressur­
reição. Matias, que vivera com Cristo durante sua vida públi­
ca, passa a ser com os apóstolos “testemunha de sua res­
surreição” (At 1,22). Testemunha por excelência é quem
conheceu toda a obra de Cristo, do batismo à ressurreição
que é o término e a coroa de um só e único processo de
salvação15. Os apóstolos, que por toda parte seguiram a
Cristo, que “comeram e beberam com ele após sua res­
surreição” (At 10,41), serão suas testemunhas no mundo
todo (At 1,8). Lucas denomina-os “testemunhas oculares
e servidores da Palavra” (Lc 1,2). Testemunhar é, pois,
a função própria dos que viram e ouviram a Cristo, que
viveram em sua intimidade e tiveram, portanto, uma ex­
periência direta, viva, de sua pessoa, doutrina e obra. Ex­
periência indispensável, pois o Cristo não escreveu livro
algum, mas confiou aos apóstolos sua palavra viva. Por
isso, somente os que viram e ouviram o Cristo durante seu
ministério terrestre, os que por ele foram longamente pre­
parados, podem testemunhar o que ele disse e fez16. De­
clara-o São João: “O que vimos e ouvimos, anunciamo-lo
também a vós” ( 1 Jo 1,3). Concretiza-se a revelação pelo
depoimento dessas testemunhas apostólicas. Terceira carac­
terística da testemunha é a missão ou mandato que recebeu
de testemunhar (At 1,8) 17. Como os outros apóstolos, foi
Paulo chamado para testemunhar, objeto que foi de uma
eleição especial; viu a Cristo glorifiçado e recebeu seu en­
sinamento; foi enviado para dar testemunho diante dos
homens (At 22,14-15). Àpareceu-lhe Cristo para que fosse
“ministro e testemunha” de sua gloriosa ressurreição (At
26,16). Nele também podemos encontrar as très condi­
ções que caracterizam a testemunha 18. Evidente que Paulo

13 N. Brox, Zeuge und mãrtyrer, p. 46.


14 Quanto a Matias, a eleição mediante sorte exprime a vontade de
Deus.
15 N. Brox, Zeuge und Mãrtyrer, pp. 44-45.
16 Ph.-H. Menoud, “Jésus et ses témoins”, Église et Théologie,
junho, 1960, pp. 5-6.
17 N. Brox, Zeuge und Mãrtyrer, p. 46.
18 Ibid., p. 46.
52 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

não foi testemunha ocular de toda a vida terrestre de Cris­


to, que lhe mostrou, porém, a realidade de sua vida glo­
riosa e lhe deu a conhecer ao mesmo tempo sua identidade
com Jesus de Nazaré (At 22,6-8): o mesmo Jesus que es­
tivera morto, agora está vivo (At 25,19). Assim Paulo
é verdadeiramente testemunha do Cristo de Nazaré, morto
e ressuscitado w.
Os apóstolos são, em primeiro lugar, testemunhas da
ressurreição, pois é esse o fato essencial que garante tudo
que o precede e tudo que ainda deve vir--(At 1,22; 2,
32;3,13-16;4,2.33;5,30-31;10,39.41.42;13,31); de maneira
mais geral, porém, são testemunhas de tudo quanto viram
e ouviram de Cristo (At 4,20), de seus atos como de sua
doutrina (At 1,1). São testemunhas de toda a sua vida (At
1,21), do batismo à ressurreição: “Nós somos testemunhas
de todas as coisas que ele fez na terra dos judeus e em
Jerusalém”. (At 10,39). Testemunham a obra de salvação
inaugurada com sua morte e ressurreição: exaltou-o Deus
“a fim de dar a Israel a conversão e a remissão dos pecados.
E nós somos testemunhas dessas coisas” (At 5,31). Deus
“impôs-nos anunciar ao povo e atestar que ele é aquele que
foi constituído por Deus juiz dos vivos e dos mortos (At
10,42). Os apóstolos são testemunhas de toda a obra do
Cristo: da que se orienta para a paixão-ressurreição e da que
inaugura a paixão-ressurreição20.
O testemunho apostólico é dado sob o poder do Es­
pírito: “Recebereis uma força, a do Espírito Santo. . . se­
reis então minhas testemunhas” (At 1,8): isto é: ensi­
nando e fortificando, o Espírito vos possibilitará dar teste­
munho em meu favor. De fato, essa é segundo os Atos
a ação do Espírito21. Instrui os apóstolos: o testemunho
deles manifesta um superior conhecimento das Escrituras
e supera o que se podería esperar de homens “sem instru­
ção nem cultura” (At 4,13). Dá-lhes o Espírito coragem e
constância para testemunhar apesar da hostilidade que os
19 Ph.-H. Menoud, “Jésus et ses témoins", Eglise et Théologie,
junho, 1960, pp. 8-9.
20 L. Cerfaux, “Témoins du Christ d’après le Livre des Actes”,
Recueil Cerfaux, 2, 159.
21 Ibid. 2, 164.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 53
cerca (At 4,8.31 ;5,32;6,10). Recebido o Espírito, “com
grande poder os apóstolos davam testemunho da ressur­
reição” (At 4,33). Quando atestam, o Espírito testemunha
com eles (At 5,32); seu poder sustenta-os e atua para atrair
seus ouvintes, convencê-los, ou confundi-los se resistem.
Assiste-os o Espírito, sustenta-os com sua força, principal­
mente nas perseguições quando é preciso confessar o Cris­
to, não apenas com palavras, mas também pelo sofrimento.
Está com os apóstolos perseguidos diante do Sinédrio (At
4, 8;5,41), com Estêvão (At 6,1-15) cuja confissão e con­
denação lembram o testemunho de Cristo (At 7,54-60).
Revestidos assim do Espírito, intrépidos e invulneráveis en­
tre os inimigos, apoiados na força de Deus, assemelham-se
os apóstolos aos profetas do Antigo Testamento. Estes
deram testemunho da salvação que deveria vir, num clima
de hostilidade e perseguições; os apóstolos testemunham a
salvação realizada (At 10,43;26,22), também por entre
perseguições (At 4,7;5,27;7,58). Um dia deverão tam­
bém eles confessar o Cristo até ao martírio (Jo 21,19),
completando em si mesmos a imagem do Cristo, a Teste­
munha perfeita (iTim 6,13). No Apocalipse (11,3), de­
pois que “as duas testemunhas” — os profetas e apósto­
los — prestam o seu testemunho, a besta que sobe do abis­
mo os mata (Apoc 11,7). Após très dias, porém, sobem
aos céus ante seus inimigos (Apoc 11,12). Entre o Cristo,
Testemunha do Pai, e os apóstolos, testemunhas do Cristo,
há uma continuidade na missão, no testemunho, na morte,
na glória22.

2. Os apóstolos proclamam a Boa-nòva

O testemunho apostólico é dado na pregação ou qué-


rigma. Apesar de esses termos incidirem quando aplicados
à atividade concreta dos apóstolos, “testemunhar” indica
uma atividade propriamente apostólica, baseada na situa­
ção privilegiada dos que viram e ouviram, enquanto κηρύσσειν

22 Ibid., 171-172.
54 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

põe em evidência o caráter dinâmico, publicitário, do teste­


munho. Aplica-se também aos outros pregadores (At 15,
35; 18,25). O testemunho implica fidelidade a uma expe­
riência e coragem para atestá-la. Quérigma indica retum-
bância, poder, expansão, publicidade. É assim que Pedro,
no dia de Pentecostes, diante do povo, grita em alta voz
para tornar pública, notória, oficial, a Boa-nova da salvação
pelo Cristo (At 2,14). Filipe “proclama” o Cristo aos
samaritanos (At 8,5). Aos apóstolos foi mandado “pregar
ao povo” (At 10,42). Desde sua conversão, Paulo “pro­
clama” que Jesus é o Filho de Deus (At 9,20); “proclama
o Reino” (At. 20,25), o “Reino de Deus” (At 28,31).
Com o mesmo sentido de κηρύσσειν encontramos também
εύαγγελίζεσται. Pedro e João “ evangelizam ” muitas aldeias
samaritanas (At 8,25). Filipe “anuncia a Boa-nova de Jesus”
ao eunuco etíope (At 8,35). Paulo e Barnabé “evangelizam”
Derbe (At 14,21). Paulo compreende, numa visão, que
deve “evangelizar” a Macedônia (At 16,10).
Evangelizar e ensinar aparecem juntos muitas vezes.
Soltos pelo Sinédrio, os apóstolos não param de “ ensinar
e proclamar a Boa-nova de Jesus” no Templo e nas casas
(At 5,42). Em Antioquia, Paulo e Barnabé, “ensinam e
anunciam a Boa-nova” (At 15,35). Apoio “prega e en­
sina” o que se refere a Jesus (At 18,25). Paulo, em Ro­
ma, “proclama” o Reino de Deus e “ensina o que diz
respeito ao Senhor Jesus Cristo” (At 28,31 )a.
De muitos modos manifesta-se a finalidade publicitá­
ria do quérigma. Pedro e Paulo dirigem-se às multidões
(At 1,15-22;3,12;13,16) ou a grupos (At 10,44). Falam
ao ar livre, nas sinagogas, diante do Sinédrio. A pregação
dos apóstolos reboa e tende a propagar-se entre judeus e

23 O ensino, ou catequese, sugere contudo instruções mais elabo­


radas dirigidas aos recém-convertidos, tuna exposição de tom didático em
que se explicam as Escrituras à luz do acontecimento cristão. É nesse
sentido que os primeiros cristãos “eram assíduos ao ensino dos apóstolos”
(At 2,42). Os apóstolos ficam no templo e ensinam o povo (At 5,25.28).
Nomeiam os diáconos para que eles, os apóstolos, possam dedicar-se ex­
clusivamente “à oração e ao serviço da palavra” (At 6,4). Paulo fica
ano e meio em Corinto “ensinando-lhes a palavra de Deus” (At 18,11).
Ao primeiro impacto da Boa-nova segue-se a proposição e a explicação
da doutrina cristã.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 55
gentios. As atitudes de Pedro e Paulo são as dos arautos.
Pedro, “está em pé” com os Onze e fala alto (At 2,14).
Inúmeras vezes seus discursos exigem atenção, intimam:
prestai ouvidos (At 2,14), ouvi (At 2,22), convertei-vos
(At 2,38), salvai-vos (At 2,40). Tudo manifesta um imen­
so desejo de levar a todos e a toda parte a palavra de
Deus. Paulo tenta conquistar os grandes centros de influên­
cia: Damasco, Corinto, Êfeso, Atenas, Roma. A partir de
Pentecostes, homens de todas as nações ouvem a palavra
(At 2,5). Na pessoa de Cornélio, dirige Pedro sua men­
sagem a todos os gentios (At 10,35.45). A palavra do
Evangelho é dinâmica, explosiva. É vontade de Cristo que
seus pregadores atinjam todos os habitantes do universo.
Os arautos dos Atos, sob o domínio do Espírito, parecem
tomados por uma febre que os força a gritar, proclamar,
anunciar, evangelizar. Não podem calar a salvação trazida
por Cristo24.
É com soberana segurança que se faz a proclamação
do Evangelho, confirmada e apoiada pelos sinais de poder
(At 2,43;3,16;5,12.14;8,6;9,35.42;13,12). Garantidos pela
promessa de Cristo, os apóstolos não temem fazê-los e soli­
citá-los (At 4,30). Renovam-se as cenas da vida de Cris­
to: “E a multidão concorria a Jerusalém também das cida­
des circunvizinhas, trazendo os enfermos e os atormenta­
dos por espíritos imundos, e todos eram curados” (At 5,
16;8,6-8; 19,11-12 ). Pelos sinais, Deus credencia seus en­
viados ante os ouvintes da palavra e os enche de segurança-.
“Paulo e Barnabé prolongaram, pois, por bastante tempo
sua permanência (em Icônio), cheios de segurança no Se­
nhor que dava testemunho à pregação de sua graça, ope­
rando sinais e prodígios pelas mãos deles” (At 14,3; 19,8).
Mais precisamente, os milagres confirmam o testemunho
dos que afirmam ter visto o Cristo ressuscitado. O poder
de que dispõem atesta que Jesus, realmente ressuscitado e
glorificado por Deus, foi revestido de todo o poder. Feitos
em nome de Jesus (At 3,6;4,30), os prodígios manifestam
a glória que lhe foi conferida quando de sua ressurreição.

24 D. Mollat, “Évangile”, Dictionaire de spiritualité, 4, 1751; A.


Rétif, Foi au Christ et Mission, pp. 61-76.
56 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

Tem Jesus um nome capaz de operar milagres em favor


dos que nele acreditam25

3. Objeto do testemunho e da pregação

O que os apóstolos pregam, ensinam, atestam, o que


seus ouvintes são convidados a escutar e receber, é o Cristo
(At 5,42;8,5.35;9,20;18,5) ou a palavra do Cristo (At
15,35), ou palavra sobre o Cristo (At 18,25;28,31 ). Pa­
lavra que, como no Antigo Testamento é palavra de Deus
(At 18,11;4,29-31 ), a palavra do Senhor (At 13,48; 16,
32). Mais concretamente, o que os apóstolos pregam, en­
sinam, atestam, é a Boa-nova da salvação pelo Cristo. Ilumi­
nados pelos acontecimentos pascais, proclamam os apósto­
los que “não há sob o céu outro nome, dado aos homens,
pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12). Pedro diz a
Cornélio: Deus “enviou sua palavra aos filhos de Israel
anunciando a paz por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor
de todos” (At 10,36; Hebr 1,1-2). Em Jesus Cristo, glo-
rifiçado na ressurreição e feito Senhor de todos, os homens
são agora reconciliados. Pedro menciona a “palavra da
Boa-nova” (At 15,7); Paulo, a do “Evangelho da graça”
(At 20,24). Concretamente, pois, a palavra de Deus é a
mensagem evangélica (At 8,4; 14,7), a “mensagem de sal­
vação” (At 13,26) isto é, palavra que anuncia a salvação e
nela introduz.
Mais explicitamente, o conteúdo da palavra é em pri­
meiro lugar que Jesus ressuscitou (At 2,32;3,15;5,30; 10,
41; 13,31) e que, pela ressurreição, foi constituído juiz dos
vivos e dos mortos (At 10,42), Senhor e Cristo (At 2,36).
É por ele que se concede a salvação: é o “Príncipe da vida”
(At 3,15), o “Salvador” (At 5,31; 13,23), fora do qual
não á salvação (At 4,12;5,31; 10,43). Nele culmina e
chega a seu termo toda a história profética (At 3,18.21.24.
25). Realiza-se a salvação pela fé em Cristo e pelo batismo
(At 2,41;11,21;18,8 ) que dá a remissão dos pecados (At

25 J. Dupont, “repentir et conversion d’après les Actes des apôtres",


Sciences Ecclésiastiques, 12 (I960), 160-161.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 57

2,38;5,31 ; 10,43 ; 13,38 ) e dá o Espírito, dom salvifico por


excelência (At2,38). A característica do cristão é ser “repleto
do Espírito” (At 6,5;9,17;11,24;13,52) e por ele gover­
nado26.

4. A fé, resposta do homem

A resposta conveniente ao quérigma e ao testemunho


é a fé27. Os Atos descrevem o aumento contínuo dos cren­
tes sob a ação da palavra (At 2,41;4,4;5,14;6,7;9,42;11,21;
13,43.48;14,1 ). Na origem da fé está a pregação que lhe
apresenta seu objeto (At 11,20-21). Crer, é “acolher a
palavra” (At 2,41; 11,1), a “Boa-nova do Reino” (At 8,12),
a “Boa-nova do Senhor Jesus” (At 11,20), a “Boa-nova de
Jesus” (At 8,35). Pedro foi escolhido para que dele ou­
vissem os pagãos a “palavra da Boa-nova e cressem” (At
15,7). Paulo e Barnabé, em Icônio, “falaram de tal ma­
neira que grande multidão de judeus e gregos abraçaram
a fé” (At 14,1). Muitos coríntios “prestando ouvidos,
creram e foram batizados” (At 18,8; 17,11-12.34; 13,48 ) “,
A fé, segundo os Atos, é algo de global: é uma absoluta
e total adesão ao Cristo: é a fé no Senhor Jesus (At 16,
31),mo Senhor Jesus Cristo (At 9,42; 11,17), em o nome
de'Jesus (At 3,16). É doação ao Cristo: aceita-o total­
mente, com tudo que isso implica. Comporta também uma
“conversão”: quem acredita no Senhor, converte-se (At
11,21).
A fé não é simples obra humana. Ao mesmo tempo
que ressoa externamente o apelo de uma pregação ampli­
ficada pelos sinais que a acompanham e credenciam como
divina, internamente age Deus para torná-la assimilável à
alma. O apóstolo prega, mas internamente é Deus que pela
sua graça dâ a possibilidade de acolher a palavra pela ade­
são da fé. Lídia ouvia a pregação de Paulo: “Ó Senhor

26 J. Schmitt, Jésus réssuscité dans la prédication apostolique (Pa­


ris, 1949), pp. 218-222.
27 πιστεύειν aparece 39 vezes e πίστις·, 15 vezes.
28 A.Rétif, Foi au Christ et Mission, pp. 112-114.
58 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

abriu-lhe o coração de sorte que aderiu ao que Paulo dizia”


(At 16,14). A partir de Pentecostes, os apóstolos e o
Espírito, a Igreja e o Espírito, colaboram para o aumento
da Igreja (At 9,31). O mistério do crescimento da Igreja
é fruto da palavra da pregação fecundada pelo Espírito.
Isso porque o Cristo, fazendo os apóstolos suas testemu­
nhas e mensageiros, juntou à deles a missão do Espírito
(At 1,8).
O drama está em que o homem pode fechar-se em seus
caminhos e resistir à palavra: como o fariseu que volunta­
riamente se faz cego (At 4,16) e tampa os ouvidos para
não ouvir (At 7,57), ou o grego que zomba do mistério
(At 17,18.32), ou o devasso que resiste à fé (At 26,28),
ou o governador que sem pureza suficiente de alma nada
vê além de seus interesses (At 24,25-26), ou o judeu que
não aceita o universalismo do plano divino (At 14,2). A
auto-suficiência, seja de natureza religiosa, filosófica ou cul­
tural, faz nascer o desprezo, o desdém, a desatenção. O
apelo divino exige uma atitude de aceitação. Cornélio (At
10,1-2), Lídia (At 16,14), o proconsul Sérgio Paulo (At
13,7-12): todos eles ouvem, acolhem, obedecem. A pala­
vra divina põe a descoberta o coração do homem forçan­
do-o a se julgar. Trágica opção que salva ou condena. Dra­
ma de luz e trevas desencadeado pela vinda e encontro de
Cristo.

5. Conclusão

Os Atos descrevem a atividade apostólica como uma


continuação da obra de Cristo. Os apóstolos ouviram-no
falar, pregar, ensinar, revelar (tradição sinótica). Dele re­
ceberam a missão de atestar sua ressurreição e sua obra,
pregar, ensinar o que ele prescrevera e ensinara. Fiéis à
sua missão, apresentaram-se como testemunhas do Cristo
ressuscitado, Messias e Senhor; pregaram o Evangelho da
salvação, anunciaram a Boa-nova, ensinaram a doutrina do
Mestre. Sua função era a de testemunhas e arautos. Seu
depoimento constitui o objeto de nossa fé. A revelação con­
fiada à Igreja é esse testemunho apostólico que nos con-
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 59

vida a crer o que Cristo disse e fez. A fé, resposta a essa


pregação, é obra divina, despertada pelo Espírito que in­
teriormente age e fecunda a palavra externamente ouvida.

III. SÃO PAULO

São Paulo para penetrar no âmago da idéia de revela­


ção usa as categorias de mistério e de Evangelho. Ele é
apóstolo para anunciar a Boa-nova do mistério revelado por
Deus29.

ΐ: Os termos

A simples justaposição dos vocábulos usados já indica


o movimento de seu pensamento sobre a revelação.
Deus revela (άποκαλύπτειν), torna manifesto (φανεροϋν), Já
a conhecer ( γνωρίζειν ), ilumina. ( φωτίζειν ). Os apóstolos
falam (λαλεϊν), pregam (κηρύσσειν), ensinam (διδάσκειν),
anunciam a Boa-nova ( καταγγέλλειν ), testemunham (uap-
τυρεϊν), comunicando assim a palavra (λόγος·), a pregação
( κήρυγμα ), o testemunho ( μαρτύρων ), o mistério ( μυστήριον ),

29 Sobre o mistério, ver principalmente: G. Bornkamm, “μυστήριον”,


Theologiscbes Wõrterbuch, 4, 809-834; D. Deden, “Le mystère pauli-
nien”, Eph. theol. Ιου., 13 (1936), 403-442; K. Prümm, “Mysterion von
Paulus bis Origenes”, Zeitschrift für Katholische Theoiogie, 61 (1937),
391-425; Id. “Zur Phãnomenologie des paulinischen Mysterion”, Biblica,
37 (1956), 135-161; Id. “Mystères”, Suppl, au Diet, de la Bible, 6,10-225;
C. Spicq, Les Épîtres pastorales (Paris, 1947), pp. 116-125; R. E.
Brown, “The pre-Christian Semitic Concept of Mystery”, Catholic Bibli­
cal Quarterly Review, 20 (1958), 417-443; Id., “The Semitic Background
of the New Testament Mystêrion”, Biblica, 39 (1958), 426-448; 40
(1959), 70-87; L. Cerfaux, Le Christ dans la théologie de S. Paul (Pa­
ris, 1954), pp. 229-242; 303-328 Le chrétien dans la théologie paulinienne
(Paris, 1962) pp. 431-469; J. Dupont, Gnosis, La connaissance religieuse
dans les épîtres de S. Paul (Louvain, Paris, 1949), pp. 187-194, 493-498;
J. Coppens, “Le mystère dans la théologie paulinienne et ses parallèles
qumrâniens”, em: Littérature et théologie pauliniennes (Coll. “Recher­
ches bibliques”, V. Bruges, 1960), pp. 142-165; B. Rigaux, “Révélation
des mystères et perfection à Qumrân et dans le Nouveau Testament”,
New Testament Studies, 4 (1958), 237-262. Sobre o tema “Evangelho”,
veja: D. Mollat, art. “Évangile”, no Dictionnaire de spiritualité, 4,
1747-1751; G. Friedrich, “εύαγγελίς·ομαι, εύαγγέλιον”, Theologiscbes
Wõrterbuch, 2, 705-735.
60 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

o Evangelho (εύαγγέλιον)30. A doxologia que finaliza a


Epístola aos romanos ilustra perfeitamente essa diversida­
de 'è riqueza da economia da revelação: “Aquele que tem
poder para confirmar-vos segundo o meu Evangelho e a
mensagem de Jesus Cristo, e segundo a revelação do arcano,
por tantos séculos mantido em silêncio, mas agora mani­
festado e, por ordem do Deus eterno, dado a conhecer, por
meio dos escritos dos profetas, a todas as ilações, para que
elas se submetam à fé. . . a ele seja a glória” (Rom 16,
25-26). Em Jesus Cristo, pois, um mistério antes oculto
e guardado como um segredo ( μυστήριον ), é agora desven­
dado, revelado ( Αποκαλύπτειν ) e manifesto (φανεροΰν). £ le­
vado ao conhecimento dos povos (γνωρίζειν) pelo Evange­
lho (εύαγγέλιον) e pela pregação (κήρυγμα) para levá-los à
fé e à obediência (ύπακοή πίστεως) Na Epístola aos Colos­
senses encontramos a mesma maneira de falar: “Dela [da
Igreja] eu me tornei ministro, em virtude do encargo que
Deus me conferiu para convosco, de anunciar com plenitude
a palavra de Deus, esse arcano oculto por tantos séculos às
gerações passadas, mas que agora Deus revelou a seus san­
tos” (Col 1,25-26).

2. O mistério paulino

A teologia de são Paulo é uma soteriologia, cuja in­


tuição fundamental se exprime com o conceito mistério31.
Principalmente nas epístolas do cativeiro é que o termo
aparece em toda sua plenitude: indica, então, o plano di­
vino da salvação manifestado e realizado pelo Cristo Essa
significação, contudo, já aparece em lCor 2,7-8 e Rom 16,
25. Na Epístola aos coríntios evidencia são Paulo o cará­
ter “misterioso” da sabedoria que presidiu a economia da
30 M. Meinertz, Théologie des Neuen Testaments (2 vol. V Bonn,
1950), I: 59-60; H. Schulte, Der Begriff der Offenbarung im Neuen
Testament, pp. 21-22.
31 Em são Paulo, essa noção foi progressivamente aprofundada. Cfr.
J. Coppens, “Le mystère dans la théologie paulinienne et ses parallèles
qumrâniens”, em: Littérature et théologie pauliniennes, p. 142; R. E.
Brown, “The Semitic Background of the New Testament Mystêrion”,
Biblica, 39 (1958): 440.
32 L. Cerfaux, Le Christ dans la théologie de S. Paul, pp. 304-305.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 61

salvação: sabedoria secreta, oculta em Deus e totalmente


sobrenatural, cujo objeto são os bens esplêndidos que Deus
destinou para seus escolhidos 33. Na Epístola aos romanos,
concentra-se sua atenção na participação dos gentios, pela
fé, nesses bens (Rom 16,25-27). Os pagãos outrora esta­
vam como que banidos da salvação, reservada aos judeus.
O desígnio divino de salvar também a eles, de chamá-los
“à esperança da glória”, pela união com Cristo, finalmente
foi revelado (Col 1,25-28). O mistério, agora desvendado,
é que “os gentios são co-herdeiros e membros do mesmo
corpo e co-participantes das promessas em Cristo Jesus por
meio do Evangelho” (Ef 3,6). O capítulo primeiro da
Epístola aos efésios ámplia ainda mais essa visão: o mis­
tério é a reunião de tudo em Cristo, a submissão de todos
os seres ao Cristo, “as coisas que estão no céu e as que
estão na terra” (Ef 1,10). Reunindo os elementos desses
diversos textos, podemos dizer que o mistério, de que fala
Paulo, é o plano divino da salvação, oculto desde toda a
eternidade e agora revelado, pelo qual Deus estabeleceu a
Cristo como o centro da nova economia, constituindo-o,
pela sua morte e ressurreição, único princípio de salvação
tanto para os gentios como para os judeus, cabeça de todos os
seres, anjos e homens. É o plano divino total (encarnação,
redenção, eleição para a glória ) que em última análise se con­
centra no Cristo, com suas riquezas insondáveis (Ef 3,8),
seus tesouros de sabedoria e ciência (Col 2,2-3). Concreta­
mente o mistério é o Cristo (Rom 16,25; Col 1,26-27;
lTim 3,16) M. O mundo, criado na unidade, pelo Cristo
Salvador e Cabeça, volta à unidade. Assim pois, inicialmen­
te, ao descrever o mistério Paulo acentua a vocação dos
gentios; em seguida, nas epístolas do cativeiro, o misté­
rio passa a ser principalmente Cristo e a participação no
Cristo. Recapitula-se tudo no Cristo: na sua manifestação,
nos bens que representa, no caminho que nos traça para
Deus 35.

33 K. Prümm, “Mystères”, Suppl. Did. de la Bible, 6: 193-194.


34 L. Cerfaux, Le Christ dans la théologie de S. Paul, p. 305.
35 J. Coppens, “Le mystère dans la théologie paulinienne et ses
parallèles qumrâniens”, em Littérature et théologie pauliniennes, p. 143.
Em lTim 3,16, as etapas da história do Cristo coincidem com as fases
62 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

3. As etapas na revelação do mistério

Pode-se considerar o mistério em diversos planos: no


plano da intenção (o mistério de Deus); no plano da reali­
zação, no Cristo e pelo Cristo (o mistério do Cristo); no
plano do encontro pessoal (o mistério do Evangelho, da
palavra, e da fé); no plano da sua extensão à humanidade
(o mistério da Igreja). Faz-se a revelação do mistério em
etapas que correspondem a esses diversos planos e traçam
a história da salvação.
Na fase inicial, o mistério está oculto em Deus: se­
gredo de infinita sabedoria (iCor 2,7), envolto em silên­
cio desde a eternidade (Rom 16,25), oculto às gerações pas­
sadas (Ef 3,5; Col 1,26), oculto mesmo aos espíritos ce­
lestes (Ef 3,9-10). Sabedoria inacessível, conhecimento re­
servado.
Mas, “agora”, o mistério outrora oculto está mani­
festo, revelado (Rom 16,25; Col 1,26). Pela vida, morte
e ressurreição do Cristo o mistério entrou em sua fase de
realização; em Jesus Cristo cumpre-se e ao mesmo tempo
revela-se o desígnio salvifico de Deus (Ef 1,7-9); o mis­
tério torna-se acontecimento da história ( lTim 3,16). Se­
gundo a divina economia, o mistério é inicialmente comu­
nicado a testemunhas privilegiadas: os apóstolos e profetas
(Ef 3,5; Col 1,26). São eles os mediadores e os arautos
do mistério (Ef 3,5). Tornam-se, por sua pregação, o ali­
cerce da Igreja, cuja pedra angular é o Cristo (Ef 1,22-23;
2,20-21) Paulo faz parte desse grupo privilegiado: é “mi­
nistro da Igreja” (Col 1,25-26), e na revelação do misté­
rio tem um papel de primeiro plano. O mistério, no que
se refere aos gentios, foi-lhe revelado de forma especial:

sucessivas do mistério. Assim como no mistério Deus medita um plano


de salvação, manifesta-o aos homens e leva-os à glória, assim também o
Cristo preexistente foi manifestado pela carne, pregado e crido entre os
homens, e finalmente volta glorioso aos céus. Cfr. C. Spicq, Les Épîtres
pastorales, p. 119.
36 D. Deden, "Le mystère paulinien", Eph. Theol. Lov., 13 (1936):
420-421; L. Cerfaux, Le Christ dans la théologie de S. Paul, pp. 310,
311; Le chrétien dans la théologie paulinienne pp. 444-447; C. Spicq,
Les Épîtres pastorales, pp. 116-117.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 63
“A mim, sim, ao mais pequenino de todos os santos, foi
concedida esta graça de anunciar aos gentios as incompreen­
síveis riquezas de Cristo, e de expor à luz, a dispensação
do mistério” (Ef 3,8-9). Foi chamado por Deus e “posto
à parte” (Rom 1,1) para ser “pregador e apóstolo...,-
doutor dos pagãos na fé e na verdade” (iTim 2,7), “sa­
cerdote do Evangelho de Deus, para que os pagãos se tornem
oferenda agradável, santificada no Espírito Santo” (Rom
15,16). Em vista dessa vocação, recebeu uma altíssima in­
teligência do mistério (Ef 3,3-4).
Revelado a testemunhas escolhidas, o mistério é dado
a conhecer a todos os chamados à Igreja. O encargo dos
apóstolos é proclamar o conteúdo do mistério ou Evange­
lho. São Paulo estabeleceu uma equivalência “concreta”
entre Evangelho e mistério (Rom 16,25; Col 1,25-26; Ef
1,9-13;3,5-6). Em ambos os casos temos a mesma realida­
de, isto é: o plano divino de salvação considerado porém,
sob ângulos diversos. Sob um aspecto, é um segredo, des­
vendado, revelado, manifestado, transmitido ou comunica­
do; sob outro, é a Boa-nova, uma mensagem anunciada, pro­
clamada 37. Dá-se a conhecer o Evangelho como se comu­
nica o mistério; as pessoas podem ter parte no Evangelho
(Ef 3,6) da mesma forma como podem participar no mis­
tério (Col 1,27)M. Plano divino oculto e revelado, plano
divino proclamado: Evangelho e mistério têm o mesmo
objeto e conteúdo. Objeto duplo: soteriológico, isto é: a
economia da salvação pelo Cristo (Ef 1,1-10), e escatológico,
ou seja: a promessa da glória com todos os bens destinados
aos escolhidos, frutos da cruz e da morte do Cristo (Col 1,28;
ICor 2,7; Ef 1,18). O mistério notificado aos homens
pela pregação e pelo evangelho vem a ser o plano da sal­
vação levado ao último estágio do acontecimento pessoal.
A Boa-nova da salvação é chamada por são Paulo de
o Evangelho, simplesmente ( ITes 2,4), ou de o “Evange-
37 D. Dedem, “Le mystère paulinien”, Eph. Theol. Lov., 13 (1936):
422-423; são muitos os textos que apresentam o Evangelho como a men­
sagem, a Boa-nova da salvação proclamada aos homens pela pregação
apostólica (ICor 15,1-2; Rom 2,16; 16,25; 2Cor 11,4; Gál 1,6-7; Ef U3;
6,15; Col 1,5.23; ITim 1,11; 2 Tim 2,8).
38 L. Cerfaux, Le Christ dans la théologie de S. Paul, p. 304.
64 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

Iho de Deus” (Rom 1,1;15,16; 2Cor 11,7; lTes 2,2.8-9),


pois Deus é seu autor e seu objeto3’, ou, com o mesmo
sentido, “o Evangelho de Cristo” (Rom 15,19-20; 2Cor 2,
12;9,13;J0,14; Gál 1,7; Flp 1,27), “o Evangelho de nosso
Senhor Jesus” (2Tes 1,8), “o Evangelho da glória do Cristo”
(2Cor 4,4)
Em vez de Evangelho, mas com o mesmo sentido téc­
nico de mensagem cristã, Paulo usa também o termo palàvra
(Col 1,25-26; lTes 1,6), ou palavra de Deus (lTes 2,13;
Rom 9,6; ICor 14,36), ou palavra do Senhor (lTes 1,8;
4,15; 2Tes 3,1), ou palavra do Cristo (Rom 10,17). Com
essa palavra, que é mensagem divina em lábios humanos, é
sempre Deus que fala e interpela a humanidade (Rom 10,
14). Paulo dá graças a Deus porque os tessalonicenses aco­
lheram a palavra por ele anunciada “não como palavras
de homens, mas, qual realmente é, palavra de Deus” (lTes
2,13)41. Palavra que, por ser divina, é ativa. É ‘‘palavra
de salvação” (Ef 1,13). “Palavra de vida” (Flp 2,16),
“palavra de verdade” (2Cor 6,7; Col 1,5; 2Tim 2,15),
“palavra de reconciliação” (2Cor 5,19), não só porque
tem por objeto a verdade, a vida, a reconciliação e a salva­
ção, mas porque oferece e dá a salvação, porque introduz
na vida (Rom 1,16; ICor 1,21; lTes 2,13; Ef 1,13)42. É
dupla a obra divina: ao mesmo tempo que a reconciliação
do mundo pelo Cristo, Deus estabeleceu a “palavra de re-

39 Com efeito, o Evangelho é a revelação de Deus nosso Pai (lTes


1,3; 2Tes 1,1; Rom 1,7), rico em misericórdia (Ef 2,4), que nos chama
para seu reino e sua glória (lTes 2,12). É o Evangelho do amor de
Deus (lTes 1,4). Nesse Evangelho Deus revela aos homens a eleição
gratuita de que foram objetos e convida-os a se voltarem totalmente para
ele (2Tes 2,13-16). Cfr. D. Mollat, “Évangile”, Diet, de Spir. 4: 1756.
40 B. Rigaux, Les Épîtres aux Thessaîoniciens (Paris, 1956), pp.
158-159.
41 H. Schlier, “La notion paulinienne de la parole de Dieu”, em:
Littérature et théologie pauliniennes, pp. 129-130; J. Dupont, “La parole
de Dieu suivant S. Paul”, em: La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Cas-
terman, 1960), pp. 68-70; B. Rigaux, Les Épîtres aux Thessaîoniciens,
p. 160; L. M.· Dewailly, La jeune Église de Thessalonique (Paris, 1963),
PP· 24'48· r n >
42 J. Dupont, “La parole de Dieu suivant S. Paul”, em: La Parole
de Dieu en ]ésus-Christ, pp. 72-73; H. Schlier, “La notion paulinienne
de' la parole de Dieu”, em: Littérature et théologie pauliniennes, pp.
134-135.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 65
conciliação” (2Cor 5,18-19). “Paralelamente ao que se
faz pelo Cristo, aparece o que é feito pela palavra. Ambas
as operações são obras salvificas do Cristo”43.
Sendo o mistério a reunião em Cristo dos judeus e dos
gentios, num mesmo organismo de salvação, aparece a Igre­
ja como o termo final do mistério, a brilhante realização
da economia divina, sua expressão visível e estável. O pla­
no da salvação é não apenas revelado, proclamado pelo
Evangelho, mas também efetivamente realizado na Igreja.
O estabelecimento objetivo da Igreja, que é a manifesta­
ção do mistério, revela às potências celestes a infinita sa­
bedoria do desígnio de Deus (Ef 3,10) e indica que chegou
o tempo da submissão de todas as coisas ao Cristo (Col
1,16). Assim como no Cristo se torna visível o mistério
de Deus, assim na Igreja se torna visível o mistério do
Cristo44.

4. Resposta do homem
É pela fé que se tem acesso ao mistério, ao Evange­
lho, à palavra. De fato, é pela fé .que o homem reconhece
como verdadeiro o plano da salvação, realizado por Deus
na morte e ressurreição do Cristo, adere inteiramente a esse
plano, se bem que desconcertante para a humana sabedoria
(iCor 1,17-30; 2,1-4). A pregação do Evangelho ou do
mistério revelado tem por finalidade conseguir a “obediên-
ciã"da fé” (Rom 16,26; 2Cor 10,5). Fé que é a resposta
específica do homem à palavra do Evangelho. “Isso o que
pregamos, isso o que acreditastes”, relembra Paulo aos co-
ríntios (ICor 15,11). Tendo ouvido a “palavra de verda­
de”, a “Boa-nova” de sua “salvação”, os efésios acredita­
ram (Ef 1,13). É pela fé na mensagem que os cristãos se
abrem para a salvação 45.
A palavra exige ser escutada, acolhida, guardada. Se­
guindo a tradição sinótica e dos Atos, a Boa-nova
destina-se aos homens que não se consideram auto-suficien­
tes, conscientes de sua fraqueza e indigência, abertos

43 H. Schlier, ibid. 127.


44 C. Spicq, Les Épîtres pastorales, pp. 120-121.
45 L. Cerfaux, Le chrétien dans la théologie paulinienne, pp. 132-134.

3 - Teologia da revelação
66 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

para o dom que se lhes oferece. Não é possível a fé senão


a quem esteja pronto a ouvir a palavra da verdade (Rom
10,18: ήκουσαν) e obedecer-lhe (Rom 10,16: ύπήκουσαν). A
fé, para são Paulo, é a acolhida da palavra (Rom 10,16;
Gál 3,5: άκ°ή ^ίστεως) e a obediência ao Evangelho (Rom
1,5; 16,26: ύπακοή πίστεως).
Adesão e submissão à mensagem evangélica que não
seria possível de forma meramente natural. É preciso um
dom da graça: uma “iluminação” que venha de Deus como
a criação da luz no primeiro dia (2Cor 4,5-6), uma “unção”
divina (2Cor 1,21-22), que despertem a fé nos corações
dos que ouvem o Evangelho46. A palavra de Deus não é
simplesmente um enunciado de verdades; é principalmente
uma apresentação da pessoa do Cristo, Senhor e Salvador,
e do que ele significa para todo homem. A pregação do
Evangelho é ainda a ocasião e o lugar para uma opção. Para
alguns, o Evangelho é escândalo, pedra em que tropeçam
(Rom 9,32-33; ICor 1,23; Gál 5,11), loucura (ICor 1,
18.21.23). Permanece velado (2Cor 4,4). Os incrédulos,
os indóceis à verdade (Rom 2,8;10,21; 11,30-32; 15,31 ),
sem ouvidos para escutar o Evangelho da salvação (Rom
11,7-10), estão a caminho da perdição ( ICor 1,18; 2Cor
4,3). Todos os que não acreditam, mas aderem à iniqüi-
dade, serão condenados (2Tes 2,11). O Evangelho só exer­
ce seu poder de salvação e de vida para aqueles que crêem
(Rom 1,16-17; Gál 3,11; ICor 1,18.20; Flp 2,16; 2Tim
1,10). A pregação do Evangelho é, pois, desde agora o
prelúdio da separação final47.

5. Aprofundamento do mistério

O conhecimento do mistério e do Evangelho é um co­


nhecimento dinâmico, sempre em crescimento. Pode crescer
sempre nos cristãos, desde o conhecimento inicial dado com
a fé. É possível, pois, distinguir diversos níveis no conhe-

46 I. de la Potterie, “L’onction du chrétien par la foi”, Biblica,


40 (1959): 24-25.
47 J. Dupont, “La parole de Dieu suivant S. Paul”, em: La Parole
de Dieu en Jésus-Christ, pp. 78-80; D. Mollat, “Évangile”, Diet, de
Spir., 4: 1760-1761.
A REVELAÇÃO EM 0 NOVO TESTAMENTO 67
cimento do mistério. Progresso que se prende porém a
algumas condições. Quem quiser penetrar a sabedoria do
desígnio divino, medir-lhe a profundidade, é preciso que te­
nha uma alma transformada pelo Espírito: exige-se uma certa
maturidade religiosa. Imperfeitos e indóceis, os coríntios
tornaram-se incapazes de compreender a sabedoria miste­
riosa de Deus (ICor 3,1-3). Conhecimento que é dado
aos perfeitos (ICor 2,6; Flp 3,15; Ef 4,12-13), aos espi­
rituais (ICor 13,1), ou seja: aos cristãos espiritualmente
evoluídos e amadurecidos. Dóceis ao Espírito (ICor 2,
10.15), esses cristãos vivem de acordo com sua fé. Dá-lhes
também o Espírito um conhecimento vivificado pela cari­
dade (Col 2,2-3; ICor 2,6) que lhe possibilita “compreen­
der” as dimensões todas do mistério, e do amor do Cristo
que ele manifesta (Ef 3,14-19; Col 2,2-3), conduzindo-os
a um aprofundamento sempre maior, como que a uma su-
perciência da economia da salvação (Flp 1,9-11). Conheci­
mento que, segundo são Paulo, é de ordem mística. Todo
cristão, porém, é chamado a crescer no conhecimento do
mistério. A sabedoria não é um conhecimento reservado
a alguns iniciados, mas um dom que são Paulo pede para
todos os cristãos (Ef 1,17-18)

6. Revelação histórica e revelação escatológica

Além desse conhecimento de fé e amor, sob a influên­


cia do Espírito, existe outra revelação, a escatológica, que
será plena manifestação e visão (ICor 13,12). Veemente­
mente almeja são Paulo esse apocalipse final. Podemos
perceber em sua consciência como que uma tensão entre
a primeira e a última revelação. Para a compreendermos,
seria preciso referirmo-nos à experiência decisiva de sua
vida: a revelação do Cristo na estrada de Damasco (Gál 1,
16; At 9,3-9). Naquele momento, foi Paulo “tomado pelo
Cristo Jesus” (Flp 3,12); compreendeu que Jesus de Na­
zaré, o Crucificado, está agora na glória exaltado à direita

48 D. Deden, “Le mystère paulinien”, Eph. theol. Ιον., 13 (1936):


418-419, 421; L. Cerfaux, Le chrétien dans la théologie paulinienne,
pp. 461-468.
68 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

do Pai. Paulo foi, então, convertido pela visão dò Cristo


ressuscitado e glorioso ( ICor 15,3-8; 9,1; Gál 1,15-16), do­
tado do poder divino. Foi agraciado com um apocalipse
do Filho de Deus (ITes 1,10; Col 3,3-4), teve de certa
forma uma antecipação da epifania gloriosa do fim dos
tempos49.
Essa experiência fundamental ajuda-nos a melhor com­
preender o contraste que Paulo estabelece entre a revela­
ção da história e a da parusia; aquela, sob véus; esta, glo­
riosa (Flp 2,5-11). Não há dúvida que a revelação que
anuncia é a trazida pelo Cristo da história: é “agora” que
o mistério outrora oculto se revela (Rom 16,25); é “ago­
ra” que se manifesta a justiça de Deus (Rom 3,21); é
“agora” que se realiza a pregação do Evangelho. A revela­
ção que constitui o objeto de nossa fé não é algo que ainda
se espera: realizou-se no Cristo e pelo Cristo. E Paulo,
como os apóstolos, recebeu a missão de anunciá-la. Tanto
mais vivamente, porém, deseja ele a sua revelação escatológi-
ca. Então realizar-se-á na sua plenitude a “revelação de nosso
Senhor Jesus Cristo” (ICor 1,7; 2Tes 1,7). Os homens
hão de assistir ao triunfo do Senhor que, aos olhos de to­
dos, manifestará sua glória de Filho de Deus. E então
aparecerá também a glória de todos que se configuraram
ao Cristo (Rom 8,17-19). Essa tensão entre a história e
a escatologia, entre a economia da palavra e a da visão, da
humildade e da glória, é característica de são Paulo.

7. Finalidade do mistério

A finalidade imediata da revelação do mistério e da


pregação do Evangelho é levar os homens à obediência da
fé (Rom 16,26), “tornar todos os homens perfeitos em’
Cristo” (Col 1,28), edificar “um templo santo no Senhor”,
uma “habitação de Deus, pelo Espírito” (Ef 2,21-22), for­
mar o “corpo de Cristo” que é a Igreja (Ef 1,22;4,16;5,
23.30), o. “homem perfeito” que “realiza a plenitude do
Cristo” (Ef 4,13). Mas, em última análise, como repete

49 L. Cerfaux, Le Christ dans la théologie de S. Paul, pp. 59 e


330-331.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO

continuamente a Epístola aos efésios, a revelação do mis­


tério tem por finalidade “o louvor e a glória da graça”
de Deus (Ef 1,6.12.14; Flp 2,11). Ao apresentar as rique­
zas do mistério (eleição, filiação, redenção), deslumbra-se
são Paulo com a magnificência do plano de salvação (Ef
1,14), obra da infinita sabedoria de Deus (ICor 2,7; Rom
11-13; Col 2,2-3), inaudita manifestação de sua caridade
para com o homem. O mistério revela um abismo de sa­
bedoria e de amor: “Deus, que é rico em misericórdia, mo­
vido pela imensa caridade com que nos amou, restituiu-nos
à vida juntamente com Cristo, justamente quando estáva­
mos mortos pelos nossos pecados... Assim, a bondade que
teve para conosco, em Cristo Jesus, mostrará nos séculos
que hão de vir, as superabundantes riquezas de sua graça”
(Ef 2,4-7; 1,1-14). Desde logo, a resposta a tão grande
sabedoria e tanto amor deverá ser adesão amorosa ao de­
sígnio divino, a exemplo de são Paulo, perpétuo hino de
louvor e de ação de graças.

8. Conclusão
Segundo são Paulo, podemos pois definir a revelação
como a ação livre e gratuita de Deus que, no Cristo
e pelo Cristo, manifesta ao mundo a economia da sal­
vação, isto é: seu eterno desígnio de reunir tudo no Cris­
to, Salvador e Cabeça da nova criação. A comunicação desse
desígnio se faz pela pregação do Evangelho, confiada aos
apóstolos e profetas do Novo Testamento. A obediência
da fé é a resposta do homem à pregação evangélica, sob a
iluminação do Espírito Santo; não é uma exigência tirânica
de Deus, mas uma adesão amorosa ao plano de sua in­
finita sabedoria e caridade. A fé dá começo a um processo
de crescimento contínuo no conhecimento do mistério que
só atingirá seu termo na revelação de visão

IV. EPÍSTOLA AOS HEBREUS

Dirige-se aos judeu-cristãos a Epístola aos hebreus. Quer


demonstrar a excelência de Cristo como Mediador e a su­
perioridade de seu sacerdócio sobre o da Antiga Aliança.
70 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

A demonstração apóia-se num jogo de contrastes ou de


oposições entre ambas as economias. O próprio tema da re­
velação participa desse clima e apresenta-se como um pa­
ralelo entre a revelação da Antiga e à da Nova Aliança. Os
judeu-cristãos, aos quais se dirige o autor, passam por
uma crise de fé e sentem-se tentados a voltar ao culto e
à liturgia dá Antiga Aliança. Por isso as insistentes exorta­
ções à fé, à docilidade, à obediência, à paciência perseve­
rante. Para a história da noção de revelação a Epístola aos
hebreus traz duas novidades: comparação entre a revelação
da Nova Aliança e a da Antiga, grandeza e exigências da
palavra de Deus.

1. Revelação da Antiga e da Nova Aliança

O paralelo entre a revelação em ambas as Alianças


apresenta-se desde o primeiro versículo: “Muitas vezes e
de muitos modos falou Deus aos nossos pais, nos profetas;
nestes últimos tempos, falou a nós no Filho, a quem con­
feriu o domínio de todas as coisas” (1,1-2). Evidencia esse
versículo a autoridade da revelação do N. Testamento, e
também a relação histórica entre ambas as fases da histó­
ria da salvação. Entre ambas as economias há relação de
continuidade (Deus falou), diferença (tempo, modo, me­
diadores, destinatários) e excelência (superioridade da nova
economia)50.
Os elementos de continuidade entre ambas as revela­
ções são Deus e sua palavra, sendo a palavra do Filho a con­
tinuação e a perfeição da palavra cujos instrumentos foram
os profetas. A continuidade transparece nas próprias pa­
lavras: falou Deus. Palavra que, sendo intervenção de Deus
na história para manifestar sua vontade e seu desígnio de
salvação, é palavra de autoridade, que deve ser ouvida com
atenção (2,1;12,25), crida (3,12-19;4,2-3; 10,22.38-39;ll;
13,7-9), obedecida ( 10,36; 11,8; 12,9). A ausência de um

50 Sobre o primeiro versículo da Epístola, cfr. R. Schnackenburg,


“Zum Offenbarungsgedanken in der Bibel”, Biblische Zeitschrift, 1 (1963):
2,13. Sobre a estrutura da Epístola, cfr. A. Vanhoye, La struture litté­
raire de l’épître aux Hébreux (Coll. “Studia Neotestamentica”, Studia I,
Paris-Bruges, 1963).
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 71

complemento direto para o verbo λαλεϊν insiste no caráter


interpessoal dessa palavra: comércio entre Deus e nossos
pais na fé, entre Deus e nós, tendo por finalidade uma
comunhão pessoal. Palavra, enfim, que é essencialmente
histórica (aspecto indicado pelos aoristos), acontecendo em
momentos determinados da duração temporal e dirigindo-
-se a seres cujas decisões livres fazem a história mudar de
rumo. A palavra de Deus no A. Testamento anunciava e
preparava a palavra do Filho, mais eloqüente que o sangue
de Abel (12,24).
Entre a revelação da Antiga e a da Nova Aliança existe
uma continuidade e semelhança, mas também diferença e
superação. Primeiramente diferença de épocas-, o mesmo
Deus, que falara outrora num passado já longínquo, falou-
-nos também nesta etapa final da história em que vivemos,
“no final destes dias”. Em segundo lugar, há diferença nos
modósde revelação: palavra sucessiva, parcial, fragmentá­
rio no Antigo Testamento ( πολυμερώς-), trazendo cada co­
municação apenas uma frase do discurso, não manifestando
senão uma parte do desígnio de Deus; pelo contrário, p'à-
lavra única e total do Filho em o N. Testamento. Palavra
multiforme ( πολυτρόπως-), no Antigo Testamento, sob a for­
ma de promessas, ordens, ameaças; teofanias terríveis ou
familiares; oráculos, sonhos e visões, ritos e instituições.
Essa multiplicidade de formas dissolve-se, em o Novo Testa­
mento, na unidade da pessoa do Filho encarnado, que se
exprime segundo os modos da carne, isto é, por gestos, pa­
lavras, ação. Há uma terceira diferença: os destinatários.
No Antigo Testamento, Deus falara aos Pais, ou seja: ao
povo eleito, aos nossos antepassados na fé, que nos trans­
mitiram as promessas de que eram depositários. Agora, é
a nós que Deus fala, a todos aos quais se dirige o Evan­
gelho do Cristo, pregadores e ouvintes. Quarta diferença:
os mediadores da revelação. De uma parte a multidão dos
inspirados: os profetas e todos aqueles pelos quais Deus
guiara seu povo. O próprio Deus falara neles, depositando
neles sua palavra, usando-os como intérpretes. Doutra par­
te, só o Filho; Filho que se qualifica imediatamente como
herdeiro de tudo, por quem Deus fez os séculos, irradiação
de sua glória, efígie de sua substância ( 1,2-3 ). Filho que
72 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

é o mediador único da Nova Aliança, tanto no plano de re­


velação como do sacerdócio. Ele, em pessoa, é o Revelador
único e definitivo. Dirá são Joao: “A Deus ninguém ja­
mais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que está
no seio do Pai” (Jo 1,18). Ê a pessoa do filho que, em
última análise, constitui a superioridade da revelação nova
sobre a antiga.
O tema da excelência da nova revelação reaparece na
parenese (exortação) do capítulo 2,1-4, que, tendo uma
coloração particular, continua na mesma linha da introdução.
Lá, o paralelo é entre os profetas e o Filho; aqui, entre
os anjos e o Senhor. É a revelação do Antigo Testa­
mento, feita pelo intermédio dos anjos, e a revelação
do Novo Testamento, feita pelo Filho e suas testemu­
nhas. Para mais claramente marcar a mudança de eco­
nomia, de um a outro testemunho, o autor opõe a pala­
vra proclamada por anjos e a salvação proclamada pelo Se­
nhor (2,2-3). O Cristo, de fato, trouxe-nos mais que uma
palavra: a própria salvação inaugurada por sua pregação
mesma. Salvação que, realizada e notificada pelo Senhor,
nos foi atestada pelos ouvintes imediatos do Cristo (2,3;
Lc 1,2), sendo o testemunho deles apoiado pelos sinais da
intervenção divina, prodígios ou acontecimentos extraordi­
nários, obras do poder de Deus, e pelos carismas visíveis
da comunicação do Espírito (2,4). Assim está descrita
toda a economia da revelação nova: a revelação é a palavra
de salvação proclamada pelo Senhor ou Filho, recolhida e
atestada por suas testemunhas imediatas, confirmada pelo
próprio Deus com sinais e carismas.
Outros textos, finalmente, põem em realce o quanto a
revelação veterotestamentária continua ainda presa ao plano
cósmico, ou seja: ligada a um mediador que pertence ao
mundo terrestre (12,21), a fenômenos cósmicos (monta­
nha, fogo, trevas, tempestade; 12,18-21.25-26), a um tem­
plo cósmico e construído (9,1), cuja insuficiência os pró­
prios ritos revelam (9,8-10). A nova revelação, pelo con­
trário, vem do céu (12,22-24), por um mediador celeste,
Jesus (12,24), que inaugura “caminho novo e vivo”, atra­
vés do véu de sua carne (10,20).
Λ REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 73

2. Grandeza e exigências da palavra de Deus

O segundo tema sobre o qual se demora a Epístola aos.


hebreus é o da grandeza e das exigências da palavra de
Deus, sempre numa perspectiva de comparação entre ambas
as Alianças.
No início da Epístola, depois de mostrar por uma
série de contrastes a superioridade de Cristo sobre os an­
jos (1,5-14), o autor tira uma conclusão prática para seus
leitores: a exigência de uma docilidade mais atenta à pala­
vra do Senhor (2,1 ). Devemos obedecer ao Evangelho ainda
mais que à Lei “para que não nos percamos”, isto é,
para que não sejamos excluídos da economia da salvação.
Se, com efeito “toda transgressão e desobediência” à “pa­
lavra promulgada por anjos” teve sua justa retribuição,
como poderiamos fugir ao justo castigo, que nos espera, se
não dermos atenção à salvação promulgada pelo próprio
Senhor? (2,2-3). Se os antigos foram punidos quanto mais
o serão os cristãos infiéis?
A segunda parte da Epístola começa com uma compa­
ração entre a fidelidade de Moisés e a de Jesus. Moisés
foi fiel na casa, ou seja: o povo de Deus, como servo. Jesus
foi fiel enquanto Filho, como quem reina sobre a casa (3,
1-6). O Cristo tem assim direito a uma fidelidade muito
superior à merecida por Moisés, como Filho constituído
sobre a casa. O autor invoca o salmo 95 (3,7-11) para
evidenciar essa exigência; comenta-o (3,12-4,12) tendo em
vista a situação de seus leitores ameaçados, como os he­
breus no deserto, pela tentação da infidelidade. Devido à
sua incredulidade (3,12;3,19), os judeus indóceis (3,18)
não puderam alcançar o repouso da terra prometida (3,19;
4,1; 4,5). Quanto a eles, os cristãos são convidados a en­
trar no repouso do Senhor, contanto, porém, que “ninguém
caia no mesmo exemplo de infidelidade” (4,11;4,6). Pois
a infidelidade não pode contar com a impunidade. Afinal,
a palavra de Deus tem virtudes temíveis. É viva, como o pró­
prio Deus vivo. É ativa, mais cortante que espada de dois
gumes. Aguda, penetra até a divisão da alma e do espí­
rito; discerne e julga as disposições e pensamentos do co-
74 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

ração (4,12-13). “Para ela não existe criatura alguma que


possa ocultar-se à sua vista”: a essa palavra é que será pre­
ciso prestar contas (4,13). “Permaneçamos firmes na nos­
sa profissão de fé” (4,14). Assim termina a exortação para
que sigam docilmente o Evangelho do Cristo, Mediador
fiel, superior a Moisés, superior aos anjos, em sua quali­
dade de Filho.
Assim, na Epístola aos hebreus, apresenta-se a palavra
de Deus com traços que lembram os do Antigo Testamento,
mas com caráter de urgência ainda maior, devido à pre­
sença e à autoridade do Filho. Palavra que é, ao mesmo
tempo, conhecimento da verdade (10,26), ensinamento ou
mensagem (2,1-2), promessa (4,1), lei (2,2). Palavra que
deve ser ouvida com atenção (2,1), crida (3,12), obede­
cida (10,36). Saborosa para quem a acolhe (6,5), terrí­
vel para os que a rejeitam (2,3). Promessa de repouso (4,
1;4,5), pode transformar-se em ameaça (3,8;4,7) e em
juiz (4,13). Ativa (4,12), eficaz (4,13), sempre atual
(3,7;3,15;4,7 ), continuamente ressoa aos ouvidos do cris­
tão, a cada alma clama, num hoje permanente, para en­
trar no repouso de Deus ( 3,7;3,15;4,11 ) 51.

3. Conclusão

Portanto, na Epístola aos hebreus, o termo mais usado


para designar a revelação é palavra. Numa comparação
entre ambas as fases da economia da salvação, a Epístola
põe em evidência a continuidade entre as revelações, ao
mesmo tempo que a excelência da nova revelação, inaugu­
rada pela palavra de salvação do Filho. Palavra que, reco­
lhida e transmitida pelas testemunhas do Senhor, é confir­
mada também pelo testemunho de Deus, mediante sinais e
carismas, Essa excelência exige dos cristãos uma fidelida­
de, uma obediência proporcionadas à sua origem e à supe­
rioridade do Mediador.

51 Seria preciso ir ainda mais longe nessa personificação da palavra


e “ao mesmo tempo subentender o Logos eterno que penetra essa men­
sagem e a anima”? Nada o impede, conforme H. Clavier, “O logos tou
Theou dans l’épître aux Hébreux”, em New Testament Essays (Studies
in Memory of Thomas Walter Manson, Manchester, 1959, pp. 81-93).
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 75

V. SAO JOAO

Nos Sinóticos, nos Atos dos Apóstolos e nas epístolas


de são Paulo, palavra de Deus é a designação que se dá à
mensagem evangélica. A grande novidade de são João é
a equação que estabelece entre o Cristo, Filho do Pai, e o
Logos. O Cristo é a Palavra eterna, subsistente, pessoal;
realiza-se a revelação porque essa Palavra se fez carne para
nos I falar do Pai52.

1. Jesus Cristo, Palavra de Deus e Pilho de Deus

Já conhecia o Antigo Testamento a Sabedoria e a Pa­


lavra. Em Jó, Provérbios, Eclesiástico, e principalmente
no livro da Sabedoria, a Sabedoria está junto de Deus: pre­
side à criação e à organização do mundo (Sab 7-8); tudo
vê, tudo penetra (Sab 9,11), tudo governa (Sab 8,1); ins­
trui os homens (Sab 8,7;9,11), guia (Sab 9,11; 10,10),
protege-os (Sab 9,11) e assiste-os (Sab 9,10); promana
de Deus, é seu reflexo e sua imagem (Sab 7,25-26). O
Antigo Testamento conhecia também a Palavra criadora (SI
33,9) e reveladora, enviada à terra para revelar os segre­
dos de Deus, a ele retornando uma vez cumprida sua
missão (Is 55,10-11). Mas o Antigo Testamento não en­
tendia (e dificilmente o poderia, pelo seu monoteísmo radi­
cal) a Sabedoria e a Palavra de Deus como uma pessoa
realmente distinta. Sob a ação do Espírito, são João reco­
nheceu na pessoa do Cristo histórico essa Sabedoria e essa
Palavra de Deus de que está cheio o Antigo Testamento.
Jesus Cristo é a Palavra eterna de Deus, como criadora e

52 Sobre a função reveladora do Cristo como Logos e como Filho do


Pai, cfr. H. Niebecker, Wesen und Wirklichkeit der übernatürlichen
Offenbarung (Freiburg, Î940); H. Huber, Der Begriff der Offenbarung
im Johannes-Evangelium (Gottingen, 1934); M.-E. Boismard, Le Prologue
de S. Jean (Paris, 1953); J. Giblet, “La théologie johannique du Logos”,
em La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 85-119; G. Kittel, “Wort und
Reden im NT”, Theol. Worterbuch, 4: 100-140; J. Blank, “Der Johan-
neische Wahrheitsbegriff”, Biblische Zeitschrift, 7 (1962): 163-173; K.
Wennemer, “Théologie des Wortes im Johannesevangelium”, Scholastik,
38 (1963), 1-17.
76 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

reveladora, mas enquanto Pessoa. Em Jesus Cristo encon­


tra sua perfeição plena a palavra de Deus que cria o uni­
verso, impõe a lei, anuncia a salvação e interpela a huma­
nidade. Para João o Logos é uma Pessoa, que mantém
com o Pai o mais íntimo comércio, dele distinta, Deus, no
entanto, como ele mesmo, Verbo de Deus, Palavra de Deus
(Jo 1,1). Palavra que, encarnada entre os homens (Jo
1,14) é o Filho do Pai, o Monogenes, unigênito, como
termo que é de uma geração plenamente fecunda. Toda a
revelação refere-a João a esse Filho único que vive no seio
do Pai (Jo 1,18) como a Palavra interior de Deus53. É
em Jesus Cristo que ela se faz ouvir fora e entender pelo
homem.

2. A Gesta do Logos
Apresenta-se o prólogo do Evangelho de são João como
a Gesta do Logos, um resumo da história das manifesta­
ções de Deus por sua Palavra. Podemos distinguir três
etapas nessa economia. A primeira manifestação de Deus
é a criança. “Tudo criaste com tua palavra” (Sab 9,1),
escreveu o autor de Sabedoria. São Paulo, por sua vez,
afirma: “nele foi criado tudo que há. . . tudo foi criado
por ele e para ele” (Col 1,15-16). Em são João encontra­
mos o eco: “Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem
ele, coisa alguma foi feita” (Jo 1,3). Porque o mundo cria­
do pelo Logos (e no Logos, pois Deus vê e concebe tudo
em seu Logos que é a Sabedoria de Deus), a Palavra está
no mundo com seu poder e sua sabedoria. Sendo o mundo o
que foi proferido por Deus, manifesta a presença e as per-
feições invisíveis do Deus que fala. Deveríam, portanto,
os homens reconhecer e glorificar o autor e artífice do mun­
do (Sab 13,1-9; Rom 1,18-23). Mas, de fato, o homem
permaneceu surdo à mensagem da criação. Essa primeira
manifestação de Deus foi um fracasso: “O Logos estava
no mundo, e o mundo por ele foi feito, mas o mundo
não o conheceu” (Jo 1,10) M. Por isso Deus escolheu um
55 S. Lyonnet, “Hellénisme et christianisme”, Bíblica, 26 (1945):
115-132; M.-E. Boismard, Le Prologue de S. Jean, p. 110.
54 Ë a interpretação proposta por M.-E. Boismard, em Le Prologue
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 77

povo e se lhe manifestou pela Lei e pelos profetas; mas


essa revelação, como a primeira, malogrou: “O Logos veio
para sua casa e os seus não o receberam” (Jo 1,11). Fi­
nalmente, depois de ter falado pelos profetas, fala-nos Deus
por seu Filho (Hebr 1,1): “O Verbo se fez carne e ar­
mou sua tenda entre nós” (Jo 1,14). “A Deus ninguém
jamais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que
está no seio do Pai” (Jo 1,18). Jesus Cristo é a Palavra
substancial de Deus, o Filho único do Pai. Realiza-se a re­
velação porque a Palavra se fez carne e assim se tornou
mensagem divina, contando-nos em termos e proposições
humanas os segredos do Pai, principalmente o mistério de
seu amor por seus filhos55. Très elementos fazem de Cristo
o perfeito Revelador do Pai: sua preexistência como Logos
ue Deus (Jo 1,1-2), a encarnação do Logos (Jo 1,14), a
intimidade de vida permanente do Filho com o Pai, antes
e depois da encarnação (Jo 1,18) “. João dá à revelação o
máximo de extensão e de significação justamente porque vê
no Cristo a Palavra encarnada, o Filho que vive no seio
do Pai. O Cristo está ontologicamente qualificado como o
único revelador perfeito: sua missão de revelação baseia-se
na sua própria vida no seio da Trindade. Aquele que, no
seio da Trindade, já é a Palavra e a Sabedoria de Deus, tor­
na-se, na economia concreta da encarnação, fonte de luz e
de verdade para os homens. Dá-nos assim são João a últi­
ma palavra sobre a função de Cristo como revelador.

3. A revelação no vocabulário joanino

Para João o Cristo é a Palavra de Deus: essa novida­


de repercute na própria linguagem e provoca uma reorga-
de S. Jean, (Paris, 1953), p. 114. Outros exegetas, porém, julgam que
nesse versículo está em questão o ministério histórico do Verbo encar­
nado. Segundo Spitta, Zahn, Loisy, a perspectiva histórica já começaria
no versículo 4 do Prólogo; segundo B. Weiss, no versículo 5; segundo
Heitmüller, Bernard, Büchsel, Holzmann, Harnack, W. Bauer, Lagrange',
começaria no versículo 9. Quanto a isso, cfr. R. Schnackenburg, “Lo-
gos-Hymnus und johanneischer Prolog”, Bibl. Zeitschrift, 1 (Í957):
69-109.
55 M.-E. Boismard, Le Prologue de S. Jean, pp. 109-123.
56 J. Alfaro, “Cristo glorioso, Revelador del Padre”, Gregorianum,
39 (1958): 225-226.
78 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

nização dos vocábulos. Com efeito, os termos que tradu­


zem a visão interior de João prendem-se, em sua maioria,
à idéia de revelação: palavra, testemunho, luz, verdade, gló­
ria, sinal, conhecer, saber, ver, manifestar, mostrar, dar a
conhecer, ensinar, testemunhar, dizer, falar, interpretar 57.
Segundo os Sinóticos, Cristo ensina, prega e anuncia
a Boa-nova do Reino. Em João, ele fala, testemunha·, é o
Filho que fala sobre o Pai (Jo 1,18), a Testemunha que
declara o que viu e ouviu no seio do Pai. Por duas vezes
no Apocalipse o Cristo é chamado Testemunha fiel (Apoc
1,5;3,14). A noção joanina de revelação prende-se, pois,
à de testemunho58. O substantivo μαρτυρία retorna 13 ve­
zes e o verbo, μαρτυρείν 33 vezes. Testemunhar é afirmar
a realidade de um fato, dando à afirmação toda a solenida­
de exigida pelas circunstâncias. Um processo, uma contes­
tação, formam o contexto natural do testemunho. No tes­
temunho estão implícitos dois aspetos que podem ser mais
ou menos separados. Há em primeiro lugar uma comuni­
cação referente a acontecimentos dos quais a testemunha
tem conhecimento por experiência. Em segundo lugar, essa
declaração geralmente é feita em função de uma pessoa de­
terminada: a testemunha, com seu depoimento, toma par­
tido a favor ou contra alguém. Em João, testemunhar in­
clui ambos os aspectos. Cristo ao testemunhar declara a ex­
periência de realidades e fatos dos quais só ele tem expe-
57 ’Αποκαλύπτεις não pertence ao vocabulário de S. João. Só apa­
rece uma vez, numa citação de Isaías (Jo 12,38). Em seu lugar, S.
João usa φανεροΰν. (H. Schulte, Der Begriff der Offenbarung im
Neuen Testament, p. 67). Do mesmo modo a noção de testemunho subs­
titui a de Evangelho (D. Mollat, art. “Évangile”, Diet, de spir. 4: 1761).
Nem se encontram os termos χηρύσσειν e εύαγγελίξεσθαι, característicos
da tradição sinótica.
58 Quanto à noção de testemunho em S. João,, podem-se consultar:
I. de LA Potterie, “La notion de témoignage dans S. Jean”, Sacra Pagina
(2 vol., Paris-Gembloux, 1959), 2: 192-208; B. Trépanier, “L’idée de
témoin dans les écrits johanniques”, Rev. de ^Université d’Ottawa, 15 (1945):
27-63; N. Brox, Zeuge und Mürtyrer, pp. 70-106; M. R. Schippers,
Getuigen van Jesus Christus in het Nieuwe Testament (Franeker, 1938);
E. Burnier, La notion de témoignage dans le Nouveau Testament (Lau­
sanne, 1939); Ch. Masson, “Le témoignage de Jean”, Rev. de th. et de
ph., Í950, pp. 120-127; A. Vanhoye, “Témoignage et vie en Dieu selon
le quatrième Évangile”, Christus, n. 6 (abrÜ 1955), pp. 150-171; J.
Guitton, Le problème de Jésus et les fondements du témoignage chrétien
(Paris, 1950), pp. 153-178.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 79
riência (principalmente da vida íntima do Pai e do Filho),
e essa declaração tem caráter solene, jurídico59. O Cristo é
a Testemunha perfeita e seu testemunho apresenta-se como
depoimento público no vasto processo que o opõe ao mun­
do. Em favor de Cristo existem os testemunhos de João
Batista (Jo 1,7), do Apóstolo (Jo 19,35;21,24), da Escri­
tura (Jo 5,39), do Pai (Jo 5,32.37;8,18) e do Espírito
(Jo 15,26). Os homens, contudo, preferem as trevas à
verdade. Os judeus, que representavam o conjunto do mun­
do hostil, confrontados com Cristo rejeitam seu testemunho
e julgam-se a si mesmos. O testemunho de Cristo faz a
discriminação entre os homens (Jo 9,39).
Do mesmo modo, falar tem em João o sentido inten­
sivo de testemunhar e caracteriza a palavra autorizada do
Filho de Deus: “Eu, eu vos digo a verdade que ouvi de
Deus” (Jo 8,40.26.38). Significa o texto que o Cristo
proclama a verdade revelada; sua palavra é, de forma abso­
luta, a palavra de Deus que salva e que julga (Jo 12,
48-49) 60.

4. O Cristo, Testemunha do Pai

O Cristo fala como Testemunha qualificada, pois é a


Palavra de Deus (Jo 1,1-2) e o Filho do Pai (Jo 1,18);
só ele conhece o Pai porque vem de junto dele (Jo 6,46;
7,29;8,55; 16,27;17,8); conhece o Pai (Jo 7,29) como o
Pai o conhece (Jo 10,15), porque está no Pai e o Pai nele
está (Jo 10,30; 17,21.23); ele em Pessoa é a Luz (Jo
1,8;9,5) e a Verdade (Jo 14,6). Pode assim testemunhar
sobre o Pai e sobre a missão de salvação que dele recebeu.
Sua palavra é afirmação de quem viu e ouviu pessoalmente:
“Nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que
vimos, mas vós não recebeis o nosso testemunho” (Jo 3,
11 ). “Eu ensino o que vi junto do Pai” (Jo 8,38). “Aquele
59 Encontramos em S. João todo um vocabulário tomado à lingua­
gem jurídica: convencer, acusar, defensor, julgar, julgamento, testemunhar,
testemunho. A obra de Jesus é apresentada num cenário de contestação
e de defesa (I. de la Potterie, “La notion de témoignage dans S. Jean”,
Sacra Pagina, pp, 195-196).
60 I. de la Potterie, "L’arrière-fond du thème johannique de la
vérité”, em Studia Evangélica (Berlin, 1959), pp.289-290.
80 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

que me enviou é veraz e eu anuncio ao mundo 0 que dele


ouvi” (Jo 8,26.40). “Aquele que vem do céu.; . dá teste­
munho de tudo que viu e ouviu” (Jo 3,32). Quando de
sua paixão, Cristo declara diante de Pilatos: “Para isto
é que vim ao mundo: para dar testemunho da verdade” (Jo
18,37), isto é: para proclamar a revelação definitiva rece­
bida do Pai61. São Paulo refere-se ao belo testemunho
dado por Cristo ante Pilatos (lTim 6,13); os homens, po­
rém, não aceitaram seu testemunho (Jo 3,32;1,11). O
essencial de seu testemunho é que o Cristo é o Filho do Pai,
o Enviado do Pai, o Salvador do mundo e que, pela fé
nele depositada, é que os homens poderão chegar à vida
eterna (Jo 3,16;17,3; IJo 5,10-11). O testemunho pois
é sobre o próprio Cristo, a natureza misteriosa de sua pessoa
e sua missão salvifica62.
Os apóstolos, por sua vez, eles que viveram na inti­
midade do Cristo, que estiveram com ele “desde o começo”,
dão o seu testemunho sobre ele (Jo 15,27). João, que
vira manar a água e o sangue, atesta a salvação realizada
(Jo 19,35-37). Porque vira, ouvira, tocara o Cristo, dá
o seu testemunho sobre o Verbo da vida ( IJo 1,1-5); atesta
“que o Pai enviou o Filho, Salvador do mundo” (IJo 4,14;
Jo 20,30-31).

5. O testemunho do Pai

Testemunha o Filho sobre o Pai que o enviou; diz


as palavras que lhe deu o Pai (Jo 3,34; 17,8; 14,24), e é
válido seu testemunho (Jo 8,13-14). Mas, também o Pai
testemunha em favor do Filho (Jo 5,36; 8,18) e sobre a
missão que o Filho recebera dele (Jo 5,36). De dois mo­
dos testemunha o Pai em favor de seu Filho. Em primeiro
lugar, pelas obras63. Pois o Pai “ ama o Filho e todas as coi-

61 Ibid., 287; N. Brox, Zeuge und Mãrtyrer, p. 76; B. Trépanier,


“L’idée de témoin dans les écrits johanniques”, Rev. de l’Univ. d’Ottawa,
15 (1945): 45-48.
62 I. de la Potterie, “La notion de témoignage dans S. Jean”,
Sacra Pagina, p. 199.
63 Quanto ao testemunho de Deus pelas suas obras, cfr.: A. Vahoye,
“Opera Jesu donum Patris”, Verbum Domini, 36 (1958): 83-92; Id.,
“L’oeuvre du Christ, don du Père”, Rech. de sc. rel., 48 (1960): 377-420;
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 81
sas entregou em sua mão” (Jo 3,35). Principalmente con­
fiou ao Filho o seu poder, para que o Cristo realize as
obras que o Pai faz e seja assim reconhecido como Envia­
do do Pai: “As obras que o Pai me deu para realizar, essas
mesmas obras que faço, atestam, a meu respeito, que o Pai
me enviou” (Jo 5,36; 10,25). As obras do Cristo são ao
mesmo tempo suas obras (Jo 5,36;7,21 ; 10,25) e obras do
Pai (Jo 9,3-4; 14,10) pois o Pai nele está e ele no Pai
(Jo 10,38; 14,10-11 ), e o que é do Pai é também do
Filho (Jo 17,10). O Filho, como o Pai, dispõe da vida,
julga e ressuscita os mortos (Jo 5,25-30). Que assim o
Pai dê ao Filho, que por si mesmo nada pode fazer (Jo
5,30), seu poder e suas obras (Jo 5,36), isso demonstra
uma perfeita união de vontade entre o Pai e o Filho, cons­
tituindo o testemunho do Pai em favor do Filho. É o
Pai que, pelas obras de Jesus, testemunha em favor de
seu Filho.
De outro modo presta o Pai testemunho em favor de
seu Filho: pela atração que exerce sobre as almas e que
lhes possibilita aceitar o testemunho do Cristo: “Nin­
guém pode vir a mim se não o atrair o Pai. .. Todo aquele
que ouviu o Pai e recebeu o seu ensinamento vem a mim”
(Jo 6,44-45). Isaías e Jeremias já anunciavam o dia em
que todos seriam instruídos pelo próprio Deus (Is 54,13;
Jer 31,33s): esse tempo chegou. Deus fala por seu Filho.
Mas, para que dêem adesão à palavra do Filho é preciso
que o Pai arraste os homens e os dê ao Filho. A fé é um
“dom” do Pai (Jo 6,65). Pode assim o Cristo afirmar
que o Pai lhe dá os que acreditam em sua palavra (Jo 6,
39; 10,29; 17,9-11 ). Em sua primeira epístola João fala do
“Espírito que testemunha” e assim dá origem à fé ( ljo 5,6).
Assim, pois, o testemunho, seja interior seja exterior,
ordena-se à fé; é essencialmente um convite para crer. Re­
ceber o testemunho e crer, são praticamente sinônimos (Jo

H. van den Bussche, “La Structure de Jean I-XII”, em L’Évangile de


Jean (Col. “Recherches bibliques”, Louvain, 1958), pp. 88-97; L. Cerfaux,
“Les miracles, signes messianiques de Jésus et oeuvres de Dieu”, em
L’Attente du Messie (Col. “Recherches bibliques”, Louvain, 1958), pp.
131-138.
82 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

3,11-12.33-36) M. E mais, o testemunho é uma ação de


toda a Trindade. É ao Filho, enviado pelo Pai, que com­
pete fazer o Pai conhecido (Jo 1,18) e testemunhar sobre
seu amor ( 1 Jo 4,8-10), pois ele é a Testemunha e a Pala­
vra. O Pai envia seu Filho e confia-lhe todo seu poder
(Jo 3,35; 10,28-29; 13,3); pelas obras que lhe dá, atesta
que o Filho é seu Enviado e, pela atração que exerce, move
os homens em direção ao Cristo. O Espírito, finalmente,
não apenas possibilita a adesão à verdade (IJo 5,5-12),
mas age também nos corações para que continue sempre
ativa a palavra recebida na fé (IJo 2,20-27); é o Espírito
que aplica e interioriza a palavra e o testemunho.

6. O Cristo, Deus que revela e Deus revelado

Para com a revelação e a fé, é inteiramente única a


posição do Cristo. Porque é, em pessoa, a Palavra de Deus,
o Filho do Pai, o Cristo é ao mesmo tempo o Deus que
revela e o Deus revelado. Sua doutrina é de Deus, mas
não como a do profeta que recebe a revelação e a anuncia.
Em nosso caso, a revelação parte do Cristo ao mesmo tempo
que do Pai. Cristo ensina a única religião agradável ao
Pai (Jo 4,23), mas ao mesmo tempo ele é o objeto da
revelação, o Deus revelado. Afinal, o que revela Cristo,
senão o desígnio de Deus, isto é: o próprio Cristo, o Filho
enviado pelo Pai (Jo 5,38), aquele em quem é anunciado
e reconhecido o Deus verdadeiro (Jo 17,3)? O Cristo é
pois, ao mesmo tempo, o Deus que fala e o Deus do qual
se fala, quem revela o mistério e é o próprio mistério.
Não apenas comunica a palavra e a verdade: ele é a Palavra
e a Verdade (Jo l,l;14,5-6), é em pessoa o que ele ensina
e proclama. Por isso são João pode dizer da doutrina de
Cristo o mesmo que afirma de sua pessoa. Devemos crer
no Cristo (Jo l,12;10,26), receber o Cristo (Jo 5,43),
vir ao Cristo (Jo 5,40;6,35.37.44.65;7,37), permanecer no
Cristo (Jo 15,4.7). Da mesma forma, devemos crer em
sua palavra (Jo 5,24), receber suas palavras (Jo 12,48;

64 I. de la Potterie, “La notion de témoignage dans S. Jean”,


Sacra Pagina, p. 202.
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 83
17,8), aceitar o seu testemunho (Jo 3,11), permanecer
em sua palavra (Jo 8,31.51 )65. Tanto quanto a Pessoa
de Cristo, a sua Palavra é vida e verdade (Jo 6,63; 17,17).
Ter fé em Cristo é ao mesmo tempo aderir a ele e à sua
palavra. Crer é receber o Cristo (Jo 5,43), e ao mesmo
tempo reconhecer a veracidade divina (Jo 3,33), tendo
por verdadeiras as afirmações de seu Enviado (Jo 3,36;
14,10; 16,27.30;20,31; IJo 5,10); é aceitar como verda­
deiras a filiação divina do Cristo e sua missão de salvação66.

7. Características da Revelação

A revelação, em são João, apresenta características bem


definidas. Em primeiro lugar, é como que um escândalo,
feita de forma inaudita e inesperada: que a Palavra seja
carne e que o acontecimento da salvação nos seja trazido
por um homem visível, audível, palpável (Jo 1,14; IJo 1,
l-3;4,2-3), tudo isso é desconcertante e escandaloso para a
lógica humana, que se fecha na objeção (Jo 3,9;6,42;7,15.
26.52;8,33.52;12,34).
A palavra do Cristo coloca o homem ante uma opção
decisiva: a favor ou contra a vida. O Cristo veio não para
julgar (Jo 3,17; 12,47), mas para salvar (Jo 3,16-21) e
para dar a vida (Jo 10,10). Sua palavra, porém, sendo
palavra de salvação, traz julgamento e condenação para
quem a recusa: “Se alguém ouve as minhas palavras e não
as guarda, eu não o julgo; que eu não vim para julgar
o mundo, e sim para salvar o mundo. Quem me re­
jeita e não acolhe as minhas palavras tem quem o julgue:
a palavra mesma que eu anunciei há de julgá-lo no último
dia” (Jo 12,47-48). O julgamento é, pois, apenas o re­
verso da salvação oferecida. É menos uma sentença divina
que a revelação do segredo dos corações. São os homens
que se julgam, decidindo-se a favor ou contra o Cristo (Jo
9,39).67 Pelo contrário, quem acolhe o Cristo e acredita em
65 A. Decourtray, “La notion johannique de la foi”, Nouvelle Revue
théologique, 81 (1959): 563.
66 J. Alfaro, “Fides in terminologia biblica”, Gregorianum, 42 (1961):
497-504.
67 D. Mollat, art. “Jugement”, Suppl. Dici, de la Bible, 4:1380.
84 NOÇÃO BÍBLICA DA REVELAÇÃO

sua palavra, está salvo (Jo 3,16-18); torna-se uma nova


criatura (Jo 3,3), um filho de Deus (Jo 1,12), vivificado,
iluminado, santificado, chamado à vida eterna (Jo 3,16),
à visão ( IJo 3,1-2 ).
A revelação, com efeito, é luz e vida. Já no Antigo
Testamento os termos Lei, Sabedoria, Palavra são associa­
dos intimamente à idéia de luz e vida, realidades que per­
mitem seguir o caminho da vida sem tropeços e chegar
assim a Deus, que é a vida do homem (Sab 2,13; 14,18-19;
6,12;7,10.30;3,38;4,3 ). No prólogo joanino o Logos é
Luz e Vida para os homens. O Cristo, que é a Palavra en­
carnada, apresenta-se como a Luz do mundo (Jo 9,5), que
livra de tropeçar no caminho para Deus. “Eu sou a luz do
mundo: quem me segue não andará nas trevas, mas terá a
luz da vida” (Jo 8,12;12,46). O Cristo é a luz que con­
duz à vida. Quem anda no escuro, corre para a morte;
quem, pelo contrário, recebe a palavra do Cristo e vive
conforme, anda no claro e possui a vida: “Quem ouve a
minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida
eterna e não incorre em condenação, mas passa da morte
para a vida” (Jo 5,24). Veio o Filho do Pai “para que
todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida
eterna” (Jo 3,16). O Cristo é o bom Pastor que veio para
que as ovelhas tenham a vida, e vida em abundância (Jo
10,10). Não existe vida fora dele (Jo 6,53). Ora, “nisto
consiste a vida eterna: que te conheçam a ti, único verda­
deiro Deus, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3).
A tragicidade da revelação está em o homem poder fechar
os olhos à luz, não aceitar o testemunho e correr assim para
a ruína (Jo 1,11).

8. Conclusão

João entende a revelação como a Palavra de Deus feita


carne, e por essa carne, palavra e testemunho formulados
humanamente, dirigida imediatamente aos apóstolos e por
eles a toda a humanidade, para atestar a caridade do Pai,
que envia seu Filho entre os homens, para que, acreditan­
do nele, tenham a vida eterna. A fé é resposta ao tes­
temunho exterior do Cristo e, ao mesmo tempo, à atração
A REVELAÇÃO EM O NOVO TESTAMENTO 85

interior do Pai e ao testemunho do Espírito. Dimensão


dupla da única palavra do amor de Deus.

Depois dessa pesquisa na tradição sinótica, nos Atos,


são Paulo e são João, podemos agora tentar uma descri­
ção da revelação tal como aparece nos escritos do Novo
Testamento. A revelação é a ação, sumamente livre e amo­
rosa, pela qual Deus, numa economia de encarnação, já de
alguma forma iniciada no Antigo Testamento (pela instru­
mentalidade da palavra profética), dá-se a conhecer em
sua vida íntima e no desígnio amoroso que eternamente
formou de salvar e reconduzir a si todos os homens pelo
Cristo. Ação que se realiza pelo testemunho exterior do Cristo
e dos apóstolos e pelo testemunho interior do Espírito que
opera internamente a conversão dos homens ao Cristo. Esse
testemunho do Cristo e dos apóstolos é ampliado e con­
firmado pelos sinais de poder. Dessa forma, pela ação
conjunta do Filho e do Espírito, o Pai manifesta e realiza
seu desígnio de salvação.
segunda parte

O TEMA DA REVELAÇÃO
NOS SANTOS PADRES
Num estudo recente sobre Orígenes e a função do
Verbo encarnado \ Marguerite Harl observa que o assunto
tratado “não só ainda não foi estudado em Orígenes, mas
nem sequer foi claramente percebido na história dos dogmas
dos três primeiros séculos. Para bem situar a contribuição
de Orígenes, continua ela, seria preciso escrever, pelo menos
brevemente, uma história da função reveladora do Verbo
encarnado antes de Orígenes. Em parte alguma consegui­
mos encontrar coligidos seus elementos” 2
De fato, os historiadores do dogma, absorvidos por
outros problemas (Trindade, cristologia, soteriologia, teo­
logia sacramental etc.), não chegaram a perceber suficien­
temente a grande importância do tema da revelação na teo­
logia dos très primeiros séculos. Contudo, quem 1er atenta
e objetivamente os santos Padres não poderá fugir à impres­
são de que o tema do Cristo como fonte de conhecimento
ali está onipresente.
Ao examinar a revelação nos santos Padres, sabemos
perfeitamente que seria vão pretender um estudo exaus­
tivo. Além do mais nossa intenção é fazer apenas um re­
conhecimento do terreno. Se com isso não são percebidos
todos os pormenores, pelo menos se notam os conjuntos,
os relevos, facilitando assim as tentativas de aproximação.

1 M. Harl, Origène et la fonction révélatrice du Verbe Incarné


(Paris, 1958).
2 Ibid., p. 24: “non seulement n’a pas encore fait l’objet d’une
enquête chez Origène, mais n’a même pas été clairement remarqué dans
l’histoire des dogmes des trois premiers siècles. Pour mieux situer l’apport
d’Origène, il serait nécessaire d’écrire, au moins brièvement, une histoire
de la fonction révélatrice du Verbe incarné avant Origène. Nous n’en
avons trouvé nulle part les éléments rassemblés”. Cfr. também p. 84:
“Nous avons dû parcourir rapidement trois grandes oeuvres — celles
d’Irénée, de Clement et d’Hippolyte — pour découvrir une doctrine du
Christ révélateur de son Père. Nul ouvrage, malheureusement, ne nous
donne une synthèse sur ce sujet”.
90 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES ι

Nem será possível examinar todos os santos Padres que I


escreveram sobre o tema. Aliás, o que importa é perce- |
ber as orientações mais gerais do pensamento, notar a con­
tinuidade ou descontinuidade, os pontos de partida e de
ruptura; brevemente, estudar os que traçaram rumos. Esses
os que escolhemos, uns vinte autores desde a época apos­
tólica até santo Agostinho3.
É claro que nenhum dos santos Padres pretendeu es­
crever um tratado sobre a revelação, apesar de podermos
muitas vezes encontrar dispersos em seus escritos quase
todos os elementos necessários para uma síntese doútrinal
sobre o assunto. Agrupando, pois, esses elementos, não po­
deremos esquecer os contextos teológicos em que se inse­
rem. Justamente por isso é que nos deixamos guiar antes
pelos próprios autores, pelos temas e vocábulos usados,
que pelas categorias de nossa teologia atual. Isso sem deixar
de interrogar cada um sobre alguns pontos essenciais ao
nosso intento. Para escandir mais claramente as etapas
do pensamento patrístico, terminaremos cada monografia
com um sumário.

3 Além das obras clássicas de A. von Harnack, Lehrbuch der


Dogmengeschichte (Giessen, 1885; 5' ed., Tübingen, 1931), de J. Tixe-
ront, Histoire des dogmes dans l’antiquité chrétienne (Paris, 1930), de
R. Seeberg, Lehrbuch der Dogmengeschichte (Leipzig, 4* ed., 1930-1933),
e os tratados de patrologia de F. Cayré, de J. Quasten e de B. Altaner,
seria bom notar, entre as obras gerais, também as seguintes: D. van
den Eynde, Les normes de l’enseignement chrétien dans la littérature
patristique des trois premiers siècles (Gembloux, 1933); E. Molland,
The Conception of the Gospel in the Alexandrian Theology (Oslo, 1938);
lA.Spaneut, Le stoïcisme des Pères de l’Église (Paris, 1957); J. Daniélou,
Message évangélique et culture hellénistique aux IIe et IIIe siècles (Paris-
-Tournai-New York-Rome, 1961); G.-L. Prestige, Dieu dans la pensée
patristique (Paris, 1955); J. Lebreton, Histoire du dogme de la Trinité
(Paris, 1928).
1.
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS

I. OS PADRES APOSTÓLICOS

Eco direto da Boa-nova, os Padres Apostólicos 1 usam


os termos da pregação primitiva.
1. O autor da Didaché recomenda que ninguém se
separe dos “mandamentos do Senhor” (4,12), mas que
todos sigam “a regra do Evangelho” (11,3) conformando-
-Ihe as ações (15,3-4).
2. Clemente de Roma atesta a fé recebida. Uma das
características de sua Epístola é a fidelidade à herança que
recebera dos apóstolos e que transmite integralmente. O
Cristo é apresentado como o Mestre cujo ensinamento leva
à salvação (36,1), sendo os apóstolos os mensageiros da
Boa-nova por ele anunciada: “Os apóstolos foram-nos en­
viados por nosso Senhor Jesus Cristo como mensageiros da
Boa-nova. O Cristo vem, pois, de Deus, e os apóstolos, de
Cristo: ambas as realidades vêm em boa ordem da vontade
de Deus. Os apóstolos, munidos com as instruções de nosso
Senhor Jesus Cristo e plenamente convencidos de sua res­
surreição, fortalecidos pela palavra de Deus, foram, com
a segurança do Espírito Santo, anunciar a Boa-nova, a che­
gada do Reino de Deus” (42,1-3). Clemente designa pois
o objeto da fé como Boa-nova, instruções de Cristo, palavra
de Deus pregada na força do Espírito.

1 J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers (London, 1889-1890); J.


Lebreton, Histoire du dogme de la Trinité, 2: 249-394; H. Schlier,
Religionsgeschichtliche Untersuchungen zu den Ignatius-Briefen (Giessen,
1929); P. Th Camelot, Ignace d’Antioche et Polycarpe de Smyrne
(“Sources chrétiennes I", Paris, 1951), pp. 7-59.
92 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

3. Policarpo recomenda aos filipenses que marchem


no caminho da verdade traçado pelo Senhor (5,2;4,1), que
sejam “dóceis à palavra da justiça” (9,1)· Insiste: sirva­
mos ao Senhor “como ele mesmo nos mandou, assim como
os apóstolos que nos pregaram o Evangelho e os profetas que
nos anunciaram a vinda do Senhor” (6,3). Abandonemos “as
falsas doutrinas para voltarmos ao ensinamento que nos foi
transmitido desde o começo” (7,2).
4. Pâpias estabelece oposição entre os “mandamen­
tos estranhos” e os “mandamentos dados pelo Senhor, à fé,
nascidos da própria verdade” (Eusébio, HE 3,39,3-4).
5. Inácio de Antioquia está todo impregnado do Novo
Testamento, principalmente de Paulo e João. Vê em Cristo
o conjunto da verdade e da vida, o Mediador da revelação
e da salvação. O Cristo é o Filho que o Pai enviou a este
mundo para manifestá-lo: “não há senão um só Deus, que
se manifestou em Jesus Cristo, seu Filho, que é seu Ver­
bo saído do silêncio” (Magn. 8,2;6,4-2). O Cristo é “a
boca sem mentira pela qual o Pai falou verdadeiramente”
(Rom. 8,2).
Antes ainda de se encarnar, manifestara-se o Verbo
pela criação do mundo (Ef. 15,1); depois, em todo o An­
tigo Testamento: “Os profetas, pelo espírito, eram seus
discípulos, e o ouviam como a seu Mestre” (Magn. 9,1-2;
Filad. 5,2). Essas manifestações orientavam-se para a ma­
nifestação definitiva da encarnação: “Aparecia Deus sob
forma humana para inaugurar a vida eterna” (Ef. 19,3).
“O Evangelho é a consumação da vida eterna” /(Filad. 9,2).
Concisamente declara Inácio que “o conhecimento de Deus
é Jesus Cristo” (Ef. 17,2), indicando assim que o Cristo
é o Mestre único (Ef. 15,1; Magn. 9,1) pelo qual Deus
se nos dá a conhecer.
Ressoa um leitmotiv em todas as cartas de Iná­
cio. É preciso fugir dos hereges e das doutrinas per­
versas (Filad. 2-3; Polie. 3,1; Smir. 4,1). Ou, positiva­
mente, é preciso permanecer firme nos “ensinamentos do
Senhor e dos apóstolos” (Magn. 13,1). Os efésios não
devem ter outro ornato senão os “mandamentos de Jesus
Cristo” (Ef. 9,2). Nesse movimento de fidelidade très
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 93

termos estão correlacionados: O Cristo, os apóstolos, a


Igreja, representada por seu bispo e seu presbitério. É pre­
ciso permanecer “inseparáveis de Jesus Cristo Deus, do
bispo e dos preceitos dos apóstolos” (Tr. 7,1; 13,2). “Sigam
todos o bispo como Jesus Cristo a seu Pai, e o presbitério
como os apóstolos” (Smir. 8,1).
Inácio usa pouco o Antigo Testamento. Percebe po­
rém a unidade profunda entre o Evangelho e. os profetas.
Acorrentado, refugia-se “no Evangelho como na carne de
Jesus Cristo e nos apóstolos como no presbitério da Igreja.
Amamos também os profetas, pois também anunciaram o
Evangelho, esperaram nele (Jesus Cristo) e o aguardaram;
crendo nele, foram salvos e, permanecendo na unidade de
Jesus Cristo, como santos dignos de amor e admiração, re­
ceberam o testemunho de Jesus Cristo e foram admitidos
ao Evangelho de nossa esperança comum” (Filad. 5,1-2).
A revelação abarca toda a “economia. . . referente ao homem
novo, Jesus Cristo” (Ef. 20,1), fonte de salvação para
todos os homens.
Aos judaizantes, que levantam oposição entre os pro­
fetas e o Evangelho e que o subordinam aos arquivos do
Antigo Testamento, Inácio opõe a pessoa de Jesus Cristo
em quem tudo se reduz à unidade, esperança e realização:
“Quanto a mim, meus arquivos são Jesus Cristo; meus ar­
quivos invioláveis são a sua cruz, sua morte, sua ressurrei­
ção e a fé que vem dele” (Filad. 8,1-2). Somente ao Cristo
“foram confiados os segredos de Deus. Ele é a Porta do
Pai, pela qual entram Abraão, Isaac, Jacó, os profetas e os
apóstolos da Igreja. Tudo isso leva à unidade com Deus”
(Filad. 9,1). Para todos o Cristo é o único Salvador e
Revelador.
Estão persuadidos os Padres Apostólicos de que o en­
sinamento da Igreja é de origem divina. O objeto da fé é
a palavra de Deus, o conjunto dos mandamentos e ins­
truções dados à humanidade pelo Cristo, pelos profetas e
pelos apóstolos. Para todos o Cristo é a fonte de onde
jorra o cristianismo, o Mestre único; os profetas são seus
discípulos espirituais; os apóstolos são os pregadores e os
mensageiros de seu Evangelho; a Igreja recolhe e trans­
mite seu ensinamento. Inácio de Antioquia, mais que to-
94 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

dos, vê no Cristo o todo da revelação e o todo da salvação. (


Nele, Verdade e Vida estão inseparavelmente unidas. Na I
encarnação do Filho termina e atinge seu ponto mais alto
a economia da revelação. O Cristo é o conhecimento do Pai.

II. OS APOLOGETAS

Mais o gênero literário que a tradição dá aos apolo-


getas uma unidade2. Procuram nos sistemas filosóficos do
século segundo todos os recursos que pensam poder encon­
trar para apresentar o Evangelho ao mundo helênico, de-
finindo-o em categorias. desse mesmo mundo. Assim, pen­
sam eles, o mistério cristão atingirá essas almas sem as es­
pantar. Ora, um ponto da filosofia da época, do sistema
estóico particularmente, é que o Logos e o Pneuma é Deus
difundido no universo. Por outro lado, a doutrina do Deus-
-Logos está no centro mesmo da teologia joanina. A teo­
logia, pois, dos apologetas será elaborada a partir da teolo­
gia do Logos. Será uma teologia das manifestações do Deus
transcendente pelo Logos criador, revelador e salvador.

1. S. Justino

No pensar de Justino, o Pai, transcendente, incognos-


cível, invisível, age através do Logos: por ele criou o mun-

• 2 J. R. Laurin, Orientations maîtresses des apologistes chrétiens


(Rome, 1954); J. Lebreton, Histoire du dogme de la Trinité, 2: 395-516;
A. Puech, Les apologistes grecs (Paris, '1912); J. Barbel, Christos
Angelos (Bonn, 1941); A. L. Feder, Justins des Martyres Lehre von
Jesus Christus (Freiburg, 1906); J. Daniélou, Message évangélique et
culture hellénistique aux IIe IIIe siècles, pp. 42-50 e 317-328; C. Andre­
sen, Logos und Nomos (Berlin, 1955); R. Holte, “Logos Spermatikos,
Christianity and Ancient Philosophy according to St. Justin’s Apologies”,
Studia theologica, 12 (1958): 109-168; G. Bardy, Athénagore, Supplique
au sujet des chrétiens (‘.‘Sources chrétiennes 3”, Paris, 1943), pp. 7-69;
Id., Théophile d’Antioche, Trois livres à Autolycus (“Sources chrétiennes,
20”, Paris, 1948) pp. 7-56; H. I. Marrou, A Diognète (Sources chrétien­
nes, 33”, Paris, 1951), pp. 5-42; M. Spanneut, Le stoïcisme des Pères
de l’Église (Paris, 1957), G. Aeby, Les missions divines, de saint Justin
à Origène (Fribourg, 1958) pp. 6-24; A. Orbe, Hacia la primera Teologia
de procesión dei Verbo (2 vol. Roma, 1958), pp. 565-603.
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 95
do; por ele se fez conhecer; por ele opera a salvação do
mundo.
Deus criou e organizou o cosmos por seu Logos, e para
esta obra é que Deus o concebeu: “O Filho de Deus, o
único realmente Filho, o Logos com ele existente e gerado
antes de todas as criaturas, quando no começo fez e orga­
nizou tudo” (II Apol. 6,3). A geração prende-se à cria­
ção, deu-se tendo em vista essa criação. Em vários textos,
porém, Justino insiste na anterioridade absoluta do Logos
antes de toda criação: “Como princípio antes de todas as
criaturas, Deus gerou de si mesmo antes de toda criatura
uma certa virtude verbal” (Dial. 61,1). Ou ainda: “Esse
rebento emitido realmente pelo Pai antes de todas as cria­
turas, estava com o Pai e é com ele que o Pai se entretém”
(Dial. 62,4). Parece que para Justino à geração do Logos
é a ação pela qual Deus, antes de criar, por seu poder e
vontade, emite o Verbo como artífice da criação3.
O Logos exerce também uma função religiosa como re­
velador e salvador (II Apol. 6,1-5). Sua ação reveladora,
difundida na humanidade (I Apol. 46,2-5) manifesta-se
mais claramente entre os judeus e nos profetas e é total
somente em Jesus Cristo (II Apol. 10,8; I Apol. 5,4).
Segundo Justino, toda verdade origina-se do Logos ou
Verbo divino. Em cada homem há uma semente, “um ger­
me do Logos”, que lhe permite atingir parcialmente a ver­
dade (kata meros) e exprimi-la (II Apol. 13,5;8,1). Diz
ainda que todos os homens participam do Logos divino (I
Apol. 46,2). Conforme R. Holte, para Justino há uma
distinção entre Spermatikos Logos e spermata tou Logou.
Os germes são uma participação do Logos no espírito hu­
mano; provêm da ação do Logos que fecunda as inteligên­
cias, são as sementes de um conhecimento de grau inferior
que somente o Cristo, Logos encarnado, poderá levar à
perfeição4. Foi devido a essa participação e sementes do
Logos que os filósofos pagãos puderam perceber alguns raios
da verdade merecendo assim o título de cristãos (I Apol.

J G. Aeby, Les missions divines, p. 14; A. Orbe, Hacia la primera


Teologia de la procesión dei Verbo, pp. 568-574.
4 R. Holte, “Logos Spermatikos, Christianity and Ancient Philosophy
according to St. Justin Apologies”, Studia Theologica, 12 (1958): 144.
96 - O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

46,2-3). No entanto, Justino não diz claramente como ele


entende essa ação do Logos spermatikos, que suscita os
germes no espírito. Dá ainda uma explicação de ordem his­
tórica: os elementos de verdade que podemos encontrar nos
filósofos e nos poetas derivam de empréstimos feitos do
Antigo Testamento (I Apol. 44,8-9;59,l ). As mesmas
verdades, pois, provêm de uma dúplice fonte.
Mais ainda se manifesta nos patriarcas e profetas a
ação reveladora do Logos. Justino reconhece o Logos na­
quele que aparece aos patriarcas e com eles se entretém5.
Foi o Logos que apareceu a Abraão junto ao carvalho de
Mambré (Dial. 56,1-2); que lutou com Jacó (Dial. 125,3).
“Foi justamente Jesus que apareceu e falou a Moisés, a
Abraão, afinal, a todos os patriarcas” (Dial. 113,4;37,4;
58,3). Justino chama-o “anjo” de Deus (Dial. 56,4;127,4;
128,1) para marcar bem seu papel de servidor (Dial. 56,
22) que realiza os desígnios do Pai (Dial. 127,l-4;58,3);
denomina-o também “apóstolo”, pois “anuncia tudo que é
preciso saber e é enviado para significar tudo que é anun­
ciado” (I Apol. 63,4-5; Dial. 56,1;67,6;128,2). O Pai,
pelo contrário, é invisível; não pode nem aparecer nem
falar, pois é o Deus transcendente que habita acima do
mundo (Dial. 127,1-4).
Os profetas são as testemunhas de Deus: “viram e
anunciaram a verdade aos homens”. Disseram o que, “re­
pletos do Espírito Santo, tinham ouvido e visto. Para falar
não usaram demonstrações porque acima de qualquer
demonstração eram eles as dignas testemunhas da ver­
dade” (Dial. 7,1-2). O que anunciavam primordialmente
era o Cristo, sua vida terrestre, o mistério da salvação. Para
Justino não há senão um grupo de proclamadores, os pro­
fetas (I Apol. 40,l;52,3;53,2;54,2) e um só objeto de
proclamação: O Cristo e seu mistério (Dial. 14,8;24,2;34,
2;43,1;48,4;63,5;71,2;88,8).
Mesmo sem dizer que as teofanias do Logos no An­
tigo Testemento preparam a teofania da encarnação, Jus­
tino, pondo em evidência a unidade do plano de Deus,
gosta de falar da economia única que abarca as manifesta-

5 G. Aeby, Les missions divines, pp. 6-10.


PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 97
ções do Logos no Antigo e Novo Testamento. “O Pai do
universo tem um Filho, que é Logos, primogênito de Deus
e Deus ele mesmo. Manifestou-se inicialmente sob a forma
de fogo e sob forma incorporea a Moisés e aos outros pro­
fetas; e agora. . . se fez homem, nasceu duma Virgem, se­
gundo a vontade do Pai, para a salvação dos que nele acre­
ditam” (I Apol. 63,15-16). Os filósofos pagãos chega­
ram a alguma verdade, mas não à plenitude da verdade.
“Graças ao germe do Logos neles depositado pela natureza,
podiam confusamente ver a verdade. Mas, uma coisa é
possuir um germe e uma semelhança proporcionada às fa­
culdades, outra, a própria realidade cuja participação e imi­
tação procedem da graça que vem dele” (II Apol. 13,3-6).
Justino faz a distinção entre o pleno conhecimento que o Ver­
bo concedeu gratuitamente, revelando-se no Cristo e o que
de parcial puderam perceber os pagãos pela participação do
Verbo que tinham recebido. Somente o cristão vive “segun­
do o conhecimento e a contemplação do Verbo total, que é o
Cristo” (II Apol. 8,3; 10,2-3). Acentua assim a continui­
dade e universalidade da ação do Logos: antes do Cristo
o Logos age espermaticamente no conjunto da humanidade,
atingindo a plenitude no Cristo. Inicialmenté verdade par­
cial e obscura, depois total e clara.
Pelo Logos encarnado é que. nos vem o conhecimento
do Pai (I Apol. 63,13). Pelo Cristo é-nos dado “aprender
a conhecer tudo do Pai” (Dial. 121,4; I Apol. 13,3).
Assim supera a doutrina cristã toda doutrina humana: “te­
mos todo o Logos no Cristo que por nós se manifestou,
corpo, logos e alma. Os filósofos e legisladores devem à
descoberta e contemplação parciais do Logos todos os prin­
cípios justos que descobriram e exprimiram. Por não te­
rem conhecido o Logos total, que é o Cristo, é que muitas
vezes caíram em contradições” (II Apol. 10,1-3). Os
cristãos possuem em Cristo, de forma eminente, a verda­
de de toda filosofia, que não é senão uma participação do
Logos. Toda verdade é cristã.
É pois o Cristo o nosso “Mestre” (I Apol. 12,9;21,1),
que devemos preferir a todos os didáscaloi (Dial 142,2).
Com as suas “lições”, “preceitos”, seus “ensinamentos”, suas
“maximas” (I Apol. 14,3-4) ele “ilumina” todas as nações
4 - Teoloala da revelação
98 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

(Dial. 122,4). Sua doutrina é doutrina de salvação: o Lo­


gos fez-se homem “para trazer-nos uma doutrina que reno­
vasse e regenerasse o gênero humano” ( I Apol. 23,1-2 ). Dou­
trina que, contida nas Memórias dos apóstolos, “que denomi­
namos Evangelhos” (I Apol. 66,3; Dial. 102,5; 103,6-8; 104,
1), somos convidados a receber na fé, conformando-lhe
nossa vida (I Apol. 61,2;67,3-4). Adesão que se realiza
pela graça, “pois ninguém pode ver ou compreender se
Deus e seu Cristo não lhe dão compreender” (Dial. 7,3).

2. Atenâgoras
I
Atenâgoras acentua que Deus é invisível e incompreen­
sível: somente Deus nos pode ensinar algo sobre Deus
( Leg. VII ). O que ele, Atenâgoras, ensina, não é uma dou­
trina humana, mas uma doutrina “ensinada por Deus”
(Leg. XXXII). Os preceitos cristãos “não são preceitos
humanos, foram proferidos e ensinados por Deus” (Leg.
XI). Isso não quer dizer que Deus não possa ser conheci­
do, até certo ponto, sem a revelação. Atenâgoras reconhece
que o Deus invisível pode, por suas obras, ser conhecido
pela razão (Leg. V). A ordem do universo, manifesta o
criador, artífice e arquiteto da beleza e da harmonia in­
visíveis (Leg. IV. XV. XVI). Paralelamente a este chegar
a Deus por uma demonstração a partir da criatura, Atenâ­
goras admite certo conhecimento popular e intuitivo,
que ele chama de caminho da consciência (Leg. V. XXII).
Ante a revelação, porém, esse conhecimento é débil, incom­
pleto e passível de erro. Os filósofos “conseguiram conce­
ber, mas não encontrar o ser, pois não se dignaram
aprender de Deus o que a Deus se refere, mas de si mes­
mos o quiseram aprender. É por isso que cada um apre­
sentou uma opinião diferente sobre Deus, sobre a natureza,
sobre as formas e o mundo” (Leg. VII).

3. 5. Teófilo de Antioquia

Também ele admite que a razão pode apresentar certa


demonstração da existência de Deus: “pela sua providên-
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 99
cia, por suas obras, deixa-se ver e compreender” (Autol.
I, 5-6). É preciso, porém, uma alma pura e liberta das
paixões (Autol. I, 2). Por enquanto olhos humanos não
podem ver a Deus claramente: para chegar à visão é pre­
ciso passar pela fé e provar a morte (Autol. I, 7).
Pela mesma razão que Justino, Teófilo de Antioquia
atribui as teofanias ao Logos do Pai. “Deus, o Pai do uni­
verso, não pode estar contido num lugar; pois não existe
onde se retire para descansar. Mas seu Verbo, pelo qual
tudo fez, que é seu poder e sua sabedoria, assume o papel
do Pai e do Senhor do universo, ele é que estava no pa­
raíso, representava a Deus e entretinha-se com Adão” (Autol.
II, 22). As teofanias não podem ser atribuídas ao Pai,
que transcende o espaço e o lugar. É o Logos, o Verbo de
Deus, o intermediário entre ele e o mundo. Por ele Deus
tudo criou, ele é que aparece aos homens como represen­
tante do Pai. Teófilo compreende as teofanias do Logos
como uma missão que tem sua origem na geração do Filho. É
o Pai que envia o Filho quando quer, pois que o gerou quan­
do quis6. “Assim, o Verbo sendo Deus e de Deus nascido,
o Pai de todas as coisas, quando quer o envia a um lugar
determinado. Quando ele se apresenta, pode ser ouvido e
visto, enviado que é de Deus, num lugar concreto” (Autol.
II, 22).
Teófilo insiste na importância dos profetas na eco­
nomia da revelação. “Os profetas. . . foram instruídos por
Deus”, foram os “órgãos de Deus” (Autol. II, 9). Comu­
nicam-nos “os ensinamentos das santas vontades de Deus”
(Autol. II, 14). Somente os cristãos possuem de fato a
verdade, porque foram “instruídos pelo Espírito Santo, que
falando nos santos profetas, tudo predisse” (Autol. II, 33).
Foi para ajudar-nos a mais bem conhecê-lo que “Deus nos
deu uma lei e santos mandamentos” (Autol. II, 27) e colo­
cou-nos “na escola dos santos profetas” (Autol. III, 17).
Também podemos ouvir “a voz do Evangelho” que “nos en­
sina” (Autol. III, 13). Vamos pois “à escola dos pre­
ceitos divinos” antes que à dos “autores profanos” (Autol.
III, 17).

6 G. Aeby, Les missions divines, pp. 16-20.


100 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

4. Epistola a Diogneto'

Conforme o autor da Epístola a Diogneto os cristãos


não são “defensores de uma doutrina humana”, de origem
terrestre (V, 3): sua fé vem do próprio Deus que “entre
os homens estabeleceu a Verdade, o Logos santo e incom­
preensível” (VII, 1-2). É de Deus esse primeiro passo
gratuito e amoroso: “ele mesmo é que se manifestou” (VIII,
5-6). Opõe-se a esse conhecimento de Deus a impotência
da razão humana, incapaz de se elevar a uma válida com­
preensão da natureza divina. O autor não chega a negar a
possibilidade de certo conhecimento de Deus pelas forças
naturais da razão: fala antes de uma impotência experimen­
tal; de fato, os caminhos humanos não chegam ao termo.
Só a revelação pode dar um conhecimento autêntico de Deus.
O revelador é o Logos, o Filho (IX, 4), o Filho de
Deus (X, 2), o Monogenes, Logos e Verdade (VII, 2), é
sua missão entre os homens revelar o autêntico e pleno co­
nhecimento de Deus (VIII, 1-5). A epístola de tal forma
concentra no Logos a ação reveladora que deixa na penum­
bra o papel dos profetas e do conhecimento natural. O Lo­
gos ensina a verdade a todos que o escutam (XI, 2). Veio
ao mundo para comunicar aos homens o “conhecimento dos
mistérios do Pai”; ele que, desprezado por seu povo, “foi
anunciado pelos apóstolos e crido pelas nações” (XI, 2-4).
Veio desvendar o desígnio de salvação concebido nas pro­
fundezas secretas de Deus (VIII, 9-11), fruto de seu amor
e de sua misericórdia (VII, 3-5). Vindo ele, começou para
a humanidade uma era de justiça ( IX, 1 ). Pela fé conhece­
mos a Deus de uma maneira completa e eficaz (VIII, 6; IX,
6; X, 1). Se alguém se espanta de a revelação ter vindo tão
tarde, responde o autor que a revelação se realiza no tempo,
mas realiza um desígnio eterno do coração de Deus (VIII,
9 ). Principalmente, era preciso que a humanidade, mergulha­
da cada vez mais no mal, experimentasse sua impotência
de chegar por si mesma à salvação, reconhecida ao mesmo
tempo como urgente e gratuita (IX, 1-2,6).
PRIMEIRAS TESTEMUNHAS 101
A Epístola insiste na continuidade entre a missão do
Logos e a missão da Igreja. O que o Verbo ensinou, e os
apóstolos receberam, continua na Igreja. Λ Igreja aumenta
graças à revelação e, pela Igreja “a graça dos profetas é re­
conhecida, firmada a fé nos Evangelhos e conservada a tra­
dição dos apóstolos” (XI, 6). A Igreja é o lugar privilegiado
onde se prolonga entre os homens a ação do Logos salvador
e revelador. Suas normas são a Lei, os Profetas, os Evan­
gelhos, a tradição dos Apóstolos (XI, 6).

Mesmo reconhecendo à razão humana o poder chegar


a certo conhecimento de Deus e caprar elementos de ver­
dade moral e religiosa, os apologetas concluem ser necesr
sária a revelação para chegarmos a um. conhecimento autên­
tico do Deus incognoscível e transcendente. É pelo Logos
que o Pai é manifestável e manifesto. A não ser Justino,
os apologetas falam mais do Logos que do Cristo. Sua ação
começa na criação. Depois de se ter dirigido aos patriarcas
e, aos profetas para instruí-los, o Logos manifestou-se ple­
namente pela encarnação, manifestando aos homens os mis­
térios e segredos do Pai, seu plano de salvação, ensinan­
do-lhes a doutrina e os preceitos divinos. Dirigindo-se ao
mundo dos intelectuais, inclinam-se os apologetas a consi­
derar a revelação como a comunicação de uma filosofia
superior, o dom da verdadeira doutrina, da verdade abso­
luta. O Logos dos apologetas é o Mestre, o Didáscalos
por excelência; os cristãos são discípulos que se ligam à
sua escola. Sua doutrina, porém, e nisso insistem os apolo­
getas, é uma doutrina de salvação, dom do Pai das miseri­
córdias, doutrina que conduz à vida eterna os que a recebem
na fé. É variável o papel que os apologetas atribuem aos pro­
fetas e aos apóstolos. A maioria confere aos profetas um lugar
privilegiado: Justino, Atenágoras, Taciano, Teófilo de An­
tioquia. Não que os coloquem acima dos apóstolos, mas
vêem na antiguidade e no cumprimento das profecias um
argumento apologético importante. O verbo κηρύσσειν, em­
pregado quase tecnicamente em o Novo Testamento para
indicar o testemunho dado pelos apóstolos em favor de
102 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

Cristo, chega em Justino a caracterizar o anúncio de Cristo


pelos profetas. Mas nem por isso os apóstolos são esque­
cidos. Justino e a Epístola a Diogneto dão-lhes o papel
que lhes compete, situando-os em relação a Cristo e aos
profetas. Sua ação, porém, é descrita menos freqüentemen-
te. Quanto à Igreja, compete-lhe receber, conservar, pre-
sencializar também o ensinamento de Cristo, dos profetas
e dos apóstolos.
2.
SANTO IRINEU

A obra de Santo Irineu 1 insere-se num contexto de


polêmicas antignósticas. Os sequazes de Ptolomeu e Mar-
cião fazem do Cristo o revelador de um Deus desconheci­
do no Antigo Testamento: teria o Cristo revelado um Deus
distinto do Deus da Lei e dos Profetas. Pelo contrário,
Irineu declara que Deus é uno, una a economia da reve-
1 Sobre Irineu e o tema de revelação, consultamos estas obras e estes
artigos: F. Sagnard, Irénée de Lyon, Contre les hérésies, L. Ill (“Sour­
ces chrétiennes 34”, Paris, 1952), pp. 9-85; L. M. Froidevaux, Irénée
de Lyon, Démonstration de la prédication apostolique (“Sources chrétien­
nes 62”, Paris, 1959); J. Lebreton, Histoire du dogme da la Trinité,
2: 517-617; Id., “La connaissance de Dieu chez S. Irénée”, Rech. de sc.
rel., 16 (1926): 385-406; A. Benoit, Saint Irénée, Introduction à l’étude
de sa théologie (Paris, 1960); A. Houssiau, La christologie de S. Irénée
(Louvain, 1955); Id., “L’exégèse de Mt. 11,27b selon S. Irénée”, Eph.
theol. lov., 29 (1953): 328-354; J. Ford, St. Irenaeus and Revelation,
A Theological Perspective (Dissertatio ad lauream, Romae, 1961); G. Aeby,
Les missions divines, de Saint Justin à Origène (Fribourg, 1958); J.
Daniélou, Message évangélique et culture hellénistique aux IIe et IIIe
siècles (Paris-Tournai-New York-Rome, 1961); F. Hitchcock, Irenaeus
of Lugdunum, A Study of his Theology (Cambridge, 1914); L. Escoula,
“Le Verbe sauveur et illuminateur chez S. Irénée”, Nouvelle Revue
Théologique, 66 (1939): 385-400, 551-567; Id., “Saint Irénée et la
connaissance naturelle de Dieu”, Revue des sc. rel., 20 (1940): 252-271;
R. D. Luckhart, “Matthew 11,27 in the Contra Haereses of St. Irenaeus”,
Rev. de l'Université d’Ottawa, 23 (1953): 65-79; B. Reynders, “Para-
dosis, Le progrès de l’idée de tradition jusqu’à S. Irénée”, Rech. de théol.
anc. et méd., 5 (1933): 155-191; H. Holstein, “La tradition des apôtres
chez S. Irénée”, Recherches de sc. rel., 36 (1949): 229-270; Id., “Les
témoins de la révélation d’après S. Irénée “Rech. desc. rel., 41 (1953):
410-420; D. E. Lanne, “Le ministère apostolique dans l’oeuvre de S. Iré­
née”, Irenikon, 25 (1952): 113-141; J. Daniélou, “S. Irénée et les
origines de la théologie de l’histoire”, Rech. de sc. rel., 34 (1947):
227-231; K. Prümm, “Gottliche Planung und menschliche Entwicklung
nach Irenaus Adversus Haereses”, Scholastik, 13 (1938): 206-224, 342-366;
A. Verrièle, “Le plan du salut d’après S. Irénée”, Rev. des sc. rel.,
14 (1934): 493-524; Th. A Audet, “Orientations théologiques chez S.
Irénée”, Traditio, 1943, pp. 15-54; H. de Lubac, Catholicisme (Paris,
104 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

lação pois é um só e o mesmo Verbo de Deus que preside


à revelação do Antigo e do Novo Testamento. Em Santo
Irineu o tema da revelação é conexo com o tema mais vasto
ainda da ação do Verbo na obra da Salvação. Vê o Verbo em
ação desde a aurora da humanidade. Sob sua direção a huma­
nidade nasce, cresce e amadurece até à plenitude dos tem­
pos; pela encarnação do Verbo e sua obra redentora, tor-
na-se corpo do Cristo, com ele e nele encaminha-se para a
visão do Pai ( IV, 38,3 )2.
Pois que impossível conhecer a Deus sem Deus, o
Verbo de Deus é que ensina a humanidade a conhecê-lo
(IV, 5,1;6,4). É no comentário a Mt 11,25-27 que'· Irineu
exprime o que pensa sobre a ação reveladora de Deus e
sobre os fundamentos trinitários dessa ação3. “Ninguém
pode conhecer ao Pai a não ser pelo Verbo de Deus, isto é,
se o Filho não o revela. Nem se pode conhecer o Filho
se não ao bel-prazer do Pai. O Filho realiza o beneplácito
do Pai. O Pai envia, o Filho é enviado e vem. E o Pai,
invisível e indelimitável para nós, é conhecido por seu pró­
prio Verbo, que nos dá a conhecê-lo, o inefável. De seu
lado, o Pai é o único a conhecer seu Verbo. É por isso que
por sua própria manifestação o Filho revela o conhecimento
do Pai. Realmente, a manifestação do Filho é conhecimento
do Pai, pois tudo é manifestado pelo Verbo” (IV, 6,3).
O Pai manifesta-se aos homens “tornando seu Verbo visí­
vel para todos; por sua parte o Verbo, sendo visto por
todos, a todos mostrava o Pai e o Filho” (IV, 6,5). A
ação do Pai que envia o Filho é, pois, o ponto de partida
da revelação. Vindo a nós, o Filho revela-se a si mesmo e,
visível, manifesta o Pai. “Pelo Verbo, feito visível e pal-

1938); R. Wilson, The Gnostic Problem (London, 1958); A. Orbe,


Hacia la primera Teologia· de la Procesión del Verbo (Roma, 1958); J.
Ochagavía, Visibile Patris Filius (Col. “Orientalia Christiana Analecta”,
171, Romae, 1964).
2 A menos que se indique o contrário, as citações referem-se ao
Adversus Haereses. A abreviação Dem. indica Démonstration de la pré­
dication apostolique.
3 Sobre esse texto, cfr. principalmente:. A. Houssiau, La christologie
de S. Irénée, pp. 72-73, 109-114, 127-128; Id., “L’exégèse de Mt. 11,27b
selon S. Irénée”, Eph. theol. lov., 29 (1953): 328-354; G. Aeby, Les
missions divines, de Saint Justin à Origène, pp. 51-53.
SANTO IRINEU 105
pável, mostra-se o Pai. Pois o Pai é o que há de invisível
no Filho e este, o que há de visível no Pai” (IV, 6,6). O
Filho não apenas propicia o conhecimento do Pai; é a
manifestação viva do Pai. Não que o Filho seja natural­
mente visível: ele é invisível por natureza, como o Pai.
A encarnação porém, torna-o visível (Dem. 84), possi­
bilitando-lhe, de múltiplas formas, manifestar o Pai (IV,
6,6). Irineu considera, pois, a revelação como a epifania
do Pai através do Verbo encarnado. O Cristo ou o Ver­
bo encarnado é o que se pode ver e atingir, que mani­
festa o Pai; este é o invisível que manifesta o Filho que
se fez visível. Como se vê, Irineu continua com linguagem
de Jo 1,18 e de IJo 1,1-3.
Irineu admira a maravilhosa unidade e progressão do
plano de revelação. Com o Verbo encarnado culmina um
processo que se desenvolve desde a origem do mundo: ini­
cialmente pela obra da criação, depois pela Lei e pelos
profetas, finalmente pela encarnação (IV, 6,6; Dem 6).
Pois que o Verbo está eternamente presente junto ao Pai,
está presente à humanidade desde o começo a dispensar
continuamente as graças e os mistérios do Pai (III, 11,1).
“O Filho, desde o início junto ao Pai, desde o início é o
revelador” (IV, 20,7). Essa revelação do Pai pelo Verbo
realiza-se progressivamente. Quer Deus dar-se a conhecer
porque é bom e porque o homem precisa desse conheci­
mento para viver. É, porém, o homem frágil demais para
suportar a visão de Deus (IV, 20,5). Bom pedagogo, Deus
educa a humanidade. Irineu compara a ação do Verbo à
amamentação que habitua o homem a comer e a beber
o Verbo de Deus e prepara-o para assimilar o pão de imor­
talidade que é o Espírito do Pai. “Diria alguém: Por que
Deus não fez o homem perfeito desde o começo? Saiba
que Deus é sempre o mesmo, incriado e, considerado em
si mesmo, tudo lhe é possível. . . Do mesmo modo que
uma mãe não pode dar um alimento perfeito a seu filhinho,
que seria incapaz de suportar esse alimento sólido, assim
Deus; teria podido oferecer a perfeição ao homem desde o iní­
cio, mas o homem não a teria podido suportar: era afinal uma
criança. Por isso nosso Senhor veio nos últimos tempos, reca-
pitulando em si tudo, não como lhe seria possível, mas como o
106 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

poderiamos ver. Com efeito, podería ter vindo em sua glória


inefável, cuja grandeza, porém, não poderiamos suportar. . .
Era preciso que o homem primeiro fosse feito; feito, chegasse
à idade madura e se fortalecesse; fortalecido, crescesse em for­
ça; crescido em força, fosse glorifiçado; e uma vez glorificado,
visse seu Senhor” (IV, 38,1). Pela presença cada vez mais
viva de seu Verbo entre os homens, Deus os vai prepa­
rando para que o vejam ( IV, 20,5 ). Ambos os Testamentos
representam dois momentos na educação da humanidade.
Inicialmente o Verbo forma a humanidade por uma disci­
plina exterior: é a Lei. Uma vez formada e capaz de agir
livremente, liberta-a da escravidão e dá-lhe a adoção filial:
é o Evangelho (IV, 9,1 ; 11,1 ;20,10;36,4)4.
A correlação entre ambos os Testamentos está situa­
da também na perspectiva da economia ou do plano salvifico
concebido e realizado por Deus numa história culminada
no Cristo. Desde Abraão até o Cristo e os apóstolos, é o
mesmo Deus que age, faz suas promessas e as cumpre (IV,
7,3), seguindo um plano simultaneamente uno e multifor­
me (III, 12,11). Processa-se a revelação “segundo um en-
cadeamento, uma harmonia, nas épocas propícias”; desen­
rola-se “em mil economias providenciais” (IV, 6,7). Com
efeito, a economia geral da salvação diversifica-se em vá­
rias economias parciais que vão balizando sua realização,
economias diversas que, por sua vez, dependem da eco­
nomia universal. “Não há senão um só e mesmo Deus que,
do começo ao fim, em várias economias, vem socorrer o
gênero humano” (III, 12,13). O único Deus, por seu
único Verbo, realiza um único plano de salvação, desde a
criação até o fim (III, 16,6). A história da salvação é una.
A criação é a primeira etapa da revelação. Quando
afirma o Cristo que ninguém conhece o Pai senão o Filho
e aqueles a quem o Filho o revelou (Mt 11,27) isso vale
para todos os tempos, antes e depois da encarnação. “Não
fala no futuro, como se o Verbo tivesse começado a manifes­
tar o Pai quando nasceu de Maria, mas está presente à tota­
lidade do tempo. Com efeito, desde o início presente na

4 J. Daniéloü/ Message évangélique et culture hellénistique aux


IIe et IIIe siècles, p. 159.
SANTO IRINEU 107
criação, o Filho revela o Pai para todos, a quem ele quer
quando quer e como quer” (IV, 6,7). “Já pela criação
o Verbo revela o Deus criador; pelo mundo, revela o Se­
nhor construtor do mundo; pelas obras, o artífice; pelo
Filho, o Pai” (IV, 6,6; II, 6,1;27,2; III, 25,1; V, 18,3).
Não diz Irineu se esse testemunho que o mundo criado
presta a Deus é perceptível pela simples razão. Do ângulo
sob o qual considera as coisas, trata-se de um conhecimento
de caráter religioso, de uma manifestação que tem como
conseqüência salvação ou julgamento (IV, 6,5-6;20,7 ).
“Também pela Lei e pelos Profetas o Verbo procla­
mava-se a si mesmo e ao Pai” (IV, 6,6;9,3). Como Justino
e Teófilo de Antioquia, Irineu atribui as teofanias ao Verbo
de Deus. Apenas criado o homem, o Verbo começa a lhe
aparecer e ensinar (Dem. 12). Pelo Verbo é que Abraão
conheceu o Pai (IV, 7,1.3); o Verbo falou a Moisés (IV,
5,2). Todos que, desde o princípio, conheceram a Deus e
profetizaram a vinda do Cristo receberam do Filho essa re­
velação (IV, 7,2). O Filho de Deus “ora se entretém
com Abraão, ora com Noé. . . ora procura Adão ou vem
julgar os sodomitas; aparece conduzindo Jacó em . sua viagem
ou fala a Moisés na sarça” (IV, 10,1). Éo Filho que apa­
rece, não o Pai: “Todas as visões desse tipo indicam o
Filho de Deus falando e conversando com os homens, pois
não é o Pai de todos e o Criador do universo. . . que veio
falar com Abraão nesse recanto da terra, mas o Verbo de
Deus que sempre estava com o gênero humano e que de
antemão anunciava os acontecimentos futuros, ensinando
aos homens as coisas de Deus” (Dem. 45). Em Justino
as teofanias queriam demonstrar a distinção entre o Pai e
o Verbo. Em Irineu elas têm por finalidade estabelecer,
contra os marcionitas, a unicidade de Deus e unidade do
plano divino num e noutro Testamento. Revela-se Deus
não apenas a partir dos tempos de Tibério, mas desde a
aurora da humanidade. Pelas teofanias habitua-se a viver
entre os homens: “Desde os princípios o Verbo acostuma-
-se a subir e a descer pela salvação dos que estão enfer­
mos” (IV, 12,4; Dem. 45). Esse acostumar-se tornar-se
perfeito na encarnação que é a adaptação de Deus ao
homem e do homem a Deus — “O Verbo fez-se filho
108 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

do homem para acostumar o homem a acolher a Deus e


para acostumar Deus a permanecer no homem segundo o
beneplácito do. Pai” (III, 20,2). Dum lado temos Deus
que desce, pelas teofanias e pela encarnação; doutra parte,
o homem que, educado pelo Verbo, sobe até Deus. O An­
tigo Testamento prepara a natureza divina para se unir à
natureza humana, e prepara a natureza humana para a união
com a divina. As teofanias são verdadeiras antecipações da
encarnação; continuam, porém, simples esboços da suprema
revelação, esboços do futuro (IV, 20,10-11); visões par­
ciais do Verbo de Deus que se torna visível sb na encarna­
ção, e mesmo então velando sua glória5. Profetas e pa­
triarcas estão na mesma situação — Ezequiel, Elias, Moisés
não viram a face de Deus, mas apenas sinais que indicavam
sua presença, anunciando uma presença maior ainda (IV,
20,9-10), a presença humana do Verbo. A própria profecia é
um anúncio das realidades futuras (IV, 20,5) e ao mesmo
tempo uma preparação da humanidade para a vinda do Verbo
de Deus na carne (IV, 20,8).
Essa manifestação de Deus, por seu Verbo na histó­
ria, faz a unidade de ambos os Testamentos. “Ambos os
Testamentos foram firmados por um mesmo Pai de fa­
mília, nosso Senhor Jesus Cristo, que se entreteve com
Abraão e Moisés e que, nesses últimos dias, deu-nos a liber­
dade” (IV, 9,1). Os profetas anunciaram o Cristo e o
Evangelho que viria (IV, 34,1); os apóstolos proclama-
ram-no (IV, 36,5). “Não era um Deus que inspirava aos
profetas e outro que inspirava aos apóstolos. . . mas um só
e mesmo Deus dava a uns anunciar o Senhor; a outros, dar
o Pai a conhecer; a outros, proclamar antecipadamente a
chegada do Filho de Deus; a outros, enfim, anunciar sua
presença aos que estavam longe” (IV, 36,5).
Unidade dos Testamentos, mas que diferença também
entre o Cristo anunciado pelos profetas e o Cristo dado e pre­
sente! O Antigo Testamento é apenas uma promessa, um
anúncio; o Novo, é a realização, o auge, o dom do Verbo
encarnado. A quem dissesse: “Se o Antigo Testamento já
conhecia o Verbo, em que consiste » novidade do Novo

5 G. Aeby, Les missions divines, de Saint Justin à Origène, p. 56.


SANTO IRINEU 109

Testamento?” Responde Irineu: Vindo o Filho, “deu-nos


toda a novidade, dando-se a sim mesmo, ele. . . que iria
renovar e vivificar a humanidade. Os servos enviados diante
do Rei anunciam sua chegada, para que os súditos pos­
sam preparar-se para receber seu Senhor. Mas, quando o
Rei chegou, quando seus súditos. . . dele receberam a alfor­
ria, quando contemplaram sua face, quando ouviram suas
palavras e gozaram de seus dons, já não se pergunta o que
o Rei trouxe a mais que seus precursores que o anuncia­
ram. Ele deu-se a si mesmo” (IV, 34,1). A encarnação é
o ponto culminante da contínua intervenção do Verbo. “O
Verbo que está junto de Deus desde o princípio (Jo 1,1),
por quem tudo foi feito (Jo 1,13) e que continuamente
dá assistência ao gênero humano, esse mesmo Verbo, nos
uitimos tempos, no momento prefixado pelo Pai, uniu-se à
obra por ele modelada, tornou-se capaz de sofrer” (III,
18,1; IV, 41,4). A encarnação é uma nova teofania do
Verbo de Deus; traz como progresso a presença humana
e carnal do Verbo, feito visível e palpável entre os homens,
para manifestar o Pai que continua invisível (IV, 24,2).
A vida humana do Verbo é a novidade do cristianis­
mo: não se trata de um novo Deus, mas de uma nova
manifestação de Deus em Jesus Cristo. Antes da encarna­
ção os homens conheciam o Verbo encarnado apenas obs­
cura e veladamente, percebendo só imagens de sua pre­
sença humana. O Antigo Testamento era dirigido pelo
Verbo, que porém, se tornaria visível e palpável somente
pela encarnação6. Desta novidade fundamental procedem
todas as outras, pois a presença do Verbo encarnado é fonte
de novas graças (III, 10,2; IV 36,4). É sempre o mesmo
Deus “que tem sempre cada vez mais a dar aos de sua casa, e
que de fato cada vez mais lhes dá na medida em que pro­
gridem no amor de Deus” (IV, 9,2). A encarnação inau­
gura nova etapa na aquisição da semelhança divina. O Ver­
bo, que fizera o homem à sua imagem, vem restaurar sua
obra desfigurada pelo pecado; mostra “com toda a verda­
de, essa imagem, tornando-se ele mesmo o que era sua
imagem, isto é, homem”. Imprime “profundamente essa

6 A. Houssiau, La christologie de S. Irénée, pp. 127-128.


110 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

semelhança, tornando o homem semelhante ao Pai invisível,


por meio do Verbo visível” (V, 16,2). Com o dom de
Cristo, toda a humanidade, e não apenas Israel, passa da
lei da escravidão à lei da liberdade (IV, 13,2;9,1).
O resultado da ação reveladora é a doutrina ensinada
pelo Cristo, pregada e transmitida pelos apóstolos, conser­
vada na Igreja. Os termos revelação, pregação, tradição,
Igreja, sempre presentes na obra de Irineu, têm entre si
estreita correlação que devemos definir.
O Verbo de Deus sendo o único Revelador, é também
nosso único Mestre. O título dá realce à veracidade e au­
toridade do Verbo. “Não teríamos podido conhecer as coi­
sas de Deus se nosso Mestre não se tivesse feito homem,
mesmo continuando Verbo. Pois, se ninguém nos poderia
revelar a realidade do Pai a não ser seu Verbo. . . tam­
bém não poderiamos aprendê-las a não ser vendo nosso Mes­
tre e ouvindo o som de sua voz (V, 1,1; III, 18,7).
É por todos os meios da encarnação, tanto pela pa­
lavra como pelos atos que o Cristo nos revela o Pai.
Mas o Cristo não escreveu: agiu e ensinou. Os após­
tolos são os intermediários entre o Cristo e a Igreja, pois
a eles é que oficialmente confiou sua mensagem (I, 27,2;
IV, 37,7). “Os apóstolos transmitiram a todos, pura e sim­
plesmente, o que eles mesmos tinham aprendido do Senhor”
(III, 14,2). Inicialmente transmitiram um Evangelho vivo,
depois consignado por escrito no Evangelho tetramorfo “que
conserva um só Espírito” (III, 11,8). O Mestre de tudo,
deu aos seus apóstolos o poder de pregar o Evangelho.
Por seu intermédio é que conhecemos a verdade, isto é, o
ensinamento do Filho de Deus... Este Evangelho, eles
inicialmente o pregaram. Depois, por vontade de Deus,
no-lo transmitiram nas Escrituras para que se tornasse a
base e a coluna de nossa fé” (III, 1,1). A função dos
apóstolos, testemunhas do Verbo, é pois pregar e trans­
mitir a doutrina do Cristo ou o Evangelho (III, 1,1; II,
35,4). O objeto dessa pregação não é um outro Deus di­
ferente daquele do Antigo Testamento, mas o Filho de
Deus, que se fez homem e sofreu (III, 12,3; IV, 23,2).
A fé da Igreja apóia-se nessa doutrina, recebida dos
apóstolos (II, 9,1), que ela "conserva fielmente, ensina sem
SANTO IRINEU 111
esmorecimento e, por sua vez, transmite a seus filhos” (I,
10,2). Assim pois, os apóstolos e a Igreja transmitem,
mas de maneira diferente: os apóstolos comunicam a pró­
pria revelação do Novo Testamento (I, 8,1), enquanto que
a Igreja transmite o depósito revelado sem nada mudar
(I, 10,2). Esta é a regra da salvação e a norma da vida:
“Os profetas a anunciaram, Cristo estabeleceu, os apóstolos
transmitiram, por toda parte a Igreja a oferece a seus fi­
lhos” (Dem. 98). Se, pois, alguém procura a verdade, en-
contrá-la-á na fé pregada pelos apóstolos, por eles trans­
mitida às Igrejas e conservada até nossos dias (III, 2,2;
3,3). Irineu não se cansa de dizer que a tradição dos
apóstolos se conserva na Igreja: “nela, como num rico
celeiro, os apóstolos depositaram toda plenitude da ver­
dade” (III, 4,1). É o Espírito quem garante a fidelidade
da Igreja ao Cristo e à sua doutrina. Espírito enviado pri­
meiro aos apóstolos para relembrar-lhes as palavras do Ver­
bo no seu verdadeiro sentido, firmando-os na possessão da
verdade (III, 1,1); Espírito que age também na Igreja
para assegurar a conservação da fé, que “semelhante a um
lícor valioso, conservado num vaso de boa qualidade, re­
juvenesce e faz rejuvenescer mesmo o vaso que o contém. . .
Pois onde está a Igreja, lá também está o Espírito de Deus”
(III, 24,1). Assim, a unidade que jorra de Deus, pelo
Cristo e pelos apóstolos recai sobre a própria Igreja, que
a manifesta ao mundo inteiro (III, 3,3). “A Igreja, es­
palhada por toda a terra até os confins do mundo, recebeu
dos apóstolos e de seus discípulos a fé em um só Deus.. .
e em um só Jesus Cristo. . . e no Espírito Santo. . . A
Igreja, disseminada por todo mundo, conserva cuidadosa­
mente esse quérigma e a fé que recebeu. Guarda-os como
se habitasse apenas uma casa; neles crê como se não tivesse
senão um só coração e uma só alma; prega, ensina e trans­
mite como se tivesse apenas uma boca.. . Como o sol,
criatura de Deus, é um só e o mesmo sobre toda a terra,
assim por toda parte manifesta-se a pregação da verdade/
iluminando a todos que querem chegar a seu conhecimen­
to” (I, 10,2).
A revelação tem características que a distinguem de
qualquer doutrina humana. Em primeiro lugar, é essencial-
112 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

mente obra da graça. Nenhum esforço especulativo poderá


penetrar o mistério da vida íntima de Deus. Somente ele
poderá abrir-se ao homem numa iniciativa inteiramente de
amor. Fica assim excluída e condenada toda pretensão do
orgulho humano e o conhecimento de Deus se mostra como
um dom aos que o amam: “Devido a sua grandeza e a sua
glória admirável, ninguém poderá ver a Deus sem morrer.
O Pai, com efeito, não pode ser conhecido. Mas, pelo seu
amor e sua humanidade, sendo-lhe tudo possível, concedeu
até isso aos que o amam: ver a Deus como o anunciaram
os profetas; pois que o impossível aos homens é possível
a Deus” (IV, 20,5). Em segundo lugar, a revelação é obra
de salvação. Para quem não acreditar é julgamento, para
os crentes é salvação e vida, levando o homem para a visão
e a imortalidade (Dem. 31). “Impossível viver sem a vida;
não possuímos a vida sem participar de Deus. Ora, parti­
cipar Deus é vê-lo e usufruir de sua bondade. Os homens,
pois, verão a Deus para viver, feitos imortais pela visão e
porque chegaram até ele”. (IV, 20,5-6). “Quem vê a
Deus está em Deus e participa de sua luz” (IV, 20,5).
Finalmente, a revelação ao mesmo tempo revela e vela, des­
cobre e encobre Deus. Deus se revela para provocar
o progresso do homem; oculta-se, ao mesmo tempo, para
que o homem não perca o senso do mistério e do respeito.
O Verbo de Deus, tornou-se o dispensador da glória paterna
para a utilidade dos homens. Por isso levou a termo toda
essa economia, mostrando Deus aos homens, apresentando o
homem a Deus, preservando a invisibilidade do Pai, para
que o homem não chegasse a desprezar a Deus e para que
tivesse de progredir sempre, mas sempre tornando Deus
visível ao homem em numerosas teofanias, para que o ho­
mem não deixasse de existir, privado totalmente de Deus.
Pois a glória de Deus é a vida do homem e a vida do ho­
mem é a visão de Deus” (IV, 20,6-7).
Irineu é sensível ao aspecto dinâmico e histórico da
revelação. Põe em evidência movimento, progresso e uni­
dade profunda. Vê o Verbo de Deus em ação desde os
princípios: a criação, as teofanias, os patriarcas, a Lei, os pro­
fetas, o Cristo, os apóstolos, a Igreja, são momentos que
SANTO IRINEU 113
vão escandindo a ação do Verbo e a economia da mani­
festação progressiva do Pai pelo Verbo. Estamos diante de
um só movimento, uma só palpitação de amor que, origi­
nando-se na Trindade, repercute no tempo para culminar
na visão. Daí provém a unidade indestrutível entre ambos
os Testamentos. Ante o Antigo Testamento — e êste foi
o maior problema do século II — são possíveis duas ati­
tudes: ou não perceber suficientemente a novidade do Evan­
gelho (tentação dos meios judaicos tradicionais), ou então
subestimar o Antigo Testamento e com ele romper, como
o fez Marcião. Irineu, com Clemente de Alexandria e Ter-
tuliano, situa-se na corrente de pensamento que sublinha
a unidade entre ambos os testamentos. Neles vê dois
momentos da educação da humanidade pelo único Verbo de
Deus. Entre ambos, contudo, há a diferença entre o Cristo
anunciando e o Cristo presente e dado. Irineu, como Iná­
cio de Antioquia, faz a revelação depender estreitamente
da pessoa de Cristo. A revelação é a epifania de Deus
no Cristo e pelo Cristo; é a manifestação do Pai pelo Filho
e por todos os meios de expressão possibilitados pela en­
carnação. Por sua palavra e ação, por seu exemplo e seu ensi­
namento, o Cristo dá a conhecer o Pai e seu desígnio sal­
vifico. Testemunhas do Verbo, iluminados pelo Espírito,
os apóstolos pregam e transmitem o que aprenderam do Se­
nhor — é por eles que o Cristo nos entrega sua men­
sagem. A Igreja recebe o ensinamento que lhe entregam
as testemunhas apostólicas: conserva-o fielmente, aprofun­
da-o sem o atraiçoar, até a parusia. Daí o caráter essencial­
mente apostólico da tradição eclesial. Em sua forma plena,
a revelação ou o que se transmite, é o ensinamento do
Filho de Deus, a mensagem evangélica, a tradição ou o en­
sinamento dos apóstolos, a fé da Igreja, o mistério cris­
tão, a verdade, a regra da salvação, a norma de vida, o
próprio Cristo. A revelação não é pois uma doutrina hu­
mana, mas um dom do Amor, uma doutrina que solicita
a fé, gera a vida dos que acreditam e os encaminha para a
visão e para a imortalidade. Irineu descreve a revelação como
alguém sob o impacto do acontecimento, cuja emoção ainda
sente e comunica aos que o ouvem.
5.
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA

I. OS ALEXANDRINOS

1. Clemente de Alexandria

Outros vêem no cristianismo principalmente a reden­


ção, a salvação, a libertação do pecado. Clemente 1 procura
em primeiro lugar a revelação de Deus: “Se, por hipótese,
alguém oferecesse ao gnóstico a escolha entre o conheci­
mento de Deus e a salvação eterna — como se fossem rea­
lidades distintas, quando sabemos serem, ao contrário, idên­
ticas — ele não hesitaria um momento em escolher o co­
nhecimento de Deus” (Str. IV, 136,5). Atitude inspira­
da pelo temperamento intelectual de Clemente e também
pelo ambiente alexandrino todo voltado para as religiões
de revelação.

1 As citações são feitas segundo a edição de O. Staehlin. O primeiro


algarismo indica o livro; o segundo, o parágrafo; o terceiro, a seção do
parágrafo. Sobre Clemente de Alexandria cfr: E. Molland, The Con­
ception of the Gospel in the Alexandrian Theology (Oslo, 1938); E. F.
Osborn, The Philosophy of Clement of Alexandria (Cambridge, 1957·);
J. Moingt, “La gnose de Clément d’Alexandrie dans ses rapports avec
la foi et la philosophie”, Rech. de sc. rel., Y! (1950): 195-251, 398-421,
537-564; 38 (1951): 82-118; W. Voelker, Der wahre Gnostiker nach
Clemens Alexandrinus (Berlin-Leipzig, 1952); C. Mondésert, Clément
d’Alexandrie (Paris, 1944); J. Daniélou, Message évangélique et culture
hellénistique aux IIe et IIIe siècles, pp. 50-67, 334-344; G. Aeby, Les
missions divines , de Saint Justin à Origène, pp. 120-146; C. Mondésert,
Clément d’Alexandrie, Le Protreptique (“Sources chrétiennes 2”, Paris,
1949); pp. 5-50; Id., Clément d’Alexandrie, Stromate I (“Sources chrétien­
nes 30”, Paris, 1951), pp. 5-41; P. Th. Camelot, Clément d’Alexandrie,
Stromate II (“Sources chrétiennes 38”, Paris, 1954), pp. 7-29; H.-I.
Marrou e M. Harl, Clément d’Alexandrie, le Pédagogue (“Sources chré­
tiennes 70”, Paris, 1960); P. Th. Camelot, Foi et gnose (Paris, 1945);
M. Spanneut, Le Stoïcisme des Pères de l’Église (Paris, 1957).
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 115
No centro da história humana, como no centro de
sua teologia, Clemente coloca o Logos encarnado, o Cristo,
fonte de todo conhecimento e salvador dos homens. O
Logos2 é o criador e ordenador do mundo. É o único autor
da manifestação divina na Lei, nos Profetas, na filosofia dos
gregos, na encarnação. É o Mestre que instrui a humani­
dade, seu salvador e o criador da nova vida. Vida que
principia com a fé, progride com a gnose e se realiza plena­
mente na visão eterna. Clemente atribui-lhe uma tríplice fun­
ção para a humanidade: ele converte, educa, instrui. O
título, porém, mais denso, que compreende as diversas atri­
buições do Logos ante a humanidade, parece ser o de “Luz”
(Str. VII, 5,5).
Por sua própria natureza o Logos é indicado para re­
velar o Pai, sendo ele a Face e. a Imagem do Pai. “Cha­
ma-se o Filho Face do Pai ( Sl. 23,6), porque, Verbo re­
velador das características próprias do Pai, pelos seus cinco
sentidos tomou sobre si a carne” (Str. V, 34,1). “A Face
do Pai é o Logos, por quem Deus é posto às claras e re­
velado” (Paed. I, 57,2; Str. VII,58,3-4). O Filho, en­
quanto Logos, “é, desde antes dos séculos, a primeira ima­
gem do Pai invisível” (Str. V,38,7). É a imagem gerada
que, por sua missão entre os homens, se torna a Imagem
encarnada; porque no seio da Trindade o Logos é gerado des­
de logo como Imagem do Pai, é ele enviado com revelador
do Pai. É esse Logos, ontologicamente qualificado como reve­
lador, que ilumina a humanidade e a dirige para a plenitude
da verdade; ele dá uma unidade à revelação, ao longo da
história humana.
A manifestação da verdade faz-se por etapas, num pro­
gresso constante (Str. VI, 44,1 ; 166,4-167,1 ). A ação do
Logos pode ser acompanhada ao longo das várias épocas.
Como Justino e Irineu, Clemente atribui ao Logos as teo­
fanias. É o Logos quem fala com Abraão (Paed. I, 56,
2-3), faz as promessas a Jacó (Paed. I, 56,3-4), luta com
ele (Paed. I, 57,1). É ainda o Logos quem faz Israel sair

2 Enquanto os apologetas falam mais do Filho, Clemente fala prin­


cipalmente do Logos. Sem dúvida que sob a influência de Filon de
Alexandria. Logos torna-se um termo privilegiado em sua teologia.
116 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

do Egito, o conduz ao deserto, protege-o como um filho e


se faz, em Moisés, guia de seu povo (Paed. I, 58,1). Já
em algumas passagens dos Stromata, Clemente não apre­
senta as teofanias como aparições pessoais, que atingissem
os sentidos externos, mas antes como uma iluminação
interior, um toque divino pelo qual a alma reconhece
Deus (Str. VI, 34,2-3). É ainda o Logos quem dá a Lei
(Str. I, 167,3); quem, pelos profetas, canta, prediz, ameaça
(Prot. 8,3). É o Logos enfim que se encarna para nos ins­
truir sobre Deus (Prot. 8,3-4) e nos dá a conhecer o que nós
próprios somos (Str. I, 178,2). Outrora, Deus precisava de
uma forma tomada de empréstimo (anjo, profeta); pela en­
carnação, ele mesmo se torna homem (Paed. I, 58,1) e nos
“fala... claramente” (Prot. 8,3-4; Str. I, 29,5). Ao re­
velar, o Verbo tem um só fim — salvar a humanidade:
“o bom Deus enviou também o bom Pastor. O Logos
desvenda toda a verdade aos homens para mostrar-lhes a
sublimidade da salvação” (Prot. 116,1). Logos de ver­
dade e de incorruptibilidade, que “ diviniza o homem com
um ensinamento celeste” (Prot. 114,4) e o regenera para
a vida eterna (Prot. 117,4).
Clemente insiste muito na unidade orgânica do An­
tigo e do Novo Testamento. A Lei, os Profetas, o Evan­
gelho são obra de um só Deus, por seu Verbo, e levam
todos para um mesmo conhecimento (Str. II, 29,3; III,
70,3). Não existe, afinal, senão uma só história da salva­
ção, através do tempo e do espaço.
A lei divina não consiste apenas na Lei de Moisés —
a lei natural, a lei dos gregos e a dos bárbaros tem o mesmo
Deus como autor — em Moisés porém, e nos profetas en­
contramos a Lei verdadeira (Str. I, 165-167). O mesmo
Logos, que instruiu o povo usando Moisés (Paed. I, 60,1 ),
deu-nos o Evangelho. Os preceitos do Sermão da Mon­
tanha completam os preceitos dados a Moisés (Prot. 108,
4-5; Str. VI, 94,6). Da Lei ao Evangelho houve progresso,
as exigências do Evangelho são maiores e atingem os pen­
samentos mais íntimos; o Evangelho já não inspira o temor,
mas a liberdade e o amor. “Outrora o povo antigo tinha
um testamento antigo, uma lei educava o povo no temor,
e o Logos era um anjo: porém, ao povo novo e jovem foi
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 117

oferecido um testamento novo e jovem; o Logos fez-se


carne e o temor mudou-se em amor” (Paed. I, 59,1). Entre
ambos não há, porém, oposição: a lei prepara o Evan­
gelho (Str. II, 37,2-3) e o Evangelho leva a Lei à realiza­
ção (Str. VI, 94,6). O Cristo é o termo e a perfeição
da Lei (Str. II, 42,5). A Lei não passa de uma imagem
da verdade; o Cristo é a Verdade (Str. VI, 58,lss). Ele
próprio é a Lei (Prot. 2,3). Em última análise, a diferença
entre a Lei e o Evangelho está na encarnação do Logos:
por Moisés recebemos a Lei; o Evangelho, por Cristo
(Paed. I, 60,1). Mas, uma vez que o mesmo Logos se
faz ouvir na Lei e no Evangelho, jamais poderemos des­
prezar a Lei como o fazem os hereges Valentim, Basílides
e Marcião (Paed. II, 29,1).
Mais íntimo ainda o relacionamento entre a pro­
fecia e o Evangelho. Nos oráculos dos profetas vê Cle­
mente enigmas e símbolos cuja solução é o Cristo. Distin­
gue duas faces na revelação — a profecia e a explicação
da profecia. A profecia é um ensinamento em imagens,
cheio de mistérios, que permanece obscuro até sua reali­
zação. O Cristo apresenta-se como a explicação da pro­
fecia: “A Luz de verdade, o Logos, uma vez feito Boa-
-nova, devia decifrar o silêncio misterioso dos segredos pro­
féticos” (Prot. 10,1; Str. VI, 68,3). Clemente vê no si­
lêncio de Zacarias o silêncio misterioso das profecias desa­
tado pela encarnação do Logos (Prot. 10,1 ). A figura do pas­
sado torna-se, pois, um apelo lançado ao futuro que a escla­
rece. O Cristo é a porta e a chave dos mistérios do Pai:
“Ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem
o Filho o revelou. Essa porta, até agora fechada, quem a
descerra.. . revela então o que está dentro e mostra o que
antes não podíamos conhecer sem antes termos passado pelo
Cristo, único intermediário que dá a iniciação reveladora”
(Prot. 10,3). Essa concepção leva a uma dupla conseqüência:
a primeira é que a vinda do Cristo, como chave do An­
tigo Testamento, testemunha em favor da verdade de sua
missão e de seu ser. A revelação, ao mesmo tempo que
se realiza na história, demonstra-se verdadeira. A segun­
da, que a regra da fé é justamente o acordo de ambos
os Testamentos na pessoa de Cristo: “O cânon eclesiástico
118 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

é o acordo e a harmonia da Lei e dos Profetas com o Testa­


mento dado pela presença do Senhor” (Str. VI, 125,3).
A teologia de Clemente situa a própria filosofia na órbi­
ta da economia da revelação. Considera-a como um “dom de
Deus aos gregos” (Str. I, 20,1), como uma economia espe­
cial exigida por Ele para conduzi-los ao Cristo: “Como o qué­
rigma veio hoje, em seu devido tempo, assim a Lei e os
Profetas foram dados aos bárbaros e a filosofia aos gregos,
preparando-lhes os ouvidos para o quérigma” (Str. VI,
44,1). Para os gregos a filosofia é algo paralelo à Lei para
os judeus; é uma preparação do Cristo, como a Lei o foi
para os hebreus. “Deus é a fonte de todos os bens; de uns,
como no caso de ambos os Testamentos, o é de forma prin­
cipal; de outros, como a filosofia, de forma subordinada.
Mas, pode-se até mesmo dizer que foi dada a título prin­
cipal para os gregos, antes que o Senhor os chamasse: com
efeito, educava o helenismo para o Cristo, como a Lei o
fazia com os hebreus” (Str. I, 28,1-3; VI, 41,7-42,1). A
filosofia foi dada aos gregos tendo-se em vista a sua salva­
ção: “Antes da vinda do Senhor a filosofia era necessária
aos gregos para a justificação” (Str. I, 28,1). “Assim como,
dando-lhes os profetas, quis Deus que os judeus fossem
salvos, assim suscitou como profetas próprios dos gregos, em
sua própria língua, os mais notáveis dentre eles, na medida em
que estavam aptos a receber o dom de Deus” (Str. VI, 42,3;
110,3; 153,1 ). Clemente chega a considerar a filosofia dos
gregos como uma Aliança, um Testamento especial: “Se
de modo geral nos vem de Deus todo o necessário ou útil
à vida, tanto mais a filosofia dada aos gregos como uma
Aliança a eles própria, como uma etapa da filosofia do
Cristo” (Str. VI, 67,1). Esse dom divino aos gregos foi-
-Ihes comunicado pelos anjos encarregados das nações, que
são ministros do Logos (Str. VI, 57,2-4). Dessa maneira,
judeus, gregos e cristãos, a filosofia, a Lei e o Evangelho
formam uma só ordem salvifica: são très disposições ou
Testamentos cujo autor é o mesmo Logos3. Os très povos
3 Clemente, mesmo justificando o valor da filosofia, não deixa de
indicar seus limites, a) A filosofia é inferior à fé, pois tem caráter
elementar em comparação com a ciência perfeita revelada pelo Cristo
(Sir. VI, 68, 1). b) A filosofia possui uma verdade apenas parcial
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 119
receberam, em diversas economias, a divina pedagogia pela
voz do único Senhor. Existe uma só verdade, que, porém,
é como um rio para o qual de diversas direções confluem
veios d’água (Str. I, 29,l-4;7,38).
É preciso distinguir entre a filosofia considerada como
economia ou disposição histórica que levou os gregos para
o Cristo, e a filosofia como instrumento a serviço da ver­
dade revelada. De agora em diante ela é como que uma
propedêutica à fé e, dentro da fé, é um meio de aprofunda­
mento e defesa. Prepara para a revelação “enquanto é uma
busca da verdade” (Str. I, 97,100), “desperta uma saga­
cidade na procura da filosofia verdadeira”, isto é: do cris­
tianismo (Str. I, 32,4), e “prepara-nos para nos deixar pe­
netrar pela verdade” (Str. I, 80, 6). No interior da fé, ela
constitui uma preciosa dialética, servindo para fazer fruti­
ficar a fé adquirida (Str. I, 35,2-4), para demonstrar a
sua solidez (Str. 1,20,2) e defender a verdade (Str. I,
99,100).
Assim, pois, a filosofia tem apenas um direito: enca­
minhar para o Evangelho, nele descobrir uma verdade mais
plena e mais sólida. Apaga-se ante o Testamento de Cris­
to. A verdade que os filósofos não puderam senão entrever, o
crente a possui plenamente “pois somos discípulos de Deus,
e é seu próprio Filho que nos dá uma instrução verdadeira­
mente santa” (Str. I, 98,4); “somos discípulos de Deus,
depositários da única sabedoria verdadeira” (Prot. 112,2).
A incomparável superioridade do cristianismo deve-se a ele
ter o “Logos como Mestre” (Str. II, 9,4-6), o Logos que
ensina o caminho da vida eterna (Prot. 7,3.6). O Logos
encarnado enche o universo de sua verdade e faz da terra

(Str. VI, 82, 1). c) Os gregos não dependem apenas dos judeus (Str.
V, 29, 4), mas em parte chegaram a deformar o que tinham recebido
(Str. I, 87, 2; VI, 55, 4). d) A filosofia permanece conjectural e não tem
a mesma certeza que a fé (Str. I, 100, 5). Mesmo os maiores filósofos
não chegaram a conhecer a Deus com certeza, mas apenas aproximativa-
mente (Str. V, 39, 1). Portanto, a filosofia tem valores vindos da razão,
ou da revelação de anjos aos sábios, ou de empréstimos da Escritura.
Esses valores, porém, estão misturados com muita ganga e foram muitas
vezes falseados. Λ verdade total e perfeita encontra-se só no Cristo. Não
seria, pois, a filosofia aceitável como um todo. Deve-se distinguir o bom
e o mau. Cfr. J. Daniélou, Message évangélique et culture hellénistique
aux IIe et IIIe siècles, pp. 67-72.
120 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

toda uma Grécia e uma Atenas: “Este Mestre agora nos


ensina tudo” (Prot. 112,1); a “palavra de nosso Didásca-
los. . . transbordou sobre toda a terra” (Str. VI, 167,3-5).
No alvorecer, apagam-se as estrelas quando no horizonte
sobe o sol. É objeto de nossa fé a doutrina do Mestre
(Str. 1,38,5), seu divino ensinamento (Str. VII, 122,1-2;
II, 21,5).
O Cristo é a luz plena, o Sol que apaga toda noite.
Esse simbolismo da luz, de ressonância joanina e platônica,
é o preferido por Clemente para indicar a revelação, natu­
ral ou sobrenatural. A ação iluminadora do Logos está em
exercício desde a criação. Clemente compara sua ação à
do sol nascente: sol da alma, “o único que, nascendo in­
teriormente nas profundezas do espírito, ilumina os olhos
da alma” (Prot. 68,4). Ação íntima que se parece com
uma criação continuada de luz e de inteligência. Principal­
mente por seu Evangelho, o Logos é luz do gênero humano.
“Iluminou-nos por seus ensinamentos” (Prot. 110,3). “Ilu­
minou” o espírito sepultado nas trevas (Prot. 113,2). “Se
não tivéssemos conhecido o Logos nem sido iluminados por
seus raios” estaríamos no escuro, como aves que se engor­
dam para a morte (Prot. 113,3). Os homens andavam
errantes à procura de Deus: o Cristo instrui-os com seu
Evangelho e ilumina toda sua vida (Prot. 114,1). “Rece­
bemos a Luz e tornamo-nos discípulos do Senhor” (Prot.
113,4; 114). Quando Clemente diz que o Cristo é Luz, o
termo abrange toda a atividade salvifica do Logos: arreba­
ta-nos às trevas da ignorância, do pecado e da morte, ar­
rastando-nos para o reino da verdade, da luz e da vida
(Prot. 114-116). Os apologetas insistem na ação do Lo­
gos no mundo; chamando Cristo de Luz, Clemente insiste
em sua ação individual, no íntimo da alma.
Com o dom da revelação recebida na fé inaugura-se
todo um movimento, o de sua frutificação pela gnose. Não se
trata de uma nova revelação, nem de um conhecimento oculto,
mas de um crescimento na fé. Clemente vê a ordem da salva­
ção como uma passagem das trevas à fé, da fé à gnose. Em
cada etapa há possibilidades de crescimento. A gnose está,
pois, ao alcance do filósofo, do judeu e do crente. Mas a
verdadeira gnose só é possível ao crente. Ele recebe, no ba-
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 121
tismo, o germe da fé. Germe que se deve desenvolver. A
gnose é o crescimento da fé; não apenas adesão à verdade,
mas inteligência da fé que termina no amor (Str. VII, 1,1 ;57,
4;68,1), experiência adquirida no estudo e na prática dos
mandamentos (Str. III, 44,2). O perfeito gnóstico pro­
cura adaptar sua vida à vontade divina, pois, afinal, só o
amor dá a inteligência da fé; “Deus é caridade, ele que se
deu a conhecer aos que o amam; do mesmo modo, Deus
merece fé, ele que se confiou ensinando aos crentes” (Str.
V, 13,1-2). O gnóstico tem a “fé perfeita que atinge as
ações, honrando o Evangelho por seus atos e sua contem­
plação” (Str. VII, 78,2). Por sua fé, sempre ávida na
busca, procurando sempre a vontade divina, torna-se pouco
a pouco a imagem viva do próprio Cristo, procurando for­
mar gnósticos consumados, fazendo-se didáscalos como o
Cristo (Str. VII, 52). Très coisas, com efeito, constituem
o gnóstico cristão: a contemplação, o cumprimento dos pre­
ceitos do Senhor, a formação de cristãos perfeitos (Str.
Π, 46,1). Finalmente, o termo da gnose é a visão: “con­
templarás então a Deus, terás a iniciação em seus santos
mistérios, gozarás dos bens setretos do céu” (Prot. 118,4Ι­
Ο sistema de Clemente repousa sobre sua teologia do
Logos, revelador e salvador. Sem dúvida, antes dele essa
idéia já se encontrava em Justino e Irineu, mas com ele
tornou-se mais compreensível e mais concreta. O Logos é a
fonte única donde flui toda verdade. É o mesmo Logos
que, por etapas, vai-se revelando, sempre mais, pela Lei, pelos
Profetas e pelo Evangelho. Do.Lógos vem ainda a verdade
da filosofia grega. Porque vê na filosofia grega um doni
do Logos, fonte de toda verdade, Clemente não hesita em con­
siderá-lo como um terceiro Testamento, como uma Aliança es­
pecial de Deus com os gregos, para conduzi-los ao Cristo. Essa
estima pela filosofia grega distingue Clemente de seus con­
temporâneos; já aparece em Justino, mas domina todo o
pensamento de Clemente. Judeus, gregos e cristãos são re­
gidos por um só Senhor que os reúne num só povo, por
uma única fé. No horizonte de seu pensamento estão sem­
pre os adversários, marcionistas e gnósticos; por isso insiste
na unidade, na harmonia e no desenvolvimento da revela­
ção. O cume da ação reveladora é a encarnação do Logos.
122 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

É a encarnação que distingue o Evangelho da filosofia grega


e do Antigo Testamento; é ela também que lhes dá um
sentido, pois o Cristo é a realização dos anseios e desejos
da filosofia, o cumprimento da Lei, a explicação da profecia,
a exegese da Escritura. A encarnação continua, aperfeiçoa
e consuma a história da revelação. Segundo Clemente, a
busca mais fundamental do homem é a busca da verdade; vê
por isso no Cristo principalmente o Mestre, o Didáscalos
que traz a verdadeira filosofia, a verdade. O Cristo é Sol
e Luz das almas. Verdade porém, que não é abstrata,
pois a gnose — plena apropriação da revelação — somente
se obtém pela caridade.

2. Orígenes

O sistema de Orígenes4 edifica-se a partir de Deus ( De


Prine. I, 1,1 ). Puro espírito, Deus gera o Verbo ou o Filho.
O Verbo procede do Pai como uma Imagem invisível, igual
ao Pai, Imagem filial que reproduz fielmente os traços do
modelo, Imagem eterna, continuamente engendrada pelo

4 Referências feitas segundo a edição de Berlim. Sobre Orígenes:


M. Harl, Origène et la fonction révélatrice du Verbe incarné (Paris,
1958); H. Crouzel, Théologie de l’image de Dieu chez Origène (Paris,
1956); Id., Origène et la connaissance mystique (Bruges, 1961); H. de
Lubac, Histoire et Esprit (Paris, 1950); Id. Origène, Homélies sur
l’Exode (“Sources chrétiennes 16”, Paris, Í947), pp. 1-62; E. Molland,
The Conception of Gospel in the Alexandrian Theology (Oslo, 1938);
G. Aeby, Les missions divines, de Saint Justin à Origène, pp. 146-183;
J. Daniélou, Origène (Paris, 1948); R. P. C. Hanson, Origen’s Doctrine
of Tradition (London, 1953); F. Bertrand, Mystique de Jésus chez
Origène (Paris, 1951); P. Nemeshegyi, La Paternité de Dieu chez Origène
(Paris-Tournai-New York-Rome, 1960); H. U. von Balthasar, “Le mys-
terion d’Origène”, Rech. de sc. rel., 26(1936): 513-562; 27 (1937): 38-64;
A. Orbe, “La excelencia de los profetas, según Orígenes”, Estudios
Bíblicos, 14 (1955): 191-221; E. Hasler, Gesetz und Evangelium in der
Alien Kirche bis Origenes (Zürich-Frankfurt, 1953), pp. 74-102; A.
Lieske, Die Théologie der Logosmystik bei Origenes (Münster, 1938);
W. Voelker, Das Vollkommenheitsideal des Origenes (Tübingen, 1931);
G. Bardy, “La règle de foi d’Origène”, Rech. de sc. rel., 9 (1919):
162-196; R. Cadiou, Introduction au système d’Origène (Paris, 1932);
H. Koch, Pronoia und Paideusis (Berlin, 1932); Έ. R. Redepenning,
Origenes, Eine Darstellung seines Lebens und seiner Lehre (2 vol., Bonn,
1841-1846); E. Fitzgerald, Christ and the Prophets. A Study in Origen’s
Teaching on the Economy of the Old Testament (Dissertatio ad lauream,
PUG, Romae, 1961)
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 123
Pai5. O Verbo, gerado pelo Pai como sua Imagem, existe
para manifestá-lo. “No Verbo, que é Deus e Imagem do Deus
invisível, podemos ver imediatamente o Pai que o gerou;
quando olhamos para a Imagem do Deus invisível, podemos
ver imediatamente o Pai, o protótipo da Imagem” (Com.
Jo. 32,29). “Quando se vê a imagem de alguém, vê-se
aquele de quem é imagem: assim, pelo Verbo de Deus, sua
Imagem, veremos a Deus” (Hom. Gen. 1,13). Através de
toda a história da salvação é também o Verbo que revela os
segredos do Pai: “O Verbo pode ser chamado Filho porque
anuncia os segredos do Pai, sendo este a Inteligência como
o Filho é chamado Palavra. Como entre nós a palavra re­
vela a visão da inteligência, assim .o Verbo de Deus conhece
o Pai e, uma vez que nenhuma criatura dele pode se aproxi­
mar sem guia, revela o Pai que conhece” (Com. Jo. 1,38).
Como estamos vendo, Orígenes exprime-se quase com as
mesmas palavras de Clemente. O Verbo procede do Pai,
do qual é o revelador nato, enquanto sua Imagem e Pala­
vra. O Verbo está naturalmente qualificado para sua missão
de Revelador, pois que antes mesmo de ser enviado para
o meio dos homens, ele já é no seio da Trindade a imagem
reveladora do Pai.
Deus é incognoscível. Somente por Jesus Cristo e seu
Espírito é que se torna próximo para nós. “O Verbo fez-se
carne para habitar entre nós, e não o podemos começar a com­
preender a não ser assim” (Com. Jo. 1,18). Não pode­
mos atingir o Verbo senão por sua encarnação, que não
é a epifania do Deus invisível, mas o instrumento dessa
manifestação. O Cristo manifesta o Pai enquanto quem
o compreende “por isso mesmo compreende o Pai,
segundo o que se diz — quem me vê, vê o Pai” (De Princ.
I, 2,6). Não se pode pois esperar ver o Pai visível sensi­
velmente no Cristo; trata-se antes de conceber e compreen­
der o Pai, invisível e espiritual, a partir do sinal de Jesus
(C. Cels. 7,43). Quem não chega ao Verbo através da
carne, isto é, não ultrapassa a humanidade do Cristo para
perceber a divindade, não compreende nem mesmo a carne,
como quem se prende ao sentido literal da Escritura, sem

5 H. Crouzel, Théologie de l’image de Dieu chez Origène, pp. 87-88.


124 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

chegar ao sentido espiritual, não compreende nem a letra


da Escritura. O Verbo fez-se carne para levar-nos, a nós
que éramos carne, a vê-lo tal qual era antes de se fazer
carne (C. Cels. 6,68;4,15). A visão material não basta
então para nos dar a conhecer o Verbo de Deus (Com. Jo.
19, 2;20,30). Pilatos, Judas, os fariseus, os judeus viram
Jesus com os olhos do corpo, sem chegar, porém, ao “co-
nhe mento do Verbo”. Viu somente quem conheceu o
Cristo como Verbo de Deus, e pelo Verbo conheceu o
Pai (Com. Cânt. 3; Hom. Lc. 1). Assim os apóstolos,
que viram o corpo de Jesus, conheceram também o Verbo
de Deus (Horn. Lc. 3); assim Pedro que confessou o Cris­
to, e Paulo, o apóstolo do Senhor. Crer no Cristo e nele
reconhecer a glória do Verbo, é um dom do Espírito que
ilumina os corações (Horn. Jer. 10,1).
O Verbo revestiu-se com a forma de escravo para
instruir o homem “por. exemplos e ensinamentos” (De
Princ. IV, 4,5). A carne é o instrumento privilegiado que
lhe permite ser ouvido como nosso Mestre e ser visto como
nosso Modelo (De Prine. III, 5,5; C. Cels. 2,11.16.40.44).
Como Salvador, o Cristo é o enviado do Pai que vem
“tomar pela mão os que estavam fora de Deus e trazê-los
de volta ao caminho divino” (Com. Jo. 32,3): ele indica
o caminho da salvação. Vem “instruir e educar o homem”
(De Princ. 1,3,8). À educação do Antigo Testamento su­
cedem “os ensinamentos mais altos do Cristo” (De Princ.
III, 6,8) que nos deu “dogmas salutares” (De Princ. IV,
1). Por sua doutrina o Cristo é a Luz do mundo (Horn.
Lev. 13,2; Hom. Gên. 1,5; C. Cels. 8,5;6,79). É o Mestre
único, o “Didáscalos dos mistérios divinos” (C. Cels. 3,
62.81). Por seu ensinamento, fonte de toda verdade re­
ligiosa, revela o Pai: “Quem, acredita e está persuadido
que a graça e a verdade vêm por Jesus Cristo, e que
o Cristo é a própria verdade, não procura a ciência da vir­
tude e da felicidade fora das palavras e da doutrina do
Cristo”. O Cristo, porém, “falou também por Moisés e
pelos, profetas” e, depois de sua ascensão, “continua a falar
pelos apóstolos” (De Princ. praef. 1). Doutra parte, como o
Cristo não se torna presente aos homens senão pela Igreja,
esta é também uma autêntica manifestação do Verbo. O
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 125
Cristo, os apóstolos, a Igreja, são os “luminares” do mundo
(Hom. Gen. 1,5-6). A doutrina de Cristo chega-nos pela
pregação dos apóstolos e pelo ensino da Igreja. A regra
da fé está pois na pregação da Igreja que nos trans­
mite integralmente o ensinamento vivo dos apóstolos (De
Princ., praef. 2); é a “palavra da Igreja” (Com. Jo. 5,8),
a “doutrina da Igreja” (Hom. Núm. 9,1). É igualmente
a Escritura que contém esse ensinamento (Com. Mt. ser.
46). “Quem compreende perfeitamente o sentido de um
escrito apostólico, sem o deformar, esse recebe, ao mesmo
tempo que o apóstolo, o Cristo que fala e vive no apóstolo,
e igualmente possui os ensinamentos do Cristo” (Frag.
Mt. 218). No pensar de Orígenes esses termos são equi­
valentes. O Verbo de Deus faz-se carne em Jesus e mani­
festa-se na Escritura. Escritura e encarnação são incorpo­
rações do Verbo que se destinam a no-lo revelar (Hom.
Jer. 9,1; Com. Jo. 2,1-9). A voz, porém, do Cristo, que
é a Escritura, dirige-se à Igreja e ressoa na Igreja.
A doutrina do Cristo que a Igreja anuncia é divina:
é acompanhada pela graça, necessária para que se possa
ouvir e apreender o sentido dos mistérios (Com. Jo. 20,18).
“O homem não se voltaria para Deus se ele mesmo não lhe
tocasse a alma” (C. Cels. 1,9). As palavras de Cristo “são
proferidas com uma virtude divina” (C. Cels. 7,54) e o pre­
gador é impotente para comover “se a graça não acompanha
o que ele diz” (C. Cels. 6,2). Mais que à manifestação
objetiva da verdade, Orígenes é sensível à seu impacto nas
almas e sua assimilação. Quem, iluminado pelo Logos di­
vino, percebeu o esplendor do Pai já não precisa de nin­
guém para instruí-lo (Com. 1,24). Essa iluminação de­
pende de nossa docilidade. Tomando a iniciativa aproxi­
ma-se Deus do homem; é preciso, porém, que este se volte
para o Senhor e dele se aproxime: deve haver uma aproxi­
mação mútua. E Orígenes insiste: o “Cristo envia sua
luz a nossos espíritos, mas não haverá iluminação se a nossa
cegueira se opõe” (Hom. Gen. 1,7). Quanto mais nos
aproximarmos do Cristo, tanto mais recebemos de sua luz.
Aos que se abrem ao Logos, este confia os segredos do
Pai, e essa palavra toma formas várias, em seus corações,
segundo as capacidades e necessidade de cada um (Hom.
126 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

Gên. 1,8). Faz-se Cristo, ao mesmo tempo, médico, pastor,


rei, vinha, pão, cordeiro, profeta. Sua revelação como Sabe­
doria e Vida está reservada aos perfeitos (Com. Jo. 1,
22-23), esclarecidos de forma particular (C. Cels. 3,60).
O pensamento de Orígenes supõe sempre, como o de
seus antecessores, a heresia marcionita que estabelece um
fosso entre Lei e Evangelho, que opõe o Deus do Novo Tes­
tamento ao do Antigo. Por isso Orígenes também exalta
a unidade de ambos os Testamentos, Antigo e Novo que
têm por autor o mesmo Deus. Apóstolos e profetas foram
inspirados por um só Espírito (De Prine. I, praef. 4). As
Escrituras todas referem-se ao Cristo, que é Logos de ver­
dade desde o princípio (Com. Mt. ser. 47) presente no
mundo, ainda antes da encarnação (Horn. Jer. 9,1). Ele é
que se manifesta nas teofanias do Antigo Testamento, dire­
tamente ou por intermédio de um anjo (Horn. Jer. 16,4;
Com. Cant. 2 )6. Para marcar essa unidade entre os Testa­
mentos, afirma Orígenes que os patriarcas, Moisés e os
profetas viram a glória do Cristo (Com. Jo. 1,17). Quanto
ao conhecimento, os profetas mais perfeitos não são infe­
riores aos apóstolos (Com. Jo. 6,3). Os santos do Antigo
Testamento receberam do Cristo o seu conhecimento, pois
“o Verbo os instrui antes mesmo de se encarnar” (Com.
Jo. 6,4). Os profetas, como os apóstolos, testemunharam
em favor de Cristo, pois o compreenderam e o anunciaram
(Com. Jo, 2,34). Moisés, Isaías, Ezequiel tiveram cons­
ciência dos mistérios expressos em seus escritos (Com. Jo.
6,4). Ou seja, “os apóstolos não foram mais sábios que
os Pais, Moisés ou os profetas” (Com. Jo. 6,5). A vinda
de Cristo não trouxe uma verdade nova, mas apenas a
manifestação de verdades já conhecidas (Com. Jo. 6,4).
Os mistérios que os profetas conheceram, os apóstolos vi­
ram-nos realizados e cumpridos.
Afirmações que, inspiradas pela atitude antimarcionita,

6 Orígenes atribui ao Verbo as teofanias do Antigo Testamento; é,


porém, mais discreto que os apologistas, Irineu ou mesmo Clemente.
Apela para o ministério dos anjos, tanto para salvaguardar a transcendência
do Verbo como para atenuar a exterioridade das teofanias. Encontramos
em Orígenes uma tendência evidente para interiorizar e espiritualizar
as teofanias.
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 127
devem ser suavizadas por outras que evidenciam o progresso
da revelação, tanto no plano da preparação como no do
conhecimento.
Orígenes reconhece que a revelação teve começos hu­
mildes: inaugurada pela manifestação divina na criação (De
Princ. I, 1,6) e na consciência de cada homem (De Prin.
I, 3,1), progredindo com a Lei e os Profetas (Com. Mt.
13,2), para ter afinal sua plenitude em Jesus (Hom. Lev.
1,4). Manifestou-se Deus “nos momentos oportunos”, e
“segundo certa ordem” (De Princ. IV, 4,8), pois o homem
não podería receber duma só vez “os preceitos da liber­
dade” (Hom. Ex. 8,1). Se o Cristo não veio mais cedo,
é que sua vinda devia ser preparada (C. Cels. 4,8). Os
acontecimentos da história de Israel destinavam-se a pre­
parar, para um dia receber os mistérios, um povo pouco
apto a suportá-los (C. Cels. 2,2). Anunciando a vida do
Cristo, deviam despertar o seu desejo (Com. Cânt. 1). Lei
e Profetas preparavam o caminho ao Evangelho; eram como
que “ rudimentos que levavam à perfeita inteligência do
Evangelho” (Com. Mt. 10,10).
De um a outro Testamento há progresso, não apenas
quanto à preparação mas também quanto ao conhecimento.
Como o homem sensato, ao ouvir uma sábia palavra, apro­
va-a e algo lhe acrescenta, é evidente que os apóstolos,
servindo-se das sementes de revelações mais secretas e pro­
fundas já percebidas por Moisés e pelos profetas, chega­
ram a contemplações bem mais numerosas da verdade, sob
a ação de Jesus que elevava seus olhos e iluminava suas
inteligências... Não foi por serem inferiores que os pro­
fetas e Moisés não puderam ver, desde o começo, o que
viram os apóstolos quando da vinda de Jesus; é que espe­
ravam a plenitude dos tempós. Porque a vida de Jesus
estava reservada para esses tempos, importava também que
fossem reveladas verdades reservadas para esses tempos;
verdades outras que as já anunciadas ou escritas no mundo;
e era preciso que essa revelação fosse feita por aquele que,
não julgando fosse roubo fazer-se igual a Deus, “despojou-se
de si mesmo para tomar a forma do escravo” (Com. Jo.
13,48). Afirma pois Orígenes que o Cristo desvendou aos
apóstolos mistérios que os profetas não conheceram, cuja
128 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

revelação desejaram. Ainda mais, a realização das profecias


e a possessão das realidades anunciadas no Antigo Testa­
mento tornaram-se fonte de um conhecimento mais subli­
me e mais claro. Assim, por exemplo, os antigos não ti­
veram uma noção completa da Trindade. A segunda pessoa
não se tornou plenamente conhecida a não ser pela encar­
nação do Filho de Deus. O Espírito Santo não foi plena­
mente conhecido senão por sua vinda às almas e por sua
vida na Igreja (Horn. Jos. 3,2). Os apóstolos, pois, mais
que os profetas penetraram os mistérios do Cristo. Seu co­
nhecimento, comparado ao dos profetas, é como a planta
comparada ao germe. O Evangelho supera a Lei7.
O próprio Cristo, em o Novo Testamento, não se ma­
nifestou senão progressiva e parcialmente, pois se o Verbo
tivesse manifestado toda sua glória, o mundo inteiro não
a teria podido conter. (Com. Jo. 19,10). O Cristo diver­
sificou seus dons e adaptou-se à capacidade e às necessida­
des dos homens (Com. Jo. 1,20; Com. Mt. 15,24). Con­
forme os ouvintes, falou de maneira diferente. A multi­
dão, falou em parábolas; aos discípulos proporcionava expli­
cações. A alguns privilegiados revela sua glória: a Pedro
por exemplo, que confessa sua divindade (Com. Mt. 12,
10; Com. Jo. 32,24); aos très apóstolos testemunhas de
sua transfiguração, “exemplo da glória futura do Salvador”
(Frag. Lc 22). Aos principiantes, que devem ser levados
à fé, apresenta-se como o Verbo feito Carne; aos perfeitos,
como o Verbo glorioso do final dos tempos: — dois níveis
correspondentes a dois níveis de alma e às duas vindas do
Cristo, em forma de escravo e em forma de glória. A cada
um é dada a possibilidade de aumentar sua capacidade es­
piritual, de fazer sempre mais vasto o espaço interior para
chegar ao grau dos perfeitos (Frag. Jo. 7).
Contudo, mais que às etapas e preparações da reve­
lação, Orígenes mostra-se atento à passagem da carne ao
espírito, da história ao espírito, da letra ao espírito. O
mundo parece-lhe uma vasta imagem da verdade, que ele
revela e vela ao mesmo tempo. Os acontecimentos do mun­
do são sinais, símbolos, tipos, imagens das realidades ver-
7 H. Crouzel, Origène et la connaissance mystique, pp. 301-311.
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 129
dadeiras, espirituais, invisíveis, divinas, eternas. É preciso
ultrapassar as sombras e as imagens da carne, a letra e a
história para atingir a plena realidade.
A vinda do Cristo é uma promoção de todo o Antigo
Testamento. “A luz contida na lei de Moisés, oculta sob
um véu, brilhou quando da vinda de Jesus, que afastou o
véu e fez conhecer rapidamente os bens cuja sombra se
continha na letra” (De Prine. IV 1,6). “O Cristo anula
toda sombra e toda imagem” (Frag. Jo. 9,12). Vindo,
Jesus Cristo dá-nos por lei o Evangelho e imediatamente
“a lei de Moisés nos parece espiritual” (Sei. Sl. 118,102).
Com sua presença faz a letra explodir sob a pressão do es­
pírito. O Evangelho “afastou a velharia da letra” e deu-
-nos “a novidade do Espírito que jamais envelhece” (Com.
Jo. 1,6). “Quando veio o Salvador e deu corpo ao Evan­
gelho, então, pelo Evangelho, fez que tudo fosse semelhante
ao Evangelho” (Com. Jo. 1,8). Doravante possibilita-nos
1er o Antigo Testamento evangélica e espiritualmente (Hom.
Lev. 6,1). A glória do Cristo transfigura todo o Antigo
Testamento e faz Elias e Moisés sair das sombras como
que absorvidos em sua luz.
Mas o próprio Evangelho, tanto quanto o Antigo Tes­
tamento, deve ser entendido no Espírito. A verdade do
Evangelho não é conhecida senão pelos que sabem “trans­
formar o Evangelho sensível em Evangelho Espiritual” (Com.
Jo. 1,8). O Antigo e o Novo Testamento devem ser lidos
do mesmo modo: para se ter o espírito das Escrituras, que
é o espírito do Cristo, é preciso “ter o Espírito do Cristo”
(De Prine. IV, 2,3). Todos os relatos evangélicos, todas
as parábolas do Cristo escondem um mistério que é pre­
ciso penetrar. “Os textos do Evangelho não se devem
tomar simplesmente no seu sentido imediato; aos simples,
apresentam-se pedagogicamente como simples, mas para os
que querem e podem compreendê-los mais profundamente,
ali se escondem ensinamentos sábios e dignos do Logos”
(Com. Mt. 10,1). O que há de obscuro no Evangelho
deve estimular o leitor na procura do verdadeiro sentido
(De Prine. IV, 2). Palavra alguma do Cristo deve ser to­
mada no sentido vulgar: “É preciso perscrutar muito cuida­
dosamente as que parecem totalmente claras e não perder

5 - Teologia da revelação
130 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

a esperança de encontrar, se o procurarmos corretamente,


algo digno dos lábios sagrados, mesmo nas palavras simples
e aparentemente sem mistério (Com. Jo. 20,36). Assim
também todos os gestos do Cristo, para além de sua reali­
dade sensível, têm um significado espiritual que se prolonga
entre nós. “Os atos então realizados eram símbolos de
atos realizados sempre pelo poder de Jesus; não há tempo,
com efeito, em que se não produza pelo poder de Jesus,
cada uma das ações narradas pela Escritura” (Com. Mt.
11,17). Não cessa o Cristo de curar a lepra do pecado e
de iluminar os cegoS (C. Ces. I, 48; Horn Lc. 17). São
históricos todos os fatos de sua vida, mas são também ao
mesmo tempo modelo do que deve acontecer no futuro
(Com. Mt. ser. 78). A compreensão espiritual do Novo
Testamento deve ser tão ampla como a do Antigo Testa­
mento: progresso vertical que atinge toda a revelação.
O Novo Testamento e toda a economia cristã, por si
mesmos, são um sinal da realidade definitiva do “Evangelho
eterno” (De Princ. IV, 2-3). Somos convidados a ver, na
vinda do Logos encarnado, uma imagem da economia de
visão (Hom. II, 2 in Ps. 38). “Pela primeira vinda muitas
coisas ficaram esboçadas. . . que se devem consumar em
realização e perfeição quando da segunda vinda. . . O que
agora prelibamos pela fé e pela esperança, teremos então
definitivamente em substância” (Hom. Jos. 8,4). O Evan­
gelho eterno revelar-se-á “quando a sombra tiver passado e
a verdade chegado, destruída a morte e restituída a imor­
talidade” (Com. Rom. 1,4). O Evangelho eterno não é
um Evangelho diferente do temporal, mas um estado dife­
rente do mesmo Evangelho, tendo os sinais cedido lugar
à realidade. O Evangelho presente apenas nos mostra a
realidade num espelho e enigmaticamente, enquanto o Evan­
gelho eterno no-la fará contemplar diretamente. Ambos os
Evangelho são idênticos quoad se, diferentes, porém, quoad
nos. Ao temporal corresponde a vinda do Cristo em forma
de escravo; ao eterno, sua vinda na glória. O Evangelho
eterno é o Cristo em pessoa, manifesto em sua glória de
Verbo divino (Com. Mt. 17,19). Dele nos aproximamos
na medida em que progredimos em perfeição. Os perfeitos,
isto é, os cristãos cujas exigências espirituais são maiores,
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 131

ao mesmo tempo que se esforçam por atingir a divindade


do Verbo no sinal da carne, pelo espírito se esforçam
para se elevar até às realidades divinas, das quais os gestos
de Cristo são simplesmente figuras, sem contudo pretende­
rem penetrar completamente o mistério do Verbo, que só
o Pai conhece (De Prine. II, 6,1; C. Cels. 2,67). Quando da
Parusia, ao Evangelho temporal sucederá o eterno: os que
tiverem vivido espiritualmente o Evangelho do tempo pre­
sente “viverão no reino dos céus segundo as leis desse Evan­
gelho eterno” (De Prine. IV, 3,12-13).
Segundo Orígenes a função do teólogo é escrutar as
Escrituras, pois ali está contida toda verdade. Quanto à
revelação natural e à filosofia, Orígenes é muito mais mo­
derado que Clemente. Sem dúvida que os gentios jamais
ficaram sem benefícios divinos; Orígenes, porém, não chega
a falar de um Testamento dos gentios. A revelação gra­
tuita acontece porque o Verbo de Deus, que procede do
Pai como fidelissima imagem, se encarna, e, pelos meios
da encarnação, carne de seu corpo e carne da Escritura, dá
a compreender o Pai e seus mistérios. A ação reveladora
é plenamente efetiva quando o homem, pelo sinal da Carne
e da Escritura, reconhece no Cristo o Verbo de Deus, a
Imagem do Pai e, na Imagem, o próprio Pai. Esse conhe­
cimento realiza-se sob a ação da graça. Orígenes, mais ain­
da que Clemente, insiste na subjetividade da revelação. O
que importa é não apenas que Deus saia de seu mistério,
mas também que o homem reconheça essa vinda de Deus.
Fala também de iluminação, que, iniciada pela fé, pode
crescer sempre, tanto nos simples como nos perfeitos. Inte­
ressam a Orígenes os problemas da relação entre a Lei e
o Evangelho, entre a letra e o espírito. Nele encontramos,
con^Q em seus predecessores, uma visão evolutiva da revela­
ção. Orígenes reconhece um desenvolvimento e um progresso
na revelação, uma pedagogia divina que dirige a maturação da
humanidade até a plenitude dos tempos. Celebra a unidade
e harmonia de ambos os Testamentos. A seus olhos, porém,
a encarnação é menos uma transição brusca na história
que uma promoção de tudo em direção ao Espírito. Mais
ainda que à passagem das preparações à realização, ele dá
importância à passagem das figuras e sinais à realidade, à
132 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

passagem da história e da letra ao espírito trazido pela pre­


sença do Cristo, à transfiguração da Lei sob a luz do Evan­
gelho. Orígenes insiste também na tensão do Evangelho
temporal em direção ao Evangelho eterno, realidade dos
mistérios esboçados no Evangelho temporal.

3. Santo Atanásio

Além do ensinamento de Cristo, Atanásio8 distingue


duas fontes do conhecimento de Deus: uma, direta e inte­
rior; outra, pelo testemunho da criação.
O mundo traz a marca do Verbo, seu autor e organi­
zador. Deus de “tal modo organizou a criação que, mesmo
sendo ele naturalmente invisível, o pudéssemos conhecer
mediante suas obras” (C. Gent. 35). Parece que esse co­
nhecimento de Deus se obtem simplesmente por uma in­
ferência a partir do cosmos: “Olhando o céu e vendo sua
ordem e beleza... podemos fazer uma idéia do Verbo que é
o autor dessa ordem; assim também, ao pensarmos no
Verbo de Deus, temos que necessariamente pensar em Deus
seu Pai... ; vendo o poder do Verbo, chegamos a uma
idéia sobre a bondade do Pai” (C. Gent. 45). Como vemos,
Atanásio interpreta em função de sua fé trinitária o conheci­
mento que, a partir da criação, podemos obter sobre
Deus. O Logos de que Atanásio fala não é o Logos
seminal dos estóicos, mas a Sabedoria do Pai (C. Gent.
40,41 ). Tudo que o infiel pode ver não existe nem subsiste
senão por essa Sabedoria de Deus. Se “a criação pode sub­
sistir solidamente” é que o Verbo, pela plenitude de seu
poder, lhe dá consistência (C. Gent. 41.42.46). O Verbo
de Deus é Jesus Cristo, o Salvador (C. Gent. 40).
Atanásio fala ainda do conhecimento de Deus por um
caminho interior. Sendo o homem a imagem de Deus, pode
conhecer a Imagem que é o Verbo de Deus, e nele pode
conhecer o Pai, antes mesmo que a Imagem se manifeste

8 L. Aizberger, Die Logoslehre des Hl. Athanasius (München, 1880);


P. Th. Camelot, Athandse d'Alexandrie, I: Contre les Pãiens; II: Sur
l’Incarnation du Verbe (“Sources chrétiennes 18”, Paris, 1946), pp. 7-104;
R. Bernard, L’ Image de Dieu d’après Athanase (Paris, 1952); K. Prümm,
“Mysterion bei Athanasius”, Zeit. Kath. Theol. (1939), pp. 350ss.
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 133
pela encarnação: “quando a alma se liberta de qualquer
mancha deixada pelo pecado, e não guarda em pureza total
senão a semelhança da imagem, por isso mesmo, quando
essa imagem é iluminada, como num espelho, pode nela
contemplar o Verbo — imagem de Deus Pai —; nele con­
templa o Pai, cuja imagem é o Salvador” (C. Gent. 34).
Atanásio não esclarece como essa purificação permite à
alma, voltando-se sobre si mesma, perceber o Verbo Ima­
gem do Pai.
Realmente ambos esses caminhos de acesso ao conhe­
cimento de Deus, a ele não conduziram o homem. Os
homens tornaram confusa a imagem divina neles e na
criação. Deus, então “veio em socorro da sua fraqueza
dando-lhes a Lei, enviando-lhes os profetas, homens que
eles conheciam”; assim podiam ser instruídos por “mestres
que lhes fossem próximos” (De Inc. 12). Esse benefício
da Lei e dos profetas destinava-se, observa Atanásio, não
apenas aos judeus, mas a todos os homens. Era para todos
“como que uma escola santa do conhecimento de Deus e
da vida espiritual” (De Inc. 12).
Apesar da Lei e dos profetas os homens desviaram-se
da verdade. “Esqueceram-se de Deus. . . em seu lugar for­
jaram para si outros deuses” (De Inc. 11). Acabam es­
quecendo-se que eram feitos “à imagem de Deus” (C. Gent.
8): a obra divina encaminhava-se para a ruína (De Inc. 6).
Era preciso que a alma fosse recriada conforme a imagem.
“E como seria isso possível, senão pela presença da pró­
pria Imagem de Deus,. .. para que, sendo a Imagem do
Pai, pudesse recriar o homem segundo a imagem” (De Inc.
13). Restaurar o homem, sendo isso obra de criação, de­
veria caber ao Verbo. Por “condescendência”, por “filan­
tropia”, encarnou-se pois o Verbo de Deus (De Inc. 8):
“epifania divina para os homens” (De Inc. 1). Após se ter
manifestado pela criação, pela Lei e pelos profetas, Deus
nos fala por seu Filho (1 C. Ar. 55; 2 C. Ar. 81). Recriar
o homem segundo a imagem é restaurar nele o verdadeiro
conhecimento de Deus para divinizá-lo. A revelação é con­
dição e meio para o fim que é divinização. Conseqüénte-
mente, a restauração do homem se realiza pelo conhecimento
de Deus que o Cristo nos traz (De Inc. 20,16).
134 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

Na manifestação do Verbo pela encarnação, Atanásio


distingue dois aspectos: a manifestação do Cristo como pessoa
divina, Imagem do Pai, e a comunicação que ele nos traz
da doutrina salvifica.
Pelo pecado os homens rebaixaram Deus ao nível dos
seres corporais. Deus assumè-os em seu próprio nível: en­
carna-se. Assim poderão reconhecer “pelàs obras realizadas
no corpo, o Verbo de Deus que está no corpo e, por ele,
reconhecer o Pai” (De Inc. 14). Desde logo os milagres
são antes manifestações do poder divino que sinais de
veracidade. Vendo as obras da onipotência do Cristo (curas,
exorcismos, ressurreições), os homens devem nele reconhe­
cer o Senhor do universo. Como o Verbo invisível mani-
festava-se pelas obras de sua criação, assim o Verbo en­
carnado se faz reconhecer como “Cabeça e Rei do Univer­
so” por suas obras de poder (De Inc. 16). Nele reconhecen­
do o poder divino, os homens podem fazer uma idéia do
poder do Pai, pois tudo que está no Cristo está no Pai,
sendo o Cristo sua perfeita Imagem, sua “impressão”
exata (1 C. Ar. 16;28), que possui como o Pai o Poder
(1 C. Ar. 33), a Senhoria (2 C. Ar. 13), a Eternidade
( 1 C. Ar. 13). Atanásio afirma com Orígenes: “O Ver
bo. . . fez-se visível em seu corpo para fazermos uma idéia
de seu Pai invisível” (De Inc. 54).
Pela encarnação o Cristo também pode fazer o ho­
mem conhecer a doutrina da salvação. “O Salvador
veio dar testemunho” (2 C. Ar. 55); veio fazer conhe­
cido a si mesmo e ao Pai (2 C. Ar. 81; De Inc. 20),
veio trazer aos homens “um ensinamento divino”, objeto
de fé (De Inc. 3). O Cristo é também o Mestre cuja dou­
trina domina o mundo (De Inc. 48), ilumina o universo
(De Inc. 55), transforma as almas (De Inc. 52). A terra
toda está repleta do conhecimento do Pai que nos vem pelo
Filho (2 C. Ar. 81;82). Ensinamento que é também o
dos apóstolos (1 C. Ar. 4), da Igreja (C. Gent. 33), a
fé batismal (1 C. Ar. 8; 2 C. Ar. 34).
O homem podería elevar-se ao conhecimento do Deus
invisível a partir da criação visível; podería também, em sua
alma purificada e iluminada, contemplar, como num espe­
lho, o Verbo de Deus, Imagem do Pai. Falhando essas duas
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 135

vias de conhecimento, Deus instruiu os homens pela Lei e


pelos profetas. E, afinal, o próprio Verbo de Deus, Ima­
gem do Pai, tomou a carne para recriar o homem segundo
a imagem, isto é: para divinizá-lo restaurando nele o ver­
dadeiro conhecimento de Deus. Por suas obras de poder,
manifestou-se o Cristo como Senhor do mundo. Por seu
ensinamento invade o universo todo com o conhecimento
do Filho e do Pai; comunica aos homens um ensinamento
que eles são convidados a aceitar na fé.

4. São Cirilo de Alexandria

Seguindo a Escritura9 Cirilo repete que ninguém viu a


Deus e que o conhecimento do Pai nos vem pelo Filho (Jo.
Ev. 1,10:73,178) 10. O Cristo, Verbo encarnado, é a porta e
o caminho que conduz ao conhecimento do Pai (Jo. Ev.
5,4:73,823).
Pelo Cristo a verdade propõe-se-nos, não em figuras,
como no Antigo Testamento, mas em preceitos claros (Jo.
Ev. 1,9:73,174). “Nosso Senhor Jesus Cristo mostra-nos,
não a imagem das coisas, mas abertamente a própria ver­
dade das coisas. . . O ensinamento das palavras do Cristo
era a transformação e a conversão das figuras em verdade”
(Jo. Ev. 10:74,298). De seus lábios ouvimos a doutrina
inefável (Com. Lc. 10:72,675). Antes, Deus falava aos
homens pelos profetas; agora, o próprio Filho se fez “Dou­
tor e Mestre”. “Só o Cristo ensina, enquanto Mestre e
Sabedoria do Pai” (Com. Lc. 5:72,563). A palavra é,
pois propriamente a “pregação da Boa-nova” (Jo. Ev. 5,
5:73,855).
Para designar a função reveladora do Cristo, o título
preferido por Cirilo é o de Luz. “As nações foram ilumi-

9 H. du Manoir de Juaye, Dogme et spiritualité dans S. Cyrille


d’Alexandrie (Paris, 4944); J. Liébaert, La doctrine christologique de
S. Cyrille d’Alexandrie (Lille, 1951); W. J. Burghardt, The Image of
God in Man According to Cyril of Alexandria (Woodstock, 1957).
10 Quanto a Cirilo de Alexandria, Basilio, Gregorio de Nissa e João
Crisóstomo, posto que as referências às divisões de suas obras são muito
gerais, citamos conforme a edição de Migne: o primeiro algarismo após
os dois pontos indica o tomo; o segundo indica a coluna.
136 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

nadas pelo Cristo, pela doutrina evangélica” (Jo. Ev. 6:73,


994), pela “doutrina da salvação” (Jo. Ev. 6: 73,1050).
“Quem me acompanha, diz o Cristo, isto é, quem segue
os traços de minha doutrina, não estará jamais em trevas,
mas terá a luz da vida, isto é, a revelação dos mistérios
que pode conduzi-lo à vida eterna” (Jo. Ev. 5,2:73,778).
Quanto aos apóstolos, eles receberam do Cristo a mis­
são de ensinar e de iluminar a terra. Devem, colunas
da Igreja, pregar o Evangelho (Glaph. Ex. III: 69,
519). “Foram escolhidos para a função apostólica e rece­
beram o encargo de dispensar, em toda terra, as coisas sa-
gradas, pela pregação apostólica, isto é, pelo Evangelho do
Cristo. Quem lhes disse: Ide, ensinai todas as nações,
constituiu-os mestres ilustres e afamados. Por isso que obe­
decendo pronta e generosamente aos preceitos divinos, ilumi­
naram a terra” (Glaph. Lev.: 69,547).
Cirilo chama a verdade revelada: Boa-nova, doutrina
da salvação, doutrina evangélica, pregação evangélica, dou­
trina inefável, doutrina do Cristo, doutrina divina e evan­
gélica, pregação evangélica e salutar, palavras do Cristo,
preceitos do Cristo, palavra ou mensagem da salvação por
Jesus Cristo, doutrina da fé, doutrina transmitida pelos
apóstolos. Cirilo recomenda aos monges do Egito “guardar
sempre, como uma pedra preciosa engastada em suas al­
mas a fé que foi transmitida pelos santos apóstolos às
Igrejas” (Ep. 1:77,14). Para permanecermos unidos ao
Cristo, é preciso “guardar como depósito divino e espiritual
a puríssima doutrina do ensinamento evangélico e a verda­
deira doutrina da fé” (Jo. Ev. 10:74,366). Nada se pode
ajuntar ou diminuir a esse depósito. Qualquer acréscimo,
inovação ou diminuição seria heresia. Insistentemente re­
pete Cirilo que é preciso não abandonar “a tradição anti­
quissima da fé que até nós chegou a partir dos apóstolos”
(De recta fide, 17:76,1159).
É a fé a resposta que convem ao ensinamento do
Cristo, à sua palavra, à sua doutrina. Píra confessar, po­
rém, o Cristo e sua mensagem é preciso um dom do Pai
das luzes (Jo. Ev. 4,3:73,606). Pedro confessou o Cristo,
mas foi sob o impulso do Pai que lhe “revelou” seu Filho.
O Pai revela o Filho e convida à fé. O Espírito revela o
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 137
Cristo por um ensinamento interior, por uma unção, por
uma iluminação que produz internamente (Jo. Ev. 4,1:73,
554-558). O Filho por sua vez, revela o Pai “inserindo
em cada um de nós uma iluminação do Espírito” (Jo.
Ev. 11,12:74,575).
É pelo Verbo que chegamos ao conhecimento do Pai.
Como Orígenes, Cirilo declara que a vinda do Cristo nos
fez passar da imagem, da figura, do tipo à verdade. Dos
lábios do Cristo, Sabedoria do Pai e Doutor da humanida­
de, ouvimos um ensinamento propriamente divino. O Cris­
to iluminou-nos por sua doutrina de salvação. Revelou os
mistérios que levam à vida eterna. Os apóstolos partici­
pando do magistério do Cristo, iluminaram o universo pela
pregação do Evangelho. Transmitiram à Igreja o depósito
da fé que se deve guardar intato. A Palavra do Evangelho
para ser eficaz e permanecer nas almas pela fé, precisa ser
acompanhada de uma ação interior da graça que Cirilo,
seguindo a Escritura, chama de revelação ou iluminação.

II. OS CAPADÓCIOS

O problema da revelação não preocupa os Capadócios.


Em seu horizonte o primeiro plano é ocupado pela Trinda­
de e pela cristologia. Contudo, a heresia de Eumônio oferece-
-Ihes ocasião para apresentarem a doutrina tradicional. Os
primeiros escritores cristãos — Justino, Irineu, Clemente
de Alexandria, Orígenes —» afirmavam que o conhecimento
da essência divina está além das forças naturais do homem.
Pelo fim do século quarto, Eunômio pretendia, pelo con­
trário, que a essência divina uma vez revelada, já não apre­
sentaria nenhum mistério. Diante desse erro, Gregório de
Nazianzo, Basilio, Gregório de Nissa insistem na incom-
preensibilidade da essência divina, misteriosa mesmo para
a inteligência iluminada pela revelação. A partir do mun­
do visível, pode o homem chegar a conhecer a Deus, sua
existência e seus atributos, mas a essência mesma de Deus
continua sendo trevas que se não podem penetrar totalmente.
138 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

1. São Basilio

São Basilio 11 ensina que somente o Filho e o Espírito


conhecem intimamente o Pai (De Sp. S. 16:32,139).
Mesmo as testemunhas de Deus que receberam suas confi­
dências, Davi, Isaías, Paulo, confessam que a essência divina
é inacessível (A. Eunom. 1,13:29,542). O que sabemos
dos segredos de Deus, o sabemos pelo Cristo que nos faz
conhecer o Pai (De Sp. S. 8:32,104). “Aos que estão
presos sob as trevas da.ignorância, ele os ilumina: é por isso
a Luz verdadeira” (De Sp. S. 8:32,101). Ele é a Verda­
de. Dele, que é o Mestre, recebemos uma “doutrina ne­
cessária e salutar”, que se deve guardar íntegra, à qual nos
devemos agarrar (De Sp. S. 10:32,112-113). Essa dou­
trina encontra-se na Escritura, que é palavra de verdade
(De Sp. S. 4:32,77) e na tradição oral, autorizada e garan­
tida pela Igreja (De Sp. S. 27:32,188.193).
A são Basilio, porém, mais que o dom da doutrina
revelada, interessa sua plena assimilação e frutificação na
alma por uma “iluminação da gnose” (De Sp. S. 8:32,100).
Gnose que é um elemento essencial da assimilação progres­
siva a Deus, da divinização do cristão (De Sp. S. 8:32,97).
É um conhecimento superior de Deus, sob a influência do
Espírito (De Sp. S. 18:32,153).
É de modo inteiramente intelectual que Basilio entende
a ação santificadora do Espírito Santo. Ele deifica ilumi­
nando, revelando, fazendo a alma participar de sua pró­
pria luz (^De Sp. S. 24:32,172). Irradia sua luz na alma
que assim se torna mais e mais transparente e espiritual,
mais penetrante, podendo chegar a uma inteligência maior
das coisas divinas (De Sp. S. 30:32,217). Tal gnose, po­
rém, não é privilégio de alguns iniciados: destina-se a todos
os batizados. Pouco a pouco o espírito de verdade, de sa­
bedoria, manifesta-lhes no Cristo a glória do Filho vindo do

11 B. Pruche, Saint Basile, Traité du Saint-Esprit (“Sources chrétien­


nes 17”, Paris, 1946), pp. 1-100; H. Doerries, De Spiritu Sancto, Der
Beitrag des Basilius zum Abschluss des trinitarischen Dogmas (Gottin­
gen, 1956); S. Giet, Basile de Césarée, Homélies sur l’Hexaéméron
(“Sources chrétiennes 26”, Paris, 1949), pp. 1-84.
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 139

Pai (De Sp. S. 18:32,153). Sob a luz irradiante do Es­


pírito, a inteligência ergue-se, pelo Filho, até ao Pai, pene­
trando cada vez mais nos mistérios divinos. O Espírito
“conhece as profundezas de Deus e dele recebe a criatura
a revelação dos mistérios” (De Sp. S. 24:32,172).

2. ' São Gregório de Nissa

Como são Basilio, Gregório de Nissa 12 insiste, contra


Eunômio, na inacessibilidade da essência divina. Deve-se,
contudo, distinguir entre o conhecimento de Deus autor do
mundo e o de sua essência (De Beatit. Or. 6:44,1270).
Gregório compara o universo a uma obra que permite re­
conhecer não a natureza, mas a existência e a arte do ar­
tífice: “Olhando a ordem da criação, podemos fazer uma
idéia, não da essência, mas da sabedoria de quem tudo
fez sabiamente... ; o invisível por natureza torna-se vi­
sível por sua atividade que algo nos manifesta acerca de
sua natureza” (De Beatit. Or. 6:44,1270.1050). É, pois,
um conhecimento analógico de Deus a partir das perfeições
visíveis de suas criaturas (Cant. Horn. 11:44,1010).
Deus não apenas se deixa conhecer pela pregação si­
lenciosa do universo, mas vem ao encontro do homem es­
tabelecendo com ele uma comunicação pessoal. Tipo da
testemunha das confidências de Deus no Antigo Testamento
é Moisés. Foi “instruído. . . pelo ensinamento inefável de
Deus” (De Vita Moysis I: 44,319); foi iniciado nos segre­
dos divinos; recebeu “o conhecimento dos mistérios ocultos”,
os “mandamentos divinos” (De Vita Moysis I: 44,318).
Sobre a montanha santa, observa Gregório de Nissa, Moisés
recebeu “pela palavra, o mesmo ensinamento que lhe fora
dado antes pelas trevas para que, penso eu, nossa fé nessa
doutrina fosse garantida pelo testemunho da palavra divina”
(De Vita Moysis II: 44,378); comunicou depois a seu povo

12 F. Diekamp, Die Gotteslehre des Hl. Gregor von Nyssa (Münster,


1896); H. U. von Balthasar, Présence et pensée, Essai sur la philo­
sophie religieuse de Grégoire de Nysse (Paris, 1942); J. Daniélou, Pla­
tonisme et théologie mystique (Paris, 1944); Id., Grégoire de Nysse, La
vie de Moïse (“Sources chrétiennes 1 bis”, Paris, 1955), pp. X-XXXV;
R. Leys, L’Image de Dieu chez Grégoire de Nysse (Paris, 1951).
140 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

“os ensinamentos. . . recebidos do Mestre celeste” (De Vita


Moysis Π: 44,375). Gregório ainda nota muito bem que a
doutrina revelada sobre a criação e a queda nos foi comuni­
cada sob a forma de uma história: “Moisés narra mais como
um historiador. . . apresentando-nos doutrinas sob a forma
de relatos” (Or. Cat. 5:45,23;8:45,34).
Com o tempo, fez-se a palavra divina cada vez mais
clara. Débil ainda, sob a Lei e os profetas, brilha e ressoa
na pregação do Evangelho, levada pelo sopro do Espírito
até os confins da terra (De Vita Moysis II: 44,375). No
Cristo e nos apóstolos a revelação atinge seu auge. Com
precisão Gregório descreve essa ação divina. Insistente­
mente repete que nossa fé é segura, instruídos e ensinados
que fomos pelo próprio Senhor. “A fé dos cristãos...
não vem dos homens, nem pelos homens, mas por nosso
Senhor Jesus Cristo, que é o Verbo de Deus, Vida, Luz e
Verdade, Deus e Sabedoria, por sua própria natureza”. En-
carnou-se o Verbo para que os homens não mais se apoias­
sem nas suas próprias opiniões como se fossem verdade.
“Certos de que Deus se manifestou na carne, acreditemos
nesse único verdadeiro mistério de piedade, que nos foi
transmitido pelo próprio Verbo, que pessoalmente falou
aos apóstolos”. Se “o Verbo em pessoa nos dá um teste­
munho no Evangelho”, devemos acreditar nele pois “que
testemunha mais digna de fé que o próprio Senhor pode­
remos encontrar?” (C. Eunom. II: 45,466-467).
Muitas vezes Gregório de Nissa apresenta a idéia de
revelação com o termo paulino mistério, isto é, o segredo
desde a eternidade oculto em Deus e manifestado pelo
Cristo. É, como em são Paulo, o “mistério de piedade” (C.
Eunom. II: 45,466-467) e o mistério da “economia da en­
carnação” (C. Eunom. II: 45,582). Mistério que diversa­
mente dos mistérios pagãos, destina-se essencialmente a ser
promulgado. Assim Pedro revela çlaramente a economia ocul­
ta do mistério. João é o arauto do mistério do conhecimento
de Deus. O mistério, enquanto revelado, é essencialmente a
“Boa-nova”, o “mistério evangélico” (In Ps. c. 8:44,516).
Chega ao conhecimento dos homens pela palavra de Deus,
a palavra do mistério, e os apóstolos são os “servidores
do mistério”. No modo de falar de Gregório, a verdade
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 141

trazida por Cristo aos homens é o ensinamento da religião,


a doutrina nova, o Evangelho, a doutrina de Deus, a graça
do Evangelho, a doutrina do mistério, os ensinamentos
revelados.
Os capadócios, ao mesmo tempo que se opõem a Eu-
nômio, reconhecem duplo caminho de acesso no conheci­
mento de Deus: pela criação visível e pelo ensinamento da
fé. Por Cristo nos vem o conhecimento dos mistérios divi­
nos. São Basilio vê no Cristo e no seu ensinamento a
luz dos homens. Insiste, como Clemente de Alexandria,
no movimento de frutificação que a adesão da fé inicia na
alma: sob a iluminação do Espírito, a alma penetra mais
nos mistérios do Filho e do Pai. Gregório de Nissa vê
na revelação a iniciativa benévola de Deus que confia seus
segredos a suas testemunhas, os profetas e os apóstolos, e
por seu intermédio, à humanidade. No Cristo e no Evan­
gelho culmina a revelação. Então é o próprio Verbo que
testemunha e nos introduz nos segredos divinos. Aos após­
tolos compete a missão de proclamar o mistério de pieda­
de como uma Boa-nova.

III. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

Na esteira de Basilio, Gregório de Nissa e Cirilo de


Jerusalém, são João Crisostomou, escrevendo contra os
anomeus, repete que Deus, mesmo depois da revelação,
continua o Deus oculto e incompreensível. Fala, porém,
de forma mais pastoral.
Deus é invisível, inenarrável, inescrutável, inacessível,
incompreensível, incircunscriptível, irrepresentável: será para
sempre o Abismo, a Escuridão. É radical essa incompreen-
sibiÊdade. Atinge a todas as criaturas: o salmista, Isaías,
Abraão, Moisés, os anjos. Inacessível não é apenas a essên­
cia divina, mas também sua presença no mundo, ou seja, o
mistério de seus caminhos, de seus desígnios e de sua reali-

13 E. Boularand, La venue de Vhomme à la foi dlaprès S. Jean


Chrysostome (Rome, 1939); J. Daniélou et F. Cavallera, Saint Jean
Chrysostomè, Discours sur Vincompréhensibilité de Dieu (“Sources chré­
tiennes 28”, Paris, 1951), pp. 7-45; C. Baur, Der Heilige Joannes Chry·
sostomus und seine Zeit (2 vol. München, 1929-1930).
142 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

zação, tão impenetrável quanto sua transcendência. Quan­


do os profetas afirmam ter visto a Deus, não viram senão
sinais figurativos, na medida de sua fraqueza humana. Ante
o Incomprensível,. deve o homem reconhecer que ele nada
sabe, a menos que pretendesse poder chegar a um conhe­
cimento completo da essência divina (De incompr. Dei Nat.
I-III: 48,701-728).
O perfeito conhecimento de Deus é privilégio exclu­
sivo do Filho e do Espírito (Jo. Horn. 15,1:59,98). Podem
penetrar o próprio Deus apenas o Espírito de Verdade “que
perscruta as profundezas de Deus” (ICor. 2,10) e o Filho
unigênito que vive no seio do Pai: “como Filho, como Mo­
nogenes e como quem habita no seio do Pai, ele conhece per-
feitamente todos os segredos do Pai” (De incompr. Dei
Nat. IV: 48,732). Conhece-o exata, plena, e inteiramente
(Jo. Horn. 15,2:59,98-100).
Apesar de tudo, sabemos algo a respeito de Deus, pois
ele falou aos homens “por si mesmo no começo” (Gen.
c. 1, Horn. 2,2:53,27-28), depois “pelos profetas”, final­
mente “pelo Filho”, que “falou aos apóstolos e por eles
a muitos” (Heb. c. 1, Hom. 1,1:63,15-16). Em Jesus Cris­
to nos é dado o conhecimento do mistério oculto aos po­
vos e aos anjos. O que somente Deus conhecia, ele nô-lo
revelou em seu Filho Jesus Cristo (Col. Hom. 5,1-2;62,331-
333). Foi Deus, pois, e não um homem quem nos ensinou a
fé cristã (Rom. Hom. 27,1:60,643-664). A doutrina anun­
ciada por Cristo contém um conjunto de verdades que a in­
teligência humana não poderia nem atingir nem suspeitar.
Mesmo após a revelação continuam impenetráveis os misté­
rios (Rom. Hom. 27,1 ;60,644-645). Os profetas e os após­
tolos que receberam a revelação dos segredos divinos pro­
clamam, apesar de tudo, sua sabedoria incompreensível.
Ante a imensidade de Deus, o homem é tomado pela
admiração, pelo estupor como Zacarias, tremem os anjos
num terror sagrado. Ante a santidade divina, a criatura
adora, glorifica e se cala. Ante Deus que fala ou se revela,
presta a homenagem da fé (De incompr. Dei Nat. I-III:
48,705-720). Assim foi com Abraão: a seu exemplo, quan­
do Deus fala, o homem deve apresentar-lhe um es­
pírito disponível e desembaraçado de toda sabedoria pro-
TESTEMUNHAS DA IGREJA GREGA 143

fana; deve, na fé, acolher as palavras divinas. “Quando Deus


fala, ou quando faz milagres, devemos crer e obedecer”.
(Rom. Hom. 18,1-2:60,574). S. João Crisóstomo não proíbe
ao cristão aprofundar sua fé; recusa, porém, as especulações
racionalistas. (Ep. ad Tim. Hom. 1,3:62,507). Se Deus
fala, deve o homem conformar sua vida aos ensinamentos
divinos. E, uma vez que Deus nos fala por seu Filho, “vi­
vamos de uma forma que seja digna de tão grande honra.
Seria ridículo, que, dignando-se Jesus Cristo falar-nos por si
mesmo e não mais por seus servos, não fizéssemos mais
que aqueles que nos precederam. Tiveram Moisés por mestre,
e nós temos por doutor o mestre de Moisés. .. Jesus não nos
trouxe uma doutrina celeste senão para que ao céu elevás­
semos o nosso pensamento e para que imitássemos nosso
doutor, à medida de nossas forças e capacidades” (Jo. Hom.
15,3:59,100).
Os profetas, que conheceram a Jesus Cristo antes mes­
mo de sua encarnação, que souberam e anunciaram que ele
deveria vir para entre os homens (Jo. Hom. .8,1:59,66),
em favor dele prestaram seu testemunho que a Escritura
conserva. Assim também os apóstolos são testemunhas do
Cristo, mas do Cristo entre nós. Viram e ouviram o Cristo
desde o começo, comeram e beberam em sua companhia:
também eles testemunham o que viram e ouviram. Ins-
truiu-os Cristo, confiou-lhes seus segredos, comunicou-lhes
sua doutrina (Act. Ap. Hom. 1,2-3:60,16-17). É missão
deles divulgar no universo a doutrina que de Cristo rece­
beram. O que anunciam é a palavra viva do Cristo, o Evan­
gelho, a Boa-nova, “isto é, a libertação das penas, o perdão
dos pecados, a justiça, a santificação, a redenção, a adoção
dos filhos de Deus, a herança de seu reino e a glória de
nos tornarmos irmãos de seu Filho único” (Mt. Horn. 1,
2:57,15). Se todos os atos do Filho têm por finalidade
salvar o homem, podemos dizer que o tema do Evangelho
é o Cristo e a economia da salvação pela cruz. Numa pa­
lavra: é a história sagrada ou “a palavra da cruz” (Mt.
Hom. 1,2:57,16). Os apóstolos, meros ministros do Evan­
gelho, transmitiram-no em sua pureza integral. Sua doutri­
na conserva-se, sem alteração, na Escritura e na tradição
da Igreja.
144 o TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

São João Crisóstomo nada nos apresenta de sistemá­


tico sobre a revelação. Refutando os anomeus e nas suas
homílias sobre a Escritura tem, porém, ocasião, se não de
explicar, pelo menos de afirmar e descrever a revelação.
Contra os anomeus insiste na incompreensibilidade e ina­
cessibilidade de Deus. Só o Filho e o Espírito conhecem
perfeitamente a Deus. O que dele sabemos, nos vem pelos
profetas e principalmente pelo Cristo, o Filho do Pai que
veio trazer aos homens o conhecimento da economia sal­
vifica oculta aos anjos e às nações. Anunciada por Cristo
a Boa-nova da salvação, os apóstolos, suas testemunhas, re­
ceberam a missão de pregá-la e transmiti-la à Igreja. Os
homens são convidados a dar resposta à mensagem de Cristo,
crendo e conformando sua vida à doutrina ouvida.
4.

TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA

I. TERTULIANO

Sendo jurista, Tertuliano1 é um apaixonado da ver­


dade. Para ele o problema do cristianismo é o da verdade
diante do erro (paganismo, as várias heresias). O Cristo
fundara uma religião para levar os homens ao conhecimento
da verdade (Apolog. 21,30). O único problema, pois, é
saber quem possui essa verdade, quem a pode reivindicar.
Justino procurava partir da filosofia, na qual Clemente
via uma correspondência com a Lei dos judeus. Tertuliano
recusa-se a admitir qualquer comunicação entre a filosofia
e a fé: “Tendo Jesus Cristo, já não queremos entrar em
discussões frívolas” (De Pr. 7,13). As analogias encon­
tradas entre o ensinamento da Igreja e o dos filósofos de­
vem-se a empréstimos do Antigo Testamento ou do Evan­
gelho (Apolog. 47,2.13-14). De mais a mais, essa verdade
assim roubada foi corrompida e falsificada pelos filósofos
(Apolog. 47,9); rebaixaram a “doutrina salvifica” à ca­
tegoria de opiniões humanas (Apolog. 47,11), assimilaram
a “revelação divina” a uma “espécie de filosofia” (Apolog.
46,2). Nem por isso se deve concluir que Deus só pode
ser conhecido por revelação. Tertuliano reduz a dois os
meios naturais para conhecermos a Deus: a argumentação
a partir da criação, que utiliza contra Marcião: “Não há

1 L. Fuetscher, “Die natürliche Gotteserkenntnis bei Tertullian”,


Zeit. Kath. Theol., 51 (1927): 1-35, 217-251; A. Vellico, La Rivelazione
e le sue fonti nel "De Praescriptione haereticorum” di Tertulliano (Roma,
1935); R. F. Refoulé, Tertullien, Traité de la prescription contre les
hérétiques (“Sources chrétiennes 46”, Paris, 1957), pp. 11-84; A. d’Alès,
La Théologie de Tertullien (Paris, 1905); M. Spanneut, Le stoïcisme
des Pères de l’Église (Paris, 1957).
146 Ó TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

outro sinal manifesto da existência de nosso Deus senão


toda a obra que criou” (Adv. Marc. I, 11; V, 16); e de­
pois o testemunho espontâneo da alma, que ele maneja con­
tra os pagãos (Apolog. 17,5-6; Test. an. 2). Conheci­
mento bastante imperfeito se comparado com o que nos
vem pela revelação (De anima I). Entre um conhecimento
e outro, porém, há unidade de objetos; o mesmo Deus é
conhecido por duplo caminho: “Afirmamos que Deus deve
ser primeiramente conhecido pela natureza, depois reconhe­
cido por ensinamento: pela natureza, em suas obras; por
ensinamento, pela pregação” (Adv. Marc. I, 18). Deus se
faz nosso Mestre, seja pela criação, seja pela revelação; a
fé, porém, supre as deficiências dos dados naturais. “Para
que pudéssemos conseguir um conhecimento mais completo
e mais profundo dele mesmo, de seus decretos e de suas
vontades”, enviou-nos Deus seus profetas cujas palavras es­
tão na Escritura (Apolog. 18,1-5). Ainda mais, enviou-nos
seu Filho, “a luz, o guia do gênero humano”, que nos
trouxe toda a verdade (Apolog. 21,7).
O Cristo pregou sua doutrina (Apolog. 21,17-18),
instruiu seus apóstolos confiando-lhes a missão de pregar
em toda a terra (Apolog. 21,23). Nossos mestres são, pois,
os apóstolos do Senhor, que “fielmente transmitiram às na­
ções a doutrina recebida do Cristo” (De Pr. 6,4). A ver­
dade vem-nos do Cristo, fonte da revelação, pelos apósto­
los, mediadores privilegiados: “Ninguém conhece o Pai
senão o Filho e aquele a quem o Filho o revelou. Ora, não
se sabe que o Cristo o tenha revelado a outros que não os
apóstolos que enviou a pregar — pregar, evidentemente, o
que lhes tinha revelado” (De Pr. 21,1-2). Por sua vez,
os apóstolos confiaram a doutrina recebida às igrejas que
“fundaram pessoalmente e pessoalmente instruíram, seja de
viva voz, como se diz, seja, mais tarde, por cartas” (De Pr.
21,3). Segue-se que uma doutrina é verdadeira se concor­
de com essas igrejas, pois “contém evidentemente o que as
igrejas receberam dos apóstolos; os apóstolos, do Cristo; o
Cristo, de Deus” (De Pr. 21,4;20,4-8;37,l). Tertuliano
nunca deixa de repetir que a Igreja recebeu dos apóstolos
a verdade. Os apóstolos, e eles exclusivamente, são o canal
autêntico da revelação (De Pr. 6,4); eles foram especial-
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 147
mente instruídos por Cristo (De Pr. 20,3;21,3;22,3 ), por
ele enviados como doutores e mestres das nações (De Pr.
8,14-15;6,4 ). O Espírito Santo, que foi seu doutor (De
Pr. 8,14-15), o “vigário do Cristo” junto deles, conduziu-
-os à plenitude da verdade (De Pr. 28,1-2).
Pela resposta às objeções dos hereges, Tertuliano é
levado a precisar a posição singular dos apóstolos na eco­
nomia da revelação. Objeta-se que os apóstolos não sabiam
tudo, ou que, mesmo sabendo tudo, não ensinaram tudo
para todos (De Pr. 22,2). Tertuliano responde primeira­
mente que os apóstolos tiveram um pleno conhecimento
da revelação: “Quem, sendo sensato, acreditaria que eles
tenham ignorado algo, eles que Cristo estabeleceu como mes­
tres, que foram seus companheiros, seus discípulos, seus
familiares, a quem explicava em particular todos os pontos
obscuros, dizendo que lhes era dado conhecer os segredos
que o povo não tinha o direito de conhecer?” (De Pr.
22,3). E mais: Cristo enviou-lhes o Espírito e prometeu-
-Ihes “a posse de toda a verdade” (De Pr. 22,9). Essa ple­
nitude de conhecimento que possuíam, os apóstolos não a
reservaram para alguns iniciados. A idéia de um Evange­
lho oculto é alheia ao pensamento de Cristo e dos após­
tolos: “O Cristo falou publicamente e jamais alude a úma
doutrina secreta. Impusera mesmo (a seus discípulos)■ pre­
gar à luz do dia e sobre os tetos o que tinham ouvido
na obscuridade e no segredo” (De Pr. 26,2-5 ) Deve-se,
então, concluir que “não é crível não tenhamos apóstolos
conhecido plenamente a doutrina que anunciavam ou que
não tenham entregue a todos a regra total da fé” (De
Pr. 27,1).
Se o Cristo “uma vez por todas confiou” a seus após­
tolos “o Evangelho e uma mesma doutrina” (De Pr. 44,
9), se não há outros mediadores da revelação além
dos apóstolos, a conseqüência é que com eles terminou a
revelação. A Igreja deve conservar intato o depósito
que lhe foi confiado. Qualquer doutrina surgida depois
da pregação apostólica, ou seja qualquer novidade doutri­
nai, será apenas erro. O que é primitivo, é apostólico; o
que é posterior, herético (De Pr. 35,3-4). Aliás, a história
confirma que as doutrinas de Valentim, Marcião, Apeles,
148 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

são fenômenos recentes (De Pr. 29-30). Nenhum desses


hereges pode apresentar de seus bispos uma lista que che­
gue até os apóstolos (De Pr. 32,1). As igrejas, pelo con­
trário, receberam dos apóstolos sua doutrina, como uma
herança direta (De Pr. 37,5). Definitivamente, é a apos-
tolicidade de uma doutrina que constitui o critério de sua
verdade (Apolog. 47,10; Adv. Marc. 1,1). E a apostolici-
dade firma-se pela sucessão contínua desde os apóstolos.
Ambos os argumentos mutuamente se condicionam.
Os termos com que Tertuliano designa a revelação obje­
tiva nos esclarecem sobre sua natureza. Em sua forma reali­
zada a revelação é em primeiro lugar “a doutrina única e
precisa” ensinada pelo Cristo, a qual somos convidados a
aceitar pela fé (De Pr. 9,3). Para marcar o seu caráter
normativo, chama-a Tertuliano “a regra” dada pelo Cristo
aos apóstolos, de uma vez para sempre (De Pr. 44,9), e
por eles comunicada a todos os cristãos (De Pr. 27,1),
como “regra de fé” (De Pr. 12,5), “regra de verdade”
(Apolog. 47,10). Designa-a ainda como “disciplina” no
sentido de doutrina, recebida de Cristo (De Pr. 6,4),
“Evangelho” (De Pr. 7,12), “doutrina” por excelência, em
oposição às heresias (De Pr. 8,15), “doutrina do Cristo”
(De Pr. 8,3;26,5), “doutrina católica” (De Pr. 20,2),
“verdade” (De Pr. 12,1), “mistério” enquanto verdade
sagrada e misteriosa (De Pr. 20,9), “luz” (De Pr. 26,5),
“palavra de Deus” (De Pr. 26,5), “pregação” (De Pr.
23,10), “depósito” (De Pr. 25,3), “fé” ou “fé cristã”
(De Pr. 19,3), “verdadeira fé” (De Pr. 44,12). A reve­
lação é, pois, entendida como uma doutrina, um ensina­
mento do Cristo aos apóstolos, por eles transmitido às Igre­
jas, como verdade absoluta a ser guardada intata como um
depósito.
Com isso chegamos ao cerne das preocupações de Ter­
tuliano: para ele o importante não é saber se existe uma
revelação, mas saber onde encontrá-la e como atingi-la. Daí a
atenção dada à idéia de tradição; para Tertuliano, como pa­
ra Irineu, tradição é a doutrina revelada, considerada, po­
rém, em sua passagem através das gerações. Dirá Tertuliano
que Cristo “transmite” (De Pr. 37,1), os apóstolos “trans­
mitem a doutrina de Cristo” (De Pr. 22,2;32,1), as Igre-
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 149

jas “transmitem” (De Pr. 28,4;37,2). Percebe-se, porém,


a diferença entre os termos. O Cristo transmite como fonte
de verdade; os apóstolos, como mediadores; as Igrejas,
como depositárias. Os apóstolos receberam a doutrina trans­
mitida pelo Cristo (De Pr. 21,4) com o privilégio exclu­
sivo de as transmitir às igrejas por eles fundadas, enquanto
mestres e doutores. Às igrejas compete apenas o direito de
integralmente transmitir a doutrina apostólica, através dos sé­
culos, como uma herança, um bem de família que passa intato
de pai para filho (De Pr. 36,4-5). As igrejas “apostólicas”
são o receptáculo da tradição. Só elas receberam a herança
e para conhecer a verdade basta interrogá-las (Adv. Marc.
I, 21).
Para Tertuliano a doutrina revelada e transmitida iden­
tifica-se, praticamente, com as Escrituras. Após a ascensão
os apóstolos tinham a missão de ensinar as igrejas, seja de
viva voz, seja por escrito (De Pr. 21,3). São duas formas de
ensino, não dois ensinamentos diversos. Tertuliano não
deixa de salientar o acordo fundamental da doutrina e da
Escritura: a alteração sofrida por uma traria a alteração da
outra. A “integridade da doutrina” não se entende “sem a
integridade dos meios que permitem ensiná-la”, ou sejam, as
Escrituras (De Pr. 38,3). Não se pode pois fazer a opo­
sição entre Escritura e doutrina: idêntico é seu conteúdo.
Contudo, não basta apenas a posse material da Escritura:
é preciso ter recebido dos apóstolos a sua autêntica signifi­
cação. As escrituras têm apenas um sentido: o que lhes
foi dado pelos apóstolos e ensinado às igrejas apostólicas.
É preciso 1er a Escritura na Igreja.
Mesmo admitindo que o homem, a partir da criação
e pelo testemunho espontâneo da alma “naturalmente cris­
tã”, possa chegar a Deus por uma via demonstrativa, Ter­
tuliano espera da revelação o conhecimento autêntico de
Deus. Sendo jurista, mostra-se ele menos atento à dimen­
são histórica e ao progresso da revelação que à sua posse.
A revelação sendo verdade, o essencial é possuí-la. Por isso
a idéia de tradição ou de transmissão da verdade tem pre­
cedência sobre a idéia de manifestação. O que garante a
posse da verdade é a continuidade existente entre o Cristo
e os apóstolos, entre estes e as Igrejas por eles fundadas. O
150 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

Cristo é a fonte da verdade; os apóstolos, testemunhas pri­


vilegiadas do Cristo, os únicos mediadores, por ele instruí­
dos, mandatários seus, assistidos pelo Espírito para chega­
rem à posse de toda a verdade. As Igrejas por eles funda­
das e assistidas pelo Espírito são as únicas depositárias da
verdade apostólica que conservam intata como uma herança.
A apostolicidade de uma doutrina, que se concretiza na
sucessão ininterrupta dos bispos desde os apóstolos, é o
critério da verdade. Mais que Irineu, insiste Tertuliano
no caráter concreto da sucessão apostólica, sobre a assis­
tência do Espírito na transmissão da doutrina apostólica
e sobre o caráter normativo da doutrina revelada. A dou­
trina da verdade está consignada nas Escrituras, conforme
são lidas e entendidas pelas igrejas apostólicas.

II. SÃO CIPRIANO

Cipriano2 para designar a ação reveladora adota o


termo tradição. Na origem e na fonte do cristianismo en­
contramos a tradição de Deus, do Cristo e dos apóstolos
(Ep. 67,5;74,2.10; De Unit. 3.12). Ao refutar o erro de
alguns bispos quanto ao rito eucarístico, apresenta-lhes a
“tradição” autêntica e primitiva do Senhor (Ep. 63,2-10).
O verdadeiro discípulo não se deve afastar dos ensinamen­
tos do Mestre: “nem o próprio apóstolo, nem um anjo do
céu podem anunciar ou ensinar diversamente o que o Cristo
ensinou e os apóstolos anunciaram” (Ep. 63,11). Não há
senão um Mestre que deve ser ouvido, o Cristo, (Ep. 63,
14), que é o próprio Filho a nos falar e abrir o caminho
da vida (Dom. Orat. I). Devemos “observar e conservar
o que o Senhor nos ensinou” (Ep. 63,17), guardar a ver­
dade da tradição do Senhor” (Ep. 63,19). “Devemos obe­
decer a seus preceitos e avisos” (De Unit. 15; Dom. Orat.
I), a seu “magistério” (De Unit. 15), pois seu Evangelho
é luz, verdade, ensinamento de Deus (De Unit. 22.10.8).
Hereges e cismáticos são os que se afastam do Cristo, por-

2 A. d’Alès, La théologie de Saint Cyprien (Paris, 1922).


TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 151
que não remontam à “origem da verdade”, “à fonte” que
é o Magistério divino (De Unit. 3).
O mesmo se deve dizer da tradição apostólica. Uma
tradição não tem valor a não ser que se apóie na “tra­
dição evangélica e apostólica”, isto é, aquela que “procede
da autoridade do Senhor e do Evangelho, das prescrições e
das epístolas dos apóstolos” (Ep. 74,2). Na querela ba­
tismal Cipriano observa que, se a verdade se desvia em
algum ponto, é preciso voltar à origem, à tradição evangé­
lica e apostólica, tradição consignada na Escritura (Ep. 63,
2-10). Cipriano firma-se na “autoridade” da fé, na “ver­
dade” das Escrituras (Ep. 73,8;64,3;69,1 ). E as Escritu­
ras encontram-se na Igreja. Deve-se-lhe, pois, indefectível
fidelidade: “Não podemos ter a Deus como pai, se não te­
mos a Igreja como mãe” (De Unit. 6).
Cipriano dá, pois, ao termo tradição o sentido ativo
e forte de primeira comunicação da verdade, ou seja: reve­
lação. A fonte, a origem da verdade cristã é a tradição evan­
gélica e apostólica ou o ensinamento do Cristo e a pregação
dos apóstolos.

III. SANTO AGOSTINHO

É de são João que santo Agostinho3 toma emprestado


os termos com que exprime a idéia de revelação. O centro
de cristalização de seu pensamento é o Cristo, Caminho e
Mediador.
Apesar de uma passagem de sua obra que parece afir­
mar o contrário (De Gen. ad litt. XII, 28-34), o pensa­
mento de Agostinho é que ninguém, aqui em baixo, viu a
Deus (Ep. Jo. tr. 3,17). Moisés viu, não a essência divina,
mas sinais figurativos, “criaturas que traziam a marca de

3 Sobre santo Agostinho e o tema da revelação, cfr.: M. Oltra,


“Como se conosce la revelación sobrenatural según San Agustin”, em
Augustinus, 3 (1958): 281-289; A. C. de Veer, “Revelare-Revelatio”,
em Recherches augustiniennes, 2 (1962): 331-357; M. Pontet, Saint
Augustin: sermons sur saint Jean (Namur, 1958); A. D. R. Polman,
The Word of God according to Saint Augustine (London, 1961); R.
Hoolte, Béatitude et Sagesse (Paris, 1962); F. Arsenault, Le Christ Plé­
nitude de la Révélation (Dissertatio ad lauream, PUG, Romae, 1965).
152 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

seu Senhor”. Quando se diz no Antigo Testamento que


Deus apareceu a nossos Pais, devemos pois entender que
as aparências corporais sob as quais se mostrou foram pro­
duzidas pelos anjos que falavam e agiam como se fossem
Deus em pessoa, ou que tomavam emprestado das criaturas o
que eles mesmos não eram (De rin. III, 11,27). Do teste­
munho de Cristo recebemos o que conhecemos da vida ín­
tima de Deus. Mesmo o conhecimento de Deus autor do
universo, ao qual podemos chegar pela consideração do
mundo criado, é incomparavelmente mais fácil pela fé (De
Util. cred. 10,24). Foi para permitir que o homem, de
olhos tantas vezes anuviados pelo pecado, marche com se­
gurança na verdade que o Filho de Deus se encarnou, tor­
nando-se assim nosso Caminho e nossa Meta (De Civ.
Dei XI, 2).
O Filho, que está no seio do Pai, no-lo dá a conhecer
(De Trin. VIII, 3; Jo tr. 47,3). Ele é a “Sabedoria ge­
rada por Deus Pai”, que manifesta aos homens os “se­
gredos paternos” (De fide et symb. 3,3). Para Deus, re­
velar significa “falar” à sua criatura (Jo. tr. 21,7). O
Filho de Deus desceu a nós para anunciar-nos seu Evan­
gelho: devemos pois acreditar nas palavras que se dignou
dizer-nos (Jo. tr. 22,1). Fazendo assim seu Pai conhecido
das nações, Cristo o glorifica (Jo. tr. 105,1).
A revelação não é a comunicação aos homens de uma
verdade abstrata: insere-se no tempo e toma a forma de uma
história: “Nesta religião o ponto essencial que se deve admi­
tir é a história e a profecia do modo como a Providência
divina realizará no tempo a salvação do gênero humano,
restaurando-o e renovando-o para a vida eterna” (De vera
rel. 7,13). A Cidade de Deus descreve o desenvolvimento
dessa revelação no tempo, história santa da salvação anun­
ciada no Antigo Testamento e realizada em o Novo.
Realizada numa economia de encarnação, a revelação
utiliza todos os caminhos da carne. O Cristo proclama seu
Evangelho tanto pela ação como pela palavra: “ensinamen­
to direto ou figurado, usando a palavra, gesto, o sinal sa­
grado” (De vera rel. 17,33). “Jesus Cristo é o Verbo
de Deus; toda ação, pois, do Verbo é para nós uma pala­
vra” (Jo. tr. 24,2). Nesse contexto fala do milagre da
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 153

multiplicação dos pães. Observa Agostinho por ocasião da


cura do paralítico: “Esse poder e essa bondade procuravam
fazer que as almas compreendessem, por esses atos, os en­
sinamentos referentes à salvação eterna; muito mais isso
que dar aos corpos a saúde transitória de que talvez care­
cessem” (Jo. tr. 17,1).
A palavra do Cristo não é uma palavra humana: está
dotada de dupla dimensão, exterior e interior, pela graça
que acompanha e vivifica a doutrina· anunciada. Agostinho
desenvolve esse pensamento no comentário a Jo. 6,44:
“Ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair”, e no
De Gratia Christi, escrito contra Pelágio. “Chegar ao Cris­
to”, é experimentar a atração do Pai, é acreditar (Jo. tr.
26,5). Assim Pedro confessou o Cristo por uma “reve­
lação” do Pai: “revelação que outra coisa não é que uma
atração”. Trata-se de um dom (Jo. 6,65). Diz ainda o
Cristo: “Todo aquele que ouviu o Pai e recebeu o seu en­
sinamento vem a mim” (Jo. 6,45). Não é pois o Cristo
que fala e que é o Mestre? Responde Agostinho: “O Fi­
lho falava, o Pai ensinava”, pois ensina quem é escutado".
“O Pai ensina aquele que escuta seu Verbo” (Jo. tr. 26,8).
Quem ouve o Verbo é ensinado pelo Pai, por ele atraído:
“Aprendei, pois, a ser atraídos ao Filho pelo Pai, e para
isso escutai o seu Verbo”. O Cristo faz ouvir sua palavra,
mais é o Pai que possibilita ao homem acolhê-la por uma
atração, em direção ao Filho, que ele produz na alma.
Acolher as palavras do Cristo, observa ainda Agostinho, não
é apenas ouvi-las externamente, “com os ouvidos do corpo,
mas no fundo do coração”, como os apóstolos (Jo. tr. 106,
6). Ouvir com os ouvidos interiores, obedecer à voz do
Cristo, crer: é tudo a mesma coisa (Jo. tr. 115,4). Quem
não adere ao Cristo, ainda que tenha ouvido exteriormente
a palavra do Cristo, não ouviu a voz do Pai, não aprendeu
do Pai (De Gr. Christi I, 14,15). Insiste: a palavra que
ressoa externamente nada vale se o Espírito do Cristo não
age internamente para nos fazer perceber a verdade da
palavra ouvida: “Jesus Cristo é nosso Mestre e sua unção
nos instrui. Faltam essa inspiração e essa únção? Em
vão ressoam as palavras em nossos ouvidos” (Ep. Jo. tr.
3,13). Essa graça da fé, concebe-a Agostinho como uma
154 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

inspiração e iluminação (Ep. Jo. tr. 4,8; De Gr. Christi


I, 14,15). É ao mesmo tempo atração e luz. Atração que
solicita as potências do desejo, luz que faz ver no Cristo
a Verdade viva. Seguindo o modo de ver de Agostinho,
o Concilio de Orange dirá que ninguém pode aderir ao
Evangelho e fazer um ato salutar sem ‘‘uma iluminação e
uma inspiração do Espírito Santo que dá a todos a suavi­
dade da adesão e da crença à verdade” (D. 180). De
Deus o homem recébe um duplo dom: o da doutrina e o da
graça para aceitá-la na fé (De Gr. Christi I, 10,11;26,
27;31,34).
Agostinho atribui ao Cristo revelador os títulos con­
sagrados pelos Sinóticos e por João. Conforme a profecia de
Moisés, o Cristo é profeta·. “Os tempos precedentes me­
receram ouvir os profetas inspirados e repletos do Verbo
de Deus; quanto a nós, merecemos ter como profeta o pró­
prio Verbo de Deus. Ora, o Cristo é profeta e Senhor
dos profetas” (Jo. tr. 24,7). Agostinho tem preferência
pelo título de Mestre. O Cristo é o Mestre do Antigo e
do Novo Testamento. Os profetas ouviram sua voz (Jo.
tr. 45,9), outro Evangelho não existe além do que nos
ensinou por si mesmo e por seus apóstolos (Ep. ad. Gal.
exp. 4). Sendo o Mestre cuja luz brilha a nossos olhos, o
Cristo ensina as verdades da Salvação (Jo. tr. 17,15;21,7).
Devemos então agarrar-nos “firmemente aos ensinamentos
que ele mesmo determinou” (Jo. tr. 7,7). De forma ainda
mais universal, o Cristo, sendo Verbo de Deus, é a única
luz das almas, o princípio de todo conhecimento, seja na­
tural, ou sobrenatural. Ele é o Mestre interior.
Agostinho gosta de definir o Cristo com os termos
joaninos de Caminho, Verdade, Luz, Vida. O Cristo não
apenas ensina a verdade, é a Verdade (Jo. tr. 37,7). É a
Luz. E aqui a metáfora agostianina de iluminação se en­
contra com a Escritura. Luz verdadeira, o Cristo é fonte
de luz. Por ele iluminado, o homem pode tornar-se, ele
também, testemunha da Luz e arauto do Dia: assim o fo­
ram João Batista, os profetas, os apóstolos. O Cristo é
finalmente Vida e fonte de Vida (Jo. 14,6). Os títulos de
Verdade e de Vida designam a divindade do Cristo. Pela
encarnação é que o Verbo de Deus se tornou Caminho
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 155

para nós: Caminho que leva à Verdade e à Vida (Joé tr.


34). Verdade e Caminho: títulos que resumem para Agos­
tinho todo o mistério do Cristo. O Cristo é Caminho para
a Verdade e a Vida. Verdade e Vida, tomou a carne para
ser nosso Caminho (Serm. 141,4).
O Cristo é, pois, ao mesmo tempo, Meta e Caminho:
o Deus revelado e aquele por quem Deus se revela. O que
nos ensina é sua doutrina, mas doutrina que tem como
objeto o próprio Cristo; “Jesus Cristo prega Jesus Cristo,
pois que ele mesmo é o objeto de sua pregação” (Jo. tr.
47,3). Pessoalmente é “a Doutrina do Pai, se ele é o
Verbo do Pai” (Jo. tr. 29,3;30,6). A doutrina conside­
rada em seus enunciados designa a doutrina considerada
em sua realidade. E a realidade é o Verbo de Deus, Doutri­
na do Pai, Sabedoria de Deus, Filho de Deus. “Aplicai-
-vos, então, à doutrina de Jesus Cristo e chegareis ao Verbo
de Deus” (Jo. tr. 29,4). Da revelação-doutrina à revela-
ção-mistério vai o dinâmico movimento da revelação.
O que Cristo revela é ele mesmo, mas é também o
Pai: “É por seu próprio Filho que ele (o Pai) revela
o Filho e é por seu Filho que ele se revela” (Jo. tr. 23,
4). Revelando-se, o Pai quis exprimir apenas uma coisa
essencial: seu amor. O Cristo “veio principalmente para
fazer o homem conhecer quanto Deus o ama, para fazer-
-Ihe saber que se deve inflamar de amor por aquele que
amou primeiro” (De Cat. rud. 4,8; De Gr. Christi I,
26,27).
O Cristo é a Luz; os apóstolos e os profetas são teste­
munhas da Luz. Apoiados em seu testemunho é que acredita­
mos nas realidades invisíveis (De Civ. Dei XI, 3). Os profe­
tas são chamados “profetas devido aos acontecimentos fu­
turos que prenunciaram ou de certa maneira prefiguraram,
acontecimentos referentes à Cidade de Deus e ao Reino dos
céus” (De Civ. Dei XVII, 1). Também o passado lhes
foi manifestado. O profeta não estava presente à criação,
mas lá estava a “Sabedoria de Deus”, por quem tudo foi
feito, que “internamente narra suas obras, sem rumor de
palavras” (De Civ. Dei XI, 4). No De Gen. ad litt. 12,
6-27 Agostinho explica sumariamente como Deus age na
alma do profeta. Distingue très tipos de visões: corpo-
156 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

rais, espirituais ou imaginativas, e intelectuais, conforme o


objeto da visão é percebido pelos sentidos, pela imagina­
ção ou pela inteligência. Distingue ainda na profecia a
acceptio das imagens e a sua interpretação. O que caracte­
riza o verdadeiro profeta é a capacidade de interpretar os
sinais, graças à luz que recebe. O profeta é aquele “cuja
alma é iluminada para compreender”. Não apenas percebe
as figuras, os sinais,’ mas tem também “a interpretação das
imagens”. Assim Daniel: “As imagens corporais foram
produzidas em seu espírito; o sentido, foi-lhe revelado à
alma” (De Gen. ad litt. XII, 9). Santo Tomás voltará a
isso: o mais importante na profecia não são as representa­
ções, mas a luz para julgá-las, corretamente, para perceber o
sentido entendido por Deus.
Verbo de Deus, “tendo falado primeiro pelos profetas,
falou por si mesmo, depois pelos seus apóstolos, na medida
em que o julgou necessário” (De Civ. Dei XI, 3). Os
apóstolos são testemunhas do Cristo, pois “viram o Senhor
presente na carne, recolheram as palavras de seus lábios
e anunciaram-nos o que tinham visto e ouvido (Ep. Jo. tr.
I, 3-4). Receberam do próprio Cristo a missão de pre­
gar ao gênero humano “suas ações e suas palavras” (De Cons.
Evang. I, 16; Ep. Jo. tr. 4,2). A palavra dos apóstolos é
pois a palavra de Deus que se deve crer (Jo. tr. 109,5).
Palavra que inicialmente foi pregada (Jo. tr. 109,1), fiel­
mente escrita depois. Deve-se receber o relato dos Evan­
gelhos como se a mão do próprio Salvador o tivesse escrito
(De Cons. Evang. I, 35. 54). Encontramos assim a dou­
trina que devemos crer, na palavra apostólica “chegada até
nós, por onde quer que se estenda o império da Igreja”
(Jo. tr. 109,1; De fide et symb. I, 1), e na Escritura que
a contém (Enchir. I, 4). Os apóstolos, a Igreja, a Es­
critura: são os elos que nos unem ao Cristo e que garantem
a autenticidade da fé católica. Aos que procuram a ver­
dade Agostinho aconselha seguir “a regra católica que,
do Cristo em pessoa, veio até nós pelos apóstolos e passará
a nossos descendentes” ((De Util. 8,20).
É a fé a resposta à pregação do Evangelho pela Igre­
ja: “Ouvimos o Evangelho e demos a nossa adesão; pelo
Evangelho de Jesus Cristo, chegamos à fé” (Jo. tr. 16,3).
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 157
A fé, fecundada pela caridade e por seu dinamismo próprio,
expande-se em conhecimento sempre mais penetrante dos
mistérios. A recompensa imediata da fé é a inteligência.
Mas a fé não é visão. Por ela, “esforça-se a alma por che­
gar até a visão, em que os corações santos e perfeitos co­
nhecem a bondade inefável cuja plena intuição constitui
a suprema felicidade. .. O começo é a fé; o termo, a visão.
Eis em resumo toda a nossa doutrina” (Enchir. 1,5). Vi­
vemos na economia do testemunho e da fé, esperando a
visão, quando os profetas, os apóstolos, o Evangelho se
calarão. “Já não precisaremos de sua luz, quando esses
homens de Deus que no-la dispensavam participarem co­
nosco da visão da luz verdadeira e esplêndida” do próprio
Verbo (Jo. tr. 35,9).
Como os outros Padres, também Agostinho não tratou
ex professo do conceito de revelação, que, porém, está oni­
presente em sua obra. Em termos joaninos, Agostinho afir­
ma que a visão de Deus agora nos é impossível. O mediador
de toda revelação é Jesus Cristo, Verbo de Deus, Filho
de Deus, que por suas palavras e ações veio manifestar-nos
oTTvangelho da Salvação. Sua mensagem, porém, não atinge
seu efeito se o homem, atraído pelo Pai, não abre seu cora­
ção à palavra externamente ouvida. A palavra exterior do
Cristo, a iluminação e a inspiração do Espírito formam a
única palavra de Deus. Tendo em conta seu papel na re­
velação, o Cristo é chamado Profeta, Senhor dos profetas
e principalmente Mestre. Ensina a verdade e ao mesmo
tempo é a Verdade, Deus que revela e Deus revelado, Meta
e Caminho. Sua doutrina refere-se a ele mesmo, que é em
pessoa a Doutrina do Pai, Mistério revelado. O que revela
é sua própria pessoa e por si mesmo revela o amor do
Pai. Os profetas e apóstolos participam de sua Luz: Luz
que anunciam e da qual prestam testemunho, pois que a
viram e ouviram. Atingimos a palavra de Cristo, objeto
de nossa fé, pela palavra apostólica consignada na Escri­
tura e proclamada pela Igreja. Agora caminhamos na fé,
fé que suspira pela visão, quando a Luz do Verbo absorverá
as pálidas luzes da fé.
158 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

CONCLUSÕES

1. Onipresença do tema da revelação

Sem contestação o tema da revelação ocupa um pri­


meiro plano na consciência cristã dos très primeiros séculos.
Os cristãos são os que conhecem a Deus. O Incognoscível
saiu de seu mistério e manifestou-se aos homens: primeiro
ao povo judeu, pela Lei e pelos profetas, depois à humani­
dade toda pelo Cristo, Verbo encarnado, que veio pessoal­
mente contar-nos os mistérios do Pai. Esse grande in­
teresse pelo tema da revelação tem diversas causas:
a) As primeiras gerações cristãs estão ainda sob o
impacto da grande epifania de Deus no Cristo. As teste­
munhas desse acontecimento assombroso, ou seus discípulos,
vivem ainda e proclamam o Evangelho da salvação. Como
podería, então, o impacto desse acontecimento deixar de
repercutir tanto nos escritos como nas instituições?
b) A preocupação de atingir os pagãos leva os pensa­
dores cristãos a procurar pontos de aproximação entre o
cristianismo e o pensamento contemporâneo. Por isso os
apologetas tomarão o conceito de Logos, comum a todas as
religiões do Império e aos sistemas filosóficos do século
III, para fazer a teologia do Logos verdadeiro, de sua vida
no seio da Trindade e de suas manifestações pela criação,
pela Lei e pelo Evangelho. Poderão assim ser compreen­
didos pelos círculos cultos e levar ao Cristo novos apóstolos.
c) Também os primeiros hereges levaram os pensa­
dores cristãos ao terreno da revelação. Os gnósticos, em certo
sentido, elevam ao máximo o conceito de revelação, mas
o deformam ao mesmo tempo. Pensam que a salvação se
reduz à gnose, em vez de ser também um conhecimento.
Os escritores cristãos mostram que o cristianismo traz a
verdadeira gnose, evidenciando, porém, que é ao mesmo
tempo e inseparavelmente vida e conhecimento.
Entre os gnósticos os marcionitas consideram o Cristo
como o revelador de um Deus totalmente novo, desconhecido
do mundo judeu. Estabelecem uma diferença radical entre
o Deus do Antigo e o do Novo testamento. Têm assim os
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 159

Padres oportunidade para salientar a harmonia e o pro­


gresso da revelação, obra de um só e único Deus por seu
Logos.
No IV século, por fim, a heresia de Eunômio levou os
Capadócios e são João Crisóstomo a tornar mais preciso
o pensamento tradicional sobre o conhecimento de Deus.

2. Conhecimento natural e conhecimento sobrenatural

Os Padres da Igreja afirmam constantemente que Deus


está além de qualquer definição ou compreensão: inefável
e incompreensível. Justamente enquanto Deus é incognos-
cível, percebem eles a necessidade da revelação. O Conhe­
cimento de Deus, em sua natureza íntima, não se obtém a
não ser por graça. Só Deus pode instruir-nos a respeito de
Deus, dizem todos com Atenágoras.
De forma não menos constante afirmam também que
Deus pode ser conhecido até certo ponto, mesmo sem a re­
velação, por um duplo caminho. A partir do mundo visível
pode-se deduzir a existência de seu autor, e conceber algo
de seus atributos: poder, sabedoria, beleza, providência. O
segundo caminho é o da consciência ou o do testemunho
espontâneo da alma. Os Padres, contudo, insistem na pre­
cariedade desse conhecimento natural em confronto com
o da revelação. Salientam, afinal, que entre um e outro
não há oposição mas continuidade, já que o mesmo Logos
se manifesta num e noutro.

3. Os dois Testamentos·, unidade e progresso

No começo do cristianismo um dos maiores problemas


é o da relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Os
judaizantes querem preservar a primazia da revelação pro­
fética, enquanto os marcionistas estabelecem oposição entre
ambos os Testamentos. Os Padres tiveram, pois, que exa­
minar a relação entre a Lei e o Evangelho. Primeiramente
salientam a unidade profunda de ambos. Um só e mesmo
Deus é o autor da revelação por seu Verbo ou Logos, sen­
do a criação, as teofanias, a Lei, os Profetas, a encarnação,
160 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

etapas dessa única e contínua manifestação de Deus através


da história humana.
Doutra parte salientam, não menos claramente, o pro­
gresso de uma revelação à outra. Progresso que cada um
considera de modo um tanto diferente. Segundo Justino
temos uma manifestação parcial e obscura do Logos no
Antigo Testamento, plena em o Novo. Irineu vê no An­
tigo Testamento uma preparação, educação da humanidade,
esboços e promessas da encarnação; em o Novo Testamen­
to, realização, presença e dom; primeiro, disciplina externa,
depois, espírito de adoção. Conforme Clemente de Alexan­
dria: enigmas e mistérios no Antigo; explicação da profecia
em o Novo. Para Orígenes, temos no Antigo Testamento o
conhecimento dos mistérios; em o Novo, a realização e posse;
passagem das sombras e das imagens à verdade, da letra
e da história ao espírito.

4. Economia e pedagogia

Os padres, principalmente Justino, Irineu, Clemente,


Orígenes, Basilio, Gregório de Níssa, Agostinho, insistem
no carater econômico da revelação. ; Ela apresenta-se como
um plano de salvação, sapientíssimo, que Deus concebeu
desde toda a eternidade e realizou pacientemente segundo
caminhos previstos, preparando a humanidade, fazendo-a
amadurecer, revelando-lhe progressivamente os desígnios di­
vinos na medida em que o podia suportar. Comprazem-se
os Padres em traçar a história das iniciativas divinas a acos­
tumar os homens à sua presença, às investidas da graça
sobre a natureza humana.
Prende-se a essa idéia a do retardamento na vinda do
Cristo. Afirma a Epístola a Diogneto que os homens deviam
experimentar sua impotência antes que conhecessem a plenitu­
de da salvação (perspectiva dramática). Irineu, Clemente,
Orígenes (em algumas passagens), desenvolvem a tese da
pedagogia divina.
Deus educa a humanidade, preparando-a para receber
a plenitude dos dons divinos da encarnação ( visão otimista ).
Agostinho e Orígenes (noutros passos) mal se propõem o
problema, pois a Igreja é coextensiva com a humanidade.
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 161

Começou com os patriarcas. A verdade do Cristo já era


conhecida pelos profetas do Antigo Testamento.

5. Aí etapas da revelação

Os Padres evocam constantemente as grandes etapas


da revelação e salientam seu caráter profundamente histó­
rico. Dessa visão são sempre os mesmos os pontos prin­
cipais: dum lado a Lei e os profetas; doutro, os apóstolos
e a Igreja; no centro e no ápice, o Cristo. Com outras pa­
lavras: preparação do Cristo, vinda do Verbo encarnado,
missão dos apóstolos, extensão da salvação no mundo e no
tempo pela Igreja. Há, porém, variações no esquema. Os
apologetas dão lugar preponderante aos profetas. Inácio
de Antioquia, Irineu, Tertuliano, Cirilo de Alexandria, João
Crisóstomo insistem no papel dos apóstolos. Inácio de An­
tioquia, Irineu, Tertuliano, Cipriano, Orígenes, Agostinho
estabelecem um estreito nexo entre a Igreja e o desenvol­
ver-se da revelação. Clemente de Alexandria considera a filo­
sofia dos gregos como um Testamento especial, equivalente
à Lei dos judeus. Para todos, culmina a revelação no Cristo,
o Filho do Pai, o perfeito revelador, o Verbo ou Logos
de Deus encarnado.

6. O Cristo e a revelação

De modo geral os Padres, quando falam em revelação,


referem-se ao fato de Cristo, o Verbo de Deus, a Imagem
do Pai, ter manifestado o Pai e seus desígnios de salva­
ção, usando, para comunicar aos homens esse conhecimento,
todos os caminhos da encarnação, tanto a palavra como
a ação. As mais das vezes, contudo, é à palavra humana
do Cristo que eles atribuem o papel principal. Dentro
dessa concepção geral podemos distinguir acentuações di­
versas, tomando, porém, o cuidado de não torná-las rígidas
demais:
a) Inácio de Antioquia, Atanásio e principalmente
Irineu falam da revelação em termos realistas e bíblicos.
Segundo Isaías 40,5, o homem deveria, quando da época
messiânica, ver a Deus. Irineu vê no Cristo a realização
6 - Teologia da revelação
162 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

dessa promessa. Jesus Cristo é a epifania existencial de


Deus. No Filho que se tornou visível e palpável, é o Pai
que se nos mostra e manifesta.
b) No polo oposto encontramos uma teologia de cunho
bastante grego, menos atenta ao papel da carne. É a po­
sição representada por Justino e em grande parte por Cle­
mente de Alexandria, que no Cristo vê principalmente o
Mestre, fonte de toda verdade e, na revelação, a comunica­
ção da verdade absoluta, da verdadeira filosofia.
c) Num meio termo podemos colocar Orígenes. Con­
forme ele, Cristo revela enquanto por intermédio de
sua carne podemos compreender, conceber, fazer uma idéia
do Verbo, e por ele, Imagem do Pai, podemos chegar a uma
idéia do próprio Pai.

7. Mediadores da revelação

Os títulos dados ao Cristo, aos profetas e aos após­


tolos, bem como os verbos empregados para indicar sua
ação, esclarecem-nos sobre o como os Padre entendiam a
revelação.
a) Os profetas, além de seu título habitual de pro­
fetas, são também chamados instrumentos de Deus, teste­
munhas de Deus, testemunhas da verdade, testemunhas do
Cristo, testemunhas da luz, discípulos espirituais do Cristo,
anunciadores do Cristo, mestres dos homens. Sua função
é anunciar o Cristo, anunciar os mistérios da salvação, anun­
ciar a verdade; testemunhar, ensinar as vontades de Deus.
b) Os apologetas dão áo Cristo títulos que vão de­
saparecer depois: chamam-no de anjo e apóstolo (Justino).
O título mais freqüentemente empregado para designar o
Cristo como revelador é o de Mestre, universalmente em­
pregado principalmente a partir de Clemente. O Cristo
é o Verbo de Deus, o Filho encarnado, que veio para en­
sinar aos homens o caminho da salvação. Ele é o Caminho,
o Guia, o Pastor, a Boa-nova em pessoa. Sua doutrina é
luz e vida para os homens.
O Cristo anuncia os desígnios de Deus (Justino), os
mistérios de Deus (Orígenes). Manifesta Deus (Inácio de
Antioquia, Atanásio), o Pai (Irineu), os segredos de Deus
TESTEMUNHAS DA IGREJA LATINA 163

(Inácio de Antioquia), os mistérios do Pai (Agostinho).


Revela o Pai (Tertuliano, Irineu, Orígenes). Ele fala (Orí­
genes, Gregório de Nissa, Crisóstomo, Agostinho). Faz
compreender o Pai (Orígenes). Testemunha (Atanásio, Gre­
gório de Nissa). Ele prega (Tertuliano, Agostinho). Trans­
mite a verdade do Evangelho (Tertuliano, Cipriano). Prin­
cipalmente, ele ensina (Clemente de Roma, Justino, Ate-
nágoras, Epístola a Diogneto, Irineu, Tertuliano, Cipriano,
Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, Crisostomo,
Gregório de Nissa, Agostinho). Ele ilumina (Justino, Cle­
mente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, Cirilo de Alexan­
dria, Basilio, Agostinho).
Como vemos, Os alexandrinos vêem na revelação prin­
cipalmente uma iluminação. Para eles o Cristo é aquele que
traz a luz às inteligências mergulhadas nas trevas. Nostalgia
platônica do mundo da luz e de sua contemplação pela
inteligência.
c) Os apóstolos são os mensageiros da Boa-nova, os
pregadores do Evangelho, os doutores e mestres das nações,
as testemunhas do Cristo. Eles pregam (Policarpo, Epístola
a Diogneto, Irineu, Tertuliano, Cirilo de Alexandria, Orí­
genes, Agostinho). Pregam e transmitem (Irineu); trans­
mitem (Cipriano, Tertuliano); testemunham (Agostinho);
ensinam (Inácio de Antioquia, Atanásio, Cirilo de Alexan­
dria, Tertuliano); iluminam (Cirilo de Alexandria).
d) A Igreja guarda fielmente, conserva, ensina sem
falhar e transmite. A idéia de tradição ocupa sempre o pri­
meiro posto.

8. A revelação ohjetiva e seus nomes

A revelação, enquanto já realizada, recebe os seguin­


tes nomes: verdadeira sabedoria (Clemente de Alexan­
dria), palavra de Deus (Clemente de Roma, Tertulia­
no ), revelação divina ( Tertuliano ), palavra de justiça
(Policarpo), palavra do Cristo (Cirilo de Alexandria), pa­
lavra da cruz (Crisóstomo), Boa-nova ou Evangelho (Cle­
mente de Roma, Inácio de Antioquia, Tertuliano, Cirilo de
Alexandria), pregação evangélica ou apostólica (Cirilo de
Alexandria), mistério (Tertuliano, Gregório de Nissa), près-
164 O TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES

crições, preceitos, mandamentos, vontades, estatutos de Deus


ou do Cristo (todos), ensinamentos, instruções, doutrinas,
doutrina, doutrina de fé, doutrina de salvação, doutrina evan­
gélica (todos), ensinamentos dos apóstolos (Inácio de An­
tioquia), fé ou fé cristã (Inácio de Antioquia, Irineu, Tertu­
liano ), regra da fé, regra da verdade ( Tertuliano ), regra do
Evangelho (Didaché), regra católica (Agostinho), tradição
(Irineu, Tertuliano, Cipriano), depósito (Tertuliano, Cirilo
de Alexandria).

9. Dupla dimensão da revelação

A maioria dos Padres da Igreja insistem que a palavra


da revelação não é uma palavra humana mas divina: é acom­
panhada pela graça. A ação exterior do Cristo que fala e
comunica a doutrina da salvação, corresponde uma ação
interior que os Padres, seguindo a Escritura, chamam re­
velação, atração, audição interior, iluminação, unção, teste­
munho. Ao mesmo tempo que a Igreja anuncia a Boa-nova
da Salvação, o Espírito age internamente para tornar fecunda
e salutar a palavra ouvida. Orígenes, Agostinho, Cirilo de
Alexandria insistem nessa segunda dimensão da revelação.
Deve-se atribuir à ação interior dessa graça a adesão à men­
sagem do Evangelho.

10. O frutificar da revelação

Os apologetas mostram-se sensíveis principalmente


à comunicação da mensagem da verdade aos homens. Os
alexandrinos e os capadócios estão mais atentos à apropria­
ção subjetiva da verdade e à sua frutificação na alma pela
fé e pelos dons do Espírito. A fé é o ponto inicial duma
penetração sempre mais profunda da verdade recebida, de
uma busca da inteligência, sempre mais intensa e ardente.
Contudo, a gnose cristã não é simplesmente um conheci­
mento, como o podería ser para os gregos, mas é sabedoria
e vida. É inteligência dos mistérios orientada para a per­
feição espiritual sob a influência do Espírito e de seus dons,
que ilumina o crente e o transfigura, assimila-o aò Cristo,
e o torna capaz, por sua vez, de gerar gnósticos perfeitos.
terceira parte

A NOÇAO DE’rEVELAÇAO
NA TRADIÇAO TEOLÓGICA
A finalidade desta terceira parte é mostrar como os
teólogos, partindo dos dados da Escritura, da tradição e do
ensino da Igreja, descrevem e concebem a noção de revela­
ção. Nossa pesquisa começa com o século XIII: não que
os séculos anteriores não apresentem nada de interessante,
mas porque a teologia escolástica, atingida sua plena ma­
turidade, ao mesmo tempo que recolhe as riquezas do pas­
sado, ordena-as e submete-as a uma análise mais rigorosa
e metódica. Ainda mais que nosso plano não é fazer pesquisa
exaustiva através de todos os séculos e em todos os teólogos.
Quisemos apenas indicar as linhas básicas da teologia da
revelação, tais como se manifestam nas diversas escolas e
principalmente em seus teólogos mais importantes.
Examinaremos sucessivamente: 1. A tradição do sé­
culo XIII, representado por são Boaventura e santo To­
más; 2. Os teólogos pós-tridentinos, principalmente os do­
minicanos Cano e Banes, os jesuítas Suarez e De Lugo, os
carmelitas de Salamanca; 3. Alguns representantes da re­
novação teológica do século XIX: Mõhler, Denzinger, Fran-
zelin, Newman, Scheeben. Do período contemporâneo,
posterior à crise do modernismo, veremos o ensino comum
dos teólogos no início do século XX; mostraremos depois
como, há um quarto de século mais ou menos, se inicia uma
importante renovação da teologia da revelação.
Demoraremos mais na contribuição dos séculos XIII
e XX (capítulos I e IV) que nos parece mais rica de ele­
mentos válidos para uma teologia da revelação. Nos ca­
pítulos II e III iremos apenas deixando balizas entre a
época medieval e a contemporânea.
1.
A ESCOLASTICA DO SÉCULO XIII

Não é preocupação dos escolásticos do século XIII


nem da teologia que os precedeu interrogar-se especialmente
sobre a natureza e as propriedades da revelação cristã. Santo
Tomás, por exemplo, fora de seus comentários escriturísti-
cos onde o texto sagrado inspirava seus passos, tem apenas
breves indicações quanto à revelação pelo Cristo e pelos
apóstolos. O que principalmente prende a atenção é a re­
velação imediata dirigida aos profetas: carisma de conhe­
cimento, entendido como uma iluminação do espírito. Fa­
lam também da revelação objetiva ou do Evangelho, suma­
riamente, porém.

I. SAO BOAVENTURA

São Boaventura fala ocasionalmente da revelação em


seu Comentário das Sentenças de Pedro Lombardo e nos
seus comentários bíblicos; fala mais explicitamente no seu
tratado sobre a profecia \

1. Revelação e economia da revelação

O emprêgo do termo “revelação” no Proemio ao co­


mentário das Sentenças indica-nos a inclinação de seu pen­
samento: a revelação é luz para o espírito. Quatro abismos,
diz ele, abrem-se ante o teólogo, quatro segredos ou mis-

1 S. Boaventura estudou a profecia num tratado inédito, atualmente


propriedade da Biblioteca Municipal de Assis, cod. 186. Cfr. F.-M. Hen-
quinet, “Un brouillon autographe de S. Bonaventure sur le Commentaire
des Sentences”, Études franciscaines, 44 (1932): 633-655; 45 (1933):
59-81.
170 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

térios: o mistério de Deus e de sua vida íntima, o mistério


da criação e do pecado, o mistério da encarnação e da re­
denção, o mistério dos sacramentos e da glória à qual con­
duzem. Quem perscruta esses mistérios é propriamente o
Espírito Santo (ICor 2,10), o revelador dos segredos e
dos abismos da Trindade. Contudo, diz são Boaventura, a
função do teólogo analogicamente se aproxima à do Espí­
rito Santo. Ele perscruta os mistérios divinos para desco­
brir-lhes as profundezas, dá-las a conhecer e manifestar2.
Revelar significa pois, iluminar o espírito quanto ao que
antes era trevas, segredo, mistério. Um segundo elemento,
essencial ao conceito de revelação, é a certeza que ela nos
traz. “Chamo revelação o dar interiormente uma ilumina­
ção certa” referente a um acontecimento futuro3. Sob esse
aspeto distingue-se a revelação da pregação 4, da conjetura e
da opinião5.
Deus revela algo à humanidade quando fala ao homem,
isto é, ilumina seu espírito6. Relevação, palavra, ilumina­
ção são termos conversíveis. A palavra de Deus é eterna
e temporal: eterna é a Palavra pela qual, no seio da Trin­
dade, o Pai gera um Filho que lhe é em tudo semelhante;
temporal é a palavra que Deus profere para fora pela cria­
ção e pela revelação de si mesmo à humanidade7. Deus
fala ao homem de très modos: por sinais que atingem seus
sentidos externos, por sinais que atingem seus sentidos in­
ternos e a imaginação, e finalmente por uma palavra que
inspira diretamente ao espírito. Nos dois primeiros casos

2 I Sent., proemíum. Citamos segundo: Doctoris Seraphici S. Bona-


venturae Opera omnia edita studio et cura Patrum Collegii a S. Bonaven­
tura (Quaracchi, 1882-1902).
3 11 Sent., d. 4, a. 2, q. 2, c.
4 “differt praedicere et revelare...; quia quod revelatur,, certitudina-
liter scitur; quod vero praedicitur, non; quia aliquando creditur ex com­
minatione dictum, aliquando vero sub conditione” (In Jo., c, XIII, 55).
5 Assis, cod. 186, 31va.
6 “In Deo enim loqui ad alterum supra intellectum notat effectum,
videlicet revelationem. Non enim dicitur Deus nobis loqui solum quia
intelligit, sed etiam quia revelando aliquam illustrationem in nobis efficit.
Unde Gregorius in Moralibus: Dei locutio, ad nos intrinsecus facta, vi­
detur potius quam auditur; quia, dum semetipsum sine mora sermonis
insinuat, repentina luce tenebras nostrae ignorantiae illustrat” (II Sent.,
d. 10, a. 3, q. 1, c.)
7 II Sent., d. 13, dub. 3; I Sent., d. 27, p. 2, a. un., q. 1, c.
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 171

os anjos podem servir como causa instrumental; o terceiro


modo é próprio de Deus8.
Precisava o homem da revelação, pois sua atividade,
eficaz no que toca às realidades do mundo natural, mostra-
-se impotente e débil quando se trata da salvação: então
o homem mais regride do que avança se não for “dirigido
pelo ensinamento da divina revelação”; por isso “nos foi
dada a Escritura, divinamente inspirada pelo Espírito San­
to”, que nos instrui no tocante à fé e aos costumes9.
A revelação é uma ação comum à Trindade; atribui-se,
porém, especialmente ao Filho e ao Espírito10. Contudo,
o Filho e o Espírito não nos revelaram tudo, mas apenas
o necessário para a salvação 11. A hora do juizo final, por
exemplo, continua desconhecida para nós, pois que nos é
mais útil ignorá-la 12.
A ação reveladora desenvolve-se no tempo e na histó­
ria, num ritmo estabelecido por Deus, que prepara a huma­
nidade para receber dons sempre maiores; assim foi a eco­
nomia sacramental retardada até à sexta idade do mundo 13.
A revelação começada com os profetas, só com Cristo e os
apóstolos projetou sua luz total14. Mesmo a revelação pro­
fética, através dos séculos, teve um crescimento numa luz
cada vez mais viva 15. Por Cristo recebemos a plenitude da
revelação; ele está entre os homens “como o Doutor infi­
nitamente sábio que os ilumina pela palavra de seus ensina-

8 II Sen., d. 10, a. 3, q. 2, c.
9 “Ad cognitionem naturalem rerum multum potest proficere proprio
studio atque ingenio, sed in cognitione modi perveniendi ad vitam per
se ipsum plus deficit quam proficit, nisi divinae revelationis instructione
dirigatur. Et propterea magis data est nobis Scriptura, divinitus et per
Spiritum Sanctum revelata, in cognitione fidei et morum, quam in cogni­
tione rerum naturalium, licet omnis veritas aliquo modo a Spiritu Sancto
esse dicatur” (II Sent., d. 23, dub. 3).
10 In Jo., c. VI, 79, arg. 3; c. XIII, 71; IV Sent., d. 48, a. 1, q.
4, ad 2 et 3.
11 IV Sent., d. 48, a. 1, q. 4, ad 2 et 3.
12 IV Sent., d. 48, a. 1, q. 4, ad 4.
13 IV Sent., d. 2, a. 1, q. 2, c.
14 “Lumen plenum est in doctrina evangelica, scilicet doctrina Chris­
ti...; lumen subsequens in doctrina apostoHca... ; lumen praecedens in
prophetica” (IV Sent., d. 24, p. 2, a. 2, q. 4, c.).
15 III Sent., d. 25, a. 2, q. 2, f. 2.
172 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

mentos” 16. Somente ele merece o título de Mestre, ele


que possue toda a ciência e de quem deriva, como da única
fonte, toda verdade. Prega o caminho verdadeiro que leva
até Deus. É preciso, pois ouvir sua palavra e acolhê-la
com fé 17.

2. A revelação profética

Interessa-se são Boaventura, como toda a idade média,


principalmente pela revelação profética 18. Sua doutrina de­
pende de santo Agostinho e, mais diretamente, de seu mes­
tre Alexandre de Hales. Seu pensamento reduz-se aos se­
guintes pontos: Primeiro deve-se distinguir profecia e dom
de profecia. O dom de profecia é um habitus que para agir
exige uma iluminação divina atual19. A profecia, por si
mesma, é um ato transitório. Compreende uma receptio
de algo nos sentidos, na imaginação ou no espírito20, um
judicium causado pela iluminação do espírito21. Se alguém
recebe uma representação sensível ou imaginativa sem, con-

16 Dom. III Adv., sermo I.


17 Dom. XXII post Pent., sermo I.
18 Sobre S. Boaventura e a profecia, cfr.: B. Decker, “Die Analyse
des Offenbarungsvorganges beim hl. Thomas im Lichete vorthomistischer
Prophetietraktate”, Angelicum, 16 (1939): 195-244; Id. Die Entwicklung
der Lehre von der prophetischen Offenbarung von 'Wilhelm von Auxerre
bis zu Thomas von Aquin (Breslau, 1940) pp. 134-164; F.-M. Henquinet,
“Un brouillon autographe de S. Bonaventure sur le Commentaire des sen­
tences”, Études franciscaines, 44 (1932): 633-655; 45 (1933): 59-81; J.
G. Bougerol, Introduction à Vétude de saint Bonaventure (Paris-Tournai-
-New York-Rome, 1961), pp. 246-247.
19 “Dicendum est quod differt dicere prophetiam et donum prophe­
tiae; nam donum prophetiae est habilitatio naturalium ad intelligendum
quod ostenditur; prophetia autem est actualis illustratio ad intelligendum
actu quod ostensum est;... et dicitur ergo donum prophetiae habitus
primus, prophetia vero habitus secundus, quia facit habilem actu intelligere
quotienscumque vult, et ideo ordinat ad denuntiandum” (Assis, cod.
186, lira).
20 II Sent., d. 10, a. 3, q. 2, c.
21 Sobre a visão corporal, diz S. Boaventura: “Notandum est quod in
visione corporali duo haec sunt: receptio et judicium. Judicium autem
dupliciter est: quoddam est naturale, quod fit per lucem virtuti innatam;
quoddam supernaturale, quod non potest fieri nisi per lucem superin­
fusam, ut quando per praesens signum judicat de futuris. Similiter re­
ceptio dupliciter est: quaedam naturalis, ut cum obiectum se offert omni
aspicienti et dirigenti aciem visus ad partem illam, et haec semper fit
praesente (corporeo) objecto et lumine; quaedam autem supematuralis,
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 173

tudo, receber uma luz especial para perceber-lhe a significa­


ção (como se deu com o Faraó, Baltasar e Nabucodonosor),
temos uma revelação imperfeita. Ao contrário, será per­
feita quando há também a inteligência dos sinais22. O que
caracteriza o verdadeiro profeta é a iluminação para que
compreenda o que vem representado 23. Chama-se infusa essa
iluminação, pois que eleva o espírito ao conhecimento do
que, por suas próprias forças, não poderia perceber24. O
julgamento do profeta baseia-se não na evidência do objeto,
mas na da “Verdade que o ilumina e instrui” 25. Quanto
a isso, a posição do profeta é semelhante à do crente, apoian­
do-se ambos na luz interior que os aclara26. Enquanto re­
velação ou iluminação do espírito, a profecia, ao contrário dos
dons de sabedoria e de caridade não implica de per si a
graça santificante. Ordena-se à utilidade alheia e não à
própria: pode pois subsistir em profetas cuja conduta seja
condenável27. Conforme a luz recebida será a grandeza do
profeta. Elias recebeu luz mais abundante; Davi, uma luz
mais penetrante, pois que nele a profecia é de ordem inte­
lectual. Podemos, com efeito, distinguir très modos de re­
velação profética: sensível, imaginativa, intelectual. Este
último é o mais alto e supõe sempre uma revelação; não

ut videlicet quando duo in eamdem partem aspicientes, habentes visum


aeque limpidum, non similiter vident, quia unus videt, alter non, sicut
exemplum est de manu Baltassar, Dan. 4” (Assis, cod. 186, 30va).
22 “Revelatio autem quaedam est imperfecta, quaedam perfecta...
Imperfectam revelationem voco, in qua fit ostensio alicujus signi, non
tamen per illud signum directe et certe ducitur intellectus in signatum,
sicut fuit in Pharaone et Baltassar et Nabuchodonosor; et talis potest esse
sine habitu superinfuso et mediante ministerio angelico. Revelatio autem
perfecta (est), in qua non solum est speciei signantis impressio, sed signati
manifesta declaratio” (Assis, cod. 186, lOvb).
23 “Nullus dicendus est propheta nisi illustratus fuerit ad intelligen-
dum quod sibi ostendebatur” (Assis, cod. 186, 30ra).
24 “Illuminationem ad futura praecognoscenda dicimus esse infusam
propter hoc quod in ipsa elevatur anima supra ea quae sunt ei naturalia”
(III Sent., d. 23, a. 2, q. 2, c).
25 “Propheta non assentit ei quod praenunciat, propter se, sed propter
Veritatem ipsum illuminantem et erudientem” (III Sent., d. 24, a. 1,
q. 2, ad 5).
26 “Cognitio fidei et prophetiae et cujuslibet revelationis divinae...
non pendet ab eo quod creditur vel quod revelatur, sed ab illo lumine,
per quod ad hoc cognoscendum illuminatur” (III Sent., d. 24. a. 1 o
1, ad 2).
27 I Sent., d. 18, a. un., q. 1, c; III Sent., d. 34, p. 2, a. 1, q. 1, ad 1.
174 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

se dá o mesmo com o sensível e o imaginativo28. Na reve­


lação profética o sujeito é mais passivo que ativo. Pode-se
também observar que muitas vezes Deus revela em sonhos;
sem dúvida, porque então a alma está inteiramente dispo­
nível para a ação divina29.

3. Fé e revelação

Nasce a fé da ação conjugada da palavra exterior e da


palavra interior, do ensinamento da pregação que fere os
ouvidos e do ensinamento do Espírito Santo que fala no
segredo do coração. São Boaventura ensina que há dois
modos de aprendizagem: por descoberta e por ensinamento.
A vista é apropriada para o primeiro; a audição, mais para
o segundo. O conhecimento da fé se consegue por ensina­
mento. Mas, observa são Boaventura, a fé nasce principal­
mente da audição interior, pois em vão trabalha o pregador
se não existe internamente a “iluminação do Mestre inte­
rior” *

28 “Dicendum quod ad esse prophetiae duo concurrunt: similitudi­


nis repraesentatio et revelatio significationis illius similitudinis. Ista re­
velatio semper est intellectiva; sed impressio similitudinis potest esse in
vi intellectiva per se et primo, non mediante sensu vel imaginatione, vel
in ipsa imaginativa primo, non mediante sensu, et sic dicitur visio imagi­
naria; vel in ipso sensu et tunc visio corporalis. Impressio similitudinis
intellectiva primo et per se semper habet revelationem conjunctam; sed
similitudo imaginaria aliquando habet, ut in prophetis veris, aliquando non,
ut in Pharaone. Similiter dicendum est de impressione in sensu. Ad hoc
ergo quod sit propheta, requiritur revelatio in parte intellectiva” (Assis,
cad. 186, 12vb). Cfr. 1 Sent., d. 16, a. un. q. 2, arg. 4.
29 “... quia in somnis magis agitur homo quam agat, et in revelatione
divina plus se habet homo per modum suscipientis quam agentis...”
(II Sent., d. 25, p. 2, a. un., q. 6 ad 5).
30 “Dicendum quod, sicut dicit Philosophus, dupliciter contingit ali­
quid addiscere, videlicet per inventionem et per doctrinam. Et sensus
quidem visus maxime deservit illi modo addiscendi, qui est per inven­
tionem; sensus vero auditus illi modo, qui est per doctrinam. Quoniam
igitur ea quae fide novimus, non cognoscimus per inventionem, sed magis
per doctrinam, per doctrinam, inquam, non solum praedicatoris loquentis
per aurem corporis, sed etiam Spiritus Sancti loquentis per aurem cordis;
hinc est quod in Littera dicitur, quod fides non tantum est ex auditu exte­
riori, sed etiam interiori. Et quamvis Apostoli multa didicerint videndo
Christum, multo tamen plura didicerunt audiendo ipsum qui loqueretur
exterius et qui loqueretur eis interius per Spiritum Sanctum... Ad illud
quod objicitur quod fides est per infusionem, non per auditum, dicendum
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 175

Essa iluminação interior, que não manifesta um novo


objeto mas possibilita ao espírito percebê-lo como é pre­
ciso, São Boaventura denomina-a com a Escritura “revela­
ção”, “testemunho”, “inspiração interior”. Ao comentar Jo
5,37, observa que o Cristo foi credenciado não apenas pelo
testemunho de João Batista e pelo de seus próprios mila­
gres, mas também pelo testemunho interior do Pai. O Pai,
que enviou seu Filho e o tornou visível pela encarnação, dá-
-Ihe testemunho por uma “inspiração interior” e o “revela
por uma voz inteligível”. Os judeus carnais não entende­
ram essa voz, mas a Simão Pedro, que a percebeu, foi dado
confessar o Cristo31. O que nos é comunicado pela reve­
lação, ou seja, o objeto da fé, denomina-o são Boaventura:
“ensinamento da divina revelação”, “doutrina” evangélica,
apostólica ou profética, “verdade da salvação”, “verdade
da fé e da Santa Escritura”, pois que esse ensinamento,
essa verdade se encontra nas Santas Escrituras. “Toda ver­
dade da salvação está na Escritura, dela parte ou a ela se
prende”.32. São Boaventura fala equivalentemente da “ver­
dade da fé e da Santa Escritura” 33, pois, segundo ele, toda
a Escritura nós a recebemos “por revelação divina do Pai

quod fides, quantum ad suum formale per infusionem est, sed quantum
ad materiale, videlicet quoad notitiam illam qua cognoscitur... est per
auditum, ita quod unum est per auditum cordis, et aliud per auditum
corporis. Ideo generaliter dicit Apostolus, fidem ex auditu esse, magis
principaliter ratione auditus interioris quam exterioris. Et sic dicit Gre­
gorius quod in vanum laborat sermo praedicatoris, nisi adsit illustratio
doctoris interioris” (III Sent., d. 24, dub. 2). Cfr. Ill Sent., d. 23, a.
2, q. 5, c.; d. 25, a. 2, q. 2, f. 4.
31 “Et qui misit me Pater, etc. Tangitur hic tertium testimonium,
scilicet divinum, quod et paternum dicit; propter quod ait: et qui misit
me Pater, per incarnationem, testimonium perhibuit de me per internam
inspirationem; quia, sicut dicitur infra sexto (v. 44), nemo venit ad me,
nisi Pater traxerit eum. Unde voce intelligibili revelat et testificatur,
quam Judaei carnales nec audire poterant, nec ipsum loquentem videre.
Ideo dicit: neque vocem ejus unquam audistis, per mentis revelationem;
sicut Petrus audivit, Matthaei decimo sexto (v. 17): Beatus es, Simon
Bar Jona, quia caro et sanguis non revelavit tibi, sed Pater meus qui in
coelis est” (In Jo., c. V, 65; c. VI, 68).
32 “Omnis veritas salutaris vel in Scriptura est, vel ab ipsa emanat,
vel ad eam reducitur” (In circuncisione Domini, sermo I). “Veritas enim
fidei et vitae sanctitas non aliunde quam ex scripturarum fonte hauritur”
(Opusc. 13, Determinationes quaestionum circa regulam fratrum mino­
rum, p. I, q. 3).
33 III Sent., d. 23, a. 1, q. 4, ad 4.
176 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

das luzes” M. Essa origem é que lhe dá autoridade e a certeza


incomparável qúé ela faz nascer35.

4. Conclusão

Em São Boaventura, a revelação designa em primeiro


lugar a ação iluminadora de Deus ou a iluminação subje­
tiva resultado dessa ação. Tal é especificamente a revela­
ção feita aos profetas. Também o ensino do Cristo é en­
tendido como uma iluminação da humanidade. São Boaven­
tura não distingue claramente as duas noções de revelação
e de inspiração. Muitas vezes diz revelação quando hoje
em dia usaríamos o termo inspiração. Seguindo a Es­
critura ele igualmente chama de revelação a iluminação
interior pela graça da fé. Salienta o caráter trinitário da
ação de revelação, como também seu aspecto de economia.
Na importância dada à iluminação percebemos as perspec­
tivas agostinianas. Entre a iluminação do conhecimento
natural, da revelação, da fé, da contemplação e da visão,
Boaventura percebe uma continuidade e um aprofundamento
dos dons divinos. Das trevas lentamente jorra a luz até a
plena visão36.

II. SANTO TOMÁS DE AQUINO

Por várias vezes santo Tomás fala da revelação37.


Considera-a como operação salvifica, que procede do livre
amor de Deus e proporciona ao homem as luzes indis­
pensáveis ou simplesmente úteis na busca de sua salvação; ou

34 “Ortus namque non est per humanam investigationem, sed per


divinam revelationem quae fluit a Patre luminum” (Prol. in Breviloq., V).
35 "Nullus autem est, qui falli non possit et fallere nesciat, nisi
Deus et Spiritus Sanctus; hinc est, quod ad hoc, quod Scriptura sacra
modo sibi debito esset perfecte authentica, non per humanam investi­
gationem est tradita, sed per revelationem divinam” (Prol. in Breviloq., V).
36 “Sicut sacramenta dicunt quoddam velamen gratiae interioris, quod
tamen aliquo modo illuminat ad cognoscendum; sic fides velamen dicit
futurae contemplationis et visionis, et tamen hoc velamen potius est
illuminans quam obscurans” (IV Sent., d. 3, p. 1, a, 1, q. 3, c.).
37 S. th., la, q. 1; 2a 2ae, q. 1-7, 171-174; S. Contra Gentiles, L.
III, c. 154; De Veritate, q. 12; Expos. In Jo., passim.
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 177

como um acontecimento histórico, que se desenrola no tempo


e atinge os homens de todos os séculos numa complexa
economia de intermediários, de etapas e de modalidades;
ou como ação divina que se insere na vida psicológica do
profeta e assim atinge a própria humanidade; ou como
doutrina sagrada que o Cristo comunicou a seus apóstolos
e por eles foi transmitida, doutrina contida na Escritura e
proposta pela Igreja à fé dos fiéis, ou, finalmente, como um
grau de conhecimento que ele procura situar com relação aos
outros tipos de conhecimento, natural, de fé, de visão. Essa
multiplicidade de aspectos evidencia a riqueza da realidade.

1. A revelação como operação salvifica

Iniciando a Summa, santo Tomás coloca o fato funda­


mental da revelação como ponto de apoio da teologia e da
fé cristã. Inspirada pelo livre amor divino, a revelação
existe para a salvação do homem.. Ora, a salvação do homem
é o próprio Deus, em sua vida íntima, objeto pois que
ultrapassa totalmente as forças e exigências humanas. Era,
então, necessário que Deus mesmo se revelasse, se desse a
conhecer ao homem para indicar-lhe sua meta e o caminho
que a ela conduz38.
A revelação de verdades de ordem natural sobre Deus
e nossas relações com ele, mesmo não sendo absolutamente
necessária, era moralmente requerida. Com efeito, have­
ría três inconvenientes se essas verdades fossem abando­
nadas à busca apenas da razão: poucos homens chegariam a
seu conhecimento, pelo pouco vigor intelectual da maioria,
pelas preocupações da vida do dia a dia, ou simplesmente
por sua preguiça de espírito; e mesmo os que a atingis­
sem, não o fariam senão após longos e penosos esforços,
ficando os outros condenados às trevas da ignorância.
E afinal, essas buscas estariam sempre expostas a muitas
dúvidas, erros, desvios na demonstração. “Por isso a di­
vina clemência cuidou que também coisas acessíveis à
nossa razão fossem propostas à nossa fé; assim todos po-

38 la, q. 1, a. 1, c.
178 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

deriam participar facilmente do conhecimento divino, sem


dúvidas e erros” 39.
Santo Tomás considera, pois, a revelação como a ação
do Deus da salvação que, livre e graciosamente, fornece aos
homens todas as verdades necessárias e úteis para a conse­
cução do fim sobrenatural. 7
Primeira e essencialmente constituem o revelado ou re­
velatum os conhecimentos sobre Deus que são inacessíveis à
razão e que, portanto, só podem ser conhecidos por revelação.
O revelabile refere-se mais aos conhecimentos que, sem ultra­
passar o alcance da razão natural, são revelados por Deus,
utilissimos que são para a salvação, mas que a maioria dos
homens deixados a si mesmos jamais chegariam a conhecer.
Fazem parte de fato do bloco da revelação40. O revelatum
tinha que ser revelado; o revelabile poderia ser revelado.

2. A revelação como acontecimento da história


A revelação, acontecimento no tempo, apresenta-se a
santo Tomás como uma operação hierárquica, sucessiva, pro­
gressiva, polimorfa.
Primeiramente hierárquica·, a verdade sobrenatural che­
ga até nós como uma torrente cujas águas caudalosas vindo
de Deus, sua nascente, atingem a planície só depois de te­
rem formado sucessivos remansos. São os anjos que primei­
ros a recebem, segundo a ordem das hierarquias celestes41,
depois os homens: primeiro os maiores entre eles, isto é, os
profetas e apóstolos. Atinge depois a multidão dos que
a acolhem pela fé, numa caminhada análoga: os que têm um
conhecimento mais vasto devem transmiti-la e explicá-la aos
simples fiéis que estão obrigados a se ater explicitamente
apenas aos artigos de fé42. Ao movimento, pois, da reve-
39 “Salubriter ergo divina providit clementia ut ea etiam quae ratio
investigare potest, fide tenenda praeciperet; ut sic omnes de facili possent
divinae cognitionis participes esse, et absque dubitatione et errore” (C.
G., L. 1, c. 4). Cfr. la, p. 1, a 1, c.
40 la, q. 1, a. 3, ad 2um; E. Gilson, Le thomisme, introduction à
la philosophie de saint Thomas (Paris, 1948, 5?), pp. 20ss.
41 2a 2ae, q. 172, a. 2, c.
42 Diversas vezes santo Tomás descreve essa economia descendente e
hierárquica da revelação. Por exemplo: “Explicatio credendorum fit per
revelationem divinam. Credibilia enim naturalem rationem excedunt. Re-
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 179

lação que se constitui, segue o da revelação que se aplica.


A alguns coube receber e pregar a revelação; a outros, pre­
gá-la apenas. Mas todos são verdadeiros mediadores entre
Deus e os homens: “Com relação a Deus são homens, mas
com relação aos homens são deuses enquanto participam do
conhecimento divino”, tanto pelas revelações que recebe­
ram diretamente como pelo conhecimento maior que delas
possuem43.
Em segundo lugar, a revelação é marcada pela suces­
são- não se realiza de repente, mas por etapas, que são rea­
lizações parciais do desígnio divino. Foi aos poucos que
Deus nos confiou seu segredo — tamanha é a sua riqueza
que ao homem foram necessários longos séculos de pre­
paração para que pouco a pouco a pudesse assimilar44. Na
história da revelação, podemos distinguir très idades ou
momentos principais. No início de cada uma está uma re­
velação superior da qual decorrem todas as outras: a re­
velação feita a Abraão, iniciada pela revelação do Deus
único; a revelação mosaica iniciada pela revelação da es­
sência divina; a revelação do Cristo iniciada pela revelação
do mistério da Trindade.
A primeira começa a era patriarcal e destina-se apenas
a algumas famílias; a segunda, a era profética, destinada a
todo um povo; a terceira, a era cristã é dirigida a toda hu­
manidade45. Como um mestre que não confia logo ao dis­
cípulo toda a ciência de sua arte, mas “a transmite pouco

velatio autem divina ordine quodam ad inferiores pervenit per superio­


res, sicut ad homines per angelos, et ad inferiores angelos per superiores,
ut patet per Dionysium... Et ideo, pari ratione, explicatio fidei oportet
quod perveniat ad inferiores homines per maiores. Et ideo, sicut supe­
riores angeli, qui inferiores iluminant, habent pleniorem notitiam de
rebus divinis quam inferiores, ut dicit Dionysius..., ita etiam superio­
res homines, ad quos pertinet alios erudire, tenentur habere pleniorem
notitiam de credendis, et magis explicite credere” (2a 2ae, q. 2, a. 6. c.).
43 “Illi quibus incumbit officium docendi fidem sunt medii inter
Deum et homines; unde respectu Dei sunt homines, et respectu hominum,
sunt dii, in quantum divinae cognitionis participes sunt” (III Sent., d.
25, q. 2, a. 1, qla 4, sol. 4).
44 “Tam magna erant quae de Christo dicebantur, quod non poterant
credi, nisi cum incremento temporum prius didicissent. Unde dicit beatus
Gregorius: per successiones temporum crevit divinae cognitionis augmen­
tum” (Ad Heb. c. 1, lect. 1).
45 2a 2ae, q. 174, a. 6, c.
180 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

a pouco, adaptando-se à capacidade do aluno”, Deus mos­


tra-se condescendente com a fraqueza da humanidade e não
deixa transparecer mais luz do que ela poderia receber46.
Um duplo movimento percorre toda a economia da reve­
lação e constitui o dinamismo de seu progresso. Primeiro, um
movimento de aumento progressivo do depósito da revela­
ção, tendo os profetas dos últimos tempos conhecido mais
verdades que os da idade patriarcal, e conhecendo os após­
tolos muitas coisas ignoradas pelos profetas47. O segundo
é o movimento que leva a humanidade a uma visão sempre
mais clara da encarnação que deve vir: “Moisés sobressai no
que tange o conhecimento da divindade; Davi, porém, co­
nheceu e exprimiu mais plenamente o mistério da encarna­
ção do Cristo” 48.
Quanto mais próximo o Cristo, mais próxima a pleni­
tude da revelação. Com o Cristo chega a primavera da
graça, a hora da juventude, o tempo da perfeição. “A últi­
ma perfeição da graça chega com Cristo; por isso o seu
tempo é chamado tempo da plenitude. Assim os que esta­
vam mais próximos do Cristo, antes como João Batista ou
depois como os apóstolos, mais plenamente conheceram os
mistérios da fé. O mesmo acontece com o homem: a perfei­
ção está na juventude, e tanto melhor o estado do homem
quanto mais se aproxima, antes ou depois, de sua juven­
tude” 49. Tanto mais viva a luz quanto mais estreita a re-
46 “Sicut magister qui novit totam artem non statim a principio tradit
eam discipulo, quia capere non posset, sed paulatim, condescendens ejus
capacitati. Et hac ratione profecerunt homines in cognitione fidei per
temporum successionem. Unde Apostolus, ad Gal. 3,24ss, comparat statum
Veteris Testamenti pueritiae” (2a 2ae, q. 1, a. 7, ad 2). “Et ideo tantum
dabatur Patribus qui erant instructores fidei de cognitione fidei, quantum
oportebat pro tempore illo populo tradi vel nude vel in figura” (2a 2ae,
q. 1, a. 7, ad 3).
47 2a 2ae, q. 1, a. 7.
48 “Visio... Moysi fuit excellentior quantum ad cognitionem divi­
nitatis: sed David plenius cognovit et expressit mysteria Incarnationis
Christi” (2a 2ae, q. 174, a. 4, ad 1).
49 “Ultima consummatio gratiae facta est per Christum: unde et tem­
pus ejus dicitur tempus plenitudinis, ad Gal. 4,4. Et ideo illi qui fuerunt
propinquiores Christo vel ante, sicut Joannes Baptista, vel post, sicut
Apostoli, plenius mysteria fidei cognoverunt. Quia et circa statum homi­
nis hoc videmus, quod perfectio est in juventude, et tanto habet homo
perfectiorem statum vel ante vel post, quanto est juventuti propinquior”
(2a 2ae, q. 1, a. 7, ad 4). Cfr. 2a 2ae, q. 174, a. 6, c.; De Veritate,
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 181

lação com Cristo. João Batista leva vantagem sobre Moi­


sés, porque “ praesentialiter Christum digito demonstravit” 50.
Também os apóstolos superam Moisés, tendo visto mais
claramente os mistérios do Cristo51.
A revelação é polimorfa·. Para se tornar conhecido,
Deus não desdenhou nenhum meio de comunicação. No
seu comentário à Epístola aos hebreus52, santo Tomás nota
a extraordinária riqueza e variedade dos caminhos de Deus:
multiplicidade e variedade dos personagens a que se dirige;
diversidade dos processos psicológicos (visão corporal, ima­
ginativa e intelectual); revelações sobre o futuro, presente
e passado; contato com o homem para instruir ou punir;
diversidade de graus de clareza ou obscuridade. Às vezes a
revelação é ofuscante, o mais das vezes, porém, “o divino
se vela na novidade e na obscuridade das palavras e das
coisas” 53. Benditos véus que levam à humildade ante Deus.
Com o Cristo e os apóstolos, completa-se o aconteci­
mento da revelação. Mas nem por isso retirou-se o Espírito
de revelação; age sob a forma mais modesta das revelações
particulares. “Jamais faltaram homens dotados do espírito
de profecia; não para nos trazerem nova doutrina mas para
a orientação dos atos humanos”54, pois que a fé católica “se
apóia na revelação feita aos apóstolos e profetas e não em
revelação talvez feita a outros doutores” 55.

3. Revelação profética como carisma de conhecimento


Santo Tomás interessa-se principalmente com a reve­
lação profética56. Cuidando demais de seu conteúdo, po-
q. 12, ad 1. Quanto ao progresso da revelação segundo santo Tomás,
cfr.: A. Hayen, “Le thomisme et l’histoire”, Revue Thomiste, 62 (1962):
38-K
50 2a 2ae, q. 174, a. 6, ad 3.
51 2a 2ae, q. 174, a. 4, ad 3.
52 In ep. ad Heb., c. 1, lect. 1.
53 In Boet. de Trin., pr., q. 2, a. 4.
54 “Et singulis temporibus non defuerunt aliqui prophetiae spiritum
habentes, non quidem ad novam doctrinam fidei depromendam, sed ad
humanorum actuum directionem” (2a 2ae, q. 174, a. 6, ad 3).
55 “Innititur enim fides nostra revelationi Apostolis et Prophetis
factae, qui canonicos libros scripserunt; non autem revelationi, si qua
fuit aliis doctoribus facta” (la, q. 1, a. 8, ad 2).
56 Santo Tomás trata da profecia nos seguintes lugares: De Verit.,
q. 12; 2a 2ae, q. 171-174; C. G., L. III, c. 154; In primam ad Cor.,
182 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

deríamos faltar com a atenção devida ao processo concreto


da revelação. Foi assim possível que no tempo do moder­
nismo se desenvolvesse a lenda de uma revelação católica
formada de verdades caídas do céu. Santo Tomás, porém,
considera a revelação em sua fase psicológica, como ação di­
vina que se insere no psiquismo humano. O seu De Pro­
phetia caracteriza-se por uma referência contínua às afirma­
ções dos profetas e por um espantoso respeito para com os
dados complexos da experiência profética57.
Para santo Tomás profecia é “conhecimento, sobrenatu­
ralmente dado ao homem, de verdades que atualmente su­
peram o alcance de seu espírito, que lhe são manifestadas
por Deus para o bem da comunidade” 58. Como carisma so­
cial a profecia ensina à humanidade “todo o necessário para
a salvação” 59. Paralelamente a esse sentido mais importante,
às vezes santo Tomás dá à profecia um sentido mais restrito
de conhecimento de coisas futuras; considera-a então como
um carisma que “confirma” a revelação (ou profecia no
sentido lato ), da mesma forma que os milagres60.

c. 14, lect. 1; In Is., 1,1;6,1. Como obras auxiliares, cfr.: S. Thomas


d’Aquin, La prophétie (trad, par P. Synave et P. Benoit, Paris, 1947);
B. Decker, “Die analyse des Offenbarungsvorganges beim hl. Thomas im
Lichte vorthomistischer Prophetitraktate”, Angelicum, 16 (1939): 195-244;
Id., Oie Entwicklung der Lehre von der prophetischen Offenbarung von
'Wilhelm von Auxerre bis zu Thomas von Aquin (Breslau, 1940); V. White,
“Le concept de révélation chez S. Thomas”, L’année théologique, 11
(1950): 1-17, 109-132; S. M. Zarb, “Le fonti agostiniane del trattato
sulla profezia di S. Tommaso”, Angelicum, 15 (1938): 169-200; A. Gar-
deil, Le donné révélé et la théologie (Paris, 1932, 2·); A. Léonard,
“Vers une théologie de la parole de Dieu”, em La parole de Dieu en
Jésus-Christ (Paris, 1961), pp. 13-18. Quanto à questão da profecia,
santo Tomás depende particularmente dos árabes, Avicena, Algazel, Aver­
roes, que se preocupavam com as incidências psicológicas da revelação pro­
fética; depende do judeu Maimonides que ele aproveita, corrige e melho­
ra; depende dos escolásticos, seus predecessores e mestres; depende de santo
Agostinho, principalmente de sua obra De Genesi ad litteram.
57 Cfr. De Verit., q. 12. Ο Ρ. White salientou muito bem esse
aspecto do tratado de santo Tomás em seu: “Le concept de révélation
chez S. Thomas”, L’année théologique, 11 (1950): 6-8.
58 “... connaissance, donnée surnaturellement à un homme, de vé­
rités qui dépassent actuellement la portée de son esprit et dont il est
instruit par. Dieu pour le bien de la communauté”, S. Thomas, La Prophe­
tic (trad. P. Synave et P. Benoit), p. 270.
59 De Verit., q. 12, a. 2, c.
60 C. G., L. III, c. 154; In primam ad Cor., c. 12, Lect. 2; 2a 2ae,
q. 172, a. 5, ad 3.
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 183

Na profecia ele distingue conhecimento profético e


denuntiatio ou proclamação da profecia. “A profecia é em
primeiro lugar e principalmente conhecimento... ; secunda­
riamente locução” 61. No primeiro caso o profeta recebe: é
antes passivocomo a atmosfera sob os raios do sol63;
sofre a ação da luz e do contato divino M. Na denuntiatio,
porém, age mais a vontade e o profeta escolhe suas ima­
gens segundo seu temperamento e sua experiência pessoal.
A profecia traz à consideração do profeta um conhe­
cimento que estava longe de seu espírito65. “Os profetas
conhecem coisas que estão longe do conhecimento ordiná­
rio dos homens ” Aliás, a Escritura os chama muito cor­
retamente videntes. Eles “viam o que os outros não viam,
percebiam o que estava oculto no mistério”67. Viam o
opaco e distante, em particular o futuro, especialmente lon­
gínquo e obscuro com relação ao presente68, mas também
o que estava longe, além do alcance da razão natural, ou
seja, o mistério69. A distância percorrida pela profecia é
da ordem do conhecimento. Pois Deus não está distante
de nós; é o nosso espírito que está longe de Deus, e assim
estará até a visão70. A revelação profética afasta o véu que
obscurece nosso espírito e reduz a distância que nos separa
de Deus 71.

61 “Prophetia primo et principaliter consistit in cognitione..phophe-


tia secundario consistit in locutione, prout prophetæ ea quæ divi­
nitus edocti cognoscunt, ad aedificationem aliorum annuntiant” (2a 2ae,
q. 171, a. 1, c.).
62 Pelo menos na recepção da luz e do auxílio; pois que, na per­
cepção mesma, ele é ativo e reage vitalmente.
ω “Oportet quod lumen propheticum non sit habitus, sed magis sit
in anima prophetae per modum cujusdam passionis ut lumen solis in aere”
(De Verit., q. 12, a. 1, c.).
« Ibid., c.
65 São validas as reflexões de santo Tomás sobre a profecia; partem,
porém, de uma etimologia falsa. Profecia viría de: phanos e procul.
66 “Cognoscunt quaedam quae sunt procul remota ab hominum cogni­
tione” (2a 2ae, q. 171, a. 1, c.).
67 “In Vetere Testamento appellabantur Videntes: quia videbant ea
quae ceteri non videbant, et prospiciebant quae in mysterio abscondita
erant” (2a 2ae, q. 171, a. 1, c.).
68 2a 2ae, q. 171, a. 3; De Verit., q. 12, a. 2.
69 2a 2ae, q. 171, a. 2, c.
70 2a 2ae, q. 171, a. 4, ad 2.
71 2a 2ae, q. 171, a. 1, ad 4.
184 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Concretamente como se dá esse afastai de véus


que põe o profeta na posse da verdade divina? 72. Define-se
a profecia a partir de dois elementos que se incluem em
todo conhecimento humano: representação {acceptio rerum)
que nos fornece o material e julgamento desse material,
julgamento que se efetua à luz natural do espírito. Encon­
tramos ambos os elementos no conhecimento profético, am­
bos elevados pelo dom profético. A acceptio rerum pode
dar-se diversamente: quer o próprio Deus produza exter­
namente formas sensíveis (exemplo de Daniel que vê ins­
crições na parede); quer utilize formas imaginativas deri­
vadas de objetos percebidos pelos sentidos, dando-lhes, po­
rém, uma orientação inesperada; quer imprimindo direta­
mente formas inteiramente novas (por exemplo: um cego
de nascença em cuja imaginação se imprimissem imagens
de côr); quer, afinal, agindo Deus diretamente sobre a
inteligência do homem, imprimindo no espírito espécies in­
teligíveis 73.
O julgamento especulativo realiza-se sob o influxo de
uma luz especial concedida ao profeta. “Formal no conhe­
cimento profético é a luz divina, de cuja unidade provém
a unidade específica da profecia, ainda que diversos sejam
os objetos manifestados proféticamente pela luz divina”74.
Com efeito, o dado iluminado por essa luz é de espantosa
riqueza histórica e psicológica: acontecimentos da história,
comportamento de pessoas, objetos da natureza, visões in­
teriores, imagens, sonhos etc. A essência da profecia, po­
rém, não está nesse elemento representativo, mas na luz
divina comunicada ao vidente. Sob esse aspecto a ação divi­
na desafia qualquer comparação com a de um mestre humano:
este “pode apresentar a seu discípulo realidades mediante
os sinais da linguagem, não pode, porém, iluminá-lo inter­
namente como Deus o faz. Ora, na profecia, o mais im­
portante é a elevação do julgamento, pois é no julgamento
72 2a 2ae, q. 171, a. 6, c.
73 2a 2ae, q. 173, a. 2, c. Este artigo, que apresentamos resumi­
damente, é o cerne da explicação de santo Tomás sobre o conhecimento
profético. Cfr. também C.G., L. III, c. 154.
74 “Formale in cognitione prophetica est lumen divinum, a cujus
unitate prophetia habet unitatem speciei, licet sint diversa quae per lumen
divinum prophetice manifestantur” (2a 2ae, q. 171, a. 3, ad 3.).
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 185

que se completa o conhecimento” A essência da pro­


fecia não está, pois, na representação, mas na luz divina
concedida ao profeta para que possa discernir, julgar e ex­
primir as intenções e as ações de Deus. Mesmo quando,
usando da riqueza psicológica do profeta, a ação divina uti­
liza imagens ou idéias preexistentes, o homem não pode­
ría de per si associar essas imagens de modo a fazer surgir
essas verdades até então desconhecidas, que constituem o
objeto de sua mensagem: é preciso a iluminação divina76.
Pela iluminação recebida, o profeta julga, com certeza e
sem erro, os elementos presentes à sua consciência apossan­
do-se assim da verdade que Deus lhe quer comunicar.
Com essa iluminação e esse julgamento opera-se realmente
no profeta a re-velação do pensamento divino. A luz pro­
fética aperfeiçoa e fortifica, de fato, a luz natural da in­
teligência, permitindo-lhe perceber o que não podería des­
cobrir por si mesma. Tendo-a recebido, o profeta reage de
forma vital. Passivo na inspiração que o eleva, é ativamente
que compreende na revelação 77Para além do plano das ima­
gens ele atinge a verdade mais profunda que elas indicam 78.

75 “Per donum autem prophetiae confertur aliquid humanae mentis


supra id quod pertinet ad naturalem facultatem, quantum ad utrumque:
scilicet et quantum ad judicium, per influxum intellectualis luminis; et
quantum ad acceptionem seu repraesentationem rerum, quae fit per aliquas
species. Et quantum ad hoc secundum, potest assimilari doctrina humana
revelationi propheticae, non autem quantum ad primum: homo enim suo
discipulo repraesentat aliquas res per signa locutionum, non autem potest
interius ' illuminare, sicut facit Deus. Horum autem duorum primum prin­
cipalius est in prophetia: quia judicium est completivum cognitionis” (2a
2ae, q. 173, a. 2, c).
76 “Dicendum quod quascumque formas imaginatas naturali virtute
homo potest formare, absolute hujusmodi formas considerando: non tamen
ut sint ordinatae ad repraesentandas intelligibiles veritates quae hominis
intellectum excedunt, sed ad hoc necessarium est auxilium supernaturalis
luminis” (2a 2ae, q. 173, a. 2, ad 3).
77 2a 2ae, q. 171, a. 1, ad 4.
n “Ex eisdem formis imaginatis subtilior conspicitur veritas secun­
dum illustrationem altioris luminis” (2a 2ae, q. 173 a. 2, ad 2). Cfr. ainda
la, q. 1, a. 9, ad 2. santo Tomás diz que o profeta vê in speculo aeterni­
tatis. A expressão pode ter duplo sentido: ou que os objetos apresenta­
dos à consciência do profeta têm característica de presencialidade, como
para Deus, ante o qüal o futuro coincide com o presente e o passado ( De
Verit., q. 12, a. 6, c.); ou, então, que o profeta percebe as realidades que
se lhe apresentam, com aquele sentido eterno que elas têm em Deus e
para Deus.
divinum prophetice manifestantur” (2a 2ae, q. 171, a. 3, ad 3.).
186 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Tanto essa luz é o elemento mais importante que pode


bastar para qualificar o verdadeiro profeta: José, por exem­
plo, explicando o sonho de Faraó79, ou .Daniel interpretan­
do as visões de Baltasar. Inversamente: Faraó e Baltasar
que receberam representações sem a luz para as interpretar,
não podem ser considerados profetas, a não ser de forma
muito relativa, ou mesmo de modo algum w. Tipo do ver­
dadeiro profeta é o que recebe de Deus as representações
e ao mesmo tempo a luz para julgá-las81. Essa forma emi­
nente de revelação comporta graus conforme a natureza das
representações: as visões sensíveis são inferiores às imagi­
nativas; estas, inferiores às intelectuais. “É evidente que
a manifestação da verdade divina que se faz pela pura con­
templação da própria verdade é superior à que utiliza o sim­
bolismo das coisas temporais, pois que mais se aproxima da
visão da pátria onde a verdade é contemplada na essência
de Deus” “.
Se o profeta, finalmente, recebe a luz sobrenatural para
julgar, com a certeza de Deus, não dados sobrenaturais, mas
o que pôde conseguir por si mesmo com meios humanos,
então encontramos um grau “inferior à profecia propria­
mente dita”, já que o profeta não atinge a verdade sobre­
natural83. Santo Tomás ainda o coloca no capítulo da re­
velação porque a luz concedida permite julgar segundo a
verdade divina84 e com uma certeza que vem do alto85. É

79 “Erit autem propheta si solummodo intellectus ejus illuminetur


ad dijudicandum etiam ea quae ab illis imaginarie visa sunt: ut patet de
Joseph, qui exposuit somnium Pharaonis” (2a 2ae, q. 173, a. 2, c.).
80 De Verit., q. 12. a. 7, c.; 2a 2ae, q. 173, a. 2, c.
81 “Sed sicut Augustinus dicit... maxime propheta est qui utroque
praecellit: ut videat in spiritu corporalium rerum significativas similitu­
dines et eas vivacitate mentis intelligat” (2a 2ae, q. 173, a. 2, c.).
82 “Manifestum est autem quod manifestatio veritatis divinae quae
fit secundum nudam contemplationem ipsius veritatis, potior est quam
illa quae fit sub similitudine corporalium rerum; magis enim appropinquat
ad visionem patriae, secundum quam in essentia Dei veritas conspicitur.
Et inde est quod prophetia per quam aliqua supernaturalis veritas cons­
picitur nude secundum intellectualem veritatem, est dignior quam illa in
qua veritas supernaturalis manifestatur per similitudinem corporalium re­
rum secundum imaginariam visionem” (2a 2ae, q. 174, a. 2, c.).
83 2a 2ae, q. 174, a. 3, c.
84 2a 2ae, q. 173, a. 2, c.
85 2a 2ae, q. 174, a. 2, ad 3.
A ESC0LÁST1CA DO SÉCULO XIII 187

o caso dos hagiógrafos que “falaram o mais das vezes. . .


em nome próprio de verdades ao alcance da razão humana,
ajudados, porém, pela luz divina” 86. Esse caso extremo do
carisma profético é o que no sentido moderno chamamos
inspiração87.
Nem sempre o profeta tem consciência do carisma re­
cebido. Como o observava santo Tomás, pode acontecer
que ele não perceba “claramente se suas palavras e pensa­
mentos vêm de uma inspiração divina ou de seu próprio
espírito”. Será então algo “imperfeito no gênero da profe­
cia” 88. Pelo contrário, na revelação explícita “o profeta
tem a máxima certeza do que conheceu pelo dom da pro­
fecia e tem como certo que isso lhe foi divinamente reve­
lado” 89. Do mesmo modo que pela luz que ilumina uma
86 “Plures loquebantur frequentius de his quae humana ratione cognos­
ci possunt, non quasi ex persona Dei, sed ex persona propria, cum
adjutorio tamen divini luminis” (2a 2ae, q. 174, a. 2, ad 3). _
87 Santo Tomás, contudo, não lhe dá esse nome. Inspiração e Reve-
lação, na única passagem em que aparecem justapostas (2a 2ae, q. 171,
a. 1, ad 4), contradistinguem-se como espécies do gênero “profecia”. Ins­
piração é a moção de ordem intelectual que dá ao espírito maior vigor;
revelação é a percepção da verdade, que afasta o véu de mistério e de
ignorância que ocultava o desconhecido. Não há revelação sem inspiração,
pelo menos na profecia propriamente dita. Falando do carisma profético
em geral, santo Tomás usa o termo revelação ou revelação profética em
vez de inspiração, pois o termo revelação indica mais precisamente o essen­
cial da profecia. A proporção no uso dos dois termos, como o observa
o P. Benoit, é de 106 para 17, com a palavra revelação é usada 30 vezes
na expressão prophetica revelatio. Do mesmo modo que santo Tomás
fala de profecia em sentido amplo que abrange casos alheios à profecia
propriamente dita, assim também emprega o termo revelação quando se
refere à infusão de luz sem novas representações (2a 2ae, q. 173, a. 2, c.).
Portanto, para santo Tomás revelação não tem o sentido técnico e estrito
de luz acompanhada de espécies, em oposição a inspiração: luz sem es­
pécies. A revelação compreende ao mesmo tempo inspiração e revelação
no sentido estrito. Contudo, já que o Aquino em sua análise reconheceu
a distinção entre a luz com espécies e a luz sem representação infusa, é
legítimo basear nele a distinção atual entre revelação e inspiração. Cfr.
P. Benoit, em: S. Thomas, La Prophétie, pp. 278-282.
88 “Sed ad ea quae cognoscit per instinctum, aliquando sic se habet
ut non plene discernere possit utrum hoc cogitaverit aliquo divino ins­
tinctu, vel per spiritum proprium. Non autem omnia quae cognoscimus
divino instinctu, sub certitudine prophetica nobis manifestantur: talis
enim instinctus est quiddam imperfectum in genere prophetiae” (2a 2ae,
q. 171, a. 5, c.).
89 “De his ergo quae expresse per spiritum prophetiae propheta
cognoscit, maximam certitudinem habet, et pro certo habet quod haec
sibi sunt divinitus revelata. Unde dicitur Jer. 26,15: in veritate misit
188 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

sala conhecemos indubitavelmente a presença do sol, assim


o profeta, na luz que recebe, reconhece a origem divina da
verdade revelada. “Temos uma indicação da certeza profé­
tica no caso de Abraão que, avisado numa visão profética,
preparou-se para imolar seu únicó filho; não o teria feito
de modo algum se não tivesse plena certeza da revelação
divina”90. No fulgor da luz recebida o profeta percebe,
sem raciocínio explícito, como se atinge a causa no efeito,
que Deus é o autor dessa luz e da verdade que ela lhe
manifesta.
Divinamente iluminado, o campo de visão do profeta
é ilimitado. O conhecimento profético, sendo um reflexo da
ciência divina, pode atingir qualquer objeto ao alcance dessa
ciência, humano ou divino, corporal ou espiritual91; esten-
de-se a tudo que possa ser necessário ou útil saber para a
salvação humana, realidades presentes, passadas ou futuras,
pequenas ou grandes Jeremias vê uma significação divina
numa amendoeira (Jer 1,11-12); Amós, num cesto de frutas
(Am 8,1-2): só importa o sentido que Deus atribui a essas
humildes realidades.

4. Λ revelação como palavra


A ação pela qual Deus comunica àos homens seu pen­
samento é para santo Tomás a palavra de Deus, por analogia
com as relações que entre si estabelecem os homens. Em
me Dominus ad vos, ut loquerer in aures vestras omnia verba haec” (2a
2ae, q. 171, a. c.).
90 “Et signum propheticae certitudinis accipere possumus ex hoc quod
Abraham, admonitus in prophetica visione, se praeparavit ad filium unige­
nitum immolandum: quod nullatenus fecisset nisi de divina revelatione
fuisset certissimus” (2a 2ae, q. 171, a. 5, c.). Santa Teresa observa tam­
bém a respeito de suas visões: “E tão no íntimo, as palavras se ouvem
tão claramente da bòca do mesmo Senhor, com os ouvidos da alma, e tão
em segredo, que o próprio modo de as entender e os efeitos operados
pela sobredita visão, dão segurança e certeza de que ali o demônio não
pode ter parte” (Castelo Interior, ou Moradas), Sextas Moradas, cap. 3. —
Obras de Santa Teresa de Jesus, Traduzidas pelas Carmelitas descalças
do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro, tomo IV. (Petropolis,
(1945), p. 132).
91 “Cognitio autem prophetica est per lumen divinum,, quo possunt
omnia cognosci, tam divina quam humana, tam spiritualia quam corpo­
ralia” (2a 2ae, q. 171, a. 3, c.).
92 In Rom., c. 11, lect. 1.
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 189

seu comentário a são João nota que Deus revela de très


modos: por uma voz sensível (como no batismo e na trans­
figuração), pela manifestação de sua essência (visão dos
bem-aventurados), por uma palavra interior (caso dos pro­
fetas ) 93. Palavra interior que nada mais é que a ilumi-
~ 94 .
naçao
Falar, diz ele, é manifestar o pensamento a outra pes­
soa95. O homem manifesta seus pensamentos com sinais
sensíveis (mímica, sons, sinais gráficos); a palavra, porém,
no sentido formal é uma categoria que abarca ao mesmo
tempo a comunicação humana, angélica ou divina96. Entre
a palavra humana e a divina existe analogia. Enquanto som
ou gesto a palavra só pode ser metaforicamente atribuída a
Deus; mas enquanto fato espiritual e manifestação do pen­
samento, não importa nenhuma imperfeição e pode ser atri­
buída a ele.
Podemos, observa ainda, distinguit duas audições e
duas palavras: “uma palavra exterior, na qual Deus nos fala
pelos pregadores; uma interior, na qual nos fala por uma
inspiração interna. Inspiração que se chama palavra por
sua semelhança com a palavra exterior. Assim como na
palavra exterior apresentamos a quem nos ouve não a pró­
pria coisa que lhe queremos dar a conhecer, mas um sinal
seu, isto é, uma palavra que a significa, assim Deus —
quando inspira internamente — não dá a visão da essência,
mas um sinal dessa essência, uma semelhança espiritual
de sua sabedoria”. Foi assim que Deus se fez ouvir no
interior dos profetas; de modo semelhante dirigiu-se a Adão
e o instruiu diretamente97. Os sinais ou semelhanças que

93 “Ostenditur triplex modus quo a Deo aliquid revelatur alicui.


Quia vel per vocem sensibilem et sic testificatus est Christo in Jordane et
in monte,... vel per visionem suae essentiae, et hanc revelat beatis,...
vel per interius verbum inspirando” (In Jo., c. 5, lect. 6).
94 “Perceptio divinae locutionis, qua prophetam alloquitur interius, quae
nihil est quam mentis illustratio” (De Verit., q. 12, a. 1, ad 3).
95 “Nihil aliud est loqui ad alterum quam conceptum mentis alteri
manifestare” (la, q. 107, a. 1, c.).
96 la, q. 107, a. 2; De Verit., q. 18, a. 3.
97 “Est etiam quaedam locutio exterior, qua Deus nobis per praedi­
catores loquitur; quaedam interior, qua loquitur nobis per inspirationem
internam. Dicitur autem ipsa interior inspiratio locutio quaedam ad simi-
litudinem exterioris locutionis sicut enim in exteriori locutione proferi-
190 A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII

se recebem são representações deficientes do objeto divino,


mas com elas e pela luz que as ilumina Deus verdadeira­
mente nos comunica seu pensamento, nos inicia aos seus mis­
térios: Deus fala a nós 98.

5. A revelação pelo Cristo e pelos apóstolos

Quanto à revelação pelo Cristo e pelos apóstolos en­


contramos na Summa somente breves indicações, muito su­
gestivas, porém. A terceira parte, que trata do Cristo Sal­
vador, começa assim: “Viam veritatis nobis in seipso de­
monstravit” (Prólogo). Para que o homem caminhasse
com maior confiança rumo à verdade, a própria verdade, o
Filho de Deus, fazendo-se homem, estabeleceu e fundou a
fé: por isso, apoiando-se na palavra do Cristo apóia-se o
homem na palavra de Deus 99. Todos os fatos da vida do
Cristo (nascimento, batismo, transfiguração, milagres, pai­
xão, morte, ressurreição) revelam-nos um ou outro aspecto
do mistério da salvação 100. Por toda sua pessoa encarnada
indica-nos o Cristo o caminho da salvação. A quaestio 7
apresenta o Cristo como o “primeiro e principal Doutor da
fé” 101. A quaestio 42 nota que o Cristo foi Luz e Salvação
mus ad ipsum audientem non ipsam rem quam notificare cupimus, sed
signum illius rei, scilicet vocem significativam; ita Deus interius inspirando,
non exhibet essentiam suam ad videndum, sed aliquod suæ essentiæ
signum, quod est aliqua spiritualis similitudo suæ sapientiae. Ab
utroque auditu fides in cordibus fidelium oritur. Per auditum interiorem
in his quae fidem primo acceperunt et docuerunt, sicut in apostolis et in
prophetis; unde in Ps. 84,9: Audiam quid loquatur in me Deus. Per se­
cundum veri auditum fides oritur in cordibus aliorum fidelium, qui per
alios homines cognitionem fidei accipiunt. Adam autem primo fidem habuit,
et primo est fidem edoctus a Deo; et ideo per internam locutionem fidem
habere debuit” (De Verit., q. 18, a. 3, c.). “In statu primae conditionis
non erat auditus ab homine exterius loquente, sed a Deo interius inspi­
rante: sicut et prophetae audiebant” (2a 2ae, q. 5, a. 1, ad 3). “Ita igitur
in homine duplex cognitio erat: una qua cognoscebat Deum conformiter
angelis per inspirationem internam; alia qua cognoscebat Deum conformi­
ter nobis per sensibiles creaturas” (De Verit., q. 18, a. 2, c).
la, q. 107, a. 1.
99 3a, q. 1, a. 2, c.
loo Quanto ao nascimento: 3a, q. 36, a. 3, ad 1; quanto ao batismo:
3a, q. 39, a. 8, ad 2 et 3; quanto aos milagres: 3a, q. 44, a. 3 ad 1; quanto
à transfiguração: 3a, q. 45, a. 4, ad 2; quanto à ressurreição: 3a, q. 53,
a. 1 et 3.
101 “Manifestum est quod in Christo fuerunt excellentissime omnes
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 191

dos povos instruindo primeiro os apóstolos, confiando-lhes


depois a missão de transmitir sua doutrina a todos os povos,
a começar pelos judeus 102. Finalmente, a quaestio 40 observa
que o Cristo preferiu conversar com os homens e não levar
uma vida solitária, pois que viera ao mundo para manifestar
a verdade 103.
Encontra-se mais alguma coisa no comentário sobre
são João. “Outrora o Filho manifestou o conhecimento de
Deus pelos profetas que o anunciaram na medida em que
participavam do Verbo eterno. . . Agora, porém, o próprio
Filho falou de Deus aos fiéis. Portanto essa doutrina vence a
todas em dignidade, autoridade, utilidade, imediatamente
transmitida que foi pelo Filho unigenito que é a Sabedoria
primeira” 1(M. O homem, quando quer manifestar seu pensa­
mento, encarna-o em sons ou letras: do mesmo modo “Deus,
querendo manifestar-se aos homens, revestiu de carne no
tempo seu Verbo concebido desde toda a eternidade” 105.
Pela carne que assumiu, o Verbo nos fala e nós o podemos
ouvir 106. O Cristo é pois, por sua humanidade, o caminho
que leva ao conhecimento da verdade; por outro lado, sendo
Deus, é a própria Verdade107. Dá testemunho à verdade,
à verdade que é ele mesmo108. Ninguém mais que ele
pode manifestar a verdade, pois que ele é luz e verdade 109.
Sendo Sabedoria e Verbo de Deus, é “o começo e o princípio
de nossa sabedoria” n0, “a raiz e a fonte de todo conheci­
mento sobre Deus” 111.
O Cristo é o Doutor por excelência, cuja palavra re­
vela os segredos do Pai. Santo Tomás vê .nesse ministério
uma das duas funções principais do Cristo, sendo a outra
a de “abrir-nos por sua paixão as portas do céu” 112. O
Cristo prega tanto por suas ações como por suas palavras 113,
mas, diferente dos mestres humanos, ensina externa e in­
ternamente 114. Às vezes santo Tomás identifica essa função de
gratiae gratis datae, sicut in primo et principali Doctore fidei” (3a, q. 7,
a. 7, c).
ira 3a, q. 42, a. 1, ad 1.
103 3a, q. 40, a. 1; In Jo., c. 3, lect. 5.
104 “Olim enim unigenitus Filius manifestavit Dei cognitionem per
Prophetas, qui eum in tantum annuntiaverunt in quantum aeterni Verbi
fuerunt participes... Sed nunc ipse unigenitus, Filius, enarravit fideli­
bus ... Et haec doctrina ideo omnibus aliis doctrinis supereminet digni-
192 A ESCOLÂSTICA DO SÉCULO XIII

Doutor à de Profeta. Como os profetas, teve Cristo em sua


imaginação o reflexo das coisas divinas 1B; mesmo como ho­
mem, porém, sobrepuja os profetas pela sua visão intelec­
tual de Deus 116. Como Deus é mais que profeta: é “o ins­
pirador dos profetas e dos anjos”; “anuncia a verdade sobre
Deus”, mas ao mesmo tempo ele é essa,verdade 117. Instruiu
os apóstolos por sua pregação e por seu Espírito 118 que lhes
manifestou o sentido de sua doutrina 119. Podem assim tam­
bém os apóstolos iluminar os homens 120 por sua pregação,
dar o seu testemunho do Cristo que viram e ouviram121,
transmitir sua doutrina.

6. Revelação., Escritura, Igreja

O conjunto dos conhecimentos que Deus revelou aos pro­


fetas e aos apóstolos, chama-se “doutrina sagrada”, “ensina­
mento segundo a revelação” que se contém na Escritura 122.
“Baseia-se nossa fé na revelação feita aos apóstolos e aos pro­
fetas que escreveram os livros canônicos” 123. Sendo que a re­
tate, auctoritate et utilitate, quia ab unigenito Filio, qui est prima
sapientia, immediate est tradita” (In Jo., c. 1, lect. 11).
105 “Et sicut homo volens revelare se verbo cordis, quod profert
ore, induit quodammodo ipsum verbum litteris vel voce, ita Deus, volens
se manifestare hominibus, Verbum suum conceptum ab aeterno, carne
induit in tempore” (In Jo., c. 14, lect. 2.).
106 In Jo., c. 8, lect. 3.
107 In Jo., c. 14, lect. 2; c. 1, lect. 8.
108 In Jo., c. 3, lect. 5.
109 In.Jo., c. 18, lect. 6. Cfr. A. Nyssens, La plénitude de vérité
dans le Verbe Incarné. Doctrine de Saint Thomas d’Aquin (Baudouinville,
1961).
110 In Jo., c. 1, lect. 1. *
111 T T_ 4 "9 4 y
111 In Jo., c. 17, lect. 6.
112 In Jo., c. 4, lect. 4.
113 In Jo., c. 11, lect. 6.
114 In Jo., c.13, lect. 3; c. 3, lect. 1.
»5 3a,q. 7, a. 8, ad 1; 2a 2ae, q. 174, a. 5, ad 3.
116 In Jo., c. 4, lect. 8.
117 In Jo., c. 4, lect. 6; c. 6, lect. 2.
In Jo., c. 17, lect. 6.
119 In Jo., c. 14, lect. 4.
uo In Jo., c. 12, lect. 8.
«i In Jo., c. 15, lect. 5.
122 la, q. 1, a. 1, c. .
i23 “Innititur enim' fides nostra revelationi apostolis et prophetis
factae, qui canonicos libros scripserunt” (la, q. 1, a. 8, ad 2).
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 193

velação está na Escritura, é preciso acreditar numa e noutra:


“quidquid scriptura continet” O objeto de nossa fé é a
verdade primeira proposta nas Escrituras, compreendidas, po­
rém, segundo a sã doutrina da Igreja. Deus propôs sua
doutrina diretamente aos profetas e apóstolos; a nós
propõe pela Igreja. Esta será pois a regra infalível no que
tange à proposição da verdade revelada125. Manifestou-se
Deus através de muitíssimos escritos, sob formas literárias
muito variadas, e assim sua doutrina é muitas vezes uma
resultante que dificilmente se percebe. Por isso recebeu a
Igreja a missão de esclarecer qual é propriamente o teste­
munho divino da Escritura. Os símbolos concretizam a ação
da Igreja que afirma e propõe o que está revelado e que,
portanto, deve ser crido 126. O símbolo dos apóstolos é o
encontro de toda a Igreja na unidade da fé: é o ponto de
reunião da multidão dos crentes, dos apóstolos que o com­
puseram e dos pregadores que o anunciaram. É a compi­
lação das Escrituras, um resumo dos maiores mistérios e
dos maiores benefícios de Deus 127. Os vários símbolos “não
diferem a não ser nisto: um explica mais amplamente o
que o outro contém implicitamente, conforme o exigiam
os ataques dos hereges” “Na doutrina do Cristo e
dos apóstolos a verdade da fé está suficientemente ex-

124 2a 2ae, q. 2, a. 5, c.
125 “Formale objectum fidei est veritas prima, secundum quod mani­
festatur in Scripturis sacris et in doctrina Ecclesiae. Unde quicumque
non inhaeret sicut infallibili et divinae regulae, doctrinae Ecclesiae, quae
procedit ex veritate prima in Scripturis sacris manifestata, ille non habet
habitum fidei” (2a 2ae, q. 5, a. 3, c.). ‘Omnibus articulis fidei inhaeret
fides propter unum medium, scilicet propter veritatem primam propositam
nobis in Scripturis secundum doctrinam Ecclesiae intelligentis sane” (2a
2ae, q. 5, a. 3, ad 2).
126 “Veritas fidei in Sacra Scriptura diffuse continetur et variis modis,
et in quibusdam obscure; ita quod ad eliciendum fidei veritatem ex sacra
scriptura requiritur longum studium et exercitium, ad quod non possunt
pervenire omnes illi quibus necessarium est cognoscere fidei veritatem...
Et ideo fuit necessarium ut ex sententiis sacrae scripturae aliquid mani­
festum summarie colligeretur quod proponeretur omnibus ad credendum.
Quod quidem non est additum sacrae scripturae, sed potius ex sacra
scriptura assumptum” (2a 2ae, q. 1, a. 9, ad 1).
127 III Sent., d. 25, q. 1, a. 1, qla 3.
128 “Quae in nullo alio differunt nisi quod in uno plenius explicantur
quae in alio continentur implicite, secundum quod exigebat haereticorum
'instantia” (2a 2ae, q. 1, a. 9, ad 2).

7 - Teologia da revelação
194 A ESCOLÂSTICA DO SÉCULO XIII

plicada. Como, porém, homens perversos pervertem a dou­


trina apostólica e o resto das Escrituras. . . torna-se neces­
sário, no decurso dos tempos, uma explanação da fé contra
os erros que vão surgindo” 129.

7. Da revelação à fé
Os homens, ao contrário das grandes testemunhas de
Deus, apóstolos e profetas, chegam à revelação apenas me-
diatamente: de um intermediário humano é que recebem a
verdade da fé 130. Essa palavra exterior é também palavra
de Deus, derivada que é da revelação primeira 131. Contudo,
antes de aceitá-la e de por ela arriscar toda sua vida, é justo
que o homem verifique os títulos que garantem a autorida­
de do mensageiro.
O pregador da fé é credenciado e seu ensinamento qua­
lificado como divino pelos milagres que Deus lhe concede
realizar 132; esse o selo divino que atesta a origem divina da
doutrina pregada 133, o argumento que manifesta como real­
mente divina a palavra do profeta134. A ação persuasiva
do pregador, sua própria certeza contagiante, são também
agentes que externamente solicitam 135.
129 «<jn doctrina Christi et apostolorum veritas fidei est sufficienter
explicata. Sed quia perversi homines apostolicam doctrinam et ceteras
scripturas pervertunt,... necessaria est, temporibus procedentibus, expla­
natio fidei contra insurgentes errores” (2a 2ae, q. 1, a. 10, ad 1).
130 2a 2ae, q. 6, a. 1, c. Cfr.: B. Duroux, La psycologie de la foi
chez Saint Thomas d’Aquin (Fribourg, 1956), pp. 28-30.
131 De Verit., q. 18, a. 3, ad 2.
132 “Fides non habet inquisitionem rationis naturalis demonstrantis
id quod creditur, habet tamen inquisitionem quamdam eorum per quae
inducitur homo ad credendum, puta quia sunt dicta a Deo et miraculis
confirmata” (2a 2æ, q. 2, a. 1, ad 1). Cfr.: C. G., L. III, c. 154.
133 “Ut, dum aliquis facit opera quae solus Deus facere potest, cre­
dantur ea quae dicuntur esse a Deo, sicut cum aliquis defert litteras
anulo regis signatas, creditur ex voluntate regis processisse, quod in illis
continetur” (3a, q. 43, a. 1, c.). “Hoc contingere non potest quod
aliquis falsam doctrinam annuntians, vera miracula faciat, quae nisi virtute
divina fieri non possunt; sic enim Deus esset falsitatis testis, quod est
impossibile” (Quodl. 2, q. 4, a. 6, ad 4). Cfr. também: 2a 2ae, q. 178, a. 1.
134 “Ad hoc datum est hominibus facere miracula ut ostendatur quod
Deus per illos loquitur” (III Sent., d. 25, q. 2, a. 1, qla 4, ad 4). Cfr.:
A. van Hove, La doctrine du miracle chez S. Thomas et son accord avec
les principes de la recherche scientifique (Louvain, 1927); B. Duroux La
psychologie de la foi chez Saint Thomas d’Aquim, pp. 38-44.
135 2a 2ae, q. 6, a. 1, c; q. 171, a. 5, c.
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 195

Em conjunto com a ação exterior dessa pregação ga­


rantida pelo próprio Deus, a graça age internamente e
convida a crer na mensagem proposta. Arrasta-nos Deus
não só pela mensagem de salvação e pelos sinais de poder
que são os milagres, mas também por uma atração que
internamente produz 136. Dois os apelos que ressoam: “um
exterior, pela voz do pregador; interior, o outro, que não
é senão uma inspiração do espírito pela qual o coração do
homem é impelido a dar o seu assentimento ao objeto da
fé. . . Apelo que é necessário, pois nosso coração não se
voltaria para Deus se o próprio Deus não o atraísse a si” ,37.
Alhures observa santo Tomás que Deus nos ajuda a crer
com um tríplice auxílio: por um apelo interior, pelo ensi­
namento e pela pregação exterior, pelos milagres 138. O apelo
interior da graça é o “testemunho” da “Verdade primeira
que ilumina e instrui internamente o homem” 139. Se falta
o socorro de Deus e de sua pregação interior, em vão se

136 “Quia non solum revelatio exterior, vel objectum, virtutem attra­
hendi habet, sed etiam interior instinctus impellens et movens ad cre­
dendum; ideo trahit multos Pater ad Filium per instinctum divinae ope­
rationis moventis interius cor hominis ad credendum” (In Jo., c. 6, lect.
5). Cfr.: 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3.
137 Primum in quo incipit praedestinatio hominis impleri est vocatio
hominis, quae quidem est duplex: una exterior, quae fit ore praedica­
toris ... ; alia vero vocatio est interior quae nihil aliud est quam quidam
mentis instinctus quo cor hominis movetur a Deo ad assentiendum his
quae sunt fidei et virtutis... Et haec vocatio necessaria est quia cor
nostrum non se converteret ad Dominum, nisi ipse Deus nos ad se
traheret” (In Rom., c. 8, lect. 6).
138 “Adjuvatur autem a Deo aliquis ad credendum tripliciter. Primo
quidem per interiorem vocationem, de qua dicitur Jo. 6,45: omnis qui au­
divit a Patre, et didicit, venit ad me; et ad Rom. 8,30: quos praedesti­
navit, hos et vocavit. Secundo, per doctrinam et praedicationem exterio­
rem, secundum illud Apostoli ad Rom. c. 10,17: Fides ex auditu, auditus
autem per verbum Christi. Tertio, per exteriora miracula; unde dicitur
ICor. 14, quod signa data sunt infidelibus ut scilicet per ea provocentur
ad fidem” (Quodl., 2, q. 4, a. 6). “Ille qui credit habet sufficiens in-
ductivum ad credendum: inducitur enim auctoritate divinae doctrinae mi-
raculis confirmatae, et, quod plus est, interiori instinctu Dei invitantis”
(2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3).
139 “Deus testificatur alicui dupliciter, scilicet sensibiliter et intelligi-
biliter... Intelligibiliter autem testificatur inspirando in cordibus aliquo­
rum quod credere debeant” (In Jo., c. 5, lect. 6). “Dicendum quod
interior instinctus quo Christus poterat se manifestare sine miraculis ex­
terioribus pertinet ad virtutem Primae Veritatis quae interius hominem
illuminat et docet” (Quodl. 2, q. 4, a. 6, ad 3).
196 A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII

esforça o pregador140. O homem recebe pois dois dons


de Deus: o dom da doutrina e o dom da graça para con­
fessar a doutrina proposta 141. Pelo menos habitualmente
santo Tomás não chama de revelação essa ação da graça,
mas de vocação, apelo, atração ou tração do Pai, moção,
socorro, testemunho e, principalmente, instinto e inspiração
interior 142.

8. Revelação como grau no conhecimento de Deus

Revelação e fé não existem por si mesmas, mas para


a visão, pois que o fim do homem é chegar, um dia, ao face à
face da contemplação divina. Nesse sentido a revelação é
um conhecimento imperfeito, um momento de nossa ini­
ciação à visão. “De très modos o homem pode conhecer
as coisas divinas; pelo primeiro o homem, graças à luz na­
tural da razão, eleva-se ao conhecimento de Deus pelas
criaturas; pelo segundo, a verdade divina, que ultrapassa
os limites de nossa inteligência, desce a nós pela revelação
não como evidentemente demonstrada, mas como palavra
que se deve crer; pelo terceiro, a alma será elevada para
ver perfeitamente o que lhe fora revelado” 143. No primeiro

140 In Jo., 21, lect. 1; In Mt. 4, 18.


141 “Fides ex duabus partibus est a Deo, scilicet ex parte interioris
luminis quod inducit ad assensum, et ex parte eorum quae exterius pro­
ponuntur, quae ex divina revelatione initium sumpserunt; et haec se
habent ad cognitionem fidei sicut accepta per sensum ad cognitionem prin­
cipiorum, quia utrisque fit aliqua cognitionis determinatio. Unde sicut
cognitio principiorum accipitur a sensu, et tamen lumen quo principia
cognoscuntur est innatum, ita fides est ex auditu, et tamen auditus fidei
est infusus” (In Boet, de Trin., lect. 1, q. 1, a. 1, ad 4). Cfr.: 2a 2ae,
q. 6, a. 1, c.
142 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3; q. 10, a. 1, ad 1; In Jo., c. 6, lect. 5;
2a 2ae, q. 1, a. 4, ad 3; In Rom. c. 8, lect. 6; Quodl. 2, q. 4, a. 6, ad 3.
Cfr.: B. Duroux, La psychologie de la foi chez Saint Thomas d’Aquim,
pp. 32-38. Para estudar os textos de santo Tomás sobre o instinto in­
terior, veja: M.-L. Guérard des Lauriers, Dimensions de la foi (2 vol.,
Paris, 1952), excursus VI: “Instinct intérieur, grâce actuelle et grâce
sanctifiante”, 2: 253-269; ver ainda os autores citados mais abaixo, nota
8 do II cap. da 5- parte: n. 120.
143 “Est igitur triplex cognitio hominis de divinis. Quarum prima est,
secundum quod homo naturali lumine rationis, per creaturas in Dei
cognitionem ascendit; secunda est, prout divina veritas intellectum huma-
num, excedens, per modum revelationis in nos descendit, non tamen quasi
demonstrata ad videndum, sed quasi sermone prolata ad credendum; ter-
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 197

modo, o homem tende para Deus; no segundo, Deus incli­


na-se para o homem, revela-se-lhe e pela fé pouco a pouco
o encaminha para a visão., “A profecia é como que algo
imperfeito no gênero da divina revelação. . . A perfeição
da divina revelação será conseguida na pátria” 144. Enquanto
a esperamos, caminhamos pela fé. “ A contemplação que
suprime toda necessidade de fé, será a contemplação da
pátria, na qual a verdade sobrenatural será percebida em
sua essência” 145. Somente então a “Verdade primeira será
conhecida, não pela fé, mas na visão;. . . não percebere­
mos apenas um pouco dos divinos mistérios, mas a pró­
pria majestade divina com toda a perfeição de suas rique­
zas. .. Então a verdade se proporá ao homem, não mais
envolta em véus, mas inteiramente a descoberto” 146. Essa
manifestação terá o fulgor de um relâmpago. Deus é ver­
dade em seu ser e em suas palavras. Pela verdade de sua
palavra, leva-nos pouco a pouco à verdade de seu ser.

9. Conclusões

À base da teologia e da fé católica, santo Tomás co­


loca o fato primordial da revelação: operação salvifica pela
qual Deus, não querendo deixar o homem entregue apenas
aos recursos da razão, fornece-lhe todas as verdades ne­
cessárias e úteis para a salvação. Operação que se realiza
no tempo, em etapas sucessivas, progredindo tanto no âm­
bito como na compreensão das verdades reveladas. Dos
patriarcas e. profetas até os apóstolos forma-se paulatina-

tia est secundum quod mens humana elevabitur ad ea quae sunt revelata,
perfecte intuenda” (C. G., L. IV, c. 1).
144 “Prophetia est <cut quiddam imperfectum in genere divinae reve­
lationis... Perfectio autem divinae revelationis erit in patria” (2a 2ae,
q. 171, a. 4, ad 2). Cfr.: 2a 2ae, q. 173, a. 1, c.
145 “Contemplatio quae tollit necessitatem fidei est contemplatio pa­
triae, qua supernaturalis veritas per essentiam videtur” (2a 2ae, q. 5, a.
1, ad 1). Cfr.: De Verit., q. 14, a. 9, ad 2.
146 “Ad tertiam cognitionem pertinet, quia prima Veritas cognoscetur,
non sicut credita, sed sicut visa; videbimus enim eum sicut est, ut dicitur
(IJo. 3,2); nec aliquid modicum de divinis mysteriis percipietur, sed ipsa
majestas divina videbitur, et omnis bonorum perfectio;... non autem pro­
ponetur veritas homini aliquibus velaminibus occultata,· sed omnino mani-
festata” (C. G., L. IV, c. 1).
198 A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII

mente o depósito sagrado da verdade revelada. A encarna­


ção do Cristo marca a plenitude e a consumação da revelação.
O Antigo Testamento, até o último profeta, orienta-se para o
Cristo. Dado, porém, o Cristo, a função da revelação será fa­
zer-nos conhecer e apreciar o dom da salvação. Doravante,
assim como já não se espera um novo redentor, não haverá
também uma nova revelação que se proponha à fé da Igreja.
Santo Tomás interessa-se principalmente pela revelação
imediata e, mais especificamente, pela profética. Esta
é, para ele, essencialmente um ato cognoscitivo: graças a
uma iluminação especial, o profeta julga com certeza e sem
erro, conforme à intenção divina, os objetos presentes à
sua consciência, chegando assim à posse da verdade que
Deus lhe quer comunicar. Por essa iluminação e esse juízo,
dá-se realmente no profeta a manifestação do pensamento
divino. A ação de Deus que comunica ao homem seu pen­
samento mediante semelhanças e sinais criados, chama-a san­
to Tomás palavra de Deus. Isso por analogia com a palavra
humana que também é comunicação do pensamento mediante
sinais. Da revelação imediata do Cristo aos apóstolos ele fala
menos. No Cristo vê principalmente o Mestre por excelência,
o Doutor da fé, o Verbo em pessoa, Verdade e Sabedoria
de Deus, que assume a natureza humana para ensinar ao ho­
mem, por gestos e palavras humanas, o caminho da salvação.
A maioria dos homens não tem acesso à revelação a
não ser mediatamente, pela pregação da doutrina da salva­
ção: pregação garantida como palavra de Deus pelos mila­
gres que atestam sua origem divina. Deus leva-nos a crer
pela pregação exterior e pelos milagres, mas também pela
ação interior de sua graça que nos convida a aderir à mensa­
gem ouvida. Ação da graça que santo Tomás, pelo menos habi­
tualmente, não denomina revelação, mas antes, vocação,
atração, socorro, moção, testemunho e, principalmente, ins­
tinto interior.
O conjunto de verdades que Deus nos dá a conhecer,
denomina-o santo Tomás doutrina que procede da revela­
ção, doutrina sagrada, verdade de fé. Não o chama dire­
tamente de revelação. Essa verdade está contida na Escri­
tura, corretamente interpretada e compreendida pela Igreja
que no-la propõe nos símbolos de fé.
A ESCÒLÁSTICA DO SÉCULO XIII 199

Destinando-se o homem à visão, a revelação é apenas


uma etapa transitória para a economia definitiva da pátria.
Conhecimento de Deus superior ao conhecimento natural
mediante as obras da criação, imperfeito, porém, se com­
parado ao conhecimento face a face da visão beatifica.
É preciso notar a perfeita coerência da doutrina de
santo Tomás. Segundo seu modo de ver constante, o conhe­
cimento não se concretiza senão no julgamento. A revelação,
sendo eminentemente conhecimento, exige, como qualquer
conhecimento, uma apreensão do objeto e uma luz que
possibilite o julgamento. Assim acontece no conhecimento
natural, assim também no conhecimento da fé, entendido
segundo o mesmo esquema. Duas coisas são exigidas na
fé: um objeto para ser crido, verdades propostas, e o assen­
timento a essas verdades.*A proposição das verdades faz-se
pela pregação exterior, garantida pelos milagres, enquanto que
o assentimento sobrenatural se torna possível pela luz da fé.
O mesmo sè dá, afinal, com o conhecimento na glória,
quando o objeto (a essência divina) será visto conforme
a Verdade na luz da glória. A luz é o movimento descen­
dente da revelação; luz que possibilita o movimento ascen­
dente da fé. Tudo vem de Deus: a revelação e a fé que lhe
corresponde. No tema da revelação, quase não encontra­
remos entre os teólogos subseqüentes perspectivas mais vas­
tas que as desenvolvidas por santo Tomás. A terminologia
tornar-se-á mais precisa, mais técnica, mas a reflexão não se
tornará muito mais profunda.

III. DUNS SCOT

A doutrina de Duns Scot147 sobre a revelação pode


resumir-se nos pontos seguintes: necessidade e economia da
revelação, relacionamento da revelação com a Escritura e

147 Sobre o tema da revelação em Duns Scot, cfr.: S. Belmond,


“Crédibilité et révélation d’après Duns Scot”, Études franciscaines, 34
(1922): 5-22, 145-157, 289-307; P. Minges, Joannis Duns Scoti Doctrina
philosophica et theologica (2 vol., ad Claras Aquas, 1930), I: 521-548;
A. M. Vellico, “De regula fidei juxta Joannis Duns Scoti doctrinam”,
Antonianum, 10 (1935): 11-36; B. A. Wolter, “Duns Scot on the Ne-
200 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

com a tradição, e em particular, a revelação aos profetas e


aos apóstolos.

1. Necessidade e economia da revelação

O Prólogo ao Comentário às Sentenças intitula-se: “Da


necessidade de uma doutrina revelada”. Aos filósofos que
ousassem negar a necessidade de uma doutrina revelada,
sob pretexto de que a natureza permite ao homem conse­
guir, no desenvolvimento natural de suas faculdades, todos
os conhecimentos indispensáveis, Scot responde pela refu­
tação de sete objeções fundamentais e por uma argumenta­
ção positiva. O homem necessita, observa ele, de uma dou­
trina sobrenaturalmente revelada; isto por très motivos:
para conhecer o seu fim e para deliberadamente tender em
sua direção; para saber com que meios o poderá atingir;
para estar certo que esses meios bastam para garantir a
sua posse 148. Esses conhecimentos devem ser-lhe comunica­
dos sobrenaturalmente, por que, deixado a si mesmo, não
os podería encontrar nem ensinar a outros: Haec autem
prima traditio talis doctrinae dicitur revelatio 149. Como foi
possível essa primeira comunicação da doutrina necessária
à salvação? Por uma palavra interior? ou exterior mediante
sinais sensíveis? Não o poderiamos dizer com certeza, pois
um e outro meio seriam possíveis 15°. Seria muito útil que
também verdades naturais nos fossem “comunicadas me­
diante autoridade”, já que a coletividade é negligente na
busca da verdade, e o espírito humano é impotente, multi­
plicando os erros na demonstração e tornando assim obscura
a verdade. Sendo assim, o caminho mais seguro e útil para
cessity of revealed Knoweledge”, Franc. Stud., 11 (1951): 231-272; T.
Bart, “Duns Scotus und die Notwendigkeit einer übernatürlichen Offen­
barung”, Franz. Stud., 51 (1959): 362-404; 52 (1960): 51-65; J. Fin-
kenzeller, Offenbarung und Théologie nach der Lehre des Johannes
Duns Skotus (Münster, 1961); J. Beumer, Die mündliche Ueberlieferung
als Glaubensquelle (Freiburg, 1962).
148 Prol., p. 1, un., nn. 13, 17, 18. Quanto ao Prólogo, usamos ο
texto da edição vaticana: Doctoris Subtilis et Mariani Joannis Duns
Scoti Opera Omnia studio et cura Commissionis scotisticae praeside C.
Balte (Civitas Vaticana, 1950ss).
1« Ibid., n. 62.
1» Ibid. n. 69.
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 201

todos os homens é a autoridade que não pode nem sé enganar


nem enganar 151. A revelação é sobrenatural, não enquanto
conhecimento, pois o conhecer é natural ao homem, mas
tendo em vista a sua fonte, que é Deus, e o como é comu­
nicada 152. No próprio dado revelado podemos distinguir
objetos estritamente revelados (Trindade, encarnação) que
de per si são inacessíveis à razão, e objetos revelados de fato,
que poderíam ser conhecidos naturalmente153. Scot, por­
tanto, entende como revelação a tradição ou comunicação,
ativa e autoritativa, da doutrina necessária ou útil para a
salvação. Esse modo de conhecer, não avilta o homem,
antes o dignifica, pois que a capacidade de receber uma per­
feição que o transcende manifesta evidentemente sua digni­
dade 154.
Duns Scot, como santo Tomás, concebe a revelação como
uma operação hierárquica: os anjos superiores, instruídos so­
bre os maiores mistérios, comunicam-nos aos inferiores; estes
são enviados aos homens para anunciar ou realizar as mensa­
gens divinas 155. Partindo de um texto de são Paulo ( Ef
3,10), Scot observa que o mistério da encarnação pôde ficar
oculto aos anjos inferiores até os tempos da vida do Cristo
e da pregação do Evangelho na Igreja 156. Os profetas e os
apóstolos estão entre os homens como “montanhas da Igre­
ja”: a partir deles flui a verdade para toda a humanidade
e sobre eles repousa a fé dos fiéis 157.

2. A Escritura e o costume
“O conhecimento sobrenatural necessário ao homem é
transmitido de modo suficiente na Escritura”? Scot res­
ponde afirmativamente e apresenta oito argumentos para
demonstrar que a Escritura é verdadeiramente de origem
divina: as profecias, a concórdia das Escrituras, a autori­
dade dos autores, a diligência dos destinatários, a conveniên-
151 I Sent., dist. 2, q. 3, n. 7.
152 Prol., p. 1, q. un., nn. 62-65.
153 Ibid., n. 65.
154 Ibid., n. 75.
155 Ox. II, dist. 9, q. 2, n. 25; dist. 10, q. un., n. 2.
156 Ox. II, dist. 10, q. un., n. 2.
157 Rep. Par. III, dist. 24, q. un., nn. 21-22.
202 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

cia racional do dado revelado, a absurdidade dos erros opos­


tos ao dom revelado, a estabilidade da Igreja, a evidên­
cia dos milagres158. Numa primeira série de textos afir­
ma que a Escritura contém todo o necessário e suficiente
para que o homem atinja seu fim 159. Com efeito, a Escri­
tura determina não só qual o fim do homem, mas também
quais os meios para consegui-lo. Também a teologia tem
como objeto o que está contido na Escritura e o que daí
decorre 16°. Noutros textos, contudo, Scot esclarece que nem
tudo foi escrito: “Muitas verdades foram transmitidas à
Igreja pelos apóstolos, que não estão, porém, consignadas
nos Evangelhos” 161 Por exemplo: a descida de Cristo ao
inferno e vários pontos da economia dos sacramentos. Con­
tudo a Igreja considera essas verdades “transmitidas certa­
mente pelos apóstolos”. Devemos pois admitir não só o que
nos vem por escrito dos apóstolos, mas também o que se
apóia no “costume universal da Igreja”. Aliás, o Cristo não
declarou aos apóstolos que teria muitas outras coisas para
lhes dizer e que lhes seriam ensinadas pelo Espírito Santo?
“Ensinou, pois, o Espírito Santo muitas coisas que não es­
tão no Evangelho, numerosas coisas que os apóstolos trans­
mitiram em parte pela Escritura em parte pelo costume” 162.
É por isso que a Igreja conserva certo número de verdades
que lhe foram transmitidas pelos apóstolos sem terem sido
escritas 163. Portanto, é objeto de fé o que está explicita­
mente na Escritura ou foi expressamente declarado pela Igre­
ja, ou evidentemente decorre do que está claramente contido
na Escritura ou claramente determinado pela Igreja164.

3. Profetas e apóstolos

Como são Boaventura e santo Tomás, Scot interessa-


-se principalmente pela revelação profética. Deus geral-

158 Prol., p. 2, q. un., nn. 100-113.


159 Ibid., n. 120.
160 Prol., p. 3, q. 3, nn. 204, 207.
161 IV Sent., dist. 8, q. 2, n. 6; dist. 7, q. 1, n. 3.
162 I Sent., dist. 11, q. 1, n. 5
163 IV Sent., dist. 17, q. un., n. 17; dist. 8, q. 2, n. 6.
164 IV Sent., dist. 11, q. 3, n. 5.
A ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIII 203

mente, diz ele, se revela por imagens interiores 165. Por isso
é que a revelação profética acontece principalmente no sono
quando o' homem está menos distraído pelos objetos do
mundo exterior. É tanto mais extraordinário, observa Scot,
que uma verdade seja revelada num sonho, pois se é na­
tural que o homem tenha o uso da razão quando acordado,
é muito menos natural que o tenha quando dorme 166. Fa­
lando da ação divina, explica que Deus, para se dar a co­
nhecer, pode servir-se de um objeto que o represente sob
seu aspecto de Divindade, ou então, agindo diretamente na
inteligência do profeta, pode produzir esse conhecimento
de si mesmo sem qualquer objeto intermediário. “Esse co­
nhecimento chama-se palavra interior de Deus, como o
conhecimento dos profetas” 167. Os anjos ou os demônios
não poderíam elevar o homem a um conhecimento dessa
ordem 168. O conhecimento surgido assim é acompanhado de
uma certeza firmissima: certeza que o conhecimento vem
de Deus e certeza da verdade desse conhecimnto. Ainda
que a certeza do profeta não repouse na evidência do objeto,
não pode ele negar-se a aceitar a verdade recebida169. A
verdadeira profecia inclui a certeza e a consciência da ação
divina.
Duns Scot não deixou nada elaborado sobre a revela­
ção neotestamentária. Afirma simplesmente que o promul­
gado e transmitido pelo Cristo aos apóstolos, foi promulgado
e transmitido à Igreja pelos apóstolos, oralmente ou por
escrito 17°. Dos apóstolos como dos profetas deve-se dizer
que “seria vã a revelação exterior sem o concurso da ilumi­
nação e revelação interior” 171. A pregação dos profetas e
dos apóstolos é acompanhada por milagres que atestam a
verdade da doutrina pregada172. Finalmente, um último
ponto de aproximação entre os apóstolos e os profetas é
a característica da grande certeza de seu conhecimento.
165 I Sent., dist. 16 n. 2.
166 IV Sent., dist. 45, q. 2, n. 11.
167 Rep. Par. Prol., q. 2, n. 17.
168 II Sent., dist. íl, n. 4.
169 III Sent., dist. 24, q. un., n. 17.
170 IV Sent., dist. 17, n. 17; dist. 8, q. 2, n. 6.
171 I Sent., dist. 16, q. un., n. 2.
172 Prol., p. 2, q. un., n. 113.
204 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Certeza semelhante à do assentimento que prestamos aos


primeiros princípios e que medeia entre a evidência da vi­
são e o conhecimento de fé dos simples fiéis. Certeza ne­
cessária, pois que a fé da Igreja se apóia sobre essas “monta­
nhas” que são os apóstolos e profetas173. Em virtude dessa
inabalável certeza, uma ponte se estabelece entre Deus e
a Igreja. Enquanto santo Tomás insistia mais na plenitude
do conhecimento desses grandes mediadores da revelação,
Scot insiste na certeza do seu conhecimento: habitus aná­
logo, na ordem do conhecimento, à impecabilidade na or­
dem moral.

Resumindo·. Para Duns Scot a revelação é a tradição


ativa que Deus faz ao homem da doutrina necessária ou
útil para a salvação. Doutrina comunicada aos profetas me­
diante imagens ou por uma ação direta de Deus na inte­
ligência: palavra interior de Deus, iluminação do profeta.
A ação reveladora do Cristo e dos apóstolos é brevemente
delineada: o Cristo promulga e transmite, os apóstolos pro­
mulgam e transmitem à Igreja. Característica comum do
conhecimento dos profetas e dos apóstolos: a certeza inaba­
lável do seu conhecimento. A doutrina da salvação está
contida na Escritura e, complementariamente, na tradição
ou costume universal da Igreja.

173 Rep. Part. III, dist. 24, q. un., nn. 21-22.


2.
ESCOLÁSTICOS PÓS-TRIDENTINOS

No século XVI, o movimento humanista e as neces-


sidades da controvérsia protestante suscitam na Igreja um
conjunto de novas questões e um imenso esforço que le­
vam a criar uma teologia que estuda as fontes da revela-
ção por si mesmas com maior atenção. Principalmente no
tratado De Locis, criado por Melquior Cano, e no De Lide,
os teólogos geralmente intercalam alguns parágrafos em
que se preocupam com definir a revelação.
O período que vai do século XVI ao XVIII caracteri­
za-se pelo esforço de pôr a questão em dia. Continua
o interesse pela revelação profética, mas o centro das
atenções desloca-se claramente em favor da revelação feita
pelo Cristo e pelos apóstolos. Para reagir contra a intem-
perança do iluminismo protestante, que concede a cada
fiel uma revelação imediata do Espírito Santo, há um
esforço para demonstrar que é suficiente a revelação me­
diata. O essencial, salientam, é que o testemunho de
Deus sobre si mesmo nos seja comunicado e validamenté
garantido como divino. De mais a mais, nossa fé se baseia
nessa revelação mediata.
Longas discussões sobre o motivo formal da fé levam
também os teólogos a definir mais precisamente o que se
entende por revelação e a mais bem distinguir, de modo es­
pecial a iluminação interior da graça da fé e a manifes­
tação objetiva dos mistérios antes ocultos.

I. MELQUIOR CANO E DOMINGOS BANES

1. Em Melquior Cano, a noção de revelação aparece


apenas indiretamente, por ocasião da análise da fé. Escreve
no seu De Locis Theologicis (1563) que, no caminho para
206 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

a fé, exigem-se alguns elementos exteriores (pregação per-


suasiva, milagres) que induzem a crer, mas que ainda não
são a luz que abre o espírito às claridades do mundo so­
brenatural. “Toda a persuasão externa e humana não basta
para crer. . . é ainda necessária uma causa interior, isto é,
uma luz divina que incite à fé, olhos interiores dados por
Deus para ver. . . O que se confirma claramente pela pa­
lavra de Cristo a Pedro: ‘Bem-aventurado és tu, Simão Bar
Jona, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou,
mas meu Pai que está nos céus’. É certo, Pedro ouvira o
testemunho de João Batista que proclamara o Filho de
Deus; vira também muitos milagres do Cristo; e mesmo
assim o Cristo atribui sua confissão de fé, não ao teste­
munho ou à autoridade de João, nem aos milagres presen­
ciados, mas à revelação divina” \
O fundamento último de nossa fé, diz ainda Cano, não
é a autoridade da Igreja nem a da Escritura, mas a autori­
dade de Deus que revela. “Dou minha adesão a todos
os princípios da doutrina cristã levado pela fé infusa, não
porque João ou qualquer outro homem disse, mas porque
Deus os revelou; e o próprio fato da revelação, eu o creio
imediatamente sob o impulso dum instinto divino especial” 2.
A autoridade da Igreja não é a razão última da fé, é, antes,
a “causa sine qua non” 3. Proposição exterior da verdade
de fé, persuasão do pregador, milagres, são condições da

1 “Externae igitur omnes et humanae persuasiones non sunt satis ad


credendum..., sed necessaria est insuper causa interior, hoc est divinum
quoddam lumen incitans ad credendum, et oculi quidam interni Dei be­
neficio ad videndum dati... Hoc quoque sua voce dilucide confirmavit
Christus Petro inquiens: Beatus es Simon Bar Jona, quia caro et sanguis
non revelavit tibi, sed Pater meus qui in coelis est. Certe Petrus audierat
Joannis Baptistae testimonium, quo aperta voce clamaverat Christum
esse Filium Dei; multa insuper Christi miracula viderat: et tamen post
haec omnia, non aut testimonio, aut auctoritati Joannis, non miraculis
visis fidei confessionem Christus assignat, sed divinae revelationi” (De
Locis theologicis, L. 2, c. 8, ad 4).
2 “Coeteris universis doctrinae christianae principiis assentio per in­
fusam fidem, non quod Joannes dixerit, aut quivis alius homo, sed quod
Deus revelaverit; huic autem: Deus revelavit, immediate credo, a Deo
motus per instinctum specialem” (Ibid.).
3 “Non est enim Ecclesiae auctoritas ratio per se movens ad creden­
dum, sed causa sine qua non crederemus” (De Locis, L. 2, c. 8)
ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 207

fé: a razão formal do assentimento de fé é a luz interior que


Deus infunde no crente4.
Melquior Cano reserva, pois, o termo revelação para
designar a revelação incriada, que existe em Deus, ou então
a iluminação interior da graça de fé que induz a crer. Não
chama de revelação a doutrina de salvação proposta pela
pregação da Igreja5.
2. Domingos Banes, discípulo de Cano, entende do
mesmo modo a revelação. Se é correto, diz, entender por
revelação a ação divina existente em Deus, é mais correto
ainda chamar de revelação “o efeito que Deus, revelando,
produz em nós, efeito pelo qual alguma coisa nos é for­
malmente manifestada ou revelada”. Esse efeito é a luz
da fé, ou a iluminação resultante6. Do mesmo modo que
Deus, autor da natureza, nos revela verdades naturais dan­
do-nos a luz do espírito, assim também nos revela as ver­
dades do mundo sobrenatural “infundindo-nos a luz pela
qual essas verdades nos são reveladas ”7. É Deus quem
infunde a luz e de sua ação segue-se uma iluminação que

4 “Proponere credenda, suadere, miracula facere, determinant intellec­


tum ut credat, quasi conditiones, sine quibus vix unquam intellectus
determinatur; at ratio formalis assentiendi lumen fidei est, quod Deus
infundit credenti’ ’ ( Ibid. ).
5 “Ex parte objecti ratio formalis movens est divina veritas revelans;
sed illa tamen non sufficit ad movendum, nisi adsit causa interior, hoc
est Deus etiam movens per gratuitum specialemque concursum” (De Lo­
cis, L. 2, c. 8).
6 “Divina revelatio potest considerari ut est actio Dei in ipso Deo
existens. Et isto modo non est ratio formalis nostrae theologiae aut
fidei, sub qua objectum fidei vel theologiae attingitur. Quoniam illa no­
bis extrinsece tenens se ex parte causae efficientis et superioris. Altero
modo, divina revelatio sumitur pro ipso effectu, quem Deus revelans
efficit in nobis, quo formaliter fit nobis aliquid manifestum seu revelatum.
Et isto modo nihil aliud est ratio formalis sub qua objecti theologiae
vel fidei, quam ipsum lumen, aut effectus formalis luminis, quod Deus
infundit in nobis, ut per illud immediate assentiamus principiis, mediate
vero conclusionibus deductis” (In Primam Partem, q. 1, a. 3, B et C).
Texto citado conforme: Scholastica commentaria in primam partem angeli­
ci Doctoris D. Thomae usque ad sexagesimam quartam quaestionem com­
plectentia, auctore Fratre Dominico Banes Mondragonensi (Romae, 1584).
7 “Quemadmodum... dicitur Deus manifestare, seu revelare, ut auctor
naturae, aliqua quae de Deo naturaliter cognoscibilia sunt non alia ra­
tione nisi quia confert hominibus lumen naturale: ita etiam dicitur re­
velare ea quae ad supernaturalem cognitionem pertinent quatenus infundit
lumen, quo talia revelentur” (Ibid., E).
208 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

origina um novo conhecimento8. A atenção de Banes, como


a de Cano, dirige-se, pois, à iluminação do sujeito mais que
à revelação do objeto.

II. FRANCISCO SUAREZ

Suarez insiste na revelação mediata. Revela-se Deus


à multidão, não, porém, imediatamente, mas por seus legados.
No Antigo Testamento, falou Deus imediatamente a Moisés,
aos profetas, e por eles a todo o povo. Não é diferente a
economia do Novo Testamento: “Primeiro foi mandado
João, para que todos por ele acreditassem; depois, o pró­
prio Deus, pela humanidade que assumiu, instruiu aqueles
que o puderam ouvir imediatamente. Para os outros enviou
seus apóstolos, dizendo: Pregai o Evangelho a toda a cria­
tura. . . Essa é pois a maneira suficiente, até mesmo ordi­
nária, de se propor e conceber a fé” 9.
Tendo Cristo instruído a Igreja apostólica, é pela Igre­
ja que ele instrui cada fiel, “tanto que uma definição da
Igreja equivale a uma revelação” 10. Quem ouve a Igreja,
ouve o próprio Deus que lhe fala11. Contudo, se não é
preciso que a proposição da verdade se faça imediatamente

e Ibid., D.
9 “Praeter haec autem saepe Deus per Prophetas loquebatur, et novas
revelationes proponebat... Denique in lege gratiae, idem modus pro­
videntiae et praedicationis fidei servatus est. Nam imprimis missus est
Joannes, ut omnes crederent per illum; postea vero Deus ipse per huma­
nitatem assumptam docuit eos qui illum immediate audire potuerunt.
Ad reliquos autem misit apostolos dicens, Mt. ultimo: praedicate Evan­
gelium omni creaturae... Ergo hic est modus sufficiens, immo et ordina­
rius, ad proponendam et concipiendam fidem. Et ideo dixit Paulus ad
Rom. 10: fides ex auditu, auditus autem per verbum Christi. Loquitur
autem de verbo sensibili, nam subdit: quomodo audient sine praedicante?”
(De Fide, disput. 4, sect. 1, η. 2: t. 12, 112). Citado segundo: R. P.
Francisci Suarez Opera omnia edita a M. André et C. Berton (28 vol.,
Paris, Vivès, 1856-1878).
10 “Verbo suo Christus fidem tradidit," et apostolicam ecclesiam do­
cuit, et per Ecclesiam singulos fideles. instruit, et Ecclesiae definitio vir­
tutem habet cujusdam revelationis” (Proleg. V, De variis erroribus di­
vinae gratiae contrariis, c. 3, n. 16: t. 7, 233).
11 “Ecclesia... est sensibilis regula, quam facilius audiunt e* perci­
piunt; in illa tamen auctoritatem divinam quasi loquentem suppo 't
ita implicite saltem suam fidem in Deum resolvunt” (De Fide, „·.
3, sect. 10: n. 10: t. 12, 94).
ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 209
pelo próprio Deus, pelo menos se exige que essa proposi­
ção se apresente em tais circunstâncias e com tais garantias
que se manifeste como “crível” ou, com outras palavras,
qualificada pelo poder divino 12.

1. Revelação no sentido estrito_

Para Suarez, revelação é “a simples proposição su­


ficiente cío objeto revelado, acredite ou não aquele a quem
se faz essa revelação, seja ela feita interna e imediatamente
por Deus mesmo, ou por seus anjos, ou que se faça exter­
namente pela pregação humana” u. Considera, pois, a re­
velação do ponto de vista do objeto, apresentando-a como
proposição do objeto revelado que se deve crer sub divina
auctoritate. Suarez explicita seu pensamento distinguindo
os vários componentes da fé: “Note-se que duas coisas são
necessárias para o conhecimento da fé: a primeira é a apreen­
são do que se deve crer, enquanto proposto ao homem como
palavra de Deus e, portanto, crível devido ao testemunho
divino; a outra é o assentimento ao que foi proposto, o
que constitui propriamente a fé” O objeto é crível, e
portanto sua proposição é suficiente quando a verdade pro­
posta aparece como coberta pela autoridade de Deus, soli­
damente atestada por ele.

12 “Statuendum est ad sufficientem olyecti fidei propositionem non


satis esse objectum utcumque proponi tamquam dictum seu revelatum a
Deo, sed necessarium saltem esse cum talibus circunstantiis proponi ut
prudenter appareat credibile, eo modo quo proponitur” ( De Fide, disput.
4, sect. 2, η. 3: t. 12, 116). “Quamvis necessarium non sit ut sufficiens
propositio fidei a Deo immediate fiat, necessarium saltem est ut divina
virtus in ea proxime intercedat” (De Fide, disput. 4, sect. 1, η. 5: t.
12, 113).
13 "... solam objecti revelati sufficientem propositionem, sive credatur
ab eo cui fit talis revelatio, sive non, et sive revelatio fiat mere interius
ab ipso Deo per se ipsum, vel per angelos, sive fiat exterius per hominum
praedicationem” (De Trinitate, L. 1, c. 12, nn. 4-5: t. 1, 571).
14 “Sed quaeret aliquis primo quid nomine revelationis intelligamus.
Respondeo breviter intefiigi omnem sufficientem fidei propositionem, sive
interius tantum fiat, sive per exteriorem praedicationem. Ut hoc autem
magis intelligatur, adverto ad cognitionem fidei duo esse necessaria: unum
est apprehensio rerum credendarum, quatenus homini proponuntur ut
dicta a Deo, et consequenter ut credibilia ex testimonio divino; aliud est
assensio ad res propositas, in quo proprie fides ipsa consistit” (De ne­
cessitate gratiae, L. II, c. 1, n. 8: t. 7, 588).
210 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Na proposição histórica da fé, Suarez distingue dois


momentos. A fé foi proposta “primeiro pela pregação ge­
ral, quando foi introduzida pela primeira vez, corii a pre­
gação do Cristo e dos apóstolos; então era de todo neces­
sário que o ensinamento fosse confirmado pelos sinais pró­
prios do poder divino, os milagres”. De fato, Deus sem­
pre respeitou essa economia, tanto na promulgação da auto­
ridade profética como na da mensagem evangélica. Agora,
porém, que a fé já está espalhada e já foi anunciada para
todos, os milagres já não são necessários. Porém, “continua
sendo necessário que o poder divino ajude e trabalhe inte­
riormente para que cada um perceba convejiientemente
a proposição da fé e tome sua decisão, pois isso é obra total­
mente sobrenatural que não se pode realizar sem o socorro
da graça” 15.
Não sendo possível a adesão da fé a não ser com um
socorro da graça, “às vezes a Escritura chama de revelação
também a inspiração e a infusão da luz interior que gera
eficazmente a fé. É nesse sentido que o Cristo diz a Pedro
(Mt 16): Caro et sanguis non revelavit tibi, sed Pater
meus, et ( Mt 11): Nemo novit Filium nisi Pater, neque
Patrem quis novit, nisi Filius et cui voluerit Filius revela­
re. Essa revelação não se dá apenas quanto ao objeto, mas
também quanto à potência, e, portanto, inclui tanto a pro­
posição do objeto como a inspiração e o socorro para acre­
ditar”
15 “Haec fides dupliciter potest proponi: primo per generalem praedi­
cationem quae fit quando primum incipit introduci, sicut praedicata est
per Christum et per apostolos, et tunc profecto necessarium fuit doctrinam
confirmari signis propriis divinae virtutis, ut sunt miracula,.... et ideo
semper hunc ordinem Deus observavit, ut constat in promulgatione Evan-
gelii, et in promulgatione Veteris Testamenti, et fere in singulis prophetis;
ac denique de seipso dixit Christus: si non venissem et locutus eis fuissem,
et si opera non fecissem in eis quae nullus alius fecit, peccatum non
haberent. Alio modo contingit fidem jam sufficienter praedicatam et in­
troductam, singulis praedicari et quasi applicari, et time non sunt neces­
saria exteriora signa divinae virtutis; necessarium autem est ut divina
virtus interius adjuvet et cooperetur, ut unusquisque sufficienter perci­
piat propositionem fidei et de illa convenienter judicet; nam totum hoc
est opus valde supernaturale, quod sine auxilio gratiae praestari non
potest” (De Fide, disput. 4, sect. 1, η. 6: t. 12, 114).
16 “Haec assensio per fidem supernaturalis est in se, et ideo praeter
objecti propositionem sufficientem, indiget supernaturali principio, a quo
fiat. Atque hinc ortum est ut nomine revelationis interdum in Scriptura
ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 211
Suarez compreende, pois, como revelação no sentido
estrito essa proposição suficiente da fé, pressuposta pelo
julgamento de fé: “pois, a muitos que não acreditam é re­
velada a fé, se bem que sem prévia revelação ninguém
acredite” 17.

2. Iluminação ou revelação do objeto e da potência


A fé vem de Deus, tanto quanto ao objeto como quan­
to ao socorro ou à virtude sobrenatural dada à potência 18.
A doutrina é de Deus e a graça é de Deus. Sob ambos os as­
pectos podemos devidamente chamá-la de iluminação. De fa­
to, por um lado, propor um objeto e mostrar sua verdade, as
razões para dar-lhe adesão, como um professor que orienta
seus alunos, é iluminar. Eminentemente o Cristo, pela pre­
gação de sua doutrina, ilumina o mundo: seu ensinamento
é luz. Por outro lado, também a infusão da fé é luz. Diz
são Paulo que os batizados que recebem a fé são ilumina­
dos 19. Entre ambas as iluminações, porém, há uma dife­
rença importante: enquanto a iluminação ex parte objecti
pode ser fçita por Deus ou por seus anjos, a iluminação
ex parte potentiae faz-se sempre imediatamente por Deus,

significetur ipsamet interna inspiratio et infusio interioris luminis, quae


efficaciter generat fidem, quomodo dixit Christus Pedro Mt. 16: caro et
sanguis non revelavit tibi, sed Pater meus, et Mt. 11, generaliter dixit:
nemo novit Filium nisi Pater, neque Patrem quis novit, nisi Filius et cui
voluerit Filius revelare. Haec enim revelatio non eolum ex parte objecti,
sed etiam ex parte potentiæ fit, et ideo objecti propositionem et inspira­
tionem, ac adjutorium ad credendum includit” (De Trinitate, L. 1, c. 12,
nn. 4-5: t. 1, 571).
17 “Non ita loquimur de revelatione, sed priori modo quatenus ad
judicium fidei praesupponitur; sic enim contingit multis revelari fidem
qui non credunt, quamvis sine praevia revelatione nemo credat” (De
Necessitate gratiae, L. II, c. 1, n. 8: t. 7, 588). Cfr. De Fide, disput. 8,
sect. 4, η. 24: t. 12, 157.
18 De Fide, disput. 3, sect. 3, η. 5: t. 12, 47.
19 “Primo modo fit manifestando in objecto veritatem ejus, vel ra­
tionem assentiendi illi; sic enim praeceptor illuminat auditores... Sic
ergo Deus revelans et testificans res fidei, merito dicitur illuminare illas,
et sic dicitur illuminare prophetas, et Christus Dominus dicitur illuminasse
mundum praedicatione sua. Denique, ait Paulus, omne quod manifesta­
tur, lumen esse, atque etiam manifestatio objecti est quaedam illuminatio.
Deinde ipsa etiam infusio fidei divinae illuminatio est, nam fides est
quoddam lumen, et ideo Paulus, ad Hebr. 6, baptizatos vocat illuminatos
quia lumen fidei recipiunt" (Ibid., n. 6).
212 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

pois que a infusão da luz sobrenatural é ação que lhe é


própria de forma exclusiva.
Em ambos os casos podemos falar de revelação, não,
porém, de forma igualmente estrita. Revelar é afastar o
véu que nos esconde um objeto; o véu, porém, pode cobrir
seja o objeto seja a faculdade de ver. Na ordem da fé,
tanto o objeto como a potência estão velados: o objeto
enquanto totalmente ignorado e nem sequer suspeitado; a
potência, enquanto não proporcionada ao objeto. Deus afas­
ta os véus: o primeiro, pela revelação do objeto de fé.; o
segundo, pela.infusão da fé. Contudo, “propriamente e se­
gundo o uso mais freqüente da Escritura, chama-se reve­
lação a que se refere ao objeto. . . Nesse sentido é que
santo Tomás ensina muitas vezes que a revelação se faz.
por intermédio de anjos. . ., o que só é verdade quanto à
revelação objetiva; assim também se diz na linguagem cor­
rente: revelar segredos. Por isso distinguem os teólogos
entre a revelação necessária à fé e a infusão do hábito, entre
a revelação propriamente dita e o instinto divino... Além
disso, existe entre ambas esta notável diferença: a revelação
propriamente dita é percebida pela inteligência. . . enquanto
que a infusão da fé não é percebida pelo espírito, mas é ope-
rada invisivelmente pelo próprio Deus” 20.
Segundo Suarez, pois, a revelação deve-se definir a
partir do objeto antes que a partir da potência. Define-se
como sendo a proposição suficiente, isto é, garantida por
Deus, de mistérios divinos, da verdade divina, da doutrina
da salvação. Num sentido mais largo, pode-se designar como
revelação a luz ou a iluminação da graça da fé.

20 “Primum ergo velamen tollitur per revelationem objecti fidei; nam


per illam fit aliquo modo cognoscibile sub testimonio divino: per infusio­
nem autem fidei tollitur ignorantia mentis, et ideo utraque dici potest
revelatio. Proprie tamen, et juxta frequentiorem modum loquendi Scriptu­
rae, revelatio dicitur illa quae est ex parte objecti, juxta illud ad Rom.
1: Justitia Dei in eo, id est in Evangelio, revelatur ex fide in fidem;
in Evangelio enim objectum fidei aperitur... Sic etiam D. Thomas saepe
docet revelationem fieri mediantibus angelis (2a 2ae, q. 2, a. 6; q. 172,
a. 5; la, q. 96, a. 3), quod non est verum nisi de revelatione objectiva;
et sic etiam in communi sermone dicimus revelari secreta: hoc ergo modo
distinguunt theologi revelationem necessariam ad fidem ab infusione
habitus: ita etiam distingui solet propria revelatio ab instinctu Dei...
Estque valde notanda differentia quod revelatio propria percipitur ab in-
ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 213

III. JOÃO DE LUGO

1. A Revelação como palavra


Tanto a revelação mediata como a imediata são designa­
das pela Escritura como palavra de Deus. De Lugo estuda
essa analogia da palavra21. Conforme ele, para que se ve­
rifique o conceito de palavra não basta que apresentemos
a alguém um objeto; é preciso que também lhe manifestemos
o que pensamos desse objeto. Os céus manifestam-nos a
glória de Deus, não nos falam, porém, no sentido estrito.
A palavra “de per si e imediatamente ordena-se a manifes­
tar a alguém o pensamento de quem fala. Falar a alguém
não é, pois, o mesmo que falar diante de alguém” n. Dis-
tingue-se a palavra de qualquer outra ação que possa gerar
o conhecimento, enquanto visa imediatamente comunicar
a outro o conhecimento de quem fala, manifestando-lhe a
vontade de ser entendido e compreendido23.
Na revelação imediata (aos profetas, por exemplo),
Deus pode servir-se de sinais sensíveis, como a palavra
humana, e assim manifestar seu pensamento; ou então, agin­
do internamente, pode gerar imediatamente o conhecimento
do objeto que deseja comunicar, manifestando-o como sendo
verdadeiramente o objeto de seu pensamento24.
Proporcionalmente pode-se dizer o mesmo da palavra
mediata pela qual Deus atualmente nos propõe o mistério
da fé. Essa palavra é a proposição do mistério, uma pro­
posição, porém, “ tal que eu possa nela reconhecer — como
na voz mediatá de Deus — que Deus é o autor dessa dou-
tellectu, et per eam concipitur aliquo modo objectum revelatum, et ratio
quae ostenditur ad assentiendum illi; infusio autem habitus non ita per­
cipitur ab intellectu, sed invisibili modo ab ipso Deo fit, ut per se
constat” (Ibid., n. 7: t. 12, 48).
21 De Fide, disput. 1, sect. 10, η. 193. Citação conforme: J. de Lugo,
Disputationes scholasticae et morales (8 vol., Paris, Vives, 1891-1894).
22 “Requiritur ergo ad locutionem quod ordinetur per se et immediate
ad manifestandum alicui mentem loquentis. Ex quo fit ut non sit idem
loqui alicui et loqui coram altero” (Ibid., n. 197).
23 Ibid. n. 210. Segundo De Lugo devemos distinguir também entre
audição e palavra. A audição supõe percepção: percebo o que
é dito e o percebo como pensamento de alguém. . Por si é possível haver
palavra, isto é, intenção de comunicar, sem que haja audição (Ibid. n. 198).
24 Ibid., n. 203.
214 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

trina e que assim quer comunicar-me seu pensamento: nisto


verifica-se o conceito de palavra” 25.
Reivindicando para cada fiel uma inspiração interior
do Espírito Santo, os protestantes não levam na devida
conta a revelação mediata. Nós, pelo contrário, afirma­
mos que Deus não falou imediatamente a não ser aos pro­
fetas e aos apóstolos; para a multidão a revelação é apenas
mediata. Revelação, porém, que tarito quanto a primeira
merece o título de palavra de Deus26. “Deus fala como
seria conveniente que falasse a homens que percebem os
objetos mediante seus sentidos materiais; ou seja: propondo
os mistérios e operando milagres, de maneira que possamos
perceber, não apenas pelo ouvido, mas também pelos olhos,
a voz de Deus que nos fala” 27. Assim, quando leio a carta
de um amigo, sei que meu amigo me fala; se duvidasse, o
exame da letra garantir-me-ia que é ele mesmo28. Do mesmo
modo, a proposição que se me faz dos mistérios de Deus,
com os sinais que a acompanham, garantem-me que essa

25 “Idem cum proportione dicendum esse de locutione mediata, qua


Deus mihi hic et nunc proponit mysterium fidei credendum: haec enim
locutio est ipsa mysterii propositio mihi facta a praelatis et magistris cum
talibus circunstantiis, etc.; haec enim propositio talis mihi apparet, ut in
ipsa tanquam in Dei voce mediata possim cognoscere Deum esse auctorem
huius doctrinae, et Deum per hoc medium velle mihi suam mentem commu­
nicare: in quo consistit ratio locutionis” (Ibid., n. 204).
26 “Adverte revelationem Dei aliam esse immediatam, qua Deus
immediate aliquid revelat; aliam esse mediatam, seu notitiam quae ad
nos venit ex revelatione immediata aliis facta. Priorem revelationem vi­
dentur . exigere in singulis ad assensum fidei haeretici nostri temporis,
dum dicunt regulam fidei esse instinctum et Spiritum internum uniuscuius­
que. Posteriorem nemo catholicus negat: necessarium enim omnino est
nobis ad credendum fide Christiana, quod mysterium nobis proponatur
tanquam a Deo alicui immediate revelatum, et licet Deus non loquatur
nobis immediate, loquitur tamen aliquo modo per os illorum qui myste­
ria sibi revelata proponunt, nam multifariam multisque modis Deus loqui­
tur, ut dixit Paulus. Nec novum 'est appellare locutionem Dei hanc locu­
tionem mediatam; sic enim appellatur saepissime in Scriptura” (De Fide,
disput. 1, sect. 7, η. 122).
27 “Loquitur autem, sicut expedit Deum loqui cum hominibus per­
cipientibus objecta per sensus materiales: nimirum taliter proponendo
mysteria, talia miracula operando, ut non solum auribus, sed visu etiam
percipiamus vocem Dei loquentis nobiscum, ideo enim Paulus ad Hebr. 2,
miracula dixit esse quamdam Dei locutionem... Sunt ergo miracula ipsa
aliquo modo vox Dei; unde Augustinus... absolute dixit: Deus mira­
bilibus loquitur” (De Fide, disput. 1, sect. 7, η. 122).
2« Ibid., η. 122.
ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 215

doutrina, proposta como vinda de Deus, é verdadeiramente


mensagem de Deus. A certeza não é menor que na revela­
ção imediata29. É verdadeiramente palavra de Deus.
A revelação mediata apresenta-se, pois, como o com­
plexo da doutrina e dos sinais que a garantem como divina.
Os sinais são parte integrante dessa palavra que nos é apre­
sentada hic et nunc como palavra de Deus. Quem acredita
na pregação do profeta, não acredita no que é proposto sem
levar em conta a autoridade do profeta; igualmente quem
acredita no que lhe propõe a Igreja, não acredita na Igreja
abstração feita de sua autoridade, mas acredita numa palavra
autorizada como divina pelos sinais que a acompanham30.

2. Revelação e hábito ou auxílio da fé


Se a revelação propriamente dita é palavra de Deus, /
comunicação aos homens do pensamento divino não se po­
dería confundir com o hábito de fé ou com o auxílio da
graça da fé. Nota de Lugo: “Deus não nos fala enquanto
nos dá o habitus da fé, mas enquanto diz a encarnação ou a
Trindade; do mesmo modo que não dizemos que Deus nos
fala quando nos dá a inteligência para crer e conhecer outros
objetos... Deus, dando-nos a inteligência e o habitus da
fé, dá-nos a faculdade que nos torna capazes de ouvir sua
voz e de acreditar; não se diz, porém, que ele fala, pois a
palavra é produção de verbos que exprimem o pensamento
de quem fala... ; a inteligência, ou o habitus da fé, não é
verbo de Deus; por isso a sua produção não é de forma al­
guma palavra ou revelação de Deus” 31. O instinto interior,
não é nem total nem parcialmente, palavra de Deus 32.
2’ Ibid., n. 123.
30 De Fide, disput. 1, sect. 8, η. 130.
31 “Revelatio enim propria Dei est locutio Dei, qui certe non loqui­
tur quatenus dat habitum fidei, sed quatenus dicit Incarnationem vel
Trinitatem; sicut non dicitur Deus loqui nobis, quatenus dedit nobis
intellectum, quo possimus ei credere et cognoscere etiam alia objecta...
Deus dans intellectum, vel habitum fidei, dicitur dare nobis potentiam,
qua ejus vocem audire et credere possimus; non tamen dicitur loqui, quia
locutio est productio verborum ad exprimendam mentem loquentis... ;
intellectus autem, vel habitus, non est verbum Dei, quare ejus productio
non est ullo modo locutio vel revelatio Dei” (De Fide, disput. 1, sect. 2,
η. 9). Cfr. De Fide, disput. 1, sect. 10, η. 194
32 De Fide, disput. 1, sect. 2, η. 22.
216 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

O próprio santo Tomás, continua De Lugo, distingue


claramente entre a moção interior, que dispõe e inclina ao
assenso da fé, e o ensinamento divino: “Deus, internamen­
te propondo a revelação, move os homens a dar seu assen­
timento; por isso esse convite interior de Deus não é uma
nova palavra divina, a não ser alegoricamente, neste sen­
tido que Deus, por sua graça, dispõe o entendimento inte­
rior do espírito para que melhor perceba a força e a auto­
ridade do testemunho divino proposto”33. A graça in­
terior apenas assume a palavra proposta para que sua ver­
dade seja mais bem percebida.
A revelação, no sentido estrito, é pois a palavra de
Deus aos homens, ou seja, a comunicação do pensamento
divino. Por essa comunicação o homem conhece a verdade
proposta por Deus e conhece como sendo verdadeiramente
seu pensamento. Aplica-se essa noção tanto à revelação
mediata como à imediata: ambas são palavras de Deus.
Na revelação mediata, a palavra total apresenta-se como
o complexo da mensagem e dos sinais que autenticam como
palavra de Deus a mensagem ouvida.

IV. OS CARMELITAS DE SALAMANCA

O De Fide dos teólogos de Salamanca tem alguns pa­


rágrafos muito precisos sobre a noção de revelação Por
revelação, dizem, deve-se entender a ação de Deus que
afasta o véu que esconde a inteligência de algo: véu que
pode encobrir o objeto ou o sujeito que conhece. O objeto
pode escapar ao espírito devido à sua excelência (os mis.-
33 “Per auctoritatem divinae doctrinae, intelligi a Sancto Thoma totum
quod se tenet ex parte objecti... ; motionem adaequate distinguit a tota
doctrina et auctoritate divina, sólumque vult inducere ad credendum; qua­
tenus Deus proponendo interius eamdem revelationem, movet homines ad
praebendum assensum; quare illa invitatio Dei interna non est nova locutio
Dei nisi allegorica, quatenus Deus accommodat sua gratia aures internas
mentis ut melius percipiat vim et veritatem divini testimonii propositi”
(Ibid. n. 26).
34 Tractatus XVII, De Fide, disput. 1, dub. 3, Citado segundo:
Collegii Salmanticensis FF. Discalceatorum B. Mariae de Monte Carmeli
primitivae observantiae Cursus theologicus, juxta miram Divi Thomae
Praeceptoris angelici Doctrinam (Lyon, 1779).
ESCOLÁSTICOS POS-TRIDENTINOS 217

térios de ordem sobrenatural), à sua indeterminação (os


futuros livres), ao modo de sua proposição (enigmas e
figuras do Antigo Testamento). O véu pode cobrir tam­
bém o espírito, devido às más disposições da alma, como
no caso dos judeus infiéis. Toda ação que afasta um desses
véus e permite a compreensão de uma coisa, é propriamente
revelação divina35.
É preciso distinguir na revelação duplo aspecto: ativo
e passivo. Ativamente a revelação é “a ação ou a locução
divina que nos atesta, por palavras ou por atos, uma verda­
de, ou imediatamente por si mesma ou mediante seus minis­
tros: os anjos, os apóstolos e os profetas”36. Passivamente,
a revelação “consiste no conhecimento atual ou habitual
do que Deus disse e atestou”. Então designa tanto o hábito
como o assentimento da fé. Designação que se justifica por
muitas razões: primeiro, porque o habitus ou o ato de fé
são o efeito da revelação ativa; depois, porque ó assenti­
mento da fé exclui, por parte do sujeito, o véu da infideli­
dade; finalmente, porque comunica a inteligência justa das
coisas reveladas. Além da visão do objeto, como a puderam
ter o Faraó e Nabucodonosor, dá também a inteligência do
objeto revelado37.
Portanto, os teólogos de Salamanca reconhecem como
correspondentes à definição de revelação, tanto o teste­
munho de Deus que nos manifesta os mistérios de sua vida
íntima — por si mesmo ou por seus ministros — como a
iluminação da graça da fé (ato ou hábito).

35 De Fide, disput. 1, § 1, η. 81.


36 “Est actio, vel locutio Dei testificantis nobis verbo vel facto
aliquam veritatem, sive immediate per se ipsam, sive mediate per suos
ministros, quales sunt angeli, apostoli et prophetae” (Ibid., n. 82).
37 “Consistit in actuali vel etiam habituali cognitione eorum quae
nobis Deus loquitur et testificatur; sic enim interiorem illi adhibemus
ruditum. Quo pacto, tam habitus quam assensus fidei dicitur divina
revelatio. Nec immerito, tum quia generaliter loquendo, actio divina
passive accepta supponit pro illius effectu; constat autem tam habitum
quam actum fidei esse effectum revelationis activae Dei; tum etiam quia
praedictus assensus fidei excludit in genere causae formalis infidelitatem,
quae est velamen ex parte subjecti se tenens; tum denique, quia communi­
cat formaliter suo subjecto rectam intelligentiam eorum quae divinitus
revelantur, sive ex parte objecti proponuntur; haec enim est differentia
essentialis constitutiva revelationis passivae...” (Ibid., n. 83).
3.
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX

De 1760 a 1840, a teologia, em vez de procurar sua ins­


piração na grande tradição cristã de santo Agostinho, santo
Tomás, são Boaventura, procura seu fermento nas filosofias
sempre mutantes da época. Cada vez mais se avilta e cai no
marasmo do filosofismo.
Após esse período de desconfiança para com a esco-
lástica medieval, há uma reorientação no sentido da tradi­
ção, iniciada já na Espanha e na Itália, onde persiste a es-
colástica, mas principalmente estimulada e favorecida pela
Igreja mesma na pessoa de seus chefes. De modo particular
Pio IX reafirma os direitos do sobrenatural ante o raciona-
lismo e dá novamente à teologia seu verdadeiro sentido.
Nessa renovação sobressaem alguns nomes, tais como Mõhler,
Kleutgen, Denzinger, Franzelin, Scheeben. Na revaloriza­
ção do sobrenatural, todos tiveram que falar da revelação,
se não sempre para estudar-lhe a noção, pelo menos para
afirmar a sua possibilidade e realidade. Em Mõhler, Kleut­
gen e Denzinger nada encontramos de bem elaborado sobre
a noção de revelação. Pelo fim do século, ao contrário,
quando do Concilio Vaticano I, encontramos bem mais,
especialmente em Franzelin e Scheeben. Newman, na In­
glaterra, mantém uma posição muito firme ao mesmo tempo
que profundamente religiosa.

I. JOAO MÕHLER

Mais que todos, Mõlher foi, na Alemanha, o chefe da


renovação teológica. Sua obra “A Unidade da Igreja” é um
protesto da vida contra a anemia do reino das luzes. Nessa
obra apresenta a Igreja como uma realidade viva, ativa, cria-
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 219
dora, que o Espírito do Cristo vivifica sempre. Não esquece o
fato da fundação da Igreja, mas o que deseja evidenciar é
principalmente o Espírito dispensador de vida, princípio de
uïîîdade e de crescimento, interno e externo, fonte contínua
de dinamismo: “Para quem penetra o conjunto de nossa
fé, a vida do Espírito em nós tem prioridade sobre o ensi­
namento ou a fé formulada, se bem que — acrescenta logo —
no tempo a pregação anteceda nossa adesão” ’. Contudo,
essa afirmação vigorosa do primado do Espírito, a repre­
sentação da consciência da fé em termos que lembram de­
mais Schleiermacher, espantaram os espíritos da época. Aliás,
o próprio Mõhler reviu suas posições. Com a mesma insis­
tência com que em A Unidade diz' que o primordial é o
Espírito, no Simbolik insiste em dizer que o primordial é
a Igreja visível. Quando fala da revelação é para salientar
sua objetividade e exterioridade.
Ao princípio do protestantismo segundo o qual a Igreja
visível deriva da invisível, opõe o contrário, isto é, que a
Igreja visível existe antes da invisível. “Quando o Cristo
começou a anunciar o Reino de Deus, esse Reino existia
nele apenas e na idéia divina; veio aos homens, primeira­
mente aos apóstolos, nos quais o Reino de Deus foi estabe­
lecido pelo Verbo de Deus que lhes falava de fora, em
termos humanos, assim que o Reino penetrou neles,
vindo de fora” 2. O que Cristo fizera, fizeram-no os apósto­
los por sua vez, formando eles também outros discípulos.
Assim, através dos séculos, a Igreja invisível veio sempre
da Igreja visível: “Essa ordem exigia a idéia de uma reve-

1 “... pour qui pénètre l’ensemble de notre foi, dit-il, la vie de l’Esprit
en nous garde la priorité sur l’enseignement ou foi formulée, bien que,
ajoute-t-il aussitôt^ dans le temps, la prédication précède notre adhésion”
(J. A. Mõhler, L'Unité dans l’Eglise, ou le principe du catholicisme
d’après l’esprit des Pères des trois premiers siècles de l’Église. Trad, de
André de Lilienfeld (Paris, 1938), pp. 22-23).
2 “Ais Christus das Reich Gottes zu verkünden begann, war es
nirgends vorhanden, als in ihm und der gottlichen Idee; es kam von
aussen zu den Menschen, und zwar zuerst zu den Aposteln, in welchen
also das Reich Gottes durch das von aussender, menschlich zu ihnem
sprechende Wort Gottes ausgerichtet ■ ward, so dass es von aussen in sie
hineindrang” (J. A. Mõhler, Symbolik oder Darstellung der dogmatischen
Gegensatze der Katholiken und Protestanten nach ihren offentlichen Be-
kenntnisschriften (Mainz, 1838, 5î), L. I, c. 5, § 48, p. 426).
220 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

lação exterior e histórica, que, por sua própria natureza,


exigia um magistério permanente, determinado, exterior, ao
qual se deve referir quem quer que deseje conhecer essa re­
velação” 3.
Lutero raciocina inversamente “como se a revelação,
no Cristo Jesus, fosse uma revelação interior, como se Deus
não se tivesse feito homem, como se, conseqüentemente, a
revelação não se concretizasse num testemunho exterior, como
se não fosse importante que o ensinado por Cristo
tivesse a garantia de uma autoridade exterior. . . Em Lute­
ro, a autoridade exterior da Igreja transformou-se em auto­
ridade interior e a palavra exterior reconhecida como divina
tornou-se voz interior do Cristo e de çeu Espírito” 4. Logi­
camente, pois, segundo Lutero, “poderiamos dispensar um
Cristo exterior e uma revelação exterior” 5. Em resumo, “o
significado de: o Verbo fez-se carne, tomou-se homem, issò
nunca foi claramente compreendido por Lutero”6. “Seu
erro. . . foi que jamais considerou a fundo o que significa o
fato de a revelação imediata no Cristo ser uma revelação
exterior”7. Por isso rejeitou a visibilidade da Igreja, rejei­
tou o testemunho exterior. Finalmente, a revelação da cons­
ciência foi proclamada intérprete da revelação escrita8. A
posição protestante, que baseia toda a vida religiosa sobre a

3 “Diese Ordnung forderte der Begriff einer ãusséren historischen


Offenbarung, deren ganzes, eigenthümliches Wesen ein fortwãhrendes,
bestimmtes, ãusseres Lehramt erheischt, an welches ein Jeder sich zu halten
hat, der dieselbe will kennen lernen” (Ibid., p. 426).
4 “Und worin hat nach Luther Jemand in letzter Instanz die Ge-
wissheit zu finden, dass er in der Wahrheit stehe? In einem lediglich
inneren Acte, in dem Zeugnisse des heiligen Geistes; gleich ais ware die
Offenbarung in Christo Jesu eine innere, gleich als ware er nicht Mensch
geworden, als kame es mithin nicht auf ein ãusseres Zeugniss, als kame
es nicht darauf an, dutch eine ãussere Auctoritãt gerviss zu werden, was er
gelehrt hat... Die ãussere Auctoritãt der Kirche yerwandelt sich bei
Luther in eine innere, und das ãusserliche als gõttlich beglaubigte Wort
in die innere Stimme.Christi und seines Geistes” (Ibid. 427).
5 “Hãtte er einen ãusseren, historischen Christus, eine ãussere Offen­
barung wohl recht missen konnen” ( Ibid; 427 ).
6 “Was es heisst: das Wort ist Fleisch, ist Mensch geworden, wurde
Luther’n niemals klar” (Ibid. 430).
7 “Sein Fehler... war, dass er nicht gündlich erwog, was es heisst,
die unmittelbare Offenbarung in Christus sei eine ãussere” (Ibid., § 49,
p. 431).
8 Ibid., 432.
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 221
comunicação imediata do Espírito na consciência de cada
homem, esquece “que a revelação interior é condicionada
pela palavra exterior e que a inteligência da palavra interior
é condicionada pela palavra exterior que se dirige ao ho­
mem” 9. Esquece também que a voz da consciência altera
muitas vezes o testemunho de Deus: “É por isso que ao
lado da Sagrada Escritura, que é sem erro, foi dada a auto­
ridade viva da Igreja, para que guardássemos a palavra di­
vina tal qual é” 10.
Portanto, segundo Mõhler, a revelação feita aos após­
tolos é a comunicação, pela palavra humana do Cristo, Verbo
encarnado, da Boa-nova do Reino, oculto nele e no Pai.
Tendo recebido a missão de pregar, os apóstolos propuse­
ram, a seu turno, a doutrina da salvação. A revelação
do Cristo e dos apóstolos é, pois, um ensinamento propos­
to de fora e destinado ao espírito que o assimila. Chega-nos
esse ensinamento pela Igreja visível que o propõe com au­
toridade. À palavra recebida de fora corresponde a luz in­
terior, a palavra do Espírito, a revelação interior. Se Mõhler
salienta ao máximo o caráter de objetividade e de exteriori-
dade da revelação, foi por ter escrito contra os protestantes
que tudo sacrificam à subjetividade e à interioridade. Seu
pensamento mais profundo deve-se reencontrar numa dis­
creta referência à posição de A Unidade.
II. H. J. DOMINGOS DENZINGER

Na eliminação da Aufklãrung, bem como no esforço


de restauração da escolástica, devemos mencionar Denzin­
ger. Não foi um inovador como Mõhler, muito contribuiu,
porém, para uma teologia mais positiva. Sua obra principal,
Vier Bûcher von der Religiosen Erkenntniss, publicado em
1856-1857, é notável pela riqueza da documentação e da
análise crítica u.
9 “Der inneren Offenbarung entspricht die ãussere, und das Ver- .
stãndniss der inneren Einsprache hat die ausseré Ansprache zur Bedingung”
(L. II, c. 2, §71, p. 531).
10 “Daher ist der heiligen Schrift, der irrthumslosen, die lebendige
Auctoritãt der Kirche zur Seite gegebèn, damit wir das gottliche Wort,
wie es an sich ist, für uns erhalten” (L. II, c. 5, $ 44, p. 403).
11 H. Denzinger, Vier Bûcher von der Religiosen Erkenntniss (Würz­
burg, 1856).
222 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Segundo Denzinger a revelação se deve definir como


sendo uma comunicação de verdade; verdade conhecida ime­
diatamente como verdade, e não a partir de qualquer outro
objeto do qual a pudéssemos deduzir. Caso contrário, diz ele, o
termo revelação podería convir às obras da criação e aos
acontecimentos da história. Como também qualquer fato
singular, enquanto manifesta a ação divina ou indica uma de
suas propriedades, poderia ser chamado de revelação. Nem
se poderia, rigorosamente falando, deixar de considerar como
revelação o dom da faculdade ou do meio de conhecer o
objeto. Ou seja, em poucas palavras: o objeto imediato da
revelação é a própria verdade como verdade, e a revelação
é a comunicação desse objeto pela palavra ou por um sinal
adequado, ou pela contemplação direta12.

III. J. B. FRANZELIN

Como Mõhler e Denzinger, também Franzelin orienta


seu ensino para as pesquisas positivas 13. Teólogo papal no
Concilio Vaticano I, teve parte ativa na preparação, dos
esquemas da constituição dogmática: deve pois seu teste­
munho ser levado em conta. É no seu Tractatus de divina
traditione et scriptura, publicado em 1870, que expõe sua

12 “Die Offenbarung ist eine Bekanntmachung von Wahrheiten, welche


unmittelbar ist a parte objecti, d. h. welche die zu offenbarende Wahrheit
in sich bekanntmacht, nicht aber bloss' darin besteht, dass ein Anderes
ais Objekt der Offenbarung gesetzt wird, aus dem man dutch Schluss
auf eine Wahrheit kommen kann, in welchem Sinne auch die Werke
Gottes in der Natur und in der Geschichte eine Offenbarung genannt
werden; oder eine besondere Tatsache ais Offenbarung angesehen und
bezeichnet werden kann, weil sie irgend eine Eigenschaft Gottes ais
Wirkung derselben manifestiert. Ferner kann die Offenbarung nicht bloss
gewiss zu werden, was er gelehrt hat... Die aussere Auctoritãt der Kirche
vermandelt in der Verleihung des Vermõgens oder der Mittel oder Anleitung
zum Erkennen bestehen, sondern ihr unmittelbares Objekt muss die zu offen­
barende Wahrheit sein. Kurz, sie ist die Bekanntmachung dutch das
Wort oder durch dem Worte gleichkommende Zeichen oder dutch un mi-
ttelbares Schauenlassen des zu offenbarenden Gegenstandes selbst. Wir
werden allerdings finden, dass viele das Wort ganz anders fassen: allein
der hergebrachte Spragebrauch beweist, dass der aufgestellte Begriff der
allein eingentliche und stricte ist” (Ibid., vol. 1, L. 2, pp. 116-117).
13 Sobre Franzelin, cfr. DTC 6: 765-767; E. Hocedez, Histoire de
la théologie au XIXe. siècle, 2: 356-358.
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 223

concepção da revelação 14. A maioria dos elementos ele os to­


ma de Suarez e de Lugo, utiliza-os, porém, de modo a dar-
-Ihes nova consistência.
Quando Deus fala aos homens, diz, seja imediata­
mente, como aos profetas e aos apóstolos, seja mediante
seus legados, faz que sua palavra seja reconhecida por sinais
que a garantem como sendò realmente sua. Esses sinais
são os milagres e os carismas sobrenaturais: “o falar di­
vino consiste em palavras que enunciam a verdade, em fatos
que manifestam essas palavras como sendo locução divi­
na” 15. “Pois Deus não fala somente pelas palavras, mas
ao mesmo tempo pelas palavras e pelos fatos” 16.
Esses fatos ou palavras reais, que, juntamente com as
palavras formais, constituem a locução divina são, em o
Novo Testamento, toda a vida de Cristo, principalmente
seus milagres, sua morte, sua ressurreição, a missão do Es­
pírito, com seus maravilhosos efeitos; no Antigo Testa­
mento, toda a história humana, principalmente a história
de Israel com as grandes manifestações que a acompanham;
e depois da vinda do Cristo, a pregação do Evangelho e
sua admirável expansão, a revolução nas idéias e nos cos­
tumes que ela operou, sua manutenção através dos séculos,
apesar das perseguições, seus frutos de santidade, os mila­
gres e os carismas que não cessam de ilustrá-la. “Todos
esses fatos, tomados em conjunto, são como outros tantos
raios que fazem resplandecer a palavra proposta como pa­
lavra divina e lhe manifestam a origem divina” 17. A pala-

14 Citamos segundo a quarta edição, de 1896.


15 “Animadvertendum est locutionem divinam esse complexam ex
verbis enunciantibus veritatem, et ex factis quibus verba exhibentur ut
locutio divina” (J. B. Franzelin, Tractatus de divina traditione et scriptu­
ra, p. 618).
16 “Non enim solis verbis sed una cum verbis etiam factis illis
omnibus loquitur ipse Deus” (p. 626).
17 “Si consideretur fastigium divinae revelationis in Christo, imprimis
tota vita Jesu Christi, miracula, mors et prae ceteris resurrectio, electio
paucorum rudium hominum ad conversionem generis humani, missio Spiri­
tus Sancti spectata in evidentibus effectibus; tum tota historia generis
humani, et maxime historia populi Israel cum omnibus suis manifesta-
tionibus supernaturalibus ut praeparatio et paedagogia ad Christum, atque
tota historia humana subsequens ut effectus prománans ab ipso Christo;
apostolica praedicatio, mirabilis religionis propagatio, media ad finem
propositum, omnia contraria iis quibus homines utuntur, et quae humanitus
224 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

vra proposta, diz Franzelin, retomando os termos de Suarez,


é “suficientemente proposta como palavra de Deus” 18. Por-
tanto, a palavra que revela é o complexo das palavras for­
mais e dos fatos divinos: as palavras enunciam a verdade;
os fatos autenticam-na como divina e revelada. Assim tam­
bém, quando um rei fala por seu legado, as cartas patentes,
o selo real, a pompa exterior, tudo isso entra como com­
ponentes da palavra real que a fazem reconhecer como tal19.
A nós, a palavra de Deus atinge-nos mediante a Igre­
ja. Franzelim mostra como Deus, seguindo sempre a mesma
economia, dirige-se aos homens de todos os tempos me­
diante a sua Igreja, isto é, pela íntima união de palavras
reais (fatos divinos) e de palavras formais. O Cristo, pri­
meiramente, fez que os apóstolos fossem reconhecidos
como legados seus mediante os fatos divinos, ou seja, pelos
sinais que acompanhavam a sua pregação. Esses fatos, reali­
zados pelo Cristo e pelos apóstolos, pertencem agora à Igre­
ja e constituem sua herança. Ainda mais, a Igreja, por sua
vez, recebeu ao longo dos séculos novos fatos que são
“como que selos demonstrativos de sua instituição divina
e de sua união com o Cristo e com os apóstolos” 20.

spectata non tam ad obtinendum quam ad impediendum effectum vide­


rentur idonea; effectus autem ex nulla humana causa ingens et universalis in
humano genere, inter ferrum et ignem, inter tormentorum omnia genera,
quibus per tria saecula et amplius saevitum est, conversio omnium idearum
ordinis theologici et moralis, commutatio totius vitae publicae et privatae;
non minus mirabilis totius institutionis conservatio per saeculorum de­
cursum, omnibus aetatibus moraliter perpetua sanctitas et virtutum nuspiam
extra hanc religionem cognitarum, constans exercitium heroicum in multis,
aestimatio in omnibus, charismata supernaturalia effectibus externis etiam
sese manifestantia; postremo totus hic rerum divinarum complexus tum
universim tum in factis singulis diu antea promissus et praenuntiatus;
haec inquam omnia simul spectata sunt totidem radii, quibus verbum
propositum ut divinum resplendet, et suam originem divinam manifestat”
(Ibid.. 618).
« Ibid., 624.
» Ibid., 641.
20 “Deus rebus et factis cognoscibiles reddidit primum apostolos
tanquam suos legatos in promulganda revelatione... Sucessores serie per­
petua immediate nectuntur cum ipsis apostolis, et in mundo universo
communione et doctrina inter se conjuncti, velut unum corpus ad nos usque
pertingunt. Ex connexione cum apostolis et*cum Christo ipso res illae
et facta Christi et apostolorum pertinent ad totam Ecclesiam subsequen-
tem, quae et ipsa insuper novis rebus et factis quavis aetate insignitur,
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 225

Continuando sua explicação, Franzelin mostra como a


Igreja, através dos séculos, apresenta-se como um grande
fato divino, um elemento também componente da palavra
divina. “A pregação e a primeira promulgação da revela­
ção, feita pelo Cristo e pelos apóstolos, compunha-se de
palavra e coisas, sendo que pelas coisas manifestava-se a
palavra como divina... Assim também, a revelação agora’
proposta pela Igreja como revelação derivada do Cristo e
dos apóstolos, não se compõe apenas de palavras, mas tam­
bém de toda uma série de coisas e fatos, pelos quais a Igreja
se mostra divinamente fundada e mandatária de Cristo para
conservar e pregar sua doutrina. Portanto, não apenas na
pregação pessoal do Cristo e dos apóstolos, mas também
na Igreja de agora e de sempre, essas coisas e fatos — a
união da Igreja com o Cristo e com os apóstolos, sua admi­
rável expansão, sua unidade de doutrina, os carismas sobre­
naturais que nela se manifestam, sua constância na fé rece­
bida, seus mártires, a vitalidade espiritual que ela manifesta,
tudo isso que é a Igreja sob o aspecto das coisas e dos
fatos, tudo isso é elemento integrante da própria palavra di­
vina enquanto ela se compõe de palavras e de coisas” 21.
Contudo, a proposição suficiente da revelação, com o
complexo de palavras e fatos que a constituem, não pode­
ria substituir a graça. Esta exerce tríplice função: ajudar
a reconhecer o valor dos fatos que demonstram a existência
da revelação e, credibilidade de seu conteúdo; ajudar a ven­
cer as resistências da natureza ante verdades que contradizem

tamquam sigillis demonstrantibus ejus institutionem divinam et connexio­


nem cum Christo et apostolis” (Ibid., 639).
21 “Praedicatio et prima promulgatio revelationis,... peracta a Christo
et ab apostolis, componebatur verbis et rebus, et per res locutio erat
cognoscibilis ut divina... Pari modo, revelatio, quae nunc ab Ecclesia
proponitur tamquam revelatio derivata inde a Christo et ab apostolis, non
tantum verbis constat, sed etiam tota serie rerum et factorum, quibus
Ecclesia exhibetur ut divinitus instituta, et pro Christo legatione fungens ad
conservationem et praedicationem doctrinae. Ergo non solum in personali
praedicatione Christi et apostolorum, sed etiam perpetuo in Ecclesia res
illae et facta, connexio inquam Ecclesiae cum Christo et apostolis, mira­
bilis propagatio et conservatio, consensio, supernaturalia charismata sese
manifestantia, constantia in fide accepta, martyria, tota spiritualis vita
Ecclesiae manifestata, omnia scilicet illa quae diximus Ecclesiam spectatam
secundum res et facta, componunt ipsam divinam locutionem, quatenus
constat duplici elemento verborum et rerum” (bid., 640-641).

8 - Teologia da revelação
226 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

as inclinações da carne; iluminar o espírito, fortificar e mo­


ver a vontade para que o homem possa aderir a Deus, com
a humildade e a reverência de filho, baseado apenas no
testemunho de sua palavra reconhecida por si mesma22.
Em resumo, eis como Franzelin entende a revelação:
Toda verdade salvifica foi revelada aos apóstolos por Cristo,
que ensinava visivelmente e pelo dom de seu Espírito. Essa
verdade é o Evangelho que os apóstolos devem pregar a
toda criatura e transmitir à Igrejaa. Esta, por sua vez,
conserva e prega a verdade total, definitiva, que recebeu
dos apóstolos24. Franzelin entende por revelação a propo­
sição suficiente25, pelo Cristo aos apóstolos e por estes à
Igreja, e pela Igreja, a todos os homens, da palavra divina,
isto é, do complexo de palavras e de fatos divinos que as
autenticam como verdade divina e como verdade revelada.
Já em De Lugo encontravamos essa concepção. A graça
intervem para guiar a alma na sua busca, iluminar o espí­
rito e mover a vontade para que se entregue a Deus con­
fiando em sua palavra. Concepção que leva em conta a
ação exterior da revelação. Sinais e proposições fundem-se
num todo único que constitui o falar atual de Deus. Parece,
porém, que não integra tão bem a ação interior do Espírito.

IV. JOAO HENRIQUE NEWMAN

Ao falar, de passagem, da revelação, Newman reco­


nhece-lhe as seguintes características26 : Primária e essencial­
mente a revelação é um conhecimento religioso. Não nos
é dada para aumentar nosso conhecimento profano, mas
para tornar-nos melhores e mais santos e para encaminhar-
-nos à salvação. Também a Escritura que contém a reve­
lação é um livro religioso v.

n Ibid., 648-649.
23 Ibid., 247-249.
M Ibid., 250-251.
25 Ou seja uma proposição confirmada por sinais que atestam a ori­
gem divina da palavra pregada.
26 Sobre isso, cfr. principalmente: J. Seynaeve, Cardinal Newman’s
Doctrine on Holy Scripture (Louvain, Oxford et Tielt, 1953), pp. 30-37;
205-214.
27 “That knowledge which God has given... is religious knowledge”
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 227

Em segundo lugar, a revelação é um mistério. Dá-nos es­


clarecimento sobre Deus, mas não suprime o mistério que o
rodeia28. “Quando nada conheces da luz revelada, diz New­
man, não conheces as trevas reveladas. A verdade religiosa
exige que algo te seja dito, mas a imperfeição de tua na­
tureza impede que tudo conheças ” 29. Criaturas imperfeitas
que somos não podemos jamais penetrar as trevas do
mistério.
Em terceiro lugar, a revelação apresenta-se como uma
economia. Fez-se em etapas sucessivas, progredindo em quali­
dade e quantidade, até a plenitude do Cristo30. Em sua con­
descendência, Deus adaptou-se às condições humanas e às
fraquezas de seu povo31. A encarnação é, por excelência,
o tipo dessa divina economia.
Em quarto lugar, a revelação é doutrinai. Transmite-
-nos um ensinamento, uma mensagem32. “A fé do Evan­
gelho é um depósito definido, comum a todos, um e o
mesmo em todos os tempos, formulado em termos precisos,
de tal modo que possa ser recebido, conservado e transmi­
tido. . . o depositum é, com toda certeza, uma série de
verdades e de preceitos”33. Por isso, não é a fé um senti­
mento, uma emoção, mas uma adesão do espírito.

(J. H. Newman, Parochial and Plain Sermons [8 vol., London, 1834-


-1843], 7: 246). “What is the knowledge wich God has not thought fit
to reveal us? Knowledge connected merely with this present world...
No divinely authenticated directions... have been given to the world at
large, on subjects relating merely to this our temporal state of being”
(Ibid., 244).
28 “God has promised us light and knowledge..., but in His way,
not in our way” (Parochial and Plain Sermons, 7:221). “The Divine
Scheme is larger and deeper than our own capacities” (Ibid., 3: 358).
29 “When you knew nothing of the revealed light, you knew not
revealed darkness. Religious truth requires you should be told something,
your imperfect nature prevents your knowing all” (Ibid., 1: 211).
28 Ibid., 2: 123.
31 J. Seynaeve, Cardinal Newman’s Doctrine on Holy Scripture,
pp. 33-34; 209-211; J. H. Newman, Apologia pro vita sua (London,
1864), p. 343.
32 J. H. Newan, The Idea of a University (London, 1886) p. 223;
Id., Discussions and Arguments on various Subjects (London, 1872),
p. 135.
33 “The Gospel faith is a definite deposit, a treasure, common to
all; one and the same in every age, conceived in set words, and such as
admits of being received, preserved, transmitted... The deposit certainly
228 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Finalmente, a revelação é dogmática·, impõe-se auto-


ritativamente. O cristianismo é uma “revelatio revelata, é
uma mensagem definida de Deus para o homem,
transmitida por instrumentos escolhidos e recebida co­
mo tal mensagem o merece: positivamente recebida, aceita
e defendida como verdadeira. . . vinda daquele que não
pode enganar-se nem enganar-nos. . . A matéria da reve­
lação não é simplesmente uma coleção de verdades, uma
idéia filosófica, um sentimento religioso, uma moral
especial... ; é um ensino autoritativo, que testemunha
em seu próprio favor, que conserva sua unidade en­
quanto se opõe a todas as opiniões contrárias que o
rodeiam, que fala a todos os homens como o mesmo sempre
e em toda parte, exigindo ser recebido inteligentemente por
todos aos quais se dirige, como uma doutrina, uma disci­
plina, uma devoção diretamente recebida do alto” Se
admitimos a existência de uma revelação, ela será impera­
tiva para a nossa fé, justamente porque revelada3S. É reli­
gião dogmática justamente porque religião revelada. Diga-
-se o mesmo de sua imutabilidade. Se Deus, ao longo dos
séculos, revelou uma verdade sobrenatural para a salvação
dos homens, essa verdade não pode nem desaparecer nem ser
alterada substancialmente. Doutra parte, devendo essa re­
velação viver e desenvolver-se no espírito do homem, estan­
do pois exposta a todas as flutuações do raciocínio humano,
was a series of truths and rules” (J. H. Newman, Parochial and Plain
Sermons, 2: 265).
34 “It is a revelatio revelata·, it is a definite message from God to
man distinctly conveyed by his chosen instruments, and to receive as
such a message; and therefore to be positively acknowledged, embraced,
and maintained as true... because it comes from Him (God) who neither
can deceive nor be deceived... The matter of Revelation is not a mere
collection of truths, not a philosophical view, not a religious sentiment
or spirit, not a special morality,... but an authoritative teaching, which bears
witness to itself and keeps itself together as one, in contrast to the assem­
blage of opinions on all sides of it, and speaks to all men, as being ever and
everywhere one and the same, and claiming to be received intelligently,
by a!1 whom it addresses, as one doctrine, discipline, and devotion directly
given from above” (J. H. Newman, An Essay in Aid of a Grammar of
Assent (London, 1885, 5f), pp. 386-387).
35 “Revelation implies a something revealed, and what is revealed is
imperative on our faith, because it is revealed. Revelation imples impera­
tiveness” (J. H. Newman, Discussions and Arguments on various Subjects,
P. 132).
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 229

era preciso uma autoridade viva e infalível para garantir


ao mesmo tempo a imutabilidade e o desenvolvimento do
depósito revelado. A Igreja é essa autoridade infalível36.
“A Revelação é uma doutrina; somente os apóstolos a rece­
beram em depósito, o método dedutivo é o único instru­
mento para examiná-la, somente a autoridade da Igreja pode
sancicná-la. A voz divina falou de uma vez para sempre:
a questão única é saber como entendê-la” 37.
Newman evidencia, pois, o caráter doutrinai e impe­
rativo da revelação. Se Deus falou, o homem deve obede­
cer a essa palavra que veio de um mundo transcendente.
Sublinhou também o aspecto religioso, salvifico e misterioso
desse conhecimento sobrenatural. Mostra, finalmente, como
a revelação nos foi dada segundo uma economia e uma pe­
dagogia muito sábias.

V. M. J. SCEEBEN

Em sua Oogmatik Scheeben escreveu algumas páginas


sobre a noção de revelação. Segundo um método que lhe
é muito caro, que consiste em relacionar os mistérios entre
si e em estudá-los como um vasto conjunto cujas partes
mutuamente se iluminam, Scheeben compara entre si as
diversas formas de revelação para indicar suas semelhanças
e suas diferenças para mais facilmente caracterizar o tipo de
revelação que dá começo à fé e à teologia. Segundo ele,
pcdemos distinguir três formas de revelação.
Num sentido amplo, revela-se Deus ao homem pelas
obras da criação que refletem seu poder e suas perfeições, pela
comunicação da luz interior da razão que nos torna capazes
de conhecer as obras de Deus e o próprio Deus em suas
obras. Ação que merece ser chamada locução divina. Não dá,

36 J. H. Walgrave, Newman, Le développement du dogme (Paris-


-Tournai, 1957), pp. 261-280.
37 “Revelation is all in doctrine; the Apostles its sole depository,
the inferential method its sole instrument, and ecclesiastical authority its
sole sanction. The divine Voice has spoken once for all, and the only
question is about its meaning” (J. H. Newman, The Idea of a University,
p. 223).
230 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

porém, origem à fé, mas apenas a um conhecimento imper­


feito e indireto de Deus 38.
“Em sentido mais estrito e elevado, revelação é o ato
pelo qual um espírito apresenta a outro o objeto de seu
próprio conhecimento, possibilitando-lhe que, mesmo sem
ver por si mesmo o objeto, aproprie-se de seu conteúdo,
apoiando-se nas luzes de quem se lhe revela. O veículo
dessa revelação é a palavra propriamente dita (locutio for­
malis). Corresponde-lhe, da parte de quem recebe a re­
velação, a forma de conhecimento que denominamos fé” 39.
Como Deus une à revelação pela criação o dom da
luz intelectual que permite conhecê-lo, assim também ao
anúncio objetivo da revelação corresponde uma iluminação
interior que nos tórna capazes de assimilar o conteúdo do co­
nhecimento divino. Iluminação que também se chama re­
velação ou palavra de Deus. Muito expressivamente a Es­
critura a designa como revelação e palavra do Pai (Mt 16,
17; Jo 6,45) para distingui-la da revelação exterior e da
palavra do Filho que, enquanto enviado do Pai, nos anuncia
o que dele recebeu. O termo indica também que a ilumina­
ção interior leva-nos de volta à fonte da verdade donde
procede a revelação exterior.
“Num sentido mais estrito ainda e também mais
alto, denomina-se revelação divina uma manifestação pela
qual Deus torna nosso conhecimento inteiramente confor­
me ao seu, de modo que o conhecemos como ele a si mesmo
se conhece: é a visão face a face” *. Nessa revelação, a

38 M. J. Scheeben, Handbucb der Katholischen Oogmatik (Freiburg,


1948), 1: 10.
39 “Im engeren und hòheren Sinne heisst Offenbarung diejenige
Kundgebung eines Geistes an den andem, wodurch jener diesem den
Inhalt seiner eigenen Erkenntnis ais solchen vorlegt und so ihn befãhigt
und veranlasst, ohne eigene Anschauung auf Grund der Einsicht des
Offenbarenden des Inhaltes derselben sich zu bemãchtigen. Das Vehikel
dieser Offenbarung ist das Wort im eigentlichen Sinne (locutio formalis),
und ihm entspricht vonseiten des Empfãngers der Offenbarung ais die
Form der durch dieselbe ermõglichten Erkemtnis der Glaube” (Ibid., 10).
40 “Zw engsten und zugleich hdchsten Sinne heisst gottliche Offenba­
rung diejenige Kundgebung vonseiten Gottes, durch welche er unsere
Erkennmis der seinigen vollkommen gleichfõrmig macht und bewirkt, dass
wir ihn ãhnlich erkennen, wie er sich sellbst erkennt, durch die Anschauung
von Angesicht zu Angesicht” (Ibid., n. 11).
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 231

manifestação objetiva, real ou verbal, é substituída pela visão


sem véu da natureza íntima de Deus. Em vez da luz subje­
tiva, concedida para compreendermos e apossarmo-nos do
conteúdo da revelação de Deus, é a plenitude da luz divina
que nos possibilita contemplar em si mesma a essência
de Deus.
Esses três tipos de revelação correspondem a três graus
ou profundidades em que a noção geral de revelação se
realiza sempre mais perfeitamente. A cada grau correspon­
de, da parte de Deus, uma medida de graça e uma comuni­
cação de si mesmo sempre mais abundante e elevada. Cor-
responde-lhe também, da parte da criatura, homenagem e
submissão cada vez mais plena. No grau supremo, a máxima
medida de graça coincide com a suprema homenagem in­
terior da criatura e com a suprema glorificação exterior de
Deus. Essas três formas de revelação não apenas comuni­
cam um conteúdo objetivo, mediante obras, palavras ou
visão direta, mas também produzem o próprio conhecimento
subjetivo mediante a iluminação interior sempre maior da
razão, da graça e da glória.
Esses três graus têm como princípio comum o próprio
Deus, ou melhor, o Verbo de Deus, seu Logos. O princípio
do primeiro é o Logos criador, por quem tudo foi feito,
particularmente a luz da razão que colocou no homem
sua imagem; o princípio do segundo é o Cristo, Logos en­
carnado, enviado pelo Pai, que falou pelos profetas e pela
humanidade de que se revestiu; o princípio do terceiro é
ainda o Cristo, pela glória divina que nele resplandece.
A revelação mediante a graça apresenta-se como o
meio termo entre a revelação da natureza e a revelação da
glória: supondo e aperfeiçoando a primeira, preparando a
última à qual aspira, participando da imperfeição da primeira
e da perfeição da última. Situa-se por essa dupla relação
que lhe dá sua exata significação.
A definição de Scheeben, percebe-se, caracteriza-se pelo
cuidado em integrar o elemento exterior e o interior da re­
velação, pelo respeito da necessária proporção entre o objeto
proposto e a iluminação correspondente. Para Scheeben,
revelação é, no sentido estrito, a comunicação ao homem
do pensamento divino mediante a palavra humana do Cristo,
232 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Logos encarnado. A esse anúncio corresponde uma ilumi­


nação interior que também se chama revelação: é ela que
introduz na posse da revelação exterior. A definição de
Scheeben ainda se enriquece pela comparação com os ou­
tros dois tipos de revelação: a da natureza e a da glória,
Nota em ambas a convergência do elemento objetivo e da
luz. Suas afirmações apóiam-se nas Escrituras, segundo as
quais a fé cristã exige, com a revelação exterior, também
uma revelação interior (Mt 16,17) e um ensinamento in­
terior do Mestre que acompanhe a audição da palavra ex­
terior (Jo 6,44). Ao analisar o ato de fé, Scheeben pre­
cisa a natureza dessa revelação interior. Diz: “Essa ilumi­
nação interior tem as características de uma revelação in­
terior enquanto renova e vivifica o convite à fé que nos
é feito pela revelação exterior. Por isso comumente se de­
nomina uma voz, uma atração de Deus (Jo 6,44). Deno­
mina-a santo Tomás instinto divino: interior instinctus
Dei moventis (2a 2ae, q. 2; a. 9, ad 3) que internamente
nos convida a crer; chama-lhe são Paulo abertura do cora­
ção (At 16,14) ou dos ouvidos à palavra de Deus” 41.
Outro mérito de Scheeben é ter posto em evidência o
caráter ao mesmo tempo sobrenatural e histórico da reve­
lação. Seu caráter sobrenatural mostra-se na finalidade, que
é ajudar o homem a conseguir seu fim sobrenatural, ou
seja, a visão de Deus42 ; nas novas relações que estabelece
de Pai a filho, de amigo a amigo43; em seu conteúdo espe­
cifico,ou sejam, os mistérios de Deus (vida trinitária), de
seu coração (desígnio salvifico) 44 ; na resposta, finalmente,
que espera: a fé45.

41 “Auch diese Erleuchtung hat insofern ebenfalls den Charakter


einer innern Offenbarung, ais sie die Aufforderung zum Glauben, die in
der ãussern Offenbarung an uns herantritt, innerlich wiederholt und
belebt. Sie wird daher gewohnlich ais der Ruf oder Zug Gottes (Jo.
6, 44; Thomas nennt ihm 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3: interior instinctus Dei
moventis), der uns innerlich zum Glauben einladet, resp. ais Offnung
unseres Herzens (Act., 16,14) oder unseres Ohres für die Aufnahme des
Wortes Gottes... bezeichnet” (Ibid., 356-357).
« Ibid., 19.
« Ibid., 22-23.
44 Ibid., 26.
« Ibid., 27.
44 Ibid., 35-41.
A RENOVAÇÃO ESCOLÁSTICA DO SÉCULO XIX 233

O caráter histórico da revelação mostra-se nas suces­


sivas fases de sua realização temporal. Na revelação públi­
ca Scheeben distingue duas fases: a revelação feita à huma­
nidade em seu estado original, revelação do paraíso, e a
feita à humanidade em seu estado de pecado, revelação evan­
gélica e redentora. Essa, por sua vez, realiza-se em duas
etapas: a revelação preparatória do Antigo Testamento e
a consumação em o Novo Testamento. O progresso da re­
velação é extensivo·, a revelação patriarcal dirige-se a uma
família; a mosaica, a um povo; a cristã, à humanidade
toda. É também quantitativo e qualitativo·, o campo da re­
velação alarga-se sem cessar e a luz difundida é cada vez
mais abundante46. Em Jesus Cristo temos a plenitude da
Luz e da Verdade. Em Jesus Cristo e por Jesus Cristo, a
Palavra eterna de Deus dirige-se aos apóstolos e pelo seu
Espírito consuma internamente a obra iniciada por sua pre­
gação. É universal a destinação dessa revelação: os enviados
de Cristo, os apóstolos, devem anunciá-la à terra toda, para
reunir todos os homens num só reino. “Essa revelação não
é apenas mais sublime e mais completa que a revelação pre­
paratória; é também, sob muitos aspectos, mais sublime e
mais completa do que a do paraíso e será, justamente por
isso, a última revelação pública e constitutiva feita pela
palavra divina” 47.

« Ibid., 38.
4.
A TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX

L A DOUTRINA COMUM NO COMEÇO DO SÉCULO XX

A teologia fundamental, no século XX, estruturou-se


segundo as indicações do Concilio Vaticano I, e os do­
cumentos antimodernistas; definiu a revelação na perspec­
tiva desses documentos. Era preciso proteger-lhe o con­
ceito contra as negações do racionalismo ou contra as con­
taminações do protestantismo liberal. Encontramos pois, ge­
ralmente, com certa diversidade dé acentuação, um acordo
fundamental em todos os autores.
Insistem sempre sobre a transcendência da revelação,
bem como no caráter doutrinário do objeto revelado: o que se
comunica ao homem é um conjunto de verdades necessá­
rias à salvação. “Quando dizemos que Deus revelou, enten­
demos que Deus falou aos homens para manifestar-lhes al­
guma verdade, e que os homens reconheceram sua voz” \
“A revelação é a comunicação, ao homem, de verdades reli­
giosas” 2. “A revelação divina é a manifestação de verdades
que Deus faz à criatura racional, para que atinja seu fim” 3.
Nesse objeto, fazem às vezes a distinção entre os ensinamentos
e as vontades ou decretos de Deus4
Servem-se da analogia da palavra para representar essa
ação pela qual Deus comunica ao homem seu pensamento.

1 J. Lebreton, L’encyclique et la théologie moderniste, DAFC, 3:


col. 675, 677.
2 “Offenbarung im theol. Sinne ist die Mitteilung religioser Wahrheiten
an die Menschen durch Gott, sei es personiich oder durch einen Engel”
(H. Straubinger, art. “Offenbarung”, Lexikon für Théologie and Kirche
[Freiburg, 1935], 7: col. 682).
3 “Revelatio divina est manifestatio veritatum per Deum creaturae
rationali facta, ut haec ad debitum suum finem perveniat” (W. Pohl, De
vera religione, quaestiones selectae [Freiburg, 1927], p. 269).
4 J. Didiot, art. “Révélation divine”, DAFC, 4: col. 1005; L Ottiger,
Theologia fundamentalis (2 vol., Fribourg, 1897), 1: 45.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 235

“A revelação sobrenatural direta é a manifestação de Deus


pela palavra divina, isto é, por um ato de Deus, ordenado
direta e imediatamente para manifestar ao homem seu co­
nhecimento próprio”5. Palavra que, evidentemente, não
se deve conceber antropomorficamente, mas sim em termos
de conhecimento: trata-se de uma iluminação sobrenatural
da inteligência. “A revelação nada mais é que a mani­
festação duma verdade, que Deus realiza no homem mediante
a iluminação sobrenatural de sua inteligência” 6.
A essa iluminação corresponde não a ciência, mas a
fé. “A revelação divina, no sentido estrito, é a palavra de
Deus, mediante a qual ele comunica aos homens algo do
que ele conhece, assim que os homens o creiam pela auto­
ridade de Deus que fala” 7. Para evidenciar o elemento for­
mal dessa palavra, usam o conceito testemunho’, a revela­
ção é uma palavra que atesta, uma palavra de Deus que
testemunha8. Mas também, como essa palavra enriquece o es­
pírito com conhecimentos novos e superiores, é também
um ensinamento autoritativo9. São raros, porém, os teó­
logos que, usando da filosofia e da psicologia da linguagem,
elaboram esses conceitos de palavra e testemunho. Entre
os que dedicam ao conceito de revelação uma expo­
sição mais longa, mencionamos Gardeil, Garrigou-Lagrange,
Diekmann.

5 “Relevatio supernaturalis directa est manifestatio Dei per locutionem


divinam, i. e. per actum Dei directe et immediate ordinatum ad hoc ut
cognitionem propriam homini manifestet” (L. Lercher, Institutiones
theologiae dogmaticae [4 vol., Barcelona, 1945, 4?], 1: 11); A. Dorsch,
Institutiones theologiae fundamentalis (2 vol. Innsbruck, 1930), 1: 300;
G. Lahousse, De vera religione (Louvain, 1897), p. 87; J. V. Bainvel,
De vera religione et apologetica (Paris, 1914), p. 152.
6 E. Rolland, em M. Brillant et M. Nédoncelle, Apologétique
(Paris, 1939), p. 199; J. Lebreton, “L’encyclique et la théologie moder­
niste” DAFC, 3: col. 675; H. Felder, Apologetica seu theologia funda­
mentalis (Paderborn, 1923), p. 28; A. Tanquerey, Synopsis theologiae
dogmaticae fundamentalis (Paris-Tournai-Rome, 1929, 22*), pp. 110-111;
J. Mausbach, Grundziige der kath. Apologetik (Münster, 1933), p. 9.
7 “Revelatio divina stricte dicta est locutio Dei, qua Deus ex iis
quae cognoscit, quaedam cum hominibus communicat, ita ut homines ea
propter auctoritatem Dei loquentis credant” (C. Pesch, Compendium
theologiae dogmaticae [Fribourg, 1935, 5’], 1: 29).
8 Dieckmann, Pesch, Tromp, Gobel, Lercher, Dorch, Mors, Vizma-
nos, Nicolau.
9 R. Garrigou-Lagrange, J. Rivière, I. L. Gondal.
236 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

1. O P. A. Gardeil, em em sua obra Le Donné ré­


véle et la théologie, consagra todo o capítulo segundo à
noção de revelação. Lamenta que o ensino, simplificando
demais, “nem sempre se preocupe suficientemente com os
caminhos psicológicos” mediante os quais recebemos a re­
velação, dando assim “a impressão de que fórmulas vão
sendo sobrepostas ao espírito, o que de modo algum cor­
responde à realidade dos fatos” 10. Gardeil, mantendo-se fiel
a santo Tomás, descreve a revelação apoiando-se no seu
De Prophetia. Mas, enquanto santo Tomás se interessa com
a revelação primeira considerada em si mesma, Gardeil quer
primordialmente defender a homogeneidade da verdade re­
velada no dogma e na teologia.
Tendo examinado e condenado o conceito moder­
nista de revelação, representado por Loisy e Tyrrell,
insiste Gardeil na finalidade social do carisma profético e
na denuntiatio da verdade revelada11. Sendo o conheci­
mento profético essencialmente um carisma social, deve
“comunicar-nos um objeto válido para todos, expresso bas­
tante claramente para servir de ponto de convergência para
todos que procuram o divino. .. Sem esse valor fixo e
bastante claro do objeto do conhecimento profético, jamais
poderiamos ter uma participação socializada da própria luz
que Deus difundiu no espírito do profeta” 12. É preciso
que o dado revelado seja comunicado de um modo que lhe
garanta o valor exato, absoluto, imutável, indefinidamente
transmissível através do tempo e do espaço. Sua co-
municabilidade, com essas características, está garantida,
1? pelo conteúdo de pensamento suficientemente nítido,
proposto por Deus; 2° pela ação do Espírito que man­
tém a fidelidade entre a denuntiatio e o dado interior13 ; 39
pelo absoluto de que são capazes algumas afirmações hu­
manas. Desde que “a ação reveladora de Deus se mani­
festa na faculdade humana de afirmação, a humanidade pos­
sui uma verdade determinada, indefinidamente transmissível.
Na revelação, o que é diretamente ativado não é o cora-
10 A. Gardeil, Le donné révélé et la théologie (Paris, 1909), p. 71.
» Ibid., 49.
“ Ibid., 53.
« Ibid., 63-64.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 237
ção do profeta, e sim a sua inteligência capaz do absoluto” 14.
A revelação, pois, segundo Gardeil, mostra-se como uma
ação divina, com uma finalidade social, que ativa e dirige
a faculdade da afirmação do profeta, assim que os seus
julgamentos, proferidos sob a luz divina, sejam comunicá­
veis a toda a sociedade humana.
Ao analisar o processo do conhecimento profético, Gar­
deil fundamentalmente se mantém fiel aos elementos de
santo Tomás. O conhecimento profético, como qualquer
outro, supõe acceptio rerum e judicium, isto é, a concepção
de imagens ou de idéias e um julgamento que as une na
verdade. Sob a ação divina chegam, primeiramente, à cons­
ciência imagens e noções (adquiridas ou infusas ou reor-
denadas) que correspondem analogicamente ao aspecto da
realidade divina que Deus quer revelar. A luz divina realça
o poder de expressão desses sinais mentais; o profeta, então,
“reagindo ante o objeto que lhe é posto ao alcance divina­
mente iluminado”, concebe, afirma e denuncia o que Deus
queria que ele afirmasse 15. Deus não força o julgamento
do profeta: rende-se este à luz. Deus, fonte de luz, reforça
a luz do espírito humano sem lhe modificar a natureza e
sem lhe perturbar o ritmo de funcionamento. A luz rece­
bida gera uma dupla certeza: que a verdade é exatamente o
que está sendo indicado pelos sinais e pela luz, e também que
a verdade e a luz não são próprias do profeta, mas de
Deus 16. O profeta afirma o que está vendo, primeiro para
si mesmo, depois para os outros homens aos quais tem a
missão de esclarecer. Sendo a profecia um carisma social,
é preciso que “o profeta exprima externamente o que julga
internamente como verdade revelada por Deus, e isso de
modo tal que possa ser transmitida aos outros homens e se
tornar indefinidamente entre eles objeto de intercâmbio
social” ■
2. O P. Garrigou-Lagrange consagra trinta páginas
de seu De Revelatione ao conceito de revelação 18. Primeiro
μ Ibid., 54-5"
« Ibid., 75.
16 Ibid., 66-67.
" Ibid., 70.
18 R. Garrigou-Lagrange, De Revelatione per Ecclesiam catholicam
/
238 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

a define a partir dos documentos da Igreja, depois lhe dá


uma explicação teológica. Diz: “A revelação é a ação
divina, livre e essencialmente sobrenatural, pela qual Deus,
querendo conduzir o gênero humano a seu fim sobrenatural,
que consiste na visão da essência divina, falando-nos pelos
profetas e nestes últimos tempos pelo Cristo, manifestou-
-nos um tanto obscuramente mistérios sobrenaturais e tam­
bém verdades da religião natural, que depois possam ser
infalivelmente propostos pela Igreja, sem nenhuma mudança
de sentido, até o fim do mundo” 19. Retoma essa definição,
inspirada principalmente no Vaticano I, e ordena seus ele­
mentos segundo as quatro causas: final, eficiente, formal,
material. Nota que a ação reveladora é uma ação livre e essen­
cialmente sobrenatural: em razão de seu fim e de seu objeto
próprio que são os mistérios da vida íntima de Deus. Não é
uma ação que esteja no âmbito do concurso divino ordinário,
nem apenas sobrenatural quoad modum, como o milagre; é
essencialmente sobrenatural, que procede de Deus e de sua
vida íntima. E uma vez que é palavra, difere da infusão
da luz da fé.
Ao dar a explicação teológica, Garrigou-Lagrange de­
fine formalmente a revelação como “palavra de Deus en­
quanto ensinamento” 20. Afirmação que fundamenta, pri­
meiramente apelando para Hebr 1,1; Is 50,4; Os 2,4; SI
84,9 e para as passagens da Escritura onde se diz .que as
multidões davam ao Cristo o título de Mestre, título por
ele mesmo reivindicado como próprio (Mt 8,28; Jo 8,13);
aduzindo depois o decreto Lamentabili que condena a se­
guinte proposição dos modernistas: “O Cristo não ensinou
um corpo de doutrinas aplicável a todos os tempos e a todos

proposita (2 vol., Romae, 1950, 5·), 1: 130-160. Idêntica é a posição de


J. Brinktrine, Offenbarung und Kirche (2 vol., Paderborn, 1947),
pp. 33-53.
19 “Actio divina libera et essentialiter supernaturalis qua Deus ad
perducendum humanum genus ad finem supernaturalem qui in visione
essentiae divinae consistit, nobis loquens per prophetas et novissime per
Christum, sub quadam obscuritate manifestavit mysteria supernaturalia
naturalesque religionis veritates, ita ut. deinceps infallibiliter proponi
possint ab Ecclesia sine ulla significationis mutatione, usque ad finem
mundi” (R. Garrigou-Lagrange, De Revelatione, 1: 132).
29 Ibid., 1: 143.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 239
os homens; foi, antes, o iniciador de um movimento reli­
gioso adaptado ou adaptável aos diversos tempos e luga­
res” 21 ; apóia-se, finalmente, numa análise da noção de re­
velação concebida como palavra dè um superior sapientís-
simo que a seu inferior manifesta verdades sublimes. A
partir dessa idéia de revelação, palavra de ensino, é fácil
deduzir as condições requeridas para sermos instruídos por
um mestre, divino ou humano. Para isso é necessário, se­
gundo santo Tomás 22, uma proposição objetiva da verdade
e uma luz interior para julgar a verdade proposta ou, pelo
menos, a autoridade do mestre. Evidente que o mestre hu­
mano não poderá conceder a luz interior da inteligência;
produz, contudo, uma luz objetiva enquanto por sua de­
monstração guia metodicamente seu discípulo, do conhecido
ao desconhecido, permitindo-lhe ver por si mesmo o que
não teria percebido sem o auxílio do mestre. O Mestre
divino pode, de dois modos, propor a verdade: na evidência
da visão ou na obscuridade da fé. Neste caso, duas condi­
ções são requeridas para que o homem se apodere do pen­
samento divino. Objetivamente, deve haver uma propo­
sição sobrenatural da verdade: algo que, antes oculto, é
manifestado por Deus, levado ao conhecimento do homem
e proposto como vindo de Deus. Desse ponto de vista a
revelação assemelha-se à palavra do magistério humano.
Subjetivamente, deve haver uma luz sobrenatural que ilu­
mine os termos da proposição e permita uni-los de modo
infalível num julgamento conforme à verdade. Luz que
permita também discenir com certeza a origem divina da
verdade comunicada. Sob esse aspecto, a revelação difere
do magistério humano, pois somente Deus pode agir imedia­
tamente sobre o espírito e infundir-lhe a luz23.
Assim, em Garrigou-Lagrange, a revelação é descrita
principalmente como ensinamento, analisada em termos de
relacionamento de mestre e discípulo. Nessa análise, cujos

21 “Christus determinatum doctrinae corpus omnibus temporibus


cunctisque hominibus applicabile non docuit, sed potius inchoavit motum
quemdam religiosum diversis temporibus ac locis adaptatum vel adaptan­
dum” (D. 2059).
22 De Verit., q. 11; S. th., la, q. 117, a. 1.
23 R. Garrigou-Lagrange, De Revelatione, pp. 143-153.
/
240 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGjfcA

elementos são tomados do De Magistro 24 e do De Prophe­


tia25 de santo Tomás, quase não aparece a categoria “teste­
munho”, tão rica e sempre presente na Escritura. É fato que
a revelação nos ensina algo que deve ser transmitido como
um corpo de doutrina. Contudo, o que a especifica como
palavra, não é a ciência, mas a fé. No gênero palavra, es­
pecifica-se antes como testemunho do que como ensinamen­
to. Garrigou-Lagrange é mais inspirado quando, em todos
os graus da revelação, evidencia a conjunção entre o objeto
e a luz que lhe é proporcionada: à luz profética correspon­
de proporcionalmente, no crente, a luz da fé; nos bem-aven­
turados, a luz da glória. Essa proposição, apenas enunciada
no capítulo da .revelação, é longamente elaborada no capí­
tulo da fé26. É com razão que insiste também na liberdade
e sobrenaturalidade da revelação27, bem como na relação
íntima que une Igreja e revelação 28.
3. H. Diekmann ”, antes da definição de revela­
ção, coloca um breve parágrafo reunindo os principais vo­
cábulos que em Novo Testamento designam a revelaçãoM.
Define-a, depois, como sendo locutio Dei attestans. “A pa­
lavra é o ato pelo qual alguém diretamente manifesta a
outro seu pensamento”31. Noção de palavra que inclui
três elementos: 1® uma manifestação de pensamento; 2° ma­
nifestação direta de pensamento: portanto, o conhecimento
de Deus a partir de suas obras não verifica estritamen­
te a noção de palavra; 3? uma dualidade de pessoas con­
cebidas como tais: Deus deve ser conhecido como pessoa
que se dirige ao homem como pessoa.
A palavra que revela é um testemunho·, isto significa
que ela reclama um assentimento baseado na autoridade
de quem fala. Diekmann distingue entre autoridade teó­
rica e autoridade jurídica da testemunha. Funda-se a
primeira na ciência e na veracidade da testemunha; a
24 De Verit., q. 11, a. 1; S. th., la, q. 117, a. 1.
25 S. th., 2a 2ae, q. 171-178.
26 R. Garrigou-Lagrange, De Revelatione, 1: 150, 427ss.
22 Ibid., 1: 135-136.
« Ibid., 1: 134-135.
29 H. Dieckmann, De Revelatione Christiana (Freiburg, 1930).
30 Ibid., 135-136.
« Ibid., 138
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 241
segunda implica também que a testemunha tem o direito
de ser ouvida e acreditada. A autoridade divina é, ao mes­
mo tempo, teórica e jurídica: repousa não sobre sua ciência
e sua veracidade infinitas, mas também sobre sua qualidade
de Mestre absoluto da criatura humana, da qual é o autor e
o fim supremo. Porque a revelação é palavra que atesta,
reclama a homenagem da fé.
É inegável que esses ensaios contêm elementos pre­
ciosos que devemos reter. Mas também apresentam graves
lacunas. Seguindo santo Tomás, insistem na revelação pro­
fética, ignorando quase completamente a revelação pelo
Cristo. De modo geral, aliás, é ainda tímida a considera­
ção bíblica da revelação; isso para não dizermos que não
existe de todo. Definem a revelação a partir da etimologia ou
a partir dos documentos do Magistério, dos quais se faz, aliás,
apenas um brevíssimo inventário; apressam-se logo a tratar
do problema da possibilidade da revelação, sem refletir su­
ficientemente que não se trata de uma revelação qualquer,
mas de uma revelação muito específica, que nos vem através
da história e da encarnação. Insistem muito mais nas verda­
des reveladas do que em Deus que revela e se revela. São es­
pantosamente discretos quanto às relações interpessoais que
a revelação estabelece entre Deus e o homem. Parece-nos
que essas deficiências se devem em grande parte a uma
consideração insuficiente dos dados da Escritura. A preo­
cupação apologética oculta as riquezas da realidade en­
volvida na discussão.

II. FATORES DE RENOVAÇÃO E ORIENTAÇÕES ATUAIS

De uns 25 anos para cá aumentou, entre os teólogos


católicos, o interesse por essa primeira realidade cristã que
é a revelação. Indicaremos brevemente as causas dessa
renovação e a orientação que está tomando.

32 Ibid., 138-141.
242 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

1. Ponto de partida: insatisfações e queixas

No início da renovação encontramos um estado de


insatisfação que se manifestava em queixas, às vezes bas­
tante veementes. Já em 1911, o Pe. Lebreton deplora que
os teólogos clássicos, que sistematizaram com precisão
algumas partes da dogmática, tenham, contudo, descui­
dado as categorias fundamentais da revelação e da fé33. P.
Charlier censura ao Pe. Gardeil por ter insistido demais no
aspecto conceptual da revelação e pouco sobre seu aspecto
real34. Pergunta-se o P. Chenu se o saldo da passagem da
Sagrada Escritura à teologia não seria, em muitos casos, um
empobrecimento de fato 35. O P. de Lubac observa que a
maioria dos teólogos, ao tratar da revelação, contenta-se
com uma visão rápida e superficial, reduzindo-a muitas ve­
zes a uma série de proposições desconexas 36. Muitos auto­
res (como H. Rondet, G. Thils, H. Delesty, J. Bonsirven,
P. Benoit) notam que na Escritura há preciosas indicações,
muitas vezes esquecidas. O P. V. White, depois do P.
Gardeil37 acha que a teologia tradicional muitas vezes priva
a revelação de seu aspecto temporal e de encarnação: não
leva suficientemente em conta seu caráter histórico nem os
caminhos psicológicos pelos quais se realiza38. Os PP. de
Lubac, Daniélou, Fessard, Bouillard, Von Balthasar, opõem-se
a um certo intelectualismo que tende a fazer da revelação cris­
tã a comunicação de um sistema de idéias antes que a mani­
festação duma pessoa que é a verdade39. R. Aubert diz:
“A revelação foi por demais concebida como a comunica­
ção, feita por Deus, de certo número de afirmações des-

33 J. Lebreton, “Son Éminence le cardinal Billot”, Études, 129


(1911): 521-522.
34 L. Charlier, Essai sur le problème théologique (Thuillies, 1938),
p. 66.
35 D. Chenu, “Vocabulaire théologique et vocabulaire biblique”,
Nouvelle Revue Théologique, 74 (1952): 1029-1041.
36 H. de Lubac, “Le problème du développement du dogme”, Rech.
de sc. rel., 35 (1948): 153-155.
37 A. Gardeil, Le donné révélé et la théologie (Paris, 1910), p. 30.
38 V. White, “Le concept de révélation chez S. Thomas d’Aquin”,
L’année théologique, 11 (1950), 2-6.
39 Dialogue théologique (Saint-Maximin, 1947), p. 90.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 243

concertantes que os homens deveríam aceitar como verda­


deiras sem as compreender. Na realidade, a revelação apre­
senta-se nas Escrituras de modo muito menos nocional e
muito mais pessoal: é antes de tudo a manifestação do pró­
prio Deus que, através duma história sacra que culmina
com a morte e a ressurreição do Cristo, faz entrever o mis­
tério de seu amor” 40. Segundo G. Thils deve-se à inadequa­
da apresentação de muitos manuais católicos a idéia inexata
que os protestantes fazem do conceito católico de revelação.
São assim levados indevidamente a fazer uma oposição
entre revelação “conhecimento” de verdades “sobrenaturais”
e revelação “acontecimento salvifico”, dom de Deus, que
se apresenta ao homem no tempo. De fato, diz ele, para os
católicos a revelação é também revelação do mistério real
que é o próprio Deus, mas inclui também, evidentemente,
uma revelação doutrinai41. Os representantes da teologia
querigmática (principalmente J. Jungmann e H. Rahner)
insistem, por sua vez, na insuficiente apresentação tradi­
cional da noção de revelação e percebem que é necessário
substituí-la por uma concepção realístico-histórica, mais pró­
xima da mentalidade bíblica. Diz Guardini que somente
a revelação pode dizer-nos o que é a revelação; seria inútil
querer abarcar numa fórmula breve toda a riqueza contida

40 “La rivelazione è stata troppo spesso concepita come la comuni-


cazione da parte di Dio di un certo numero di sconcertanti affermazioni
che gli uomini dovrebbero considerare come vere senza comprenderle. In
realtà, la rivelazione si présenta nella Bibbia in una maniera molto meno
nozionale e molto piú personale: essa é soprattutto la manifestazione di Dio
stesso, il quale, attraverso una -storia sacra, culminante nella morte e
rissurrezione di Christo, ci fa intrawedere il mistero del suo amore” (R.
Aubert, “Questioni attuali intorno all’atto di Fede”, em Problemi e
Orientamenti di Teologia dommatica [Milano, 1957, 2 vol.], 2: 671). As
mesmas idéias encontram-se em R, Aubert, Le Problème de Pacte de foi
(Louvain, 1958, 3?), p. 3. O P. Bonsirven, a seu turno, faz notar que
o termo revelação, na teologia e nos documentos do magistério, tem uma
ressonância totalmente intelectual, designando um ensinamento que co­
munica noções bem definidas. A noção bíblica compreende muito mais:
“La révélation, dans son essence profonde, apparaît comme la grâce totale
par laquelle le Créateur introduit la créature dans la communion à sa di­
vinité” (J. Bonsirven, Théologie du Nouveau Testament (Paris, 1951
P- 9).
41 G. Thils, “L’évolution du dogme dans la théologie catholique”,
Eph. theol. lov., 28 (1952): 680.
244 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

na realidade bíblica42. Em resumo: as queixas dós teólogos


concretizam-se em dois pontos: negativamente, medo que
o cristianismo seja reduzido a um intelectualismo exagera­
do; positivamente, desejo de uma fidelidade maior às fon­
tes da Sagrada Escritura, e da tradição.

2. Teologia protestante

As obras protestantes, por sua abundância e qualidade,


estimularam também o pensamento católico. A maioria
dos teólogos protestantes contemporâneos consagram ao tema
da revelação, não apenas importantes capítulos, mas também
obras inteiras. Baste enumerar entre os nomes mais recentes:
K. Barth, R. Bultmann, E. Brunner, H. W. Robinson, W.
Temple, E. F. Scott, G. E. Wright, H. H. Schrey, J. Wolff,
H. Huber, H. Schulte, J. de Saussure, P. Tillich, H. R.
Niebuhr, L. S. Thornton, A. Neher, A. Oepke, O. Procksch,
G. Kittel, J. Baillie, H. D. McDonald, James G. S. S. Thomp­
son, W. J. Martin, P. K. Jewett e outros. A revelação é o
centro da teologia de Bultmann. O P. Malevez escreve:
“Bultmann apresenta-nos uma teologia da revelação. Váli­
da ou não, tem pelo menos o mérito de reconduzir a aten­
ção do cristão para o âmago de um problema central, o
tema da revelação e da palavra de Deus, de sua inserção na
história. . . Convida-nos a aprofundar a teologia cristã da
revelação” 43. Ó mesmo se deve dizer de K. Barth e de
E. Brunner.
Podemos afirmar que, em seu conjunto, o pensamento
protestante recusa a idéia de uma revelação concebida como
uma manifestação e uma notificação de verdades sobre Deus
ou de verdades ditas por Deus. Na revelação vê, primeiramen­
te, a manifestação pessoal do Deus vivo que ativamente se

42 R. Guardini, Die Offenbarung, ihr Wesen und ihre Formen


(Würzburg, 1940), pp. 118-119.
43 “Bultmann nous offre une théologie de la révélation. Valable ou
non, elle a du moin le mérite de ramener l’attention du chrétien au coeur
même d’un problème central, le thème de la révélation et de la parole
de Dieu, et de son insertion dans l’histoire... Elle nous invite à appro­
fondir la théologie chrétienne de la révélation” (L. Malevez, Le message
chrétien et le mythe (Bruxelles-Bruges-Paris, 1954), pp. 115-116.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 245

torna presente ao homem para salvá-lo e estabelecer com ele


uma comunhão de vida. P. Althaus acusa a teologia ca­
tólica de ter despersonalizado a revelação. Diz ele: a reve­
lação não é uma comunicação de verdades, um ensinamento,
mas um encontro pessoal de Deus conosco, “não uma
súmula de credenda, mas um credendus” 44. Oepke subli­
nha: “A revelação não é a comunicação de um conheci­
mento sobrenatural. . ., antes é, propriamente, a ação de
]avé, o desvendar de seu mistério essencial, a oferta de si
mesmo como amigo” 45. É a ação de Deus que sai de seu
mistério e interpela o homem. Bultmann chega mesmo a
considerá-la como nada mais sendo que uma ação, uma
interpelação, praticamente com a exclusão de qualquer dis­
curso Segundo ele, o que importa não é a mensagem
da Palavra, seu conteúdo inteligível, mas o próprio fato de
ela ressoar como um apelo para a decisão definitiva; é o
acontecimento mesmo da Palavra e o acontecimento da fé
que ela suscita47.
A teologia bíblica protestante insiste fortemente na
consideração da revelação enquanto acontecimento e histó­
ria. A revelação é acontecimento e está ligada a acon­
tecimentos, isto é, aos atos salvíficos de Deus. Não apenas
se insere na trama da história humana: ela mesma é histó­
rica. O Deus que fala, diz G. E. Wright, é principalmente
o Deus que age48. Todos, finalmente, insistem no caráter
salvifico e existencial da revelação: encontro de Deus e do
homem, no centro de uma opção que compromete totalmente
a existência e suscita nova compreensão da condição humana.
Ação, acontecimento, encontro: são os aspectos que
a teologia protestante atual considera como mais impor-

44 P. Althaus, Die christliche Wahrheit (Gütersloh, 1947), 1: 285-286.


45 “Offenbarung ist nicht Mitteilung übernatürlichen Wissens... son­
dem recht eigentliche Handeln ]ahwes, Aufhebung seiner wesenhaften
Verborgenheit, Selbstdarbietung zur Gemeinschaft” (A. Oepke, art. “άπο-
καλύπτω”, no TW 3: 575).
46 R. Bultmann, Der Begriff der Offenbarung im Neuen Testament
(Tübingen, 1929), pp. 40ss.
47 R. Marlé, “La théologie bultmannienne de la Parole de Dieu”, em:
La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Paris, 1961), pp. 268-280.
48 G. E. Wright, God who acts (London, 1952).
246 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

tantes na revelação. O aspecto doutrinai fica perceptivel-


mente desvalorizado49.

3. Renovação bíblica e patrística

No ambiente católico, o interesse pela teologia da re­


velação deve-se a diversos fatores, de valor aliás desigual.
Enquanto que as correntes de pensamento do século XX ( exis-
tencialismo, personalismo) formam comó que o pano de
fundo, enquanto a teologia protestante age como fermento
de inquietação e como estimulante para a reflexão católica,
outros fatores exercem uma ação mais direta e mais definida.
O primeiro e o mais importante é a renovação bíblica
e patrística. A atenção dedicada ao dado revelado não po­
deria deixar de se estender também ao Deus que revela. A
volta às fontes bíblicas teve como corolário o primado da
palavra e da ação reveladora.
Pesquisas semânticas, agora mais exigentes, permitem
delimitar melhor uma noção e também formar conjuntos
de textos que revelam temas, deixando entrever estruturas.
O estudo dos termos referentes à revelação, como foi ten­
tado por H. Schulte50 ou como se pode fazer partindo dos
dicionários bíblicos permite-nos um contato mais próximo
com a realidade. Os artigos do Theologiscbes Wõrterbuch
sobre os termos “conhecer”, “ouvir”, “evangelizar”, “pre­
gar”, “revelar”, “falar”, “ensinar”, “testemunhar”51 ; os
artigos do Supplement do Dictionnaire de la Bible sobre os
termos “ palavra ”, “ mistério ”, “ oráculo ” 52 ; como também
49 J. Baillie, The Idea of Revelation in Recent Thought (London,
1956), pp. 49-50.
50 H. Schulte, Der Begriff der Offenbarung im Neuen Testament
(München, 1949).
51 G. Kittel, “άκούω”, 1: 217-225; R. Bultmann, “γινώσκω”,
1: 688-715; G. Friedrich, “εύαγγέλιον”, 2: 714-718; 724-733; G. Frie­
drich, “κηρύσσω”, 3: 701-717; A. Οερκε, “Αποκαλύπτω”, 3: 565-597;
O. Procksch, “λέγω, λόγος·”, no A. T., 4: 89-100; G. Kittel, “λέγω,
λόγος·”, no N. T., 4: 100-140; K. H. Rengstorf, “διδάσκω”, 2: 138-168;
H. Strathmann, “μάρτυς·, μαρτυρέω, μαρτύρομαι”, 4: 492-520; Cfr.
também os artigos correspondentes no Vocabulaire de théologie biblique
(Paris, 1962).
52 A. Barucq, “Oracle et divination”, 6: 752-787; A. Robert, J.
Starcky, e outros., “La parole divine dans ΓΑ. et le N. Testament”,
5: 425-497; R. Follet et K. Prümm, “Mystères”, 6: 1-225.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 247

os artigos do Lexikon für Théologie und Kirche e do Diction­


naire de spiritualité53 são muitas vezes, por sua amplitude e
riqueza, verdadeiras monografias. Afora os dicionários, mul-
Γ; tiplicam-se os trabalhos sobre temas fundamentais, neces­
sários à compreensão da noção de revelação; por exemplo,
os estudos de J. Dupont sobre gnosis*; de D. Deden, K.
? Prümm, R. E. Brown, C. Spicq, J. Coppens sobre o mistério
paulino55; de E. Pax sobre epiphaneia 56 ; de B. Trépanier, I.
■ de la Potterie, N. Brox, sobre testemunha e testemunho57;
de H. Schlier, J. Giblet, J. Dupont, C. Larcher, sobre a
palavra de Deus*; de I. de la Potterie, sobre a verdade*;
■ de T. Crisan sobre glória60. Evidentemente que ainda
; muito resta a fazer nesse inventário dos dados da Escritura.
Como diz Schnackenburg “há conceitos importantes. . . que
ainda esperam um estudo católico que tenha em conta os
últimos resultados da pesquisa... ; é o caso dos temas

53 Por exemplo, o artigo de D. Mollat, “Évangile”, 4: col. 1745-1772.


54 J. Dupont, Gnosis, La connaissance religieuse dans les épîtres de
S. Paul (Louvain-Paris, 1949).

I 55 D. Deden, “Le mystère paulinien”, Eph. th. lov., 13 (1936):


403-442; K. Prümm, “Mystères”, DBS 6: 1-225; R. E. Brown, “The pre-
-Christian Semitic Concept of Mystery”, CBQ 20 (1958): 417-443; “The
Semitic Background of the N. T. Mystêrion”, Bíblica, 39 (1958): 426-448;
40 (1959): 70-87; C. Spicq, Les Épîtres pastorales (Paris, 1947), excursus
V: “Le mystère chrétien”, pp. 116-125; J. Coppens, “Le mystère dans la
théologie paulinienne et ses paralèles qumrâniens”, em: Littérature et
théologie pauliniennes (Col. “Recherces bibliques”, V, Louvain, 1960),
Í pp. 142-165.
56 E. Pax, Epiphaneia. Ein religionsgeschichtlicher Beitrag zur hi-
blischen Théologie (“Münchener Theologische Studien”, I, 10, München,
1955).
57 B. Trépanier, “L’idée de témoin dans les écrits johnniques”, Rev.
de l’Université d’Ottawa, 15 (1945): 5-63, secção marcada com asterisco;
I. de la Potterie, “La notion de témoignage dans S. Jean”, em: Sacra
Pagina (2 vol. Paris-Gembloux, 1959), 2: 192-208; N. Brox, Zeuge und
(Mãrtyrer (München, 1961).
58 H. Schlier, Wort Gottes (Würzburg, 1958); Id., “La notion
paulinienne de la Parole de Dieu”, em: Littérature et théologie pauli­
niennes (Col. “Recherches bibliques”, V, Louvain, 1960), pp. 127-141;
C. Larcher, “La parole de Dieu en tant que revelation dans l’Ancien
Í Testament”, em: La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 35-67; J. Dupont,
“La parole de Dieu suivant S. Paul”, ibid. 68-84; J. Giblet, “La théologie
johannique du Logos”, ibid. 85-119.
59 I. de la Potterie, “L’arriére-plan du thème johannique de la vé-
Îrité”, em: Studia evangelica (Berlin, 1959), pp. 277-294.
60 T. Crisan, De notione Doxa in Evangelio S. Joannis in luce Ve­
teris Testamenti (Dissertatio, Romae, 1953).
248 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

“conversão”, “paz”, “esperança”,. . . e mesmo “palavra de


Deus” ou “Espírito Santo”61. Contudo, já agora as teolo-
gias bíblicas aproveitam esses estudos parciais e preparam
uma síntese que será sempre difícil, pois a revelação é uma
categoria fundamental do cristianismo, onipresente na Es­
critura e multiforme em sua expressão62.
Parecem-nos ser os seguintes os pontos sobre os quais
insistem a exegese e a teologia bíblica: a) a educação pro­
gressiva de Israel: a revelação é um lento caminhar das
trevas para a luz (idéia de Deus, de aliança, de messias,
de reino, de salvação, de graça etc); deve-se lealmente re­
conhecer o fato, sem falso concordismo; b) a historicização
da revelação: dá-se Deus a conhecer na história, através de
seus gestos de salvação; c) a infinita diversidade dos modos
de expressão ou de gêneros literários; d) a unidade e a
continuidade do plano divino, que não exclui, porém, im­
precisões e até mesmo retrocessos; e) o caráter essencial­
mente interpessoal e dinâmico da palavra divina.
Se bem que a pesquisa patrística sobre o tema da re­
velação não progrida no mesmo ritmo, a teologia da re­
velação já está se beneficiando com a renovação geral dos
estudos patrísticos. Entre as monografias que tratam dire­
tamente da revelação, devemos mencionar a obra de Mar­
guerite Harl sobre Orígenes63, os estudos de J. Ford e J.
Ochagavía sobre santo Irineu a obra de E. Molland sobre
o tema do Evangelho na escola alexandrina65. Seria pre-

61 “Des concepts importants... attendent encore une étude catholi­


que tenant compte des derniers résultats de la recherche...; c’est le cas
pour les thèmes de conversion, paix, espérance,... et même parole de
Dieu ou Esprit Saint” (R. Schnackenburg, La théologie du Nouveau
Testament (Bruges, 1961), pp. 38-39).
62 Mais ou menos trinta vocábulos servem para exprimir a idéia de
revelação.
ω M. Harl, Origène et la fonction révélatrice du Verbe incarné
(Paris, 1958).
64 J. Ford, St. Irenaeus and Revelation, A Theological Perspective
(Dissertatio, Romae, 1961); J. Ochagavía, Visibile Patris Filius (Col.
“Orientalia Christiana Analecta”, 171, Romae, 1964).
65 E. Molland, The Conception of the Gospel in the Alexandrian
Theology (Oslo, 1938).
66 Cfr. por exemplo: H. Crouzel, Origene et la “connaissance mysti­
que” (Bruges, 1961); J. Daniélou, Message évangélique et culture hellénisti­
que (Paris-Tournai-Rome, 1961); A. Houssiau, La christologie de S. Irénée
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 249

ciso ainda acrescentar um bom número de outros trabalhos


que dedicam um ou mais capítulos ao tema da revelação 66.
Os autores dessas pesquisas sobre os santos Padres pro­
curam principalmente definir a função de Cristo como reve­
lador do Pai numa economia de encarnação, situar os pro­
fetas e apóstolos com relação ao Cristo, e também de­
terminar em que profetas e apóstolos se assemelham e
se distinguem. Os temas da unidade de ambos os Testa­
mentos, do progresso da revelação, da pedagogia divina, do
caráter histórico e salvifico da revelação, estão sempre
presentes.

4. Reflexão sobre a teologia


Entre 1936 e 1939 surgiu entre teólogos um debate
quanto a natureza e os métodos da teologia. Deram-lhe
início duas conferências de R. Draguet67 que inspiraram
Charlier em seu Essai sur le problème théologique68. OP.
Chenu publicava na mesma época uma obra na qual expunha
como se concebia a pesquisa teológica na escola de Saul­
choir6’. Finalmente, J. Fr. Bonnefoy publicou nas Epheme­
rides de Lovaina uma série de artigo sobre a teologia
enquanto ciência70. Essas publicações, principalmente as
de Chenu, Draguet, Charlier, provocaram reação em ca­
deia. Y.-M. Congar 71, M. R. Gagnebet72, W. Goossens73,

( Louvain-Gembloux, 1955); J. Lebreton, Histoire du dogme de la Trinité


(2 vol., Paris, 1928); D. van den Eynde, Les normes de l’enseignement
chrétien dans la littérature patristique des trois premiers siècles (Gembloüx,
1933); H. de Lubac, Histoire et Esprit (Paris, 1950); G. Aeby, Les
missions divines, de Saint Justin à Origène (Fribourg, 1958).
67 R. Draguet, “Méthodes théologiques d’hier et d’aujourd’hui”,
Revue catholique des idées et des. faits, 15 (1936), 10 janvier, pp. 1-7 ;7
février, pp. 4-7; 14 février, pp. 13-17.
68 L. Charlier, Essai sur le problème théologique (Thuillies, 1938).
69 M.-D. Chenu, One École de théologie, le Saulchoir (Le Saulchoir,
Kain-lez-Tournai, Belgique, et Ëtiolles, France, 1937).
70 J. F. Bonnefoy, “La théologie comme science et l’explication de
la foi chez S. Thomas d’Aquin”, Eph. th. lov., 14 (1937): 421-446, 600-631;
15 (1938): 491-516.
71 Y.-M. Congar, “Recensions”, Bulletin thomiste, 1938, pp. 490-505.
72 M. Gagnebet, “Un Essai sur le problème théologique”, Revue
thomiste, 45 (1939): 108-145.
73 W. Goossens, “Notion et méthode de la théologie”, Coll. Gand,
26 (1939): 115-134.
250 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

C. Boyer74, T. Zapelena75 e vários outros entraram também


no debate. Não pretendemos reabri-lo, mas apenas relem­
brar o que então se disse acerca da revelação. Sendo a re­
velação o objeto da fé, e ao mesmo tempo o objeto ao qual
se aplica a inteligência teológica, era então impossível tra­
tar de uma sem falar da outra. Assim é que os PP. M.-D.
Chenu e L. Charlier tiveram que explicar o que se deve
entender por revelação e por dado revelado.
São bem conhecidas as queixas do P. Chenu contra
certo tipo de teologia demasiadamente intelectualista e con-
ceitualizante76. Teologia mais interessada nas conclusões a
serem tiradas do dado revelado que na realidade do pró­
prio mistério. Teologia pouco atenta ao papel da fé no
trabalho teológico77, permitindo assim certo divórcio prá­
tico entre a teologia e a vida espiritual78. Reagindo violen­
tamente contra esse tipo de teologia, o P. Chenu dedicou-se
à valorização do caráter realista, histórico e religioso da
revelação e da fé.
Ponto de partida da teologia é a fé na revelação, que
é testemunho de Deus sobre si mesmo. Mas esse “teste­
munho é apenas o veículo de um conhecimento real, que
nos dá, ainda que em mistério, uma realidade, a realidade
divina, como objeto de percepção e amor” 79. O objeto do
testemunho divino, “dado numa confidência que exige con­
fiança” 80, é o próprio Deus, “aquele em quem agora re­
conheço o todo de minha vida, o objeto deleitável de minha
felicidade” 81. No objeto da fé podemos então distinguir
dois aspectos: dum lado, conceitos, proposições, em que

74 C. Boyer, “Qu’est-ce que la théologie?”, Gregorianum, 21 (1940):


255-266.
75 T. Zapelena, “Problema theologicum”, Gregorianum, 24 (1943):
23-47, 287-326; 25 (1944): 38-73, 247-282.
76 M.-D. Chenu, Une École de théologie, le Saulchoir, p. 72.
77 M.-D. Chenu, “Position de la théologie”, Rev. des Sc. ph. et th.,
24 (1935): 254.
78 M.-D. Chenu, Une École de théologie, le Saulchoir, p. 71.
79 “... témoignage n’est ici que le véhicule d’une connaissance réelle,
nous livrant, fût-ce dans le mystère, en objet de perception et d’amour,
une réalité, la réalité divine” (M.-D. Chenu, “Position de la théologie”,
Rev. des Sc. ph. et th., 24 (1935): 233.
«J Ibid., 234.
81 Ibid., 234.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 251
se exprime o testemunho divino. Doutro, a própria Reali­
dade que essas proposições expressam. Sem dúvida, é a
fé iim assentimento às proposições que exprimem o mis­
tério. Mas através delas a fé visa à própria realidade do
mistério, isto é, o Deus da visão e da beatitude82. É a fé “a
percepção realista de Deus numa proposição conceptual” 83.
Reagindo contra um intelectualismo abstrato e indife­
rente para com a história, o P. Ghenu salienta que o dado
revelado nos chega em forma de história e não sob a forma
de idéias abstratas. O que a inteligência teológica procura
compreender é uma economia, cuja realização está presa ao
tempo; é uma série de iniciativas do amor livre de Deus
que dirige a história como quer M. O dado inicial da ciência
teológica “não é um inventum philosophicum (D. 1800)
a ser tratado como uma série de princípios metafísicos ou
físicos, dos quais se deduzam logicamente conclusões cla­
ras. São obras de Deus, do Deus de Abraão, de Isaac e de
Jacó, não do Ato puro; sua obra central, a encarnação não
se insere em nenhuma ordem cósmica onde pudéssemos en­
contrar uma sombra que fosse de razão determinante” 85.
A teologia deve centrar-se na história da salvação, nas “impre­
visíveis histórias do amor gratuito de Deus”86. A teologia
pois, em segundo lugar, é realista por ser a inteligência da
ordem da salvação em sua realização histórica87.
Finalmente, uma descrição fiel da revelação deve evi­
denciar um terceiro elemento. O objeto de fé (proposições
e realidade) não se pode atingir formalmente se não sob
uma luz proporcionada: a luz da fé. Luz interior que é a
palavra de Deus em mim: “graça pessoal, que me põe em
diálogo e comércio direto com ele, presença misteriosa, à

82 Ibid., 234.
83 Ibid., 253, 239.
84 Ibid., 246-247.
85 “...n’est pas un inventum philosophicum (D. 1800) à traiter tout
de go comme un lot de principes métaphysiques ou physiques, d’où se
déduiraient logiquement des conclusions claires. Ce sont les oeuvres de
Dieu, du Dieu d’Abraham, d’Isaac et de Jacob, non de l’Acte pur; et
son ouvre centrale, l’Incarnation de son Fils, ne s’insère dans aucun
ordre cosmique où nous pourrions décler une ombre de raison détermi­
nante” (Ibid., 247).
86 Ibid., 248.
87 Ibid., 249.
252 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

qual o homem novo tem acesso, não.porque sua razão o


introduza, mas porque Deus se revela, sibi ipsi testis. Qui
credit in Filium Dei, habet testimonium Dei in se (IJo
510 )”88. Sem essa luz não existe verdadeira comunhão
com o pensamento divino. O conhecimento de fé é posse
obscura, não evidente, imperfeita, de seu objeto. É, porém,
ao mesmo tempo percepção “saborosa” ”, “religiosa” 90, “con­
templativa” 91, “mística” 92 da realidade que as proposições
exprimem, “conhecimento vital, que prepara ulterior pene-
traçao atez a visão
* >9 .
Assim, em face de uma teologia que ele julga infiel
a seu objeto, demasiadamente intelectualista e não suficiente­
mente religiosa e teologal, o P. Chenu põe em evidência o
aspecto realista, histórico e místico da revelação. O teste­
munho de Deus exprime-se através de conceitos e de proposi­
ções que o veiculam. Em última análise, porém, o que se
comunica ao homem é a realidade do mistério. P. Chenu
não nega o aspecto conceptual e proposicional da revelação.
Opõe-se, porém, a uma consideração unilateral desse aspecto,
em prejuízo do realismo da revelação, e principalmente em
prejuízo da palavra interior, do testemunho interior, da ilu­
minação interior que acompanha o ensinamento exterior cuja
apropriação tórna possível. Falando da revelação ou da fé,
podemos insistir sobre a mensagem ouvida e aceita, sobre
a fides ex auditu, ou então sobre a realidade do mistério e
sobre o testemunho interior, a luz interior. Chenu sabe per-
feitamente que nosso encontro com Deus tem como norma
a adesão à mensagem de salvação, ao Evangelho, sob a ação
da graça que solicita e eleva. Mas reage contra certa forma
de intelectualismo que na revelação vê apenas uma série de

88 “... grâce personnelle, me mettant en dialogue et en commerce


direct avec lui, présence mystérieuse, à laquelle l’homme nouveau a accès,
non parce que sa raison l’y introduit, mais parce que Dieu se révèle,
sibi ipsi testis. Qui credit in Filium Dei, habet testimonium Dei in se
(ljo 5,10)”, (M.-D. Chenu, Une École de théologie, le Sauchoir, p. 59).
89 M.-D. Chenu, “Position de la théologie”, Rev. des Sc. ph. et th.,
24 (1935): 235-236.
w Ibid., 239.
91 M.-D. Chenu, Une École de théologie, le Saulchoir, p. 76.
« Ibid., 70.
93 M.-D. Chenu, “Position de la théologie”, Rev. des Sc. ph. et th.,
24 (1935): 233.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 253

proposições sobre Deus. É por isso que insiste no aspecto


realista da revelação e na palavra interior que precede e
sustenta a adesão ao testemunho exterior94.
A exposição do P. Charlier em seu Essai sur le pro­
blème théologique95 incide em parte com o modo de ver do
P. Chenu, apresentando ao mesmo tempo considerações
novas de um tom bem diferente. É no quarto capítulo da
primeira parte de sua obra96 que encontramos seu conceito
de revelação. Com o P. Chenu, ele observa inicialmente
que há uma insistência demasiada no aspecto conceptual do
dado revelado e uma consideração insuficiente de seu aspecto
real: “o revelado é antes de mais nada uma realidade que é
dada” 91. E a fé divina: “não é uma simples adesão a um qual­
quer testemunho exterior de Deus”, é adesão ao próprio
Deus em seu mistério, a Deus que se nos revela em sua luz.
“A fé supõe que nós, através do conceito e da fórmula,
atingimos a res, ou seja, a própria*realidade divina”98. “O
principal na revelação é..., concretamente, Deus em pessoa
que se diz a nós, que se revela à nossa alma em sua pró­
pria luz... ; testemunho transcedente que a verdade dá
sobre si mesma pelo contato direto que estabelece conosco.
Pouco importa o mistério com que se envolve com relação
à nossa inteligência, se a realidade, apresentando-se como
algo que nos é dado, nos envolve com sua presença” ".
Não há dúvida que o P. Charlier considera como o mais
importante na revelação, não a comunicação duma mensagem
referente a Deus e à nossa salvação, mas o dado-revelado-

94 Contudo, qualificar o conhecimento da fé, como ele o faz, de


“percepção” mística e cheia de sabor, parece-nos ser dupla imprecisão:
em rigor de termos, na fé Deus não é percebido, mesmo obscuramente,
mas apenas é crido; em segundo lugar, essa característica experimental
da fé pertence mais a uma fé privilegiada e não simplesmente a uma
fé comum.
95 L. Charlier, Essai sur le problème théologique (Thuillies, 1938).
96 Ibid., 66-80.
” Ibid., 50.
μ Ibid., 66.
99 “Ce qui est premier dans la révélation, c’est..., en concret, Dieu
en personne se disant à nous, se révélant à notre âme en sa propre
lumière... ; témoignage transcendant que la vérité donne sur elle-même par
le contact direct qu’elle établit entre elle et nous. Qu’importe le mystère
dont elle s’entoure au regard de l’intelligence, si la réalité, pour s’être
mise d’abord en état de donné, nous enveloppe de sa présence” (Ibid., 67).
254 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

-realidade, isto é, o próprio Deus em pessoa que se dá e


se revela ao fiel em sua própria luz. Na economia cristã,
porém, o dom de Deus se resume no mistério do Cristo
total — Cristo e a Igreja —. Sendo assim, o dado-revelado-
-realidade será o Cristo total, e, com o Cristo, toda a Trin­
dade 10°. Logo, pois, que o Cristo nos foi dado e fundada
a Igreja, já temos em toda a sua plenitude o dado-revelado-
-realidade, bem como a revelação exterior que no-lo dá a
conhecer101. Esse dado revelado está presente na Igreja,
e é na Igreja que ele se desenvolve “à medida que a Igrja
o assimila e lhe permite nela crescer” 102.
Após ter assim acentuado o dado-revelado-realidade e
sua complexidade, o P. Charlier tira como conclusão uma
teoria do desenvolvimento dogmático. No estágio consti­
tutivo do revelado, a realidade é dada ao mesmo tempo que
sua notificação primeira e oficial. Ponto de partida que
condiciona todo o posterior desenvolvimento orgânico. Pro­
cessa-se o crescimento tanto no plano da realidade como no
do conhecimento-. “Concretamente, há um crescimento de
todo o mistério de Deus: toda a realidade divina cresce,
enquanto assimilada, enquanto há um crescimento do Cristo
em sua Igreja, na medida em que esta com ele se identifi­
ca. . . A este desenvolvimento do dado-revelado-realidade
na Igreja, segue-se conseqüentemente o desenvolvimento
do dado-revelado-conhecimento” 103. O magistério define
“em termos precisos e rigorosos, mas sempre analógicos,
e sob a garantia da infalibilidade, o alcance exato desse
crescimento interior do revelado” 104.
Também o P. Charlier insiste no caráter histórico da
revelação. Ela “não é um sistema de idéias abstratas”, mas
o “relato das realizações divinas a partir de um grandioso

«» Ibid., 68-69.
ιοί Ibid., 69.
102 Ibid., 65.
103 “En concret, il y a grandissement de l’Église et, dans l’Église,
grandissement de tout le mystère de Dieu: toute la réalité divine grandit,
en tant que donnée, en tant qu’assimilée, en tant qu’il y a croissance du
Christ dans son Église, dans la mesure où celle-ci s’identifie à lui... A
ce développement du donné-révélé-réalité dans l’Église, fait suite, par voie
de conséquence, le-développement du donné-révélé-connaissance”, (Ibid. 70).
im Ibid., 71.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 255

desígnio, em cujo centro Deus se coloca e do qual o homem


é o beneficiário” 105. A história influencia também o pro­
gresso do dogma: “o progresso do dado revelado não é, de
modo algum, o resultado do estudo abstrato de uma doutri­
na. É, em primeiro lugar e principalmente, o progresso de
toda a realidade divina contida no mistério da Igreja, que
suscita conseqüentemente o progresso do conhecimento pro­
fundo da fé e as intervenções decisivas do Magistério” 106.
Assim, conforme o P. Charlier, a revelação é princi­
palmente a comunicação da própria realidade divina: pre­
sença misteriosa oferecida à experiência de fé. A revelação-
-doutrina (mensagem de salvação comunicada ao homem)
passa claramente para o segundo plano. O dado-revelado-
-realidade ( o próprio Deus no mistério do Cristo e da
Igreja) está em perpétuo trabalho de crescimento. Ê todo
o mistério que cresce e, conseqüentemente, o conhecimento
que dele temos. Semelhante conceito de revelação, além de
contradizer os dados da Escritura e do Magistério, que
apresentam o objeto da fé como uma mensagem, ou seja,
a Boa-nova da salvação, põe em perigo a verdadeira noção
de progresso dogmático. De fato, segundo o P. Charlier,
esse progresso dogmático já não se poderia conceber como
um conhecimento cada vez mais profundo e mais explícito
do depósito da fé, histórica e objetivamente constituído (fi­
cando bem claro que a Igreja, graças à assistência positiva
do Espírito, para isso dispõe de um poder de penetração
que transcende o da simples razão). O progresso dogmá­
tico deveria ser entendido como uma assimilação da pró­
pria realidade divina, possuída misticamente, num contato
supraconceptual, na experiência de fé. As fórmulas do Ma­
gistério interviriam como tradução analógica e provisória
dos estágios desse crescimento e dessa captação experimental
do revelado-realidade. Por outro lado, se o próprio dado
está sempre em crescimento, não vemos como, a não ser em

105 L. Charlier, Essai sur le problème théologique, Ί4.


106 "... le progrès du donné révélé n’est pas, tant s’en faut, que le fruit
de l’étude abstraite d’une doctrine, c’est d’abord et surtout le progrès de
toute la réalité divine incluse dans le mystère de l’Église, suscitant, par voie
de conséquence, le progrès de la connaissance profonde de la foi et des
interventions décisives du Magistère” (Ibid., 74).
256 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

palavras, se podería continuar afirmando que a revelação se


concluiu com a era apostólica.
Os ensaios do P. Chenu e do P. Charlier sobre o es­
tatuto da teologia, apesar dos excessos comprovados do P.
Charlier, contêm elementos preciosos e perfeitamente as­
similáveis para uma teologia da revelação. Tais elementos
concernem: a) ao caráter realista, e não apenas conceptual
e proposicional da revelação; b) ao caráter histórico da re­
velação, em oposição a uma revelação de tipo abstrato, pu­
ramente filosófica; c) ao caráter sobrenatural da revelação,
que não é apenas uma mensagem divina exterior, mas tam­
bém testemunho interior da Palavra incriada; d) ao cará­
ter interpessoal e vital da revelação: confidência de amor
do Deus vivo, que convida o homem a uma resposta de
confiança e de amor, tendo em vista uma comunhão de
vida e de felicidade; e) ao caráter livre e gratuito da reve­
lação: iniciativa do Amor infinito.

5. Teologia querigmática

Pela mesma época, isto é, entre 1936 e 1940, surgiu,


na Áustria e na Alemanha, uma nova corrente de reflexão
teológica. A teologia querigmática que contribuiu podero­
samente para revitalizar certa teologia anêmica da reve­
lação 107.
É conhecido o contexto em que surgiu a teologia que­
rigmática. Comovidos com as queixas de pastores de almas
que deploravam a ignorância e a mediocridade de vida de
suas ovelhas, alguns teólogos (J. A. Jungmann, F. Lackner,
H. Rahner, J. B. Lotz, F. Dander) julgaram que a razão
de tal estado de coisas estava numa apresentação deficiente
do cristianismo e, mais profundamente, num ensino teoló­
gico inadequado. Como observam, a pregação muitas vezes
não passa de uma forma diluída do ensino teológico, com
sua terminologia, seus argumentos e suas objeçõês. Nas
escolas, o catecismo é por demais semelhante a um resumo
107 A literatura referente a esse movimento foi reunida por G. B.
Guzzetti, “Saggio bibliográfico sulla teologia delia predicazione”, La
Scuola Cattolica, 78 (1950): 350-356; e por E. Kappler, Oie Verkün-
digungsthéologie, (Fribourg, 1949), pp. 7-110.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 257
dos tratados de teologia 108. A própria teologia, preocupada
demais com demonstrações e refutações, chega a esquecer
que ela é a ciência da salvação, e que cada um dos dogmas
Cristãos tem ressonâncias na vida religiosa pessoal. Há
uma barreira entre a teologia dos cursos e a atividade pas­
toral 109. Diante desse problema, Jungmann postulava uma
distinção clara entre a proclamação da mensagem cristã e a
teologia científica. Desejava que a pregação se inspirasse
mais na apresentação feita pela Escritura e pelos Padres;
que, conseqüentemente, fosse centrada sobre o Cristo e sobre a
história da salvação n0.
F. Lackner e J. B. Lotz 111 achavam que as necessida­
des do apostolado exigiam mais ainda: paralelamente à teo­
logia tradicional, a constituição de uma teologia assim cha­
mada querigmática. A primeira (teologia das universidades)
seria científica, sistemática, teocêntrica, preocupada principal­
mente com a pesquisa. A segunda (teologia dos seminá­
rios), destinar-se-ia à pregação; seria pois histórica, cristo-
cêntrica, atenta ao progresso e à economia da revelação,
preocupada com a psicologia e com a pedagogia na apresen­
tação da mensagem cristã, a exemplo do próprio Cristo e
dos Padres da Igreja em suas homílias. Enquanto a teo­
logia culta considera o dado revelado sob o aspecto da
verdade, a teologia querigmática o considera enquanto bem
e valor.. A primeira, usando uma linguagem técnica, confor­
me as exigências da ciência; a segunda, devendo usar da
linguagem simples, plástica, sugestiva, procuraria ser uma
teologia do coração, uma apresentação comovida e como­
vente dos temas fundamentais da revelação. H. Rahner e

108 F. Lackner, “Das Zentralobjekt der Théologie”, Zeitschrift für


katholische Théologie, 62 (1938): 1-36.
109 G. B. Guzzetti, “La controversia sulla teologia della predicazione”,
La Scuola Cattolica, 78 (1950): 260-266: H. Rahner, Eine Théologie
der Verkündigung (Freiburg i. Br., 1939), p. 7.
110 J. A. Jungmann, Die Frohbotschaft und unsere Glaubensver-
kündigung (Regensburg, 1936). Essa obra fundamental foi o início de
toda a controvérsia. Cfr. também de Jungmann, Catéchèse (Bruxelles,
1955); ο III apêndice, “La théologie kérygmatique”, é um valioso julga­
mento retrospectivo do conjunto do debate; ver principalmente pp. 275-280.
111 F. Lackner, “Das Zentralobjekt der Théologie”, Zeitschrift für
katholische Théologie, 62 (1938): 1-36; J. B. Lotz, “Wissenschaft und
Vekündigung”, Zeitschrift für katholische Théologie, 62 (1938): 465-501.

9 - Teologia da revelação
258 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

F. Dander chegaram a propor ensaios-tipos dessa teologia 1U.


Logo combatida (principalmente por M. Schmaus, A.
Stolz, C. Fabro, H. Weisweiler), a idéia de uma dupla
teologia foi finalmente rejeitada com toda razão. Como
bem o fazia notar Schmaus, qualquer teologia para ser fiel
a seu objeto, à palavra de salvação do Deus Salvador, deve
salientar em cada mistério esse valor de salvação e demons­
trar aptidão para vivificar a existência cristã. Sem isso, não
passaria de estéril metafísica. Por outro lado, uma teologia
que renunciasse ao rigor da demonstração e da sistematiza-
ção, já não seria uma ciência113. A totalidade dos teólogos
reconhecem de boa mente que a teologia deve ser mais
atenta à economia da revelação, mais cristocêntrica, mais
pastoral, mais consciente de sua função social na Igreja.
Contudo, mesmo admitindo que o estado de coisas descrito
pelos querigmatistas exigia uma intervenção urgente, a maio­
ria dos teólogos julgava supérflua uma teologia especial
ao lado da teologia clássica: a tarefa deveria ser assumida
pela própria teologia científica 114.
Na verdade, o debate se desviara do rumo inicial. Como
Jungmann lembrava muito a próposito, “a questão capital
não é a de uma teologia da pregação independente em face
da teologia científica. Estão em questão as regras próprias
da pregação ante a teologia” 1B. F. X. Arnold observava por
sua vez: “É o quérigma, não a teologia querigmática, que
deve ter caráter próprio. Compete, pois, ao quérigma, à
pregação, tomar consciência de que deve antes de mais nada
conceber, ordenar, concentrar a mensagem cristã de uma
forma propriamente querigmática, empregando métodos e
linguagem peculiaresU6. Pregação, catequese, teologia, to-

112 H. Rahner, Eine Théologie der Verkündigung, (Freiburg i. Br.,


1939); F. Dander, Christus Alles und in Allen (Innsbruck-Leipzig, 1939).
113 M. Schmaus, “Brauchen wir eine Théologie der Verkündigung?”,
Oie Seelsorge, 16 (1938-1939): 1-12. Cfr. também o prefácio do segundo
volume da sua Katholische Oogmatik (München, 1949), II: VII-XI.
114 A. Stolz, “De theologia kerigmatica”, Angelicum, 17 (1940):
337-351.
ns J. A. Jungmann, “Le problème du message à transmettre ou le
problème kérygmatique”, Lumen Vitae, 5 (1950): 276.
116 “Ce n’est pas à une théologie kérigmatique, mais au kérigma que
revient un caractère propre. Au kérigma donc, à la prédication de prendre
conscience qu’elle doit avant tout concevoir, ordenner, concentrer le message
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 259

das trabalham com o dado revelado. Em níveis diversos,


porém, com metas diferentes, e conseqüentemente, segundo
leis diferentes. Ao lado da teologia há pois lugar para uma
ciência da pregação sob diversas formas: evangelização, ca­
w tequese, homilia 117. O resultado mais concreto dessa con­
trovérsia foi a criação de um ano pastoral para a preparação
j do clero e uma mais precisa determinação do estatuto da
homilética e da catequética 118.
A teologia querigmática, mesmo sem apresentar uma no­
j va concepção da revelação, pôs em maior evidência certos as­
I pectos que contribuíram para uma renovação da teologia
da revelação:
1 ) O caráter histórico da revelação. Salientam os
querigmáticos que o conteúdo essencial da revelação é o
Evangelho, isto é, a Boa-nova da salvação. Objeto dessa
Boa-nova não é, em primeiro lugar, um sistema de pro­
posições especulativas e práticas, mas é o Cristo em sua vida
e em sua obra de salvação. Os apóstolos dão testemunho de
toda a obra de salvação anunciada e iniciada no Antigo Testa­
mento, realizada e completada pela morte e pela ressurrei­
ção do Cristo. A teologia querigmática não nega o caráter
doutrinai da revelação, mas condena uma apresentação de­
1 masiadamente abstrata e conceptual do dado revelado, que
levaria a esquecer que a revelação nos é dada sob a forma
de história: história da salvação. Ela deixa bem claro o
1 caráter realístico-histórico da revelação 119.

chrétien d’une façon proprement kérigmatique, mais aussi employer une


méthode et une langage particuliers”, F. X. Arnold, “Renouveau de la
prédication dogmatique et de la catéchèse”, Lumen Vitae, 3 (1948): 504.
117 D. Grasso, “Evangelizzazione, Catechesi, Omilia”, Gregorianum, 42
(1961): 242-268. Já desde o início da controvérsia essa distinção fora
proposta por T. Soiron, “Das Wort Gottes”, Wissenschaft und Weisheit, 9
(1942): 24.
118 J. A. Jungmann, Catéchèse (Bruxelles, 1955), p. 278; F. X.
Arnold, “La catéchèse en partant du mystère central de l’histoire du salut”,
Évangéliser, 15 (1960): 212.
119 G. Corti, “Alla radice della controversia kerigmatica”, La Scuola
Cattolica, 78 (1950): 284-291. Os numerosos trabalhos do após-guerra
sobre a teologia da história contribuíram também para evidenciar essa ca­
racterística de historicização da revelação. Cfr. principalmente os trabalhos
de Daniélou, Culmann, Féret, Thils, Von Balthasar, Melevez, H. Rahner,
Mouroux, e outros. Os teólogos da história insistem na incorporação da
palavra nos acontecimentos da história. A revelação está ligada à história
260 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

2) Revelação enquanto economia. O cristianismo ba­


seia-se em acontecimentos, não isolados, mas organicamente
ligados entre si, segundo a unidade harmoniosa do plano
divino. A revelação apresenta-se como uma economia: foi
dada à humanidade segundo uma ordem, a da Sabedoria
de Deus. Importa pois colocar no primeiro plano da re­
velação as verdades que o próprio Deus, ao revelar, colocou
em primeiro plano: o fato inaudito da palavra, a história
como pedagogia que prepara o Cristo, a encarnação, a morte
e a ressurreição do Cristo, o dom do Espírito, o encaminha­
mento da humanidade em direção a Deus pela Igreja e na
Igreja 120.
3 ) A revelação crística. Toda a revelação está centrada
sobre o Cristo. O Antigo Testamento é um anúncio e uma
preparação do Cristo: uma profecia e uma pedagogia do Cris­
to. O centro e objeto do Evangelho, em o Novo Testamento,
é o Cristo. Na ordem da revelação e da realização da salvação,
Cristo sempre tem o primado. A teologia querigmática rela­
ciona pois estreitamente a revelação à pessoa do Cristo 121.
4) O aspecto salvifico da revelação. A idéia que
domina e dirige todo o progredir da revelação, do começo ao
fim, e que lhe dá a unidade, é a salvação anunciada e fi­
nalmente dada no Cristo e pelo Cristo. A revelação é re­
velação de Deus-que-salva-pelo-Cristo. O Evangelho é uma
mensagem de salvação: notifica a salvação posta a nosso
alcance pelo Cristo e pela Igreja. A revelação põe em pauta
o todo da existência 122

de uma comunidade humana escolhida por Deus, por ele dirigida, e é atra­
vés da história dessa comunidade que Deus se dá a conhecer. “Deus age
na história, Deus revela-se pela história”, nota o P. de Lubac (Catholicis­
me, Paris, 1947, p. 133). Conseqüentemente, a fé cristã não é simplesmente
a adesão a um conjunto doutrinai sobre o relacionamento entre o homem
e Deus, mas o reconhecimento de uma série de intervenções sobrenaturais
e irreversíveis de Deus no curso da história humana, tendo em vista levar
a humanidade a seu estado definitivo, que é o da Jerusalém celeste (M.
Flick e Z. Alszeghy, "Conspectus, Teologia delia storia”, Gregorianum,
35 (1954): 292).
120 H. Rahner, Eine Théologie der Verkündigung, p. 11.
121 J. A. Jungmann, Die Frohbotschaft und unsere Glaubensverkün-
digung, pp. 61ss. Esse caráter cristológico da revelação é sublinhado por
todos os querigmáticos.
122 E. Kappler, Die Verkündigungstheologie (Fribourg, 1949), pp.
22-28.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 261

5) Revelação interpessoal. A revelação é palavra do


Deus vivo e pessoal que se dirige ao homem para convi­
dá-lo à fé e à obediência. É também iniciação nos misté­
rios pessoais de Deus. Procede de seu amor absolutamente
livre e infinito 123.
A teologia querigmática mostra-se, pois, sensível ao
progresso, à pedagogia e à economia da revelação. Presta
atenção ao fato de ela ser história e acontecimento. Preo­
cupa-se com evidenciar o lugar de Cristo como autor, cen­
tro e objeto da revelação. Sublinha o caráter interpessoal e
salvifico da palavra de. Deus.

6. O problema teológico da pregação

O problema teológico da pregação e o da teologia que­


rigmática, ainda que surgidos numa mesma situação histó­
rica, são, contudo, muito diversos entre si. Aqui não se
trata da oposição entre duas teologias (querigmática e cien­
tífica), mas de determinar, à luz da revelação, o sentido
do ministério da pregação na Igreja: natureza, necessidade,
eficácia. Essa reflexão dogmática sobre a pregação é um fe­
nômeno recente. Começou lá por 1936 e está em pleno de­
senvolvimento. A longa controvérsia, suscitada por Jung-
mann, não pôde fazer esquecer o essencial de suas reivin­
dicações, isto é, a existência de uma crise da pregação, que
não poderá ser superada sem uma reflexão teológica sobre o
conteúdo e sobre a função da pregação 124.
Essa urgência foi percebida muito vivamente na Ale­
manha e na França, onde a tomada de consciência foi apres­
sada pelas constatações dolorosas do ministério paroquial:
medíocre rendimento da pregação na Alemanha, descris-
tianização na França. A reflexão teológica, já favorecida
pelas correntes recentes filosóficas (Filosofia de valores, a

123 H. Rahner, Eine Théologie der Verkündigung, p. 15.


124 J. A. Jungmann, Die Frohbotschaft und unsere Glaubensverkün-
digung (Regensburg, 1936). Mais de vinte anos depois, o P. J. Hamer
declarava ainda a um grupo de sacerdotes que a crise da pregação é uma
“crise teológica” que não será superada enquanto não tivermos uma visão
clara do lugar que a palavra de Deus ocupa no plano divino (La Revue
Nouvelle, 29 [1959]: 137-147). No mesmo sentido, cfr. C. Moeller,
“Theólogie de la parole et oecuménisme”, Irénikon, 24 (1951): 330-331.
262 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

Fenomenologia do encontro) e, estimulada pela teologia pro­


testante particularmente ativa nesse tempo, beneficiou-se
também com a contribuição da renovação litúrgica, que
chamou a atenção sobre o valor cultuai da pregaçãoU5, e
com o rápido progresso das ciências bíblicas e litúrgicas. De
repente, viu-se a teologia na posse de abundantes indicações
que poderíam servir à construção de um De Praedicatione
paralelo ao De Sacramentis. O estudo das fontes levou a
compreender principalmente toda a importância da pregação
na vida cristã, importância comparável à da oração e à
dos sacramentos 126. O tempo da Igreja é o tempo da Pa­
lavra 127. Deve-se pois dar à missão profética da Igreja a
mesma atenção dada à sua missão sacerdotal e ao seu poder
de jurisdição.
A pregação atual da Igreja sendo a continuação da
pregação apostólica, é nessa primeira pregação que se pro­
cura o sentido da pregação. O estudo dos Atos será pois o
objeto privilegiado da reflexão teológica sobre a prega­
ção 128. Como observa o P. Grasso, o quérigma primitivo,
qual se percebe nos Atos, deve ser a norma para definir a
pregação atual. Afinal, os próprios Evangelhos nada mais
são que o desenvolvimento do quérigma primitivo e toda a
pregação da Igreja consiste apenas em explicar e aplicar às
sucessivas gerações os dados essenciais do quérigma. No
quérigma primitivo encontramos, como que em seu estado

125 Cfr., por exemplo, Parole de Dieu et liturgie (“Lex Orandi”, Paris,
1958); La Parole de Dieu en Jésus-Christ (“Cahiers de l’actualité réligieuse”,
Paris, 1961).
126 Z. Alszeghy e M. Flick, “Il problema teologico della predica-
zione”, Gregorianum, 40 (1959): 672-676.
127 J. Mouroux, Le Mystère du temps (Paris, 1962), pp. 196-204.
128 Por exemplo: A. Rétif, Toi au Christ et mission (Paris, 1953);
J. R. Geiselmann, Jésus der Christus, Die Urform des apostolischen
Kerygmas als Norm unserer Verkündigung und Théologie von Jesus
Christus (Stuttgart, 1951); R. Asting, Die Verkündigung des Wortes
Gottes im Urchristentum dargestellt an den Bergriffen “Wort Gottes”,
“Evangelium”, und “Zeugnis” (Stuttgart, 1939); R. Koch, “Die Ver­
kündigung des Wortes Gottes in der Urkirche”, Anima, 10, (1955), pp.
256-265; Id., “Témoignage d’après les Actes”. Masses ouvières (abril,
1957), pp. 16-35; (junho 1957), pp. 4-23; J. Gewiess, Die Drapostolische
Heilsverkündigung nach der Apostelgeschichte (Breslau, 1939); H. Traub,
Botschaft und Geschichte (Zürich, 1954); N. Brox, Zeuge und Martyrer,
Dntersuchungen zur früchristlichen Zeugnis-Terminologie (München, 1961).
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 263

puro, a essência da pregação, na sua meta fundamental de


anunciar o desígnio salvifico de Deus, realizado no Cristo
e pelo Cristo129. “A pregação, observa o P. Liégé, deve re­
produzir na medida do possível as próprias formas nas
quais Deus se revelou” 18°.
Tendo por base essa aproximação entre a pregação
atual e a pregação apostólica, podemos reconhecer que a
pregação deve ter as seguintes características: a) Deve ser
histórico-bíblica, isto é, centrada na história da salvação e
na Escritura que contém essa história. O quérigma pri­
mitivo não se apresenta como uma metafísica superior que
viesse responder às questões da inteligência humana. Apre­
senta-se como uma história sagrada. Sendo a pregação o
anúncio da salvação histórica operada pelo Cristo, deve res­
peitar a estrutura orgânica dessa história.
b) Deve ser cristocêntrica, como o próprio plano da
salvação. A pregação deve seguir mais uma ordem con­
cêntrica do que uma ordem linear; cada mistério deve levar
ao Cristo ou dele proceder.
c) Deve ser pascal, pois que, no conjunto dos misté­
rios do Cristo, o mais importante é o mistério da ressur­
reição. É propriamente a ressurreição que faz o Evangelho
ser uma Boa-nova.
d) Deve ser eclesial, não simplesmente porque o mi­
nistério da pregação foi confiado à Igreja, mas também por­
que a história da salvação continua na Igreja, que trabalha
na edificação do Corpo do Cristo.
e) Deve ser liturgica, uma vez que a salvação, anun­
ciada pelo quérigma e explicada pela catequese, se realiza na
liturgia, nos sacramentos, principalmente no batismo e na
eucaristia. É principalmente na missa que a pregação realiza
plenamente sua definição de palavra sagrada, viva e atual:
toda a primeira parte da missa é uma liturgia da palavra,
a proclamação na Igreja da mensagem de salvação 131.
f) Deve ser escatológica, deve apresentar a palavra

129 D. Grasso, “Il kérigma e la predicazione”, Gregorianum, 41


(1960): 439-444.
130 A. Liégé, “Le ministère de la parole: du kérygme à la catéchèse”,
em La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Casterman, 1961), p. 170.
131 Parole de Dieu et liturgie, p. 181; J. Gelineau, “L’annonce de la
264 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

como a palavra do Deus vivo que convida a uma opção de­


cisiva, que compromete a sorte final do homem.
g) Deve ser um testemunho, deve mostrar na vida
do pregador que o Evangelho é capaz de transformar a exis­
tência humana 132.
Principalmente três problemas prendem a atenção dos
teólogos da pregação. O primeiro é o da causalidade que
compete a Deus e ao pregador. A maioria afirma que a
causa principal da pregação é Deus. O pregador seria
a causa instrumental, posto que a pregação estabelece
um diálogo entre Deus e o homem pela instrumentalidade
da Igreja133. O segundo problema diz respeito às formas
da pregação. Alguns, como o P. Liégé, preferem uma di­
visão bipartida: quérigma e catequese134. Outros, como o
P. Grasso, apresentam uma divisão tripartida: quérigma ou
pregação missionária, catequese ou iniciação cristã, homília
ou pregação litúrgica na assembléia cristã135. O terceiro
problema, ainda muito debatido, refere-se à eficácia da pre­
gação da Igreja, que prolonga a pregação apostólica 136. Se­
gundo alguns, a pregação seria uma ocasião para a infusão da
graça, à maneira como a infusão da alma está unida infali­
velmente à geração do corpo humano 137. Segundo outros, a
pregação, à maneira dos sacramentos, produz a graça ex
opere operantis 138. Outros afirmam que age, na ordem das
graças atuais, ex opere operato 139. Outros, finalmente, fa­
lam claramente de uma sacramentalidade da pregação, eviden-

parole de Dieu dans le mystère du culte”, em: La Parole de Dieu en


Jésus-Christ, pp. 202-209.
132 D. Grasso, “Il kerigma e la predicazione”, Gregorianum, 41
(1960): 445. Cfr. Id., L’annunzio della Salvezza (Napoli, 1965).
133 Fundamentam sua afirmação na Escritura.
134 A. Liégé, “Le ministère de la parole: du kérygme à la catéchèse”,
em: La Parole de Dieu en Jésus-Christ, pp. 170-184.
135 D. Grasso, “EvangeÚzzazione, Catechesi, Omilia”, Gregorianum,
42 (1961): 242-268.
136 Sobre o problema em geral, cfr.: Z. Alszeghy e M. Flick, “Il
problema teologico della predicazione”, Gregorianum, 40 (1959): 671-744;
C. Davis, “The Theology of Preaching”, The Clergy Review, 45 (1960):
524-545.
137 V. Schurr, Wie heute predigen (Stuttgart, 1949).
138 L. Agustoni, “Das Wort Gottes als kultisches Wort”, Anima,
10 (1955): 272-284.
139 J. Betz, “Wort und Sakrament. Versuch einer dogmatischer
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 265

temente sem negar a diferença entre sacramentos e prega­


ção 14°. E. Schillebeeckx observa que sendo a palavra da
Igreja a palavra do Cristo na sua expressão eclesial, — do
mesmo modo que os sacramentos são a forma eclesial dos
atos salvíficos do Cristo —, essa palavra é também intrin-
secamente eficaz. “A graça não é dada por ocasião desse
ministério, mas por esse próprio ministério” 141. Na pala­
vra da Igreja o Cristo está presente e atuante como a pa­
lavra que convida para a fé. Ou seja, de “um modo
que é. .. totalmente diverso da eficácia do sacramento ri­
tual que supõe a fé, ainda que em ambos os casos. .. esteja
presente a estrutura sacramental” 142.
O convite para a fé, não perde sua eficácia pelo fato
de estar encarnada na palavra da Igreja. A palavra da pre­
gação é, pois, um dos casos da estrutura sacramental da
Igreja. Vê-se, pois, que para definir a pregação foi preciso
aprofundar o tema da palavra de Deus. Se de fato a pre­
gação é a transmissão da palavra de Deus, não seria pos­
sível refletir sobre a pregação sem uma referência à reve­
lação que foi a primeira notificação do desígnio salvifico.
A elaboração de uma teologia da pregação teve como conse-
qüência normal uma renovação da teologia da revelação.
Quanto ao essencial, as preocupações dessa teologia coinci­
dem com as da teologia querigmática. Ela também insiste
no caráter histórico, cristocêntrico, salvifico, dinâmico da
revelação. Sua atenção prendeu-se principalmente à eficá­
cia da palavra de Deus.

7. Desenvolvimento do dogma

Também o problema do desenvolvimento do dogma


levou os teólogos a se questionarem quanto à noção de re-

Verhãltnisbestimmung”, Verkündigung und Glaube (Freiburg, i. Br., 1958),


pp. 76-99.
140 O. Semmelroth, “Christliche Existenz und Gottes Wort”, Geist
und Leben, 31, (1958): 245-256; Id., Wirkendes Wort (Frankfurt, 1962);
E. Schillebeeckx, “Parole et sacrement dans l’Église”, Lumière et Vie,
9, janeiro-março 1960): 32-39.
141 E. Schillebeeckx, "Parole et sacrement dans l’Église”, Lumière
et Vie, 9 (janeiro-março 1960): 33.
«Z Ibid., 36.
266 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

velação. A compreensão e a elaboração de uma teoria desse


enriquecimento do objeto da fé, que a Igreja descreve como
uma passagem do implícito ao explícito, do obscuro ao
claro, tornam-se mais ou menos fáceis conforme a idéia
que se tem da revelação. Esse aspecto do problema não
passou despercebido aos teólogos católicos. O P. Hugueny
já observava que, para compreender as leis e as caracterís­
ticas do desenvolvimento dogmático, era essencial “ter idéia
exata do fato da revelação que deu ao mundo a verdade
sobrenatural, cujo tesouro a tradição conserva e faz fruti­
ficar” 143. O P. De Lubac também insiste na necessidade de
se aprofundar a noção de revelação 144. Realmente, a maio­
ria dos autores que tratam do dogma e de seu desenvolvi­
mento (C. Dillenschneider, C. Journet, H. Delesty, E. Dhanis,
C. Pozo, G. Thils, C. Boyer, H. de Lubac, D. Charlier, F.
Marin-Sola, H. Simonin, R. Draguet, F. Taymans, J. Lebre­
ton, L. De Grandmaison, A. Gardeil e outros) falam tam­
bém sobre a revelação, às vezes, porém, em termos di­
ferentes.
Assim, por exemplo, o P. de Lubac 145. Observa ele que,
nesta questão do desenvolvimento do dogma, o nó do pro­
blema está numa idéia exata da revelação, que é o ponto
de partida desse desenvolvimento. Ora, “o conteúdo da
revelação, em sua forma primeira e em sua integridade sub­
sistente, não pode ser, nem exata nem suficientemente, de­
signada como uma série de enunciáveis” 146. “Seria ilegíti­
mo. . . acreditar. . . que a revelação foi feita sem um nexo
intrínseco com a realidade una e total do Cristo, dada como

143 E. Huguny, Critique et Catholique, vol. II, Apologie des dogmes


(Paris, 1924), p. 37.
144 H. de Lubac, “Bulletin de théologie fondamentale. Le problème
du développement du dogme”, Recherches de science religieuse, 35
(1948): 153.
145 Λ ocasião próxima para essa exposição sobre a revelação do P.
de Lubac foi um artigo do P. Boyer, publicado no Gregorianum, 21
(1940): 255-266, com o título: Qu’est-ce que la théologie? Réflexions
sur une controverse récente”.
1* “Le contenu de la révélation, à le prendre sous sa forme première
et dans son intégrité subsistante, n’est ni exactement ni suffisament dé­
signé comme une série d’énonciables”, H. de Lubac, "Bulletin de théolo­
gie fondamentale. Le problème du développement du dogme”, Recherches
de sc. rel., 35 (1948): 154.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 267

um simples formulário, como uma série de proposições desli­


gadas desse mistério único e, portanto, desconexas entre
si, como se fossem simplesmente premissas para nossos ra­
ciocínios posteriores” 147. “O caso da Verdade revelada é
único” 148.
Depois dessas justas observações, o P. de Lubac expõe
sua maneira de entender a revelação. Segundo ele, o mais
importante na economia cristã “é a ação redentora; é o
dom que Deus de si mesmo nos faz em seu Filho; é a rea­
lização desse grande desígnio oculto em Deus desde o prin­
cípio e agora revelado” 149, ou seja, a vocação de todos os
homens à vida eterna pelo Cristo e no Cristo. Ao mesmo
tempo que a ação, é fundamental, a “revelação de tudo isso,
isto é: a manifestação dessa ação em sua realidade e no seu
sentido de dom-de-salvação-que-realiza-um-desígnio-salvífico.
Em Jesus Cristo coincidem: realidade revelada e ação reve­
ladora, dom e revelação do dom. O Cristo é ao mesmo
tempo o mistério e a revelação do mistério, o Todo da re­
velação e o Todo do dogma 15°. Nesse Todo podemos operar
divisões e distinguir “verdades particulares enunciadas em
proposições separadas, que se referem respectivamente à Trin­
dade, ao Verbo encarnado, ao batismo, à graça etc.. . Abs­
tração legítima e necessária. . ., contanto que seja cons­
ciente e não nos leve a desconhecer o Todo concreto, cujo
conteúdo jamais poderá ser plenamente abarcado pelas pro­
posições” 151. Usando um texto de Lebreton, o P. de Lubac
diz ainda mais claramente que, no princípio, a adesão ao
Cristo se apresentou como uma “percepção totalmente con­
creta e viva”, e que inicialmente muitos dogmas permane­
ciam “latentes na riqueza dessa percepção inicial” 152. “Em
Jesus Cristo, tudo nos foi dado e revelado de uma só vez... ;
147 “Serait illégitime... de croire... que la révélation nous a été
faite sans lien intrinsèque avec la réalité une et totale du Christ, qu’elle
nous a été livrée comme un simples formulaire, en une série de propo­
sitions détachés de ce mystère unique et par lá séparées les unes des
autres, telles des majeures toutes prêtes pour nos raisonnements futurs”,
(Ibid., 155).
Ibid., 156.
m* Ibid., 156.
i50 Ibid., 156-157.
«i Ibid., 157.
i» Ibid., 155.
268 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

conseqüentemente, todas as explicações posteriores, seja qual


for o seu teor e o seu modo, nada mais serão que o trocar
em miúdos um tesouro já possuído como um todo. Tudo
já estava contido real e atualmente num estado superior
de conhecimento e não apenas contido em princípios e pre­
missas” 153. O P. de Lubac apresenta essas idéias como
sugestões capazes de clarear o difícil problema do desen­
volvimento dogmático e não como teoria definitivamente
delineada.
Se bem o compreendemos, o P. de Lubac coloca em
primeiro plano na revelação a própria realidade do misté­
rio do Cristo. Esse Todo concreto da fé é objeto de uma
apreensão global, intuitiva, viva: estado superior de conhe­
cimento que “real e atuante” pré-contém o dogma com
toda a riqueza de seu desenvolvimento posterior.
Relativamente a essa primeira percepção, a necessária
expressão conceptual, com suas noções e proposições, seria
como que a revelação num segundo tempo. Sendo assim,
o desenvolvimento dogmático deveria ser entendido não
como um “desdobramento infinito de conclusões a partir de
suas premissas” 154. Seria antes como que uma mudança de
registro: da intuição para a conceptualização. A percepção
inicial, ainda global, vai sendo detalhada em verdades
particulares e em fórmulas cada vez mais precisas; sempre,
porém, referindo-se à verdade normativa do próprio misté­
rio 155, percebido num tipo superior de conhecimento dog­
mático 156.
É fato que o Todo da revelação, principalmente na
terminologia de são Paulo, é o mistério, isto é, todo o de­
sígnio salvifico concebido e querido por Deus. Concreta­
mente, na ordem da execução desse desígnio, é o Cristo. O

>53 “En Jésus-Christ, tout nous a été d’un coup, à la fois donné et
révélé... ; par conséquent, toutes les explications à venir, quelle que
soit leur teneur et quel que soit leur mode, ne seront jamais que le
monnayage en fractions plus distinctes d’un trésor déjà possédé tout en­
tier; ... tout était déjà contenu réellement, actuellement, dans un plux
haut état de connaissance, et non pas seulement dans des principes et
des prémisses” (Ibid., 157-158).
154 Ibid., 139.
155 Ibid., 148.
156 Ibid., 157.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 269

mistério, porém, enquanto revelado, isto é, manifestado


aos homens, são Paulo denomina-o Evangelho, ou seja, Boa-
-nova, mensagem de salvação (Rom 16,25; Col 1,25-26;
Ef 1,9-13 ; 3,5-6 ), ou então palavra (Col 1,25-26; ITes 1,
6). Os homens chegam ao mistério acolhendo a palavra
(Rom 10,16; ICor 15,11; Ef 1,13) e obedecendo ao Evan­
gelho (Rom 1,5; 16,26) sob a ação da graça que ilumina
(2Cor 4,5-6). O Cristo, ou o mistério, é o objeto da fé,
enquanto apresentado à consciência dos fiéis pelo teste­
munho apostólico e pela pregação da Igreja. O mistério
(realidade) é sem dúvida o primeiro na ordem ontológica;
na ordem, porém, do conhecimento, na ordem da revelação, o
primeiro é o testemunho apostólico. É o Evangelho (que
se refere ao Cristo e ao seu mistério ) que é pregado e que é
aceito pela fé (Rom 10,4-17). Pela fé aderimos ao teste­
munho e pelo testemunho, à realidade por ele designada.
Julgamos importante fazer uma distinção clara entre
a situação dos apóstolos e a da Igreja. A dos apóstolos
é única e privilegiada. Só eles viram e ouviram o Cristo,
antes e depois de sua ressurreição; só eles receberam a mis­
são de atestar a realidade dos fatos e sua significação, cujo
sentido e alcance foram longamente explicados pelo Cristo
e posteriormente compreendidos sob o Espírito. A revela­
ção cristã comporta necessariamente duas coisas: primeira,
a realidade da pregação e da salvação realizada pelo Cristo;
segunda, o testemunho dado pelos apóstolos em favor de
Cristo. Não podemos chegar à realidade do Cristo se
não pelo testemunho apostólico ( IJo 1,1-3). Não conhece­
mos outro Cristo além daquele que foi pregado e atestado
pelos apóstolos. Somente pela fé nesse testemunho pode­
mos participar na sua experiência do Verbo de vida. Nosso
conhecimento do Cristo tem, pois, no depoimento das teste­
munhas privilegiadas o seu meio de comunicação e a sua
norma. É evidente que nesse testemunho nem tudo tem
a mesma clareza, nem a mesma precisão nem o mesmo realce.
No depoimento apostólico, além de um ensinamento mais
explícito, existe todo um conjunto de percepções intuitivas,
de idéias ainda não bem claras neles produzidas pelo en­
contro com Cristo. Idéias que eles transmitiram à Igreja
270 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

ainda como indícios, gérmens, oralmente, por escrito, ou


como costumes e práticas. Permanece, contudo, o fato de
atingirmos o Cristo em sua realidade somente pela mediação
dos sinais e dos julgamentos que se prendem à palavra dos
apóstolos e por eles deixados na memória da Igreja. É esse
testemunho apóstolico, esse depoimento das testemunhas,
considerado concretamente, que forma o ponto de partida
do desenvolvimento dogmático. É esse testemunho que a
Igreja assimila, compreende cada vez mais em todas as suas
implicações e exprime em termos cada vez mais claros e
precisos. Ela o faz graças a uma força de penetração que
não depende apenas da lógica e da dialética, mas também
da ação do Espírito que a ilumina. Se não se fazem essas
distinções há o perigo de ambigüidade desde o princípio.
O P. de Lubac percebeu muito bem que o dogma
deve poder desenvolver-se para além dos limites de uma
operação puramente lógica ou dialética. Apoiando-se numa
tradição já vigorosa, de Newman, Gardeil, Bainvel, de
Grandmaison, Lebreton, ele demonstrou claramente que de­
vemos levar em conta um elemento supraconceptual, que
se situa para além da dedução puramente lógica. Quando
trata, porém, da teoria desse desenvolvimento, sua exposição
não dissipa inteiramente, a nosso modo de ver, a ambigüi­
dade da qual falamos.

8. Teologia da revelação e da fé

Se é verdade que entre os católicos a teologia da re­


velação está um tanto em atraso, não se deve contudo exa­
gerar a gravidade do fato. Existe essa teologia, .mas sua
presença é menos percebida por estarem seus elementos dis­
persos nos diversos tratados: De Trinitate, De Verbo In­
carnato, De Deo Uno, De Ecclesia, De Fide, De Traditione,
sem esquecermos o De Revelatione. Também há entre os
católicos certo número de monografias explícitas sobre a
revelação, principalmente as de H. Niebecker 157, R. Guar-

157 H. Niebecker, wesen und Wirklichkeit der übernatürlichen Ojfen-


barung (Freiburg, 1940).
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 271

dini158, L. M. DewaiUy15’, W. Bulst160, K. Rahner161, D.


Barsotti162. A esses ensaios devemos acrescentar os trabalhos
coletivos sobre o tema geral da Palavra de Deus 163.
Essa teologia insiste primeiramente sobre o caráter es­
pecífico da revelação cristã. Não se trata de uma revelação
qualquer, gnose grega ou conhecimento hermético das reli­
giões de mistérios. Trata-se de uma revelação de um tipo
absolutamente único, que foge a toda a previsão ou dedu­
ção humana. Para sabermos o que é a revelação, é preciso
ouvir a própria revelação. Uma teologia da revelação deve
basear-se nos dados da Escritura 164. E já que a Escritura
não tem um termo técnico para traduzir a idéia de reve­
lação, e apela para diversos vocábulos, o único meio de
chegarmos à realidade da revelação é o caminho da fenomeno-
logia. É o caminho seguido por H. Niebecker, e W. Bulst
descreve as teofanias concedidas aos patriarcas do Antigo Tes­
tamento, as visões proféticas, cuja objetividade e modalidade
ele estuda longamente 165. Passando ao Novo Testamento, pro­
cura evidenciar os traços característicos do conceito de re­
velação nos Evangelhos Sinóticos, em são Paulo, em são

158 R. Guardini, Die Offenbarung, ihr Wesen und ihre Formen


(Würzburg, 1940 ).
159 L.-M. Dewailly, Jésus-Christ, Parole de Dieu (Paris, 1945).
160 W. Bulst, Offenbarung, Biblischer un Theologischer Begriff (Düs­
seldorf, 1960).
161 K. Rahner, Horer des Wortes (München, 1941).
162 D. Barsotti, Il Mistero cristiano e la Parola di Dio (Firenze,
1954).
163 Parole de Dieu et liturgie (“Lex Orandi”, 25, Paris 1958); La
Parole de Dieu en Jésus-Christ (“Cahiers de l’actualité religieuse”, 15,
Paris 1961). Esta obra contém artigos excelentes sobre o tema da Pa­
lavra de Deus enquanto revelação. Principalmente os de Λ. Léonard,
sobre a urgência de uma teologia da revelação (pp. 11-32); de C. Larhcer,
sobre a revelação no Antigo Testamento (pp. 35-67); de ,T. Dupont, sobre
a palavra de Deus segundo são Paulo (pp. 68-84); de J. Giblet, sobre a
teologia joanina do Logos (pp. 85-119); de L. Charlier, sobre o Cristo
Palavra de Deus (pp. 123-139). A segunda parte da obra estuda mais
diretamente o problema da pregação da palavra de Deus. Para uma
análise dos diversos artigos, cfr. D. Grasso, “Nuovi apporti alia teologia
delia predicazione”, Gregorianum, 44 (1963): 92-95; E. Fortin, Sciences
Ecclésiastiques, 15 (1963): 141-144.
164 W. Bulst, Offenbarung, pp. 15-16; R. Guardini, Die Offenba­
rung, pp. 118ss.
165 H. Niebecker, Wesen und Wirklichkeit der übernatürlichen
Offenbarung, pp. 59-9.
272 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

João, nos Atos dos Apóstolos 166. W. Bulst e R. Guardini,


para manter fidelidade à Escritura, falam de uma tríplice for­
ma de manifestação de Deus167: a) as manifestações do agir
divino (Tatoffenbarung), que se traduzem na criação, nos
grandes acontecimentos salvíficos do Antigo Testamento e
nos milagres que são os atos de poder de Cristo; b) as
manifestações visíveis de Deus (Schauoffenbarung), que
são as teofanias, o anjo de Javé, a glória de Javé, as visões
proféticas, a encarnação do Filho; c) manifestações divi­
nas através de palavras (Wortoffenbarung), principal for­
ma de manifestação divina, a que dá às manifestações de
poder e às visões todo o seu pleno sentido 168. É também
através das palavras das testemunhas que a revelação-ação
e a revelação-visão superam os limites do espaço e do tempo
e continuam a agir. W. Bulst termina essa pesquisa feno-
menológica propondo a seguinte definição de revelação: “A
revelação sobrenatural é Deus que, por sua graça e por uma
iniciativa pessoal, tendo um desígnio de salvação, abre aos
homens a intimidade de seu ser. Isso no contexto da his­
tória humana, numa ação de caráter sobrenatural e divino,
numa manifestação visível, mas principalmente interpretan­
do e englobando essa ação e essa manifestação visível no tes­
temunho de sua palavra. É um acontecimento que, esboçado
em Israel e definitivamente realizado em Jesus Cristo, nos é
apresentado na palavra e na ação da Igreja. Acontecimento
agora ainda velado sob muitos aspectos (e justamente por
isso recebido na fé), mas ordenado à visão imediata de Deus
na eternidade” 169. Numa palavra, a revelação é o Cristo170.
O Cristo está entre nós como a revelação em pessoa;

Ibid., 112-172.
167 W. Bulst, Offenbarung, pp. 70-86.
we Ibid., 90-91.
169 “Die übernatürliche Offenbarung ist die gnadenhafte, personale,
heilschaffende Selbschliessung Gottes an den Menschen im Raun seiner
Geschichte; und zwar in übernatürlichem gõttlichem Tun, in sichtbarer
Erscheinung und vor allem, jene interpretierend und umfassend, in seinem
bezeugenden Wort; vorbereitend geschehen in Israel, endgülting in Chris­
tus Jesus, uns gegenwãrtig im Wort und Wirken der Kirche; hienieden
noch in vielfâltiger Verhüllung (datum vom Meschen aufzunehmen im
Glauben), aber hingeordnet auf die unmittelbare Gottesschau der Ewgkeit”
(W. Bulst, Offenbarung, p. 111).
ιό Ibid., 113.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 273

nele tudo nos é dado e revelado. Essa a afirmação repetida


e sublinhada por muitíssimos teólogos, principalmente por
H. de Lubac, K. Rahner, L. M. Dewailly, J. Mouroux, R.
Guardini, H. Niebecker, G. Sõhngen, H. U. Von Baltha­
sar 171. Todos insistem na necessidade de relacionar a reve­
lação com a Pessoa do Cristo. Se Deus, para realizar a re­
velação, escolheu uma economia de encarnação, todas as
dimensões do homem foram assumidas para servir de ex­
pressão à pessoa do Filho: gestos, ações, comportamento,
tanto quanto as palavras. Por isso exigem da teologia da
revelação uma fidelidade maior ao realismo da encarnação,
uma fidelidade levada às últimas conseqüências. Contudo,
pouco procuram demonstrar como o Cristo, concretamente,
para se revelar e revelar o Pai, usou todos os caminhos e to­
dos os recursos da encarnação 17Z. Pouco também estudam os
graves problemas levantados pela escolha de uma tal econo­
mia, principalmente o problema do aprisionamento da verda­
de divina numa proposição humana, sendo que aqui o misté­
rio da encarnação se complica com o problema da analogia
natural e da analogia revelada 173.
Os teólogos da revelação sublinham unanimemente o ca­
ráter histórico da revelação. Deus vem, intervém na histó­
ria humana por uma série de acontecimentos que culminam
no acontecimento central da encarnação. É no interior de
nossa história que Deus nos vem interpelar. Essas inter­
venções por si mesmas já constituem uma história, a histó­
ria da salvação, história que dá sentido a qualquer outra
história 174. Enfim, a história não somente é o lugar da re-

171 H. de Lubac, “Le problème du éveloppement du dogme”,


Rech, de sc. rel., 35 (1948): 157-158; K. Rahner, Écrits théologiques,
t. I (trad. J. Y. Calvez et M. Rondet, Bruges, 1959): p. 164; L.-M.
Dewailly, Jésus-Christ, Parole de Dieu, p. 28; J. Mouroux, L’expérience
chrétienne (Paris, 1952), p. 193; R. Guardini, Essence du christianisme
(trad. Lorson, Paris, 1947), p. 74; H. Niebecker, Wesen und Wirklichkeit
der übernatürlichen Offenbarung, p. 155; G. Soehngen, Die Einheit in
der Théologie (Müncher, 1952), pp. 316, 354ss, 359; H. Urs von Baltha­
sar, La théologie de l’histoire (Paris, 1955), p. 193.
173 O assunto é estudado por: C. de Moré-Pontgibaud, Du fini à
l’infini (Paris, 1957), H. Bouillard, Kal Barth (3 vol., Paris, 1957), t. 3:
190-217; Y. Congar, art. “Théologie”, DTC 15 (1): col. 473-474.
174 W. Bulst, Offenbarung, p. 59-62; . M. Schmaus, Dommatica
Cattolica (Roma, 1959), pp. 18-24.
274 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

velação, não somente a revelação faz história e tem


sua história, mas a própria história, divinamente in­
terpretada, é o médium da revelação. A revelação pro­
gride, aprofunda-se, mas sempre em relação com os acon­
tecimentos da história. Também aqui, ao falar da economia
da encarnação, muitas vezes a teologia se limita a afirma­
ções de ordem geral175. Seria preciso definir mais precisa­
mente as múltiplas relações entre história e revelação; seria
preciso examinar as implicações duma revelação a tal ponto
incorporada à história, implicações que afetam a sua natu­
reza e seu progresso; seria preciso considerar particularmente
a situação difícil, dramática, duma revelação que se pretende
imutável e que, contudo, imerge na história e deve atingir
os homens de todos os tempos.
Outra característica posta em evidência pela teologia
da revelação, e esta mais bem estudada, é o caráter inter­
pessoal da revelação. Esta é uma iniciativa pessoal do Deus
vivo e a manifestação de seu mistério pessoal. Deus estabe­
lece com o homem relações de pessoa a pessoa: o Eu divino
interpela o eu do homem 176. A revelação é personalizada e
personalizante 177. Antes de revelar qualquer coisa, Deus re­
vela-se a si mesmo em seu mistério: Deus tem um nome,
fala, podemos invocá-lo e ele responde; manifesta suas von­
tades, suas exigências, mas também sua vida íntima; faz
aliança com o homem, oferece-lhe sua amizade, seu amor, sua
vida 178. No Cristo, esse Deus vivo está entre nós: fala, prega,
ensina, testemunha. Ouviu Moisés a voz de Javé; João
atesta, do Verbo de vida, o que ele pôde ver, ouvir e tocar

175 Ativa sobre este ponto a reflexão protéstante; cfr., por exemplo:
O. Cullmann, Christ et le temps (Neuchâtel, 1957); W. Pannenberg, R.
Rendtorf, T. Rendtorf, U. Wilkens, Offenbarung als Geschichte
(Gottingen, 1961); W. Eichrodt, “Offenbarung und Geschichte im A. T.”,
Teol. Zeitschrift, 4 (1948): 321-331; G. von Rad, “Grundprobleme einer
biblischen Théologie des A. T.”, Theol. Lit. Zeitung, 68 (1943): 225-234;
Id., “Theologische Geschichte im A. T.”, Theol. Zeischrift, 4 (1948):
161ss.
176 J. Alfaro, “Persona y gracia”, Gregorianum, 41 (1960): 11; R.
Aubert, “Questioni attuali intorno all’atto di Fede”, Problemi e Orienta-
menti di Teologia dommatica (2 vol., Milano, 1957), t. 2:672.
177 W. Bulst, Offenbarung, pp. 63-65; A. Lang, Die Sendung
Christi (München, 1957), pp. 40-41.
us w Bulst, Offenbarung, pp. 63-68.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 275

(ljo l,lss). De sua parte, o homem ouve a palavra de


Deus, entrega-se-lhe pela fé, ou resiste e obstina-se. Mos­
tra-se assim a revelação como um longo e patético diálogo de
Deus com sua criatura. O inaudito nesse diálogo é que um
dos interlocutores é o Onipotente, o Absoluto, o três ve­
zes Santo; o outro, é sua criatura, a obra de suas mãos.
O trágico é que a criatura pode fechar-se à Palavra do amor
infinito que se lhe oferece 179.
Os trabalhos recentes e numerosos sobre a filosofia e
a psicologia da palavra 180 e do testemunho 181 muito con­
tribuíram para a compreensão da revelação apresentada pela
Escritura nas categorias de palavra e de testemunho. Na
análise da palavra deixa-se claro, além de seu aspecto in­
terpessoal e de interpelação, também o aspecto de doação,
característico da palavra que se torna, em sua forma mais
nobre, manifestação do mistério da consciência. Contudo,
a analogia da palavra humana não deve fazer esquecer o
que há de característico na palavra de Deus: o Dabar di­
vino é animado pelo próprio poder de Deus. A palavra
divina realiza o que ela significa; anuncia e realiza a sal­
vação, a reconciliação 182. Flexível e sutil, insinua-se até o
espírito e o coração do homem: ao mesmo tempo que ele
nos solicita pelo testemunho dos profetas, do Cristo, dos
apóstolos e da Igreja, Deus age interiormente por sua graça
e torna assimilável para a alma a mensagem externamente
ouvida. A ação interior da graça e a proposição exterior da
mensagem são as duas dimensões da mesma palavra divina:
palavra dotada de uma eficácia única, justamente por ser
palavra de Deus 183.
Finalmente, importa notar a importante contribuição

179 K. Rahner, Écrits théologiques, t. I: 59-60.


180 Por exemplo: K. Bühler, H. Noack, H. Heidegger, G. Siewerth,
M. Merlau-Ponty, M. Nédoncelle, L. Lavelle, G. Gusdorf, E. Ver-
donc, e outros.
181 J. Guitton, Le problème de Jésus et les fondements du té­
moignage chrétien (Paris, 1950), pp. 147-187.
182 W. Bulst, Offenbarung, pp. 18-19; J. L. McKenzie, “The Word of
God in the Old Testament”, Theological Studies, 21 (1960): 183-206.
183 Outros aspectos, se bem que assinalados, são tratados mais breve­
mente, por exemplo, o aspecto edesial e o escatológico. Cfr. W. Bulst,
Offenbarung, pp. 97-101, 105-106.
276 . A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

da teologia da fé para a teologia da revelação. Sendo reve­


lação e fé noções correlatas, o esforço no intuito de per­
ceber mais claramente os componentes de uma levou natu­
ralmente a um estudo mais atento da outra. O P. Alfaro, den­
tre os teólogos da fé, é, sem dúvida, um dos que mais
estudaram as relações que unem fé e revelação. Assim como
a revelação é o primeiro passo de Deus que livremente vem
ao encontro do homem, assim também a fé é o primeiro
passo do homem que livremente se dirige para Deus. O
P. Alfaro insiste no aspecto gratuito, interpessoal, salvifico
e sobrenatural da revelação. Conforme ele, a razão última
da sobrenaturalidade da revelação está em Deus que se
revela, vencer a distância infinita de sua Transcendência,
entrar num relacionamento de amizade com sua criatura,
iniciá-la nos mistérios de sua vida íntima, principalmente
no mistério da Trindade, e começar desde agora uma comu­
nicação de si mesmo que deve completar-se na visão plena.
Essa iniciativa é pura gratuidade 184. O P. Demann 185 e o
P. Alfaro 186 mostram como a fé, no Antigo e no Novo Tes­
tamento, recebe uma acentuação diferente, justamente de­
vido a acentuação diferente que é dada à própria revelação.
A volta à Escritura e aos Padres da Igreja revitalizou
a teologia da revelação. Essa teologia distingue e equilibra
melhor a apresentação dos diversos aspectos da revelação:
a revelação como agir divino, como acontecimento da his­
tória. e como história, como conhecimento e como mensagem,
como encontro com o Deus vivo. É sensível ao progresso,
à pedagogia e à economia da revelação, aos caminhos di­
versos e múltiplos através dos quais se realiza. Insiste na
eficácia singular da palavra de Deus e na comunhão íntima
que estabelece com o Deus vivo. Quanto ao dado revelado,
essa teologia insiste na realidade revelada, no próprio mis­
tério, na Pessoa que se revela, e não apenas nos sinais, con­
ceitos, enunciados, proposições que permitem ao espírito
apreender o mistério ou a pessoa. Finalmente, procura sa-

184 J. Alfaro Adnotationes in tractatum de Virtutibus (Romae, 1959).


185 P. Demann, “Foi juive et foi chrétienne” Cahiers Sioniens 6
(1952): 89-103.
186 J. Alfaro, “Fides in terminologia bíblica”, Gregorianum, 42
(1961): 504-505.
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO. NO SÉCULO XX 277

lientar o papel do Cristo como autor, centro e objeto da


revelação. A teologia trabalha procurando maior integração
de todos esses elementos conhecidos ou redescobertos.

CONCLUSÕES

1. Problemática

O foco da atenção dos teólogos desloca-se, ao longo


dos séculos, conforme a problemática da época.
No século XIII, interessam-se principalmente com a
revelação profética. O termo “revelação” evoca um fenôme­
no de ordem interior, uma comunicação íntima e sobrenatural
de Deus à alma. A revelação profética coloca-se entre os
carismas: é uma graça gratis data, em benefício da humani­
dade. Pouco falam da revelação pelo Cristo e pelos após­
tolos. As questões levantadas pela vinda de Cristo, exami­
nam-se em conexão com a encarnação e a redenção.
Os pós-tridentinos, continuando a falar da profecia,
que passam a examinar no contexto do De Fide, já falam
mais da revelação mediata.
A preocupação é mostrar que essa palavra exterior é
realmente palavra de Deus, pois que garantida por sinais
indubitáveis que lhe atestam a origem divina. Isso fazia-se
necessário pelos desvios do protestantismo que, cada vez
mais, se interessava exclusivamente com a Escritura e com
a palavra interior do Espírito, tendendo assim a fazer do en­
contro com a Bíblia o lugar único de uma revelação ime­
diata e individual, e a excluir o magistério eclesiástico de
qualquer papel na proposição e na interpretação da palavra
de Deus.
Antes da Renascença, o pensamento religioso olhava
principalmente para as exigências de Deus. Ao contrário, no
mundo moderno, passam ao primeiro plano as exigências
do sujeito que pensa. Segundo Spinoza e Kant, a revelação
nada mais pode ser senão um tipo de conhecimento na­
tural, pois que o homem não tem outros princípios de conhe­
cimento que suas faculdades naturais. Segundo os pro­
testantes liberais, Schleiermacher, Ritschl, Sabatier, e depois
278 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

os modernistas, a revelação é uma categoria tão universal


quanto a religião, uma experiência comum e imanente. Os
teólogos do século XIX são por isso levados a distinguir
duas ordens de revelação (natural e sobrenatural), ao afir­
mar a existência e a possibilidade de uma revelação sobrena­
tural, a insistir no caráter objetivo e doutrinai da revelação.
No sécúlo XX, sob a influência das correntes de pen­
samento contemporâneo (existencialismo, personalismo), o
que preocupa o teólogo e o simples fiel, é o encontro pessoal
do Deus vivo e pessoal. Deus revela, mas principalmente
se revela. Deus fala, mas principalmente fala para mim.
Cuida-se pois de interiorizar a revelação, de salvaguardar
seu caráter pessoal e personalizante. Há como que uma
enfatização dos elementos subjetivos e uma coisificação dos
elementos objetivos. Apresenta-se o revelado não apenas
como proposto, mas também como apreendido e possuído.
E quanto ao próprio revelado, insiste-se menos nos sinais,
conceitos e proposições que designam o mistério. A insis­
tência maior é sobre o próprio mistério e sobre a Pessoa que
revela. Há desconfiança contra certa tendência por demais
conceitualizante, que na revelação veria apenas um sistema
de proposições sobre Deus.
O teólogo do século XX, sensível à dimensão, histórica,
interessa-se principalmente com as implicações de uma rela­
ção que perpassa a história, a utiliza e transforma. Não lhe
basta conhecer o resultado da ação reveladora, ou seja, o
depositum fidei; quer também compreender a sua gênese;
quer captar a revelação em seu afloramento histórico, em
seu progresso através dos séculos, na sua economia e pe­
dagogia. Julga que a teologia da revelação deve apoiar-se
na fenomenologia e na história da revelação.

2. Pontos de encontro

Desde são Boaventura até o século XX, toda a tradição


escolástica apresenta a revelação como uma ação sobrenatural
e soberanamente livre, pela qual Deus graciosamente forne­
ce à humanidade verdades necessárias à salvação. Nesse
agir salienta-se freqüentemente a iniciativa amorosa do Pai
e o papel conjunto do Filho e do Espírito na economia con-
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 279

creta da revelação. Descreve esse agir como sendo a mani­


festação e comunicação do pensamento de Deus, manifesta­
ção de seu desígnio salvifico para com a humanidade. Se­
guindo a Escritura, os teólogos denominam essa ação palavra
de Deus aos homens. Com efeito, com essa ação dirige-se
Deus ao homem, interpela-o, comunica-lhe seu pensamento,
convida-o a uma resposta, a ser dada pela fé. Para evidenciar
o elemento formal dessa palavra, os teólogos falam em tes­
temunho divino; às vezes também, para indicar o enrique­
cimento que traz ao espírito, a designam como palavra de
ensinamento.
Essa palavra que vem de Deus é recebida no homem.
Os escolásticos do século XIII concebiam a revelação ime­
diata como uma iluminação do espírito geradora de um co­
nhecimento certo da verdade. Ato cognoscitivo, de ordem in­
telectual, que possibilita ao profeta julgar com certeza e sem
erro os elementos presentes em sua consciência. Também
a revelação apostólica realiza-se sob a influência ilumina-
dora do Espírito Santo, permitindo aos apóstolos captarem
a mensagem de Cristo no seu verdadeiro sentido.
A revelação mediata é a proposição da verdade divina
mediante legados, cuja palavra é autorizada como palavra
de Deus pelos sinais que atestam sua origem. Todos os
teólogos repetem que a revelação mediata é suficiente e
que merece plenamente o título de palavra de Deus. Notam
também constantemente a ligação entre a proposição exterior
da verdade e uma luz interior, entre uma palavra exterior
e uma palavra interior, entre uma pregação exterior e uma
iluminação interior, entre um testemunho exterior e um
testemunho interior. A palavra de Deus solicita o homem
de todos os lados: de certo modo o assedia pela pressão
exterior do discurso e dos milagres e pela atração interior
da graça.

3. Oscilações

No século XIII, os teólogos têm uma visão sintética


da revelação. Entendem por revelação o fenômeno com­
plexo que coloca o homem na posse de um conhecimento
propriamente divino. Objeto novo e luz especial proporcio-
280 A NOÇÃO DE REVELAÇÃO NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

nada a esse objeto: o conjunto do fenômeno é qualificado


como iluminação, como palavra, como revelação. O termo
“revelação” ainda não tem sentido técnico. Indica tanto
o objeto manifestado como a iluminação subjetiva. A partir
dessa indeterminação do século XIII, manifesta-se uma
tendência que leva os teólogos a definir a revelação às vezes
ex parte obiecti, às vezes ex parte potentiae, outras ain­
da ex parte obiecti et potentiae. Uma primeira corrente vê
a revelação no próprio fenômeno de iluminação interior
que abre a alma às claridades do mundo sobrenatural. Assim
Banes e Cano. Ao contrário, os jesuítas Suares e De Lugo,
reagindo contra os excessos do iluminismo protestante, reser­
vam o termo revelação à manifestação do objeto; a luz da
fé não merecería ser chamada revelação a não ser num sen­
tido amplo. Os carmelitas de Salamanca julgam que tanto
a revelação ex parte obiecti quanto a revelação ex parte
potentiae merecem igualmente ser chamadas de revelação.
No primeiro caso, é o objeto que é re-velado; no segundo,
é a potência que é re-velada. No século XIX torna-se mais
comum definir a revelação ex parte obiecti, como sendo
a manifestação ao homem das verdades da salvação, dos
segredos de Deus, do desígnio de Deus. Esse conjunto cons­
titui a doutrina revelada ou a revelação ou o objeto da fé.
Continua, porém, sendo reconhecida a necessidade de um
auxílio interior, de uma luz interior que permita ao homem
apropriar-se desse objeto.
O século XX, mais consciente da complexidade da
ação reveladora e da multiplicidade de aspectos da revelação,
oscila entre um modo de ver e outro, correndo sempre o
risco de dar preferência a um com detrimento do outro.
Revelação-realidade ou revelação-doutrina; revelação-aconte-
cimento-de-salvação ou revelação-conhecimento; revelação-
-história progressiva ou revelação-depósito imutável e definiti­
vo; revelação-ato-de-Deus ou revelação-testemunho humano;
revelação-verdade ou revelação-encontro pessoal; revelação-to-
talidade do Cristo ou revelação-multiplicidade dos mistérios
e das proposições; revelação-depósito a ser conservado ou
revelação-palavra a ser compreendida e assimilada; revela-
ção-mensagem-exterior ou revelação-palavra-interior. A teo­
logia atual não gostaria de perder qualquer um desses asptc-
TEOLOGIA DA REVELAÇÃO NO SÉCULO XX 281
» tos; quer harmonizá-los na unidade, pois a revelação é ao
mesmo tempo ação, acontecimento, história, conhecimento,
testemunho, encontro, doutrina, depósito imutável, palavra
interior. Nesse trabalho de organização e precisação, acontece
que a teologia acentua demais este ou aquele aspecto, subesti­
ma outro, reagindo contra os excessos do passado. Isso prova
que a realidade da revelação será sempre mais rica que as
construções do espírito e que a teologia deve multiplicar
, seus ângulos de visão para não ser por demais infiel a essa
I realidade.

1
quarta parte

NOÇÃO DE REVELAÇÃO
E MAGISTERIO ECLESIÁSTICO
Evidente, para qualquer um que estude os documentos
da Igreja, que os erros referentes à noção de revelação são
um fenômeno recente. Não parece que a noção tenha sido con­
testada nos primeiros séculos e durante toda a idade média.
Não encontramos nenhum anátema ou condenação que nos
levasse a supor uma negação do fato ou uma contami­
nação do conceito. As controvérsias que prendem a aten­
ção da Igreja, e cujos ecos encontramos nos concílios, refe-
rem-se principalmente à Trindade, à Encarnação, ao misté­
rio de Cristo (naturezas e pessoa), aos sacramentos, à au­
toridade do pontífice romano. Que Deus tenha falado aos
homens por Moisés e pelos profetas, depois pelo Cristo e
pelos apóstolos, ninguém pensa negá-lo ou pô-lo em dúvida.
Também a Lei, os Profetas e o Evangelho, que contêm essa
palavra, são igualmente palavra de Deus. A Igreja, que
prega a palavra divina pretende conservar íntegra a fé con­
fiada aos apóstolos, ao abrigo de qualquer contaminação e
de qualquer novidade (D 159-160) \ de qualquer germe
de erro que pudesse ser suscitado pelo espírito do mal,
que não cessa de misturar a cizânia à boa semente ( D 246 ).
Diz o segundo concilio de Constantinopla, em 553: “Nós
confessamos conservar e pregar a fé que por nosso grande
Deus e Salvador Jesus Cristo, foi dada no princípio, aos san­
tos apóstolos e foi por eles pregada em todo o mundo e que
os santos Padres — principalmente os reunidos nos quatro
santos concílios — confessaram, explicaram e confiaram às
santas igrejas”2.
1 H. Denzinger-K. Rahner, Enchiridion symbolorum, definitionum
et declarationum de rebus fidei et morum (30* edição). De agora em
diante: D.
2 “Confitemus fidem tenere et praedicare ab initio donatam a magno
Deo et Salvatore nostro Jesu Christo sanctis apostolis et ab illis in uni­
verso mundo praedicatam; quam et sancti Patres confessi sunt, et expla­
naverunt, et sanctis ecclesiis tradiderunt, et maxime qui in sanctis quatuor
synodis convenerunt” (D. 212).
286 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Na idade média, não há dúvida de que a noção de


revelação mais completa é a expressa pelo quarto concilio
de Latrão, 1215: “Esta santa Trindade. . . deu ao gê­
nero humano uma doutrina de salvação, primeiro por Moi­
sés e pelos santos profetas e por seus outros servidores,
numa sapientíssima disposição de circunstâncias. E, final­
mente, o Filho único de Deus, Jesus Cristo. . . mostrou mais
claramente o caminho da vida”3. Segundo o concilio, a
revelação é obra comum de toda a Trindade. Os mediado­
res dessa revelação, no Antigo Testamento, são Moisés e
os profetas. O que trazem ao gênero humano é uma “dou­
trina de salvação”. Em o Novo Testamento, a segunda
pessoa da Trindade, o Filho único do Pai, se encarna para
falar diretamente à humanidade e manifestar-lhe mais cla­
ramente o caminho da vida, isto é, os meios de chegar à
salvação. A finalidade da revelação é conduzir à vida eterna.
Já aparecem reunidos elementos importantes do conceito
de revelação: o autor (a Trindade); os destinatários (o
gênero humano); a finalidade (a salvação, a vida eterna);
o objeto (uma doutrina referente à salvação e aos meios
de consegui-la); o súbito progresso de uma economia à
outra pela encarnação do Filho de Deus.
Para dizer a verdade, é nos séculos XVIII e XIX
apenas que, em nome do sujeito pensante, inicialmente se
pôs em dúvida a possibilidade duma revelação sobrenatural
e depois, pouco a pouco, se reduziu a revelação a uma das
formas da experiência religiosa universal. Os princípios,
contudo, que levaram à corrupção e à dissolução do con­
ceito de revelação, já estavam agindo no protestantismo
nascente. É pois a partir deste último que continua nossa
análise. Nessa história podemos distinguir cinco períodos:
1? o do concilio de Trento que se opõe ao protestantismo;

3 Eis o texto completo: “Haec sancta Trinitas, secundum communem


essentiam individua, et secundum personales proprietates discreta, primo
per Moysen et sanctos Prophetas aliosque famulos suos, juxta ordi­
natissimam dispositionem temporum, doctrinam humano generi tribuit
salutarem. Et- tandem unigenitus Dei Filius Jesus Christus, a tota Trini­
tate communiter incarnatus, ex Maria semper Virgine Spiritus Sancti
cooperatione conceptus, verus homo factus, ex anima rationali et humana
carne compositus, una in duabus naturis persona, viam vitae manifestius
demonstravit” (D. 428-429).
NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO 287

2® o do primeiro concilio do Vaticano que se opõe ao ra-


cionalismo; 3? o do decreto Lamentabili, da encíclica Pas­
cendi e do Motu próprio Sacrorum antistitum que se opõem
ao modernismo; 4? o período contemporâneo até o segundo
concilio do Vaticano; o do segundo concilio do Vaticano.
1.

O CONCÍLIO DE TRENTO
E O PROTESTANTISMO

O protestantismo do primeiro período, mesmo sem


diretamente pôr em causa a noção de revelação, gravemente
a ameaça. Santo Tomás, no Contra Gentiles, observa que
existe um tríplice conhecimento das coisas divinas: “Pelo pri­
meiro, o homem, graças à luz natural da razão, eleva-se ao
conhecimento de Deus por meio das criaturas; pelo segun­
do, a verdade divina, que ultrapassa os limites de nossa in­
teligência, vem a nós como uma revelação... ; pelo ter­
ceiro, eleva-se o espírito à visão perfeita do que lhe foi re­
velado” \ Os Reformadores ainda aceitariam essas afirma­
ções; sua antropologia, porém, perturba essa clara visão
das coisas. Na sua Institutio christianae religionis, Calvino
admite que Deus se manifesta aos homens pelas obras de
sua criação2, acrescenta, porém, que a razão humana foi
tão gravemente ferida pela falta de Adão que essa manifes­
tação objetiva de Deus se torna inútil para nós3. Foi por
isso que Deus deu à humanidade não apenas “mestres mu­
dos”, mas também sua divina palavra4. Desde então, po­
demos chegar a Deus somente pela revelação atestada na
Escritura. Assim, dos dois tipos de conhecimento de Deus,
tradicionalmente aceitos — conhecimento natural e conheci­
mento por revelação — o primeiro é menosprezado em favor
do segundo. A teologia escolástica, que continua afirmando o
valor da razão na sua procura de Deus, sofre as conseqüências

1 S. Thomas, Summa contra Gentiles, L. IV, c. 1.


2 J. Calvinus, Institutio christianae religionis (Genevae, 1618), L.
I, c. 5, n. 2.
2 Ibid., L. I, c. 2, n. 1; L. II, c. 6, n. 1.
4 Ibid., L. I, c. 6, n. 1.

10 - Teologia da revelação
290 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

dessa ruptura de equilíbrio e cai em descrédito. Bem cedo o


protestantismo se inclina a negar valor a qualquer conheci­
mento de Deus que não seja revelação em Jesus Cristo5.
O protestantismo, ao mesmo tempo que afirma o prin­
cípio da salvação pela graça e pela fé somente, põe também
o princípio da autoridade soberana da Escritura. A regra
de fé é somente a Escritura, com a assistência individual do
Espírito, que permite captar o que é revelado e o que,
portanto, se deve crer. Testemunho do Espírito nas almas
e palavras de Deus na Escritura são inseparáveis. Só o
Espírito ilumina a palavra.
À primeira vista parece, pois, que o protestantismo
exalta a transcendência da revelação, já que suprime qual­
quer intermediário entre a palavra de Deus e a alma que
a recebe. Mas, de fato, a compromete. Pois, ao mesmo
tempo que estabelece o princípio da autoridade soberana
da Escritura, ergue-se contra a autoridade da Igreja (D 767),
seja em sua tradição, seja nas decisões atuais de seu magis­
tério. Guarda bem viva a noção da palavra de Deus,
divorciando-a, porém, de qualquer norma objetiva, arrisca-se
a cair numa inspiração incontrolável: orienta-a para o indivi­
dualismo ou para o racionalismo, seja diretamente, seja pelos
desvios do iluminismo e do pneumatismo6. Uma laicização
da noção de revelação que se mostrará cruamente com o
protestantismo liberal, mas cujo processo evolutivo já se
inicia a partir do século XVII.
Caberá ao primeiro Concilio do Vaticano reafirmar a
existência e a validade de duas ordens de conhecimento de
Deus, natural e sobrenatural (D 1785). O Concilio de
Trento limita-se a afastar o perigo mais imediato repre­
sentado por uma atenção demasiadamente exclusiva à Es­
critura, em prejuízo da Igreja e de sua tradição viva.
1. Desde o começo procura definir os caminhos pelos
quais Deus comunica sua revelação. A 12 de fevereiro de

5 J. Baillie, The Idea of Revelation in Recent Thought (London,


1956), pp. 5-9; W. Niesel, The Theology of Calvin (London, 1958,
segundo o original alemão Die Théologie Calvins, Munique, 1938), pp.
39-53. _
b L. Bouyer, Du Protestantisme à l’Église (Paris, 1954), pp. 128-129;
151-152.
0 CONCILIO DE TRENTO E O PROTESTANTISMO 291
1546, o cardeal Del Monte fez uma declaração que de­
veria orientar as discussões. Observou que nossa fé vem
da revelação divina, que nos é transmitida pela Igreja, a
qual a recebe em parte da Escritura do Antigo e do Novo
Testamento, em parte também da tradição. O ponto seguinte
a ser tratado, conclui, é o referente à Escritura e às tradi­
ções 7. Redigiu-se, pois, um decreto sobre o assunto, publi­
cado dia 8 de abril de 1546:
“O santo, ecumênico e geral concilio de Trento, legiti­
mamente reunido no Espírito Santo, sob a presidên­
cia dos mesmos três legados da Sé Apostótica, ten­
do sempre ante os olhos que, afastados os erros,
seja conservada na Igreja a pureza do Evangelho, que,
prometido anteriormente pelos profetas nas Santas Es­
crituras, foi primeiramente anunciado pelos lábios do
próprio nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que
depois o mandou anunciar a toda criatura, como fonte
de toda verdade salutar e de toda disciplina dos costu­
mes: e considerando que essa verdade e essa disciplina
estão contidas nos livros escritos e nas tradições não
escritas, que os apóstolos receberam dos lábios do pró­
prio Cristo, ou pelo Espírito foram ditadas aos pró­
prios apóstolos dos quais as recebemos transmitidas
como que de mão em mão; a exemplo dos Padres
ortodoxos, o concilio recebe e venera com a mesma
piedade, afeto e reverência, todos os livros do An­
tigo e do Novo Testamento, pois que de ambos Deus
é o autor, assim como as próprias tradições referentes
à fé e aos costumes, como ditadas ou pelo próprio Cris-

7 “Noverunt Paternitates Vestrae qualiter omnis fides nostra de re­


velatione divina est et hanc nobis traditam ab Ecclesia partim ex scripturis,
quae sunt in Veteri et Novo Testamento, partin etiam ex simplici tradi­
tione per manus. Ut itaque omnia a nobis ordine proficiscantur, post
professionem fidei a nobis factam consequens est ut scripturas sacras
probemus, deinde de traditionibus ecclesiasticis etiam disserendum” (So­
cietas Goerresiana, ed., Concilium Tridentinum. Diariorum actorum, epis­
tolarum, tractatuum nova collectio [13 vol., Freiburg, 1901-1938], 5: 7-8).
Em vez de afirmar, como del Monte, que a Igreja recebe a revelação:
partin ex scripturis..., partin... ex simplici traditione, o texto adotado
pelo concilio dirá que a revelação está contida: in libris scriptis et sine
scripto traditionibus.
292 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

to ou pelo Espírito Santo, e conservadas na Igreja ca­


tólica numa continua sucessão” 8.

Em primeiro lugar notemos que em todo esse pará­


grafo não aparece a palavra relevação. O termo que so­
bressai é Evangelho, mais concreto, mais próximo do uso
neo testamentario. A Igreja recebeu a missão de con­
servar o Evangelho em toda a sua pureza. O Evangelho
isto é, a Boa-nova ou a mensagem de salvação trazida e
realizada pelo Cristo e pregada a toda criatura. É exata­
mente esse o sentido que lhe dá o concilio que se refere
explicitamente ao final de Mateus e de Marcos: “Praedicate
Evangelium omni creaturae. Qui crediderit et baptizatus
fuerit, salvus erit” (Mc 16,15-16). O quarto concilio de
Latrão usara a expressão: doctrina salutaris. O Evangelho,
a doutrina da salvação: este o objeto proposto à nossa fé.
O texto faz três afirmações: a) o Evangelho foi-nos
dado progressivamente: anunciado primeiro pelos profetas,
promulgado depois pelo Cristo, finalmente pregado pelos
apóstolos, por ordem sua, a toda criatura. Nele está a
fonte única de toda a verdade salutar e da disciplina dos
costumes. Para marcar o caráter histórico e contínuo dessa
economia, uma emenda propunha citar o primeiro versículo
da Epístola aos hebreus9.
b) Essa verdade da salvação e essa lei para nosso
agir moral, cuja fonte única é o Evangelho, estão contidas

8 “Sacrosancta oecumenica et generalis Tridentina Synodus, in Spiritu


Sancto legittime congregata, praesidentibus in ea eisdem tribus Apostolicae
Sedis Legatis, hoc sibi perpetuo ante oculos proponens, ut sublatis errori­
bus puritas ipsa Evangelii in Ecclesia conservatur, quod promissum ante
per Prophetas in Scripturis sanctis Dominus noster Jesus Christus Dei
Filius proprio ore primum promulgavit, deinde per suos Apostolos tanquam
fontem omnis et salutaris veritatis et morum disciplinae omni creaturae
praedicari jussit: perspiciensque, hanc veritatem et disciplinam contineri
in libris scriptis et sine scripto traditionibus, quae ab ipsius Christi ore
ab Apostolis acceptae, aut ab ipsis Apostolis Spiritu Sancto dictante quasi
per manus traditae ad nos usque pervenerunt, orthodoxorum Patrum
exempla secuta, omnes libros tam Veteris quam Novi Testamenti, cum
utriusque unus Deus sit auctor, nec non traditiones ipsas, tum ad fidem,
tum ad mores pertinentes, tanquem vel oretenus a Christo, vel a Spiritu
Sancto dictatas et continua successione in Ecclesia catholica conservatas,
pari pietatis affectu ac reverentia suscipit et veneratur” (D. 783).
9 Concilium Tridentinum, 5:51.
O CONCILIO DE TRENTO E O PROTESTANTISMO 293
nos livros inspirados da Escritura e nas tradições não
escritas.
c) O concilio acolhe com igual piedade e respeito a
Escritura (Antigo e Novo Testamento), assim como as
tradições “ditadas ou pelo próprio Cristo ou pelo Espí­
rito Santo, conservadas na Igreja católica numa contínua
sucessão”.
A única mensagem evangélica, a única Boa-nova ex­
prime-se, pois, por duas formas distintas: escrita e oral.
Por isso é preciso crer tudo que se contém na palavra de
Deus, escrita ou transmitida (D 1792). A seqüência da
revelação teve um momento privilegiado, quando , foi escrita
sob a inspiração do Espírito. A Igreja, porém, nem por
isso deixa de possuir, todo inteiro, o ensinamento vivo
recebido no começo. Assim, pois, quando sobre um ponto
a Escritura não parece suficientemente clara e explícita,
pode encontrar um esclarecimento na tradição que a Igreja
conserva.
2. No proemium do decreto sobre a justificação, o
objeto da fé é novamente apresentado como uma doutrina,
ensinada pelo Cristo, transmitida pelos apóstolos, conser­
vada pela Igreja e por ela defendida contra os erros. O
Concilio declara que se “propõe expor a todos os fiéis do
Cristo a verdadeira e sã doutrina dessa mesma justificação
que o. . . Cristo Jesus, autor e consumador de nossa fé,
ensinou, que os apóstolos transmitiram, que a Igreja cató­
lica, sob a ação do Espírito Santo, sempre conservou, proi­
bindo severamente que alguém ouse crer, pregar, ensinar
diversamente do que vem decidido no presente decreto” ,0.
3. No capítulo quinto, o Concilio opõe à doutrina
protestante da justificação unicamente pela fé, a doutrina
católica que afirma ao mesmo tempo a necessidade da graça,
à qual compete a iniciativa, e da livre cooperação do homem

10 “Tridentina synodus... exponere intendit omnibus Christifidelibus


veram sanamque doctrinam ipsius justificationis, quam ‘sol justitae’, Chris­
tus Jesus, fidei nostrae auctor et consummator, docuit, Apostoli tradi­
derunt et catholica Ecclesia, Spiritu Sancto suggerente, perpetuo retinuit;
districtius inhibendo ne deinceps audeat quisquam aliter credere, praedi­
care aut docere, quam praesenti decreto statuitur ac declaratur” (D. 792a).
294 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

com a ação divina (D 797). O capítulo seguinte explica


em que consiste essa colaboração do homem e da graça:
“Eles se dispõem para a justiça, enquanto, excitados e aju­
dados pela graça divina, concebem a fé pela pregação (Rom
10,17) e livremente se voltam para Deus, crendo verda­
deiras as verdades e promessas reveladas por Deus, prin­
cipalmente acreditando que o ímpio é justificado pela graça
de Deus por meio da redenção que está no Cristo Jesus” n.
A fé aqui em questão não é a fé-confiança, a fides fi-
ducialis dos protestantes, mas uma fé que adere às verdades
reveladas, um ato de inteligência que se submete a Deus e
que reconhece a verdade do que ele revela. As diversas re­
dações do texto mostram firme vontade de deixar bem claro
o caráter dogmático da fé católica 12. Contudo, essas verda­
des podem ser também promessas que despertam a con­
fiança e a esperança do homem 13. Não são apenas enrique­
cimento do espírito, mas mensagens de salvação que orien­
tam o homem para Deus.
Tal sendo a fé, seu objeto lhe é apresentado pela
pregação. Referindo-se a Rom 10,17 (Fides ex auditu), o
Concilio encara a fé como a resposta que convém à Boa-
-nova, à mensagem de salvação. “Eis o que nós pregamos.
Eis o que acreditastes”, escreve são Paulo aos coríntios
(ICor 15,11). “Depois de terdes ouvido a palavra da ver­
dade, isto é, o bom anúncio da vossa salvação, e também
depois de terdes crido nele”, diz ele escrevendo aos efésios
(Ef 1,13). No entanto, essa pregação exterior, segundo o
pensamento do concilio, é ineficaz se não for acompanhada
do auditus interior da graça. É o que muito bem indicam
as palavras do texto: excitati divina gratia et adiuti14. Pers-

11 “Disponuntur autem ad ipsam justitiam, dum excitati divina gratia


et adjuti, fidem ex auditu concipientes, libere moventur in Deum, creden­
tes vera esse quae divinitus revelata et promissa sunt, atque illud in
primis a Deo justificari impium per gratiam ejus, per redemptionem,
quae est in Christo Jesu” (D. 798).
12 Em setembro de 1546, a redação era a seguinte: “per fidem qua
credimus omnia quae nobis divinitus revelata et promissa sunt” (Concilium
Tridentinum, 5: 422); a 31 de outubro: “qua credimus vera esse quae divi­
nitus revelata et promissa sunt”; a 10 de dezembro, finalmente, é
acrescentado: “ex auditu concipientes”.
13 R. Aubert, Le Problème de l’acte de foi (Louvain, 1950), pp. 77-78.
14 Alguns conciliares queriam até mencionar explicitamente o auditus
O CONCILIO DE TRENTO E O PROTESTANTISMO 295

pectiva conforme à Escritura que muitas vezes salienta a


ação da graça que abre o coração à palavra exteriormente
I ouvida e possibilita ao homem dar-lhe o consentimento 15.
, Em resumo: o ensinamento do concilio reduz-se aos
pontos seguintes: sem usar o termo revelação, apresenta-a
como sendo o conteúdo de uma palavra. Concretamente,
esse conteúdo é o Evangelho ou a mensagem de salvação
prometida inicialmente pelos profetas, publicada por Cristo,
i pregada pelos apóstolos, transmitida à Igreja, que a conserva
* e defende. Evangelho que é também designado como dou­
trina ensinada e transmitida; doutrina de salvação que cons­
titui um conjunto de verdades e de promessas oferecidas à
, fé cristã pela pregação, que se encontra na Escritura e na
tradição. A fé, que responde à pregação do Evangelho, é
, correlativamente designada como assentimento às verdades
! e às promessas nele contidas, sob a ação da graça que excita
e ajuda. Assentimento que termina, não nos simples enun­
ciados, mas se dirige ao próprio Deus dessas verdades e
promessas.

interior, acrescentando: “ex dono Dei et auditu” (Concilium Tridentinum,


5: 697). Seripando julgava desnecessário o acréscimo, mas observou:
“rei tamen veritas est quod auditus exterioris verbi sine interiori nihil
efficit. Inde scriptum est: Dominus aperuit mihi aurem” (Ibid. 5: 704-705).
15 Cfr., por exemplo, At 16,14; Mt 16,17; IJo 2,27; Mt 11,25-27·
Jo 6,44-45.
2.
O PRIMEIRO CONCILIO DO VATICANO
E O RACIONALISMO

1. A ação da Igreja em seu contexto

O primeiro Concilio do Vaticano vê no racionalismo


os frutos amargos do protestantismo. Os parágrafos II e
III do prólogo da constituição Dei Filius descrevem assim
o desenvolvimento fatal dos princípios postos na origem
da Reforma:
“Ninguém ignora. .. que depois de haver rejeitado o
magistério divino da Igreja e abandonado as ques­
tões religiosas ao julgamento particular de cada um,
as heresias proscritas pelos Padres de Trento se te­
nham fracionado pouco a pouco numa infinidade de
seitas que se excluem e combatem mutuamente, e que
enfim um grande número de seus membros perde­
ram toda a fé em Jesus Cristo. Também os próprios
livros santos que o protestantismo inicialmente pre­
tendia fossem a única fonte e a única regra da dou­
trina cristã, deixaram de ser considerados como di­
vinos; chegou-se mesmo a classificá-los entre as fic-
ções místicas. Nasceu então e infelizmente se difun­
diu por todo o universo esta doutrina do racionalis­
mo e do naturalismo, que, colocando-se em todos
os pontos em oposição à religião cristã, se aplica, com
os maiores esforços, a excluir Jesus Cristo, nosso
único Salvador e Senhor, do pensamento dos ho­
mens, da vida e dos costumes dos povos para estabe­
lecer o reino daquilo que se chama a razão pura ou
a natureza1”.
1 Texto latino em L. Petit e J. B. Martin, Collectio Conciliorum
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 297

Se é verdade que o racionalismo deriva do protestan­


tismo, é igualmente certo que ele foi favorecido em seu
desenvolvimento por fatores importantes: pela filosofia car-
tesiana que rompeu com a autoridade e com a tradição, pelo
filosofismo moral e pelo panteísmo de Spinoza que excluem
a prióri toda a religião revelada, pelo kantismo alemão que
confundiu a teologia com a filosofia, e a moral de Cristo
com a ética natural, pela filosofia experimental inglesa, en­
fim, que pretendeu ater-se unicamente às leis e observações
da razão e da natureza. Tanto que o Concilio pôde falar
em “reino da razão e da natureza”. Em suas formas ex­
tremas, acrescenta ele, o racionalismo vai dar no “panteís­
mo, no materialismo, no ateísmo” 2.
No dia em que as exigências do ser que pensa vieram
ocupar o primeiro plano da consciência ocidental, devia co­
locar-se necessariamente o problema de uma intervenção
divina por uma revelação transcendente.
Desde então, além da posição católica, poder-se-iam, teo­
ricamente, conceber três respostas diferentes que de fato
existiram. Ou recusar a hipótese de uma revelação e de
uma ação transcedente de Deus na história humana: res­
posta do deísmo e do progressisme (D. 1807-1808), que
reclamam para a razão toda a autonomia é toda suficiên­
cia. Ou negar o caráter transcendente da revelação para
fazer dela uma realidade puramente imanente e tarefa do
homem, uma forma particularmente intensiva do sentimento
religioso universal: resposta do protestantismo liberal e
mais ou menos do modernismo. Ou, enfim, suprimir um
dos dois termos, Deus: os partidários do evolucionismo
absoluto, como os hegelianos, conservam ainda a palavra
revelação, mas vazia de todo o sentido tradicional. O
universo e Deus sendo um só, a razão humana não é subs­
tancialmente distinta da razão divina e pode, portanto, desen­
volvendo-se naturalmente, chegar a conhecer tudo; o cris-

recentiorum Ecclesiae universae sive amplissimae collectionis conciliorum


a Mansi et continuatoribus editae (sobre o concilio do Vaticano: t. 49-53;
Paris, 1923-1927), 51:429-430. De agora em diante, citado simplesmente:
Mansi.
2 Mansi, 51:430.
298 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

tianismo seria apenas um momento da evolução da razão em


direção de seu devir total.
Contra o panteísmo e o deísmo, ο I Cone. Vat. afir­
mará solenemente o fato de uma revelação sobrenatural, sua
possibilidade, sua conveniência, sua finalidade, sua discernibi-
lidade, e seu objeto. Para avaliar o alcance de sua interven­
ção, é necessário ter em mente os nomes que, desde dois sécu­
los, dominam o pensamento ocidental: protestantes na maior
parte, que pouco a pouco derivaram para as diversas formas
do racionalismo e materialismo3. Para nos ater ao contexto
imediato do Concilio, lembremo-nos que o século XIX,
exceto um curto período de religiosidade romântica, sofreu
principalmente a influência dos deístas ingleses e dos enci­
clopedistas franceses. As noções de sobrenatural, de reve­
lação, de mistério e de milagre, nos meios cultos são postos
em dúvida, e os títulos do cristianismo discutidos em nome
da crítica histórica e da filosofia. A ciência totalmente nova
da história das religiões põe o problema da transcendência.
A esquerda hegeliana, com Feuerbach, prepara o caminho
ao ateísmo de Marx, enquanto que as explicações mate­
rialistas do mundo e da vida, a interpretação transformista
do universo, sob a influência de Spencer e Darwin gran-
jeiam rapidamente a simpatia do público4.
Essa maré crescente do racionalismo coincidiu com um
período de decadência da teologia católica5.

3 Na Alemanha: Woolf (1679-1754), Kant (1724-1804), Fichte


(1672-1810), Schelling (1775-1854), Hegel (1770-1831), Schopenhauer
(1788-1860), Shleiermacher (1768-1839), Strauss (1808-1874), Baur (1792-
-1860). O racionalismo inglês depende da filosofia de Bacon (1561-Î626),
do materialismo de Hobbes (1588-1679), do sensualismo de Locke (1631-
1704). Como derivados surgiram: o positivismo de Stuart Mill (1773-
1836), o evolucionismo científico de Spencer (1820-1903) e de Darwin
(1809-1882). Na França, Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778)
foram, com a Enciclopédia, os mestres do laicismo moderno. As teorias sen-
sualistas e materialistas de Loke chegaram à França mediante Condillac
(1715-1780), enquanto o positivismo inglês, de Hume, Spencer e Darwin,
foi introduzido por Comte (1798-1857), Taine (1828-1893) e Littré
(1801-1880).
4 R. Aubert, Le Pontificat de Pie IX (Paris, 1952, t. 21 da Histoire
de l’Église, dirigida por A. Fliche e E. Jarry), p. 219.
5 E. Hocedez, Histoire de la théologie au XIXe siècle (3 vol., Bru­
xelles et Paris, 1949-1952), 1:13-21; R. Aubert, Le Pontificat de Pie IX,
P· 220.
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 299

Todo esforço dos teólogos, retomando a apologetica do


século XVII contra os “livres pensadores”, consiste em defen­
der a religião contra os adversários e em levantá-la do des­
prezo onde ela caíra. A própria dogmática se preocupa antes
de tudo em tornar os dogmas aceitáveis às filosofias do
dia, situando-se em seu próprio terreno. Infelizmente os
defensores da Igreja, penetrados por sua vez pelo espírito
do filosofismo e desprovidos de uma filosofia tradicional só­
lida, se comprometeram às vezes em caminhos perigosos.
Uns, querendo realizar a passagem da razão à religião, unica­
mente com recursos da razão, caem num semi-racionalismo
que o Concilio denunciará6. Teólogos como Hermes, Gün-
ther e Frohschammer, sob a influência inconsciente das fi­
losofias de Kant e de Descartes, inclinam-se a exagerar as
forças da razão7. Eles não negam a revelação; esta, porém,
afinal não é sobrenatural senão quanto ao modo: na posse
das fórmulas de fé, o homem pode penetrar-lhe o mis­
tério e demonstrar cientificamente sua verdade. Outros,
ao contrário, reagindo contra o reino absoluto da razão,
acham que é necessário que o homem se refugie na fé e
na autoridade da tradição. Os fideístas, exagerando as obje-
ções do racionalismo e crendo que o fato da revelação
não poderá ser estabelecido por uma demonstração sólida,
imaginam que a fé deve ser completamente cega. Os tra­
dicionalistas, de seu lado, sustentam que uma tradição, saída
de uma revelação primitiva, é absolutamente necessária para
conhecer as verdades da religião natural, bem como os
mistérios de ordem sobrenatural. Assim Lamennais, Bau­
tain, Bonnetty, Ventura, De Bonald.
Em suma, enquanto o semi-racionalismo concede à
razão uma preponderância injustificada, o fideísmo e o
tradicionalismo humilham-na além da medida. Até ao I
Cone, do Vaticano percebe-se no meio dos teólogos cató­
licos uma oscilação entre estes dois polos, manifestação evi-

6 Principalmente no parágrafo V do prólogo da constituição Dei Filius


(Mansi, 51: 430).
7 Sobre o semi-racionalismo no século XIX: E. Hocedez, Histoire
de la théologie au XIXe siècle, 1:161-205; J.-M.-A. Vacant, Études
théologiques, 1:119-138; R. Aubert, Le Pontificat de Pie IX, pp. 193-211;
cfr. também os artigos do DTC sobre os nomes citados.
300 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

dente do mal-estar criado pelo difícil problema das rela­


ções entre a fé e a razão. Durante os pontificados de Gre­
gório XVI e de Pio IX, percebe-se o eco dessas inquieta­
ções. Constantemente Roma deve intervir para condenar
os erros, assinalar os desvios, afirmar a doutrina católica.
Gregório XVI condena o tradicionalismo absoluto de
Lamennais {Mirari vos arbitramur, 15 de agosto de 1832;
Singulari nos affecerant gaudio, 25 de junho de 1834)’
apóia a razão contra o tradicionalismo mitigado de Bautain
e repudia o semi-racionalismo de Hermes {Dum acerbissi­
mas, 26 de setembro de 1835). Pio IX, na enciclica Qui plu­
ribus (9 de nov. de 1846) expõe a doutrina da Igreja sobre
as relações entre a fé e a razão. Condena o tradicionalismo
mitigado de Bonnetty, o semi-racionalismo de Günther e o
liberalismo intelectual de Frohschammer. Finalmente, pelo
Syllabus de 8 de dezembro de 1864 e pela encíclica Quanta
cura que o acompanha, ele denuncia os erros e falsos prin­
cípios do século XIX: panteísmo, naturalismo e raciona­
lismo absoluto, racionalismo moderado, indiferentismo, li­
beralismo, socialismo.
Neste período que precede imediatamente ο I Con­
cilio do Vaticano, o único texto que trata de nosso as­
sunto é a encíclica Qui pluribus. Já são afirmados neste
documento, princípios que, vinte e cinco anos mais tarde,
serão retomados pelo Concilio. Pio IX afirma não existir
nenhum conflito entre a fé e a razão, pois ambas derivam
da mesma fonte da verdade eterna; pelo contrário elas
devem prestar-se mútuo apoio (D. 1635). O racionalis­
mo, “inimigo da revelação divina”, querería reduzir a re­
ligião cristã a uma simples “obra humana” ou a “uma desco­
berta filosófica” sujeita à lei de um progresso incessante.
O papa levanta-se contra essa pretensão e declara que: a)
nossa religião foi “gratuitamente revelada por Deus à hu­
manidade” e “recebe toda a sua força da autoridade do
próprio Deus que fala” 8; b) que o dever da razão humana

8 “Et sane cum sanctissima nostrâ religio non ab humana ratione


fuerit inventa, sed a Deo hominibus dementissime patefacta, tum quisque
vel facile intelligit religionem ipsam ex ejusdem Dei loquentis auctoritate
omnem suam vim acquirere neque ab humana ratione deduci aut perfici
unquam posse” (D. 1636).
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 301

é, conseqüentemente, “inquirir diligentemente sobre o


fato da revelação para obter a certeza de que Deus falou,
para lhe render em seguida. . . uma homenagem racional”;
c) “que é necessário prestar fé total a Deus que fala e que
nada é mais conforme a própria razão do que aquiescer e
aderir firmemente a tudo o que foi estabelecido como re-
vçlqdo por Deus que não se pode enganar nem nos enga­
nar” ’. A encíclica enumera em seguida os argumentos que
provam manifestamente a origem divina do cristianismo
e afirma com são João Crisóstomo que “omne dogma­
tum nostrorum principium radicem ex coelorum Domino
accepisse” (D. 1638).
Por três vezes o texto da encíclica inter-relaciona os
termos de revelação, palavra e fé, e os esclarece um pelo
outro. Considera a revelação, alternadamente, sob seu as­
pecto objetivo, ativo e passivo. No primeiro caso trata-se
de religião. . . revelada (no sentido de doutrina, segundo
a interpretação do Voncílio Vaticano, que retoma o mesmo
texto, D. 1800), por oposição ao que não seria mais que
doutrina humana, fruto da reflexão filosófica; no segundo,
o texto estabelece uma equivalência entre a ação de revelar e
a ação de falar; no terceiro, encara a reação do homem
diante de Deus que revela: a fé é resposta a Deus que fala,
aquiescência àquilo que revela. A fé dirige-se, propria­
mente, à pessoa e adere àquilo que ela diz. O motivo
desta adesão e desta homenagem é a própria palavra de
Deus: palavra de autoridade daquele que não pode enga­
nar-se (o que exclui todo o erro) nem enganar-nos (o que
exclui toda mentira). A fé é, pois, uma homenagem racio­
nal, fundada sobre a palavra verídica e infalível do próprio
Deus. A palavra de Deus é um testemunho.

2. A constituição dogmática sobre a fé católica

Em quatro capítulos a constituição Dei Filius expõe a


doutrina da Igreja sobre Deus, a revelação, a fé, as rela­
ções entre a fé e a razão. Nossa análise versará sobre os

9 “Humana quidem ratio, ne in tanti momenti negotio decipiatur


et erret, divinae revelationis factum diligenter inquirat oportet, ut certo
302 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

capítulos segundo, terceiro e quarto. Lembramos novamente


que neste documento trata-se não tanto da natureza da
revelação — como mais tarde na encíclica Pascendi — mas
principalmente do fato de sua existência, de sua possibili­
dade, de seu objeto. A exposição da doutrina católica,
contudo, foi ocasião para os Padres definirem em termos
simples e concretos a noção tradicional de revelação.
1. No parágrafo primeiro do capítulo sobre a re­
velação, o Concilio distingue duas vias pelas quais o homem
pode chegar ao conhecimento de Deus: via ascendente do
conhecimento natural, via descendente da revelação. A pri­
meira tem seu ponto de partida na criação, tem por instru­
mento a luz natural da razão e alcança a Deus, não em
sua vida íntima, mas em sua relação causai com o mundo.
A segunda tem por autor Deus que fala, autor da ordem
sobrenatural, que se dá a conhecer a si mesmo e os de­
cretos da sua vontade. Dois conhecimentos distintos, igual­
mente legítimos.
A primeira parte do parágrafo declara a possibilidade
de o homem chegar, pelas luzes naturais de sua razão, por
meio das criaturas (per ea quae facta sunt, conforme a lin­
guagem da Escritura), a um conhecimento certo de Deus,
princípio e fim de todas as coisas. O Concilio reivindica,
pois, o valor da teologia natural contra dois erros que
ameaçam as condições da fé. Esses dois erros são os do
ateísmo e do positivismo, segundo os quais não existe
nenhum meio para o homem conhecer a Deus; e o do tra-
dicionalismo estrito que não concede à razão senão o poder
passivo de conhecer a Deus e, por conseguinte, espera todo o
conhecimento de Deus da revelação ou de um ensinamento
positivo recebido pela tradição.
A segunda parte opõe este conhecimento natural de
Deus à “via sobrenatural” da revelação: “entretanto aprou-
ve à sabedoria e à bondade de Deus revelar ao gênero

sibi constet Deum esse locutum ac eidem, quemadmodum sapientissime


docet Apostolus, rationabile obsequium exhibeat. Quis enim ignorat
vel ignorare potest, omnem Deo loquenti fidem esse habendam, nihilque
rationi ipsi magis consentaneum esse quam iis acquiescere firmiterque
adhaerere quae a Deo, qui nec falli nec fallere potest, revelata esse
constiterit?” (D. 1637).
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 303

humano, por outra via, e esta /sobrenatural, a si mesmo e


os decretos eternos de sua vontade; é o que diz o Após­
tolo: após haver, muitas vezes e de muitas formas, falado
outrora aos pais pelos profetas, Deus, nestes dias que são
os últimos, nos falou pelo Filho” 10. Ainda que resumi­
do, este texto fornece diversos dados importantes sobre a
noção de revelação:
à) O texto estabelece o fato da revelação sobrena­
tural e positiva, tal como foi dada no Antigo e em o Novo
Testamento.
b) Desta revelação, Deus é o autor e a causa. Ela
é obra gratuita de sua vontade, efeito de seu bel-prazer:
placuisse. Pode-se dizer da revelação, como de toda a or­
dem sobrenatural, que ela e essencialmente graça, puro fa­
vor, dom do amor.
c) Iniciativa divina, a revelação não foi, contudo,
feita sem motivo; ela convinha à sabedoria e à bondade
de Deus: sapientiae et bonitati. Convinha à sabedoria de
Deus, Criador e Providente (D. 1782 a 1784), a fim de que
as verdades religiosas de ordem natural “pudessem ser
conhecidas de todos, sem dificuldade, com firme certeza,
e sem mistura de erro” (D. 1786). Convinha à sua sabe­
doria de autor da ordem sobrenatural, pois se Deus elevara
o homem a essa ordem, devia dar-lhe a conhecer sua fina­
lidade e seus meios. A revelação convinha igualmente à
bondade de Deus. Já a iniciativa pela qual Deus sai de
seu mistério, dirige-se ao homem, interpela-o, entra em
comunicação pessoal de pensamento com ele, é um sinal de
sua benevolência infinita. Que essa comunicação não somente
torna mais fácil a marcha natural do homem em direção a
ele, mas ainda o associa aos segredos de sua vida divina,
“à participação dos bens divinos” (D. 1786): eis o que
é digno da caridade infinita.

10 “Eadem sancta mater Ecclesia tenet et docet, Deum, rerum omnium


principium et finem, naturali humanae rationis lumine e rebus creatis
cognosci posse; ‘invisibilia enim ipsius, a creatura mundi, per ea quae
facta sunt, intellecta, conspiciuntur’ (Rom 1,20); attamen placuisse ejus
sapientiae et bonitati, alia eaque supernaturali via seipsum ac aeterna
voluntatis suae decreta humano generi revelare, dicente Apostolo: Multi­
fariam multisque modis olim Deus loquens patribus in Prophetis: novissime
diebus istis locutus est nobis in Filio (Hebr. 1,1)” (D. 1785).
304 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

d) O objeto material da revelação é o próprio Deus


e os decretos eternos de sua vontade livre. Os parágrafos
seguintes (D. 1786, 1795) indicam que esse objeto com­
preende tanto verdades acessíveis à razão, como também
mistérios que a ultrapassam. Por Deus, é necessário, pois,
entender sua existência, seus atributos, como também a
vida íntima das três pessoas. E por decretos, tanto aqueles
que dizem respeito à criação e ao governo natural do mundo,
como os que dizem respeito à nossa elevação à ordem so­
brenatural: a encarnação, a redenção, a vocação dos eleitos.
e) Todo o gênero humano é beneficiário da revelação;
ela é tão universal como a própria salvação.
f) O texto da Escritura, diz Mons. Gasser11, vem
confirmar essa doutrina do fato da revelação e marcar-lhe
o progresso de uma Aliança à outra. A citação, estreita­
mente ligada ao texto, deixa entender que a revelação é con­
cebida pelos Padres do concilio como palavra de Deus di­
rigida à humanidade. Deus loquens. . . locutus est·, o que
faz a unidade e a continuidade das duas Alianças é unica­
mente a palavra de Deus, sendo a do Filho a continuação
e o término daquela cujos instrumentos foram os profetas.
A revelação do Antigo Testamento foi sucessiva, fragmen­
tária, polimorfa; a do Novo é única, total e definitiva. De
um lado, a multiplicidade de inspirados; de outro, somen­
te o Filho.
2. O segundo parágrafo acrescenta a estes elementos
da definição novas determinações concernentes à necessida­
de, à finalidade e ao objeto da revelação.
Se a revelação é absolutamente necessária, diz o Con­
cilio, é “porque Deus, em sua infinita bondade, ordenou
o homem a um fim sobrenatural, isto é, à participação dos
bens divinos”12 Uma emenda, reconhecida como tradu­
zindo bem o pensamento dos Padres, embora não adota­
da, propunha inserir: “Deus ordenou o homem ao fim
sobrenatural, quer dizer, a este admirável comércio da di-

» Mansi, 51:272.
12 “Revelatio absolute necessaria dicenda est... quia Deus ex infinita
bonitate sua ordinavit hominem ad finem supernaturalem, ad participan­
da scilicet bona divina, quae humanae mentis intelligentiam omnino
superant” (D. 1786).
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 305
vindade, começado pela graiça, consumado pela glória, que
ultrapassa a compreensão do espírito humano, e do qual
o apóstolo disse que o olho nunca viu...” 13. Do momento
em que Deus assinala ao homem um fim sobrenatural, ele
deve, se quiser respeitar a natureza inteligente e livre deste,
fazê-lo conhecer esse fim e os meios que asseguram sua
posse: ele deve revelar-lhes. É, pois, em última análise,
a intenção salvifica de Deus que explica a necessidade da
revelação das verdades de ordem sobrenatural.
Com relação às verdades religiosas de ordem natural,
a revelação não tem esse caráter de absoluta necessidade.
O concilio, utilizando os mesmos termos de santo Tomás,
a descreve em termos de necessidade moral; esta necessida­
de não se prende nem ao objeto nem ao poder ativo da
razão, mas à condição atual da humanidade; sem a revela­
ção, as verdades religiosas de ordem natural não podem
ser “conhecidas de todos, sem dificuldade, com firme cer­
teza, sem mistura de erro” 14
Ao mesmo tempo que determina o grau de necessida­
de da revelação, o concilio é levado a distinguir, no objeto
material, de uma parte, aquelas verdades que são conatu-
rais ao homem e, de outra, aquelas que “ultrapassam com­
pletamente o alcance do espírito humano”. Trata-se sem­
pre do mesmo objeto do parágrafo precedente, mas con­
siderado desta vez sob seus aspectos de proporção ou de
desproporção com a razão natural.
3. Um vocábulo tal como revelação evoca tanto a
ação como o termo objetivo desta ação, ou seja, o dom rece-

13 “Deus ordinavit hominem ad finem supernaturalem, scilicet ad


illud mirandum consortium divinitatis inchoandum per gratiam, con­
summandum per gloriam, rationis comprehensionem excedens, et de quo
dicitur quod oculus non vidit...” (Mansi, 51:280).
14 “Huic divinae revelationi tribuendum quidem est, ut ea, quae in
rebus divinis humanae rationi per se impervia non sunt, in praesenti
quoque generis humani conditione ab omnibus expedite, firma certitu­
dine et nullo admixto errore cognosci possint” (D. 1786). Em santo
Tomás Summa theol. la, q. 1, a. 1; 2a 2ae, q. 2, a. 4, c.; Contra gentiles,
L. I, c. 4. A encíclica Humani Generis falará explicitamente de “neces­
sidade moral”: “divina revelatio moràliter necessária dicenda est ut ea
quae in rebus religionis et morum rationi per se impervia non sunt, in
praesenti quoque humani generis conditione, ab omnibus, expedite, firma
certitudine et nullo admixto errore cognosci possint” (D. 2305).
306 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

bido ou a verdade revelada. Também o concilio que vem


falar de ação reveladora, distinguindo, no objeto da re­
velação, verdades conaturais e mistérios, foi levado, por
uma transição normal, a considerar a revelação sob seu
aspecto objetivo da palavra dita ou expressa.
O receptáculo ou as fontes desta revelação, diz ele,
retomando as próprias palavras do concilio de Trento, são
os livros escritos e as tradições que, “tendo sido recebidas
pelos apóstolos da boca de Jesus Cristo em pessoa, ou ten­
do sido transmitidas, por assim dizer, de mão em mão
pelos próprios apóstolos, aos quais o Espírito Santo as
ditou, chegaram até nós” (D. 1787). Mas falando mais
precisamente que o concilio de Trento, o Vaticano em­
prega expressamente o termo revelação para designar o
conteúdo da palavra divina: haec porro supernaturalis re­
velatio. Essa palavra dita por Deus, contida na Escritu­
ra e na Tradição, é o objeto da nossa fé. É por isso que
o concilio declara no capítulo terceiro que nós devemos
crer “tudo o que está contido na palavra de Deus escrita
ou transmitida” 15.
4. Mons. Martin relaciona o capítulo terceiro, sobre
a fé, com o capítulo precedente, que trata da revelação, fa­
zendo observar que “à revelação da parte de Deus corres­
ponde a fé da parte do homem” 16. O capítulo informa-nos
particularmente sobre o elemento específico da palavra re­
velação.
O primeiro parágrafo lembra inicialmente o fundamento
da nossa obrigação de crer em Deus que revela. O funda­
mento geral, é que o “homem depende inteiramente de
Deus como de seu Criador e Senhor”; o fundamento espe­
cial, é que a razão humana, sendo criada, encontra-se “com­
pletamente submetida à Verdade incriada” (D. 1789). A
criação é razão pela qual o homem deve a Deus a homena­
gem de sua inteligência e de sua vontade17 ; a razão criada
15 “Fide divina et catholica ea omnia oredenda sunt, quae in verbo
Dei scripto vel tradito continentur et ad Ecclesia sive solemn! judicio
sive ordinario universali magisterio tanquam divinitus revelata credenda
proponuntur” (D. 1792).
16 Manisi, 51: 313.
17 Mons. Martin explica: “Haec autem radix, haec fundamentalis
ratio obrigationis humanae Deo fidem praestandi aperte posita est in eo
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 307

deve inclinar-se diante da Verdade incriadaO primeiro


cânon sobre a fé afirma, contra os racionalistas, que a razão
não é autônoma e que Deus lhe pode impor a fé (D. 1810).
O homem, enquanto criatura, deve aceitar esse meio de co­
nhecimento indireto, por mais mortificante que ele seja
para sua tendência à emancipação completa19.
A continuação do parágrafo declara que o motivo da
fé é a autoridade de Deus que fala; esse motivo distingue
a fé da ciência20. A afirmação dirige-se contra os racionalis­
tas que entendem por fé religiosa tão-somente a ciência
filosófica que se refere a Deus e à religião21. Contra os
semi-raçionalistas também, como Hermes, que julgam que
“qualquer persuasão firme sobre Deus e sobre as coisas
divinas já é a fé propriamente dita”, mesmo se o assenti­
mento provém apenas da “evidência do nexo interno das
idéias”22. Neste sentido, dever-se-ia chamar fé o conheci­
mento de Deus obtido pela consideração do universo. A
fé, diz o concilio, adere às coisas reveladas, “não por causa
de sua verdade intrínseca, percebida à luz natural da razão,
mas por causa da autoridade do próprio Deus que não se
pode enganar nem enganar” 23. Tal é o motivo formal da fé.

quod Deus sit supremus auctor, quod Deus sit creator noster, quod Deus
sit Dominus noster, a quo toti cum omnibus viribus nostris dependemus.
Haec est intentio prima partis huius primae paragraph!” (Mansi, 51:
313, 316).
18 O texto primitivo dizia: increatae rationi. Urna emenda propunha
dizer: “increatae rationi quae est ipsa Veritas”. Foi aprovado e está no
texto definitivo: increatae Veritati (Mansi, 51: 315). ·
19 Mons. Martin observa que o cânon dirige-se contra os que susten­
tam a seguinte opinião: “rationem humanam esse, ut ita dicam, autonomam,
sibique plane sufficientem” (Mansi, 51: 329).
20 “Ut omnes scimus, diz Mons. Martin, propria ratio fidei posita
est in motivo seu in objecto suo formali, nempe in auctoritate Dei loquen-
tis, quo quidem motivo fides scientia naturali essentialiter distinguitur”
(Mansi, 51: 313).
21 “Rationalistae... nomine fidei generatim non aliud intelligunt
quam rationalem scientiam rerum ad Deum et ad religionem pertinentium”
(Mansi, 50: 85).
22 “Semi-r ationalistae... docent enim omnem firmam persuasionem
de Deo et rebus divinis esse fidem illam proprie dictam, a qua fideles
denominantur, etiamsi motivum amplectendi et tenendi veritatem non sit
auctoritas Dei, sed veritas teneatur et solummodo propter perspectum
intrinsecum nexum idearum” (Mansi, 50: 85).
23 “Hanc vero fidem... virtutem esse supernaturalem qua... ad eo
(Deo) revelata vera esse credimus, non propter intrinsecam rerum veritatem
308 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

A autoridade de Deus in dicendo procede de sua infi­


nita sabedoria e veracidade, excluindo todo erro e toda men­
tira. O Deus onisciente não pode enganar-se nem ser en­
ganado; o Deus veracissimo não pode enganar-nos. Ele tem
a autoridade de testemunha infinitamente qualificada, cuja
palavra merece assentimento total e definitivo. Opondo
assim fé e ciência, evidência natural e assentimento de fé,
o concilio diz equivalentemente (pois a palavra não apa­
rece ) que a palavra de Deus se inclui na espécie testemunho.
Uma palavra que exige uma reação de fé, isto é, que pode
ser admitida unicamente por causa da autoridade de quem
fala, como única garantia de verdade, é propriamente um
testemunno.
O concilio, retomando em seguida os elementos es­
senciais da descrição do ato de fé, dada pelo concilio de
Trento, afirma que a fé é uma virtude sobrenatural pela qual,
sob a ação de uma graça preveniente e adjuvante, nós cre­
mos ser verdade aquilo que Deus revelou, por causa pre-
cisamente da autoridade de Deus que revela. O concilio
de Trento referia-se mais ao ato de fé que à virtude da
fé e mencionava, como objeto da fé, as promessas feitas
por Deus; é que ele falava da fé que justifica; de uma fé,
conseqüentemente, que devia suscitar a confiança pela con­
sideração das promessas divinas24.
A fé, em si mesma, é um dom de Deus. Argumentos
de ordem racional podem preparar e sustentar a adesão; a
causa verdadeira desta adesão, porém, devemos procurá-la
na ação sobrenatural de Deus. Não é suficiente que ressoe
nos ouvidos o ensinamento do Evangelho; é necessário ain­
da uma ação interior da graça que ilumine a inteligência e
incline as forças da vontade. Retomando o texto do con­
cilio de Orange (D. 180), o concilio diz: “Ninguém pode
aderir ao ensinamento do Evangelho,’ como é necessário
para alcançar a salvação, sem uma iluminação e uma inspi­
ração do Espírito Santo que dá a todos a suavidade da
adesão e da crença na verdade” 25.
naturali rationis lumine perspectam, sed propter auctoritatem ipsius Dei
revelantis, qui nec falli nec fallere potest” (D. 1789).
24 J.-M.-A. Vacant, Études théologiques, 2:26.
25 “Nemo... evangelicae praedicationi consentire potest, sicut oportet
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 309

A fé é adesão religiosa à palavra de Deus sob a ação


conjugada da palavra exterior e da moção interior do Es­
pírito. Ao mesmo tempo que a pregação de Cristo, dos
apóstolos ou da Igreja ressoa por fora, proclamando o Evan­
gelho e convidando à fé, o Espírito age por dentro fecun­
dando essa ação. É Deus mesmo que, por primeiro, atrai
o homem a si; e nesta ação interior de sua graça, já se de­
lineia a reação que é a resposta da fé. O sim da fé à pre­
gação do Evangelho é ao mesmo tempo livre abandono à
moção do Espírito26.
5. O capítulo quarto, consagrado ao problema das
relações entre a fé e razão, contém um ensinamento pre­
ciso sobre o objeto da revelação, principalmente sobre seu
objeto privilegiado, os mistérios.
O parágrafo primeiro distingue duas ordens de conhe­
cimentos: um, natural; outro, sobrenatural; um, tendo por
princípio a razão natural; o outro, a fé divina. O conheci­
mento natural tem por objeto verdades acessíveis à razão.
O conhecimento sobrenatural da fé possui um duplo objeto:
primeiro “verdades que a razão natural pode alcançar” (D.
1795). Afirmação conforme ao que já foi dito nos capítu­
los precedentes: o capítulo primeiro enumera, com efeito,
os atributos de Deus que encontramos em nossa teodicéia
(D. 1782); o capítulo segundo fala daqueles pontos que, “nas
coisas divinas, não são inacessíveis à razão” (D. 1786); o
capítulo terceiro indica como objeto de nossa fé “tudo aqui-

ad salutem consequendam, absque illuminatione et inspiratione Spiritus


Sancti, qui dat omnibus suavitatem in consentiendo et credendo veritati”
(D. 1791).
26 Santo Tomás retorna diversas vezes a esta idéia; por exemplo:
“non solum revelatio exterior, vel objectum, virtutem attrahendi habet,
sed etiam interior instinctus impellens et movens ad credendum; ideo
trahit multos ad Filium (Pater) per instinctum divinae operationis mo­
ventis interius cor hominis ad credendum” (In Joan., c. 6, lect. 5). E
também: “Adjuvatur autem a Deo aliquis ad credendum tripliciter.
Primo quidem per interiorem vocationem, de qua dicitur Joan. 6, 45:
omnis qui audivit a Patre, et didicit, venit ad me; et ad Rom. 8,30:
quos praedestinavit, hos et vocavit. Secundo per doctrinam et praedi­
cationem exteriorem, secundum illud Apostoli ad Rom. 10,17: fides ex
auditu, auditus autem per verbum Christi. Tertio per exteriora mira­
cula...” (Quodl. 2, q. 4, a. 6). Cfr. também Summa theol, 2a 2ae, q
2, a. 9, ad 3.
310 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

lo que está contido na palavra de Deus escrita ou transmi­


tida” e que a Igreja propõe por declaração solene ou por
seu magistério ordinário e universal como divinamente re­
velado (D. 1792). O presente capítulo, enfim, indica como
objeto próprio da revelação sobrenatural “os mistérios es­
condidos de Deus que não podem ser conhecidos senão
pela revelação divina” ”, isto é, os mistérios propriamente
ditos (D. 1816). Esses mistérios são verdades das quais
só Deus possui um conhecimento natural. Os textos da
Escritura citados ilustram-no bem: trata-se “da sabedoria
de Deus, misteriosa e oculta” (ICor 2,7ss), dos segredos
de Deus que só o Espírito que perscruta as profundezes de
Deus pode revelar-nos (ICor 2,10).
Uma carta de Pio IX, em 1862, ao bispo de Munique,
sobre o mesmo assunto, falava do “mistério escondido aos
séculos e às gerações passadas” (Col 1,26) e invocava o
texto do prólogo de são João: “A Deus ninguém jamais
o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que está no
seio do Pai” (Jo 1,18; D. 1672). Os mistérios “ultrapas­
sam o entendimento criado” e, conseqüentemente, “a pró­
pria inteligência natural dos anjos” (D. 1796, 1673). Em
concreto, quais são esses mistérios?. A carta de Pio IX ao
bispo de Munique assinala sobretudo os que se referem à
elevação sobrenatural do homem e às suas relações com
Deus (D. 1671), e de modo especial a encarnação (D.
1669). Em outros termos: pode-se dizer também que o
mistério principal que Deus quis manifestar-nos é o seu
desejo salvifico, a saber, o mistério de nossa participação
na vida divina dada por Cristo ( "ordinavit hominem ad. . .
participanda bona divina”, D. 1786). O concilio de Trento
afirma por sua vez que, na fé, nós cremos na verdade da­
quilo que Deus revelou e prometeu, primeiramente que o
ímpio é justificado pela graça de Deus, pela redenção em

27 “Hoc quoque perpetuus Ecclesiae catholicae consensus tenuit et


tenet, duplicem esse ordinem cognitionis non solum principio, sed objecto
etiam distinctum: principio quidem, quia in altero naturali ratione, in
altero fide divina cognoscimus; objecto autem, quia praeter ea ad quae
naturalis ratio pertingere potest, credenda nobis proponuntur mysteria in
Deo abscondita, quae, nisi revelata divinitus, innotescere non possunt”
(D. 1795).
0 1 CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 311
Jesus Cristo (D. 798). A revelação é essencialmente sal­
vifica 28.
6. O quarto capitulo termina com um parágrafo que
explica a verdadeira noção de desenvolvimento dogmático.
"A doutrina de fé que Deus revelou não foi proposta como
uma descoberta filosófica para ser aperfeiçoada pela inte­
ligência humana, mas foi entregue à Esposa de Cristo como
um depósito divino para ser fielmente guardada e infali­
velmente declarada” 29. E na constituição dogmática sobre
a Igreja, lemos: “O Espírito Santo foi prometido aos su­
cessores de Pedro. . . para que eles conservem santamente
e exponham fielmente a revelação transmitida pelos apósto­
los, ou o depósito da fé” M. Estas duas passagens se escla­
recem mutuamente e mostram evidentemente que a dou­
trina revelada, a revelação e o depósito da fé, são uma só
e mesma realidade. A Igreja deve guardar fielmente (como
um depósito) e declarar infalivelmente a doutrina revelada.
E no segundo texto: ela deve conservar santamente (como
um depósito) e expor fielmente (como uma doutrina) a re­
velação transmitida. Sem dúvida, a revelação é entendida
aqui no sentido objetivo de doutrina. O conteúdo da pa­
lavra divina é uma doutrina religiosa, um conjunto de pro­
posições que enunciam o mistério de nossa salvação e o
designam.
A Igreja nada acrescenta a esse depósito da fé rece­
bido dos apóstolos. O que se pode aperfeiçoar é a com­
preensão do depósito, a assimilação, pelos fiéis, da doutrina
revelada, o sentido como tal permanecendo sempre o
mesmo, sem mudança de interpretação (D. 1800). Mas
para que a doutrina de Cristo seja sempre ensinada sem
28 Cfr. “Haec est autem vita aeterna: ut cognoscant te, solum Deum
verum et quem misisti Jesum Christum” (Jo. 17,3). Insiste santo Tomás
nesta finalidade salvifica da revelação: “a cujus... (divinae) veritatis cogni­
tione dependet tota hominis salus, quae in Deo est” {Summa theol. Ia,
q. 1, a. 1, c.).
29 “Neque enim fidei doctrina, quam Deus revelavit, velut philosophicum
inventum proposita est humanis ingeniis perficienda, sed tanquam divinum
depositum Christi Sponsae tradita, fideliter custodienda et infallibiliter
declaranda” (D. 1800).
30 “Petri successoribus Spiritus Sanctus promissus est... ut, eo
assistente, traditam per Apostolos revelationem seu fidei depositum sancte
custodirent et fideliter exponerent” (D. 1836).
312 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

acréscimo nem corrupção é necessário que a Igreja não so­


mente a conserve, mas também denuncie os erros que a
ameaçam. Ela tem, pois, o direito de proscrever as opi­
niões opostas à doutrina revelada (D. 1817).
Concluindo·, podemos reter do primeiro Concilio do
Vaticano os seguintes dados: O concilio encara a revelação,
quer no sentido ativo, quer no sentido objetivo, como uma
palavra dirigida ou como palavra proferida. Mas, ma­
nifestamente, é a revelação, no sentido objetivo que pren­
de sua atenção.
A ação reveladora é ação soberanamente gratuita do
Deus de salvação, que, em sua sabedoria e bondade, se dá
a conhecer ao gênero humano: a si mesmo e os decretos
de sua vontade. Esta ação divina é concebida como pa­
lavra de Deus à humanidade, distinguindo-se de sua mani­
festação como causa e fim das criaturas; uma palavra de
autoridade, qualificada pela ciência e pela veracidade do
Deus infinitamente sábio e infinitamente santo. Esta ação
é pessoal, de sujeito a sujeito, e não de objeto a objeto;
é histórica, progressiva, culminando com a revelação do
Filho; é salvifica, universal, desejando associar a humani­
dade toda aos bens da vida divina.
A fé, dom de Deus, que é resposta à sua palavra, não
é o assentimento do filósofo ou do sábio ante a evidência
da verdade, mas a resposta a um testemunho. A fé, por
certo, é homenagem a Deus, à sua Pessoa, mas esse Deus
manifestando-se como Deus que fala (Deus loquens), a
homenagem que lhe convém é a fé no. que ele disse. Por­
tanto: a fé dirige-se à pessoa, mas imediatamente àquilo que
ela disse; e o motivo que motiva essa adesão é a au­
toridade do próprio Deus.
O objeto material da revelação pode ser encarado em
si mesmo: Deus e seus decretos. Ou segundo a propor­
ção desse objeto com o poder de nossa razão: distinguem-
-se, então, verdades acessíveis à razão natural e mistérios
que ultrapassam a capacidade de nosso espírito. Esses mis­
térios dizem respeito à vida íntima de Deus e à nossa par­
ticipação nessa vida pela encarnação e redenção.
As verdades reveladas ou ditas por Deus acham-se
contidas nos Livros santos e nas tradições. Elas consti-
Ο I CONC. DO VATICANO E O RACIONALISMO 313

tuem a revelação no sentido objetivo, ou a doutrina reve­


lada confiada à Igreja por Cristo como um depósito para
guardar, declarar e proteger contra o erro. Esta
doutrina é oferecida à nossa fé pela pregação. Mas para
aceitá-la é necessário um impulso da graça ou do Espírito
Santo, que acompanhe o ensinamento da mensagem di­
vina e dê ao homem o poder de se abandonar à moção
interior de Deus. A doutrina revelada é imutável e não
pode frutificar senão por umã incessante assimilação.
A CRISE MODERNISTA

Diante da amplitude do fenômeno e de suas manifes­


tações, Pio X pôde denunciar.o modernismo como “o ponto
de encontro de todas as heresias” (D. 2105). Sua nota ca-
raterística, contudo, escreve J. Rivière, “é a de atacar, para
dissolver num puro subjetivismo, essas noções de revela­
ção, de fé, de dogma, que são os fundamentos do cristia­
nismo tradicional” \ O modernismo, de fato, é o recrudes-
cimento do problema, já enfrentado pelo concilio Vaticano,
da harmonização dos dados da revelação com as aquisições
da filosofia e da ciência. Um tal problema incluía, na verda­
de, fatores demais para ser resolvido de uma só vez. Fatal­
mente, novos abalos deviam produzir-se, sinais de novas in­
quietações.
Principalmente no tocante à revelação os teólogos mo­
dernistas, sob pretexto de retificar uma pseudonoção de
revelação, concebida à maneira de um monólito caído do
céu e sem relação com a consciência humana, chegaram pra­
ticamente a negar a sua transcendência para fazer dela uma
realidade puramente imanente e humana. Alguns, como
Tyrrel, sem cair num subjetivismo tão radical, comprome­
teram gravemente a noção de revelação objetiva e de de­
senvolvimento dogmático.

1. Ascendência liberal do modernismo

O modernismo, por intermédio de Schleiermacher, de


Ritschl e de Sabatier, é tributário do protestantismo liberal.

1 J. Rivière, Le Modernisme dans l’Église (Paris, 1929), p. 11; R.


Marlé, Au coeur de la crise moderniste (Paris, 1960), p. 349; E. Poulat,
Histoire, dogme et critique dans la crise moderniste (Paris, 1962).
f A CRISE MODERNISTA 315
*
j 1. Em reação contra Kant, Schleiermacher restabe-
leceu, na religião, o valor do sentimento e da experiência
j religiosa. Para Kant, o exercício da razão pura nos inter-
’ dita qualquer conhecimento de uma realidade supra-sensí-
r vel, de um absoluto situado fora do círculo dos fenômenos:
T “Eu não sabería.. . admitir Deus, a liberdade e a imor-
j talidade como uma necessidade que deles tem minha razão
» no seu uso prático necessário, sem repudiar ao mesmo tem-
j po as pretenções da razão pura a contemplações transcen-
7 dentes, pois, para atender a essas contemplações, é-lhe ne-
; cessário servir-se de princípios que não se estendem, na
f realidade, senão a objetos da experiência possível e que,
se a gente os aplica a uma coisa que não pode ser objeto duma
► experiência, a transformam realmente e sempre em fenô-
t menos, e declaram assim impossível toda a extensão prá-
j tica da razão pura. Eu suprimi, por isso, o saber, para
* lhe substituir a fé”.2. Mas a fé que interessa a Kant é
muito diferente da fé de Lutero. É a Vernunftglaube, sim­
ples fé racional, exercício da razão prática. Uma vez expur-
/ gada de todos os elementos estranhos à sua natureza —
J ritos e crenças — a religião se reduz ao querer moral, fun-
/ dado ele próprio sobre o imperativo categórico, o tu debes,
J impondo-se de maneira universal e absoluta. Uma revelação
transcendente, fornecendo um suplemento de conhecimen-
F to à humanidade, não tem evidentemente lugar no universo
* kantiano agnóstico. Se o conceito, em si, não é contradi­
tório, pelo menos não temos meio algum de verificar sua
objetividade. Uma religião que se diz histórica e revelada
i deve, pois, ser julgada em função da moral e da razão pura
que são as únicas coisas universais. “A fé histórica...

2 “Je ne saurais... admettre Dieu, la liberté et l'immortalité selon le


besoin qu’en a ma raison dans son usage pratique nécessaire, sans
£ repousser en même temps les prétensions de la raison pure à des vues
ΐ transcendentes, car, pour atteindre à ces vues, il lui faut se servir de
principes qui ne s’étendent en réalité qu’à des objets de l’expérience
possible et qui, si on les applique à une chose qui ne peut être objet
‘ d’une expérience, la transforment réellement et toujours en phénomène,
/ et déclarent ainsi impossible toute extension pratique de la raison pure.
% J’ai donc supprimé le savoir pour lui substituer la foi”: E. Kant, Critique
de la raison pure (trad. J. Barni, revue et corrigée par A. Archambault),
£ prefácio da segunda edição, I: 28).
C
316 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

não tem senão um valor particular. . . Ela pode ser su­


ficiente à crença da Igreja, mas somente a pura fé religiosa,
fundada inteiramente na razão, pode ser reconhecida como
necessária” 3. Jesus Cristo mesmo não é outra coisa que
um belo exemplo de obediência ao imperativo categórico.
Kant nega sua divindade real e transforma em filosofia
moral os dados e expressões bíblicas do Evangelho.
2. Schleiermacher (1768-1834), pietista e romântico,
reagindo pois contra as ásperas negações de Kant, apli­
cou-se a revalorizar a oração e o sentimento. Na sua época,
nas igrejas da Alemanha, duas correntes se defrontavam:
o racionalismo, procurando reconduzir a religião aos limi­
tes da razão, e o supranaturalismo, esforçando-se por man­
ter a transcendência do cristianismo como religião revelada.
O pai da moderna teologia protestante conseguiu encon­
trar entre essas duas correntes, uma espécie de caminho
médio. Sua teologia não se apóia nem sobre a doutrina ex au­
ditu nem sobre a verdade ex intellectu; teólogo do coração,
alicerça sua religião sobre o sentimento de dependência, mais
ou menos puro, mais ou menos profundo, conforme a di­
versidade das religiões. A revelação, conseqüentemente
não é um privilégio do cristianismo, mas um bem comum
a todas as religiões. Ela não é senão “o fruto espontâneo
e subjetivo do conceito de Deus que brota do sentimento
de dependência ou sentimento religioso”4. Em Cristo esse
sentimento de dependência se traduz pela consciência de sua
unidade com Deus, pela certeza sentimental de sua missão
de mediador entre os homens, seus irmãos, e Deus o Pai.
O que importa nãõ é que Cristo seja Deus, mas a consciên­
cia que ele tem disso. A própria fé é uma certeza que acom-

3 “La foi historique... n’a qu’un valeur particulière... Elle peut


suffire à la croyance d’Église, mais seule la pure foi religieuse, fondée
entièrement sur la raison, peut être reconnue comme nécessaire” (E.
Kant, La Religion dans les milites de la simples raison [trad. J. Gibelin,
Paris, 1943], pp. 152-153). E também: “La pure foi morale... seule
constitue en toute foi d’Église ce que celle-ci contient de religion propre­
ment dite” (Ibid., p. 159). “La pure foi religieuse est assurément celle
qui seule peut fonder une Église universelle, parce que c’est une simple
foi rationnelle qui peut se communiquer a chacun pour le convaincre”
(Ibid., p. 138).
4 L. Cristiani, art. “Schleiermacher”, no DTC, 14: col. 1500.
A CRISE MODERNISTA 317

panha uma tomada de consciência mais viva, mais profunda


de nossa redenção em Cristo. Teologia antropocêntrica, in-
fetada de subjetivismo5.
3. Hegel, colega e rival de Schleiermacher em Ber­
lim, de 1818 a 1831, não poupou seu desprezo por esta
2 religião baseada no sentimento, e pretendeu reintroduzir na
J religião o elemento especulativo e teórico (opondo-se as­
sim tanto ao moralismo de Kant como ao sentimentalism©
* de Schleiermacher). A luta foi viva entre os partidários dos
dois chefes. Contudo, sob a influência de A. Ritschl foi a
corrente iniciada por Schleiermacher que acabou triunfando.
Ritschl (1822-1889), como Schleiermacher, reivindi­
ca a autonomia da consciência religiosa e protesta contra
a interferência da filosofia em matéria de religião; ele par-
j tilha seu agnosticismo metafísico, sua concepção antropo-
* cêntrica, e, como ele, reduz a teologia à cristologia; só lhe
interessam os juízos de valor (Werturteile), em oposição
1 aos juízos teóricos (os Seinsurteile, que têm por objeto a
existência e a natureza das coisas). Ritschl, porém, se apre-
■ senta como reacionário em oposição a Schleiermacher. Julga
que ele se desviou gravemente ao basear a religião unica-
* mente sobre a consciência subjetiva da comunidade e não
sobre a revelação cristã positiva. Por isso ele apóia-se sobre
o Evangelho, sobre o fato histórico, como vem exposto na
Bíblia. Como, porém, é possível, numa concepção
kantiana do universo, que aceita como axioma fun­
damental a oposição entre o númeno e o fenômeno, dar
um sentido às afirmações da Bíblia sobre Deus, a reve­
lação e a salvação pelo Verbo encarnado? “Por simples
■ convenção se denominará Deus, revelação, salvação, a ex­
periência religiosa imanente do homem. Cristo re
velará Deus, salvará o homem, simplesmente nesse sentido
que ele exprimirá e nos permitirá exprimir, pela imagem
‘ sua que os Evangelhos imortalizaram, a mais alta consciên-
« cia que a humanidade tem de si mesma” 6. Conservar-se-á
. 5 D. C. Macintosh, The Problem of religious Knowledge (New York,.
f 1940), pp. 236-242.
6 “On conviendra simplement d’appeler Dieu, révélation, salut, l’ex­
périence religieuse toute immanente de l’homme. Le Christ révélera
* Dieu, sauvera l’homme, simplement en ce sens qu’il exprimera et nous
318 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

pois o termo revelação, mas vazio de seu conteúdo tradi­


cional. O Evangelho não é mais que uma coleção de ex­
periências religiosas, com a única finalidade de provocar as
nossas próprias experiências.
Ritschl e Schleiermacher acostumaram o pensamento
protestante a preferir a experiência religiosa à adesão às
verdades dogmáticas. Assim se dissolveu a noção de reve­
lação objetiva, de doutrina efetivamente recebida de Deus.
A religião, em vez de ser o resultado de uma iniciativa de
Deus, é simplesmente uma elaboração imanénte que se desen­
rola no íntimo das consciências. Exalta-se a fé, mas ela não é
mais que uma disposição afetiva da alma, sem nenhuma
crença determinada. Uma é a religião que vive no coração
do fiel, outra a que procede dos dogmas e das fórmulas.
4. Na França, a difusão do liberalismo protestante
foi obra de A. Sabatier no seu Esquisse d’une philosophie
de la religion d’après la psychologie e l’histoire7. Sabatier
estabeleceu uma estreita relação entre religião, oração e re­
velação. A religião é essencialmente a oração do coração,
um movimento da alma que a põe em relação “com o po­
der misterioso do qual ela sente a dependência sua e de
seu destino”8. Mas que seria a piedade se ela não com­
portasse algumas manifestações positivas de Deus? A re­
velação é a resposta de Deus à oração, “mas contanto que
se acrescente que esta resposta está sempre, ao menos em
germe, contida na própria oração” 9, pois Deus, a quem se
dirige a oração é também aquele que a inspira.
A revelação não é, pois, comunicação, feita uma vez
por todas, de doutrinas imutáveis, mas é o próprio Deus

permettra d’exprimer, par l’image que les Évangiles ont immortalisée de


lui, la plus haute conscience que l’humanité prenne d’elle même” (L.
Bouyer. Ou Protestantisme à l’Église, p. 239). Sobre Ritschl, cfr. D. C.
Maeintosh, The Problem of religious Knowledge, pp. 243-250; art.
“Réforme”, no DAFC, 4: col. 677-680.
7 Publicado em Paris em 1897. Sabatier expõe suas idéias sobre a
religião e a revelação nos dois primeiros capítulos do livro primeiro:
“De l’origine psycoíogique et de la nature de la religion” (pp. 3-31) e
“Religion et révélation” (pp. 32-61).
8 A. Sabatier, Esquisse d’une philosophie de la religion, p. 24.
9 Ibid., p. 32.
A CRISE MODERNISTA 319

ou, antes, o sentimento de sua presença em nós. A reve­


lação está na oração e progride com a oração. Mais precisa­
mente, diz Sabatier, “ela consiste na criação, purificação e
clareza progressiva da consciência de Deus no homem indi­
vidual e na humanidade” 10. Portanto, ela existe para quem
quer que se submeta à ação divina, e ela não se pode con­
ceber senão sob uma forma pessoal e imediata. O fato
da revelação não precisa de prova, pois coincide com o fato
da consciência religiosa que existe em todos os homens e
em todas as religiões, se bem que de maneira mais viva nos
profetas e em Cristo. A essência do cristianismo encontra-
-se “numa experiência religiosa, numa revelação íntima de
Deus que se deu pela primeira vez na alma de Jesus de
Nazaré, mas que se verifica e se repete, menos luminosa­
mente sem dúvida, mas não irreconhecível, na alma de todos
os seus verdadeiros discípulos” 11. A piedade filial para
com o Pai e o sentimento fraternal para com os homens,
que nós observamos na consciência de Jesus, encontramo-
-los igualmente na experiência de todos os cristãos.
A emoção religiosa, que é a base da experiência re-
veladora, traduz-se primeiro sob a forma de imagens, depois
sob a forma de conceitos e juízos que a Igreja, se quiser,
poderá aprovar e receber como dogmas. O único elemento,
contudo, autêntico e permanente, reside na experiência re­
ligiosa (por exemplo, da justiça, da paternidade divina, do
reino de Deus), enquanto que as expressões dogmáticas,
são puramente simbólicas e submetidas à lei da evolução:
variam, conseqüentemente, com as épocas, as filosofias,
as culturas, o progresso do espírito. Assim alguns dogmas
poderão morrer (existência de demônios, eternidade das
penas), mudar de sentido (Trindade, milagre, revelação,
satisfação, inspiração), reviver após um período de esque­
cimento, ou mesmo aparecer (justificação pela fé, sacerdó­
cio universal)
Entende-se desde logo que Sabatier se oponha com
violência à noção de uma revelação, depósito revelado, pro-

Ibid., p. 35.
11 Ibid., pp. 187-188.
12 Ibid., pp. 305-312, 390-400.
320 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

duto híbrido nascido, segundo ele, do encontro do raciona


lismo grego e do sobrenaturalismo hebraico.
Em vão parecem deduzir da Sagrada Escritura essa
teoria escolástica; ela não é mais que uma tradução
infiel da noção bíblica. Arrancam ao solo da vida
religiosa a revelação de Deus para a constituir em
um corpo de verdades sobrenaturais subsistente por
si mesmo, e apresentam como obrigação e mérito a
adesão a esse conjunto, fazendo calar, se preciso,
julgamento e consciência. . . No fundo, essa idéia da
revelação é totalmente pagã. . . Concluamos, pois,
corajosamente, contra todas as ortodoxias tradicionais,
que o objeto da revelação de Deus não pode ser outro
senão Deus mesmo, isto é, o sentimento da sua pre­
sença em nós, que desperta nossa alma para a vida
da justiça e do amor 13.
Já que a revelação não é mais que a manifestação de
Deus na oração, serão estes seus traços característicos:
Ela será interior, porque Deus, não tendo existência
fenomenal, não se pode revelar, senão ao espírito e
na piedade que êle mesmo inspira. . . Ém segundo
lugar, esta revelação interior será sempre evidente; o
contrário implicaria contradição. Quem diz revelação,
diz véu afastado e luz projetada. . . Enfim, essa re­
velação será progressiva. O que quer dizer que
ela se desenvolverá com o progresso da vida moral
e religiosa que Deus fez nascer e crescer no seio da
humanidade 14.

13 “En vain paraît-on déduire de l’Écriture sainte cette théorie scolas­


tique; elle n’est qu’une traduction infidèle de la notion biblique. On
arrache au sol de la vie religieuse la révélation de Dieu pour la cons­
tituer en un corps de vérités surnaturelles subsitant par lui-même, et
auquel on se fait une obligation et un mérite d’adhérer, en faisant taire,
s’il le faut, son jugement et sa conscience... Au fond, cette idée de la
révélation est toute païenne... Concluons donc hardiment, contre toutes
orthodoxies traditionnelles, que l’objet de la révélation de Dieu ne saurait
être que Dieu lui-même, c’est-à-dire le sentiment de sa présence en
nous, éveillant notre âme à la vie de la justice et de l’amour” (Ibid,
pp. 43-44).
14 “Elle sera intérieure, parce que Dieu, n’ayant pas d’existence
phénoménale, ne peut se révéler qu’à l’esprit et dans la piété que lui-même
A CRISE MODERNISTA 321

As experiências religiosas dos homens de Deus expri­


mem-se naturalmente pela palavra e pela Escritura, e des­
tinam-se, depois de haverem iluminado sua própria cons­
ciência, a aclarar e vivificar outras almas. Mas como po­
deríam as almas reconhecer, nos livros ou na palavra, uma
revelação autêntica?
Escutai, um só critério é infalível e suficiente: toda a
revelação divina, toda a experiência religiosa verda­
deiramente boa para alimentar e sustentar vossa alma,
deve poder repetir-se e continuar como revelação atual
e experiência individual em vossa própria consciên­
cia. . . Não creias, meu irmão, que os profetas e os
iniciadores tenham transmitido suas experiência para
dispensar-te de fazer as tuas, ou que sua revelação te
seja trazida para que tu não tenhas nada mais a fazer
que recebê-la passivamente, como uma quantia de di­
nheiro; se acontecer de a receberes assim, não te terás
tornado mais rico. As revelações do passado não se
demonstram eficazes e reais a não ser que elas te tor­
nem capazes de receber a revelação pessoal que Deus
te reserva. . . A revelação divina que não se realiza
em nós e nem se torna imediata, não existe para
nós” 15.

inspire... En second lieu, cette révélation intérieure sera toujours evi­


dente. Le contraire impliquerait contradiction. Qui dit révélation, dit
voile tiré et lumière venue... Enfin, cette révélation sera progressive.
C’est dire qu’elle se développera avec le progrès de la vie morale et
religieuse que Dieu a fait naître et croître au sein de l’humanité” (Ibid.,
52-54).
15 “Ecoutez, un seul critère est infaillible et suffisant: toute révé­
lation divine, toute expérience religieuse vraiment bonne pour nourrir
et sustenter votre âme, doit pouvoir se répéter et se continuer comme
révélation actuelle et expérience individuelle dans votre propre conscien­
ce... Ne crois pas, ô mon frère, que les prophètes et les initiateurs
t’aient transmis leurs expériences pour te dispenser de faire les tiennes,
ou que leur révélation te soit apportée pour que tu n’aies à la recevoir
que passivement et comme une somme d’argent, ou bien, s’il t’arrive que
tu l’empruentes ainsi, tu n’en seras pas plus riche. Les révélations du
passé ne se démontrent efficaces et réelles que si elles te rendent capables
de recevoir la révélation personelle que Dieu te réserve... La révélation
divine qui ne se réalise pas en nous et n’y devient pas immédiate, n’existe
point pour nous” (Ibid., 58-59). Quisemos transcrever esses textos por­
que mostram até que ponto Loisy e Tyrrell dependem de Sabatier na
doutrina e até mesmo no modo de falar. Monstram-se bem pouco origi-

11 - Teologia da revelação
322 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

O Esquisse de Sabatier foi completado pelo tratado


mais positivo: Les Religions de l'autorité et la religion de
l'Esprit, de 1904 onde ele se esforça por apoiar sobre o Novo
Testamento e na história da Igreja primitiva esta concepção
de um cristianismo totalmente interior, sem dogmas nem
ritos, nem chefes, erguido contra todas as formas de ortodo­
xia (católica ou protestante). Essas duas obras represen­
tam perfeitamente o tipo de subjetivismo religioso que ca­
racteriza a teologia protestante moderna.

2. Os pródromos da crise

No trato cotidiano e praticamente indispensável com


as obras e os instrumentos de trabalho dos protestantes,
um perigo de contágio, para os católicos, não tinha nada
de quimérico 16. De fato, a ciência católica dos primórdios
do século XX, ao lado de trabalhadores inteiramente fiéis
à sua fé (tais como Duchesne, Battifol, Jacquier, Lagrange,
Tixeront) conta com espíritos que resistiram mal à febre mo­
dernista e nos quais se encontram, como em penumbra, as
tendências que aparecem claramente no protestantismo li­
beral.
1. A. Loisy, particularmente, mostrava-se ousado em
matéria de exegese e de história. A publicação do L'Evan-
gile et l’Église, em 1902, como resposta às pretensões de
nais os modernistas se lemos suas obras após termos lido as de seus
ascendentes liberais.
16 O P. Grandmaison escrevia então: “La source du modernisme
est... dans les conceptions de ‘ philosophie religieuse préformées par
Herder et Lessing, développées e^ poétisées par Schleiermacher, élargies
et fécondées par Hegel, monnayées enfin sous mille formes, et à des
doses infiniment variées, par les exégetes, critiques et historien de la
gauche protestante... C’est dans le commerce quotidien, rendu prati­
quement indispensable par la mainmise protestante sur les instruments
de travail scientifique, avec ces auteurs et leurs pareils; c’est dans la
lecture des écrivains profanes: historiens de la religion et historiens tout
court, naturalistes, littérateurs même, portés par les grands courants de la
pensée moderne, sentimentalistes, monistes déclarés ou hésitants, évolu­
tionnistes, agnostiques, savants férus des méthodes employées avec succès
dans l’étude des êtres vivants; c’est dans l’impuissance à concilier ces
notions et ces hypothèses avec la veleur absolue du dogme chrétien qu’il
faut chercher le virus propre de la fièvre moderniste” {Recherches de
science religieuse, 9 (1919): 401-402).
A CRISE MODERNISTA 323

Harnack, produziu na época o efeito de um raio e tornou-


-se logo, nos meios católicos, um sinal de contradição. Numa
visão retrospectiva de sua obra, Loisy declara ter procura­
do, nem mais nem menos, “uma reforma essencial da exe­
gese bíblica, de toda a teologia e até mesmo do catolicismo
em geral” 17. É certo que o Autor d’un petit livre, publi­
cado em 1903, acabou de dissipar qualquer ambiguidade
sobre sua atitude e suas posições doutrinais.
Nesta obra, onde o relativisme é um dos dogmas mais
importantes, a noção de revelação é diretamente posta em
causa. Loisy parte de uma noção de verdade, bastante vaga
e inquietante: “parece-me evidente, pela experiência co­
num, disse ele, que a verdade é em nós alguma coisa
necessariamente condicionada, relativa, sempre perfectível,
e susceptível também de diminuição.. . a verdade, enquan­
to bem do homem, não é mais imutável que o próprio
homem. Ela evolui com ele, nele e por ele; e isso não a
impede de ser a verdade para ele; aliás, é somente assim
que ela o pode ser” 18. Denuncia eni seguida o que ele pensa
ser o conceito católico de revelação:
Mesmo a teologia culta tem da revelação uma idéia
extremamente antropomórfica, completamente descon­
certante para a ciência e a filosofia contemporânea.
Como geralmente nunca se deixou de tomar ao pé
da letra os primeiros capítulos do Gênesis, não se

17 A. Loisy, Choses passées (Paris, 1913), p. 246. Em 1906 êle


já afirmava querer apresentar: “Premièrement une esquisse et une ex­
plication historique du développement chrétien; secondement, une philo­
sophie générale de la religion et un essai d’interprétation des formules
dogmatiques, symboles officiels et définitions conciliaires, en vue de les
adapter, par le sacrifice de la lettre à l’esprit, avec les données de l’his­
toire et avec la mentalité de nos contemporains” (Revue d’histoire et
de littérature, 11 [1906]: 570).
M “.... il me semble évident par la commune expérience, que la
vérité est en nous quelque chose de nécessairement conditionné, relatif,
toujours perfectible, et susceptible aussi de diminution... la vérité, en
tant que bien de l’homme, n’est pas plus immuable que l’homme lui-même.
Elle évolue avec lui, en lui, par lui; et cela ne l’empêche pas d’être
la vérité pour lui; elle ne l’est même qu’à cette condition” (A. Loisy,
Autor d’un petit livre [Paris, 1903], pp. 191-192). O decreto Lamentabili
condenou a seguinte proposição tirada da obra de Loisy: “Veritas non
est immutabilis plus quam ipse homo, quippe quae cum ipso, in ipso et
per ipsum evolvitur” (D. 2058).
324 NOÇÃO DE REVELAÇÃO È MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

encontra a menor dificuldade no fato de Deus mesmo,


no paraíso terrestre, nas conversas íntimas que pre­
cederam o primeiro pecado e pela terrível sentença
que o seguiu, ter explicado ao primeiro homem e à
primeira mulher os dogmas fundamentais do cristia­
nismo, toda a economia da redenção 19.
Essa concepção antropomórfica ele a substitui por uma
concepção psicológica, imposta, julga ele, por suas consta­
tações de historiador da religião de Israel. A “revelação
não pode ser outra coisa do que a consciência que o homem
adquiriu de sua relação com Deus. O que é a revelação
cristã, em seu princípio e seu ponto de partida, senão a
percepção, na alma de Cristo, da relação que unia o pró­
prio Cristo a Deus, e que une todos os homens a seu
Pai celeste?. . . Num dado momento, o começo da re­
velação foi a percepção, por mais rudimentar que a supo­
nhamos, da relação que deve existir entre o homem, cons­
ciente de si mesmo, e Deus presente para além do mundo
fenomenal. . . O desenvolvimento da religião revelada efe­
tuou-se pela percepção de novas relações, ou antes, por
uma determinação mais precisa e mais distinta da relação
essencial, entrevista desde a origem. O homem aprendeu
assim a conhecer cada vez melhor tanto a grandeza de Deps
quanto o que vinha a ser seu próprio dever ” 20.

19 “Même la théologie savante en retient une idée extrêmement


anthropomorphique, tout à fait déconcertante pour la science et la philo­
sophie contemporaines. Comme on n’a pas généralement cessé de prendre
à la lettre les premiers chapitres de la Genèse, on ne trouve pas la
moindre difficulté à ce que Dieu lui-même, au paradis terrestre, dans
les conversations intimes qui précédèrent la première faute, et par la
terrible sentence qui la suivit, ait expliqué au premier homme et à la
première femme les dogmes fondamentaux du christianisme, toute l’éco­
nomie de la rédemption” (Ibid., pp. 192-193). Sem dúvida, Loisy nunca
estudou como santo Tomás concebe essa revelação primitiva: “In statu
primae conditionis, non erat auditus ab homine exterius loquente, sed
a Deo interius inspirante: sicut et prophetae audiebant, secundum illud
Psalm (84,9): Audiam quid loquatur in me Dominus Deus” (2a 2ae,
q. 5, a. 1, ad 3; De Verit., q. 18, a. 2, c.).
20 A révélation n’a pu être que la conscience acquise par l’homme
de son rapport avec Dieu. Qu’est-ce que la révélation chrétienne, dans
son principe et son point de départ, sinon la perception, dans l’âme du
Christ rapport qui unissait à Dieu le Christ lui-même, et de celui qui relie
tous les hommes à leur Père céleste... Ce qui fut, à un moment donné,
A CRISE MODERNISTA 325

Assim, segundo Loisy, a revelação propriamente dita


outra coisa não é que a consciência da relação homem-Deus.
Esta consciência, acrescenta ele, “ao contrário das percep­
ções de ordem racional e científica. .. é um trabalho da
inteligência, executado, por assim dizer, sob a pressão do
coração, do sentimento religioso e moral, da vontade real
do bem” 21. É pois uma percepção intuitiva, experimental
e cordial de nossas relações com Deus. Qual é agora o
objeto da revelação? São as idéias que surgiram na hu­
manidade e que descrevem as relações que devem existir
entre Deus e o homem: “A revelação tem por objeto pró­
prio e direto às verdades simples contidas nas asserções da
fé.. . Sua forma própria é uma intuição sobrenatural e
uma experiência religiosa” 22. Enfim, segundo Loisy, não
podería haver um depósito imutável da revelação: “A Igre­
ja proclama que a verdade da revelação não está toda in­
teira na Escritura. Esta verdade não está, tampouco, toda
inteira nem na tradição do passado nem no ensinamento
do presente; enquanto todos os crentes nela têm parte,
ela se realiza perpetuamente neles, na Igreja, com o auxílio
da Escritura e da tradição” 23. E no Simples réflexions·. “A
idéia de marcar um término para a revelação divina é com­
pletamente mecânica e artificial... estranha aos apóstolos;
mas ela está em relação com a idéia, não menos mecânica
e totalmente mitológica, digamos infantil, que se forma da
própria revelação”24.
Em resumo, para Loisy, a revelação não é doutrina

le commencement de la révélation a été la perception, si rudimentaire


qu'on la suppose, du rapport qui doit exister entre l’homme, conscient
de lui-même, et Dieu présent, derrière le monde phénoménal... Le dé­
veloppement de la religion révélée s’est effectué par la perception de
nouveaux rapports, ou plutôt par une détermination plus précise et
plus distincte du rapport essentiel, entrevu dè dès l’origine, l’homme
apprenant ainsi à connaître de mieux en mieux et la grandeur de Dieu
et le caractère de son propre devoi” (Ibid., pp. 195-197). Compare
corn Sabatier, Esquisse d’une philosophie de la religion, pp. 34-35,
176-177, 183-184, 394-395.
21 Ibid., p. 197.
22 Ibid., p. 200.
23 Ibid., 207.
24 A. Loisy, Simples Réflexions (Ceffonds, 1908), p. 58.
326 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

oferecida à nossa fé, um depósito imutável de verdades,


mas uma percepção intuitiva e experimental, sempre em
devir, de nossas relações com Deus. A revelação, como o
dogma e a teologia, evolui sempre; ela está sempre em
formação.
2. Enquanto Loisy apoia sobre a história sua crítica da
idéia da revelação25, G. Tyrell fundamenta a sua sobre a filo­
sofia e a teologia. As tendências modernistas, encontra­
ram neste' intuitivo e neste místico um adepto entusiasta.
Um estranho parentesco de atitude, de pensamento e de
expressão o aproxima de Sabatier e de Loisy. Tyrrell re­
conhece a transcendência da revelação, mas sua concepção
da revelação-experiência conduz em linha reta ao relativismo
dogmático. No fim o desvio é flagrante.
Como Loisy, Tyrrell ataca uma concepção antropomór-
fica e extrinsecista da revelação: “Conceber a revelação
como se ela tivesse sido ouvida do alto das nuvens, é cer­
tamente deixar-se iludir pelo ingênuo simbolismo da arte
cristã”26. Por conseguinte, também ele rejeita uma fé
que se apresenta como um assentimento do espírito a um
sistema de proposições27, em vez de ser uma “ adesão do
homem todo, coração, espírito e alma, ao Espírito divino
interior, que é antes de tudo Espírito de vida e de amor” M.
O Evangelho é uma força, não uma ciência; o cristianismo
não é um corpo de definições e de asserções divinamente
garantidas, mas uma vida29.
A fonte dos conflitos atuais, julga Tyrrell, reside numa

25 A. Loisy, Autour d’un petit livre, p. 154.


26 “To conceive revelation as necessariUy trumpeted from the clouds
is surely to be led astray by the naïve symbolism of the Christian art” (G.
Tyrrell, Through Scylla and Charybdis [London, 1907], p. 314). O essen­
cial de seu pensamento encontra-se nos capítulos XI e XII dessa obra:
“Revelation”! pp. 264-307), “Theologism — A reply” (pp. 308-354).
27 G. Tyrrell, A Much-abused Letter (London, 1907), pp. 39, 51, 52.
28 “Faith is now an intellectual assent to this revealed theology as
deriving directly from the divine intellect; it is no longer the adhesion
of the whole man, heart, mind and soul, to the divine spirit within-
-primarily a spirit of life and love” (G. Tyrrell, Through Scylla and
Charybdis, p. 213).
» G. Tyrrel, A Much-abused Letter, pp. 51-52; Medievalism (Lon­
don, 1908), pp. 217-218.
A CRISE MODERNISTA 327
confusão entre revelação e teologia e os modos de conhe­
cimento heterogêneos que elas representam30.
A revelação propriamente dita, que é preciso distin­
guir, observa ele, de sua transcrição e de sua comunica­
ção31, “pertence antes à categoria de impressões do que à
da expressão” 32. Ela é emoção, impulsão, atinge o coração,
abala toda a alma33. “A revelação não é afirmação, mas
experiência” 34. E Tyrrell esclarece: “É muito importante
lembrar que, estritamente falando, a revelação consiste na
experiência religiosa total, e não apenas no elemento in­
telectual desta experiência”35. Quando Deus se revela, a
experiência é total, açambarcadora. Deus age mais do que
fala, e a reação do homem pode-se comparar àquela que
provoca nele o trovão. O abalo afeta todo o ser: mas en­
quanto que o elemento experimental é pouco mais ou menos
idêntico em todos os homens, a reação mental subseqüente,
diferencia-se conforme as pessoas e segundo a cultura de cada
um36. Tyrrel acentua de bom grado o caráter de totalidade
da experiência reveladora, como também os elementos emo­
cionais que ela comporta; esta insistência, todavia, disfarça
mal certa desconfiança com respeito a elementos propria­
mente intelectuais.
Por natureza, a revelação é individual, incomunicá­
vel: é uma experiência que cada profeta traduz como pode,
segundo sua riqueza mental e formação, pelo jogo de ima­
gens e de conceitos: “O que nos é comunicado, é certa
experiência, seja da presença de Deus, de sua Providência,
de sua Paternidade, do poder expiador de Jesus Cristo sobre
as almas, da comunhão dos santos, do perdão dos pecados,

30 Nesse termo “teologia”, Tyrrel engloba e confunde muitas vezes


dogma e teologia.
31 G. Tyrrell, Through Scylla and Charybdis, p. 268.
32 “Revelation belongs rather to the category of impression than to
that of expression” (Ibid., p. 280).
33 Ibid., pp. 282-283.
34 “Revelation is not statement, but experience” (Ibid., p. 285).
35 “It is very important to remember that, strictly speaking, Reve­
lation consists in the total religious experience and not simply in the
mental element of that experience” (Ibid., p. 285).
36 Ibid., pp. 287-288. Compare com Sabatier, Esquisse d’une philo­
sophie de la religion, p. 304-305.
328 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

das esperanças eternas; experiência que enche e inspira o


espírito do profeta e espontaneamente se traduz e se expri­
me pelas categorias e imagens que este espírito encontra à
sua disposição” 37. Mas esta transposição já não é a reve-
lação-experiência, isto é, o dado vital original e único autên­
tico, mas uma sombra, uma representação relativa, um objeto
a ser interpretado; certamente que não é, de modo algum,
um juízo a ser desenvolvido nem um absoluto doutrinai.
A profecia é experiência e visão: experiência do poder, da
majestade e da transcendência de Deus. Do mesmo modo,
os apóstolos tiveram a revelação de Cristo por uma ex­
periência viva, intuitiva e total. Esta experiência é expressa
primeiro sob a forma de imagens (para Pedro, Cristo é o
Messias; para João, o Verbo [ou Logos]; para Paulo, o se­
gundo Adão), depois, ulteriormente na Igreja, sob a forma
conceptual mais elaborada do Verbo consubstanciai ao Pai.
Nenhum desses conceitos é propriamente a revelação38.
Sem dúvida, as imagens que vão surgindo da experiência
apostólica têm um caráter especial, enquanto “vestígio, im­
pressão imaginativa deixada por Cristo na mentalidade de
uma época que o conheceu, viu, tocou”39. Elas prolongam
a experiência e nos ajudam a evocá-lo. As imagens e con­
ceitos, nascidos expontânea ou reflexivamente na alma do
profeta ou do apóstolo, não são mais que a reação humana
“ao toque divino sentido no coração”, simplesmente como
os sonhos de um homem que dorme são criados e forma­
dos por alguma causa exterior40. Esses elementos valem
como sugestão, mas eles continuam sendo produto humano,

37 “It is some communicated experience of God’s presence or provi­


dence or fatherhood, of Christ’s saving and atoning power over the soul,
of communion with the Saints, of the forgiveness of sins, of the hope of
immortality, which fills and inspires the spirit of the prophet, and
spontaneously utters and. expresses itself through the categories and images
with which his mind happens to be instructed” (G. Tyrrell, Through
Scylla and Charybdis, p. 314).
38 Ibid., pp. 280-289.
» Ibid., p. 291.
40 “The expression is but the reaction, spontaneous or reflex, of the
human mind to God’s touch felt within the heart, and this reaction is
characterised wholly by the ideas, forms and imagens wherewith the mind
is stocked in each particular case” (Ibid., pp. 208-209).
A CRISE MODERNISTA 329

falível e inconstante. Nosso erro é tratá-los como verdades,


como afirmações certas.
A própria revelação, como experiência, pode reivindi­
car qualquer título de verdade? Sim, responde Tyrrell; esta
verdade, contudo, é diretamente prática, preferencial, e só
indiretamente especulativa. “O que recebe uma aprovação
imediata, por assim dizer experimental, é uma forma de
viver, de sentir e de agir relacionada com o outro mundo. As
concepções explicativas e justificativas que o espírito pro­
cura mais tarde, enquanto exigidas por essa forma de vida,
não têm a aprovação divina” 41. Por conseguinte, só a re­
velação tem caráter sagrado; dogma e teologia têm caráter
profano. A verdade da revelação é profética, visionária; a
da teologia e do dogma, intelectual e científica42.
Já que a revelação é “experiência espiritual concreta”,
é falso, explica Tyrell, “falar de um desenvolvimento da
revelação, como se ela fosse um corpo de afirmações ou
de proposições teológicas”43. Falar assim denota confusão
entre revelação e teologia. Sua verdade sendo de uma ordem
diferente, não poderá haver homogeneidade entre ambas.
As fórmulas dogmáticas têm por finalidade permitir à cada
um evocar a experiência inicial e apropriar-se dela, sob a
ação do Espírito. Mas entre os dogmas e o dado revelado
primitivo, a relação não é a de uma fórmula para com o
dado objetivo e intelectual definido, mas a de uma inter­
pretação da experiência profética ou apostólica; elabora­
ção conceptual que é fruto da reflexão comunitária sobre a
recordação deixada pelos inspirados; fórmulas provisórias,
voltadas para a experiência, nascidas das necessidades do
tempo e adaptadas ao espírito de uma época44.

41 “What is immediately approved, as it were experimentally, is a


way of living, feeling, and acting with reference to the other world. The
explanatory and justificatory conceptions subsequently sought out by the
mind, as postulated by the ‘way of life’, have no direct divine approval”
(Ibid., p. 210).
« Ibid., pp. 209, 238.
43 “It is then a patent fallacy to speak of a development of Revelation
as though it were a body of statements or theological proposition” (Ibid.,
P- 292).
44 Ibid., pp. 237, 303-305.
330 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Mas se, de uma parte, a revelação é experiência vital,


inefável, e se, de outra parte, os enunciados dogmáticos não
são mais que interpretações provisórias a partir da expe­
riência rudimentar e deficiente do profeta, é possível ainda
termos acesso à revelação? E como a revelação se pode
transmitir? Segundo Tyrrell, é necessário supor em cada
indivíduo uma capacidade de experiência semelhante à do
profeta ou do apóstolo. A revelação é uma experiência que
se repete analogamente em cada alma individual. Nosso
espírito responde ao Espírito e a experiência do profeta se
torna nossa experiência. A assimilação da revelação “não
é somente a apreensão mental e a aceitação de afirmações e
de pensamentos. . . o ensinamento exterior deve evocar
uma revelação em nós mesmos; a experiência do profeta
deve tornar-se experiência para nós. É a esta revelação evo- |
cada que nós respondemos pelo ato de fé, reconhecendo-a
como palavra de Deus em nós e para nós. . . A revelação
não pode vir a nós de fora; ela pode ser ocasionada, não
causada pelo ensinamento” 45.
O ideal, para o cristão, é pois acolher, por ocasião
da Escritura, das fórmulas de fé, a revelação direta, o sopro
do Espírito, como o acolheram os discípulos de Jesus. O
único Mestre infalível é o Espírito de Deus que se revela
a cada um dos fiéis, porém, mais claramente a uma elite de ]
homens espirituais, que se adiantam à massa dos cristãos.
O cristão serve-se de fórmulas que unem os cristãos na me- 4
dida em que elas alimentam seu sentimento religioso. Qual­
quer dogma que já não desperte eco na alma, deixa de ser
necessário para a salvação. “Se o germe primitivo é su­
ficiente para a vossa vida, podeis dispensar-vos do de­
senvolvimento, sobretudo se ele vos impede e vos entra­
va” 46. Se, pois, as fórmulas se tornarem um fardo, porque

45 This assimilation is precisely an act of inward recognition — a


response of spirit to spirit, and not only the mental apprehension and v
acceptance of statements and meanings... the teaching from outside
must evoke a revelation in ourselves; the experience of the prophet must |
become experience for us. It is to this evoked revelation that we answer ।
by the act of Faith, recognizing it as God’s word in us and to us.. ?
Revelation cannot be put into us from outside; it can be occasioned, but
it cannot be caused by instruction” (Ibid., pp. 305-306).
46 “If you can live on the undeveloped germ, you may dispense i
A CRISE MODERNISTA 331

estéreis e esterilizantes, será necessário libertar-nos delas


e levar a Igreja a libertar as almas de expressões caducas47.
Esta atitude protestante é a conseqüência de todo o
sistema de Tyrrell. Se a revelação é comunicada diretamente
a cada alma, se ela é essencialmente experiência, se o dogma
não é mais que uma concepção humana, uma interpretação
falível, provisória, mais ou menos ligada a esta experiência
e mais ou menos satisfatória, já não há lugar para uma au­
toridade dogmática, e é necessário optar com Sabatier por
uma religião do espírito contra uma religião da autoridade.
A Igreja continua ainda uma instituição respeitável, que
une os cristãos na profissão das mesmas fórmulas, mas ela
já não é a Esposa do Cristo, pela qual toda graça e toda
verdade nos são comunicadas48.
Ao lado de expressões manifestamente malsonantes, como
essas que acabamos de encontrar, acham-se em Tyrrell mui­
tas expressões ambíguas que nos podem enganar quanto
ao seu pensamento real49. Sua obra, não obstante
tomada em conjunto, com as conclusões às quais ele chega,
mostra claramente que, para ele, a revelação não é, como
para a Igreja, a palavra dita por Deus, uma doutrina di­
vinamente garantida; nem a fé uma adesão do espírito aos
ensinamentos dos apóstolos e da Igreja. Para Tyrrell a
revelação não é mais que a experiência vinda do alto, das

with the developments, especially if they but puzzle and hinder you. For,
after all, the visible Church... is but a means, a way, a creature, to be
used where it helps, to be left where it hinders” (G. Tyrrell, A Much-
-abused Letter, p. 86).
47 Ibid., p. 87. E no Through Scylla and Charybdis: “Deferential
within the limits of conscience and sincerity to the official interpreters
of her mind (Of the Church), they must, nevertheless, interpret such
interpretations in accordance with the still higher and highest canon of
Catrolic truth: with the mind of Christ. It is He who sends us to them;
not they who send us to Him. He is our first and our highest authority.
Where they to forbid the appeal, their own dependent authority would
be at an end” (Ibid. p. 19).
48 J. Lebreton, art. “Modernisme”, no DAFC, 3: 683.
49 Por exemplo: “Can Revelation be communicated? Can I believe
on the strenght of God’s word to another? Can such belief be (in de­
fiance of logic) stronger than my purely human faith in the veracity of
that other? Must not God speak to me directly? Must He not, at least
from within, illuminate the revelation thus verbally communicated to me
by another, and bring it home to me with a super-rational intuitive certi­
tude?” (Through Scylla and Charybdis, p. 268). Cfr. Ibid., p. 316.
332 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

realidades sobrenaturais. “Não só, escreve o P. de Grand-


maison, ela não importa, mas ela não comporta uma comu­
nicação de verdades definidas, de julgamentos certos”
E o dogma, que Tyrrell confunde com a teologia, não é
mais que “a análise, natural, tateante e falível dessa expe­
riência” 51. A revelação-experiência é, segundo este último,
imutável e não pode receber um desenvolvimento; somente
o dogma e a teologia, superestrutura necessária, mas hete­
rogênea com relação à experiência, evoluem e mudam
sem cessar. É em nome dessa dissociação extremada entre
revelação-experiência e teologia, que Tyrell toma todas as
liberdades em matéria doutrinai. Para Loisy, ao contrário,
revelação, dogma e teologia estão sujeitos a um vir a ser
perpétuo, ilimitado. Nos dois casos, as noções de revelação
e de desenvolvimento dogmático estão em jogo52.

3. Documentos antimodernistas
1. Diante da gravidade do perigo, e sobretudo diante
das ilusões que se multiplicam por toda parte, Roma inter­
vém; primeiro com sentenças do Index; em seguida, pelas
decisões da Comissão Bíblica (em 1905, 1906, 1907); fi­
nalmente, pelo decreto Lamentabili do Santo Ofício (3 de
julho de 1907). Um breve prefácio indica a intenção da San­
ta Sé de impedir os excessos cometidos pela crítica moderna
no terreno bíblico e dogmático. A Congregação agrupou e re­
provou sessenta e cinco proposições. Três dentre elas (XX,
XXI, XXII) dizem respeito diretamente ao nosso assunto.
Se bem que separadas, essas proposições se juntam uma à
50 L. de Grandmaison, “Le Développement du dogme”, Revue pratique
d’apologétique, 6 (1908): 97-98.
51 “Revelation is a supernaturally imparted experience of realities —
an experience that utters itself spontaneously in imaginative popular non-
-scientific form; theology is the natural, tentative, fallible analysis of that
experience. The Church’s divine commission is to teach and propagate a
new life, a new love, a new hope, a new spirit, and not the analysis of
these experiences” (G. Tyrrell, Medievalism, p. 129). Crf. Through Scylla
and Charybdis, p. 277.
52 Se demos a impressão de desenvolver demais a apresentação das
posições de Loisy e Tyrrel, bem como a de seus ascendentes protestantes,
deve-se isso ao fato de essa exposição ser absolutamente indispensável para
que possa ser devidamente apreciado o alcance das intervenções da Igreja.
Havia urgência e razões mais que suficientes.
A CRISE MODERNISTA 333

outra por um nexo interno, que o do próprio sistema de


Loisy ao qual elas se referem53. Nossa intenção não é retomar
aqui um assunto já exposto, mas mostrar como, sob uma for­
ma negativa, o decreto reafirma posições anteriores, especial­
mente as do primeiro concilio do Vaticano. Relembrando de­
cisões doutrinais opostas, desde muito tempo, pela Igreja
contra o livre exame protestante ou contra o racionalismo
moderno, manifesta sua resolução de reagir a umà ofensiva de
indênticas tendências. O decreto mantém em todo o seu rigor
a noção de uma revelação objetiva, doutrina recebida de Deus,
da qual a Escritura inspirada constitui o principal depósito
e cuja integridade a Igreja tem a missão de assegurar. As
proposições de LVII a LXV condenam os próprios princípios
do evolucionismo religioso, absoluto, ilimitado; com outras
palavras, toda a filosofia religiosa proveniente, mediante
Sabatier, de Schleiermacher e de Ritschl.
A proposição XX condena a definição de revelação dada
por Loisy “A revelação não pode ser nada mais que a cons­
ciência que o homem adquiriu de sua relação com Deus” M.
Para o historiador da religião de Israel, como nos lembranmos,
a revelação é progressiva e sua evolução dependeu de cir­
cunstâncias políticas, sociais e culturais. Ele a vê como a
atividade humana pela qual o homem toma consciência de
suas relações com Deus. O objeto desta revelação se cons­
titui de idéias que tiveram origem na humanidade e que des­
crevem as relações que devem existir entre Deus e o homem.
Idéias que se elaboram pouco a pouco, conforme se torna
mais distinta a consciência das relações homem-Deus. Por

53 Contudo, a intenção da santa Sé era, inicialmente, reunir propo­


sições claramente heterodoxas, sem visar um autor em particular. É por
isso que, diz o P. Grandmaison; “plausieurs proposition on é; à dessein,
très judicieusement définies, resserrées, voire majorées, afin d’en faire
ressortir le sens, et d’en dégager, sans discussion possible, la portée
hétérodoxe” (DAFC, 3: col. 605). Quanto às origens do decreto Lamen­
tabili, cfr.: P. Dudon, “Origines françaises du décret Lamentabili (1903-
-1907)”, Bulletin de littérature ecclésiastique, 32 (1931): 73-96; R.
Aubert, “Aux origines de la réaction anti-moderniste. Deux documents
inédits”, Eph. theol. lov. 37 (maio-setembro 1961): 557-579.
54 “Revelatio nihil aliud esse potuit quam acquisita ab homine suae
ad Deum relationis conscientia” (D. 2020). Proposição tomada do Autour
d’un petit livre, p. 195. Comentário do próprio Loisy no Simples Ré­
flexions, p. 57.
334 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

conseguinte, “os dogmas que a Igreja propõe como re­


velados, não são verdades caídas do céu, mas uma certa inter­
pretação dos fatos religiosos que o espírito humano adqui- ■
riu por um laborioso esforço” 55. Enfim, conseqüência lógi­
ca, a revelação jamais está terminada, pois jamais está ter­
minada a tomada de consciência da humanidade: “A reve­
lação que constitui o objeto de fé católica não ficou terminada
com os apóstolos”56.
Por negativa que seja, essa exposição evoca a doutrina
positiva da Igreja. Esta não nega que a verdade revelada,
destinada ao homem, seja recebida no homem, mas ela se
recusa a ver na revelação o produto de uma atividade sim­
plesmente humana e natural. Dentro da ótica modernista,
a revelação, em última análise, é atribuível ao homem, e
as verdades conhecidas não ultrapassam o conteúdo ima-
nente da consciência religiosa da humanidade. De trans­
cendente, tornà-se imanente. Deixa de ser palavra dita por
Deus, expressão de seu pensamento, tendo por autor Deus,
agente pessoal e transcendente, que comunica ao homem, por |
uma ação graciosa e livre, verdades que podem até ultra­
passar a capacidade da inteligência humana (D. 1785, 1787).
Pela revelação, como a concebe a Igreja, é Deus mesmo que
vem ao encontro do homem, iluminando o espírito do pro­
feta ou publicando o Evangelho da salvação por Cristo, Ver- J
bo encarnado (D. 783, 1785). O homem, é verdade, re­
cebe ativamente a mensagem divina, mas a doutrina proce- j
de de um outro. A história religiosa da humanidade repou­
sa sobre uma doação divina: sobre a “doutrina de fé que Deus
revelou” e que foi confiada à Igreja “como um depósito”
para ser conservado fielmente e a ser declarado infalivelmen- í
te (D. 1800). Num sentido, as verdades reveladas são “ver­
dades caídas do céu”, já que os lábios humanos do Cristo,
Verbo encarnado, nos comunicam com autoridade e sem erro
1
55 “Dogmata, quae Ecclesia perhibet tanquam revelata, non sunt
«
w
veritates e coelo delapsae, sed sunt interpretatio quaedam factorum reli­
giosorum, quam humana mens laborioso conatu sibi comparavit” (D.
2022). Cfr.: L’Évangile et l’Église, pp. 202-203; Autour d’un petit livre,
p. 189; Simples Réflexions, p. 59.
56 “Revelatio, objectum fidei catholicae constituens, non fuit cum
Apostolis completa” (D. 2021). Cfr. Autour d’un petit livre, p. 207;
Simples Réflexions, p. 58. 1
A CRISE MODERNISTA 335
possível a própria “doutrina” do Pai (Jo 7,16), seu desígnio
de salvação para a humanidade (Rom 16,25-27; Col 1,
25-28).
A revelação não é, portanto, uma realidade sempre
em devenir ligada ao desenvolvimento da consciência hu­
mana, mas um depósito de verdades sobrenaturais, confia­
do à guarda da Igreja e constituído desde o tempo dos após­
tolos. “A revelação, que constitui o objeto da fé católica. ..
ficou terminada com os apóstolos” (D. 2021).
O texto do decreto implica os seguintes pontos de
ensinamento católico: primeiramente, a soma de verdades
oferecidas à nossa fé já está toda na doutrina apostólica
e, por conseguinte, não podería sofrer nem acréscimo nem
diminuição real; em seguida, que o objeto da nossa fé foi
constituído pela revelação divino-apostólica, e somente por
ela; finalmente, o processo de revelação que constitui o
objeto de nossa fé terminou com o tempo dos apóstolos.
Desde o tempo apostólico o objeto da nossa fé ficou, pois,
completo, isto é, realizado em sua perfeição essencial de
objeto a ser crido por todos: trazido à existência, em sua
totalidade, como objeto de um convite divino à fé57. Re­
velação neste texto pode, pois, designar tanto a ação re­
veladora como a doutrina ou o depósito da fé: de uma como
de outra é certo afirmar que elas terminaram com os após­
tolos. O decreto não nega, contudo, que o término da
revelação seja também o ponto de partida de um .real mo­
vimento de assimilação subjetiva por parte da Igreja, que
penetra sempre, cada vez mais o depósito que Deus lhe
confiou, não como um bloco inerte de metal precioso, mas
como uma palavra viva e fecunda. A fonte está dada, mas
nós não cessamos de nela matar nossa sede.
Esta doutrina é perfeitamente coerente com as outras
proposições do decreto, como também com o ensinamento
anterior da Igreja. A revelação foi comunicada aos homens
por meio de Moisés, pelos profetas e finalmente por Cris­
to, dizem os concílios de Latrão, de Trento e do Vaticano
(D. 428, 783, 1785). Ela não é uma obra humana que resul-

57 E. Dhanis, “Révélation explicité et implicite”, Gregorianum, 34


(1953): 214-215.
336 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

tasse de uma elaboração filosófica (D. 1636, 1656, 1800),


tampouco está submetida ao progresso indefinido da ra­
zão (D. 1705): é um depósito a ser guardado e exposto
(D. 1800). O decreto especifica que o cristianismo não
foi um movimento religioso sem base doutrinai58; muito
ao contrário, o Cristo “ensinou um corpo determinado de
doutrina aplicável a todos os tempos e a todos os ho­
mens” 59. Não se pode admitir o princípio evolucionista se­
gundo o qual “a doutrina cristã, foi a princípio judaica,
mas se tornou, através de sucessivas evoluções, primeiro
paulina, depois joanina, finalmente helênica e universal”
Longe de ter conhecido formas sucessivas e heterogêneas,
ela conserva a mesma significação para os cristãos de nosso
tempo, como para os dos primeiros séculos (D. 2062). A
revelação é pois imutável (D. 125, 148, 160, 212, 293,
300). Esta imutabilidade da doutrina, entretanto, não é
um obstáculo ao verdadeiro progresso das ciências moder­
nas (D. 2063): este não exige que se reformem os con­
ceitos da doutrina cristã sobre. . . a revelação 61.
2. Dois meses depois do decreto Lamentabili, ou seja
a 8 de setembro de 1907, aparecia a encíclica Pascendi.
Enquanto o decreto se contentava com apontar os erros, a
encíclica descobre as raízes filosóficas do mal. Nenhum
modernista, diga-se de passagem, professou tal e qual o
corpo de doutrinas fortemente estruturado que apresenta a
58 Nos Études évangéliques Loisy escreve: “Dépositaires et prédi­
cateurs d’une religion vivante, les premiers adeptes de l’Évangile ne
songèrent pas un instant qu’ils dussent être liés dans leur enseignement,
soit par la lettre des formules dont le Christ avait pu se servir, soit par
la réalité matérielle des faits accomplis; ils ne se considéraient pas comme
les gardiens d’une essence doctrinale que Jésus n’avait jamais eu l’intention
de prêcher... Jésus avait été beaucoup moins le représentant d’une
doctrine que l’initiateur d’un mouvement religieux” (p. XIII). Cfr.
L’Évangile et l’Église, p. 167; Autor d’un petit livre, p. 17.
59 “Christus determinatum doctrinae corpus omnibus temporibus cunctis-
que hominibus applicabile non docuit, sed potius inchoavit motum quemdam
religiosum diversis temporibus ac locis adaptatum vel adaptandum” (D.
2059).
60 “Doctrina Christiana in suis exordiis fuit judaica, sed facta est
per successivas evolutiones primum paulina, tum joannica, demum hellenica
et universalis’’ (D. 2060).
61 “Progressus scientiarum postulat ut reformentur conceptus doctrinae
christianae de Deo, de creatione, de revelatione, de persona Verbi in­
carnati, de redemptione’’ (D. 2064).
A CRISE MODERNISTA 337
encíclica. Esta quis simplesmente recolher tendências e
princípios esparços em diversos autores e mostrar como esses
autores coincidiam na profissão consciente ou inconsciente
dos mesmos princípios e tendências. Tornava-se fácil, agru­
pando esses princípios, mostrar suas gravíssimas conseqüên-
cias nos domínios da filosofia, da teologia, da história, da
crítica, da apologética.
Na base de sua filosofia religiosa, os “modernistas
colocam a doutrina chamada comumente agnosticism©”. Em
virtude desta doutrina, é incognoscível tudo o que ultra­
passa o âmbito dos fenômenos. Por isso Deus não podería
ser objeto de ciência, nem ser reconhecido como o autor
de certas intervenções históricas; por conseguinte, também
a teologia natural, os motivos de credibilidade, a revelação
exterior pertencem ao sistema fora de moda e caduco do
intelectualismo (D. 2072).
O agnosticismo representa o aspecto negativo do mo­
dernismo. A doutrina da imanência vital constitui seu as­
pecto positivo. Ele intervém para explicar a religião: “uma
vez repudiada a teologia natural, tornado impossível qual­
quer acesso à revelação pela rejeição dos motivos de credi­
bilidade e, mais ainda, abolida totalmente qualquer reve­
lação exterior, é claro que esta explicação não deve ser
procurada fora do homem”a. Nas profundezas da sub-
consciência existe uma necessidade do divino cuja pressão
“suscita na alma, inclinada à religião, um sentimento pecu­
liar. Esse sentimento tem isto de próprio: que ele envolve a
Deus tanto como objeto quanto como causa íntima, e que ele
de algum modo une o homem a Deus” 63. Essa é a origem da1
fé religiosa da qual a revelação é somente outro nome.
“Neste sentimento eles encontram, pois, a fé; mas
também com a fé e na fé, tal como a entendem, a
62 “Explicatio autem, naturali theologia deleta adituque ad revela­
tionem ob rejecta credibilitatis argumenta intercluso, immo etiam reve­
latione qualibet externa penitus sublata, extra hominem inquiritur frus­
tra. Est igitur in homine quaerenda... Ex hoc immanentiae religiosae
principium asseritur” (D. 2074).
63 “Indigentia divini in animo ad religionem prono... peculiarem
quendam commovet sensum: hic vero divinam ipsam realitatem, tum
tanquam objectum, tum tanquam sui causam intimam, in se implicatam
habet atque hominem quodammodo cum Do conjungit” (D. 2074).
338 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

revelação. E para a revelação, com efeito, o que mais


se quer? Por acaso não podemos chamar de revelação,
ou pelo menos começo de revelação, aquele sentimento
religioso que se manifesta em nossa consciência? Será
que não é o próprio Deus que os manifesta às nossas
mentes, embora confusamente, por meio dessa percep­
ção religiosa? Acrescentam, contudo: como Deus
é ao mesmo tempo causa e objeto da fé, na fé
encontra-se pois a revelação como vinda de Deus e
como versando sobre Deus. Quer dizer que Deus
ali é ao mesmo tempo revelador e revelado. Daqui,
veneráveis Irmãos, esta doutrina absurda dos moder­
nistas, segundo a qual toda religião é por sua vez na­
tural e sobrenatural, conforme a consideremos. Daqui
a equivalência entre consciência e revelação. Daqui,
enfim, a lei que erige a consciência religiosa em regra
universal, inteiramente igualada à revelação e à qual
tudo se deve sujeitar, até a autoridade suprema, em
sua tríplice manifestação doutrinai, cultuai, discipli-
___»
nar 64
Assim, o sentimento religioso, sob a pressão da ne­
cessidade universal do divino se põe a atuar, aflora à cons­
ciência e se torna experiência da realidade divina. Esse é
o germe da religião, de todas as religiões, inclusive do
cristianismo: todas não são mais que eflorescências do sen­
timento religioso, e, a este título, todas podem dizer-se
reveladas (D. 2077).

64 “In ejusmodi enim sensu modernistae non fidem tantum reperiunt;


sed, cum fide inque ipsa fide, prout illam intelligunt, revelationi locum
esse affirmant. Enimvero ecquid amplius ad revelationem quis postulet?
An non revelationem dicemus, aut saltem revelationis exordium, sensum
illum religiosum in conscientia apparentem; quin et Deum ipsum, etsi
confusius, sese in eodem religioso sensu animis manifestantem? Subdunt
vero: cum fidei Deus objectum sit aeque et causa, revelatio illa et de Deo
pariter et a Deo est; habet Deum videlicet revelantem simul ac revelatum.
Hinc autem, Venerabiles Fratres, affirmatio illa modernistarum perabsur­
da, qua religio quaelibet pro diverso aspectu naturalis una ac superna­
turalis dicenda est. Hinc conscientiae ac revelationis promiscua signifi­
catio. Hinc lex, qua conscientia religiosa ut regula universalis traditur,
cum revelatione penitus aequanda, cui subesse omnes oporteat, supremam
etiam in Ecclesia potestatem, sive haec doceat, sive de sacris disciplinave
statuat” (D. 2075).
A CRISE MODERNISTA 339

Deus, ou melhor, o sentimento de Deus surgiu das


profundezas da subconsciência, mas confusámente ainda. A
inteligência, então, sobrevindo ao sentimento e inclinando-se
de algum modo sobre ele “trabalha-o à maneira de um pin­
tor que numa velha tela reencontra e faz reaparecer as linhas
apagadas do desenho” 65. Esse trabalho da inteligência, es­
pontâneo a princípio, chega a fórmulas ou asserções sim­
ples e vulgares que representam, ainda toscamente, os
fenômenos vitais que na alma se deram. Em seguida, uma
reflexão ulterior interpreta a fórmula primitiva por meio de
fórmulas derivadas, mais aprofundadas, mais distintas. Essas
fórmulas, sancionadas pela Igreja, constituem o dogma66.
As fórmulas do dogma não têm outro fim que o de
“fornecer ao crente o meio de se dar conta de sua fé” (D.
2079). Elaboradas pela inteligência, não têm outro valor
que o de sinais inadequados, símbolos, em relação a seu
objeto; e, com relação ao crente, valor de instrumentos. Elas
não contêm verdade absoluta: “como símbolos, elas são
imagens da verdade que se devem adaptar ao sentimento
religioso... ; como instrumentos, são veículos, da verdade e
devem por sua vez adaptar-se ao homem em suas relações
com o sentimento religioso” 67. E como, de uma parte, o
absoluto, que é o objeto do sentimento religioso, apresenta
aspectos infinitos, e como, de outra parte, o crente pode
passar por diversas situações, segue-se que as fórmulas es­
tão sujeitas a contínuas variações. O dogma pode e deve
mudar: ele deve viver como o sentimento religioso. O moder­
nismo exalta a experiência religiosa e despreza as fórmulas
(D. 2079-2080).

65 “Mens ergo, illi sensui adveniens, in eundem se inflectit inque


eo elaborat pictoris instar, qui obsoletam tabulae cujusdam diagraphen
collustret, ut nitidius efferat” (D. 2078).
66 D. 2078. Os mesmos termos reaparecerão na exposição dos prin­
cípios teológicos do modernismo (2089).
67 “Mediae illae sunt inter credentem ejusque fidem: ad fidem quod
attinet, sunt inadaequatae ejus objecti notae, vulgo symbola vocitant; ad
credentem quod spectat, sunt mera instrumenta. Quocirca nulla confici
ratione potest, eas veritatem absolute continere: nam qua symbola imagines
sunt veritatis atque idcirco sensui religioso accommodandae, prout hic
ad hominem refertur; qua instrumenta sunt veritatis vehicula atque ideo
accommodanda vicissim homini, prout refertur ad religiosum sensum”
(D. 2079).
340 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

A teologia modernista nada mais fez que adaptar à fé


os princípios filosóficos da imanência, do simbolismo e da
evolução 66.
Conforme o princípio de evolução vital, a revelação
desenvolve-se com o sentimento religioso, à medida que este
se desembaraça de elementos estranhos (sentimento fami­
liar e nacional) e penetra a consciência da humanidade (D.
2094). Essa evolução é geralmente paralela ao desenvol­
vimento cultural e moral da sociedade, mas pode ser aju­
dada, favorecida pela ação de certos homens extraordiná­
rios, tais como os profetas e o Cristo (D. 2094). A ex­
periência religiosa, com efeito, pode ser comunicada aos
outros pela pregação ou pela Escritura. Em virtude do seu
poder de sugestão, as fórmulas podem despertar o senti­
mento religioso, talvez adormecido, ou permitir ao crente
reviver experiências já feitas (D. 2083). Quando, pois,
pelo poder sugestivo da pregação ou da Escritura, o sen­
timento religioso emerge à consciência do ouvinte ou do
leitor, este tem a experiência da revelação. De outra parte,
não sendo os dogmas mais que aproximações deficientes
da experiência religiosa, instrumentos cujo papel é de evo­
car essa experiência, “o crente deve empregar essas fórmu­
las na medida em que elas podem servir-lhe, pois é para
ajudar sua fé, não para entravá-la que. elas lhe são dadas” 69.
Mal há necessidade de notar com que fidelidade esse
quadro retrata as diversas afirmações encontradas em Sa­
batier, Loisy e Tyrrell. Sem dúvida, não têm elas, nesses
autores, os contornos definidos que lhes empresta a encí­
clica. Resta que, no conjunto, os traços conferem. O
documento pontifício reuniu-os e confrontou-os para des­
cobrir os elementos dissolventes. Conforme declaração mes­
ma de Loisy, o papa quis manter “aquilo que é contestado
por muitos daqueles que ele chama de modernistas, a sa­
ber: que existe um depósito imutável de verdade revelada,
do qual o soberano pontífice seria o guardião único e in-

« D. 2087-2096.
69 “Addunt praeterea formulas ejusmodi esse a credente adhibendas
quatenus ipsum juverint; ad commodum enim datae sunt, non ad impe­
dimentum” (D. 2087).
A CRISE MODERNISTA 341
falível”70. A encíclica, constata ainda Loisy, “não é mais
que a expressão total, inelutavelmente lógica, do ensina­
mento aceito na Igreja desde o fim do século XIII”71.
Ao longo de toda a encíclica, muitas expressões deixam
entender que o modernismo não é mais que uma renovação
de velhos erros, já denunciados, mas retomados ao sabor
das novas ciências. O texto recorda especialmente o ensi­
namento do Vaticano contra o agnosticismo, a propósito
do conhecimento de Deus, dos motivos de credibilidade,
da possibilidade da revelação (D. 1806, 1807, 1812, 2072);
ao imanentismo é oposto o dogma do sobrenatural (D.
1808, 2075); ao racionalismo, o ensinamento de Pio IX e
Gregório XVI sobre a subordinação da filosofia (D. 1634,
1635, 2075); ao relativismo, a censura de Gregório XVI
àqueles que perdem de vista a noção de verdade (D. 1617,
2080); ao evolucionismo religioso, a imutabilidade da re­
velação e dos dogmas reivindicada por Pio IX e pelo con­
cilio Vaticano (D. 1705, 1800).
3. A atividade antimodernista de Pio IX foi coroa­
da pelo “motu proprio” Sacrorum antistitum de 1? de setem­
bro de 1910 e pelo juramento que era imposto. Sem nada
acrescentar de essencial aos atos anteriores, esse juramento
como que os resumia solenemente. Apresentava uma gran­
de vantagem: não era simplesmente uma condenação de erros
como o Syllabus, nem uma mera exposição de desvios como a
Pascendi. Era antes uma reafirmação da doutrina positiva
da Igreja. É uma profissão direta das doutrinas católicas
impugnadas pelas heresias modernistas.
O juramento tem duas partes; interessa-nos principal­
mente a primeira. Após uma declaração geral de fidelida­
de a todos os ensinamentos da Igreja, cinco pontos são mais
precisados. Ocupar-nos-emos apenas com os três últimos
que mais diretamente se referem ao nosso assunto.
O artigo terceiro afirma a fundação da Igreja, “guar­
diã e mestra da palavra revelada”, pelo Cristo histórico
(D. 1800, 1836). No mesmo sentido, o artigo seguinte
afirma o caráter imutável da “doutrina da fé”, depósito
70 A. Loisy, Simples Réflexions, p. 139.
71 Ibid., p. 23.
342 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

divino confiado à Esposa do Cristo e à sua guarda vigilante.


Rejeita a pretensão de se reduzir esse depósito a uma des­
coberta filosófica (D. 1800) ou a uma criação da cons­
ciência humana indefinidamente em progresso:
“Sinceramente aceito a doutrina da fé tal qual no-la
transmitiram os apóstolos e os padres ortodoxos; acei­
to-a no mesmo sentido e com a mesma interpretação.
Por isso absolutamente rejeito a suposição herética
da evolução dos dogmas, segundo a qual os dogmas
mudariam de sentido, recebendo um diverso daquele
que inicialmente lhes deu a Igreja. Reprovo igual­
mente todo erro que consiste em substituir ao depó­
sito divino, confiado à Esposa do Cristo e à sua guar­
da vigilante, uma ficção filosófica ou uma criação da
consciência humana que, pouco a pouco formada pelo
esforço humano, seria no futuro capaz de um progresso ' i
indefinido” 72.

O artigo, em seu duplo enunciado, pouco acrescenta


às declarações do primeiro concilio do Vaticano. Afinal
o concilio já ensinara que “a doutrina da fé, revelada por
Deus. . . foi confiada à Esposa do Cristo como um divino
depósito, para ser fielmente conservada e declarada com 1
infalibilidade”, mas sempre no mesmo sentido e com a
mesma interpretação73. Rejeitou também como herética a
evolução dos dogmas que lhes atribuiría, sob pretexto de ■
uma “compreensão mais alta”, ou de um “progresso da
ciência”, um “sentido diverso do que foi, de uma vez para
72 Sublinhamos as palavras que se encontram indênticas ou quase 3
idênticas no primeiro do Vaticano: “Quarto: fidei doctrinam ab Apostolis per S
orthodoxos Patres eodem sensu eademque semper sententia ad nos usque
transmissam, sincere recipio; ideoque prorsus rejicio haereticum commen­
tum evolutionis dogmatum, ab uno ad alium sensum Transeuntium, diver­
sum ab eo, quem prius habuit Ecclesia, pariterque damno errorem omnem,
quo, divino deposito, Christi Sponsae tradito ab eaque fideliter custodien­
do, sufficitur philosophicum inventum, vel creatio humanae conscientiae,
hominum conatu sensim efformatae et in posterum indefinito progressu
perficiendae” (D. 2145). w
73 “Neque enim fidei doctrina quam Deus revelavit, velut philo­
sophicum inventum proposita est humanis ingeniis perficienda, sed tanquam
divinum depositum Christi Sponsae tradita, fideliter custodienda et in-
fallibiliter declaranda” (D. 1800).
A CRISE MODERNISTA 343

sempre, declarado pela Igreja” 74. A última parte do pará­


grafo rejeita a concepção racionalista de revelação já con­
denada pelo Vaticano (D. 1800), denunciando ainda a con­
cepção modernista que considera a doutrina cristã uma
“criação da consciência humana”, que se teria formado pouco
a pouco graças ao esforço dos homens, e que se deveria
aperfeiçoar indefinidamente. Aos modernistas repete a Igre­
ja o que já declarara aos racionalistas e aos semi-raciona-
listas: a “doutrina da fé” foi “transmitida pelos apóstolos
e pelos padres ortodoxos”, como um “depósito divino”, e
não como um produto humano, fruto do pensamento ou
da consciência humana.
O quinto artigo, finalmente, unindo a doutrina do
primeiro concilio do Vaticano (D. 1789) à da encíclica
Pascendi (D. 2074), relembra que a fé não é um puro sen­
timento cego, mas uma adesão da inteligência à verdade
revelada por Deus:
“Estou plenamente certo e sinceramente professo que
a fé não é um cego sentimento religioso, a surgir das
profundezas da subconsciência sob a pressão do cora­
ção e o influxo da vontade moralmente informada. É
antes um verdadeiro assenso da inteligência pres­
tado à verdade recebida do exterior mediante a dou­
trina ouvida. Por este assenso, acreditamos como
verdade, por causa da autoridade de Deus sumamen­
te veraz, tudo quanto foi dito, atestado e revelado
pelo Deus pessoal, Criador e Senhor nosso” 7S.

74 “Hinc sacrorum quoque dogmatum is sensus perpetuo est retinen­


dus quem semel declaravit sancta Mater Ecclesia, nec unquam ab eo
sensu altioris intelligentiae specie et nomine recedendum” (D. 1800). E
no cânon correspondente: “Si quis dixerit fieri posse ut dogmatibus ab
Ecclesia propositis aliquando secundum progressum scientiae sensus tribuen­
dus sit alius ab eo quem intellexit et intelligit Ecclesia: A. S.” (D. 1818).
75 “Quinto: certissime teneo ac sincere profiteor, fidem non esse
caecum sensum religionis e latebris subconscientiae erumpentem, sub
pressione cordis et inflexionis voluntatis moraliter informatae, sed verum
assensum intellectus veritati extrinsecus acceptae ex auditu, quo nempe
quae a Deo personali, creatore ac Domino nostro dicta, testata et revelata
sunt, vera esse credimus, propter Dei auctoritatem summe veracis”
(D. 2145).
344 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Esse texto define a fé negativa e positivamente. O


primeiro concilio do Vaticano opunha-se ao racionalismo,
para o qual a fé é apenas a ciência que tem a Deus como
objeto. O juramento opõe-se aos modernistas que, à ma­
neira dos protestantes liberais, reduzem a fé a um puro
sentimento irracional, surgido das profundezas do subcons­
ciente sob a pressão do coração e o impulso da vontade,
sem qualquer dependência de uma revelação externa.
Contra o exclusivismo da posição modernista, o jura­
mento sublinha o caráter intelectual da fé: verdadeiro as­
sentimento do espírito à verdade adquirida a partir de um
ensino exterior (Rom 10,17). Não nega, é evidente, que
a revelação seja recebida pelo homem a quem é dirigida;
significa apenas que, mediata ou imediata, a verdade re­
velada não procede totalmente do homem, mas de um outro,
de Deus agente pessoal e distinto do homem, Criador e
Senhor. Profetas, apóstolos, cristãos: todos recebem a ver­
dade revelada mediante uma audição interior ou exterior.
Pela fé reconhecemos como verdade “o que foi dito,
atestado e revelado” por Deus. O juramento não dá lugar
a nenhuma ambiguidade: a revelação não é uma emoção re­
ligiosa, totalmente humana e subjetiva, que se fizesse claramen­
te consciente. É o conteúdo de uma palavra, de um teste­
munho: a palavra e o testemunho de Deus. Conteúdo que,
também chamado doutrina, Evangelho, é apresentado à in­
teligência e exige o assenso da fé.
É pela primeira vez que, num documento oficial, en­
contramos reunidos os três termos: palavra (dieta), teste­
munho (testata) e revelação (revelata). Cada um desses
termos retoma e torna mais preciso o anterior. A revela­
ção pertence ao gênero palavra e à espécie testemunho.
Enquanto palavra dirige-se ao homem manifestando-lhe o
pensamento divino. Enquanto testemunho exige uma rea­
ção específica: a fé. Nos documentos de Pio IX e de Pio X
podemos ver como cada vez se torna mais precisa a noção
geral de revelação. A encíclica Q«z pluribus, de Pio IX,
ensina que devemos prestar fé a Deus que fala, que não
pode enganar-se nem nos enganar; ou seja: a revelação é
uma palavra autoritativa (D. 1637). O primeiro concilio
do Vaticano observa que o assenso da fé repousa sobre» a pró-
A CRISE MODERNISTA 345

pria autoridade de Deus que revela (D. 1789) e não sobre a


evidência interna da verdade como na ciência. Finalmente
o juramento antimodernista diz claramente que a palavra
autoritativa do Deus que revela é um testemunho divino ao
qual corresponde a fé (D. 2145). Temos assim os elemen­
tos de uma noção formal: Deus que revela é Deus que fala
com a autoridade de testemunha sumamente veraz e que
merece a reação específica da fé. A revelação é palavra de
testemunho (locutio Dei attestans).
Portanto: contra os modernistas que se opõem à no­
ção católica de revelação, depósito divino, e lhe opõem o
conceito de uma revelação criação humana, saída das pro­
fundezas do subconsciente, passando gradualmente do obs­
curo ao claro, do informulado ao formulado, o juramento
afirma que a revelação — objeto de fé — é uma revela­
ção doutrinai. Aquilo que Deus disse, atestou, revelou, é
para a Igreja: palavra revelada, doutrina de fé, depósito
divino confiado à sua guarda para ser conservado sem acrés­
cimo nem alteração, sem mudança de sentido ou de inter-
pretação. Essa doutrina não vem do homem, mas de Deus.
A revelação, na perspectiva modernista, tende a se tornar
pura imanência. Para a Igreja, porém, continua sendo ação
transcendente de Deus, cujo termo objetivo e criado é uma
doutrina, um ensinamento comunicado ao homem. Dirigi­
do a ele, por ele ativamente recebido, mas que não vem
dele. Ao tempo do modernismo a Igreja acentuou a trans-
cedência da revelação (sem negar o seu aspecto de imanên­
cia) e a característica doutrinai do objeto de fé (sem ne­
gar os seus outros valores). Ela o fez justamente porque
o modernismo queria substituir as noções de revelação so­
brenatural e de dogma imutável por uma evolução religiosa
cuja única norma seria a consciência individual ou cole­
tiva. A Igreja, que não está obrigada a dizer tudo em cada
uma de suas intervenções, afastou os equívocos e reafirmou
suas posições tradicionais.
4.
O PERÍODO CONTEMPORÂNEO

Este período é interessante pelas intervenções do ma­


gistério que apresentam características parcialmente novas.
Tornam-se mais freqüentes, principalmente sob a forma de
encíclica, gênero preferido pelos últimos papas. E mais:
tendem a se tornar longas exposições dogmáticas. Basta
lembrar, por exemplo, a Mystici Corporis (1943), a Me­
diator Dei (1948), a Sacra Virginitas (1954), a Haurie­
tis aquas (1956). Cada uma dessas encíclicas apresenta
sobre um determinado tema, uma longa exposição da dou­
trina católica. Não tanto para condenar, corrigir, prevenir,
mas principalmente para esclarecer, ensinar e evidenciar
para o povo cristão as insondáveis riquezas do mistério do
Cristo. Portanto, ainda que nenhum desses documentos tra­
te diretamente do nosso tema, poderemos contar com expo­
sições ocasionais mais ricas, mais bem fundamentadas e tam­
bém, como o veremos, mais bíblicas. Evidentemente não será
o caso de recolhermos todas as alusões à revelação, pois que
seriam inúmeras. Nesses documentos quase sempre o ter­
mo indica a revelação no sentido objetivo, ou seja: a pró­
pria doutrina, o Evangelho do Cristo, a mensagem de sal­
vação, a fé evangélica, o conjunto de verdades e preceitos
ensinados pelo Mestre, o depósito, a totalidade das ver­
dades reveladas. Às vezes indica também a própria ação
reveladora. Bastará estudarmos aqui só os documentos que
interessam mais particularmente ao nosso tema ou apresen­
tam um material mais abundante.

1. No pontificado de Pio XI

A história da primeira metade do século XX é marca­


da por duas tendências opostas. A primeira é caracterizada
■ O PERIODO CONTEMPORÂNEO 347
Ί
por uma fraternidade humana mundial, por um coletivismo
planetário, como o vemos nos grandes movimentos interna­
cionais: comunismo, movimento operário, atividades ecumê-
& nicas de toda espécie. A segunda inspira-se em Nietzche e
é marcada pela glorificação do super-homem, individual ou
coletivo, pela expansão mediante a violência das raças su­
periores, como o vemos no aparecimento das grandes ditadu­
ras e no culto da raça. A encíclica Mortalium animos, con­
fli tra o pancristianismo, e a Mit brennender Sorge, contra o
nacional-socialismo alemão, apresentam a doutrina da Igre­
ja contra os excessos de ambas as tendências.
1. Pio XI na Mortalium animos (de 6 de janeiro
de 1928), previne contra um pancristianismo conseguido
à custa de concessões doutrinais· inaceitáveis para a Igreja:
“Alguns não-católicos alimentam a esperança de facilmente
poderem levar os povos, apesar de suas diferentes concep-
I ções religiosas, a se unirem em torno de algumas doutrinas
admitidas como fundamento comum de vida espirtual”1
i Com essa finalidade promovem-se congressos que reúnem
I homens de todas as confissões e das mais divergentes idéias
religiosas. Tais esforços “apóiam-se na errônea opinião se­
gundo a qual todas as religiões são mais ou menos boas e
louváveis. Todas igualmente manifestariam e traduziríam,
ainda que de modos diversos, o sentimento natural e inato
I que nos leva em direção a Deus e à aceitação respeitosa
de seu poder. Além de estarem totalmente errados, os par­
tidários dessa opinião renegam ao mesmo tempo a verda­
deira religião, cuja noção falseiam, e descambam gradual­
mente para o naturalismo e o ateísmo. É pois perfeitamente
evidente que abandonam de itodo a religião revelada por
Deus aqueles que se unem aos partidários e propagandistes
dessas doutrinas2”.
f
I 1 “Eam in spem ingressi videntur, haud difficulter eventurum ut
■ populi, etsi de rebus divinis alii aliud tenent, in nonnullarum tamen pro­
fessione doctrinarum, quasi in communi quodam spiritualis vitae funda­
mento fraterne consentiant” (AAS, 20 [1928]: 6).
2 “Ejusmodi sane molimenta probari nullo pacto catholicis possunt,
quandoquidem falsa eorum opinione nituntur, qui censent religiones quas­
libet plus minus bonas ac laudabiles esse, utpote quae etsi non uno modo,·
aeque tamen aperiant ac significent nativum illum ingenitumque nobis
i sensum, quo erga Deum ferimur ejusque imperium obsequenter agnosci-
348 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Essa idéia de um pancristianismo, continua a encíclica,


teria conquistado alguns católicos. É urgente, pois, reafirmar
o pensamento da Igreja sobre a única unidade religiosa
possível. A verdadeira religião é uma religião revelada, é
numa economia de revelação que a humanidade deve rea­
lizar sua salvação:
“Podería Deus ter imposto ao homem apenas a norma
da lei natural que lhe deixara gravada na alma ao
criá-lo, orientando depois com sua providência ordi­
nária o desenvolvimento dessa mesma lei. Preferiu,
contudo, acrescentar-lhe preceitos a serem observados;
no decorrer dos tempos, da origem do mundo até
a vinda e a pregação do Cristo Jesus, pessoalmente
instruiu os homens sobre os deveres que todo
ser racional tem para com seu Criador: ‘Deus, que
diversas vezes e de diversos modos pelos profetas, fala­
ra antes a nossos pais, nestes últimos tempos falou-
-nos pelo Filho’. Por isso, não pode haver religião
verdadeira além da que se baseia na revelação divina.
Essa revelação, iniciada nas origens do mundo, e con­
tinuada sob a lei antiga, foi aperfeiçoada por Cristo
Jesus na nova lei. Portanto, se Deus falou — o que
é atestado pela história — é evidente que o homem
tem obrigação de prestar fé absoluta a Deus que fala
e obedecer-lhe fielmente as ordens” 3.
mus. Quam quidem opinionem qui habent, non modo ii errant ac falluntur,
sed etiam, cum veram religionem, ejus notionem depravando repudient,
tum ad naturalismum et atheismum, ut aiunt, gradatim deflectunt: unde ma­
nifesto consequitur ut ab revelata divinitus religione omnino recedat quisquis
talia sentientibus molientibusque adstipulatur” (AAS, 20 (1928): 6).
3 “Potuit quidem Deus regendo homini unam tantummodo praes­
tituere · naturae legem, quam, scilicet, creando, in ejus animo insculpsit,
ejusque ipsius legis ordinaria deinceps providentia temperare incrementa;
ut vero praecepta ferre maluit, quibus pareremus, et decursu aetatum,
scilicet ab humani generis primordiis ad Christi Jesu adventum et praedi­
cationem, hominem ipsimet officia docuit, quae a natura rationis participe
sibi Creatori deberentur: Multifariam multisque modis olim Deus loquens
patribus in prophetis, novissime diebus istis locutus est nobis in Filio.
Liquet inde, veram religionem esse posse nullam praeter eam quae verbo
Dei revelato nititur: quam quidem revelationem, fieri ab initio coeptam
et sub. Vetere Lege continuatam, Christus ipse Jesus sub Nova perfecit.
Jamvero si locutus est Deus — quem reapse locutum, historiae fide
comprobatur —, nemo non videt hominis esse Deo et revelanti absolute
credere et omnino oboedire imperanti” (Ibid., p. 8).
O PERIODO CONTEMPORÂNEO 349

A doutrina da Igreja, pois, apresenta, a revelação


como um fato histórico: uma intervenção divina na história,
sob a forma de palavra dirigida à humanidade. Ação con­
tinuada através do Antigo Testamento e que termina com o
Cristo. Porém, esse fato histórico tem um correspondente
social: o fato da Igreja.
Com efeito, para ajudar a humanidade no caminho da
salvação, o Cristo fundou a sua Igreja, a única verdadeira.
Os “pancristãos”, pelo contrário, julgam que todas as igre­
jas têm o mesmo valor e pretenderíam estabelecer entre to­
das uma espécie de “federação universal”, mediante mútuas
concessões em matéria doutrinai: “Poderiamos permitir,
diz a encíclica,.. . que a verdade, principalmente a verda­
de revelada, fosse assim posta em discussão? E no caso
trata-se justamente de proteger a verdade revelada” 4.
Se a verdade revelada está na única Igreja do Cris­
to, se essa Igreja tem a missão de ensinar a todos os
povos a mesma fé evangélica, se para isso recebeu uma assis­
tência especial do Espírito Santo, como se poderia conceber
uma federação cristã baseada na coexistência e fusão das mais
contraditórias opiniões? “Ambos os preceitos do Cristo —
o de ensinar e o de acreditar. .. — não podem ser obedeci­
dos e nem teriam sentido a não ser que a Igreja proponha
integral e claramente a doutrina evangélica, gozando para
isso de total infalibilidade” 5. A união das Igrejas não pode
ser feita às custas da fé. Jamais poderia a Igreja aceitar que
“a verdade dogmática não seja absoluta, mas relativa, deven­
do portanto adaptar-se às mutáveis exigências dos tempos,
dos lugares e das inclinações das almas e isso porque não
se baseando numa revelação imutável, deve necessariamente
acomodar-se à vida dos homens”6. Nem pode a Igreja admi­
tir que entre os dogmas da fé haja artigos fundamentais e

4 “Num nos patiemur — quod prorsus iniquum foret — veritatem,


eamque divinitus revelatam, in pactiones deduci? Etenim de veritate
revelata tuenda in praesenti agitur” (Ibid., p. 11).
5 “Utrumque Christi praeceptum.... alterum scilicet docendi, alterum
credendi ad aeternae adeptionem salutis, ne intelligi quidem potest, nisi
Ecclesia evangelicam doctrinam proponat integram ac perspicuam sitque
in ea proponenda a quovis errandi periculo immunis” (Ibid., pp. 11-12).
6 “Tenent iidem, veritatem dogmaticam non esse absolutam, sed
relativam, id est variis temporum locorumque necessitatibus variisque ani-
350 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

artigos não fundamentais: “A autoridade de Deus que re­


vela é a causa formal sobrenatural da fé; essa autoridade é
incompatível com uma distinção desse gênero” 7.
A seguir a encíclica apresenta a função da Igreja com
relação à verdade revelada. O magistério da Igreja “foi
estabelecido por Deus para conservar perpetuamente intato
o depósito das verdades reveladas, e levá-lo ao conhecimento
dos homens de maneira fácil e segura” 8. Esse magistério,
além de sua função ordinária e cotidiana, “deve também dar
definições oportunas e solenes, sempre que isso for neces­
sário para mais eficazmente se opor aos erros e ataquès dós
hereges ou para explicar mais clara e detalhadamente certos
pontos da doutrina sagrada, tornando-os mais acessíveis aos
fiéis. Com esse magistério extraordinário nada se inventa
nem acrescenta ao conjunto das verdades contidas, pelo me­
nos implicitamente, no depósito da revelação divina confiado
por Deus à Igreja. Apenas enuncia o que até então podería
parecer obscuro para alguns ou declara como objeto de fé
o que antes era para alguns ponto controvertido” Aqui
novamente encontramos reunidos os termos equivalentes·,
doutrina sagrada, revelação, depósito de verdades.
Finalmente, conclui a encíclica, o único meio de reali-

morum inclinationibus congruentem, cum ea ipsa non immutabili reve­


latione contineatur, sed talis sit, quae hominum vitae accommodetur”
(Ibid., p. 13).
7 “Supernaturalem enim virtus fidei causam formalem habet Dei reve­
lantis auctoritatem, quae nullam distinctionem ejusmodi patitur” (Ibid.
P- 13.
8 “Etenim Ecclesiae magisterium — quod divino consilio in terris
constitutum est ut revelatae doctrinae cum incolumes ad perpetuitatem
consisterent, tum ad cognitionem hominum facile tutoque traduceren­
tur...” (Ibid., p. 14).
9 “Ecclesiae magisterium... quanquam per Romanum pontificem et
Episcopos cum eo communionem habentes quotidie exercetur, id tamen
complectitur muneris, ut, si quando aut haereticorum erroribus atque
oppugnationibus obsisti efficacius aut clarius subtiliusque explicata sacrae
doctrinae capita in fidelium mentibus imprimi oporteat, ad aliquid tum
solemnibus ritibus decretisque definiendum opportune procedat. Quo
quidem extraordinario magisterii usu nullum sane inventum inducitur nec
quidquam additur novi ad earum summam veritatum, quae in deposito
Revelationis, Ecclesiae divinitus tradito, saltem implicite continentur,
verum aut ea declaratur quae forte adhuc obscura compluribus' videri
possint aut ea tenenda de fide statuuntur quae a nonnullis ante in con­
troversiam vocabantur” (Ibid., p. 14).
O PERIODO CONTEMPORÂNEO 351

zar a unidade religiosa é favorecer a volta dos dissidentes à


verdadeira Igreja do Cristo. Ninguém, porém, faz parte
dessa Igreja, “coluna e sustentaculo da verdade”, a não
sér que lhe aceite a doutrina em sua totalidade.
2: As doutrinas que o orgulho racial inspirou aos teó­
ricos do nazismo alemão deram também a Pio XI ocasião
para definir precisamente vários conceitos — entre eles o de
revelação — por eles utilizados depois de uma sacrílega tran-
substanciação. Pio XI publicou sua encíclica Mit brennender
Sorge no dia 14 de março de 1937.
Relembra a encíclica que “nenhuma fé se poderá man­
ter por longo tempo pura e sem mescla a não ser que esteja
apoiada pela fé no Cristo”, pois é o Filho que revela o Pai, e
segundo o desígnio divino, é o conhecimento do Cristo que
deve levar ao conhecimento do Pai:
“Ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai, e ninguém
conhece o Pai, a não ser o Filho e aquele a quem o
Filho o quiser revelar (Mt 11,27). Nisto consiste a
vida eterna: que te conheçam a ti, único e verdadeiro
Deus, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3).
Ninguém, pois, poderá dizer: eu Creio em Deus,'isso
me basta como religião. A palavra do Salvador não
permite semelhantes escapatórias: “Quem quer que
negue o Filho não possui tampouco o Pai; quem con­
fessa o Filho possui também o Pai” (IJo 2,23). Em
Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, mostrou-
-se a plenitude da revelação divina. “Muitas vezes e
de muitos modos falou Deus outrora a nossos pais,
nos profetas; nestes últimos tempos falou a nós no
Filho” (Hebr 1,1) 10.
10 Kein Gottesglaube wird sich auf die Dauer rein und unverfãíscht
erhalten, wenn er nicht gestützt wird vom Glauben an Christus. “Niemand
kennt den Sohn ausser dem Vater, und niemand kennt den Vater ausser
dem Sohn, und wem es der Sohn offenbaren will” (Mt. 11,27). “Das
ist das ewige Leben, dass sie Dich erkennen, den allein wahren Gott,
und den Du gesandt hast, Jesus Christus” (Jo 17,3). Es darf also
niemand sagen: Ich bin gottglaubig, das ist mir Religion genug. Des
Heilands Wort hat für Ausflüchte dieser Art keinen Platz. “Wer den
Sohn leugnet, hat auch nicht den Vater; wer den Sohn bekennt, hat
auch den Vater" (IJo 2,23). In Jesus Christus, dem menschgewordenen
Gottessohn, ist die Fülle der gottlichen Offenbarung erschienen" (AAS,
29 [1937]: 150).
352 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Em Jesus Cristo mostrou-se a plenitude da revelação


divina, como diz a encíclica. Essa afirmação pode ser en­
tendida de três modos no texto:
a) No sentido imediato indicado pelo contexto: o co­
nhecimento do Deus verdadeiro chega até nós mediante o
Cristo. Ele que nos faz conhecer quem é Deus, não já dè
modo gradual e parcial, como os profetas do Antigo Testa­
mento, mas de uma vez e totalmente. O Cristo é o per­
feito Revelador, pois que é o Filho, partilha com o Pai o co­
nhecimento dos segredos divinos, estando, pois ontologica-
mente qualificado para os revelar. O que o Pai é e qual
seu plano de salvação para a humanidade, o Cristo no-lo
disse de modo completo, pelo menos quanto ao essencial,
pois que também os apóstolos são ( subsidiariamente ) revela­
dores instruídos pelo Espírito Santo. 1
b ) O Cristo é também plenitude da revelação, en­
quanto ele mesmo é, em Pessoa, o Verbo do Pai, “irradia­
ção do seu esplendor e cunho de sua substância” (Hebr
1,3), “imagem do Deus invisível” (Col 1,15; 2Cor 4,4),
o Deus que revela e o Deus revelado, quem fala e de quem
se fala.
c) Finalmente, num último sentido (sugerido pelo
verbo erschienen e pela preposição in ) : encarnando-se, o Ver­
bo usou para sua missão de revelação todos os meios de
expressão humana, o facere e o docere (At 1,1): fatos e
ações (vida, paixão, morte, ressurreição) interpretados pela
palavra do Cristo que exprime seu alcance salvifico e os
apresenta como objetos do testemunho divino.
Qualquer revelação meramente humana que se acres­
centasse à Boa-nova trazida por Cristo, não poderia ser senão
uma pseudo-revelação: “O ponto culminante que a revela­
ção atingiu no Evangelho de Cristo é definitivo. É obri­
gatório para sempre. Essa revelação não pode ser comple­
mentada por mãos humanas, nem tampouco abolida ou
substituída por arbitrárias “revelações” que certos líderes
(Wortführer) da atualidade pretendem deduzir do assim
chamado mito do sangue e da raça”11.
11 “Der im Evangelium Christi erreichte Hõhepunk der Offenbarung
ist endgültig, ist verpflichtend für immer. Diese Offenbarung kennt
O PERIODO CONTEMPORÂNEO 353

A própria fé no Cristo, acrescenta a encíclica, não pode


subsistir a não ser protegida e sustentada pela fé na Igre­
ja. Tendo esta recebido do Cristo um mandato para con­
servar a pureza da palavra divina, é por ela que nos vem o
Evangelho do Cristo. “Vale para os homens de todos os
tempos e de todas as religiões o mandamento que ele nos
deu de ouvir a Igreja (Mt 18,17), de acolher as palavras
e os mandamentos da Igreja como suas próprias palavras e
mandamentos (Lc 10,16)” 12.
Pio XI, finalmente, chama a atenção para que “os con­
ceitos religiosos fundamentais não sejam esvaziados de seu con­
teúdo essencial e recebam um sentido meramente profano.
Revelação, no sentido cristão do termo, indica a palavra que
Deus dirigiu aos homens. Usar esse mesmo termo para in­
dicar as sugestões do sangue e da raça, as irradiações da
história de um povo, é certamente criar um equívoco. Se­
melhante falsa moeda não merece curso entre os fiéis do
Cristo” 13. Correlativamente, a fé como resposta à revelação
cristã consiste em ter por verdadeiro o que Deus revelou e
por sua Igreja propõe aos homens para crerem” M.
Em poucas palavras, o ensinamento de Pio XI so­
bre a revelação pode ser assim apresentado: A economia
atual é uma economia de revelação. Deus falou: é um
fato atestado pela história. Falou inicialmente pelos profe­
tas, depois pelo Cristo, Verbo encarnado, que veio trazer aos
homens o conhecimento do Deus verdadeiro. No Cristo,
Filho único do Pai, culmina a revelação divina, como ação,

keine Nachtrãge durch Menschenhand, kennt erst recht keinen Ersatz


und keine Ablõsung durch die willkürlichen “Offenbarungen”, die gewisse
Wotführer der Gegenwart aus dem sogenannten Mythus und Rasse her-
leiten wollen” (Ibid., p. 151).
12 “Sein Gebot, die Kirche zu horen (Mt 18,17), aus den Worten
und Geboten der Kirche Seine eigenen Worte un Gebote herauszuhoren
(Lc 10,16), gilt für die Menschen aller Zeiten und Zonen” (Ibid., p. 152).
13 “Ein besonders wachsames Auge, Ehrwürdige Brüder, werdet Ihr
haben müssen, wenn religiose Grundbegriffe ihres Wesensinhaltes be-
raubt und in einem profanen Sinne umgedeutet werden. Offenbarung im
christlichen Sinn ist das Wort Gottes an die Menschen. Dieses gleiche
Wort zu gebrauchen für die Ausstrahlungen der Geschichte eines Volkes
ist in jedem Fali verwirrend. Soldi falsche Míinze verdient nicht in den
Sprachschatz eines glaubigen Christen überzugehen” (Ibid., p. 156)·
14 “Glaube ist das sichere Fürwahrhalten dessen, was Gott geoffenbart
hat und durch die Kirche zu glauben vorstellt” (Ibid., p. 156).

12 - Teologia da revelação
354 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

como mensagem e como economia. Não existe, pois, senão


uma religião: a religião revelada. E também existe uma só
Igreja, fundada pelo Cristo e assistida pelo Espírito, atra­
vés da qual recebemos a palavra divina imutável e absoluta.
A função da Igreja é guardar para sempre intata, como um
depósito, a doutrina revelada, sem nada acrescentar ou al­
terar. Deve levá-la ao conhecimento de todos os homens
como uma Boa-nova; deve defendê-la contra o erro e, se for
necessário, deve definir certos pontos, explicitando e esclare­
cendo. O homem deve acolher a revelação, a palavra pro­
ferida por Deus, e a ela submeter-se. A fé consiste em
aceitar como verdadeiro o que Deus disse e revelou, e agora
nos propõe mediante a sua Igreja. Aderindo assim à ver­
dade proposta, com toda a alma e no espírito da Igreja,
o fiel inicia em si mesmo esse conhecimento que, segundo
o. Cristo, terá na vida eterna sua plena realização.

2. No pontificado de Pio XII

Entre os documentos publicados por Pio XII exami­


naremos os seguintes que contêm passagens referentes ao
nosso tema: Humani Generis (12 de agosto de 1950),
Munificentissimus Deus (1 de novembro de 1950), Ad
Sinarum Gentem (7 de outubro de 1954).
1. A Humani Generis, mesmo sem tratar explicita­
mente da própria noção de revelação, toca em pontos que
lhe são conexos: desenvolvimento dogmático, motivos de
credibilidade, função do magistério eclesiástico ante a ver­
dade revelada. Falando da revelação em seu sentido objeti­
vo, a encíclica designa-a como: “verdade revelada” (D.
2310), “verdade divinamente revelada” (D. 2307), que
contém “tesouros de verdade” (D. 2314), “depósito re­
velado” (D. 2314), “depósito de fé” (D. 2313-2314). O
Cristo confiou à Igreja “todo o depósito da fé, a Sagrada
Escritura e a divina tradição, para que o guarde, defenda
e interprete” 15. “Juntamente com essas fontes sagradas,
15 “Christus Dominus totum depositum fidei — Sacras nempe Litteras
ac divinam traditionem — ad custodiendum et tuendum et interpretandum
concredidit” (D. 2313). A mesma afirmação é repetida diversas vezes na
encíclica: D. 2307, 2315, 2325, 2327.
O PERIODO CONTEMPORÂNEO 355
Deus conferiu à sua Igreja o Magistério vivo para que tam­
bém esclarecesse e explicitasse o que no depósito da fé está
contido apenas de forma obscura e como que implícita” 16.
Isso quer dizer que todos os dogmas estão contidos na dou­
trina revelada, alguns explicitamente, implicitamente outros;
é função do teólogo mostrar como aquilo que a Igreja en­
sina “está explícita ou implicitamente contido nos livros
sagrados e na divina tradição” 17.
2. Na Bula dogmática Munificentissimus Deus, Pio
XII exprime-se do mesmo modo. Declara que a assunção
corporal de Nossa Senhora “é uma verdade revelada por
Deus e contida no depósito divino, confiado por Cristo à
sua Esposa, para que ela o guarde fielmente e infalivel­
mente o proclame. O Magistério da Igreja, não apenas
com meios humanos, mas com a assistência do Espírito da
verdade (Jo 14,26), e por isso sem qualquer erro exerce
a função que lhe foi confiada de conservar através dos séculos,
puras e íntegras, as verdades reveladas. Por isso as trans­
mite sem alteração, sem nada acrescentar nem suprimir” 18.
Objetivamente, pois, a revelação apresenta-se como um
conjunto de verdades, um sagrado depósito que a Igreja con­
serva vigilantemente. Esse depósito vive no coração da Igre­
ja, que é divinamente assistida para poder conservá-lo sem
contaminação, para ter dele uma consciência sempre mais cla­
ra, sem acrescentar novas verdades, mas por um processo
de explicitação das verdades contidas nesse depósito que a
reflexão humana jamais poderá esgotar. A Igreja é levada a
essa explicitação pela necessidade de defender a verdade reve-

16 “Una enim cum sacris ejusmodi fontibus Deus Ecclesiae suae Ma­
gisterium vivum dedit, ad ea quoque illustranda et enucleanda, quae in
fidei deposito nonnisi obscure ac velut implicite continentur” (D. 2314).
17 “Eorum... est indicare qua ratione ea quae a vivo Magisterio
docentur, in Sacris Litteris et in divina traditione, sive explicite, sive
implicite inveniantur” (D. 2314).
18 “Ejusmodi privilegium veritatem esse a Deo revelatam in eoque
contentam divino deposito, quod Christus tradidit Sponsae suae fideliter
custodiendum et infallibiliter declarandum. Quod profecto Ecclesiae ma­
gisterium non quidem industria mere humana, sed praesidio Spiritus veri­
tatis, atque adeo sine prorsus ullo errore, demandata sibi munere fungitur
revelatas adservandi veritates omne per aevum puras et integras; quamobrem
eas intaminatas tradit, eisdem adjiciens nihil, nihil ab iisdem detrahens”
(AAO, 42 (1950): 756-757).
356 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

lada ou pelo impulso da piedade ou da reflexão teológica. É


dessa Igreja sempre viva que recebemos o objeto de nossa
fé. Estão em suas mãos as fontes da revelação, com as
explicitações feitas. Como observa a Humani generis,
quando voltamos às fontes não é para julgar segundo
elas as explicitações da Igreja, mas para interpretar as fon­
tes à luz da Igreja que nos diz infalivelmente o que elas
contêm. Proceder de maneira inversa seria “explicar o
claro pelo obscuro”, preferir o implícito à verdade explí­
cita w.
3. A encíclica Ad Sinarum Gentem (7-10-1954) ad­
verte os fiéis chineses contra uma falsa concepção da trí­
plice autonomia (de governo, de economia, de pregação).
Tratando da autonomia quanto à pregação, explica que uma
justa e sadia liberdade concedida quanto aos métodos não
deve chegar ao ponto de pôr em questão a própria doutri­
na e sua interpretação. “Com que direito poderíam os ho­
mens interpretar a seu bel-prazer, diversamente em cada na­
ção, o Evangelho que nosso Senhor Jesus Cristo divinamente
nos revelou?” Os bispos, sucessores dos apóstolos e os
presbíteros, colaboradores dos bispos, devem “anunciar e
ensinar esse Evangelho que o próprio Senhor e seus após­
tolos anunciaram e ensinaram”. Eles “conservaram-no e
transmitiram ilibado e íntegro através dos séculos”. Eles não
são autores do Evangelho, mas “apenas depositários e arau­
tos constituídos pela autoridade de Deus”. Podem assim re­
petir as palavras do Cristo: “Minha doutrina não é mi­
nha, mas daquele que me enviou” (Jo 7,16). Os bispos de
todos os tempos repetem a exortação de Paulo: “Ó Timóteo,
guarda o depósito, evitando as vaidades profanas de palavras
e as contradições de uma pretensa ciência”. E mais estas
palavras do mesmo Apóstolo: “Guarda o bom depósito,
com a virtude do Espírito Santo, que habita em nós”. Uma
vez que “foi divinamente revelada a doutrina” cuja integri­
dade a Igreja deve defender, seja anátema quem anunciar
um Evangelho diferente daquele que é pregado pela Igreja20.
19 “Si autem hoc suum mimus Ecclesia exercet,... patet omnino
falsam esse methodum, qua ex obscuris clara explicentur, quin immo con­
trarium omnes sequi ordinem necesse est” (AAS, 42 (1950): 569).
20 “Evangelium, divinitus a Jesu Christo traditum, quonam jure
O PERIODO CONTEMPORÂNEO 357

3. No pontificado de Paulo VI

Entre os textos de Paulo VI é a encíclica Ecclesiam


suam (6 de agosto de 1964) que mais interessa ao nosso
tema. Descreve a encíclica o duplo movimento e dupla ati­
tude que caracterizam a Igreja do Cristo: a fidelidade e o
aggiornamento. Ao mesmo tempo que deve permanecer fiel
à verdade recebida do Cristo, deve a Igreja estar atenta
aos sinais dos tempos21. Deve “inserir a mensagem cristã
no círculo do pensamento, da palavra, da cultura, dos hábi­
tos e tendências da humanidade, como ela vive hoje e se
agita sobre a face da terra” 22. Distinta do mundo, mas mer­
gulhada no mundo para transformá-lo, nele vivendo, a “Igre­
ja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igre­
ja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio” B.

possunt homines, alio in aliis Nationibus modo, pro arbitrio suo inter­
pretari? Sacrorum Antistitibus, qui Apostolorum successores sunt,...
munus demandatum est Evangelium illud annuntiandi ac docendi, quod
Christus ipse ejusque Apostoli annuntiavere ac docuere primi, et quod
haec Apostolica Sedes omnesque Episcopi, eidem adhaerentes, per saeculo-
rum decursum illibatum inviolatumque servarunt ac tradiderunt. Sacri
igitur Pastores hujus Evangelii non inventores auctoresve sunt, sed
solummodo custodes ex auctoritate, ac praecones divinitus constituti.
Quamobrem Nosmet ipsi et Episcopi una Nobiscum hanc Jesu Christi
sententiam iterare possumus ac debemus: “Mea doctrina non est mea,
sed ejus qui misit me” (Jo 7,16). Atque omnibus cujusvis temporis
sacrorum Antistitibus hoc Apostoli Pauli hortamentum tribui potest: “O
Timothee, depositum custodi, devitans profanas vocum novitates et opposi­
tiones falsi nominis scientiae”; itemque haec ejusdem Apostoli sententia:
depositum custodi per Spiritum sanctum, qui habitat in nobis” (2Tim
“Bonum depositum custodi per Spiritum sanctum, qui habitat in nobis”
1,14)... Cum certissimum Nobis sit hanc doctrinam quam, Sancti
Spiritus ope innixi, tueri integram debemus, divinitus fuisse traditam,
haec Apostoli gentium iteramus verba: “Sed licet nos, aut angelus de
coelo evangelizet vobis praeterquam quod evangelizavimus vobis, anathema
sit” (AAS, 47 [1955]: 10-11).
21 Paulus VI, Ecclesiam suam, AAS, 56 (1964): 632. Nas citações
utilizamos, com algumas pequenas alterações, a tradução publicada pelas
Edições Paulinas (São Paulo, 1965, 3’).
22 “Nonne Concilium ipsum, ex eo quod sibi proposuit, pastorali
munere, illuc contendit jure meritoque, ut christianus nuntius in cogita­
tiones influat, in verba, in cognitiones, in mores, in sensa hominum, qui
in terrarum orbe hodie vivunt et animis aestuant?” (Ibid., 640-641).
23 “Ecclesiae in colloquium veniendum est cum hominum societate,
in qua vivit; ex quo fit, ut eadem veluti speciem et verbi, et nuntii, et
colloquii induat” (Ibid., 639).
358 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

1. O protótipo do diálogo entre a Igreja e o mundo


é o diálogo do próprio Deus com os homens, diálogo que
chamamos revelação:
A revelação, ou seja, a relação sobrenatural que o pró­
prio Deus estabeleceu com os homens, podemo-la imagi­
nar como diálogo em que o Verbo de Deus se exprime
a si mesmo na encarnação e depois no Evangelho. Esse
colóquio paternal e santo entre Deus e o homem, in­
terrompido pelo pecado original, é maravilhosamente
reatado no decurso dos tempos. A história da salvação
narra este diálogo longo e variado que Deus iniciou e
continuou com o homem. É nesta conversação de Cristo
entre os homens (cfr. Bar 3,38) que Deus dá a en­
tender alguma coisa de si — o mistério de sua vida,
admiravelmente una na essência e trina nas pessoas —
e diz em resumo como quer ser conhecido. Ele é amor,
e Como quer ser honrado e servido por nós. Amor é o
mandamento supremo que nos impõe. O diálogo torna-
-se pleno e confiado: é convite para a criança, e o mís­
tico plenamente com ele se sacia. Esta inefável e realís-
sima relação de diálogo, que Deus Pai nos propõe e
estabelece conosco por meio de Cristo no Espírito Santo,
é preciso que a tenhamos sempre presente para enten­
dermos a relação que nós, queremos dizer a Igreja,
devemos procurar restabelecer com a humanidade” 24.

24 “Tum etiam revelatio, — id est ratio suprema, quam Deus ipse


cum hominibus instauravit — quasi quoddam colloquium haberi potest,
quo Verbum Dei sive per Incarnationem, sive in Evangelio loquitur.
Colloquium paternum et sanctum inter Deum et homines, quod post
miserum Adae casum abruptum erat, postea per aetates et tempora redin­
tegratum est. Re enim vera historiae humanae salutis hoc longum et
varium colloquium produnt, quod Deus mirifice cum hominibus inchoat
cum iisdemque multimodis protrahit. In hujuscemodi prorsus Christi
inter homines quasi sermocinatione (Bar 3,38) aliquid Deus de se de­
monstrat, de suae vitae arcano, de sua videlicet unica essentia, Personis
trina. Simul autem significat, hinc qualis a Nobis agnosci velit, uti Amor
plane; illinc qua ratione velit sibi et honorem et officium a nobis adhiberi,
amorem certe ut nihil supra nobis imperans. Ad colloquium id genus,
quod identidem fit crebrum et fiduciae plenum, cum puer vocatur, tum
mysticis disciplinis initiatus homo, cujus animi vires eo sane explentur.
Hoc igitur nomine opus est nos veram hujusmodi et inenarrabilem
colloquii consuetudinem intueri, quam Deus Pater per Jesum Christum in
O PERIODO CONTEMPORÂNEO 359

É a primeira vez que uma encíclica salienta tanto o


caráter dialogai da revelação. É verdade que os documentos
anteriores25, a exemplo da Escritura, apresentavam a reve­
lação como um intercâmbio de palavras entre Deus e o ho­
mem; jamais, porém, tinham orquestrado todas as riquezas
do tema. A encíclica, descrevendo a revelação não apenas
como palavra, mas também como diálogo ( colloquium ) e con­
versação (sermocinatio: Bar 3,38), salienta ainda mais seu
caráter interpessoal e dinâmico. O Deus da revelação não
é um Ser do qual se fala em terceira pessoa. É um Ew
que se dirige a um Tw: o Deus vivo, puramente por amor,
sai de seu mistério e entra em comunicação com o homem,
dialoga e conversa, para estabelecer uma comunhão de pen­
samento e de vida.
De fato, essa estrutura dialogai é que caracteriza
a revelação. Da sarça em chamas, Deus interpela Moi­
sés: “Moisés, Moisés.. . Sou eu, o Deus de teu pai,
o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”
(Êx 3,4-6). A revelação da Lei assim começa: “Eu sou
o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da
casa da escravidão” (Dt 5,6). Eu, Deus, e tu, meu povo:
o Deus libertador e salvador interpela Israel e convida-o
à fidelidade numa santa aliança com ele. Deus chama Sa­
muel, fala-lhe, e Samuel responde: “Fala, Senhor, que teu
servo escuta” (ISam 3,10). Deus dialoga com Isaías (Is
6,1-7), com Jeremias (Jer 1,4-10), com suas testemunhas
e com seus arautos, os profetas, e por seu intermédio di­
rige-se a seu povo. Em o Novo Testamento, a Palavra de
Deus em pessoa, essa Palavra interior com a qual o Pai
mantém um eterno diálogo de amor, essa Palavra faz-se
carne e, mediante a encarnação, interpela o homem e con-
vida-o à fé; pela carne da Escritura faz-se Evangelho e fala-
-nos. Assim a revelação toma a forma de um longo e paté­
tico diálogo entre Deus e sua criatura: diálogo interrompido
Spiritu Sancto aperuit et nobiscum instituit: si modo nos, hoc est
Ecclesia, intelligere cupimus, quaenam sit nobis cum hominibus ineunda
atque intendenda necessitudo” (Ibid.., 641-642).
25 Por exemplo, a encíclica Qui pluribus (D. 1638), o Vaticano I
(D. 1785), o juramento anti-modernista (D. 2145), a encliclica Mit
brennender Sorge (AAS 29 (1937): 156), a encíclica Mortalium animos
(AAS 20 [1928]: 8).
.560 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

pelo pecado do homem, mas reatado pelo amor de Deus.


Um diálogo constante reatado por Deus, apesar das cons­
tantes infidelidades do homem. Arrebatadora imagem do
diálogo pessoal de cada homem com Deus. Deus sempre
chamando, e o homem sempre esquivo a fugir, a tapar os
ouvidos para não ouvir.
A encíclica salienta o caráter trinitàrio desse diálogo
do qual participam as três Pessoas divinas: o Pai, que tem
a iniciativa; o Verbo que, pela encarnação, é o Mediador;
o Espírito, qüe torna a palavra do Cristo assimilável à alma,
pela unção que lhe concede, pois sem o Espírito, que trans­
forma a inteligência e o coração, como podería o homem
abrir-se ao que lhe é estranho?
O principal objeto desse diálogo amoroso é o segredo
da vida divina, na unidade da essência e na Trindade das
pessoas. Revela-se Deus como o Deus do amor ( IJo 4,8),
que quer ser honrado e servido por amor. Seu manda­
mento supremo é o amor (Mc 12,29-30; Jo 15,10;l,21).
Semelhante confidência, tendo por objeto o próprio mis­
tério da intimidade divina, é da parte de Deus, uma ma­
nifestação e uma doação de amor, tendo em vista a amizade.
A revelação nascendo do amor, realiza uma obra de amor.
2. Entre o diálogo humano e o diálogo divino há
como que uma relação dialética. Partindo do sentido que
o diálogo tem nas relações humanas é que nos representa­
mos o diálogo divino, seja no seio da Trindade, seja entre
Deus e a humanidade. Mas, por outro lado, o diálogo
divino da revelação mostra-nos como deve ser o diálogo da
Igreja com a humanidade e o diálogo do cristão com os
outros homens.
Entre os homens, o diálogo é a primeira forma da
palavra, que é diálogo antes de ser monólogo. A palavra
tende para a ação. Até mesmo podemos dizer que, para o
homem, ela é a ação primordial·, ação pela qual ele inter­
vém no mundo e no curso da existência de seus semelhan­
tes: ação pela qual ele sai de si mesmo para ir em dire­
ção ao outro, para se-lhe-dar ou para conquistá-lo. A pa­
lavra é antes de tudo diálogo26. A palavra é também para

26 L. Bouyer, Le rite et llhomme (Paris, 1962), pp. 80-83


O PERIODO CONTEMPORÂNEO 361

o homem meio de conhecer a si mesmo, e também aqui


pelo diálogo, porque é no diálogo com o outro que o homem
toma consciência de si mesmo e descobre-se para si mesmo.
Até certo, ponto, como o diz muito bem J. Lacroix, não é
tanto a pessoa que faz o diálogo; é mais o diálogo que
faz a pessoa27. Pelo diálogo duas interioridades renunciam
a seu isolamento ou à sua oposição para que se possam
encontrar: revelando-se mutuamente, cada qual se revela
para si mesmo28.
Contudo, o diálogo não chega a isso a não ser que seja
atividade máxima e máxima receptividade, acolhida mútua e
mútua doação. A base de qualquer diálogo é o profundo res­
peito pelo outro e uma disponibilidade; com o que já temos
um começo de amor. Como o observa Paulo VI na Ecclesiam
suam, essa forma de relacionamento que chamamos diálogo
implica “por parte de quem a inicia, um propósito de urba­
nidade, de estima, de simpatia e de bondade ” ®. Não há
diálogo sem oferta de si mesmo. Há diálogo perfeito quan­
do quem fala escuta tão bem que desperta a confiança de
quem deve responder. E, reciprocamente, quando quem
escuta manifesta tanta atenção e simpatia que leva o outro
a ceder-lhe a palavra para ouvi-lo. Semelhante diálogo não é
possível a não ser que, de antemão, esteja disposto a ser mo­
dificado, reorientado, interrompido e retomado; a não ser que
as paixões, principalmente o interesse e o desejo de dominar,
estejam superadas; a não ser, finalmente, que cada um aceite
corajosamente o jogo da verdade oferecida e reconhecida. A
grande tentação do diálogo é o monólogo, para dominar o
outro, ou a recusa do diálogo, para eliminar c cutro. No verda­
deiro diálogo está sempre contida a possibilidade de uma mor­
te e de um holocausto: justamente por isso não é possível a
não ser na caridade M. É somente pela caridade que o diá­
logo pode culminar numa comunhão em que o homem,
27 J. Lacroix, “La filosofia dei Dialogo”, em Studi Cattolici 8 nov.-
-dezembro de 1964), p. 57.
28 M. Nédoncelle, La réciprocité des consciences (Pans, 1942),
pp. 16-17.
29 "Qui hujus necessitudinis genus adjungit... sibi statutum ostendit,
ut et urbane agat, et magni aestimet alios, et benevolentiam bonitatemque
erga alios declaret” (AAS 56 [1964]: 644).
30 J. Lacroix, La filosofia del Dialogo, pp. 50-60.
362 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

deixando de ser autosuficiente, sai de si mesmo para se


transformar no outro, sem deixar de ser ele mesmo31.

A Ecclesiam suam assim resume as qualidades do diá­


logo: clareza, mansidão, confiança, prudência. Quanto à
mansidão, diz a encíclica: “O diálogo não é orgulhoso,
não é pungente, não é ofensivo. A autoridade vem-lhe da
verdade que expõe, da caridade que difunde, do exemplo
que propõe; não é comando, não é imposição. O diálogo
é pacífico, evita os modos violentos; é paciente e é gene­
roso ”32. E a respeito da confiança na capacidade acolhe­
dora do outro: “Ela produz confidências e amizade; enlaça
os espíritos numa adesão mútua aõ Bem, que exclui qualquer
interesse egoísta” 33.
Entre o diálogo de Deus com os homens e o diálogo
do homem com o homem existe analogia, mas não identidade.
Com efeito, no diálogo da salvação, quem interpela é o
próprio Deus vivo, o Senhor cuja palavra vem do mundo
transcendente da vida divina e convida o homem para a obe­
diência da fé. Sua palavra é testemunho infalível do Deus da
verdade. Contudo, levada em conta essa diferença essen­
cial, o diálogo salvifico pode servir de inspiração e de exem­
plo para as relações da Igreja com o mundo e de cada cris­
tão com os homens seus irmãos, principalmente no referen­
te à confiança e à caridade. Assim descreve a encí­
clica as propriedades ou características do diálogo da re­
velação:
a) É um diálogo “aberto espontaneamente por ini-

31 M. Nédoncelle, La réciprocité des consciences, p. 17.


32 “Deinde colloquium nostrum necesse est ea lenitas comitetur,
quam Christus ut a se ipso disceremus hortatus est: discite a me, quia
mitis sum et humilis corde (Mt 11,29); quandoquidem indecorum e?t
colloquium nostrum superbia tumere, aculeata usurpare verba, alios acerbe
laedere. Ab eo auctoritatem ipsum repetit, quia verum declarat, quia
caritatis dona disseminat, quia virtutis exempla supponit, quia jussis non
utitur, quia nihil injungit. Idem adhuc pacatum est, rationes respuit
immoderatas, contraria tolerat, ad liberalitatem inclinat” (AAS 56 [1964]:
645).
33 “Quodcirca colloquium pariter mutuam fovet familiaritatem et
amicitiam> pariter colloquendum animos jungit ad assentiendum Bono
illi, quod sane nullius consilium recipit omnia in commodum sui trahendi”
(Ibid., 645).
O PERÍODO CONTEMPORÂNEO 363
ciativa divina: Ele foi o primeiro a amar-nos” 34. Na reve­
lação tudo é amor, tudo é graça.
b) É um diálogo nascido “da caridade, da bondade
divina” 35.
c) “O diálogo da salvação não se proporcionou aos mé­
ritos dos interlocutores convidados nem aos resultados
que iria conseguir ou malbaratar” 36.
d ) É um diálogo de imensa importância, isso porque é a.
salvação que está em jogo, e ao mesmo tempo infinitamente
respeitoso da liberdade humana. “O diálogo da salvação não
obrigou fisicamente ninguém a responder: foi pedido insis­
tente de amor que, se constituiu responsabilidade tremen­
da naqueles a quem foi dirigido (cfr. Mt 11,21), os
deixou livres para corresponder ou fechar os ouvidos”
De passagem, a encíclica salienta que os sinais da revela­
ção não coagem a liberdade humana, mas se lhe oferecem
como um socorro para que possa dar um assenso livre
e meritório: o diálogo da salvação “adaptou até o número
e a força probante dos sinais (cfr. Mt 12,38ss) às exigên­
cias e disposições espirituais dos homens (cfr. Mt 13,13ss);
facilitou assim aos ouvintes o consentimento livre à reve­
lação divina, sem perda do mérito” 38.
e) O diálogo da salvação não exclui ninguém, “foi
destinado a todos sem qualquer discriminação” 39.
f) Finalmente, esse diálogo foi obra de paciência e
sábia pedagogia: teve “progressos sucessivos, humildes prin­
cípios antes do resultado pleno” 40, respeitou a lenta ma­
turação psicológica e histórica da humanidade.
34 Ibid., 642.
35 Ibid., 642.
36 Ibid., 642.
37 “Adeo adfuit ut quisquam vi cogeretur venire ad colloquium sa­
lutis, ut is magis amore impulsionis invitaretur. Qua invitatione, quam­
quam grave onus ejus animo impositum est ad quem pertinuit (Mt 11,21),
relicta tamen est ipsi potestas aut veniendi ad colloquium aut illud fugien­
di” (Ibid., 642).
38 “Quin immo Christus sive miraculorum numerum (Mt 12,38s),
sive eorumdem vim probativam cum ad condiciones tum ad voluntatem
audientium aptavit (Mt 12,13s); eo nimirum consilio, ut iidem juverentur
ad libere assentiendum divinae revelationi, neque exinde suae assensionis
praemio carerent” (Ibid., 642-643).
39 Ibid., 643.
« Ibid., 643.
364 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

3. A encíclica descreve ainda os deveres da Igreja


ante a revelação. A Igreja deve aprofundar sua consciên­
cia “do tesouro de verdades de que é herdeira e guar­
da” 41 : ela deve pois conservar fielmente e defender o de­
pósito que recebeu em herança ( lTim 6,20 ). Contudo,
“nem a guarda nem a defesa são os únicos deveres da Igreja
quanto aos dons que possui”42 : deve também difundir o
patrimônio recebido. Portanto, deve manifestar em seu
ensinamento o esforço de “aproximá-lo quanto possível da
experiência e capacidade de compreensão do mundo con­
temporâneo”4í. Deve adaptar-se “à vida dos homens num
dado momento, num dado lugar, numa dada cultura e numa
dada situação social” 44.
Pinalidade e adaptação são os polos da ação da Igre­
ja com relação ao Evangelho. Deve propor aos homens
de nosso tempo o Evangelho de Cristo, dado de uma vez
para sempre, e, contudo, sempre presente e sempre atual.
A Igreja deve harmonizar em si ambas as atitudes sem
que nenhuma se torne exclusiva. É preciso que a fidelida­
de fuja ao conservadorismo indolente e estéril. A adapta­
ção deve “premunir-se contra o perigo dum relativismo
que ofende sua fidelidade dogmática e moral” 45. A preo­
cupação do diálogo não deve “traduzir-se numa atenuação
ou diminuição da verdade” *, pois “o irenismo e o sincre-
tismo são, no fim de contas, formas de cepticismo a res­
peito da força e do conteúdo da Palavra de Deus, que
desejamos pregar” 47.
41 “Ad officii partes, quas Ecclesia praesenti aetate exequi -debet, id
necessario pertinere debetur, ut ipsa de se, de veritatis thesauro, cujus
heres et custos constituta est, ac de munere his in tertis sibi mandato,
clariorem plenioremque conscientiam adipisci contendat” (Ibid. 614).
42 “Quamvis enim haud quidem sit dubium, quin veritatis et gratiae
thesauri, hereditate nobis a Christianae fidei patribus traditi, sint servandi
integri atque tuendi, S. Paulo monente: depositum custodi (iTim 6,20);
tamen neque custodia, neque defensione plane explentur officia, quibus
obstringitur Ecclesiae erga data sibi dona” (Ibid., 639).
43 Ibid., 640.
44 Ibid., 646.
« Ibid., 646.
46 “Profecto fratrum adeundorum sollicitudo eo nos nullo pacto
moveat oportet, ut veritatem vel extenuemus, vel de ea aliquid imminua­
mus” (Ibid., 647).
47 "Nam irenismus et syncretismus, quos nominant, nihil aliud signi-
O PERIODO CONTEMPORÂNEO 365

Da procura desse equilíbrio entre a fidelidade e a


adaptação nasce a posição harmoniosa da Igreja, obrigada
a permanecer fiel ao Cristo, seu Esposo, e obrigada tam­
bém a caminhar na história para distribuir aos homens de
todas as gerações o pão do Evangelho ao mesmo tempo que
o pão eucarístico. È um equilíbrio delicado, que a Igreja
deve sempre conservar ou recuperar, mas que se prende
à própria condição de uma revelação que entra na história
para atingir os homens de todos os tempos.

ficare ad ultimum videtur, nisi scepticism! modos, sive quoad vim sive
quoad rem Verbi Dei, quod nuntiare nobis animus est” (Ibid., 647).
5.
O SEGNDO CONCÍLIO DO VATICANO
E A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM”

Numa quarta-feira, dia 14 de novembro de 1962, ο


segundo concilio do Vaticano iniciou o exame do esquema
De fontibus Revelationis. O exame continuou até ao dia
21 de novembro. Nesse primeiro esquema, composto de
cinco capítulos (1. A dúplice fonte da revelação; 2. Ins­
piração, inerrância, gênero literário; 3. Antigo Testamen­
to; 4. Novo Testamento; 5. A Sagrada Escritura na Igre­
ja), as passagens pertinentes diretamente à revelação trata­
vam do fato da revelação e da sua transmissão, da função
de Cristo e dos apóstolos na economia da revelação, da
dúplice fonte de revelação, da função do Magistério para
com o depósito da fé.
Inicialmente o esquema foi objeto de observações ge­
rais sobre o conjunto dos capítulos. Desde logo manifestaram-
-se duas atitudes entre os Padres: uns, aceitavam substan­
cialmente o esquema, com retoques, porém; outros, decla­
ravam-no inaceitável e pediam pura e simplesmente que
fosse substituído por um texto.mais conciso, mais pasto­
ral e mais ecumênico.
Entre os problemas em jogo, foi principalmente o
das relações entre Escritura e Tradição que prendeu a aten­
ção. Quais são essas relações e em que termos devem
ser expressas? A preocupação com o diálogo ecumênico
tornava o problema bastante delicado. Principalmente para
os protestantes, desde logo, o esquema assumiu a figura de
um símbolo: seu julgamento sobre o concilio iria em gran­
de parte depender da atitude que assumisse nessa ques­
tão. Diante das hesitações da pesquisa teológica, dian­
te das dificuldades de uma formulação exata, muitos Padres
começaram a se perguntar se seria oportuno que o conci­
lio tomasse posição sobre questões ainda controvertidas.
O VATICANO II E A constituição “dei verbum” 367
O primeiro esquema encontrou, pois, forte resistên­
cia por parte de uma importante maioria; assim a discus­
são de cada capítulo prometia ser trabalhosa, prolongada e
$ sem esperança de sucesso. Por isso, na têrça-feira, dia 20
de novembro, João XXIII decidiu que fosse antes revisto
por uma comissão especial. Essa comissão chamada mixta,
porque composta de 7 cardeais nomeados pelo papa, 10
membros da comissão doutrinai e 10 do secretariado para
I a união, foi nomeada no dia 25 de novembro de 1962.
Terça-feira, 20 de novembro, dia em que João XXIII
decidiu remeter o esquema para essa comissão mixta, foi um
dos pontos decisivos do concilio. A partir desse dia, o
problema do conteúdo material da Escritura e da Tradi­
ção continua sendo um problema aberto, que os teólogos e
exegetas poderão continuar aprofundando. O concilio, esco­
lhendo outro caminho, preocupou-se mais com marcar bem
claramente a unidade orgânica entre a Escritura e a Tra­
dição, e o estreito relacionamento entre Escritura, Tradi­
ção e Igreja.
Durante a segunda sessão do concilio reinou o mais
completo silêncio sobre o esquema da revelação. A co­
missão mixta terminou seu trabalho em março de 1963,
e os Padres ficaram conhecendo o resultado de suas pes­
quisas em maio do mesmo ano. Muitos manifestaram o
desejo de que o texto tratasse de modo mais amplo da
Tradição e da pópria revelação. A 7 de março de 1964
a comissão doutrinai constituiu uma subcomissão para,
atendendo a esse desejo, emendar o esquema. A sub­
comissão transformou em dois o primeiro capítulo ( A
palavra revelada de Oeus): I — A revelação em si mesma,
II — A transmissão da revelação. Esses capítulos novos
foram examinados numa sessão plenária da comissão dou­
trinai, de I? a 6 de junho de 1964. O primeiro capítulo
foi aceito sem dificuldade; o segundo, por uma maioria de 17
contra 7. A oposição era causada pelo fato de o texto evi­
tar dizer que na Tradição há mais verdades que na Es­
critura.
O novo esquema foi discutido durante a terceira ses­
são do concilio, de 30 de setembro a 6 de outubro de 1964,
sem que desta vez fosse questionado o delicado equilíbrio
368 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

que se conseguira e sem que houvesse qualquer perturba­


ção da paz. No seu conjunto, o texto agradou aos Padres,
porque equilibrado, de sabor bíblico, cristocêntrico, com
uma longa exposição sobre a Tradição e, finalmente, por­
que deixava aos teólogos liberdade quanto às questões con­
trovertidas.
Terminada a discussão conciliar, a Comissão retomou
imediatamente o trabalho para atender às observações fei­
tas pelos Padres, principalmente as referentes aos capítulos
I e II, os mais importantes do esquema. O resultado foi
entregue aos Padres no último dia da terceira sessão.
Finalmente, o texto reelaborado foi submetido ao
voto da assembléia conciliar logo no começo da quarta ses­
são, a 20, 21 e 22 de setembro de 1965. As emendas que
os Padres apresentaram quanto a detalhes, melhoraram bas­
tante a forma do texto, sem modificar a sua substância. A
Constituição Dei Verbum, votada capítulo por capítulo no dia
29 de outubro de 1965, e aprovada quase por unanimidade,
foi oficialmente promulgada por Paulo VI a 18 de novembro
de 1965.
Não pretendemos analisar aqui toda a Constituição
nem historiar os diversos esquemas que precederam o texto
definitivo votado pelos Padres conciliares. Vamos apenas
examinar os capítulos I e II que tratam da revelação e de
sua transmissão. De modo especial examinaremos ο I ca­
pítulo que trata da própria revelação. Depois de uma
análise pormenorizada dos dez parágrafos que formaram os
capítulos I e II da Dei Verbum, apresentaremos reflexões
sobre o conjunto dos dois capítulos *.

TEXTO E COMENTÁRIO

1. Prooemium

1. Dei verbum religiose audiens et fidenter procla­


mans, Sacrosancta Synodus verbis S. Joannis obse­
quitur dicentis: “Annuntiamus vobis vitam aeternam,

1 Para facilitar o trabalho numeramos as frases de cada parágrafo.


O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 369
quae erat apud Patrem et apparuit nobis: quod vi­
dimus et audivimus annuntiamus vobis, ut et vos
societatem habeatis nobiscum, et societas nostra sit
cum Patre et cum Filio eius lesu Christo” ( IJo 1,2-3).
2. Propterea, Conciliorum Trindentini et Vaticani I
inhaerens vestigiis, genuinam de divina Revelatione
ac de eius transmissione doctrinam proponere inten­
dit, ut salutis praeconio mundus universus audiendo
credat, credendo speret, sperando amet.
Ainda que sóbrio, é grandioso este prooemium. Seu
tom solene e religioso justifica-se plenamente pelo fato de
a constituição Dei Verbum apresentar-se logicamente como
o primeiro dos grandes documentos do Vaticano II. Real­
mente este prooemium é uma introdução ao conjunto da
obra conciliar. No conjunto da Constituição Dei Verbum
ele apresenta o tema da constituição: tema que será desen­
volvido e /Orquestrado pelos capítulos seguintes.
1. Dei Verbum: essas duas palavras que servirão
para caracterizar a constituição e distingui-la dos outros do­
cumentos conciliares, exprimem de fato todo o seu conteúdo.
Deus, o Deus vivo, falou à humanidade. O termo palavra
de Deus aplica-se em primeiro lugar à revelação, a essa
intervenção primeira pela qual Deus sai de seu mistério,
dirige-se à humanidade para lhe manifestar os segredos
de sua vida divina e comunicar-lhe seu desígnio de salva­
ção. Esse é o fato inaudito que domina ambos os Testa­
mentos e do qual vive a Igreja. Essa palavra de Deus, di­
rigida uma vez por todas, perdura através dos séculos,
sempre viva e atual, pela Tradição e pela Escritura.
Ante a palavra de Deus, o concilio assume a mesma
atitude que descreverá no capítulo II ao falar da atitude
do Magistério da Igreja: ele escuta e proclama a palavra de
Deus. Como todo o povo cristão, de cuja fé partilha, ele
primeiro acolhe com fé e piedade a palavra do Senhor.
Mas também em virtude da missão profética que recebeu
do Cristo, ele é o arauto dessa palavra que proclama com
a confiança dos profetas e dos apóstolos. O termo fiden­
ter, que qualifica essa proclamação, lembra a παρρησία, ou
atitude de confiança e segurança da pregação apostólica
370 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

(At 4,29-31;9,28;19,8). O concilio, ministro da palavra


de Deus, lembra respeitosamente (obsequitur) o começo da
primeira Epístola de João: “Por isso, atestamos e vos anun­
ciamos a Vida eterna, que estava junto do Pai e nos apa­
receu; o que vimos e ouvimos, anunciamo-lo também a vós,
para estardes, vós também, em comunhão conosco. A nos­
sa comunhão é com o Pai e com o seu Filho, Jesus Cris­
to” (IJo 1,2-3). Em termos bíblicos, esse texto enuncia
o essencial da constituição. A Vida, que estava em Deus,
junto do Pai, apareceu para nós. Deus saiu de seu misté­
rio e, graças ao sinal da humanidade do Cristo, João pôde
ver e ouvir o Verbo da vida. João anuncia o que viu e
ouviu, para que os homens, pela fé em seu testemunho,
participem de sua experiência e com ele entrem em co­
munhão de vida com o Pai e seu Filho Jesus Cristo. Men­
cionando a Epifania de Deus em Jesus Cristo, a mediação
do testemunho apostólico, a participação do homem na
vida trinitária, esse texto de são João descreve o movi­
mento total da revelação: a Vida em Deus, Vida que desce
até o homem e se manifesta, em Jesus Cristo, para levar o
homem de volta_à Vida. Esse texto, por sua densidade e
força de sugestão, é como que o leitmotiv da constituição,
principalmente do capítulo I.
2. A segunda frase indica a finalidade da Constitui-
concilio quer expor a verdadeira doutrina sobre a re­
velação e sobre sua transmissão. Em o fazendo, ele ao mesmo
tempo continua e amplia o trabalho iniciado pelos concí­
lios Tridentino e Vaticano I. A referência final a Agos­
tinho evidencia a preocupação pastoral que inspira toda a
obra do concilio.

CAPÍTULO I. A REVELAÇÃO

2. Natureza e objeto da revelação

1. Placuit Deo in sua bonitate et sapientia Seipsum


revelare et notum facere sacramentum voluntatis suae
(cfr. Ef 1,9), quo homines per Christum, Verbum
carnem factum, in Spiritu Sancto accessum habent ad
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 371
Patrem et divinae naturae consortes efficiuntur (cfr.
Ef 2.18;2 Pdr 1,4)·
2. Hac itaque revelatione Deus invisibilis (Cfr. Col
1,15; lTim 1,17) ex abundantia caritatis suae homi­
nes tamquam amicos alloquitur (cfr. Ex 33,11; Jo 15,
14-15) et cum eis conversatur (cfr. Bar 3,38), ut
eos ad societatem Secum invitet in eamque suscipiat.
3. Haec revelationis oeconomia fit gestis verbisque
intrinsece inter se connexis, ita ut opera, in historia
salutis a Deo patrata, doctrinam et res verbis signifi­
catas manifestent ac corroborent, verba autem opera
proclamant et mysterium in eis contentum elucident.
4. Intima autem per hanc revelationem tam de Deo
quam de hominis salute veritas nobis in Christo illuces­
cit, qui mediator simul et plenitudo totius revelatio­
nis exsistit.

1. Aqui se descreve a revelação em sua fase ativa e


constitutiva, em sua economia de realização concreta me­
diante a história e a encarnação. Inicialmente a Constitui­
ção enuncia o fato e o objeto da revelação. Da revelação,
como de qualquer obra salvifica, é preciso dizer que ela
é efeito do beneplácito divino: placuit (Ef 1,9-10). É
graça, livre iniciativa de Deus, e não o efeito de uma
coação ou solicitação por parte do homem. Como obra de
amor ela procede da bondade e da sabedoria de Deus.
O texto retoma as palavras do Vaticano I, dando-lhe, po­
rém, uma formulação mais personalista. Em vez de dizer
placuit eius sapientiae et bonitati, diz placuit Deo, in sua
bonitate et sapientia. E mais, menciona primeiro a bonda­
de de Deus, depois sua sabedoria.
Também ao propor o objeto da revelação o texto se­
gue o Vaticano I. Enquanto, porém, este dizia: seipsum ac
aeterna voluntatis suae decreta revelare, o Vaticano II
desdobra o verbo e substitui decreta pelo termo paulino
sacramentum (“Mysterium”, no texto grego) mais bíblico
e concreto: seispsum revelare et notum facere sacramentum
voluntatis suae. Dizendo que o objeto da revelação é ο
próprio Deus, o texto personaliza a revelação: antes de
manifestar algo, ou seja, seu desígnio de salvação, é sua
372 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

própria pessoa que Deus revela. O mistério paulino evoca


esse desígnio salvifico, desde toda a eternidade oculto em
Deus, e agora revelado. Por esse desígnio Deus estabe­
lece o Cristo como centro da nova economia e o constitui,
por sua morte e ressurreição, como o único princípio de
salvação, para gentios e judeus, Cabeça de todos os seres,
dos anjos e dos homens. O Mistério é o plano divino
que, afinal, se resume no Cristo, com suas insondáveis ri­
quezas, seus tesouros de sabedoria e de ciência. Con-
cretamente o Mistério é o Cristo. O concilio, usando a
categoria paulina de Mistério, com a plenitude de sen­
tido e multiplicidade de ressonâncias que tem na Epístola
aos efésios (cap. I), dá ao objeto da revelação sua ex­
pressão mais completa, mais rica e mais sugestiva.
A última parte da frase diz em que consiste o desígnio
salvifico de Deus: que os homens, pelo Cristo, Verbo
encarnado, tenham acesso ao Pai (Ef 2,18) no Espírito
e se tornem partícipes da natureza divina (2Pdr 1,4). O
desígnio divino, expresso em termos de relacionamento
interpessoal, inclui os três principais mistérios do cristia­
nismo: a Trindade, a encarnação, a graça.
2. Estabelecidos o fato e o objeto, o concilio esta­
belece a natureza da revelação. Pela revelação, o Deus in­
visível e oculto (Col 1,15; ITim, 1,17), que ninguém pode
ver sem morrer, o transcendente e três vezes santo, na
superabundância de sua caridade (pois Deus é amor: IJo
4,8) sai de seu Mistério. Deus rompe o silêncio: dirige-se
ao homem, interpela-o, trava com ele um diálogo de ami­
zade, como o fizera com Moisés (Êx 33,11) e com os
apóstolos (Jo 15,14-15).
Deus conversa com os homens para convidá-los a par­
ticipar da sociedade das pessoas divinas e para introduzi-
-los nessa sociedade. O texto de Baruc (3,38) mencio­
nado pelo concilio e empregado também na liturgia (por
ex., na sexta profecia do antigo ofício do sábado santo),
significa que a Sabedoria desceu do céu para habitar entre
os homens, encarnando-se na Lei judaica. O concilio já
evoca essa plenitude da revelação pela qual a Sabedoria
pessoal de Deus, pela encarnação, assume a existência hu­
mana, vive com os homens, como um dentre eles, e com
4
« O VATICANO II E A constituição “dei verbum” 373
J
eles conversa. Jesus Cristo é a Sabedoria de Deus que apare­
ceu sobre a terra e conversou com os homens. O tema,
f aqui simplesmente evocado, será retomado no parágrafo IV.
O concilio, pois, para definir a revelação conserva a
analogia da palavra, onipresente no Antigo e Novo Tes­
tamento (Hebr 1,1), tradicional nos documentos do ma­
gistério2 e em toda a tradição teológica. Deus falou à hu­
manidade. Mediante sua palavra é que o Invisível se fez
f conhecer, que sua transcendência se fez proximidade.
A economia é economia de palavra e de fé. A visão está
para além da morte. Nosso Deus é o Deus da palavra:
i
I
fala a Abraão, a Moisés, aos profetas e, por eles, fala a
seu povo. Pelo Cristo Deus fala aos apóstolos e por eles
a nós. Nele é o Filho que nos fala pessoalmente.
Essa palavra, pela qual Deus transpõe de certo modo
I a distância infinita que o separa do homem, será neces­
sariamente uma palavra de amizade: procede do amor, rea­
f* liza-se como amizade e tem em vista uma obra de amor:
I ex abundantia caritatis. .. tamquam amicos.. . ut ad so­
â
cietatem secum. . . Se Deus estabelece comunicação com
o homem, sua criatura, ele o fará necessariamente para es­
tabelecer com ele laços de amizade, para associá-lo à sua
vida íntima: para convidá-lo para essa vida e para nela intro­
duzi-lo pela fé em sua palavra. A revelação que proce­
de do amor, quer realizar uma obra de amor: quer intro­
duzir o homem nessa sociedade de amor que é a Trindade.
O texto retoma assim o tema anunciado no proemium.
3. A analogia da palavra, usada para representar a
i revelação, ainda não diz nada quanto a disposição concreta
Ç adotada por Deus para se pôr em intercâmbio pessoal com
t
t o homem. Assim como um homem pode comunicar-se
ç
1 com outros de muitas maneiras, — gestos, ações, palavras,
imagens, gestos acompanhados de palavras, sinais articula­
dos ou sinais gráficos —, assim também Deus poderia co­
municar-se de diversos modos. Deve pois a compreensão
4 da revelação descrever a economia de fato adotada por
& 2 Por exemplo, a encíclica Qui pluribus (D. 1637), o Vaticano I (D.
i 1785), o juramento antimodernista (D. 2145), a encíclica Mit brennender
Sorge (AAS, 29 [1937] 156), a encíclica Mortalium animos (KAS
4 [1928] 8).
*
1
374 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Deus para falar à humanidade. Dirigindo-se ao homem, ser


de carne e espírito, mergulhado no tempo, 'Deus comuni­
cou-se com o homem pelas vias da encarnação e da his­
tória. Pela primeira vez um documento do Magistério des­
creve assim a economia da revelação em seu exercício con­
creto e nessa fase ativa que a faz existir.
Primeiramente afirma o concilio que a revelação se faz
pela íntima união dos gestos e de palavras. Por gesta
(termo de ressonância mais personalista que facta) deve­
mos entender as ações salvificas de Deus, isto é, todas as
obras feitas por Deus que constituem a história da salva­
ção: algumas realizadas diretamente por Deus; outras, me­
diante os profetas; umas, dependendo de sua providência
ordinária; outras, sendo verdadeiros milagres; todas, porém,
sendo realmente manifestações do agir divino na história da
salvação, ordenadas segundo uma sapientíssima disposição
(economia) querida por Deus. Esses gesi y e obras são,
por ex., no Antigo Testamento: os acontecimentos do Êxo­
do, o estabelecimento da monarquia, os julgamentos de
Deus manifestados na derrota dos exércitos, o exílio, o ca­
tiveiro, a restauração; em o Novo Testamento, são as ações
da vida do Cristo, principalmente seus milagres, sua morte
e sua ressurreição. A palavra, são as palavras de Moisés e dos
profetas que interpret gestos de Deus na história;
são as palavras do cristo que manifesta o sentido de
suas ações; são finalmente, as palavras dos apóstolos, tes­
temunhas e intérpretes autorizados da vida do Cristo.
Tendo afirmado a íntima união, como a de corpo e
de alma, das obras e das palavras na economia da revelação,
o concilio explica brevemente como obras e palavras são
interdependentes. As obras, “realizadas por Deus na his­
tória da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as
realidades (desígnio e atos salvíficos de Deus) significa­
das pelas palavras”. Deus, com efeito, manifesta seu de­
sígnio de salvação já no próprio gesto pelo qual a realiza.
O Deus que revela é um Deus que se compromete na his­
tória e nela se revela como quem faz a salvação de seu
povo. Assim é que a libertação do cativeiro egípcio ma­
nifesta a intervenção do Deus salvador e a própria salva­
ção; a cura do paralítico manifesta o poder libertador do
Ο VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 375
Cristo e a própria libertação do pecado que ele opera na
alma; a ressurreição manifesta seu soberano domínio sobre
I a morte e sobre a vida. Por outro lado, essas mesmas obras
corroboram, apoiam, confirmam, atestam a doutrina e
a realidade profunda, misteriosa, oculta nas obras e signi­
ficada pelas palavras. É assim que o Êxodo confirma a
promessa feita por Javé a Moisés de salvar seu povo; a
cura do paralítico mostra e ao mesmo tempo demonstra
a validade da palavra do Filho do homem que se arroga o
poder de perdoar os pecados; a ressurreição do Cristo con­
firma a verdade de seu testemunho e a realidade de sua
missão como Filho do Pai, vindo para salvar os homens
do pecado e da morte.
Muitas vêzes, porém, os acontecimentos são opacos;
as obras são passíveis de ambigüidade e equívocos. É função
das palavras dissipar essa ambigüidade e proclamar o sen­
tido autêntico e misterioso das ações divinas: “As palavras
proclamam e iluminam o mistério contido nas obras”. Se
por exemplo, os gestos de perdão e dé cura rea­
lizados por Cristo exprimem admiravelmente o amor que ele
viera revelar, sua morte fica sendo um acontecimento pas­
sível de diversas interpretações: é a palavra do Cristo, con­
tinuada pela dos apóstolos, que nos descobre a dimensão
inaudita dessa morte e propõe à nossa fé ao mesmo tempo
o próprio acontecimento e seu alcance salvifico. É a pre­
gação de Pedro que, na manhã de Pentecostes, atesta que
os apóstolos não estão embriagados, mas sob a ação do
Espírito Santo que sobre eles descera (At 2,15-19), e que
a ressurreição do Cristo é, não apenas um milagre, mas
f também o mistério da intronização do Cristo como Messias
e Senhor (At 2,33-36). O mesmo se dá com o Êxodo:
sem a palavra de Moisés que em nome de Deus interpre­
tou para Israel aquela migração como uma libertação que
tinha em vista uma aliança, o aconteceimento não recebe­
ría aquela plenitude de sentido que o transformou no fun­
damento da religião de Israel. Os acontecimentos vêm carre­
gados de uma significação religiosa que as palavras devem
proclamar e iluminar.
t Quanto a essa união íntima d vital entre obras e pa­
lavras devemos fazer duas observações:
376 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

a) Trata-se de uma união de natureza, não necessa


riamente de tempo. Às vezes há simultaneidade entre o
gesto e a palavra (por exemplo, na cura do paralítico, quan­
do as palavras acompanham o gesto); às vezes, porém, o
acontecimento precede a palavra (por exemplo, na criação
do mundo, no estabelecimento da monarquia); ou, pelo
contrário, a palavra precede o acontecimento (por exemplo,
o anúncio do Messias como Servo sofredor; cfr. Is 48,3-8;
Am 3,7).
b) Devemos notar ainda que a proporção entre as
obras e as palavras pode variar muito. Às vezes, as pala­
vras ocupam o primeiro lugar, como por exemplo, nos li­
vros sapienciais, no sermão da montanha; outras vezes,
os fatos: nos livros históricos, nos acontecimentos da paixão,
morte e ressurreição do Cristo.
O concilio, insistindo nas obras e palavras como ele­
mentos constitutivos da revelação, e na sua íntima união põe
em evidência o caráter histórico e sacramental da re­
velação: acontecimentos iluminados pela palavra dos profe­
tas, do Cristo e dos apóstolos. O caráter histórico da re­
velação mostra-se na própria ação de Deus que sai de seu
mistério e participa da história, na sucessão dos aconte­
cimentos ou intervenções de Deus que se ordenam segun­
do um desígnio coerente e sábio que é propriamente a eco­
nomia da revelação e da salvação, e, finalmente, na inter­
pretação desses acontecimentos mediante a palavra que é
ela mesma um acontecimento. O caráter sacramental da
revelação mostra-se na compenetração e mútuo apoio entre
obras e palavras. Deus propõe à fé o acontecimento da
salvação e ao mesmo tempo esclarece-lhe o sentido; inter­
vém na história e diz o sentido de sua intervenção; age e
comenta sua ação. Essa estrutura geral da revelação, rea­
firmada no capítulo IV, em se tratando do Antigo Testa-
tamento3, e no capítulo V em se tratando do Novo Testa-

3 “Amantissimus Deus... ita Se tamquam unicum Deum verum et


vivum verbis ac gestis revelavit ut Israel, quae divinae essent cum homi­
nibus viae experiretur easque, ipso Deo per os prophetarum loquente,
penitius et clarius in dies intelligere atque latius in gentes exhiberet” (cap.
IV, n. 14).
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “ DEI VERBUM ” 377
mento4, basta para distinguir a revelação cristã de todos os
outros tipos de revelação filosófica ou gnóstica.
4. Mediante essa revelação, brilha a nossos olhos,
no Cristo, a verdade profunda sobre Deus e sobre o ho­
mem. No Cristo revela-se-nos quem é Deus: Pai que
nos criou e nos ama como filhos; Filho e Palavra, que nos
chama e nos convida para uma comunhão de vida com a
Trindade; Espírito, que vivifica e santifica. No Cristo
revela-se-nos também a verdade do homem: chamado e esco­
lhido por Deus, ainda antes da criação do mundo, para
ser filho adotivo do Pai no Cristo.
O Cristo é, ao mesmo tempo, Mediador e Plenitude
da revelação. É o Caminho escolhido por Deus para nos
dar a conhecer o que ele é (Pai, Filho, e Espírito) e o que
nós somos (pecadores chamados à vida). O Cristo é o
Caminho porque nos revela a Vida e o caminho da Vida.
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém chega ao
Pai a não ser por mim” (Jo 14,6). E também “ninguém
conhece o Filho senão o Pai, nem ninguém conhece o Pai
senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”
(Mt 11,27). “A Deus ninguém jamais o viu; manifes-
tou-no-lo o Unigênito de Deus, que está no seio do Pai”
(Jo 1,18). O Cristo é também a Plenitude3 da revelação,
isto é, o Deus que revela e o Deus revelado, o autor e o
objeto da revelação, quem revela o Mistério e é o pró­
prio Mistério em pessoa (Jo 14,6; 2Cor 4,4-6; Ef 1,3-14;
Col 1,26-27; lTim 3,16). Ele é pessoalmente a Verdade
que ele anuncia e prega. Por isso, a verdade que nele resplan­
dece não apenas solicita a adesão do espírito: quer invadir
toda a nossa vida, para transformá-la e transformar-nos» no
Cristo; pela união com o Cristo ela tende à comunhão com o
Pai, o Filho e o Espírito.

4 “Christus Regnum Dei in terris instauravit, factis et verbis Patrem


suum ac Seipsum manifestavit, atque morte, resurrectione et gloriosa
ascensione missioneque Spiritus Sancti opus suum complevit” (Cap. V,
n. 17).
5 Pela primeira vez encontramos a expressão na encíclica “Mit bren-
nender Sorge”: “In Jesus Christus, dem menschgewordenen Gottessohn,
ist die Fülle der gottlichen Offenbarung erschienen” (AAS, 29 [1937] 150).
378 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

3. Λ preparação da revelação evangélica


1. Deus, per Verbum omnia creans (cfr. Jo 1,3) et
conservans, in rebus creatis perenne sui testimonium
hominibus praebet (cfr. Rom 1,19-20), et viam salu­
tis superne aperire intendens, insuper protoparentibus
inde ab initio Semetipsum manifestavit.
2. Post eorum autem lapsum eos, redemptione pro­
missa, in spem salutis erexit (cfr. Gen 3,15) et sine
intermissione generis humani curam egit, ut omnibus
qui secundum patientiam boni operis salutem quaerunt,
vitam aeternam daret (cfr. Rom 2,6-7).
3. Suo autem tempore Abraham vocavit, ut face­
ret eum in gentem magnam (cfr. Gen 12,2-3) quam
post Patriarchas per Moysen et Prophetas erudivit ad
se solum Deum vivum et verum, providum Patrem
et iudicem iustum agnoscendum, et ad promissum Sal­
vatorem expectandum, atque ita per saecula viam Evan-
gelio praeparavit.

1. A primeira frase afirma e distingue uma dupla mani­


festação de Deus: a primeira, pelo testemunho da cria­
ção, dirigida a todos os homens; a segunda, por uma
revelação positiva, dirigida a nossos primeiros pais. O mes­
mo Deus que criou o cosmos manifestou-se também na his­
tória humana.
Em poucas palavras o texto descreve essa primeira
manifestação de Deus na criação. Foi pelo seu Verbo que
Deus criou (Jo 1,3) e tudo conserva, como também é por
seu Verbo que Deus falou à humanidade (parágrafo IV). O
universo das criaturas constitui uma primeira presença e uma
primeira manifestação de Deus: um testemunho perma­
nente de si mesmo à humanidade, inscrito no universo por
ele criado (Rom 1,19-20). O concilio afirma o fato, sem
maiores explicações.
O mesmo Deus que se manifestou à humanidade por
seu Verbo criador, é também o Deus Salvador que, para
abrir ao gênero humano o caminho da salvação, se mani­
festou aos nossos primeiros pais numa revelação histórica
e pessoal. Contudo, o concilio não explica a relação que exis-
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 379
te entre ambas as manifestações de Deus, natural e sobre­
natural· Não diz se, na intenção divina, uma se ordenava
à outra, nem se a primeira já estava penetrada pela graça.
Depois, tomando os pontos mais importantes, indica as
etapas da revelação no Antigo Testamento: promessa a
nossos primeiros pais, vocação de Abraão, instrução do
povo escolhido, mediante Moisés e os profetas.
2. Após a queda de nossos primeiros pais Deus os
reergueu pela esperança de uma salvação futura (Gen 3,15),
pela promessa de um resgate. Esse vislumbre da sal­
vação evocado pelo Gênesis, é o Protoevangelho. Com a
promessa, de alcance salvifico universal, começa a marcha
da história da salvação e Deus a ninguém deixa fora da
salvação. Ainda que o povo de Israel tenha sido cons­
tituído o depositário dessa promessaj jamais Deus cessou
(sine intermissione) de se preocupar (curam egit) com a
humanidade, dando a vida eterna a todos que, constantes
no bem, procuram a salvação (Rom 2,6-7).
3. A última frase evoca rapidamente dois milênios de
história, de Abraão a Jesus Cristo: Deus chamou Abraão,
instruiu-o e formou Israel seu povo, preparando assim o
caminho para o Evangelho.
Deus, no tempo por ele escolhido, chamou Abraão
para que se tornasse uma grande nação (Gên 12,2). Após
o tempo dos patriarcas, Deus instruiu esse povo pelo mi­
nistério de Moisés e dos profetas. O verbo erudire signi­
fica, ao mesmo tempo, instrução e formação. Deus for­
mou o povo judeu para que o pudesse reconhecer como
Deus vivo e verdadeiro, como um Pai que cuida de seus
filhos, como um justo juiz, e para que esperasse o Sal­
vador prometido. Afirma assim o concilio o conteúdo es­
sencial da revelação veterotestamentária: o conhecimento
do único Deús, o Deus de vida e de verdade, e a esperança
do -Salvador prometido. A última parte da frase apresenta
a revelação do Antigo Testamento como uma sábia peda­
gogia que durou séculos, ao longo dos quais Deus formou
seu povo e preparou os caminhos para o Evangelho.
380 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

4. O Cristo leva a revelação à sua plena realização


1. Postquam vero multifariam multisque modis Deus
locutus est in prophetis, “novissime diebus istis lo­
cutus est nobis in Filio” (Hebr 1,1-2).
2. Misit enim Filium suum, aeternum scilicet Ver­
bum, qui omnes homines illuminat, ut inter homines
habitaret iisque intima Dei enarraret (cfr. Jo 1,1-18).
3. lesus Christus ergo, Verbum caro factum, “homo
ad homines” missus, “verba Dei loquitur” (Jo 3,34)
et opus salutare consummat quod dedit ei Pater fa­
ciendum (cfr. Jo 5,36; 17,4).
4. Quapropter Ipse, quem qui videt, videt et Pa­
trem (cfr. Jo 14,9), tota suiipsius praesentia ac ma­
nifestatione, verbis et operibus, signis et miraculis,
praesertim autem morte sua et gloriosa ex mortuis
resurrectione, misso tandem Spiritu veritatis, reve­
lationem complendo perficit ac testimonio divino con­
firmat, Deum nempe nobiscum esse ad nos ex peccati
mortisque tenebris liberandos et in aeternam vitam
resuscitandos.
5. Oeconomia ergo christiana, utpote foedus novum
et definitivum, nunquam praeteribit, et nulla iam nova
revelatio publica expectanda est ante gloriosam ma­
nifestationem Domini nostri lesu Christi (cfr. ITim
6, 14 et Tit 2,13).

O parágrafo retoma o tema do Cristo Mediador e Ple­


nitude da revelação, já agora, porém, na perspectiva da
história da revelação.
1. Nessa perspectiva histórica o texto da Epístola
aos hebreus afirma que o Cristo é o ponto mais alto da revela­
ção. Evidencia a superioridade da revelação nova sobre a an­
tiga, como também a relação existente entre ambas as fa­
ses da história da salvação. Entre ambas as economias há
continuidade e diferença. O elemento que dá continuidade é
Deus e sua palavra·, a palavra do Filho é a continuação e
o cumprimento da palavra anunciada pelo ministério dos
profetas. Há continuidade, mas também diferença e supe­
ração. Diferença quanto a épocas e modos de revelação
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 381

(palavra intermitente e fragmentária no Antigo Testamen­


to; palavra única e total do Filho em o Novo Testamento),
formas, destinatários e mediadores. Em última análise, é
a pessoa do Filho que dá à revelação do Novo Testamento
a sua superioridade sobre a antiga. Porque o Cristo é o Filho,
nele a revelação atinge seu ápice6.
2. A seguir o texto explica porque o Cristo é o ápice
da revelação. Deus enviou-nos seu Füho, isto é, sua Pala­
vra eterna-, esse Filho, essa Palavra divina, que já pela
criação era Luz dos homens, Deus o enviou para habitar
entre os homens e para contar os segredos da vida divina,
para a qual nos convida e na qual nos quer introduzir: “A
Deus ninguém jamais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de
Deus, que está no seio do Pai” (Jo 1,18). Assim se cum­
pre e aprofunda infinitamente o texto de Baruc (3,38)
antes citado. O Cristo é a Sabedoria de Deus que habita
entre os homens e conversa com eles. Filho de Deus, Pa­
lavra eterna do Pai, Luz dos homens, ele está ontologica-
mente qualificado para nos revelar Deus e seu mistério.
3. Na terceira frase encontramos a intuição central
do parágrafo e até mesmo de todo o capítulo. Re­
toma o que já fora dito sobre o Filho enviado entre os
homens, insiste na plenitude e no realismo da encarnação
na economia da revelação. Jesus Cristo, a Palavra substan­
cial de Deus, na qual Deus se exprime a si mesmo e toda a
criação (ad intra et ad extra), é essa Palavra que, median­
te a encarnação, nos fala, falando-nos de homem para homem.
O paralelo entre a Palavra e as palavras que ela pronun­
cia mediante a carne, evidencia de modo impressionante
que o Filho de Deus realmente se fez homem e usou
sem subterfúgios os meios de expressão da natureza hu­
mana. Jesus Cristo, diz o concilio, é, portanto, a Pa­
lavra de Deus que se fez carne (Verbum caro factum),
que se tornou um de nós, isto é, homem; Palavra que
foi enviada aos homens para se eficontrar com eles e atin­
gi-los em seu próprio nível (homo ad homines missus).
Jesus Cristo é a Palavra de Deus que verdãdeiramente

6 R. Schnackenburg, “Zum Offenbarungsgedanken in der Bibel”,


Biblische Zeitschrift, Ί (1963): 2-23.
382 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

“pronuncia as palavras de Deus” (verba Dei loquitur:


Jo 3,34) e “leva a termo a obra de salvação que o Pai
lhe confiara” (Jo 5,36; 17,4). A revelação faz parte dessa
obra de salvação que o Pai confiara ao Filho. Na prece sa­
cerdotal o Cristo diz ao Pai: “Eu glorifiquei-te na terra,
consumando a obra que me deste a fazer” (Jo 17,4), e
acrescenta logo: “Manifestei o teu nome aos homens” (Jo
17,6). E mais adiante: “Dei-lhes a conhecer o teu nome e
dar-lho-ei a conhecer ainda, para que o amor com que me
amaste esteja neles e eu esteja neles” (Jo 17,26).
4. Sendo o Cristo o Filho do Pai, a Palavra eterna
qr? se fez carne, segue-se que ele é ao mesmo tempo o
supremo Revelador e o supremo Objeto revelado. Nele
a revelação atinge seu término (complendo) e sua perfei­
ção (perficit). O concilio aplica ao Cristo o que no pará­
grafo II se dissera sobre a estrutura geral da revelação7. O
Cristo exerceu sua função de revelador usando todas as possi­
bilidades que lhe eram oferecidas pela encarnação; revelou:
por sua presença e pela manifestação de si mesmo8,
por suas palavras e por suas obras, por seus sinais e por
seus milagres9 e, principalmente por sua morte e por sua res­
surreição, e, finalmente, enviando o Espírito da verdade. A
expressão “por sua presença e pela manifestação de
si mesmo”, correspondente ao termo grego epifania (2Tim
1,10), significa que a revelação pelo Cristo, Verbo encar­
nado, usou todos os recursos da expressão humana, o
facere e o docere (At 1,1), para nos manifestar o Filho
de Deus e, nele, manifestar-nos o Pai, pois quem vê o
Cristo vê o Pai (Jo 14,9).
Era no mesmo sentido que Inácio de Antioquia afir­
mava: “Não existe senão um Deus, manifestado por Jesus
Cristo seu Filho, que é sua palavra saída do silêncio” (Magn.
7,2). E santo Irineu: “Pelo Filho, feito visível e palpá-

7 A ordem da enumeração é conforme à da manifestação histórica


do Cristo: obras, morte, ressurreição, missão do Espírito.
8 O esquema precedente dizia: tota sua persona. O concilio preferiu
a expressão atual para evitar dificuldades cristológicas.
9 Sinais e milagres não são puros sinônimos: com efeito, se os
milagres são sinais, há também sinais que não são milagres, por exemplo:
os gestos de bondade e de misericórdia do Cristo para com os pecadores.
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 383
vel, mostrava-se o Pai” (Adv. Haer. IV, 6,6). A encar­
nação do Filho, concretamente entendida, é a revelação do
Filho, e, por ele, do Pai. Foi por suas ações, seus gestos,
suas atitudes, seu comportamento total, tanto quanto por
suas palavras, que o Cristo foi revelador. Também a mis­
são do Espírito faz parte da obra reveladora do Cristo e a
leva a termo. Isso porque o Espírito, sem nada inovar,
sem trazer novo objeto, introduz na verdade plena do
Cristo, levando assim tudo ao pleno cumprimento. É o
Espírito que dá aos apóstolos a memória viva, a inteligên­
cia dos gestos e das palavras do Cristo (Jo 14,26; 16,12-13).
Assim temos novamente a dimensão trinitária da revelação.
O concilio salienta a dupla função das mesmas reali­
dades da vida do Cristo. Palavras, ações, vida, paixão,
morte e ressurreição do Cristo são parte da própria eco­
nomia da revelação e também têm um valor apologético. Por­
que o Cristo coloca-se entre os homens como o Filho do Pai,
por isso há em sua mensagem, em suas obras, em seu com­
portamento de Verbo encarnado um resplendor que é real­
mente sua glória e o manifesta como o Filho do Pai10. A
sublimidade de sua doutrina, a sabedoria e a santidade de
sua vida, o poder manifestado pelos milagres e por sua
ressurreição, a suprema caridade manifestada em sua mor­
te, todo esse resplendor do ser e do agir do Cristo são
um testemunho, propriamente divino (Jo 5,36-37; 10,37-38),
que confirma a revelação e lhe demonstra a credibilidade.
Pois esse resplendor atesta que o Cristo está verdadeira­
mente entre nós como o Emanuel, o Deus-conosco, agindo
e conversando com os homens, para libertar-nos do peca­
do e da morte, ressuscitando-nos para a vida eterna.
5. A última frase do parágrafo é como que uma con­
clusão de tudo quanto se disse sobre o Cristo. Sendo este a
Palavra eterna de Deus, o Filho único do Pai enviado aos
homens para lhes revelar a vida íntima de Deus, a econo­
mia por ele inaugurada — a aliança nova e definitiva —
não podería ser considerada apenas como algo transi-

10 Os sinais da revelação não são exteriores ao Cristo. São o próprio


Cristo, no brilho de seu poder, de sua santidade, de sua sabedoria.
Nesse fulgor percebemos sua glória de Filho do Pai; do reflexo vamos
diretamente à fonte.
384 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

tório. Essa economia não passará, não será suplantada ja­


mais por uma mais perfeita. Nem tampouco devemos es­
perar uma nova revelação pública ( o que não exclui as revela­
ções particulares) antes da epifania gloriosa do Cristo, ou
sua manifestação gloriosa e não já na condição de escravo
(lTim 6,14; Tit 2,13). Tendo-nos dito sua Palavra única
e total (pelo menos enquanto a podemos compreender em
nossa situação terrestre), que mais podería Deus dizer?
Mais: tendo-nos dado seu Filho único, que mais nos po­
dería dar? Seria tão impossível imaginar uma nova revelação
no futuro como imaginar a encarnação de um novo Filho de
Deus. O Novo Testamento é realmente novum et defini­
tivum. Jesus Cristo é a última palavra da revelação: nele
tudo se cumpriu, a salvação e a sua manifestação.

5. A revelação e a aceitação da fé.


1. Deo revelanti praestanda est “oboeditio fidei”
(Rom 16,26; cfr. Rom 1,5; 2Cor 10,5-6), qua homo
se totum libere Deo committit, “plenum revelanti Deo
intellectus et voluntatis obsequium” praestando et vo­
luntarie revelationi ab Eo datae assentiendo.
2. Quae fides, ut praebeatur, opus est praeveniente
et adjuvante gratia Dei et internis Spiritus Sancti auxi­
liis, qui cor moveat et in Deum convertat, mentis
oculos aperiat, et det “omnibus suavitatem in con­
sentiendo et credendo veritati”.
3. Quo vero profundior usque evadat revelationis
intelligentia, idem Spiritus Sanctus fidem iugiter per
dona sua perficit.
1. Para manter-se fiel ao conceito de revelação aci­
ma exposto e para salientar o caráter teologal da fé, o con­
cilio declara inicialmente que o objeto da fé é o próprio
Deus enquanto Revelador. Devemos acreditar no Deus que
revela, no Deus que fala; devemos obedecer-lhe-, essa é uma
afirmação constante da própria revelação (Rom 16,26; 1,5;
2Cor 10,5-6; Ef 1,13; ICor 15,11; Mc 16,15-16) e dos
textos do magistério 11.
» D. 1637, 1789, 2145.
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 385

Segundo o concilio, essa fé estabelece entre Deus e


o homem uma relação viva, de pessoa a pessoa, numa ade­
são total que inclui o conhecimento e o amor. É todo o
homem que, livremente, se confia a Deus. Pela revelação
Deus vem até ao homem, condescende, patenteia-lhe os se­
gredos de sua vida íntima, à procura de uma reciprocidade
de amor. Pela fé o homem volta-se para Deus, dá-se-lhe
na amizade. O final da frase explica em que consiste essa
rendição do homem todo a Deus. O homem, pela fé, presta
a Deus total homenagem de sua inteligência e de sua von­
tade, assente livremente à revelação. O concilio evita assim
duas concepções incompletas da fé: uma fé-homenagem,
praticamente sem conteúdo, e uma fé-adesão despersonali-
zada a uma doutrina. A fé cristã é indissoluvelmente dom
e assenso.
2. A resposta do homem à revelação não é simples
resultante da atividade humana; é um dom de Deus. Não
basta que o Evangelho ressoe aos ouvidos; exige-se também
uma graça preveniente e adjuvante K, que mova para crer
(ad credendum) e possibilite crer (in credendo). A ação
da graça, é, logo em seguida, descrita com termos bíblicos
e mais personalistas: concretamente exigem-se auxílios do
Espírito Santo que movem o coração do homem, que o con­
vertem para Deus, que iluminam a inteligência e inclinam
as potências volitivas. É o Espírito Santo que “dá a todos
a suavidade da adesão e a crença na verdade” u. Muitas
vezes salienta a Escritura que, para crer, é necessária essa
ação da graça que abre o espírito para a luz que vem do
alto (Mt 16,17; 11,25; At 16,14; 2Cor 4,6) e atrai o ho­
mem em direção a Cristo (Jo 6,44). Essa ação interior é
o testemunho do Espírito ( 1 Jo 5,6 ) que age internamente
para que o homem reconheça a verdade do Cristo.
3. É também ao Espírito e aos seus dons que deve­
mos atribuir o aprofundamento da revelação. Pois o dom
da fé é semente que deve germinar e crescer indefinidamen­
te. Esse aprofundamento da fé, que conduz a uma super-
ciência de Deus e de seu mistério, é obra do Espírito. Di-
« D. 798, 1789.
13 D. 1791, 1800.

13 - Teologia da revelação
386 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

zendo que o Espírito, com seus dons, confere uma inteli­


gência mais profunda da revelação, o concilio novamente
evidencia a ação do Espírito sobre a inteligência do crente. No
movimento do homem em direção à fé, é o Espírito que
abre a inteligência (mentis oculos aperit) para esse mun­
do totalmente novo em que o introduz o Evangelho. Tam­
bém no interior da fé é o Espírito que desenvolve o po­
der de penetração da inteligência (dom da inteligência) e
dispõe o fiel a compreender pelos caminhos do amor (dom
da sabedoria), infundindo-lhe uma consonância afetiva que
lhe torna co-natural o Evangelho.

6. Ar verdades reveladas
1. Divina revelatione Deus Seipsum atque aeterna
voluntatis suae decreta circa hominum salutem mani­
festare ac communicare voluit, “ad participanda scili­
cet bona divina, quae humanae mentis intelligentiam
omnino superant”.
2. Confitetur Sacra Synodus “Deum, rerum omnium
principium et finem naturali humanae rationis lumine
e rebus creatis certo cognosci posse” (cfr. Rom 1,20);
eius vero revelationi tribuendum esse docet, “ut ea,
quae in rebus divinis humanae rationi per se impervia
non sunt, in praesenti quoque generis humani condi­
tione ab omnibus expedite, firma certitudine et nullo
admixto errore cognosci possint”.
1. Tendo falado da fé, agora o concilio fala das ver­
dades reveladas e que, portanto, se devem crer: primeiro
os mistérios, depois as verdades cuja revelação é moral­
mente necessária no estado atual da humanidade.
O texto retoma as afirmações do Vaticano I, fa­
zendo, porém, duas modificações importantes. A formula­
ção atual usa dois verbos: manifestare e communicare, em
vez do único revelare do Vaticano I. Isso para indicar que
a revelação é ao mesmo tempo manifestação e comunica­
ção de vida, pois a palavra de Deus não apenas notifica a sal­
vação, ela traz a salvação. A formulação precisa ainda que
os decretos eternos, que se mencionam, dizem respeito à
salvação do homem. São pois os decretos da encarnação
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 387

e da redenção que têm por objeto nossa elevação à ordem


sobrenatural. O Vaticano I, falando indistintamente dos
decretos divinos, permitia que se pensasse nos decretos
divinos referentes tanto à ordem natural quanto à sobrena­
tural. Portanto, Deus não se revela nem revela alguma
coisa para satisfazer a curiosidade do homem, mas para
salvá-lo, para tirá-lo da morte do pecado e para levá-lo
a participar dos bens"divinos que superam tudo que o
homem pode compreender.
2. O concilio, tendo falado do objeto privilegiado da
revelação, ou seja, dos mistérios, continua falando da­
quelas verdades, referentes a Deus, acessíveis à razão hu­
mana, principalmente do conhecimento de Deus, princípio
e fim de tudo. O concilio, com um tom solene justificado
pelo contexto histórico do ateísmo contemporâneo, salien­
ta que Deus pode ser conhecido com a luz da razão huma­
na que reflete sobre o mundo, pois que a criação pro­
clama irrefragavelmente seu autor. Contudo, é pela reve­
lação que essas verdades podem “ser conhecidas por todos,
sem dificuldades, com plena certeza, sem mescla de erro” 14.
Nesse parágrafo, pois, o concilio considera o objeto
da revelação em si mesmo (Deus e seus decretos), na sua
proporcionalidade para com a inteligência humana (misté­
rios que superam o alcance de nossa razão, e verdades aces­
síveis à razão natural) e na sua finalidade (salvação do ho­
mem, participação nos bens divinos). O primeiro capítulo,
tendo começado com uma declaração de fidelidade à doutri­
na do Vaticano I, termina retomando-lhe a doutrina e os
termos.

CAPÍTULO II : A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA

7. Os apóstolos e seus sucessores, arautos do Evangelho

1. Quae Deus ad salutem cunctarum gentium reve­


laverat, eadem benignissime disposuit ut in aevum in­
tegra permanerent omnibusque generationibus trans­
mitterentur.

14 D. 1785, 1786..
388 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

2. Ideo Christus Dominus, in quo summi Dei tota


revelatio consummatur (cfr. 2Cor l,20;3,16-4,6), man­
datum dedit Apostolis ut Evangelium, quod promis­
sum ante 'per prophetas Ipse adimplevit et proprio
ore promulgavit, tamquam fontem omnis et salutaris
veritatis et morum disciplinae omnibus praedicarent,
eis dona divina communicantes.
3. Quod quidem fideliter factum est, tum ab Apos­
tolis, qui in praedicatione orali, exemplis et institu­
tionibus ea tradiderunt quae sive ex ore, conversa­
tione et operibus Christi acceperant, sive a Spiritu
Sancto suggerente didicerant, tum ab illis Apostolis vi­
risque apostolicis qui, sub inspiratione eiusdem Spiritus
Sancti, nuntium salutis scriptis mandaverunt.
4. Ut autem Evangelium integrum et vivum iugiter
in Ecclesia servaretur, Apostoli successores reliquerunt
Episcopos, ipsis “suum ipsorum locum magisterii tra­
dentes”.
5. Haec igitur Sacra Traditio et Sacra utriusque Tes­
tamenti Scriptura veluti speculum sunt in quo Eccle­
sia in terris peregrinans contemplatur Deum, a quo
omnia accipit, usquedum ad Eum videndum facie ad
faciem sicuti est perducatur (cfr. IJo 3,2).

1. Tendo falado da revelação em si mesma, agora ο


concilio examina o problema de sua transmissão. A pri­
meira frase do parágrafo VII exprime o objeto de todo o
capítulo II: a vontade de Deus é que a revelação por ele
feita permaneça intata através dos séculos e seja transmitida
a todas as gerações. O capítulo tratará dessa transmissão
sob a forma de Tradição e de Escritura, de sua mútua re­
lação e de sua relação comum com a Igreja e o magistério.
2. Essa vontade divina foi proclamada pelo Cristo,
na ordem expressa que deu aos apóstolos de pregarem a
todos os homens o Evangelho prometido pelos profetas,
cumprido e promulgado por ele, para ser fonte de toda a
verdade salvifica e de toda norma para os costumes. Aqui
o Vaticano II retoma o texto do Tridentino, mas com dois
importantes acréscimos. Reafirma o concilio que, no Cristo,
foi completada toda a revelação; que o Cristo realizou o
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 389
Evangelho outrora prometido; que, portanto, a ordem dada
aos apóstolos de pregarem o Evangelho engloba a totali­
dade da revelação, do Antigo e do Novo Testamento. Essa
afirmação é sublinhada no mesmo parágrafo VII com a ex­
pressão: utriusque Testamenti. Nota ainda o concilio que
os apóstolos comunicam não apenas o Evangelho, mas to­
dos os bens espirituais que receberam e que se prendem
ao Evangelho, (carismas, sacramentos etc.), pois que a reve­
lação é ao mesmo tempo manifestação e comunicação da
salvação.
3. O mandamento dado por Cristo aos apóstolos de
pregarem o Evangelho foi fielmente cumprido. Primeiro,
pela pregação ou testemunho apostólico, entendido, porém,
de modo concreto, incluindo não apenas palavras, mas também
exemplos ou modos de agir, práticas, instituições, ritos,
numa palavra: tudo que os apóstolos receberam do Cristo,
por suas palavras e por suas obras, como também tudo que
eles aprenderam do Espírito Santo por suas sugestões re­
ferentes às palavras e aos gestos do Cristo. O testemunho
apostólico, pois, é mais vasto que a pregação oral propria­
mente dita: inclui também tudo que se refere ao culto e
aos sacramentos (principalmente o batismo e a eucaristia)
e tudo que se refere ao comportamento moral e à direção
moral das comunidades cristãs. Os apóstolos dão teste­
munho do mistério do Cristo comunicando-o e prolongan­
do-o entre os homens, segundo o mandato do Senhor.
Em segundo lugar, o mandamento do Cristo foi fiel­
mente executado quando se escreveu a Boa-nova da salva­
ção, sob a inspiração do Espírito; seja pelos apóstolos, seja
por seus discípulos. A revelação foi, pois, transmitida de
dois modos: pela Tradição e pela Escritura. O Vaticano II
fala primeiro da Tradição e depois da Escritura (ao con­
trário da ordem seguida pelo Tridentino), por fidelidade à
realidade das coisas, uma vez que a Tradição precedeu a
Escritura.
4. Tendo falado da transmissão da revelação pelo
Cristo e pelo Espírito Santo aos apóstolos ( transmissão ver­
tical), e pelos apóstolos à Igreja (transmissão horizontal),
diz o texto que essa transmissão horizontal continua na Igreja
mediante os sucessores dos apóstolos. São eles os bispos, aos
390 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

quais os apóstolo transmitiram sua missão de ensinar, para


que o Evangelho se conserve intato e vivo através dos sé­
culos. É função dos bispos transmitir fielmente tudo quanto
receberam dos apóstolos, seja pela pregação (entendida con­
cretamente, como ficou acima exposto), seja pela Escritura.
5. A última frase apresenta as conclusões dos enun­
ciados anteriores. Sendo que a revelação toda nos foi dada
pelo Cristo e por seu Espírito, sendo essa revelação trans­
mitida pela Tradição e pela Escritura, conclui-se que a Tra­
dição e a Escritura são como que o espelho no qual a Igre­
ja, caminhando em direção à pátria, progride na econo­
mia da visão, esperando a plena iluminação do face a face
com o Pai. É a fé prelibação da visão escatológica 15. Com
essa menção da Igreja prepara-se o último parágrafo do
capítulo em que será examinada a comum relação da Tra­
dição e da Escritura com a Igreja e o magistério.

8. A sagrada Tradição

1. Itaque praedicatio apostólica, quae in inspiratis


libris speciali modo exprimitur, continua successione
usque ad consummationem temporum conservari de­
bebat.
2. Unde Apostoli, tradentes quod et ipsi acceperunt, fi­
deles monent ut teneant traditiones quas sive per
sermonem sive per epistulam didicerint (cfr. 2Tes
2,15), utque pro semel sibi tradita fide decertent
(cfr. Jd 3).
3. Quod vero ab Apostolis traditum est, ea omnia
complectitur quae ad Populi Dei vitam sancte ducen­
dam fidemque augendam conferunt, sicque Ecclesia,
in sua doctrina, vita et cultu, perpetuat cunctisque ge­
nerationibus transmittit omne quod ipsa est, omne
quod credit.
4. Haec quae est ab Apostolis Traditio sub assisten­
tia Spiritus Sancti in Ecclesia proficit: crescit enim
tam rerum quam verborum traditorum perceptio, tum
ex contemplatione et studio credentium, qui ea con-

15 S. Thomas, III Sent., d. 23, q. 2, a. 1, ad 4.


O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 391
ferunt in corde suo (cfr. Lc 2,19 et 51), tum ex
intima spiritualium rerum quam experiuntur intelli-
gentia,*tum ex praeconio eorum qui cum episcopatus
successione charisma veritatis certum acceperunt.
5. Ecclesia scilicet, volventibus saeculis, ad plenitu­
dinem divinae veritatis jugiter tendit, donec in ipsa
consumentur verba Dei.
6. Sanctorum Patrum dicta huius Traditionis vivifi­
cam testificantur praesentiam, cujus divitiae in praxim
vitamque credentis et orantis Ecclesiae transfunduntur.
7. Per eamdem Traditionem integer Sacrorum Li­
brorum Canon Ecclesiae innotescit, ipsaeque Sacrae
Litterae in ea penitius intelleguntur et indesinenter
actuosae redduntur; sicque Deus, qui olim locutus
est, sine intermisione cum dilecti Filii sui Sponsa collo­
quitur, et Spiritus Sanctus, per quem viva vox Evan-
gelii in Ecclesia, et per ipsam in mundo resonat, cre­
dentes in omnem veritatem inducit, verbumque Christi
in eis abundanter inhabitare facit (cfr. Col 3,16).

Pela primeira vez um documento do magistério ex­


traordinário propõe um texto tão elaborado sobre a Tra­
dição: natureza, objeto, importância.
1. A pregação apostólica, que se exprime principal­
mente nos livros inspirados, deve perpetuar-se até o final
dos tempos.
2. É por isso que os apóstolos, transmitindo o que
eles mesmos tinham recebido, exortam os fiéis a guardar
fielmente as tradições recebidas de viva voz ou por escrito
(2Tes 2,15) e a combater pela fé transmitida de uma vez
por todas (Jd 3).
3. Tendo falado da Tradição no sentido ativo de trans­
missão da revelação, o concilio fala agora da Tradição no sen­
tido passivo ( o que foi transmitido ). Indica o objeto da Tra­
dição e sua extensão. O que foi transmitido pelos apósto­
los engloba tudo que serve para ordenar santamente a vida
do povo de Deus e pára aumentar sua fé. Com outras pa­
lavras: tudo quanto se refere à fé e aos costumes do povo
cristão. Essa afirmação coincide com a do concilio Tri-
dentino que declara que o Evangelho, isto é, a revela-
392 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

ção, é fonte de toda a verdade salvifica e de toda a disci­


plina dos costumes. A Igreja, em sua doutrina, por sua
vida e por seu culto, perpetua e transmite assim a todas as
gerações tudo que ela é e acredita. Portanto, a Tradição
não é apenas verbal, mas real. Realiza-se, pois, não apenas
pelo ensino, mas também pelas instituições, pelo culto, pelos
ritos etc. Pela Tradição perpetua-se não apenas a fé da
Igreja, mas toda a sua vida.
4. O concilio passa a considerar a Tradição em seu
aspecto dinâmico. A Tradição divina, que vem dos
apóstolos, vive na Igreja, que dela vive sem cessar. Por­
tanto, num certo sentido, podemos dizer que a Tradição pro­
gride continuamente na Igreja, sob a ação e assistência do
Espírito. Note-se, porém, que não é propriamente a Tra­
dição apostólica que cresce, mas a percepção sempre mais
profunda que adquirimos das coisas e das palavras trans­
mitidas. São fatores desse progresso a contemplação e o
estudo dos fiéis (Lc 2,19.51), a experiência vital das rea­
lidades espirituais, da qual nasce uma compreensão sabo­
reada 16, e, finalmente, a pregação daqueles que juntamente
com o episcopado receberam o carisma do ensino.
5. Assim a Igreja, ao longo dos séculos, sob o im­
pulso vivo que recebe da Tradição, tende sempre à pleni­
tude da verdade divina, até que nela se cumpra a Palavra
de Deus. Ao mesmo tempo ativa e passiva, a Igreja leva a
Tradição e é, por sua vez, levada e vivificada pela Tradição.
6. Como conseqüência, nenhuma verdade transmiti­
da pela Tradição poderá ser plenamente conhecida, em toda
a sua riqueza, através de um único documento ou de uma
testemunha só. Será conhecida plenamente mediante o con­
junto das testemunhas e das formas de expressão em que
vive: escritos dos santos Padres, liturgia, praxe da Igreja,
reflexão teológica. Principalmente as obras dos santos Pa­
dres é um testemunho dessa Tradição vivificante, cujas ri­
quezas se transfundem na vida e na prática da Igreja crente
e orante. Os santos Padres são as testemunhas da Tradição.
O seu valor, mais que a sua proximidade dos tempos apos-

16 Por exemplo, a compreensão que nasce da prática da vida sacra­


mental.
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 393
tólicos, prende-se ao fato de terem sistematizado em seus
escritos a revelação recebida, crida e vivida na Igreja. Tam­
bém a Liturgia é uma testemunha privilegiada da Tradição,
cujas riquezas ela recolheu. Dificilmente encontraríamos
uma verdade de fé que de algum modo não se expresse
na Liturgia.
7. A última frase do parágrafo salienta a importância
da Tradição em face da Escritura. Importância decorrente
dos seguintes fatos: a) É pela Tradição que nos é conhecido
integralmente o cânon dos livros inspirados. Quanto a isso
o concilio reconhece que o conteúdo objetivo da radição
é mais amplo que o da Escritura, b) É também pela
Tradição que a Escritura é compreendida mais profunda­
mente. c) Finalmente, é pela Tradição que a Escritura é
sempre atual e atualizada. Pela Tradição, conclui o con­
cilio numa perspectiva trinitária, Deus continua com a Igre­
ja, Esposa de seu Filho, um permanente diálogo, enquanto
que o Espírito, por quem a voz do Evangelho ressoa na Igreja
e, por ela, no mundo todo, conduz os crentes para plenitude
da verdade e faz que a Palavra do Cristo neles permaneça
abundante ( Col 3,16).

9. Relações mútuas entre a Tradição e a Escritura

1. Sacra Traditio ergo et Sacra Scriptura arcte inter


se connectuntur atque communicant.
2. Nam ambae, ex eadem divina scaturigine proma-
nantes, in unum quodammodo coalescunt et in eumdem
finem tendunt.
3. Etenim Sacra Scriptura est locutio Dei quatenus
divino afflante Spiritu scripto consignatur; Sacra autem
Traditio verbum Dei, a Christo Domino et a Spiritu
Sancto Apostolis concreditum, successoribus eorum in­
tegre transmittit, ut illud, praelucente Spiritu verita­
tis, praeconio suo fideliter servent, exponant atque
diffundant; quo fit ut Ecclesia certitudinem suam de
omnibus revelatis non per solam Scripturam hauriat.
4. Quapropter utraque pari pietatis affectu ac re­
verentia suscipienda et veneranda est.
394 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

Propositadamente o concilio não tratou do problema,


teologicamente ainda não resolvido, do conteúdo material
da Tradição e da Escritura: Temos na Tradição um conteúdo
objetivo mais amplo que o da Escritura? Poderiamos
dizer que nada se encontra na Tradição, que de algum mo­
do não se encontre também na Escritura? 17. A não ser
no caso do cânon dos livros inspirados, o concilio julgou
inoportuno fazer qualquer determinação quanto ao objeto
quantitativo da Tradição e da Escritura. Sendo a questão
de primordial importância para o diálogo ecumênico atual,
com razão o concilio insistiu mais sobre a mútua relação
e mútuo serviço entre a Tradição e a Escritura.
1. Como uma conclusão dos parágrafos anteriores, a
primeira frase deste parágrafo declara que a Tradição e a
Escritura estão estreitamente unidas entre si e em mútua
comunicação. Seria pois um erro considerá-las como dois ca­
minhos paralelos e independentes, afirmar a existência de
uma negando a da outra, ou ignorar suas mútuas relações.
A Tradição e a Escritura são inseparáveis, formam um todo
orgânico cujos elementos' são interdependentes.
2. O concilio diz precisamente como a Tradição e a
Escritura estão assim estreitamente ligadas: a) ambas jor­
ram da mesma torrente de águas vivas, isto é, da revela­
ção; b) ambas, em certo sentido, formam um todo, pois que
ambas exprimem o Mistério único, ainda que de forma
diferente; c) ambas tendem para um mesmo fim, a salva­
ção dos homens, como se explica no parágrafo seguinte.
3. A última frase apresenta a razão última do nexo
entre Tradição e Escritura: ambas são igualmente palavra
de Deus. De fato, a Escritura é palavra de Deus enquanto
escrita sob a inspiração do Espírito Santo. Mas a Tradi­
ção também é palavra de Deus, pelo Cristo e pelo Espírito
confiada aos apóstolos, transmitida intata a seus sucessores,
para que estes, sob a luz do Espírito, pela pregação fiel­
mente conservem, exponham e propaguem a palavra recebi­
da dos apóstolos. Conseqüentemente, a certeza da Igreja

17 Sobre esse problema, veja a ótima exposição de J. Dupont,


“Écriture et Tradition”, Nouvelle Revue théologique, 85 (1963): 337-356,
449-468.
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM ” 395

sobre o conjunto das coisas reveladas por Deus, que,


portanto, propõe ou pode propor como tais à fé de seus
filhos, não procede somente da Escritura. Pois afinal a
Igreja possui sempre totalmente {integre transmittitur) a
palavra viva recebida no começo. Portanto, se a Igreja
hesita pronunciar-se sobre determinada questão, porque
a Escritura não lhe parece suficientemente clara e ex­
plícita, ela pode encontrar na Tradição, conservada por
ela, um meio para se esclarecer e se firmar. Assim a Escri­
tura e a Tradição completam-se mutuamente, não tanto pela
contribuição quantitativa de cada uma, quanto por um
mútuo esclarecimento. Precisando esse ponto como simples
conseqüência do que dissera antes, o concilio não está rein-
troduzindo sub-repticiamente a questão das duas fontes.
Simplesmente afirma um fato universálmente reconhecido
pelos teólogos e uma praxe constante da Igreja.
4. A última frase termina com as palavras do Tri-
dentino. Uma vez que a Tradição e a Escritura transmi­
tem e conservam a revelação sob ambas as formas por ela
assumidas, uma vez que ambas tendem ao mesmo fim, a
salvação da humanidade, ambas devem ser recebidas e re­
verenciadas com o mesmo respeito e piedade.

10. Relação comum da Tradição e da Escritura


para com a Igreja e Magistério

1. Sacra Traditio et Sacra Scriptura unum verbi Dei


sacrum depositum constituunt Ecclesiae commissum,
cui inhaerens tota plebs sancta pastoribus suis adunata
in doctrina Apostolorum et communione, fractione pa­
nis et orationibus iugiter perseverat (cfr. At 2,42), ita
ut in tradita fide tenenda, exercenda profitendaqué
singularis fiat Antistitum et fidelium conspiratio.
2. Munus autem authentice interpretandi verbum Dei
scriptum vel traditum soli vivo Ecclesiae Magisterio
concreditum est cuius auctoritas in nomine Jesu Christi
exercetur.
3. Quod quidem Magisterium non supra verbum Dei
est, sed eidem ministrat, docens nonnisi quod tradi­
tum est, quatenus illud, ex divino mandato et Spi-
396 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

ritu Sancto assistente, pie audit, sancte custodit et


fideliter exponit, ac ea omnia ex hoc uno fidei de­
posito haurit quae tamquam divinitus revelata cre­
denda proponit.
4. Patet igitur Sacram Traditionem, Sacram Scrip­
turam et Ecclesiae Magisterium, iuxta sapientissimum
Dei consilium, ita inter se connecti et consociari, ut
unum sine aliis non consistat, omniaque simul, singula
suo modo, sub actione unius Spiritus Sancti, ad ani­
marum salutem efficaciter conferant.

O parágrafo compõe-se de duas alíneas. A primeira


fala da relação entre a Tradição e a Escritura e a Igreja
toda·, fiéis e hierarquia. Trata a segunda da relação da Tra­
dição e da Escritura para com o Magistério da Igreja; pois
era preciso situar corretamente a Tradição e a Escritura
face ao Magistério, já que muitas vezes os protestantes
têm a impressão de que nós subordinamos a Escritura ao
Magistério e confundimos este último com a Tradição.
1. O único depósito da revelação, formado pela Tra­
dição e pela Escritura, foi confiado à Igreja toda, evidente­
mente não para que toda a Igreja o interprete oficialmen­
te — função que compete só ao magistério —, mas para
que toda a Igreja dele viva. Todo o povo cristão, unido
a seus pastores e numa adesão fiel ao depósito, único e sa­
grado, persevera no ensinamento dos apóstolos, numa adesão
de espírito e coração, na fração do pão e na prece. Isso
para que haja união dos fiéis e dos seus chefes espirituais
na adesão à fé transmitida, no seu exercício e na sua profissão.
Assim vivendo da fé transmitida pelos apóstolos, a Igreja de
cada geração imita a Igreja apostólica na sua adesão à re­
velação. A afirmação desta alínea, mesmo sem constituir
uma novidade doutrinai, representa de fato um progresso
face aos documentos anteriores, principalmente Vatica­
no I e encíclica Humani Generis, que se limitavam a con­
siderar as relações da Escritura e da radição apenas para
com o magistério da Igreja.
2. A segunda alínea descreve a função que compete
exclusivamente ao magistério da Igreja ( ordinário ou ex­
traordinário ) : interpretar autenticamente o depósito da fé.
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 397

O concilio retoma a doutrina da Humani Generis expli­


cando porque essa função é privativa do magistério: somente
ao magistério da Igreja, que exerce a autoridade em nome
do Cristo, é que foi confiada a função de interpretar com
autoridade a palavra de Deus, escrita ou transmitida.
3. A frase seguinte explicita mais a posição do ma­
gistério ante a revelação. Conforme se considere, pode ser
uma posição de dependência ou de transcendência. De mo­
do geral, porém, devemos dizer que o magistério não está
acima da palavra de Deus, mas a seu serviço. Nos ambien­
tes acatólicos pode, às vezes, existir a impressão de que a
Igreja é um absoluto que sucede à Escritura e a substitui.
O próprio magistério define-se mais modestamente como o
servo da palavra de Deus, nada ensinando senão o que lhe
foi transmitido. A Igreja não é domina, mas ancilla da pa­
lavra de Deus. Preciosa afirmação no diálogo ecumênico
atual: é pela primeira vez que um texto conciliar assim
se exprime.
A seguir é especificada a função do Magistério ante a
revelação. Por mandato expresso do Cristo e sob a assistên­
cia do Espírito, o Magistério ouve piedosamente, guarda
santamente, expõe fielmente, haurindo no único depósito
da fé tudo quanto propõe para ser crido como divinamente
revelado.
a) O Magistério ouve piedosamente a voz viva do
Evangelho que ressoa continuamente a seus ouvidos, pois
o Magistério, enquanto tal, também vive na fé, sendo o pri­
meiro a prestar ouvidos à palavra de Deus. Como a Virgem
piedosamente recolhia as palavras dos lábios de Cristo, as­
sim também o Magistério está atento à palavra de Deus.
b ) O Magistério guarda santamente a palavra de
Deus. Essa expressão, tomada ao Vaticano I w, é tradicio­
nal e encontra-se freqüentemente nos documentos do Ma­
gistério, com forma idêntica ou equivalente Guardar
santamente o depósito da palavra de Deus significa nada
perder, nada subtrair, nada acrescentar. Assim como nada

18 D. 2314.
19 D. 1800.
20 D. 1781, 1793, 1800, 1836, 2145, 2315.

k
398 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

se pode acrescentar à Escritura, assim também nada se


pode tampouco acrescentar à Tradição. O esforço para
perscrutar as Escrituras não pretende enriquecer o tesouro
das Escrituras. Assim também a Tradição viva da Igre­
ja, que se exprime sob formas diversas através dos tempos,
não pretende enriquecer o tesouro da Tradição recebido
dos apóstolos. O que se aperfeiçoa não é a revelação, mas
a compreensão que dela temos, as explicitações sucessivas
com as quais procuramos manifestar as suas inesgotáveis
riquezas para iluminar as sucessivas gerações; aperfeiçoam-
-se, finalmente, as formulações que multiplicamos para tra­
duzir em termos humanos todo esse esforço de assimilação
da palavra de Deus. Da função de custos ou guardião da
revelação segue-se a função de proteger a palavra de Deus
contra os desvios, deslizes, heresias.
c) O Magistério deve também expor fielmente a pa­
lavra de Deus21, pois a função de Igreja não é apenas guar­
dar e defender a palavra: deve propô-la aos homens de t
todos os tempos. Isto significa declarar o seu sentido au­
têntico, esclarecendo e explicando o que fôr obscuro. A
exposição fiel da palavra é a meta total da missão de ensi­
nar que a Igreja recebeu e que exerce por seu Magistério
ordinário ou extraordinário. ,
d) Finalmente, diz o concilio, o Magistério haure *
dessa fonte viva da palavra de Deus tudo quanto propõe à
fé como divinamente revelado22. Nada propõe que já não
esteja contido no único depósito da fé. O desenvolvimento >
dogmático, que é um esforço pára propor e formular, de modo
fiel, mais preciso e mais rico, a palavra de Deus, realiza-se
sempre no interior do objeto da fé.
4. A última frase conclui o que se disse sobre a Es­
critura, a Tradição e o Magistério declarando que, no sa-
pientíssimo desígnio de Deus, essas três realidades são
inseparáveis. De tal modo interligadas e associadas que uma
não pode ter consistência sem as outras. As três em con­
junto, sob a ação de um só e mesmo Espírito, cada qual
a seu modo, contribuem eficazmente para a salvação das

21 D. 1800, 1836, 2307, 2313, 2314.


22 D. 2314.
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 399
almas. Do mesmo modo que Tradição e Escritura são in­
separáveis, assim também Tradição e Escritura são inse­
paráveis do Magistério, unidas em mútua interdependência.

OBSERVAÇÕES GERAIS

A Constituição do Vaticano II sobre a revelação teve


uma tramitação bastante movimentada. Tendo sido uma das
primeiras a ser proposta para a discussão dos conciliares,
foi uma das últimas a ser votada. Antes de aprovada en­
frentou muitas resistências, passou por muitas tempesta­
des, escapou ao naufrágio. O texto definitivo votado pelos
padres conciliares já era a quinta redação oficial. As re­
sistências encontradas não nos devem surpreender muito.
No plano doutrinai, a Constituição De divina Revelatione,
como a Constituição De Ecclesia, é afinal o documento mais
importante do concilio; isso pela importância dos proble­
mas tratados e pelas conseqüências que terá no diálogo
ecumênico.
Pela primeira vez um concilio estudou de forma tão
consciente e metódica as categorias fundamentais e primei­
ras do cristianismo: Revelação, Tradição, Inspiração. Essas
noções, onipresentes no cristianismo e implicadas em qual­
quer processo teológico, são também as mais difíceis de
definir, justamente por serem noções primeiras. Elas são
para a teologia o mesmo que as noções de conhecimento,
de ser e de agir são para a filosofia. Vivemos dessas reali­
dades, são porém as últimas a ocupar nossa reflexão críti­
ca. Acrescente-se que, em grande parte, as dificuldades
do concilio provêm do fato de a reflexão teológica so­
bre esses pontos, fundamentais nem sempre ter atingido
sua plena maturidade. Como se podería propor um con­
junto doutrinai coerente sobre pontos que, sob certos as­
pectos, ainda são objeto de pesquisa teológica? A pesquisa
ainda incompleta e também o fato de, em alguns ambientes
católicos, serem ignorados os resultados já obtidos, explicam
parcialmente as hesitações do concilio, a redação trabalho­
sa, certas limitações do texto.
Do ponto de vista ecumênico, seria difícil exagerar a
400 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

importância do texto. Sob a influência do Espírito e sem


nada sacrificar de sua fé, a Igreja soube encontrar uma
linguagem comum, acessível a todos os cristãos. Descre­
vendo equilibradamente os diversos aspectos da revelação e
da tradição, apresentando a fé como uma adesão total da
pessoa a Deus que revela, propondo a Tradição e a Escri­
tura como duas plenitudes intimamente interdependentes e
ligadas à vida da Igreja, estabelecendo mais claramente as
relações do magistério para com a Escritura e a Tradição,
descrevendo de forma matizada a inspiração e a verdade da
Escritura, consagrando a importância do gênero literário
para a compreensão dos textos sacros, salientando a unida­
de profunda entre ambos os Testamentos e a sua mútua
inclusão, restituindo à Escritura o lugar que lhe compete no
ensino, na vida litúrgica da Igreja e na piedade dos fiéis,
o concilio afastou muitos equívocos e manifestou no texto
um acordo que muitas vezes já existia na realidade.
No que se fere mais precisamente à revelação o texto
apresenta um conjunto admirável. Queremos aqui chamar
a atenção para alguns de seus méritos.
1. A constituição oferece bases sólidas para um tra­
tado dogmático sobre a revelação. Examinam-se todos os
pontos fundamentais: a natureza, o objeto, a finalidade, a
economia, o progresso e a pedagogia da revelação; a posição
central do Cristo como Deus que revela e como Deus re­
velado; a resposta da fé, a transmissão da revelação, as for­
mas dessa transmissão; as relações da Escritura e da Tradi­
ção ante a Igreja e o Magistério. O texto não descuida
nenhum dos aspectos dessa realidade complexa: a revela­
ção é uma ação divina, uma intervenção de Deus na história,
é uma história; é uma comunicação interpessoal na linha da
palavra, um encontro com o Deus vivo, encontro que deter­
mina uma homenagem total da pessoa e um assentimento do
espírito à mensagem da salvação. Evidencia também a con­
descendência de Deus que, para se revelar, escolhe os ca­
minhos da história e da carne: característica distintiva da
revelação cristã.
2. Apesar de deficiências em alguns detalhes, a
construção é sólida, o plano é claro e bem estruturado. Os
títulos dos parágrafos vão escandindo a marcha dinâmica
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 401
da exposição. No prooemium encontramos expressos: a fi­
nalidade da constituição (I), a natureza, o objeto e a eco­
nomia da revelação ( II ) ; a revelação na sua preparação ( III ) ;
a revelação no seu auge e plenitude (IV); a resposta à
revelação (V); as verdades reveladas para a fé (VI); os
apóstolos e seus sucessores como arautos do Evangelho
(VII); a Tradição em si mesma (VIII); a mútua rela­
ção entre Tradição e Escritura (IX); relação comum da
Escritura e da Tradição ante a Igreja e o Magistério (X).
3. O texto procura fazer uma exposição serena da
doutrina da Igreja. Não quer anatematizar nem estabele­
cer polêmica. A intenção do concilio foi antes estudar esses
pontos pacificamente possuídos, deixando aos teólogos liber­
dade para discutir problemas ainda não resolvidos. Exem­
plo típico dessa atitude é a questão do conteúdo material
objetivo da Escritura e da Tradição.
4. O tom da constituição é profundamente religioso.
Continuamente se percebe a presença contemplativa e apos­
tólica, da Esposa do Cristo, sempre a meditar a apalavra
do Esposo, partindo para seus filhos o pão da palavra ao
mesmo tempo que o pão eucarístico. Esse caráter religioso
deve-se, em grande parte, ao uso abundante dos textos da
Escritura, tão bem empregados que parecem ser o meio
natural para exprimir o pensamento da Igreja. Esses textos
formam como que a trama da constituição. Seu ca­
ráter bíblico aparece principalmente no primeiro capítulo
onde encontramos trinta e duas referências à escritura (no
corpo do capítulo e nas notas). Essas referências estão assim
repartidas: quatro referências ao Antigo Testamento; uma,
à tradição sinótica; catorze, a são Paulo; onze, a são João;
uma, a são Pedro, uma, à Epístola aos hebreus23. Por si
mesma essa seqüência de textos já é um belo conjunto dou­
trinai. Praticamente a maioria dos principais textos escritu-
rísticos sobre à revelação foi utilizada.
5. O texto foi concebido e redigido numa perspectiva

23 As referências do primeiro capítulo à Escritura são as seguintes:


Gên 3,15;12,2-3; êx 33,11; Bar 3,38; Mt 11,27; Rom 1,5;1,19-20; 2,6-7;
16,26; 2Cor 3,16;4,6; 10,5-6; Ef 1,9; 1,3-14;2,18; Col 1,15; iTim 1,17;
6,14; Tit 2,13; Hebr 1,1-2; Jo 1,3;1,14;1,17;1,1-18;3,34;5,36;14,6;14,9;
15,14-15; 17,1-3; IJo 1,2-3; 2Pdr 1,4.
402 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

trinitària. Esse aspecto, que já salientamos ao longo de


nossa análise, manifesta-se principalmente no proœmium,
na primeira frase do parágrafo II (sobre a natureza da re­
velação), na quarta frase do parágrafo IV (sobre a eco­
nomia da revelação pelo Cristo), no parágrafo VII (sobre
a Tradição), no parágrafo IX (sobre as mútuas relações
entre Escritura e Tradição).
6. Essa referência habitual às pessoas divinas na des­
crição da revelação contribui para dar ao conjunto do texto
a ressonância personalista desejada pelos padres conciliares.
Os termos: palavra, conversação, diálogo, sociedade, comu­
nicação, participação, amizade, amor, que vão marcando o
avanço do texto, indicam claramente essa intenção. Apre-
senta-se a revelação como uma iniciativa do Deus vivo, como
uma manifestação de seu mistério pessoal. Deus estabelece
com o homem contato de pessoa para pessoa: o Eu divino in­
terpela o homem, fala-lhe, dialoga com ele, manifesta-lhe
os mistérios de sua vida íntima para que possa ter uma co­
municação de pensamento e de amor com as pessoas divinas.
Pela fé o homem dá uma resposta a essa iniciativa de amor
e entrega-se totalmente. A revelação assim descrita, é ao
mesmo tempo personalizada e personalizante.
7. O cristocentrismo foi outra característica procu­
rada pelos padres conciliares. É o Cristo que constitui a
unidade da economia e do objeto da revelação. Esse objeto
é o próprio Deus que intervém na história do homem e se
lhe manifesta, em Jesus Cristo e por Jesus Cristo. Concre­
tamente, o Mistério é o Cristo, autor e consumador de
nossa fé, Revelador e Mistério revelado, assim como é tam­
bém Sinal da revelação. Esse cristocentrismo, já anuncia­
do no prooemium, surge novamente no parágrafo II (ho­
mines per Christum; veritas in Christo illucescit), no pa­
rágrafo IV (locutus est in Filio; Jesus Christus Verbum
caro factum), no parágrafo VII (Christus in quo tota re­
velatio consummatur). Quanto a isso será útil comparar
duas frases semelhantes do Vaticano I e do Vaticano II
sobre o próprio fato da revelação. Nota-se imediata­
mente o teocentrismo do Vaticano I e o cristocentrismo
do Vaticano II:
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 403

Vaticano I Vaticano II
Placuisse eius (Dei) sapien­ Placuit Deo in sua bonitati
tiae et bonitati, alia eaque et sapientia seipsum revela­
supernatural! via, seipsum ac re et notum facere sacra­
aeterna voluntatis suae de­ mentum voluntatis suae, quo
creta humano generi reve­ homines, per Christum, Ver­
lare. bum carnem factum, in Spi­
ritu Sancto acessum habent
ad Patrem et divinae natu­
rae consortes efficiuntur.
8. Uma última característica da constituição é o lugar
dado à Igreja. É na Igreja que o Evangelho se conserva in-
tato e vivo (VII); é a Igreja que perpetua e transmite o
tesouro recebido dos apóstolos, por seu ensino, por
sua vida e por seu culto (VIII); é a Igreja que,
pela contemplação, pelo estudo e pela vida, tende
para a plenitude de verdade da palavra de Deus
(VIII); é com a Igreja, sua Esposa, que Deus mantém
contínuo contato ao longo dos séculos, e é por ela que a
palavra de Deus ressoa no universo (VIII); é a Igreja que,
por seu Magistério, interpreta a palavra de Deus, é sua
serva, guarda-a santamente, expõe fielmente, propõe in­
falivelmente.
A revelação descrita pela constituição é verdadeira­
mente a revelação cristã, e não uma revelação qualquer,
de tipo filosófico ou gnóstico.
O Cristo é seu Autor, seu Objeto, seu Centro, seu Ápice,
sua Plenitude, seu Sinal. O Cristo é o fecho da abóbada dessa
prodigiosa catedral cujos arcos são os dois Testamentos. É
todo o Antigo Testamento que o anuncia, prepara e deseja;
todo o Novo Testamento é sua vinda, sua proclamação, refe-
re-se todo a ele. Ao longo dos séculos, a Escritura e a Tradi­
ção exprimem esse único Objeto, esse único Mistério que é
a vida da Igreja. Se o Cristo confiou à sua Esposa o ministé­
rio da palavra e do sacramento, é porque o Verbo de Deus,
no Cristo, nos foi dado sob a forma de palavra e de sacra­
mento. É pela fé no Cristo e no seu Evangelho, é pela
comunhão de seu corpo e de seu sangue que temos acesso
à vida do Pai, do Filho e do Espírito.
404 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

CONCLUSÕES

Devendo agora recolher os dados de nossa pesquisa,


é preciso fazer uma observação. A Igreja, com as intervenções
de seu Magistério, não pretende declarar tudo que sabe sobre
um assunto. Não aparece nos textos oficiais, apesar de ela
a conhecer e reconhecer, uma parte importante de sua dou­
trina elaborada e veiculada por seus doutores e teólogos,
que não deixam jamais de explorar a Escritura e a Tradi­
ção. Cada documento tem uma finalidade precisa e bem deli­
mitada. Nunca devemos esquecer esse aspecto circunstan­
cial das intervenções do Magistério. Os documentos nas­
cem num contexto histórico, ao qual devem suas perspecti­
vas e sua ressonância característica. Muitas vezes dirigidos
contra um erro especial, apresentam, na própria exposição da
doutrina, uma acentuação característica que devemos perceber.
De modo algum pretendem expor de forma total a doutrina
que vive no coração da Igreja. Por isso, para penetrarmos
essa doutrina, mesmo em seus pontos essenciais, temos que
considerar o conjunto dos documentos da Igreja \

1. Autor e finalidade da revelação

A revelação é uma ação de toda a Trindade: o Pai,


que tem a iniciativa; o Verbo que, por sua encarnação, é
o Mediador; o Espírito que toma a palavra do Cristo as­
similável para a alma, que move o coração do homem e
volta-o para Deus (D. 428-429, ES, Vat. II). Deus po­
dería não se ter revelado, deixando assim o homem entregue
à simples luz da razão, ajudando-o apenas com a sua pro­
vidência ordinária (MA). Poder-se-ia ter manifestado só
pela criação (D. 1785), pelo testemunho permanente que
em seu favor dá o universo criado (Vat. II). Aprouve,
porém, à sua bondade e à sua sabedoria manifestar-se também
numa revelação positiva e sobrenatural (DB 1785, Vat. II).
1 Nestas conclusões usaremos estas siglas para designar os documen­
tos pontifícios mais recentes: MA (Mortalium animos), MBS (Mit bren-
nender Sorge), ASG (Ad Sinarum Gentem), HG (Humant Generis), MD
(Munificentissimus Deus), ES (Ecclesiam Suam), Vat. II (Vaticanum II).
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 405

A revelação é, pois, iniciativa gratuita da benevolência divina


para com o homem (D. 1636, 1785, Vat., ES), puro dom de
seu Amór, do mesmo modo toda a economia sobrenatural:
encarnação, redenção eleição. Deus revelou porque lhe aprou-
ve elevar o homem a um fim sobrenatural, fazê-lo participan­
te de seus próprios bens, associá-lo à sua vida divina (D.
1786, Vat. II). É desígnio de Deus que os homens, pelo
Cristo, Verbo encarnado, tenham acesso ao Pai, no Espírito,
e participem da sociedade das Pessoas divinas (Vat. II, ES).

2. Natureza da revelação

Essa comunicação entre o Deus transcendente e sua


criatura, comunicação que chamamos revelação, a Igreja
descreve-a, com os termos da própria Escritura, como pa­
lavra de Alguém a alguém: Deus falou à humanidade. Di­
rigiu-se ao homem, entrou em diálogo com ele (Vat. II,
ES, D. 1636, 1785, MA). É esse fato que domina toda
a história. A religião de ambas as Alianças originou-se dessa
palavra dirigida ao homem. A revelação é uma palavra, es­
pecificamente um testemunho, isto é, uma palavra de au­
toridade, qualificada pela infinita sabedoria e santidade da
Verdade incriada, onisciente, infalível e veracissima. A essa
palavra que atesta corresponde, não a adesão de ciência,
mas a plena homenagem da obediência da fé (D. 1637,
1639, 1789, 2145, Vat. II).
O Vaticano II é o único concilio a descrever a reve­
lação em sua realização concreta. Afirma que a revelação se
faz pela união íntima de gestos e de palavras. As obras
manifestam e corroboram a doutrina e o mistério significado
pelas palavras, enquanto que as palavras proclamam e escla­
recem o mistério contido nas obras. Essa estrutura geral
da economia da revelação aplica-se à revelação de ambas
as Alianças, pois também a revelação trazida por Cristo se
faz por palavras e por obras. Nele a economia da revelação
atinge seu ponto máximo de concentração. A revelação
pelo Cristo, Verbo incarnado, usa todos os recursos da ex­
pressão humana para manifestar o Pai, de tal modo que o
Cristo é a epifania de Deus através da encarnação ( Vat. II ).
Sua vida, suas obras, suas palavras, suas ações, sua paixão,
406 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

sua morte, sua ressurreição, ao mesmo tempo que são meios


de revelação, apresentam-se também como testemunho divi­
no que confirma que em èm Jesus Cristo Deus está entre
nós para nos salvar e ressuscitar (Vat. II).
O Cristo é por si mesmo Sinal da revelação.

3. A história da revelação

A atividade reveladora de Deus, iniciada na aurora da


humanidade, constitui uma longa série de intervenções das
quais Cristo é o tema e o ponto culminante. Tendo-se mani­
festado a nossos primeiros pais, dando-lhes ânimo com a pro­
messa de uma salvação, Deus falou a Abraão e aos patriar­
cas, a Moisés e aos profetas; por eles falou ao povo que
escolhera, instruindo-o e formarido-o no conhecimento do
verdadeiro Déus (Vat. II, D. 428-429). Em o Novo Tes­
tamento, Deus dirigiu-se à humanidade por seu próprio
Filho, sua Palavra eterna que se fez carne para pronunciar
as palavras de Deus. A revelação atingiu em Jesus Cristo
seu termo e sua perfeição. O Cristo é ao mesmo tempo o Me­
diador e a Plenitude da revelação. Nele conhecemos a ver­
dade de Deus, verdade que nos conduz à vida (D. 429,
792a, 2202, MBS, Vat. II). Sendo o Cristo a Palavra
eterna de Deus, a economia por ele inaugurada é definitiva
e já não podemos esperar outra revelação pública antes da
epifania gloriosa do fim dos tempos (Vat. II, D. 2021).
Por ordem de Cristo os apóstolos pregaram e transmitiram
à Igreja o Evangelho por ele promulgado (D. 212, 783,
792a, 1785, Vat. II).

4. Objeto da revelação

O objeto material da revelação pode ser considerado


de duas maneiras. Em si mesmo: Deus e o “mistério” de
sua vontade, tal como nos foi manifestado no Cristo e
pelo Cristo (MBS, D, 1785, Vat. II); ou, então, compara­
tivamente com a capacidade natural da inteligência criada
(D. 1786, 1795, Vat. II). Nesse caso será preciso distin­
guir entre verdades acessíveis à razão humana e mistérios
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 407

ocultos em Deus, que só podem ser conhecidos mediante uma


revelação positiva (D. 1795), pois que transcendem, não
apenas a inteligência humana (DB. 1642, 1645, 1646, 1671,
1795), mas qualquer inteligência criada (D. 1673, 1796).
Contudo, apesar de esses mistérios ultrapassarem a razão
humana, nem por isso a contradizem (D. 1649, 1797). E
até podemos, mediante a analogia, chegar a ter deles um certo
conhecimento proveitoso para nós (D. 1796); jamais, po­
rém, mesmo depois de revelados poderemos compreendê-los
como as verdades que são objeto de nosso conhecimento na­
tural (D. 1795, 1797), permanecerão velados para nós até
o dia da plena visão (D. 1673, 1796). Esses mistérios
são principalmente os que se referem à nossa elevação à vida
sobrenatural e nosso comércio com Deus (D. 1671, 1786);
são segredos que só o Espírito do Pai revela a quem ele
quer (D. 1644, 1795, MBS). Além dos mistérios, são
também objeto da revelação aquelas verdades referentes à
religião, que por si não são inacessíveis à razão, mas que
Deus bondosamente quis revelar para que todos os homens
as conhecessem com certeza, rapidamente e sem qualquer erro
(D. 1786, 1795, Vat. II).

5. A revelação e seus nomes

A revelação em sua forma plena, pode ser chamada


equivalentemente: a palavra de Deus (D. 1781, 1792, Vat.
II); a palavra divina (D. 48); a palavra revelada (D. 1793);
a palavra pronunciada por Deus (MBS); a palavra atesta­
da (D. 2145); a revelação (D. 1787, Vat. II); a revela­
ção imutável (MA); a revelação ou o depósito da fé (D.
1836); o depósito da fé (D. 1836, 1967, 2204, 2313,
2314); o depósito revelado (D. 2314); a doutrina apos­
tólica (D. 3000); a doutrina da fé (D. 1800, 2145); a
doutrina revelada (D. 2314); as doutrinas reveladas (MA);
a doutrina sagrada (MA); a doutrina da fé (D. 2325); a
verdade revelada (D. 2310, 2145); a verdade divinamen­
te revelada (D. 2307, 2308, 2311); o Evangelho prome­
tido, publicado e pregado (D. 783, Vat. II); o Evangelho
divinamente revelado (ASG); a fé confiada aos apóstolos
(D. 93); a fé dada por Cristo aos apóstolos (D. 212); a
408 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

verdade absoluta e imutável pregada pelos apóstolos (D.


2147); a revelação transmitida pelos apóstolos ou o de­
pósito da fé (D. 1836); o depósito da fé confiado à Igreja
(D. 2204, Vat. II); o depósito divino confiado à Igreja
(D. 1800); a verdadeira e sã doutrina do Cristo (D. 792a);
a doutrina da salvação (D. 428, 429). Palavra, Boa-nova
anunciada aos homens, doutrina, mensagem da verdade, a
revelação distingue-se de qualquer saber humano: é uma
doutrina de salvação (D. 428, 429), que conduz à vida
eterna e à visão do Pai (D. 428 429), à sociedade com
as pessoas divinas (Vat. II); é uma mensagem que con­
tém promessas que acendem nossa esperança de salvação
(D. 798).

6. Revelação, Escritura, Tradição

A revelação chega até nós mediante a Tradição e a


Escritura, ambas estreitamente unidas e interdependentes.
Ambas derivam da mesma fonte divina, exprimem o mes­
mo mistério e concorrem para um mesmo fim, a salvação da
humanidade. Ambas são palavra de Deus: uma foi escrita
sob a inspiração do Espírito; outra, confiada por Cristo
aos apóstolos e por eles transmitidas a seus sucessores (D.
783, Vat. II);

7. Revelação, Igreja, Magistério

O depósito da revelação, formado pela Tradição e pela


Escritura, foi confiado à Igreja toda, isto é, ao povo cristão
unido a seus sacerdotes, para que ela viva desse depósito
e entre todos os fiéis haja união na profissão e exercício
da fé transmitida (Vat. II); pertence, porém, unicamente
ao Magistério a função de interpretar o depósito da fé (Vat.
II, D. 2314). De modo geral, deve-se dizer que o Ma­
gistério não está acima da palavra de Deus, mas a seu ser­
viço (Vat. II). De modo mais detalhado, é múltipla
a função do Magistério com relação à palavra de Deus.
Primeiramente o Magistério ouve piedosamente a palavra
de Deus (Vat. II). Deve em seguida guardar, conservar
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM ” 409

fiel e santamente o depósito da verdade que lhe foi con­


fiado (D. 792a, 1781, 1800, 1836, 2145, Vat. II), guar­
dá-lo íntegro e inviolado, a salvo de qualquer contamina­
ção e novidade (D. 93, 159, 1679, 2204, MD, Vat. II);
deve também expor fielmente seu verdadeiro sentido, de­
clarar infalivelmente a doutrina revelada (D. 1781, 1800,
1836, HG, MD, Vat. II). Deve haurir na fonte viva da
palavra de Deus tudo o que propõe à fé como divina­
mente revelado (Vat. II). Deve, finalmente, proscrever
todos os erros que ameaçam a verdade revelada (D. 792a,
1817, HG). A revelação concluiu-se com Cristo e os
apóstolos (D. 2021, Vat. II). O depósito da verdade
revelada, que se encontra na Escritura e na Tradição ( D.
783, 1787, Vat. II), não pode, como tal, receber nenhum
acréscimo. “Nenhuma invenção é introduzida, nada de novo
é acrescentado ao conjunto de verdades contidas pelo me­
nos implicitamente no depósito da revelação confiada à
Igreja” (MA). Só pode ser aperfeiçoada a percepção e a
compreensão do depósito revelado (D. 1800, MÁ, HG,
Vat. II). O Espírito Santo “dirige a Igreja universal para
um conhecimento mais perfeito das verdades reveladas”
(MD). Pode assim a Igreja explicitar o implícito, escla­
recer o obscuro, “esclarecer e explicitar o que se encontrava
apenas obscura e implicitamente no depósito da fé” (D.
2314). É pela pregação da Igreja, que recebeu a missão
de ensinar a todos os povos (ASG, MA, D. 2204), que a
revelação se torna viva e atual (Vat. II). Somente a Igre­
ja, na tradição viva que recebeu do Cristo e dos apóstolos,
sabe como interpretar, assistida pelo Espírito, a verdade
revelada. Quando se diz que ela é “guardiã da revelação”
(D. 1793), não se fala de um conservadorismo humano,
nem de um respeito puramente material pela letra. A pa­
lavra que ela conserva é a palavra viva do Cristo e dos
apóstolos, assimilada numa contínua meditação e explica­
da ao povo cristão (ES). Tradição, Escritura e Magistério
não se podem separar: os três juntos, cada qual a seu
modo, concorrem eficazmente para a salvação das almas
(Vat. II).
410 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

8. Características da revelação

Ainda que nem sempre explicitamente formuladas, essas


características não são menos reais; pela sua maneira de
se exprimir é evidente que a Igreja as supõe e subentende:
a) A revelação é interpessoal·, ao contrário da reve­
lação natural, pela qual Deus se manifesta ao espírito como
objeto e se deixa antes deduzir como princípio e fim de
todas as coisas, a revelação sobrenatural é palavra de Deus,
diálogo e mensagem (D. 1785, ES, Vat. II). É Deus mes­
mo que, por iniciativa própria, vem até nós, entra em co­
municação pessoal conosco, como um sujeito com outro
sujeito, como um eu com um tu. Sendo interpelação
pessoal, a revelação exige também uma resposta pessoal: re­
velação e fé são interpessoais.
b) A revelação é gratuita·, livre iniciativa da bene­
volência de Deus que se inclina para o homem, iniciativa
do desígnio de seu amor salvifico (D. 1636, 1785, MA).
Nascida do amor, a revelação tem em vista uma obra de
amor (ES, Vat. II). A revelação é graça, como também
é graça a acolhida que ela encontra, porque Deus, que co­
munica o dom, dá também o poder de recebê-lo na fé (D.
180, 798, 1789, 1791, Vat. II). O ponto culminante
dessa iniciativa é a encarnação do Verbo de Deus, do Filho
que vem em pessoa revelar-nos o Pai e os desígnios mis­
teriosos de seu amor (D. 783, 792a, 1785, MBS, Vat. II).
c) A revelação é social·, o homem criado por Deus
não é apenas indivíduo, mas sociedade. Assim também a
revelação, que dissemos ser interpessoal, é também social,
destinada a toda a humanidade. Dirige-se aos indivíduos,
não, porém, como a unidades isoladas, fechadas umas às
outras, mas como membros de uma coletividade, para que
todos estejam conscientes de sua comunhão na revelação,
nc amor, na salvação (D. 428, 429, 1785, Vat. II), A re­
velação, porém, é hierárquica: não se dirige a todos imedia­
tamente, mas mediante aqueles que Deus escolheu para
serem suas testemunhas — os profetas e os apóstolos
(D. 428-429, 783, Vat. II).
d) A revelação é histórica·, primeiro porque se apre-
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 411

senta como intervenção de Deus na história, intervenções


interligadas e tendo em vista um único desígnio de salva­
ção. A revelação é acontecimento da história e história. É tam­
bém histórica porque progrediu através do tempo. Iniciada
nas origens do mundo, desenvolve-se em qualidade e em
quantidade ao longo de todo o Antigo Testamento e comple-
tou-se com o Cristo e os apóstolos (D. 428-429, 783, 1785,
2021, MBS, Vat. II). Inicialmente parcial, sucessiva e
polimorfa, ela atinge em Cristo sua plenitude e seu termo
(D. 792a, MBS, Vat. II). Apresenta-se como uma econo­
mia, isto é, como uma disposição sapientíssima, concebida
e realizada ■ por Deus ao longo dós séculos.
e) A revelação é encarnada·, recebida numa inteli­
gência humana, deve acomodar-se às condições da concep­
ção humana. O objeto da revelação é o desígnio de Deus,
mas é humano e limitado o modo de concepção e de ex­
pressão desse desígnio. Por isso o homem recebe de ma­
neira diversa e múltipla uma verdade que é sumamente
una e simples em Deus. É mediante a multiplicidade de
concepções, de proposições e de verdades particulares que
chegamos a conhecer o mistério de unidade do pensamento
divino ( multifarie multisque modis ). É pela carne do
Cristo e pela carne das palavras que atingimos o teste­
munho de Deus (Vat. II, ES),.
f) A revelação é doutrinai e realista·, em sua forma
plena, a revelação não é pura ação de Deus que se oferece
à amizade humana, puro contato do Espírito conosco, pura
experiência interna sem conteúdo e sem doutrina fixa. É
uma mensagem promulgada pelo Cristo e transmitida pelos
apóstolos. Por isso a Igreja sempre fala da revelação, em
seu sentido objetivo, como de um ensinamento religioso, de
uma doutrina, de um depósito (D. 428-429, 783, 792a,
1787, 1800, 2059, Vat. II). Não é preciso lembrar, porém,
que a fé não tem por termo um simples enunciado, mas sim
a realidade do próprio mistério. A doutrina, enquanto si­
nal, é meio para o crente afirmar a doutrina enquanto reali­
dade significada. O que, de fato, nos é revelado é o pró­
prio Deus (Vat. II), seus eternos decretos (D. 1785), seus
mistérios (D. 1795), seu desígnio de salvação (Vat. II).
g) A revelação é salvifica·. — é feita para a salva-
412 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

ção, para a salvação de todos os homens (ES, Vat. II).


É um conhecimento que tem por finalidade a vida. Não
é sabedoria humana, invenção filosófica, nem produto do
subconsciente, e sim sabedoria divina, essencialmente orde­
nada para a salvação (D. 1786, 2074, 2075, 2145). Deus
fala-nos para associar-nos à sua vida, à vida das pessoas
divinas: Pai, Filho e Espírito (Vat. II). A revelação tende
para a visão (D. 1786) e procura estabelecer o encontro,
a comunhão com o Deus verdadeiro: “nisto consiste a
vida eterna: que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus,
e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). Por isso
a revelação é chamada doutrina da salvação (D. 429), Evan­
gelho da Salvação (D. 783).

9. A fé, resposta à revelação

A fé, resposta à revelação, é ao mesmo tempo dom


pessoal de todo o homem que livremente se entrega a Deus,
numa homenagem total de sua inteligência e de sua vonta­
de, livre assentimento à verdade por Deus revelada (Vat.
II, D. 2145). Enquanto assentimento do espírito, a fé
consiste em ter como verdade tudo quanto Deus falou, ates­
tou, revelou, e agora nos propõe por sua Igreja (D. 2145,
MBS). O crente não dá seu assentimento por ter chega­
do a uma evidência intrínseca da verdade, mas devido à
autoridade de Deus que fala. Autoridade que se fundamenta
na ciência infinita e na veracidade de Deus (D. 1789, 2145).
Aderindo aos enunciados imediatamente propostos pela Igre­
ja, o crente está aderindo aos mistérios, à palavra do pró­
prio Deus. Sua fé é resposta ao testemunho incriado: ho­
menagem total, adesão firmissima que une o espírito huma­
no à verdade infinita e lhe proporciona uma certeza absoluta,
uma participação na luz e na infalibilidade dessa mesma Ver­
dade. Essa resposta do homem não é puro resultado de
uma atividade humana: é dom de Deus. Para crer, é preciso
uma ação da graça preveniente e adjuvante (D. 180, 797-
-798, 1789, Vat. II). É preciso o socorro do Espírito San­
to que orienta o coração do homem para Deus, ilumina a
inteligência, dá a suavidade da adesão e da crença na
verdade (D. 180, 1791, Vat. II). A fé é um dom de
O VATICANO II Ε A CONSTITUIÇÃO “DEI VERBUM” 413

Deus. É ainda ao Espírito que se deve atribuir o apro­


fundamento da fé (Vat. II).

10. Conclusão

Em resumo, podemos descrever a revelação, como a


entende o Magistério da Igreja, como sendo a ação livre e
sobrenatural pela qual o Deus de amor e de sabedoria —
( para levar o homem ao seu fim sobrenatural, que é parti­
lhar da vida das Pessoas divinas — manifesta-se, no Cristo
e pelo Cristo, bem como manifesta também o desígnio de
salvação que concebeu para a humanidade. Ação que é de­
nominada palavra e diálogo de Deus, testemunho que recla­
ma a homenagem da fé. A revelação cristã, efeito dessa
ação divina eterna, é a palavra de salvação anunciada pelos
profetas, promulgada pelo Cristo e pregada pelos apóstolos,
transmitida à Igreja para ser fielmente guardada e infa­
livelmente proposta aos homens de todos os tempos. Pa­
lavra que nos é comunicada pela Tradição e pela Escri­
tura, confiada à Igreja sob essa dupla forma, como um
depósito que o magistério deve conservar, defender, ex­
plicar e propor. A fé, resposta do homem à palavra de
s Deus, é entrega total do homem, asentimento do espírito
à mensagem revelada, sob a ação preveniente e adjuvante
I do Espírito.
quinta parte

REFLEXÃO TEOLÓGICA
A teologia é inteligência da fé, busca do espírito que ,
tem sede de compreender. A teologia procura penetrar o
mistério que já possui pela fé, procurando obter uma inte­
ligência mais viva. Prospecção que jamais chega ao termo,
pois que o mistério revela novas profundezas à medida que
o espírito se aventura. Se a teologia é ciência do objeto
da fé, ela deve primeiramente, como ciência, apossar-se
desse objeto, para depois se esforçar por compreendê-lo
numa etapa complementar. Portanto, a função reflexiva ·
da teologia não se justapõe à função positiva: é antes sua
decorrência homogênea. É inteligência, mas inteligência do
dado revelado.
A finalidade desta quinta parte é justamente estabe­
lecer uma reflexão que flua da contemplação do próprio
objeto da fé, colhido e sistematizado. Deverá ser uma reflexão
fiel ao dado revelado, levando em conta a contribuição teo- -
lógica dos séculos passados, em seus elementos melhores,
levando também em conta os anseios e orientações da pes­
quisa atual. O magistério eclesiástico oferecerá uma norma
que permita orientar a pesquisa na direção exata.
O estudo do material bíblico e patrístico sobre a re­
velação levanta muitos problemas, decorrentes em sua
maioria da própria complexidade da realidade a ser consi­
derada. De fato, essa realidade é estreitamente relacionada
com outras, tais como a história, a encarnação, a Igreja,
a luz da fé, a economia dos sinais, que acompanham a re­
velação ou a constituem. Esse estreito relacionamento trans­
parece na própria maneira de falar. Diremos assim que a
história é revelação, que o Cristo é a revelação em pessoa,
que a luz da fé é revelação interior, que a Igreja é a revela­
ção concreta, que os milagres são revelação da salvação rea­
lizada. Por outro lado, criação e parusia enquadram a re-

14 - Teologia da revelação
418 NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO

velação da graça como tipos de manifestação divina que


lhe são estreitamente conexos.
À multiplicidade da realidade acrescenta-se a multipli­
cidade dos aspectos que fazem surgir contrastes, ou até
mesmo oposições aparentemente irredutíveis. Por exemplo,
como conciliar entre si aspectos tão diversos como os de
mistério, história, pessoa, doutrina, depósito? À medida que
um aspecto é valorizado, outro corre o risco de ser menos­
prezado. Isso é fenômeno comum entre os protestantes e
um risco perene entre os católicos.
Finalmente, as analogias que servem para exprimir a
experiência da revelação não podem ser usadas incauta-
mente. A Escritura fala de palavra e de testemunho. Ao
utilizarmos esses termos, podemos estar certos de não os
empobrecer, de lhes conservar toda a seiva religiosa? Quan­
do falamos do Cristo e de sua doutrina, estamos seguros
de que a ressonância que o termo tomou ao longo dos sis­
temas filosóficos não estará afetando o caráter específico
da doutrina do Mestre?
Nesta última parte, pois, queremos estudar os proble­
mas levantados pelo próprio dado revelado. Sucedem-se os
capítulos segundo a tríplice via indicada pelo primeiro con­
cilio do Vaticano para atingirmos certa inteligência dos mis­
térios: a analogia (capítulo I), a ligação entre os mistérios
(capítulos II-VIII), a finalidade (capítulo IX). O último
capítulo (X) será uma conclusão para todo o estudo.
1.
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA,
TESTEMUNHO E ENCONTRO

Foi a partir do sentido que a palvra tem para as re­


lações humanas que Israel compreendeu a manifestação de
Deus à humanidade que nós denominamos revelação. Con­
siderada em sua totalidade, a revelação se apresenta comó
um fenômeno de palavra, evidentemente com grande varieda­
de de formas e de meios de comunicação No Antigo Testa­
mento, os profetas apresentam-se como testemunhas e arau­
tos da palavra de Deus2. Em Jesus Cristo essa analogia
da palavra recebe sua plena e estrita realização. Em Jesus
Cristo é o Filho que pessoalmente nos fala3, prega4, ensina5,
atesta o que viu e ouviu junto do Pai6. Os apóstolos, por
sua vez, como “testemunhas oculares e servidores da Pa­
lavra” (Lc 1,2), pregam7, ensinam8, testemunham tudo o
que o Cristo disse e fez9. O conteúdo dessa palavra e desse
testemunho é a mensagem da salvação, a Boa-nova por ex­
celência: o Evangelho 10. Pela fé na mensagem da palavra
dá-se o encontro com o Deus vivo, prelúdio da visão face
a face. Palavra, testemunho, encontro, são analogias que

1 A revelação como palavra designa seja o fenômeno da iluminação


interior que dá a conhecer ao profeta o pensamento divino, seja o teste­
munho do Cristo através de todos os meios da encarnação: ações palavras,
exemplos.
2 Êx 4,15-16;7,l-2; Jer 1,9; 18,18.
3 Hebr 1,1; Jo 1,18;8,26.38.40.
4 Mc 1,14.39; Mt 4,17.23;9,35; Lc 8,1.
5 Mc l,21-22;6,6; 14,49; Mt 4,23;5,l-2;7,28-29;9,35;26,55; Lc 4,31-32;
19,47;20,l;23^.
« Jo 3,11.32;8,26.38;18,37; Apoc 1,5;3,14.
7 Mc 16,20; At 5,42;8,25;9,20;20,25;28,31.
8 At 2,42;4,2.18;5,25.42;11,26;18,11.
’ At l,21-22;2,32;3,15;5,32;10,39;13,31.
» Mc 16,15; Ef 1,13; Rom 16,25.
420 REFLEXÃO TEOLÓGICA

a reflexão teológica deve aprofundar e purificar, para indi­


car como e em que medida nos dão acesso ao mistério da
revelação (D. 1796).

I. REVELAÇÃO COMO PALAVRA

1. Palavra humana

Comecemos pelo elemento genérico da revelação: a


palavra. Quanto à noção de palavra é breve a análise feita
pelos escolásticos. Seguindo santo Tomás, dizem que falar
é manifestar o pensamento a outra pessoa mediante sinais 11.
Acentuam-se a manifestação do pensamento e a comunica­
ção de conhecimento que se realizam pela palavra. É uma
concepção principalmente estática. De Lugo é um dos pou­
cos que salientam o caráter dinâmico da palavra e notam
que ela, por sua própria essência se dirige a outro. A pala­
vra não consiste apenas em pro-por um objeto de pensamen­
to; tende à comunicação desse objeto; implica o desejo de
ser ouvida e compreendida12. A teologia contemporânea, aten­
ta aos dados da filosofia e da psicologia da linguagem u, in­
siste com razão no caráter interpessoal, existencial, dinâmico
e oblativo da palavra.
Karl Bühler distingue três aspectos na palavra: 1®, a
palavra tem um conteúdo. Significa ou representa alguma
coisa, nomeia um objeto, formula um pensamento, um jul­
gamento, narra um fato ( Darsetellung. ) 2°, a palavra é uma
interpelação. Dirige-se a alguém e tende a provocar uma
resposta, uma reação. É um apelo, uma provocação (Appell,
Auslõsung). 3?, a palavra, finalmente, é manifestação da
pessoa, de sua atitude interior, de suas disposições (Aus-
druck, Kundgabe) u. Em resumo: podemos definir a pa-

« S. th., la, q. 107, a. 1.


12 De Fide, disp. 1, sect. 10, η. 197 e η. 210.
13 Cfr., ppr exemplo, os estudos de K. Bühler, H. Noack, M.
Heidegger, G. Siewerth, M. Merleau-Ponty, M. Nédoncelle, L.
Lavelle, G. Gusdorf, H. Delacroix, G. Parain, A. G. Robledo, J.
Elacroix, e outros.
14 K. Büehler, Sprachtheorie (Jena, 1934), pp. 2, 28-33. A esse trí­
plice aspecto da palavra correspondem as três pessoas do verbo: a palavra
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 421
lavra como a ação pela qual uma pessoa se dirige a outra,
exprime-se, procurando uma comunicação 15.
Primeiramente a palavra é encontro interpessoal. O
homem fala sobre o mundo, mas não fala ao mundo. A
palavra dirige-se a outra pessoa. Com os objetos o homem
mantém relação de eu para isso. A palavra, porém, se dá
entre um eu e um tu. Toda palavra dirige-se a outra pessoa.
Mesmo entre os profissionais do silêncio (Montaigne, Des­
cartes, Vigny, Proust) a palavra é também a procura de
uma presença pessoal autêntica.
Falar é dirigir-se a alguém. Antes de ser expressão
a palavra é interpelação. “Apresentar o pensamento a al­
guém é manifestá-lo numa interpelação, como objeto sobre
o qual o interpelamos” 16. Qualquer palavra é um apelo,
uma procura de reação. Ela tende, por seu próprio dinamis­
mo, a estabelecer um circuito de interpelação e de respos­
ta, para se tornar colóquio, diálogo. Geralmente subenten­
dida, às vezes a interpelação aflora no discurso, principal­
mente quando se torna mais afetivo. Exprime-se então em
formas de sintaxe, desde o emprego do pronome até a in­
terrogação clara e a inversão dos membros da frase17. Tanto
a interpelação como a reação podem tomar diversas for­
mas: à ordem corresponde a obediência; à prece, o atendi­
mento; à promessa, a confiança; à explicação, a atenção;
ao testemunho, a fé 18.
Se qualquer palavra é procura de reação, deve-se ao
fato de a palavra tender à comunicação, mesmo que nem
sempre a consiga. Pode variar a finalidade da comunica-
exprime (primeira pessoa), interpela (segunda pessoa), narra (terceira
pessoa).
15 Para se exprimir dispõe o homem de outros meios: mímica, gestos
da mão e do corpo, modos de andar. É porém a palavra a expressão
mais perfeita da pessoa; principalmente a palavra viva, quando o tom, a
acentuação, o ritmo, o olhar, os gestos dão à expressão a riqueza, a cla­
reza, a plenitude que não se encontram em nenhum outro meio.
16 “Adresser sa pensée à autrui, c’est la manifester au sein d’une
interpellation, c’est en faire la matière au sujet de laquelle on interpelle
autrui”, (H. Dahnis, “Révélation explicite et implicite”, Gregorianum,
34 [1953]: 209-210).
17 Por exemplo: — Eu lhe garanto... Não é fato?... Não se
lembra?... Você viu ou não viu?... Mas, é assim que você pensa?...
18 E. Dhanis, “Révélation explicite et implicite”, Gregorianum, 34
(1953): 210.
422 REFLEXÃO TEOLÓGICA

ção. Pode ser simplesmente utilitária, meio de ação a ser­


viço do homo faber. É a linguagem pragmática das trocas
de informações, das ordens, das mensagens, dos jornais, do
rádio, da televisão, da vida cotidiana, familiar, técnica, ju­
rídica, profissional. É a mesma linguagem que se amplia
na linguagem científica dos físicos, químicos, matemáticos.
Esse aspecto utilitário é o grau ínfimo de intenção e de
expressão humanas. Nesse nível a palavra é impessoal. O
Eu permanece neutro, fora da comunicação 19.
Em o nível mais elevado, a palavra não é simples in­
formação ou instrução: torna-se expressão (no sentido em
que dizemos que um ato nos exprime), revelação da pessoa,
testemunho sobre si mesma. A palavra encontra a pleni­
tude de seu sentido na medida em que nós nos exprimi­
mos em nossa palavra, na medida em que nela nos coloca­
mos, na medida em que nos comunicamos verdadeiramente
com o outro, em que o visamos em si mesmo como pessoa.
A palavra autêntica é aquela em que a pessoa, como tal,
na sua singularidade, se exprime a uma outra pessoa, visada
em si mesma como pessoa. Expressão do mistério pessoal,
dirige-se ao mistério pessoal do outro. A palavra tanto mais
realiza sua missão quanto mais o homem, à imagem de Deus
que se diz em seu Verbo, se coloca nà palavra para entre­
gar o sentido profundo de seu serPara que a comuni­
cação e o diálogo se tornem assim confissão mútua, revela­
ção, é preciso que de parte a parte haja respeito pelo outro
em seu mistério pessoal, disponibilidade total, confiança
mútua, amizade que existe ou pelo menos se inicia21.
A palavra, em sua essência mais alta, é pois o meio
pelo qual duas interioridades se revelam mutuamente em
vista de uma reciprocidade. Quando a palavra atinge esse
19 J. Delanglade, “Essai sur la signification de la parole”, Signe et
Symbole (Neuchâtel, 1946), pp. 22-24; G. Gusdorf, La parole (Paris,
1956); R. Mehl, La rencontre d’autrui (Neuchâtel, Í955), pp. 21-23.
20 G. Gusdorf, La parole, p. 55; H. Noack, Sprache und Offenba-
rung (Gütersloh, 1960); C. le Chevalier, La confidence et la personne
(Paris, 1960), p. 66.
21 R. Mehl, La rencontre d’autrui, pp. 13-17; A. Brunner, La
personne incarnée (Paris, 1947), p. 266; C. le Chevalier, La confidence
et la personne humaine, pp. 40, 85-88, 179; G. Martelet, “L’Homme
comme parole et Dieu comme révélation”, Cahiers d’études biologiques,
n. 6-7:167-168; G. Auzou, La parole de Dieu (Paris, 1960), p. 415.
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 423
nível, ela é sinal de amizade e de amor, é conseqüência e
expressão da liberdade que se abre ao outro e assim se doa.
O falar torna-se forma de doação de pessoa a pessoa. Cada
qual se abre ao outro, dando-lhe hospitalidade no que de
melhor tem em si mesmo. Cada qual dá e se dá numa
comunhão de amor.
Às vezes, porém, a palavra articulada não pode ex­
primir tudo: é então que intervém o gesto para apoiar a
palavra e torná-la mais profunda. Quando o dom da pessoa
pela palavra já não basta para exprimir tôtaimente o ser
em sua profundidade, a palavra se completa no dom da
pessoa pelo comprometimento da vida: é o que se dá no amor
conjugal e no apostolado. Às vezes uma série de palavras
e de ações culmina num gesto que de certo modo sintetiza
plasticamente a intenção fundamental da pessoa: por exem­
plo, no martírio, quando o sacrifício da vida vem selar a
profissão da palavra.

2. Palavra divina

Na revelação é o próprio Deus que se dirige ao ho­


mem, não o Deus abstração filosófica, mas o Deus vivo,
o Onipotente, o três vezes Santo. Vem ser para o homem
um Eu que se dirige a um Tu, numa relação interpessoal
e vital, num desígnio de comunicação, de diálogo, de par­
ticipação. Essa palavra, que vem do mundo transcendente
da vida divina, interpela o homem e convida-o à obediên­
cia da fé, em vista de uma comunhão de vida. Está prenhe
da novidade inaudita da salvação oferecida à humanidade:
o homem está salvo, o Reino dos céus está entre nós, reali­
za-se o desígnio de amor mantido por Deus desde toda a
eternidade. Pois a palavra de Deus não apenas fala e informa:
ela realiza o que significa, muda a situação da humanidade,
dá a Vida. À palavra de Deus é uma palavra ativa, eficaz
criadora.
Se pela palavra Deus entra em comércio interpessoal
com o homem, isso não acontece com uma intenção meramen­
te utilitária. Á palavra de Deus é palavra de amizade e de
amor. O Verbo de Deus é um Verbo de Amor. Essa mani­
festação de amor desabrocha de múltiplas formas.
424 REFLEXÃO TEOLÓGICA

Primeiramente transparece no próprio fato da palavra.


Pela revelação Deus, pessoa incriada, dirige-se ao homem,
simples criatura. Vence de certa forma a distância infinita
que o separa do homem e coloca-se diante dele. O Altíssi­
mo, o Transcendente torna-se o Deus próximo, o Deus co­
nosco, o Emanuel. Esse gesto, pelo qual Deus sai de seu
mistério, condescende e se torna presente ao homem, só
pode significar para o homem salvação e amizade. Da parte
de Deus, radica-se essa palavra na sua vontade gratuita de
estabelecer laços de amizade com o homem. Com efeito,
se Deus quer revelar-se, não o pode fazer senão para es­
tabelecer com o homem laços de amizade e de amor e para
associa-lo à sua própria vida. Doutra parte, se Deus quer
estabelecer um relacionamento de amizade com o homem e
associá-lo à sua própria vida, é porque se quer revelar. Em
Deus, o fato da revelação e o fato de nossa vocação sobrena­
tural coincidem22.
A intenção de amor da palavra divina torna-se mais
patente pelo fato de a criatura que ele assim interpela e
chama para, desde agora, estabelecer com ele relações de
amizade, ser uma criatura inimiga que dele se afastou.
Pela amizade e pelo amor Deus se aproxima de uma cria­
tura que se revoltara contra ele. Ainda mais: leva sua con­
descendência até ao ponto de assumir a própria condição
dessa criatura. Faz-se Deus solidário com o homem a ponto
de se encarnar, para atingir o homem em seu próprio nível.
Para se exprimir e exprimir seu desígnio salvifico, Deus
utiliza todos os recursos da encarnação: a ação, o gesto, o
comportamento e principalmente a palavra. Em palavras hu­
manas que o ouvido pode entender e a inteligência pode assi­
milar, Cristo manifesta o mistério de sua pessoa e sua missão.
A intenção de amor da palavra divina manifesta-se não
só no fato e na economia da revelação, mas também no
seu próprio objeto. Com efeito, o objeto da comunicação
divina não são apenas verdades religiosas de ordem natural,
mas também e principalmente os segredos da própria vida
divina. Principalmente o mistério da Trindade: é o se-

22 J. Alfaro, Adnotationes in tractatum de virtutibus (ad usum


auditorum, Romae, PUG, 1959), pp. 99-100.
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 425
gredo divino por excelência, o segredo da intimidade divi­
na, conhecido somente das Pessoas divinas, pois que somente
elas o constituem: “ninguém conhece o Filho senão o Pai,
nem ninguém conhece o Pai senão o Filho” (Mt 11,27;
Jo 1,18). “Ninguém conhece os segredos de Deus, senão
o Espírito de Deus” (ICor 2,11). Revelando esse segredo,
Deus inicia o homem no que há de mais íntimo em si mes­
mo: o mistério de sua vida, o coração de sua subsistência
pessoal. Deus não pode revelar assim o segredo de sua vida,
a não ser a alguém que lhe esteja unido pela amizade, ou a
alguém a quem ele se queira unir pela amizade. Convidan­
do-nos à mais surpreendente amizade com Deus, a revela­
ção da Trindade se nos apresenta como um começo de par­
ticipação na vida divina e constitui uma doação de Deus ao
homem. A revelação é uma autodoação23.
Deus leva até o excesso do amor essa doação que de
si mesmo faz ao homem pela palavra. Tendo exercido sua
missão profética, isto é, tendo dado a conhecer o Nome
do Pai (Jo 17,6.26), a doutrina do Pai (Jo 7,16; 12,50),
o Cristo consuma pelo sacrifício de sua vida o dom feito
por sua palavra. Completa pela paixão a caridade que
viera significar: “sabendo Jesus que chegara a hora de
passar deste mundo para o Pai, ele que amara os
seus que estavam no mundo, amou-os até ao último
sinal (do amor)” Jo 13,1). Temos aqui a perfeição
do mistério da palavra que se doa. A palavra articulada
torna-se palavra imolada. O Cristo na cruz manifesta (Jo
1,18) a caridade do Pai até àquele grito inarticulado no
qual tudo se diz e se atesta. A palavra de Deus se esgota
até ao silêncio. “O tempo da morte e do silêncio torna-se
a suprema manifestação do amor oferecido à humanidade24”.
Tudo quanto na manifestação divina era incomunicável, ex­
prime-se nos braços estendidos e no corpo exangue, no co­
ração transpassado pela lança do centurião (Jo 19,34). A
Palavra de amor entregou-se inteiramente aos homens. A
revelação pela palavra consumou-se e foi selada pela reve-
lação-ação.
23 J. Alfaro, “Persona y gracia”, Gregorianum, 41 (1960): 11.
24 H. Urs von Balthasar, “Dieu a parlé un langage d’homme”,
Parole de Dieu et Liturgie (Paris, 1958), p. 90.
426 REFLEXÃO TEOLÓGICA

II. A REVELAÇÃO COMO TESTEMUNHO

A revelação é uma palavra específica: é um testemunho.


Convida a uma reação específica: a fé. Em sua forma ativa
ou atuada é testemunho: ação ou depoimento de teste­
munhas.
A Escritura descreve a revelação com uma economia
de testemunhos. No Antigo Testamento, Deus escolheu
seres privilegiados que não são nem a verdade nem a luz,
mas que testemunham a verdade. Esses homens falam em
nome de Deus dizendo: “Eis o que Deus me mandou di­
zer-vos. Sois convidados a aceitar minha palavra pela fé,
pois minha palavra é sua palavra”. Esses homens impõem-
-se pelo tom autoritário de sua palavra, por seu exemplo,
por suas obras de poder e de misericórdia, por sua paciên­
cia na perseguição e mesmo pelo martírio que é o supremo
testemunho. Em o Novo Testamento apresenta-se o Cristo
como a Testemunha por excelência. Narra o que viu e
ouviu junto ao Pai, e convida-nos à obediência da fé. Ele
mesmo forma um grupo de testemunhas, os apóstolos. Eles
testemunham sobre a vida e o ensinamento de Cristo. Con­
vidam todos os homens para que acreditem no que eles vi­
ram, ouviram e experimentaram do Verbo de vida. Quem crê
é introduzido, pelo batismo, em uma nova sociedade —
a Igreja; participam do corpo e do sangue do Cristo, vivem
de sua vida. O que os apóstolos transmitem à Igreja é um
testemunho, um depoimento de testemunhas. Testemunho
que a Igreja acolhe, conserva e protege, mas que também
propõe, explica, interpreta, assimila e entende sempre mais.
Assim como, através da história, o testemunho liga as
almas entre si, assim também liga o tempo à eternidade. A
idéia de testemunho projeta sua luz sobre a encarnação e
sobre a própria Trindade. De fato, a Escritura descreve a
atividade reveladora da Trindade sob a forma de mútuos
testemunhos. O Filho mostra-se-nos como a Testemunha
do Pai, e como tal se dá a conhecer aos apóstolos. Mas,
também o Pai testemunha que o Cristo é o Filho, pela
atração que exerce sobre as almas, pelas obras que ele dá
ao Filho realizar, mas principalmente pela ressurreição
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 427
que é o testemunho decisivo do Pai em favor do Filho. O Fi­
lho dá testemunho em favor do Espírito, já que promete en­
viá-lo como educador, consolador, santificador. E o Espírito
vem, e testemunha em favor do Filho, pois o relembra, o faz
conhecido, manifesta a plenitude de suas palavras, insinua-o
nas almas. Assim pois, no comércio das três Pessoas di­
vinas com os homens vemos um intercâmbio de testemu­
nhos que tem por finalidade propor a revelação e alimentar
a fé. São três que revelam ou testemunham, e os três
são um apenas. O testemunho é o elo secreto entre a eterni­
dade e o tempo, entre o céu e a terra. Do mesmo modo
que o Verbo repousa no seio do Pai, assim o apóstolo João
reclinou-se sobre o peito do Cristo25.
Os documentos do Magistério também descrevem a
revelação em termos de testemunho, quase sempre implicita­
mente, apresentando a revelação como uma palavra autoriza­
da: a palavra da Verdade incriada, infalível e veracissima à
qual corresponde, não a adesão da ciência, mas a homena­
gem da fé (D. 1637, 1639, 1789). Apenas o juramento
antimodernista diz que a revelação é uma palavra de teste­
munho (D. 2145). Deus que revela é Deus que fala com.
a autoridade da Testemunha cuja infabilidade e veracidade
são absolutas.
Por seu lado, os teólogos definem igualmente a reve-.
lação: locutio Dei attestons. Para esclarecer a noção de tes-
temunho eles estabelecem uma oposição entre ensinamento
e atestação. No ensino, o ouvinte aceita a exposição do
mestre pelos argumentos cujo valor intrínseco ele pode per­
ceber. No testemunho, pelo contrário, o ouvinte assente
devido à autoridade de quem fala; ele confia na palavra de
qiiem fala, devido a sua ciência e veracidade. Em ambos
os casos o espírito humano se enriquece com novas verda­
des. A diferença essencial está no motivo que inspira o
assentimento: num caso é a evidência da demonstração; no
outro, a simples autoridade de quem fala. São exatos esses
dados; poderíam, porém, ser mais elaborados.

25 J. Guitton, Le problème de Jésus et les fondements du témoignage


chrétien (Paris, 1950), pp. 239-243.
428 REFLEXÃO TEOLÓGICA

1. Testemunho humano
Essencialmente o testemunho é uma palavra pela qual
alguém convida outro a aceitar algo como verdadeiro con­
fiando em seu convite como garantia próxima de verdade
e em sua autoridade como garantia remota. Esse convite
a crer, enquanto garantia de verdade, é o elemento especí­
fico do testemunho. Muitas vezes está explícito na própria
maneira de falar: “Eu vos digo. . . Creiam-me. . . Eu vi
com meus próprios olhos” 26. O que se pede ser acreditada é
a própria coisa atestada, o objeto do testemunho. A fé, res­
posta solicitada pelo testemunho, é “um julgamento que
aceita como verdadeiro o que vem atestado, apoiando-se
sobre o testemunho como garantia próxima da verdade”27.
O testemunho é garantia próxima de verdade porque
a testemunha, pelo simples fato de convidar a crer, apela
para a confiança e compromete-se a dizer a verdade; com­
promete-se a não trair essa confiança e promete ser sincera
•e veraz. O testemunho, pois, é mais uma realidade de or­
dem moral que de ordem intelectual. Atestar não é sim­
plesmente narrar: o testemunho compromete a testemunha.
Para quem não viu, sua palavra deve substituir a própria ex­
periência. A fé no testemunho supõe assim certa demissão
da razão. Demissão legítima, porém, pois tem como motivo
a sanidade mental (ciência, perspicácia, espírito crítico) e,
principalmente, moral da testemunha.
Devemos notar que, se a fé humana se apóia na ates-
tação atual da testemunha e na sua autoridade, essa auto­
ridade, contudo, não é de per si garantia última de verdade.
Falível por natureza, precisa sempre ser acompanhada de
indícios e de sinais objetivos que lhe indiquem o valor.
Essa apreciação da testemunha e de sua autoridade é uma ope­
ração complexa, como qualquer conhecimento de pessoas e,
portanto, passível de erros e decepções. Mesmo quando o
Espírito, por um exame atento dos títulos da testemunha,
conseguiu todas as garantias possíveis, jamais pode confiar de
modo absoluto no testemunho humano, pois que a ciência
36 E. Dhanis, “Révélation explicite, et implicite” Gregorianum, 34
(1953): 210-211.
27 Ibid., 211.
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 429
e a fidelidade humanas são sempre precárias. O homem é
uma identidade que sempre se deve reconquistar.
Somente Deus pode dar à sua palavra uma garantia abso­
luta, por sua identidade eterna e absoluta consigo mesmo.
A fé humana jamais pode ser uma fé de pura e simples
autoridade28.
Sob esse aspecto o conhecimento mediante o teste­
munho é inferior ao conhecimento mediante a evidência; é,
porém, superior em vista dos valores que põe em jogo. A
demonstração apela para a inteligência. O testemunho, re­
clamando uma intensidade de confiança que se mede pelos va­
lores que se arriscam confiando nele, põe em jogo não apenas
a inteligência, mas também, em graus diversos, a vontade
e o amor. A possibilidade de um relacionamento entre os
homens repousa, em última análise, nessa confiança recla­
mada pela testemunha e na promessa tácita de não trair.
Temos, pois, dum lado o compromisso moral da testemunha;
doutro, a confiança que já é um início de amor, por parte
de quem aceita o testemunho.
Ainda mais, desde que abandonamos o universo das coi­
sas materiais para atingir o das pessoas, abandonamos o pla­
no da evidência para entrar no do testemunho. Ao nível da
inter-subjetividade, que é o das pessoas, damos de encontro
com o mistério. Ora, as pessoas não são problemas que
se deixem conter em fórmulas ou resolver em equações.
As pessoas, somente podem ser conhecidas por revelação. .
Não temos acesso à intimidade pessoal a não ser pelo livre
testemunho das pessoas. Elas não testemunham sobre si
mesmas senão levadas pelo amor. O conhecimento por
testemunho é pois um conhecimento de ordem inferior
quando, pela natureza do objeto, podemos conseguir uma
evidência direta e imediata do real. Mas não é inferior
quando se trata do conhecimento de realidades que são
pessoas, quando o testemunho é a única maneira de entrar
em união com a pessoa e participar de seu mistério29.

Λ J. Alfaro, Adnotationes in tractatum de virtutibus, pp. 310-314;


A. Brunner, La personne incarnée, pp. 257, 271, 279-281; R. Luquet,
“L’acte de foi”, Lumière et vie, set. 1955, pp. 25-31.
29 A. Brunner, La personne incarnée, pp. 255, 256, 268; J. Daniélou,
Scandaleuse vérité (Paris, 1961), pp. 11-12, 97-99.
430 REFLEXÃO TEOLÓGICA

2. Testemunho divino

A revelação é justamente a revelação do mistério pes­


soal de Deus. Deus que é interioridade por excelência,
Ser pessoal e soberano, cujo mistério só podemos conhecer
por testemunho, isto é, por uma confidência espontânea
que pede a nossa aceitação pela fé. O cristianismo é a reli­
gião do testemunho, pois que é manifestação de pessoas, tes­
temunho que possibilita a comunicação interpessoal. O
Cristo fala, ensina, dá leis, como os outros fundadores de
religião. Mas o que ele afinal ensina e comunica é o mis­
tério de sua pessoa. Funda uma religião que é iniciação ao
seu mistério pessoal. Os apóstolos testemunham sua inti­
midade com o Cristo, o Verbo de vida, o Filho que também
está em relação com o Pai e o Espírito, numa comunicação,
porém, de tal modo particular que não permite partilha.
Em seu conjunto o Evangelho se nos apresenta como uma
confidência de amor, na qual o Cristo, progressivamente,
revela o mistério de sua pessoa, o mistério da vida das Pes­
soas divinas e o mistério de nossa condição de filhos. Os
apóstolos são testemunhas do que o Cristo disse e fez, mas
principalmente dão testemunho de sua Pessoa: sobre ela recai
todo o peso de seu testemunho 30.
O testemunho divino é de uma espécie única, que o dis­
tingue do testemunho humano, tanto no plano objetivo
como no subjetivo.
Inicialmente, tem isto de particular.que não só afirma a
verdade do que propõe à fé, mas ao mesmo tempo afirma
a infalibilidade absoluta de seu testemunho. Quando Deus
afirma algo, afirma ao mesmo tempo sua própria infalibili­
dade, pois que ele é o Testemunho subsistente, o puro Teste­
munho, cuja atestação se identifica com o puro Ser. Deus
que atesta é por si mesmo o fundamento absoluto e último
da verdade infalível de seu testemunho. É sua própria ga­
rantia. Na revelação cristã os sinais têm por finalidade
garantir a identificação da Testemunha, devem fazer re­
conhecer na voz e na palavra humana do Cristo o teste-

30 J. Guitton, Le problème de Jésus et les fondements du témoignage


chrétien, pp. 153-164.
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 431
munho do Deus vivo; no depoimento dos apóstolos, a autên­
tica mensagem de Deus. A própria fé, porém, apóia-se
no Testemunho divino incriado, fundamento último de ver­
dade. Apóia-se o homem inteiramente numa Palavra que
traz em si mesma sua garantia31.
O testemunho divino distingue-se ainda porque, da
parte de Deus, o convite para crer se apresenta interna e
externamente. Mediante os profetas, o Cristo e os apósto­
los, Deus notifica claramente aos homens seu desígnio de
salvação e convida-os à fé: “Arrependei-vos e crede na
Boa-nova” (Mc 1,15; 16,15). O testemunho divino, po­
rém, não se limita a essa manifestação extrerior que age
mediante a linguagem e os sinais de poder. Sua dimensão
mais profunda é uma ação totalmente interior. Diversa­
mente do homem, que só dispõe da eficácia significativa e
psicológica da palavra, Deus pode agir diretamente sobre
a alma. Querendo descrever essa ação, a Escritura fala em
revelação (Mt 11,25; 16,17), em iluminação (2Cor 4,4-6;
At 16,14), em unção (2 Cor 1,21-22), em atração (Jo
6,44), em testemunho interior (Jo 15,37; IJo 5,6). Como
testemunha divina, Deus pode infundir no espírito humano
uma luz pela qual o atrai para que conforme seu conheci­
mento ao conhecimento divino, submetendo-se à Verdade
primeira por uma homenagem à sua autoridade infinita,
para que admita o Testemunho divino por causa dessa ex­
celência sem par que faz de Deus a garantia última e abso­
luta de sua verdade. Iluminado e movido pela luz divina
que invade seu espírito e se torna sua própria luz, o crente
pode aderir pura e totalmente ao Testemunho divino em
si mesmo e por si mesmo. A fé sobrenatural é a única fé
pura, totalmente baseada na autoridade.

III. A REVELAÇÃO COMO ENCONTRO

Qualquer palavra supõe um Eu e um Tu. Implica tam­


bém a intenção de ser captada por um tu. A palavra é uma
delegação existencial: um eu, carregado com a existência
31 J. Alfaro, Adnotattones in tractatum de virtutibus, pp. 315-319
432 REFLEXÃO TEOLÓGICA

de quem o profere, parte à procura de um tu. A palavra não


se torna realidade senão no encontro com esse tu. Encontro
que pode atingir diversos graus de profundidade. Inicial­
mente tende a estabelecer o contato. Mas seu desígnio ex­
pontâneo é que a palavra e a resposta cheguem a ser um
diálogo autêntico, reciprocidade, comunhão, comprometimen­
to mútuo. A reciprocidade é condição para encontro efetivo.
Há encontros em que a reciprocidade é compreendida como
intercâmbio na igualdade; é porém no encontro de amor que
a reciprocidade pode ser completa. Reciprocidade que nas­
ce de uma revelação e de uma doação32.
Esse encontro que tende a ser um diálogo no amor,
encontramo-lo no plano infinitamente mais elevado da re­
velação e da fé.
Na revelação, dirige-se Deus ao homem, interpela-o e
comunica-lhe a Boa-nova da salvação. Porém, é somente
na fé que existe verdadeiro e pleno encontro entre Deus
e o homem. Só assim a palavra do Deus vivo encontra
no homem acolhida e reconhecimento. A fé é o pri­
meiro e livre passo do homem em direção a Deus. Pela
sua palavra Deus convida o homem a um relacionamento
de amizade; pela fé o homem responde ao apelo de Deus.
Como primeiro encontro entre Deus e o homem, a fé equi­
vale ao sorriso de amizade no diálogo humano. Quando o
homem se abre a Deus que fala, comunga com seu pensa­
mento, deixa-se conquistar e dirigir por ele, Deus e o
homem se encontram e esse encontro se torna comunhão
de vida.
Revelação e fé são, pois, essencialmente interpessoais.
Observa santo Tomás: “O que aparece como principal e
como tendo valor de fim em todo ato de fé, é a pessoa
a cuja palavra se dá a adesão”33. É a fé o encontro com
o Deus pessoal em sua palavra. Evidente que ela supõe a
adesão do espírito à mensagem de Deus. Pois, se Deus
se manifesta como um Deus que fala, a fé deve ser assen­
timento ao que ele diz. Essa adesão mesma, porém, ter-
32 M. Nédoncelle, La réciprocité des consciences (Paris, 1942), pp.
16-17; F. J. J. Buytendijk, 'Phénoménologie de la recontre (Paris, 1953),
ρ. 42; T. Soiron, La condition du théologien (Paris, 1953), pp. 82-87.
33 S. Th., 2a 2ae, q. 11, a. 1, c. 1
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 433
mina no encontro que culminará na visão. Já é, porém,
presença misteriosa de Deus, relacionamento vital do ho­
mem para com Deus, de pessoa a pessoa34. É assim que
a fé muitas vezes é descrita por são Paulo e por são João:
como uma atitude global de todo o homem que responde às
propostas de Deus, como um todo indivisível, em que conhe­
cimento e amor formam um só impulso espiritual da
pessoa. A fé que age pela caridade (Gál 5,6) é conheci­
mento e comprometimento de toda a pessoa: aceita toda
a verdade de Deus e dá a Deus todo o coração do homem.
Devem-se notar as particularidades do encontro realiza­
do pela fé. Primeiramente, é sempre Deus que tem a ini­
ciativa. Sua infinita transcendência é também infinita con­
descendência. Todo encontro salutar é por ele antecipado:
“não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos
amou” (IJo 4,10). Na revelação e na graça tudo é inicia­
tiva gratuita: a ação de Deus que sai de seu mistério, a
economia da palavra, a mensagem da salvação, a capacidade
de lhe dar uma resposta e de encontrar a Deus pela fé. É
Deus, com efeito, que inicia em nós o movimento de re­
torno em sua direção; é Deus que imprime na inteligência
uma tendência, um impulso sobrenatural que a inclina para
ele, Verdade primeira, como para seu bem supremo; é Deus
quem criou o fundamento ontológico a partir do qual, mes­
mo permanecendo homens podemos fazer o ato teologal
da fé. Portanto, essa ação divina não violenta a liberdade
do homem. Permanecemos livres para aceitar ou não essa
outra liberdade que se abre para nós. Somos, porém, con­
vidados a criar em nós a disponibilidade para com a
palavra, convidados a assimilá-la para dela vivermos (Mt
13,23).
Segunda característica do encontro com a Palavra é
a gravidade da opção que ela solicita. Pois a palavra de
Deus questiona o sentido de nossa existência pessoal e o
34 J. Alfaro, “Persona y gracia”, Gregorianum, 41 (1960): 11-12; J.
Mouroux, Je crois en toi (Paris, 1949), pp. 15-21; R. Aubert, Le pro­
blème de l'acte de foi, (Louvain, 1958, 3*)> pp. 696-703; R. Guardini,
Vom Leben des Glaubens (Mainz, 1935); C. Cirne-Lima, Der personale
Glaube (Innsbruck, 1959); W. Bulst, Offenbarung (Düsseldorf, 1960),
p. 125.
434 REFLEXÃO TEOLÓGICA

sentido de toda a existência humana. Não se trata de mo­


dificar apenas pormenores em nosso sistema de valores:
trata-se de orientar diversamente todo o nosso ser. Se o
Cristo é Deus, a Verdade em pessoa, sua palavra se torna
o ponto de apoio, a norma, o critério de tudo. Pensamento
e comportamento do homem estão submetidos ao julgamen­
to dessa palavra. É preciso optar por Deus ou pelo mun­
do, pela palavra de Deus ou pela palavra do homem. É
preciso jogar tudo por tudo, inclusive a vida e a morte,
o martírio violento ou o martírio humilde e paciente de
toda uma vida. No sentido estrito, trata-se de ser ou de
não ser.
É pois a fé uma decisão por Deus, e toda a vida deverá
girar em torno dessa decisão dramática que compromete
o homem até o mais íntimo de seus desejos. Um tal compro­
metimento é um desarraigar-se do eu humano e um arraigar-se
no Cristo (Ef 3,17). Essa morte a si mesmo, não se pode
obter pela simples contemplação intelectual da mensagem
revelada: é preciso uma sedução que venha do amor. Assim
a palavra de Deus no Cristo tem um rosto e um coração de
homem para seduzir o coração do homem. O que Deus nos
disse, foi seu Amor (IJo 4,8.16). Mas, se essa palavra de
Deus consegue obter o consentimento do homem, é por ser
uma palavra de amor revelado e manifestado até o supremo
sacrifício. A revelação como encontro não chega a ser acolhi­
da, diálogo e reciprocidade a não ser por essa sedução
de amor que se manifesta no Cristo e se completa pelo
Espírito, que transforma o indócil coração do homem fa­
zendo-o coração de filho.
Última característica desse encontro é a profundidade
da comunhão que ela estabelece entre Deus e o homem.
Quem recebe a palavra do Cristo e nela permanece, passa
da condição de servo à de filho e de amigo (Gál 4,4-6; Rom
8,15; Jo 15,15); entra em comunhão de amor com o Pai,
o Filho e o Espírito. Pela fé no Cristo, o homem é inicia­
do nos segredos do Pai, conhecidos apenas pelo Filho, que
está no seio do Pai (Jo 1,18; Mt 11,25-27), e pelo Es­
pírito que perscruta as profundezas do Pai (ICor 1,10).
O próprio amor com que o Pai ama o Filho e com o qual o
Filho ama o Pai, está de agora em diante no coração do
A REVELAÇÃO COMO PALAVRA, TESTEMUNHO E ENCONTRO 435
homem: “dei-lhes a conhecer o teu nome. .. para que o
amor com que me amaste esteja neles e eu esteja neles”
(Jo 17,26). O Cristo que disse: “O Pai e eu somos um”
(Jo 10,30), diz também: “Que todos sejam um só, assim
como tu, ó Pai, estás em mim e eu em ti, também eles
sejam um em nós.. . para que sejam um como nós somos
um: eu neles e tu em mim, para chegarem à perfeita uni­
dade” (Jo 17,21-23). Devido à sua união com o Cristo e
à união do Filho com o Pai, os crentes estão unidos entre
si e unidos com o Pai, como o Pai está unido com o Filho.
O Espírito de amor, que une o Pai e o Filho, faz que eles
vivam da própria vida das pessoas divinas. Por isso pode
a primeira carta de são João repetir que nós estamos “em
comunhão com Deus” ( 1 Jo 1,3.6), que estamos “em Deus”
(IJo 2,5;5,20), que “permanecemos em Deus” (IJo 2,6.
24; 3,24; 4,13.15.16). Nenhum encontro humano, por mais
perfeito que seja, poderia atingir esse grau de intimidade,
de comunhão, iniciado pelo encontro da fé que age pela
caridade.
Assim pois, quer a encaremos como palavra, como
testemunho ou como encontro, a revelação faz ressoar
sempre a mesma nota fundamental: Deus é amor ( IJo 4,
8-10) e sua palavra é palavra de amor. Não é pois a fé
submissão ao arbítrio de um Deus que se compraz re­
clamando a homenagem do espírito humano. É antes, da parte
do homem, o reconhecimento do plano de amor de Deus e
a livre inserção nesse plano; é abertura à amizade divina que
nos convida a partilharmos de sua própria vida. Revela­
ção e fé são obras de amor.
2.
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO

Revelação e criação, duas realidades freqüentemente


postas em relação na Escritura, nos santos Padres, nos do­
cumentos do Magistério. A criação é apresentada como um
tipo de manifestação divina e até mesmo como uma palavra
de Deus. Em que, pois, essa manifestação e essa palavra se
distinguem da revelação propriamente dita ou sobrenatural?
Parece-nos que três questões devem ser consideradas no
estudo das relações entre criação e revelação. Primeira,
como o povo hebreu chegou a conhecer o Deus criador:
pelas obras da criação ou pelos acontecimentos da história?
Segunda, como as obras da criação são uma manifestação
de Deus e qual a natureza dessa manifestação? Terceira,
quais os pontos de contato e quais os de divergência entre
revelação natural e revelação sobrenatural?

I. DO DEUS DA HISTÓRIA AO DEÜS DA CRIAÇAO

Em teodicéia, a reflexão, a partir do mundo, eleva-se


até ao princípio último de explicação do universo. Desco­
bre que esse princípio é um espírito que transcende o mun­
do, que ele é pessoal. Continuando, a reflexão pode per­
guntar-se se esse Deus pessoal, princípio do mundo, não
teria intervindo de uma maneira toda especial, isto é, não
apenas pelo gesto silencioso da criação, mas também inter­
pelando e falando.
No Antigo Testamento, o conhecimento de Deus se­
guiu um caminho inverso, como já o vimos. Cronologica­
mente, o Deus da Aliança foi conhecido antes do Deus da
criação. Israel não descobriu Deus por um processo de
reflexão metafísica, mas através das intervenções de Deus
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 437

em sua história. Λ partir do Deus da história é que Israel


chegou ao Deus da criação, do Deus salvador ao Deus
criador ’. Com efeito, Javé não se revelou primeiramente
como Deus criador do céu e da terra, mas como o Deus sal­
vador que liberta seu povo da escravidão para com ele es­
tabelecer uma aliança. A fé do povo de Israel nasceu com
a experiência fundamental do Êxodo e da Aliança, que
revelou um Deus de salvação, presente a seu povo, com
todo seu poder. Também a idéia de criação estará sempre
associada a esta idéia de salvação e de poder. A criação
mostra-se como a projeção para o passado do poder de
Deus manifestado na história e como o primeiro ato da
história da salvação.
Após o Êxodo e a Aliança, Israel sabe que está na
mão poderosa de Javé. Pouco a pouco, através da histó­
ria de suas relações com Deus, descobre as dimensões desse
poder; da experiência desse poder chega à consciência de
que é absoluto. A libertação do Egito e o estabelecimento
em Canaã supõem que Deus seja o senhor da natureza e
dos povos da terra; os prodígios do Êxodo supõem que
Deus, a seu critério, mobiliza a natureza para realizar a sal­
vação de seu povo. O poder cósmico de Javé, contudo,
ainda não exige necessariamente a afirmação de seu poder
criador. Foi num segundo passo que a reflexão inspirada
compreendeu que, se Deus é o senhor de tudo e de tudo
pode dispor, é justamente porque tudo suscitou do nada.
A criação do mundo constitui a base de sua soberania sobre
as forças da natureza e sobre as nações.
Lá pelo fim do exílio, a onipotência criadora de Javé se
torna um tema central da mensagem profética. No Dêutero-
-Isaías, a criação é invocada como garantia para as grandes
promessas de salvação. O novo Êxodo, de Babilônia para
Jerusalém, será um triunfo, pois que o mesmo poder de Javé
que lançou os alicerces da terra e dos céus, vai manifestar-
1 J. Mouroux, Le Mystère du temps (Paris, 1962); K. Rahner,
Écrits théologiques (Bruges, 1959), I: 34-35; A. Feuillet, “La connaissance
naturelle de Dieu par les hommes d’après Rom. 1,-18-23", Lumière et Vie,
mars 1954, p. 69; E. Beaucamp, La Bible et le sens religieux de l’univers
(Paris, 1959), pp. 53-54; P. van Imschoot, Théologie de VAncien
Testament, I: 142.
438 REFLEXÃO TEOLÓGICA

-se para salvar seu povo (Is 41,4;45,ll-12;48,14-15;50,2).


Esse poder vai realizar uma nova criação histórica: “essa liber­
tação que eu, Javé, vou criar” (Is 45,8). Forque Jave é
criador de tudo, por isso age continuamente em natureza e
dirige a história de Israel.
A perspectiva histórica é pois fundamental. A pers­
pectiva cósmica é invocada apenas para garantir a eficácia
da manifestação histórica. A oração dos salmos, a oração da
mãe dos Macabeus, correspondem a essa tomada de consciên­
cia do Dêutero-Isaías: Aquele que fez o céu e a terra e que
salvou Israel de seus inimigos, fá-lo-á ainda e sempre (SI
18;104;102;136; 2Mac 7,22-29) 2.
A criação, porque foi compreendida a partir da história
da salvação, continuará sempre associada a essa história e ex­
plicada à sua luz, principalmente à luz do Êxodo e da
Aliança.
Assim como a salvação futura é anunciada e descrita
como um novo Êxodo, também a origem do mundo é con­
cebida como uma espécie de êxodo pré-histórico, como uma
primeira manifestação do poder de Deus e um penhor de
suas futuras vitórias. Criação, Êxodo, salvação escatológica,
constituem três momentos de um mesmo triunfo de Javé,
três momentos que mutuamente se iluminam (Is 44,24-28;
42,5-9;45,6-8).
O Êxodo, visto no contexto da criação, ganha um alcan­
ce universal; e, inversamente, a criação já aparece como uma
intervenção do Deus salvador (Is 51,9-10; SI 77,17-20;
Hab 3,8-13). O Deus criador aparece sob a mesma luz
que o Deus do Êxodo: os prodígios da criação, como os
do Êxodo, revelam Javé em seu poder e em seu amor.
Assim como a Aliança é inseparável do Êxodo, tam­
bém Aliança e criação articulam-se estreitamente. A cria­
ção é o quadro, o Tempo da Aliança, o encaminhamen­
to para a Aliança, assim como o Êxodo é finalizado
à Aliança. Ao criar o mundo, Deus já pensava na Aliança,
isto é, no seu plano de amor e de salvação da humanidade

2 P. Biard, La puissance de Dieu (Paris, 1960), pp· 63-69); G.


Lambert, “La création dans la Bible”, Nouvelle Revue Théologique, Ί5
(1953): 274-277
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 439

por meio de Israel3. Estendendo assim até as origens do


mundo a teologia da Aliança, o Antigo Testamento univer­
salizou a Aliança; não apenas Israel, mas o mundo todo
é campo de ação de Javé. Essa teologia da criação desen­
volveu-se durante o exílio, justamente naqueles ambientes
em que Israel tomava claramente consciência de sua voca­
ção universal. Se Javé é o Javé das nações, é porque desde
o começo ele é o senhor absoluto das nações (Is 45,
18-24;51,5)\
Portanto, a criação é para Israel o primeiro capítulo
da história da salvação. No começo, antes de Moisés, Abraão
e Noé, Deus criou, e pela criação iniciou a obra da salva­
ção. A criação é o primeiro dos grandes feitos de Deus.
Os salmos que evocam as mirabilia Dei, relembram em pri­
meiro lugar a criação (SI 136,5-15). No Dêutero-Isaías, a
criação aparece verdadeiramente como o initium salutis, in­
trodução à obra da salvação. Pelo mesmo motivo o Gê­
nesis, cujo relato supõe longa meditação sobre dados mais
antigos, abre-se com a visão da obra criadora. Finalmente,
para toda a tradição cristã há uma continuidade perfeita
entre a palavra criadora e a palavra do Verbo encarnado.
Criação, eleição, lei, profetas, encarnação, constituem as
etapas da salvação. A história da salvação não começa com
a eleição de Abraão, mas com o fiat criador5.
Compreende-se assim que Israel, contemplando a cria­
ção através de sua fé no Deus vivo e salvador, descubra
em toda a criação sua presença e ação. As criaturas nar­
ram o mistério de Deus, de sua sabedoria, de seu poder, de
seu amor, do mesmo modo que a voz do Sinai e dos profe­
tas (SI 19,2). O exército dos céus evoca o poder de Javé
que venceu o Egito e os monstros do mar. Todas as coisas
3 E. Jacob, Théologie de l’Ancien Testament, pp. 110-112; G. von
Rad, “Das theologische Problem des Schopfungsglauben ”, Beihefte zur
A. T. Wissenschaft, 66 (1936): 138-147; testo reapresentado em Gesammel-
te Studien zum A. T. (1958); pp. 136-147.
4 L. Legrand, “La création, triomphe cosmique de Yahvé”, Nouvelle
Revue Théologique 83 (1961): 460-467.
5 Essa é a visão principalmente de santo Agostinho e de santo Irineu.
Cfr. J. Daniélou, Essai sur le mystère de l’histoire (Paris, 1953), pp.
34-35; (Trad, portuguesa: Sobre o mistério da história [S. Paulo, 1964],
pp. 30-31); E. Escoula, “Le Verbe sauveur et illumjnateur chez S. Irénée”,
Nouvelle Revue Théologique, 66 (1939): 551-556.
440 REFLEXÃO TEOLÓGICA

do mesmo modo que o povo eleito, devem sua existência


à iniciativa de Javé que tudo suscitou do nada. Israel olha
para o mundo como um crente que lê e interpreta o uni­
verso a partir de sua fé. É o Deus da história que ele con­
templa no Deus da criação. O mesmo se dá com o cristão,
que contempla no universo a obra do Cristo, Verbo encar­
nado, em quem todas as coisas têm seu ser e consistência
(Jo 1,13; Col 1,16). Nossa fé na criação se insere em
nossa fé no Deus uno e trino.

II. A CRIAÇÃO COMO MANIFESTAÇÃO DE DEUS

Não deixa de ser verdade que, paralelamente a este


conhecimento do Deus criador a partir do Deus da história
e da fé, o magistério da Igreja, apoiado também na Escri­
tura, fala de uma manifestação de Deus e de um autêntico
conhecimento de Deus independentemente de qualquer re­
velação positiva. Antes, pois, de comparar essa manifesta­
ção com a revelação positiva, será conveniente examinarmos
sua natureza. Vejamos primeiro o ensinamento da Igreja.
O primeiro concilio do Vaticano distingue dois tipos
de manifestação divina e, conseqüentemente, duas vias de
acesso ao conhecimento de Deus. O esquema prévio, redi­
gido por Franzelin e entregue aos padres conciliares, fala
da “manifestação natural” de Deus “pelas criaturas” (T.
416, n. 1) e de Deus “que se manifesta pela luz da razão
humana” (T. 416, n. 1). Uma nota acrescentada ao esque­
ma opõe essa “manifestação objetiva de Deus, por meio
das criaturas”, à “revelação” 6. Enquanto o projeto da cons­
tituição fazia assim uma oposição entre manifestação natu­
ral e revelação, o texto definitivo distingue entre conheci­
mento natural de Deus e revelação sobrenatural de Deus:
“Nossa Mãe e Santa Igreja crê e ensina que Deus, princípio
e fim de tudo, pode ser conhecido com certeza com a luz
natural da razão humana, mediante as criaturas. Com efeito,
desde a criação do mundo, graças às suas obras (Rom 1,20),
podemos contemplar pela inteligência o que nele é invisí­
vel. Aprouve contudo à sua sabedoria e bondade revelar

6 Mansi, 50:76-77.
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 441

ao gênero humano também por um outro caminho, sobre­


natural, a si mesmo e os desígnios eternos de sua vontade”7.
Podemos concluir que o conhecimento de Deus mediante as
criaturas e a razão é uma certa revelação ou manifestação
natural de Deus.
O texto conciliar opõe-se a dois erros: o tradicionalis-
mo, que não admite outro meio de chegarmos ao conheci­
mento de Deus a não ser o ensinamento positivo recebido
por revelação e transmitido por tradição, e o agnosticisme
que, sob a -forma do criticismo kantiano ou sob a forma
positivista, julga que a razão humana é incapaz de chegar
ao conhecimento certo de Deus”.
Devemos precisar o alcance do texto conciliar: a) O
concilio afirma a possibilidade, não o fato do conhecimento
de Deus mediante as luzes da razão, b) A possibilidade
desse conhecimento fundamenta-se na própria natureza hu­
mana. Compete ao homem independentemente da revela­
ção e da vocação à vida sobrenatural. Possibilidade que
nunca cessa, mesmo com o pecado, c) É um conhecimento
independente de qualquer forma de revelação pessoal de
Deus ao homem, seja por iluminação interior, seja por re­
velação histórica exterior, d) Não é uma experiência pura­
mente irracional, da ordem dos sentimentos, que não se
possa exprimir conceptual e verbalmente. E um processo
de ordem racional, mediante a causalidade, como vem pre­
cisado no juramento antimodernista (D. 2145). e) Não pre­
tende o concilio que o conhecimento natural de Deus deva
preceder o conhecimento pela fé, numa anterioridade de ori­
gem ou de tempo, mas que nele está ao menos logicamente
implícito, f ) O meio que permite à razão conhecer com certe­
za a Deus, são as criaturas; não apenas as materiais e visíveis,
mas todo ser contingente que nos leva a Deus, g) Falan­
do de Deus princípio e fim de tudo, o concilio não. pretende

7 “Eadem sancta mater Ecclesia tenet et docet. Deum, rerum omnium


principium et finem, naturali humanae rationis lumine- e rebus creatis
certo cognosci posse;- invisibilia enim ipsius, a creatura mundi, per ea
quae facta sunt, intellecta, conspiciuntur'(Rom 1,20); attamen placuisse
ejus sapientiae et bonitati, alia eaque supernatural! via seipsum ac aeterna
voluntatis suae decreta humano generi revelare” (D. 1785).
8 R. Aubert, “Le concile du Vatican et la connaissance naturelle de
Dieu”, Lumière et Vie, mars 1954, pp. 21,41.
442 REFLEXÃO TEOLÓGICA

definir que a criação, no sentido estrito, possa ser demons­


trada pela razão, h) O concilio não diz se de fato esse co­
nhecimento é conseguido em virtude apenas da natureza hu­
mana. Não diz se de fato outras causas, como a graça so­
brenatural, não agem também. Não diz qual é nesse pro­
cesso a parte do discurso racional e qual a parte da deci­
são moral, i) O concilio fala, em seguida, da revelação
sobrenatural como intervenção livre e amorosa que intro­
duz o homem na intimidade de Deus e de seus desígnios.
Se, por sua natureza e pela natureza das coisas, o homem
já tem uma relação com Deus, então podemos compreen­
der melhor como a revelação é verdadeiramente uma graça:
não é uma manifestação que decorra naturalmente nem um
acontecimento que já estivesse na ordem natural das coisas,
nem algo constitutivo da natureza humana. Dirige-se a re­
velação a um ser que já está de posse de sua natureza, in­
dependentemente dessa intervenção, j) O Deus natural­
mente conhecido deve ser um Deus livre, pessoal trans­
cendente ao homem. Caso contrário o homem não podería
estar preparado para o silêncio de Deus nem para a sua
intervenção pela história ou pela palavra. Caso contrário,
ainda o homem não poderia ser acusado de se ter recusado a
ouvir a palavra que lhe fosse pessoalmente dirigida. 1) Se
os padres conciliares declaram que a razão humana pode
chegar ao conhecimento natural de Deus, é indubitavel­
mente porque a negação dessa verdade leva ao ceticismo
religioso. Mais ainda, porém, porque encontram essa verda­
de afirmada na Escritura e em toda a tradição patrística ’.
Também o segundo concilio do Vaticano distingue uma
dúplice manifestação de Deus: uma, pelo testemunho do mun­
do criado, que se dirige a todos os homens; outra, por reve­
lação histórica e pessoal. Afirma que o universo das criaturas
constitui “um testemunho permanente” de Deus para a
humanidade. Faz uma referência à Epístola aos romanos
(Rom 1,19-20) ,0.

9 Sobre o texto do primeiro concilio do Vaticano e sobre seu exato


alcance, cfr.: R. Aubert, “Le concile du Vatican et la connaissance naturelle
de Dieu”, Lumière et Vie, mars 1954, pp. 41-44; K. Rahner, Écrits théolo­
giques, I: 17-23.
10 “Deus, per Verbum omnia creans (cfr. To 1,3) et conservans, in
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 443

Assim, pois, a distinção que o Magistério faz entre a


revelação histórica de Deus e sua manifestação cósmica, in­
dependente de qualquer revelação positiva, é apoiada pela
própria Escritura que também distingue entre essas duas
formas de manifestação divina. Ainda que habitualmente
a Escritura chegue ao Deus criador a partir da fé no Deus
vivo, alguns textos contudo esboçam um processo racio­
nal do espírito em direção a Deus a partir da natureza.
No livro da Sabedoria, aparece explicitamente esse pro­
cesso que alhures (Is 40,12-26) e apenas sugerido. O au­
tor, na parte consagrada à idolatria culta (Sab 13,1-9), alu­
de aos doutos que divinizam as forças da natureza. Esses
pagãos, tão cultos, desconhecem a Deus por não terem se­
guido as indicações da natureza (13,1). Deveria esta tê-
-los levado a reconhecer a existência de um Deus transcen­
dente, autor do universo. São declarados “vãos” (13,1)
e “imperdoáveis” (13,8), pòis sendo sábios e experimenta­
dos no conhecimento da natureza (13,9) não chegaram a
descobrir o Senhor dc universo. Diante do espetáculo das
criaturas, principalmente diante de sua beleza, de sua grande­
za e de seu poder, deveríam ter-se elevado, pela analogia, até
o autor dessa beleza e desse poder. Refletindo sobre as mara­
vilhas da criação, deveríam ter concluído que existe um Ser
supremo que é a sua única fonte. Contudo, a Sabedoria só
indica, sem usá-lo. esse método do conhecimento por ana­
logia. Simplesmente afirma que, despertado pela beleza e pela
grandeza da natureza, o homem pode chegar ao Deus único,
Autor e Senhor de tudo. O espírito humano é capaz de
chegar a essa verdade mediante um processo intelectual, se não
expontâneo, pelo menos relativamente fácil, pois não se
pode fazer calar o mundo que fala de seu autor. É, sem
dúvida, necessário que a alma tenha suficiente sensibilida­
de para o belo e o bem 11.
São Paulo lembra muitas vezes essa manifestação di­
vina mediante a criação: diante dos pagãos de Listra, para

rebus c-eatis perenne sui testimonium hominibus praebet (cfr. Rom


1,19-20)'í Cfr. a Constituição Dei Verbum sobre a Revelação, cap. J.
parágrafo 3.
11 C. Larcher, “De la nature à son auteur d’après le Livre de la
Sagesse”, Lumière et Vie, mars 1954, pp. 53-62.
444 REFLEXÃO TEOLÓGICA

fazê-los perceber a bondade do Criador (At 14,15-17);


diante dos atenienses, para fazê-los compreender que
Deus é espírito (At 17,22-29); em sua Carta aos roma­
nos, para fazer notar “seu eterno poder e sua divindade’*
(Rom 1,20).
Na Carta aos romanos, volta-se o olhar de Paulo para
a situação religiosa da humanidade e ali descobre a ne­
cessidade de salvação para todos: judeus e gentios. Fora
do Evangelho não há senão a cólera de Deus (Rom 1,18-3,
20). Todos os homens precisam do Cristo e de sua reden­
ção, pois todos estão sob o império do pecado12. Mas como
pode a cólera divina voltar-se contra os gentios, sem antes
constar que os gentios são verdadeiramente culpados? Con­
forme Paulo sua culpabilidade está em que eles, tendo tido
um verdadeiro conhecimento de Deus mediante a criação
apesar disso o desconheceram. É esse o pecado primordial
dos gentios, do qual decorrem todos os outros (Rom 1,
24-32). Portanto, se Paulo fala da manifestação do Criador
através das criaturas e do conhecimento que os pagãos tive­
ram de sua lei, é para afirmar que eles não têm escusa, as­
sim como não têm escusa os judeus que transgrediram a
Lei escrita que conheciam. Uns e outros são culpados 13.
Paulo censura os pagãos, primeiramente por terem des­
conhecido o Criador que se lhes manifestava. Com efeito,
Deus, tomando a iniciativa, manifestou-lhes (έφανέρωσεν) 14
o que dele se pode conhecer (γνωστός·), pOis desde a cria­
ção o mundo é como que um livro aberto onde sempre po­
demos 1er as perfeições de Deus. Desde a criação, as perfei-
ções invisíveis de Deus (Αόρατα) tornam-se de certo modo
visíveis (καθοραται) através das suas obras (também nessa
obra por excelência que é o homem): não por uma intui­
ção direta, mas por uma reflexão do espírito que, a partir

12 Como nota Feuillet, são Paulo “se place toujours sur le plan
concret de l’histoire du salut, et ce qu’il veut mettre en lumière, ce
qu’il cherche à exprimer de toutes les façons, c’est le grand tournant
opéré dans cette histoire par le passage de Jésus sur la terre” (A.
Feuillet, “La connaissance de Dieu par les hommes d’après Rom. 1,
18-23”, Lumière et Vie, mars 1954, p. 63).
13 S. Lyonnet, Exegesis epistulae ad Romanos cap. I ad IV (Romae,
1960), pp. 118-119; J. Fuchs, Le Droit naturel, essai théologique (Pa-
ris-Tournai-New-York-Rome, 1960), pp. 18-19.
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 445

do que os olhos vêem, concebe o que eles não podem ver.


Νοούμενα, unido a um verbo que indica percepção, indica a
natureza desse conhecimento 15 : os atributos divinos invisí­
veis “tornam-se visíveis aos olhos da inteligência”. Afir­
ma-se assim que esse conhecimento é intelectual e que dá
plena certeza 16.
O que assim Deus manifesta de si mesmo é principal­
mente seu poder (δύναμις·) e SUa divindade, ou seja, sua
transcendência sobre o mundo, sua majestade divina que
o homem deve adorar. A criação é para a humanidade
manifestação permanente de Deus e de suas perfeições.
Olhando para o mundo, os homens deveríam poder ali re­
conhecer o poder e a majestade de seu Autor: se não o en­
contram, são inescusáveis.
Tendo afirmado o princípio geral, que vale sempre,
são Paulo passa a examinar o fato histórico. Podemos pen­
sar com A. Feuillet que o Apóstolo descreve a queda ori­
ginal da humanidade, sua passagem histórica do monoteís-
mo à idolatria. Primitivamente, os homens, como coletivi­
dade, conheceram a Deus; seu orgulho, porém, fê-los per­
der o senso, tornou-os cegos e surdos para a linguagem da
criação. “Só os simples, os humildes, sabem 1er a glória
de Deus no espelho da criação” 17. Portanto, são Paulo
não afirma apenas a possibilidade de conhecer a Deus ( como
Sab 13 e o primeiro concilio do Vaticano), afirma concre­
tamente que os gentios conheceram a Deus. Os pagãos
tiveram de Deus o conhecimento que implica a obrigação
de reconhecer e venerar o Deus conhecido: eles conheceram
a Deus, mas não o reconheceram como tal. Não o glorifi-

14 É o verbo das teofanias do Antigo Testamento. Essa manifesta­


ção ainda não é a revelação propriamente dita, mas corresponde a um ato
de Deus. É tamanho o poder desse ato de Deus que seus atributos
invisíveis tornam-se patentes. Deus tudo fez, até mesmo tornou visível
seu ser invisível: portanto, os homens não têm desculpa. Cfr. L. Ligier,
Péché d’Adam et péché du monde (2 vol., Paris, 1960-1961, 2: 174-175).
»5 Ibid., 2: 175.
« Ibid., 2: 175.
17 A. Feuillet, “La Connaissance de Dieu par les hommes d’après
Rom 1,18-23”, Lumière et Vie, mars, 1954, p. 75.
446 REFLEXÃO TEOLÓGICA

ficaram (ούκ έδ6ξασαν; não reconheceram a sua excelência),


não lhe renderam graças (ούκ ηύχαρίστησαν. não rende­
ram o devido culto) Paulo censura os pagãos não apenas
por não terem conciliado sua conduta moral com seu co­
nhecimento de Deus (religião e moral); censura-os por não
terem conciliado sua religião (louvor e ação de graças) com
o seu conhecimento de Deus. Em seguida, como o livro
da Sabedoria, apresenta todas as desordens morais como
uma conseqüência desse desconhecimento de Deus 19.
O conhecimento de Deus de que fala são Paulo não
é, pois, fruto da revelação, judaica ou cristã, nem de uma
revelação feita a Adão e transmitida a seus descendentes.
É, antes, um conhecimento adquirido com as luzes da razão
que reflete sobre as obras da criação. Sem dúvida, esse
conhecimento pode muito bem ser ajudado pela graça e
Paulo, mais que ninguém, sabe que judeus e pagãos estão
sob a influência da graça do Cristo. Isso, porém, em nada
muda o fato que o conhecimento que os pagãos tiveram
de Deus e da necessidade de reconhecê-lo foi deduzido pela
razão a partir da criação visível. Indicando a fonte (o mun­
do criado) e a força (a razão) das quais procede esse co­
nhecimento natural de Deus, são Paulo dá a entender, im­
plicitamente, que se refere a um conhecimento natural de
Deus, independente do Cristo e de seu Evangelho. E expli­
citamente ele afirma que a criação é uma manifestação per-

18 São os dois verbos que a Escritura habitualmente usa para expri­


mir o dever do homem para com Deus (Lc 17,16-18; At 12,21ss; Jo
9,24; Rom 4,21). D. Dupont tem razão quando faz notar que são
Paulo distingue duas etapas ao falar dos pagãos. O conhecimento de
Deus, obtido por inferência a partir das criaturas, deveria levar a um
segundo passo: prestar a Deus a glória e as ações de graça. Os pagãos
não deram esse segundo passo: conheceram a Deus, mas não o honra­
ram como tal. Conseqüentemente chegaram a uma situação antinatural
de separação entre o conhecimento de Deus e a homenagem religiosa
que é sua conseqüência natural e necessária. Evidencia-se assim a culpa­
bilidade dos gentios (J. Dupont, Gnosis, la Connaissance religieuse dans
les épîtres de S. Paul, pp. 29-30).
19 Sobre Rom 1,18-23, cfr. S. Lyonnet, Exegesis epistulae ad Ro­
manos, cap. I ad IV (Romae, 1960), pp. 118-122; Id., Quaestiones in
epistolam ad Romanos (Romae, 1955), pp. 68-108; J. Dupont, Gnosis,
pp. 21-30; A. Feuillet, “La connaissance naturelle de Dieu par les
hommes d’après Rom. 1,18-23”, Lumière et Vie, mars, 1954, pp. 63-80;
L. Lieger, Péché d’Adam et péché du monde, 2: 174-179.
REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 447

manente de- Deus e de suas perfeições. Deus, pois, de dois


modos, comunica-se, com o homem: pelas obras da criação
e pelos acontecimentos da história20.

III. REVELAÇÃO NATURAL E REVELAÇÃO SOBRENATURAL

Baseados assim na Escritura e no Magistério, geral­


mente os teólogos distinguem duas formas de revelação: a
natural, impropriamente chamada revelação, é a sobrenatural,
revelação no sentido próprio. Vamos compará-las entre si.
1. O conhecimento de Deus a partir do mundo já é,
em certo sentido revelação; pois é um dom de Deus e uma
manifestação sua que leva o homem à homenagem religio­
sa. Primeiramente é um dom de Deus. Nesse conheci­
mento tudo é dom: Deus é o autor do mundo, da natu­
reza humana, da luz que nos permite interpretar o mundo.
Se o nosso espírito se eleva para Deus, mais ainda Deus
desce a nós pela criação. Dele vem a iniciativa dessa ma­
nifestação, como o nota são Paulo: “Deus manifestou aos
homens o que dele se pode conhecer” (Rom 1,19). A con­
clusão é nossa; mas o sinal que provoca e permite a de­
monstração, a luz que a garante, tudo isso vem de Deus. É
Deus que nos faz um sinal. Mais ainda: normalmente essa
iniciativa é acompanhada de graças atuais que facilitam a
interpretação e possibilitam percebér a Presença"
Ela é uma manifestação segura do Deus desconhecido.
Pois o universo não é simplesmente uma coisa, mas uma
criatura. É um sinal que aponta para seu autor: não um
sinal artificial, forjado casualmente, por convenção. É sinal
natural, necessário, radicado numa relação objetiva entre o
criador e a criatura. Não é arbitrariamente que Deus convi­
da o homem a descobrir, nas obras visíveis da criação, suas
perfeições invisíveis. O convite fundamenta-se na relação
ontológica entre Deus e o mundo. Se Deus é o criador de
tudo, é impossível que não exista uma semelhança entre
a criatura e o criador, pois a criatura recebe todo o seu

20 J. Fuchs, Le droit naturel, Essai théologique, pp. 18-19.


21 H. de Lubac, Sur les chemins de Dieu (Paris, 1956), pp. 109-110.
448 REFLEXÃO TEOLÓGICA

ser da causa criadora. Se Deus é a plenitude do ser e da


perfeição, toda criatura necessariamente recebeu dessa ple­
nitude e dessa perfeição. Na criação material, o Deus es­
piritual transparece, ainda que obscuramente. Pelo seu po­
der, sua imensidade, sua ordem, sua beleza, o universo orien­
ta-nos para seu autor, indica sua presença e deixa perceber
alguns traços de seu Ser, fonte dessas perfeições. Princi­
palmente o homem, espírito e vontade, mais ainda que o
mundo físico, reflete a perfeição de seu autor: leva em si
os traços de Deus, feito que foi à sua imagem.'Ainda mais:
tendo Deus criado essa sua imagem segundo uma natureza de­
terminada, com determinadas relações para com Deus, com
o mundo e com os homens, por isso mesmo já está revelan­
do sua vontade a respeito do homem. E o homem, ser es­
piritual e consciente, pode discernir, nas características pró­
prias de seu ser, a expressão da vontade divina sobre a cria­
tura racional composta de corpo e alma. A vontade divina,
que se exprime nas leis físicas do mundo inanimado, expri-
me-se para o homem na lei de sua natureza. O homem,
como todo o universo que o cerca, é uma revelação divina
em açao™. No contexto, porém, dessa revelação em ação,
que é uma linguagem implícita, Deus interpelou a humani­
dade com uma palavra explícita e pessoal, para sancionar,
explicar e completar essa primeira forma da manifestação.
Finalmente, a manifestação de Deus pela criação traz
para o homem a obrigação de render-lhe a homenagem reli­
giosa que lhe é devida, pela glorificação e pela ação de
graças. São “inescusáveis” os que não reconheceram a Deus
nem lhe renderam essa homenagem (Rom 1,20;2,14-16;
Sab 13,1.8).
2. Contudo, há diferenças profundas entre revelação
natural e revelação sobrenatural.
A revelação natural é assim denominada porque se
insere na ordem das coisas, porque existe pelo simples fato
da criação. Seu ponto de partida são as criaturas; sua luz,
a luz inata da razão. Atinge a Deus como autor do mun­
do, em sua relação causai. Atinge a Deus na criatura, pela
criatura, como fundamento da criatura. Descobre sua von-

22 J. Fuchs, Le droit naturel, Essai théologique, pp. 58-59.


REVELAÇÃO E CRIAÇÃO 449

tade não como se lhe fosse manifestada, mas como implica­


da numa ordem estabelecida. Sem dúvida, descobre um
Deus presente e pessoal, escapa-lhe, porém, o mistério dessa
pessoa. Chega ao limiar do mistério, mas nele não pode
penetrar. A presença pela criação é como a presença me­
diante um objeto fabricado, em oposição à presença me­
diante o corpo vivo. É, sob muitos aspectos, uma presença
pálida e indeterminada. Para o homem concreto, pois, ela
permanece muitas vezes obscura, difícil, cheia de enigmas.
Devido ao pecado do homem, ao seu orgulho, à fraqueza
de seu coração, há sempre a tendência para confundir com
a natureza o seu autor.
A revelação sobrenatural, pelo contrário, tem como
princípio a iniciativa benévola e gratuita do Deus uno e
trinó, autor da ordem sobrenatural. Tem por fim imediato
a fé, mas mediante a fé tende para o encontro, a visão do
Deus vivo. Sua luz é a luz profética ou a luz da fé. Tem
por objeto os próprios mistérios da vida íntima de Deus.
Essa revelação inicia um diálogo, uma amizade, uma co­
munhão, uma partilha de bens entre Deus e sua criatura23.
3. Em última análise, o que distingue ambas as for­
mas de revelação é que somente na revelação da graça se
verificam no sentido estrito as noções de palavra e de teste­
munho. Não há dúvida que o mundo existe como resul­
tado de um ato livre de Deus, por ele pensado e querido,
e como tal ele é proferido por Deus. Sem dúvida, também,
na revelação natural o objeto ( a criação ) e o sujeito
(a razão humana) foram queridos por Deus para que seu
encontro produzisse o conhecimento de Deus. Contudo,
esse conhecimento e essa vontade não bastariam para que
houvesse uma palavra e um testemunho propriamente ditos.
O homem que contempla a criação não se sente interpela­
do; não deve responder a um apelo, mas decifrar um objeto
ante ele colocado. A criação remete a Deus como à sua
causa. Trai sua presença e manifesta suas perfeições. Ela

23 Na revelação mediante a criação, tudo é obra de Deus: por isso


a ação divina dilue-se até certo ponto no anonimato das coisas comuns e
ordinárias. Pelo contrário, na revelação sobrenatural os homens percebem
uma iniciativa nova, gratuita, não exigida pela simples existência do
mundo.

15 - Teologia da revelação
450 REFLEXÃO TEOLÓGICA

fala de Deus, mas Deus mesmo não fala, não entra em


diálogo. Deus é como alguém presente que se mantém ca­
lado. O encontro do homem com o universo não chega ao
assentimento da fé, mas a uma atitude existencial: home­
nagem e adoração. Pelo contrário, na revelação sobrena­
tural Deus intervém pessoalmente, num ponto dado da his­
tória e do espaço. Estabelece com o homem um diálogo
de amizade, descobre-lhe o mistério de sua vida íntima e
seu desígnio de salvação, convida-o à comunhão pessoal de
vida e de bens. Pela fé o homem, assim diretamente in­
terpelado, responde livremente ao apelo pessoal de Deus
e entra em Aliança com ele. A revelação natural não tem
essa característica de palavra e de testemunho. Por isso se
lhe dá o nome de revelação impropriamente dita. Estamos
diante de duas formas de manifestação divina e de duas
ordens de conhecimento: “A Igreja católica, diz o primeiro
concilio do Vaticano, sempre afirmou unanimemente, e ain­
da o afirma, que há duas ordens de conhecimento, distin­
tos não só por seu princípio, mas também por seu objeto.
Por seu princípio: pois numa é a razão natural; noutra, a
fé divina que nos faz conhecer. Por seu objeto: porque,
além das verdades que a razão natural pode atingir, nos
são propostos a crer os mistérios ocultos em Deus, que não
podem ser conhecidos se não forem revelados do alto. É
por isso que o Apóstolo, que testemunha que Deus foi co­
nhecido pelos gentios através de suas obras (Rom 1,20),
quando fala da “graça e da verdade dadas por Jesus Cristo”
(Jo 1,17 )declara: “Nós pregamos a sabedoria de Deus no
mistério, sabedoria escondida, que, antes dos séculos, Deus
já havia predestinado para a nossa glória. Nenhum dos
príncipes deste mundo a conheceu. . . a nós Deus o revelou
por meio do Espírito, porque o Espírito perscruta todas as
coisas, até as profundezas de Deus” (ICor 2,7-8.10)24.

2« D. 1795.
5.

HISTÓRIA E REVELAÇÃO

Na teologia protestante contemporânea há uma forte cor­


rente de pensamento que tende a levantar uma oposição en-
J tre revelação-ação e uma revelação-doutrina, entre uma re-
velaçao-acontecimento-da-salvação e uma revelação-aconteci-
mento e, portanto, também uma oposição entre um Deus
que age e um Deus que fala. Essa corrente de pensamento
salienta que Javé é um Deus que intervém no campo da his-
■ tória humana e que a revelação se apresenta antes de tudo
como uma série de acontecimentos cujo sujeito é Deus. A
revelação é a gesta de Deus - na história \ G. E. Wright
observa que a Bíblia, mais do que a Palavra de Deus, é
relato dos atos de Deus2.
É verdade que o Deus do Antigo e do Novo Testamen­
to é um Deus que irrompe no campo da história humana
e que ali se manifesta pelas grandes obras que realiza. O
Antigo Testamento narra as mirabilia Dei em favor de seu
Ipovo. Os profetas a elas se referem continuamente, os sal­
mos as celebram e as festas litúrgicas as comemoram. O
Novo Testamento é a Boa-nova do que aconteceu em Jesus

1 Textos expressivos dessa maneira de pensar encontram-se em: J.


Baillie, The Ideal of Revelation in Recent Thought (New York and
London, 1956), pp. 50-62ss; K. S. Kantzer, “Revelation and Inspiration
in Neo-Orthodox Theology”, Bibliotheca Sacra. A Theological Quarterly,
115 (1958): 120-127, 218-228. Diversos protestantes, porém, reagem
fortemente contra essa concepção unilateral de uma revelação-ação. Por
ex: H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testament
(Oxford, 1956), pp. 43, 45; A. Richardson, Christian Apologetics
(London, 1955), p. 145; D. B. Knox, “Propositional Revelation the only
Revelation”, The Reformed Theological Review, 19 (1960): 1-9; C. H.
Dodd, La Bible aujourd’hui (Tournai-Paris, 1957), p. 58. Sobre a posição
católica, cfr.: R. Schnackenburg, “Zum Offenbarungsgedanken in der
Bibel”, Biblische Zeitschrift, 7 (1963): 2-13.
2 G. E. Wright, God who acts (London, 1952), p. 107.
452 REFLEXÃO TEOLÓGICA

Cristo. É inegável essa historicizaçao, e a teologia católica


sublinha-a. Mesmo assim, porém, seria inevitável uma dis­
junção entre o Deus que age e o Deus que fala? Estaria
objetivamente fundamentada, apoiada na Escritura? Ou,
levantando doutro modo a questão, quais são as relações
entre a história e a revelação? Há uma oposição entre histó­
ria e doutrina?

I. A HISTÓRIA, LUGAR DA REVELAÇÃO

Atualmente é quase um lugar comum afirmar que os he­


breus foram os primeiros a opor uma concepção linear do
tempo a uma sua concepção cíclica, os primeiros também
a valorizar a história como epifania de Deus3. Em Israel,
pela primeira vez, deu-se o encontro entre a revelação e a
história. Quase não se encontra, fora de Israel, solidamente
afirmada a idéia de uma sucessão contínua de acontecimentos
temporais abraçando o passado, o presente e o futuro, en­
cadeados segundo uma direção e uma meta. Entre os an­
tigos povos politeístas volta-se a atenção primariamente
para a natureza. Atento ao ritmo dos astros e das estações
(ritmo de nascimento e de morte), o homem procura sua
segurança integrando-se nesse ritmo e na sua repetição anual.
As religiões da índia, da China e da Pérsia estão centra­
das muito mais numa sabedoria que numa história. O
tempo indiano é um tempo cíclico. Mais precisamente, M.
Eliade distingue no tempo indiano três planos: o tempo
individual, fluxo contínuo de instantes irreais; o tempo
cósmico, eterna repetição de um mesmo ritmo (criação,
destruição, recriação), ritmo que por sua vez se insere em
ciclos enormes, com números espantosos; finalmente, o ins­
tante intemporal, fora do tempo, imóvel, eterno presente.
O importante é que o homem se liberte do tempo cósmico,
transcendendo-o. Com isso o tempo é desvalorizado ante a
eternidade; mais ainda: é um obstáculo que o homem deve
suplantar para ser libertado. O tempo indiano é escandido,
3 M. Eliade, Le mythe de Γéternel retour (Paris, 1949), pp. 154-
-155; P. Grelot, Sens chrétien de l’Ancien Testament (Paris, 1962),
p. 114.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 453

mas não é centrado; é um tempo infecundo4. Mesmo o


helenismo, em seu conjunto, permanece preso a uma con­
cepção cíclica das coisas. O tempo grego é um tempo de-
sesperador: sem origem, sem momento privilegiado, sem
significação, sem nexo com a liberdade e a salvação do ho­
mem. A história, como concebida por Heródoto e Tucí-
dides, é, sem dúvida, um movimento, não, porém, uma
teleologia. Para fugir ao ciclo fatal que arrasta os próprios
deuses, é preciso que o homem se liberte do tempo. A sal­
vação, para o grego, não pode resultar de um acontecimento
da história5.
Israel foi o primeiro a romper o círculo fatídico das
estações e das repetições que cercava o mundo antigo: rom­
peu com a mudança que nada mais é que contínuo reco­
meçar. Para Israel, o tempo é linear-, tem um começo e um
fim. A salvação realiza-se numa história temporal: está ligada
a uma sucessão de acontecimentos, que se desenrolam segun­
do um plano divino, e que se encaminham para um fato
único: a morte e a ressurreição do Cristo6. Israel vive em
a natureza, mas a história é o centro de sua atenção. O que
tem importância não é o ciclo anual em que tudo recomeça:
o importante é o que Deus, faz, fez e fará segundo suas
promessas. Promessa e realização constituem o dinamismo
desse tempo de tríplice dimensão. O presente inicia o fu­
turo anunciado e prometido no passado7. As festas anuais

4 M. Eliade, Images et Symboles (Paris, 1952), cap. II; J. Mou-


roux, Le mystère du temps (Paris, 1962), pp. 49-50; L. Silburn, Instant
et cause (Paris, 1955); J. Monchanin, “Le temps selon l’hindouisme
et le christianisme”, Dieu Vivant, n. 14 (1949), pp. llss.
5 O. Cullmann, Christ et le temps (Neuchâtel, 1957), pp. 36-37;
G. E. Wright, God who acts, pp. 39-42; J. Mouroux, Le mystère du
temps, pp. 48-49; C. Mugler, Deux thèmes de la cosmologie grecque-,
devenir cyclique et pluralité des mondes (Paris, 1953); J. Moreau, L’idée
d’univers dans la pensée antique (Turin, 1953); C. Puech, “La gnose
et le temps”, Eranos Jahrbuch, 20 (1951): 60-76: M. Eliade, Le mythe
de l’éternel retour (Paris, 1949).
6 O Cullmann, Christ et le temps, pp. 22-23. Sobre o tempo bíbli­
co, cfr.: G. Pidoux, “A propos de la notion biblique du temps”, Revue
de théologie et de philosophie, 3e série II (1952), pp. 120-125; R. Mar­
tin-Achard, “La signification du temps dans l’Ancien Testament”, Revue
de théologie et de philosophie, Y série IV (1954), pp. 137-140.
7 E. Dardel, “Magie, mythe et histoire”, Journal de psycologie, 43
(1950): 217-221.
454 REFLEXÃO TEOLÓGICA

(Páscoa, na primavera e Tabernáculos no outono) são mais


lembranças dos atos salvadores de Deus do que atos do
drama cíclico da natureza.
Israel pode romper com a concepção cíclica do tempo
porque encontrou a Deus na história. Proclama Israel que
Deus interveio em sua história, que esse encontro acon­
teceu um dia e transtornou sua existência. Seu Deus não
está mergulhado em a natureza: é um Deus vivo, pessoal,
soberanamente livre, que se manifestou exatamente onde
se manifesta a vontade, isto é, nos acontecimentos. A re­
velação veterotestamentária não acontece no tempo mítico,
“no instante extratemporal do começo”, mas sim na dura­
ção do tempo histórico8. Moisés recebeu a Lei em certo
lugar e em certa data: é um acontecimento irreversível, que
não se repetirá. O mesmo se dá com as outras manifesta­
ções de Deus ’. A história é, pois, o lugar da revelação. O
judaísmo, o cristianismo e o islamismo são as únicas re­
ligiões que reivindicam assim uma revelação que tem por
base a história 10. Nessa concepção de um Deus vivo que
se revela na história está o essencial da fé de Israel em
Deus “ .
Essa concepção de uma revelação na história tem duas
conseqüências. Primeira, valoriza a história. Se Deus in­
tervém na história para através dela manifestar sua von­
tade, os próprios acontecimentos históricos adquirem nova
dimensão: tornam-se portadores das intenções de Deus e
dão à história um sentido, uma direção. Os outros povos,
porque não conheceram o Deus da história, não têm pos­
sibilidade de interpretar a história; são inconscientes de seu
papel e, nos momentos de crise, já não sabem como se orien-

8 M. Eliade, Le mythe de l’éternel retour, pp. 156-157.


9 Não repetimos nem a Páscoa nem a Aliança: nós as celebramos.
Como o nota J. Mouroux, o cristianismo é a religião do Epaphax, não
da repetição. A redenção atualiza-se, aplica-se, mas não se repete. (J.
Mouroux, Le mystère du temps, p. 219).
10 H. W. Robinson, Redemption and Revelation (London, 1947),
p. 162.
11 J. Daniélou, Essai sur le mystère de Thistoire (Paris, 1953),
pp. 9ss). Sobre a história (São Paulo, 1964), pp. 7ss); G. Auzou, La
Parole de Dieu (Paris, 1960), p. 169; Th. C. Vriezen, An Outline of
Old Testament Theology (Oxford, 1958), pp. 29-30.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 455

tar u. Em segundo lugar, a idéia duma revelação na histó­


ria dá à revelação uma intensa característica de atualização.
Deus é aquele que a todo instante pode intervir e mudar
o curso dos acontecimentos: está próximo, está aqui, im­
previsível em suas intervenções como em seus efeitos. É
preciso estar sempre atento à sua vinda.

II. A HISTÓRIA DA REVELAÇÃO

Sobre as intervenções de Deus na história nada pode­


mos dizer nem predizer. Tudo depende de sua livre deci­
são. Em Deus nada existe que exija que ele intervenha
neste momento e não naquele outro, que intervenha mais
vezes ou menos. Nem tampouco há no homem algo que
exija que Deus se lhe dirija. A revelação é um aconteci­
mento livre é gratuito. As intervenções divinas sucedem-
-se através de vários séculos. Deus não disse nem fez tudo
de uma só vez; interveio nos momentos oportunos, por ele
escolhidos. O tempo do Antigo Testamento é escandido
por momentos significativos. “Não são todos os pontos da
linha contínua do tempo que formam a história da salvação
propriamente dita, são os kairoi, esses pontos isolados no
conjunto do curso do tempo”13. Há, portanto, uma histó­
ria da revelação, história que não coincide com a história
universal. A revelação constituiu-se pouco a pouco, pro­
grediu em quantidade e qualidade, à medida que os séculos
vão passando e que Deus intervém (Hebr 1,1). As inter­
venções de Deus constituem, na história universal, como
que afloramentos do divino no tempo. Mas por isso não
são pontos isolados, não relacionados entre si: as interven­
ções divinas guardam uma coerência íntima. De Abraão
a Jesus Cristo, traça-se uma linha, pouco a pouco transpa­
rece um desígnio que é o plano divino, a economia da sal­
vação. Nenhuma das intervenções divinas se compreende

12 G. E. Wright, God who acts, pp. 24-26; M. Eliade, Le mythe


de l’éternel retour, pp. 154-155.
13 O. Gullmann, Christ et le temps, p. 28; K. Rahner, Écrits
théologiques (Bruges, 1959), 1:25-26; J. Mouroux, Le mystère du temps,
p. 85; P. Grelot, Sens chrétien de l’Ancien Testament, p. 112.
456 REFLEXÃO TEOLÓGICA

a não ser como parte dessa economia. Esse desígnio, ini­


cialmente restrito a Israel, alarga-se às proporções da hu­
manidade, e depois na Igreja tende a englobar os homens
de todos os tempos 14.
Se Deus interveio em momentos determinados, pode­
mos traçar uma história da revelação, ou seja, dessas suces­
sivas intervenções de Deus. Qual é essa história que é
propriamente a história da salvação?
No começo da revelação veterotestamentária estão pri­
meiramente os acontecimentos que marcaram o nascimento
de Israel como povo e que revelaram Deus como o Deus
da história, agindo na história 15. São os fatos do Êxodo,
da Aliança, da entrada na Terra prometida. Acontecimen­
tos estreitamente ligados entre si. O fato primordial é a
libertação de Israel, tirado da servidão do Egito. Liberta­
ção que é obra de Javé, pois ele forçou o faraó, pelas pragas
do Egito, a libertar Israel (Êx 12,31-32), foi ele que no
refluxo do mar Vermelho completou a derrota dos egípcios
(Êx 14,27-28). Por ocasião do Êxodo mostrou-se Deus
como todo-poderoso e salvador (Êx 14,31). A experiência
desse primeiro encontro com Deus marcou profundamente
a consciência de Israel; e já desde o começo também marcou
a revelação como histórica16. Jamais Israel deixará de se
considerar como o povo da libertação-operada-por-Javé.
A libertação e a segregação têm em vista um desígnio.
As tradições referentes ao Sinai (Êx 19-25) mostram que
a libertação foi feita tendo em vista a Aliança. A eleição, o
Êxodo, e mesmo o dom da Terra prometida, acontecem para
a Aliança. Essa é que dá sentido ao Êxodo e que faz das tri­
bos que saíram do Egito uma comunidade religiosa e polí­
tica 17. Deus associa a si um povo que ele literalmente
criou (Êx 16,1-9), como criara Adão, como mais tarde

14 J. Mouroux, Le mystère du temps, pp. 18-19; R. Schnackenburg,


“Zum Offenbarungsgedanken in der Bibel”, Biblische Zeitschrift, 7
(1963): 3-7.
15 W. Eichrodt, “Offenbarung und Geschichte im Alten Testament”,
Theologische Zeitschrift, 4 (1948): 321-322.
16 W. Eichrodt, op. cit., p. 322; G, E. Wright, God who acts,
p. 44.
w G. E. Mendenhall, Law and Covenant in Israel and the Ancient
Near East (Pennsylvania, 1955), p. 5.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 457

criará a Igreja. Israel foi salvo de graça para ser o povo


de Javé w. Deus forma para si um povo, e para marcar bem
a intimidade dessa associação, revela-lhe seu Nome, isto é,
seu ser pessoal. Revela-se Deus como uma pessoa que pode
ser invocada e que responde ao apelo do homem. Assim
a Aliança inaugura entre Deus e seu povo relações inter­
pessoais. Ela comporta também um regime de obrigações
baseado na libertação 19. Israel compromete-se a ser fiel às
cláusulas da Aliança, isto é, a obedecer à Lei de Javé (Êx
19,3-6; Dt 7,7-14 ). A fidelidade à Lei fará de Israel um povo
santo, consagrado a Javé (Dt 7,6;26,17-19), chamado a
glorificar seu nome entre as nações20. A entrada na Terra
prometida completa o que Deus começara no Egito. É o
cumprimento da promessa feita a Abraão (Gên 17,3-8) e
o primeiro testemunho da fidelidade de Javé à sua Aliança.
Nesse primeiro encontro de Javé com seu povo tudo é
graça: a libertação, a Aliança, o dom da Terra prometida.
Se a esses acontecimentos, que constituem o germe da re­
velação veterotestamentária, acrescentamos a monarquia e
o messianismo real, o templo e a presença de Javé, o exílio
e a restauração, teremos então o essencial dos acontecimen­
tos que não cessarão de alimentar a reflexão religiosa de
Israel21. Tudo o mais é apenas o seu desenvolvimento orgâ­
nico e sua conseqüência homogênea. Principalmente a reve­
lação profética simplesmente retoma e aplica ao desenrolar
da história as implicações do regime da Aliança. Os profetas,

18 Ibid., p. 25.
19 Ibid., pp. 37, 43. A aliança mosaica recebeu sua estrutura lite­
rária da estrutura literária dos tratados hititas. Nesses tratados há um
prólogo com dois aspectos: a) um aspecto ético·, o rei lembra ao cliente
os favores que lhe fez, para lhe suscitar o reconhecimento e o desejo
de servir a um tal senhor; um aspecto jurídico: os favores conferem ao
rei o direito de impor as obrigações estipuladas no contrato. Encontra­
mos essa mesma estrutura na Aliança de Javé com Israel: são relembra­
dos os benefícios divinos (Jos 24; Dt 6,10-19), enumeram-se as obriga­
ções da Aliança e as bênçãos de Javé. O Êxodo é o acontecimento sal­
vifico por excelência que dá a Javé o direito de exigir o serviço de Israel
e que leva este a fazer a Aliança. Cfr. W. Moran, “De foederis mosaid
traditione”, Verbum Domini, 40 (1962): 3-17.
20 P. van Imschoot, Théologie de VAncien Testament, I: 237-259.
21 Entre os temas secundários devemos acrescentar: a criação, subor­
dinada também à eleição e à aliança, o tempo dos patriarcas, subordinado
à aliança mosaica.
458 REFLEXÃO TEOLÓGICA

exprimindo a vontade de Deus sobre os acontecimentos de


seu tempo, à luz da Aliança e do Espírito, fazem crescer e
aprofundam o conhecimento de Deus. Continuamente evocam
o primeiro encontro de Javé com seu povo. No tempo do exí­
lio, principalmente, Ezequiel e o Dêutero-Isaías retomam
o tema do Êxodo e da Terra prometida. Haverá um novo
deserto, um novo pastor, um novo Moisés, a libertação será
um novo Êxodo seguido de uma nova Aliança22. Como vemos,
é uma revelação muito concreta. Por isso também são mui­
to concretas as confissões de fé de Israel. Os mais antigos
“Credos” do Antigo Testamento são apenas relatos sucintos
dos atos salvadores de Deus23. É sempre o mesmo tema
essencial: Deus escolheu nossos pais e prometeu-lhes a terra
de Canaã; a descendência de Abraão tornou-se um grande
povo, mas depois de longa estada no Egito esse povo foi
reduzido à escravidão; Deus teve compaixão de seu povo e
libertou-o; com maravilhas de poder, conduziu-o pelo de­
serto e introduziu-o na Terra prometida. São os fatos con­
fessados no Dt 26,5-9;6,20-24;24,2-13. Também os salmos,
que são a oração de Israel, tomam muitas vezes a forma
narrativa. Israel incorpora à sua oração sua própria histó­
ria e encontra nessa lembrança um motivo de contempla­
ção, de confiança, de reconhecimento, de contrição (SI 78;
105;107;77;114;136;44).

III. A REVELAÇÃO PELA HISTÓRIA

Assim Deus age na história; revela-se pela história.


Essa afirmação deve ser explicitada. Em que sentido pode­
mos falar da história enquanto revelação? Inicialmente di­
gamos que por história não entendemos o simples curso dos
acontecimentos e o seu registro material, mas somente os
acontecimentos que, em razão de sua importância para a
comunidade hebraica, merecem ser conservados. Mas não basta
essa primeira distinção. Para podermos falar de revelação

22 E. Jacob, Théologie de l’Ancien Testament, pp. 156-157.


23 G. E. Wright, God who acts, pp. 28, 70-72; G. von Rad Théolo­
gie des Alien Testaments (München, 1957), I: 117-118, 135-137.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 459

pela história é preciso que duas realidades estejam unidas:


o acontecimento e a palavra.
Os acontecimentos podem ser de natureza muito di­
versa. Podem ser verdadeiros milagres, como convém ao
estabelecimento de uma religião sobrenatural; mas podem
ser também acontecimentos que resultam do simples jogo das
causas naturais, que como tais não vão além da ação divina
ordinária. O acontecimento pode ser ao mesmo tempo mi­
lagre e acontecimento providencial, ambos os elementos
mesclando-se de maneira inextricável. Por exemplo, no caso
do Êxodo. A êsse tipo de acontecimento de ordem física
devemos acrescentar ainda acontecimentos de ordem polí­
tica, social ou moral, como as vitórias ou derrotas dos exér­
citos, crimes e obstinação dos reis, infidelidades coletivas
que são para Deus ocasiões para manifestar sua vontade.
Realmente existe um agir divino objetivo na história
(providencial ou miraculoso), e é fato também que a re­
velação veterotestamentária se apresenta como a experiência
da ação dum poder soberano que dirige o curso da história
e da existência individual. Ação, contudo, que não se torna
plenamente compreensível como revelação a não ser que
venha acompanhada pela palavra que exprime o sentido do
agir divino. Deus ao mesmo tempo faz o acontecimento
de salvação e explica sua significação; Deus intervém na
história e diz o sentido de sua intervenção; Deus age e co­
menta sua ação.
Israel, no começo de sua história, viveu um certo número
de acontecimentos: libertação da escravidão, marcha pelo
deserto, entrada em Canaã. Más, o que seriam esses aconte­
cimentos sem a palavra que Deus em segredo dirige a Moi­
sés (Êx 3-4;6,l), e sem a palavra de Moisés que em nome
de Deus manifesta a Israel o sentido dessa história e lhe
descobre sua dimensão sobrenatural? Sem dúvida que a saída
do Egito não seria nada mais que uma migração de povos,
uma entre tantas outras; não se teria tornado fato tão fun­
damental sem a interpretação de Moisés (Êx 14,31 ) *.
Essa própria interpretação transformou-se num aconteci-

24 H. W. Robinson, Inspiration and Revelation in the Old Testa­


ment, pp. 43,45; E. Jacob, Théologie de l’Ancien Testament, p. 167.
460 REFLEXÃO TEOLÓGICA

mento que dirigiu a história ulterior. Através da interpre­


tação de Moisés, Deus revelou-se aos contemporâneos e às
gerações futuras25. A estrutura da revelação é sacramental:
os fatos e acontecimentos são iluminados pela palavra.
O profeta é o testemunho e o intérprete qualificado
da história, aquele que lhe descobre a significação sobrenatu­
ral. No Antigo Testamento encontramos duas linhas comple­
mentares: a linha dos acontecimentos e a linha dos profetas,
que interpretam os acontecimentos, proclamando em nome
de Deus o seu significado. Revela-se Deus pela história,
mas pela história divinamente interpretada pelos profetas.
A história somente se manifesta como história da salvação
quando comentada autoritativamente pela palavra do pro­
feta, que descobre para Israel a presença e o conteúdo da
ação divina. A ação divina oculta no acontecimento histó­
rico exige, para ser plenamente apreendida, a palavra que a
completa. É pelos profetas que Israel toma consciência da
ação divina salvifica na história. O acontecimento histórico,
como revelação de Deus, precisa receber seu sentido da pa­
lavra viva do profeta (Am 3,7; Is 42,9) 26. Devemos, pois,
distinguir: o acontecimento histórico (real, objetivo) e o
acontecimento da palavra (real, objetivo) que acompanha o
acontecimento histórico. É preciso salientar que é o acon­
tecimento da palavra que consagra o acontecimento histó­
rico como acontecimento revelador, pois é a palavra do pro­
feta que esclarece o acontecimento e o propõe à fé como
acontecimento de salvação, atestado por Deus27.
O processo revelador compõe-se, em sua totalidade,
dos seguintes elementos: a) o acontecimento histórico; b)
a revelação interior que dá ao profeta a compreensão do
acontecimento, ou pelo menos reflexão do profeta, dirigida
e iluminada por Deus; c) a palavra do profeta que apre­
senta o acontecimento e sua significação como objetos do
25 H. W. Robinson, Redemption and Revelation, pp. 182-183.
26 E. Schillebeeckx, “Parole et sacrement”, Lumière et Vie, 9
(1960): 27-28; H. M. Féret, Connaissance biblique de Dieu (Paris, 1955),
pp. 36-40; A. Liège, “Le ministère de la parole: du kérygme à la caté­
chèse”, em: La Parole de Dieu en Jésus-Christ (Paris, 1961), p. 171;
N. Dunas, “Pour une proposition kérygmatique de l’Évangile aujourd’hui”,
em: L’annonce de l’Évangile aujourd’hui (Paris, 1962), p. 243.
27 K. Rahner, Écrits théologiques, I: 26.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 461

testemunho divino. É a complementariedade do aconteci­


mento histórico e do acontecimento da palavra (palavra de
Deus ao profeta e palavra do profeta ao povo de Israel)
que faz a revelação crescer. Os momentos reveladores da
história são sempre marcados pela aparição de um ou de
vários profetas. A simples presença de profetas significa
que Deus está agindo na história28.
Em o Novo Testamento a estrutura da revelação não
difere da do Antigo Testamento. O Cristo é aquele que
veio, que realizou a obra do Pai, e que por isso foi exalta­
do à sua direita. Os primeiros “Credos” do cristianismo
são a afirmação de fatos históricos e do seu alcance salvifico.
As formas mais simples referem-se à ressurreição do Cristo
e à sua exaltação como Senhor e Filho de Deus ( ICor 12,
3; Rom 10,9; At 8,37). As formas mais elaboradas narram
como o Cristo viveu, morreu e ressuscitou para operar a
salvação do gênero humano. A profissão de fé litúrgica de
28 Não é muito diversa a explicação de santo Tomás para o conhe­
cimento profético. Segundo ele o conhecimento profético tem os seguin­
tes elementos: uma matéria, uma iluminação, um julgamento. A maté­
ria do julgamento pode ser dada pelos fatos exteriores, os acontecimen­
tos da história, ou pelas experiências anteriores do profeta. Para santo
Tomás o essencial da revelação profética está na iluminação que dá ao
profeta poder pronunciar sobre os acontecimentos (exteriores ou inte­
riores) um julgamento conforme a intenção divina. A amendoeira de
Jeremias, a invasão de Senaquerib, o sonho do faraó não seriam reve­
lação sem o julgamento ou a interpretação do profeta. Em si mesmo o
acontecimento não é a revelação; nem tampouco a percepção do acon­
tecimento. A revelação consiste na manifestação do sentido divino desse
acontecimento. No acontecimento, o que interessa é a finalidade para a
qual ele se orienta conforme o desígnio divino; isso é dado pelo julga­
mento iluminado do profeta que mostra a inteligibilidade do aconteci­
mento (5. th. 2a 2ae, q. 173, a. 2, c.; De Verit. q. 12, a. 1, ad 2; V.
White, “Le concept de révélation chez S. Thomas”, L’Année théologique,
11 (1950): 123-125). Quanto aos grandes escolásticos, devemos reco­
nhecer, preocupam-se menos que nós com os vínculos históricos e con­
cretos da revelação, menos atentos à matéria que lhe é fornecida pela
história. Estão mais interessados na etapa final da revelação do que nas
etapas preparatórias. Para eles, a revelação é primariamente um fenômeno
interior, de ordem cognoscitiva: é comunicação da verdade divina me­
diante a iluminação. Pelo aumento de luz que recebe, o profeta julga
com certeza e sem erro os objetos presentes à sua consciência. Essa insis­
tência, um tanto unilateral, sobre o elemento formal da revelação tem
afinal conseqüências menos graves que a insistência unilateral do neopro-
testantismo atual sobre a revelação-acontecimento. Como dizem os esco­
lásticos: a revelação total se compõe da história e da palavra; de uma
matéria (fatos, representações, acontecimentos) e de um julgamento.
462 REFLEXÃO TEOLÓGICA

iTim 3,16 resume em uma só fórmula as principais fases


da história da salvação. Assim também os discursos de Pe­
dro, nos Atos, enunciam os fatos principais que fundamen­
tam o cristianismo ao mesmo tempo que lhes dão significa­
ção sobrenatural (At 2,23-36;3,12-26;10,34-43 ). J. Schmitt
observa que a primeira pregação apostólica tem como objeto
uma história vista sob a luz do Espírito29. A substância do
quérigma primitivo está contida nos seguintes pontos: foi
inaugurado por Cristo o tempo da plenitude anunciado pelos
profetas; a salvação chegou por sua morte e ressurreição,
conforme as Escrituras; o Cristo, por sua ressurreição, foi
exaltado à direita do Pai como Cristo e Senhor, e a exis­
tência atual da Igreja testemunha a vinda do Espírito; por
isso, todos devem arrepender-se, receber o batismo e o Es­
pírito que inaugura uma vida nova. O que é pregado pelos
apóstolos é a história da Salvação pela vida, morte e ressur­
reição do Cristo. Nele termina e culmina a história da Sal­
vação. Doravante o Cristo é o eixo da história: da história
sagrada, sem dúvida, mas também de toda a história, pois
que a vinda de Deus em pessoa em nossa história sacraliza
também a história profana.
A característica de acontecimento da revelação em o
Novo Testamento é bem evidenciada pelo fato de a obra
salvifica do Cristo ser descrita com o vocabulário do An­
tigo Testamento. O Cristo é o novo Adão, o novo Moisés,
o Rei segundo o coração de Javé, o Servo sofredor, o filho
do homem de Daniel, o Sacerdote segundo a ordem de
Melquisedec. Sua obra é uma libertação da servidão do pe­
cado (Col 1,13-14). Seu sangue derramado sela a nova
Aliança (Sinóticos). Seus milagres renovam as maravilhas
do Êxodo (são João). Mas, enquanto no Antigo Testa­
mento, a revelação aparece como que difusa ao longo dos
acontecimentos de vários séculos, ela como que se contrai
e condensa na vida e nas ações do Cristo. Tudo completa-
-se no único acontecimento de Cristo; tudo é dito na pala­
vra do Filho. No Antigo Testamento aparece menos clara­
mente o caráter doutrinai da revelação, porque então não

29 J. Schmitt, Jésus ressuscité dans la prédication apostolique (Pa­


ris, 1949), pp. 5-22.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 463

se conhecia a palavra humana do Filho enunciando em ter­


mos humanos o plano salvifico do Pai. Por isso ali domina
o aspecto histórico. A encarnação do Filho precipita o
ritmo da história: Deus de uma só vez se exprime total­
mente (Hebr 1,1).
Tanto em o Novo Testamento, pois, como no An­
tigo, a revelação chega até nós sob a forma da história,
mas história cuja plenitude de sentido não pode ser capta­
da senão mediante o acontecimento da palavra. O aconte­
cimento da cruz e o do Êxodo só se tornam plenamente
reveladores pela palavra que os interpreta e os propõe à fé.
Sem esse testemunho, ao mesmo tempo sobre o aconteci­
mento e sobre seu alcance salvifico, não existe revelação
no sentido pleno da palavra.

IV. AS IMPLICAÇÕES DE UMA REVELAÇÃO NA HISTÓRIA


E PELA HISTÓRIA

Admitir que a revelação nos atinge principalmente na


história e pela história, implica em certo número de conse-
qüências que devemos examinar.
1. Refere-se a primeira à natureza e ao progresso da
revelação. Não se dá a revelação como um sistema de pro­
posições abstratas referentes a Deus: vem incorporada aos
acontecimentos da história. Deus, seus atributos, seu de­
sígnio tornam-se-nos conhecidos, mas através dos aconteci­
mentos da história. Desde logo vemos em que sentido po­
demos falar de uma história ao mesmo tempo que de uma
doutrina. Apresenta-se a doutrina sob a forma de aconte­
cimentos significativos que indicam Deus e seu desígnio;
não deriva de simples especulação sobre Deus. A Escritura
não fixou um sistema filosófico, mas acontecimentos con­
cretos aos quais se prende uma significação religiosa, sobre­
natural. Recitar o Credo, é récapitulât o que Deus fez para
salvar a humanidade. Os acontecimentos dessa história têm
tal dimensão e tal plenitude de sentido que os proclamar é
o mesmo que enunciar toda a economia da salvação, é ex­
por a doutrina do cristianismo, isto é, o que ele professa
e ensina.
464 REFLEXÃO TEOLÓGICA

Contudo, seria inexato sustentar que a história e a


sua interpretação exaurem todo o conteúdo da revelação. Se
é inegável a característica histórica de uma parte do objeto
de fé, também igualmente certo que esses objetos contêm
longas exposições cujas conexões históricas são menos ime­
diatas, por exemplo: o ensinamento dos livros poéticos e
sapienciais, o ensinamento moral do Cristo, como o encon­
tramos desenvolvido no sermão da montanha. A revelação
do mistério trinitário dá-se mais pela palavra do que pela
história. Mesmo assim, a historicização permanece o traço
característico, dominante, da revelação cristã.
Também o progresso da revelação está ligado à histó­
ria. Vejamos, por exemplo, os atributos divinos: no Êxodo,
revela-se Deus como o Deus pessoal e salvador na conquista
de Canaã, como o guerreiro todo-poderoso; insistem os pro­
fetas nos atributos espirituais e morais ( amor, justiça, san­
tidade), reagindo contra o nacionalismo interno e o natu­
ralismo externo. O exílio põe Israel em contato com as
nações: Deus, no Dêutero-Isaías, revela-se como o Deus
das nações e Israel toma consciência de sua vocação mis­
sionária. É sempre através da história que se aprofunda
e purifica o conhecimento de Deus Os acontecimentos
do Êxodo, da Aliança, da conquista, da monarquia, são como
que protótipos das relações de Javé com seu povo, chave
de toda interpretação profética ulterior.
Israel, a partir desses fatos, não cessa de refletir sobre
sua história, na qual descobre sempre novas dimensões.
Essa reflexão dirigida, é claro, pelo profetismo, faz que a
revelação progrida quantitativa e qualitativamente. A sal­
vação, é inicialmente a libertação do Egito; depois, dos ini­
migos fronteiriços. Pouco a pouco, porém, os castigos que
atingem Israel fazem-no descobrir uma servidão mais pro­
funda: a injustiça social, a infidelidade que está no cora­
ção do homem. A Aliança, é entendida inicialmente como
um pacto que garante a proteção de Javé, desde que se

30 Th C. Vriezen, An Outline of Old Testament Theology, pp.


31-34; W. Eichrodt, “Offenbarung und Geschichte im Alten Testament”
Theologische Zeitschrift, 4 (1948): 322-323; P. Grelot, Sens chrétien
de l’Ancien Testament, pp. 129-130; 259, 267, 273, 279; P. Benoit, “Ré­
vélation et Inspiration”, Revue Biblique, 70 (1963): 338-340.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 465

cumpram as obrigações impostas (Am 5,14; Is 28,15). De­


pois, as múltiplas infidelidades de Israel, em contraste com
a fidelidade constante de Javé, fazem descobrir a gratui­
dade da Aliança, disposição inteiramente amorosa de Deus
em favor da humanidade. Finalmente, sob o peso das des­
graças, a concepção da Aliança espiritualiza-se e passa a ser
uma aliança com o coração do homem. A nova Aliança anun­
ciada por Ezequiel será uma regeneração dos corações se­
guida do dom do Espírito (Êx 36,23-28). Já não se fará
ela com um só povo, mas com as nações,31.
Já vimos que Israel chegou à idéia de criação a partir
da história. Aquele que se mostrara Senhor das forças anár
quicas da natureza (mar Vermelho, pragas do Egito, mar­
cha através do deserto); aquele que se manifestara como o
Senhor dos povos, utilizando-os como instrumentos, para
em seguida castigar-lhes o orgulho, deve ser também o Cria­
dor dos povos e do cosmos. Só a criação pode ser a base
duma dominação assim soberana.
Também o conceito de Resto é frutp duma reflexão
sobre a história. Israel sobrevivera à servidão no Egito,
sobrevivera ao deserto, às guerras de ocupação, ao exílio e
à dispersão. Viu nesse fato a ação divina que poupa e salva
um resto da nação.
Finalmente, na doutrina do messianismo, é de se notar
como cada estrutura social da história de Israel criou uma
figura messiânica: o Rei, na época da monarquia; o Ser­
vidor, no profetismo; o Sacerdote, na teocracia sacerdotal
após o exílio32. Mas sempre, é bom insistir, esse progredir
da revelação só se torna possível graças à palavra que acom­
panha a história e lhe exprime o alcance salvifico.
2. Uma segunda implicação diz respeito ao particula-
rismo da revelação. É inaceitável para alguns espíritos que
Deus se tenha revelado a um povo particular: aos judeus,
antes que aos egípcios, aos gregos ou aos romanos. Toynbee,

31 P. van Imschoot, Théologie de l’Ancien Testament, I: 237-259;


J. Levie, La Bible, parole humaine et message de Dieu (Paris. 1958),
p. 285. A Bíblia, mensagem de Deus em palavras humanas (São Paulo,
1963, p. 219).
32 A. Gelin, art. “Messianisme*', Suppl, au Diet, de la Bible, 5:
col. 1168.
466 REFLEXÃO TEOLÓGICA

por exemplo, não recusa a idéia de uma revelação, resiste,


porém, à idéia de uma revelação a um povo privilegiado.
A encarnação de Deus, única e definitiva num povo, pare­
ce-lhe arbitrária e inaceitável33.
Não é nova essa dificuldade. Caricaturando, Celso já
fazia os cristãos dizerem: “É a nós que Deus se revela
e tudo manifesta. Não se importa com o resto do mundo.
Somos os únicos com os quais mantém comércio” Ini­
cialmente devemos responder que se os fatos testemunham
uma revelação a favor de um povo antes que a outro, deve­
mos registrá-los para sermos fiéis à história. Não compete a
nós decretar a priori o que Deus deve fazer ou não fazer na
economia da salvação. Ora, precisamente a tradição de
Israel coloca-nos diante de um fato absolutamente único
da história dos povos: o fato do profetismo e de um deter­
minado profetismo. O contínuo progresso religioso de Is­
real, durante séculos, sob a influência dos profetas, não
encontra paralelos nos anais religiosos da humanidade; assim
como também o fato do Cristo e da Igreja, que se prendem
ao fato do profetismo35.
Realmente, o escândalo do particularismo da revelação
é inseparável de sua historicização. Se a revelação chega até
nós pela história e na história, como um acontecimento, se-
gue-se que esse acontecimento está submetido às condi­
ções da história: acontece aqui e não ali, agora e não de­
pois, neste grupo e não naquele. Com a encarnação, parti-
culariza-se mais ainda a revelação: não apenas acontece nesta
comunidade, mas também nesta pessoa que viveu na Pales­
tina e morreu no tempo de Pilatos36. Que o acontecimento,
porém, tenha acontecido em Israel e não no Egito ou na
Grécia, isso permanece um mistério gratuito, que não se
explica nem pelo gênio religioso de Israel nem por sua fide­
lidade às condições da Aliança (Is 1,4). Acrescenta-se ainda
que a eleição é feita essencialmente em vista de um serviço.
À revelação é confiada a Israel, mas por Israel deve chegar
33 A. Toynbee, An Historian’s Approach to Religion (New York
and London, 1956), pp. 135-144.
34 Orígenes, Contra Celsum, IV, 23.
35 A. Richardson, Christian Apologetics (London, 1955), pp. 139-145.
36 C. H. Doud, La Bible aujourd’hui, pp. 111-112.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 467

a todos os homens. Ela vem por Jesus Cristo, mas o Cristo,


por sua morte e ressurreição, torna-se o centro de uma co­
munidade que rompe as fronteiras do tempo e do espaço.
A revelação opera-se em Israel, tendo em vista, porém, sua
extensão às nações; concentra-se em Jesus Cristo, tendo em
vista, porém, sua universalização37. Deve o Evangelho ser
pregado a toda a criatura.
Essa economia de mediação, de indivíduos e de povos,
é uma constante na ação divina para que os homens es­
tejam conscientes de sua comunhão na revelação e na sal­
vação. Notemos ainda que a eleição de Israel, como media­
dor da revelação, é principalmente eleição para uma respon­
sabilidade. No plano material, a eleição não trouxe para
Israel (a não ser num breve período) se não bem poucas
vantagens. Israel não teve a potência dos grandes impérios:
conheceu, porém, a perseguição, a deportação., o exílio, o
ódio. A eleição de Israel como depositário e testemunha
da Palavra significa principalmente obediência à Palavra.
Privilégio pouco procurado por uma humanidade terrestre
e carnal. Em seu conjunto, Israel mostrou-se infiel à Pa­
lavra. A esposa de Javé caiu em adultério. E o amor de
Javé que brilhara na escolha de Israel, brilhou também em
sua misericórdia para com a esposa infiel. A eleição não
é um escândalo, mas um mistério da graça.
3. Uma terceira implicação é a validade duma revelação
dada no tempo. Uma revelação que nos foi dada através
da história, como poderá ser válida para todos os homens
e para todos os tempos? Como pode escapar ao relativismo da
história? Mesmo afirmando que ela vem de Deus, será
necessariamente recebida nas categorias de uma época, de
uma mentalidade. Portanto, como poderá entrar na histó­
ria, a não ser mutilada, deformada, exposta a todas as vicis­
situdes da história, que bem conhecemos? Parece ser essa
necessariamente a situação de uma revelação histórica38.

37 Ibid., pp. 111-114.


38 R. Aubert assim apresenta essa objeção contemporânea: “Na
idéia de verdade revelada, imutável, definitiva, vê-se um perigo para aquilo
que é a grandeza e a força do humanismo atual, ou seja: para a percepção
quase trágica da complexidade da verdade, da imperfeição do pensamento,
humano, da necessidade de continuamente recriar o mundo dos valores
468 REFLEXÃO TEOLÓGICA

A objeção é grave e praticamente não teria resposta se


estivéssemos falando de uma doutrina humana. Por hipóte­
se, porém, não se trata de uma doutrina humana, mas de uma
doutrina divina. Continua verdade, porém, que uma doutrina,
ainda que divina, se nos chega na história e pela histó­
ria, é afetada pelas condições da história. A revelação surge,
porém, em condições tais que parece ter Deus previsto e
resolvido essas dificuldades.
Muito tempo antes preparou Deus o espírito do ho­
mem que ele deve fecundar: pela eleição de um povo que
será o depositário da revelação, por uma longa, paciente
e progressiva preparação desse povo; pela intervenção con­
tínua de uma longa seqüência de profetas; por uma longa
elaboração e purificação dos conceitos que servirão para
exprimir a mensagem divina. Basta pensar nas noções de rei­
no, messias, aliança, salvação, justiça, pecado, lei etc. Sécu­
los de história prepararam as categorias da revelação. E,
principalmente, a plenitude da revelação não nos foi dada
pelo intermédio, relativamente ordinário, de um profeta, mas
pelo meio extraordinário do Verbo Encarnado. O Cristo é o
Homem-Deus, perfeitamente conaturalizado, tanto com a
linguagem humana como com o pensamento divino. Como
criador, domina o homem e não desconhece nenhuma de
suas molas psicológicas, nenhum de seus recursos; domina
a história cujos meandros todos conhece. É ele, o Homem-
-Deus, que escolhe as analogias que valem como símiles do
mistério divino. Ainda mais, não deixa sua doutrina entregue
aos acasos da história e da interpretação individual. Primei­
ramente protege sua transmissão com um carisma especial, o
de inspiração; confia-a depois à Igreja munida do carisma
da infalibilidade para conservar, defender, propor e interpre­
tar autênticamente a revelação. A Igreja, Esposa do Cristo,

para adaptá-lo às novas possibilidades que surgem conforme a mudança


da situação e do mundo. O cristão parece ser, por vocação, reacionário
e conservador. Ainda mais. Porque nós cristãos pretendemos ser os
únicos a possuir a verdade, e porque o erro não tem direitos, somos
acusados de intolerância e de simpatias para com a ditadura. Λ fé em
Deus destruiría em nós o senso da historicidade, levando-nos ao fixismo
do pensamento e à morte da consciência” (R. Aubert, “Questioni attuali
intorno all’atto di Fede”, em: Probiemi e Orientamenti di Teologia
Dommatica [2 vol., Milano, 1957], 2: 675-676).
HISTÓRIA E REVELAÇÃO 469

guarda a sua palavra como um depósito que ela medita e


continuamente assimila, sob a luz do Espírito. Concedemos
facilmente que sem esse Magistério divinamente estabeleci­
do e sem essa assistência especial do Espírito, seria impos­
sível conceber uma doutrina, ainda que de origem divina,
que pudesse escapar às flutuações da história.
O papel da Igreja é particularmente discernir na
revelação concreta o que é propriamente matéria revelada
e o que é elemento relativo implicado em qualquer expres­
são histórica. A doutrina sendo expressa mediante concep­
ções de uma época, será preciso distinguir a verdade de seu
meio de apresentação: é o que se dá com a doutrina da cria­
ção proposta mediante as concepções cosmológicas do hagió-
grafo. Será necessário levar em conta o gênero literário usa­
do: é o que se dá com a doutrina do juízo final, apresen­
tada através de descrições do gênero apocalíptico. Uma
expressão oratória dos profetas não pode ser tratada como
uma expressão estritamente didática. A Igreja compete ex­
plicar, interpretar a doutrina revelada segundo sua autên­
tica significação e também aplicá-la para cada geração, de
modo que seja sempre autêntica e contudo sempre atual.
Sem dúvida que um tal condicionamento é inaudito, único.
Mas, o cristianismo e o Cristo não são casos únicos na his­
tória? Se, pois, é verdade que uma revelação na história e
pela história não podería fugir às vicissitudes do vir a ser
histórico, devemos contudo levar em conta as condições
totalmente particulares dessa revelação: em sua preparação
(eleição), em seu progresso (profetismo), em sua comu­
nicação definitiva (O Cristo, Verbo encarnado), em sua
transmissão (inspiração) e na sua conservação (Igreja, ca­
risma da infalibilidade ). A especificidade da revelação cristã
impede-nos assimilá-la às doutrinas humanas.

V. CONCLUSÕES

Terminando, especifiquemos os diversos sentidos em


que podemos falar de revelação histórica·.
1. A revelação não acontece fora do tempo, nem num
tempo mítico, no instante extratemporal dos primórdios: é
470 REFLEXÃO TEOLÓGICA

um acontecimento localizável no tempo. Pela revelação,


Deus intervém na história humana, e essa intervenção pode
ser datada. A ação reveladora faz história.
2. A revelação não se apresenta como um ponto único
no desenrolar do tempo, mas como uma sucessão de inter­
venções descontínuas. É um acontecimento progressivo: a
revelação tem uma história, a história das iniciativas divinas
que fazem progredir a revelação, quantitativa e qualitativa­
mente, até a morte do último apóstolo. Nessa história, en­
contramos um ápice que é a vinda de Deus entre nós na
pessoa do Cristo. Ápice que é um acontecimento incom­
preensível a não ser em sua preparação através dos séculos.
Os acontecimentos medem-se, e também se preparam mutua­
mente. Durante séculos Deus se aproxima do homem e o
vai trazendo para perto de si. A história da revelação é
uma economia, uma disposição, um desígnio da sabedoria
divina. Tende para um fim, é uma teleologia.
‘3. A revelação realiza-se pela história, mas com a in­
terpretação da palavra. Apresenta-se como um complexo
de acontecimentos indicativos de Deus e de seus desígnios
de salvação. Segue-se que a revelação é ao mesmo tempo
história e doutrina. É doutrina sobre Deus, mas uma dou­
trina constituída a partir de ações de Deus na história. É
um conhecimento essencialmente concreto.
Afinal, se a revelação, tanto no Antigo como no Novo
Testamento, chega até nós na história e pela história, é por­
que a palavra de Deus é essencialmente uma palavra eficaz
e sempre ativa. Realiza o que diz; cumpre o que promete.
Se Deus revela à humanidade seu plano de salvação, ele o
realiza ao mesmo tempo. A ordem noética é acompanhada
pela ordem da ação e da vida. A Palavra vem sempre com
o poder do Espírito.
4.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO

A teologia contemporânea insiste muito na necessidade


de estabelecer um nexo estreito entre a revelação e a Pessoa
do Cristo. H. de Lubac: “Em Jesus Cristo, tudo nos foi
ao mesmo tempo dado e revelado” L. M. Dewailly: “Je­
sus Cristo é a Palavra de Deus feita carne. . . Ele é, em
sua própria pessoa, a revelação de Deus, não apenas nos trou­
xe a revelação”2. G. Sõhngen: “Jesus Cristo... é sim­
plesmente a própria Revelação, o próprio Deus revelado” 3.
K. Rahner: O Cristo é “a epifania de Deus” em nossa his­
tória4. J. Mouroux: Ele é “a epifania existencial de Deus” 5.
R. Guardini: “O Cristo está no mundo como a epifania
do Pai” 6. A teologia reclama também uma fidelidade mais
autêntica ao realismo da encarnação, uma fidelidade levada
às últimas conseqüências. Se a natureza humana do Cristo
não é um disfarce, mas a “ auto-expressão de Deus quando
seu Verbo é proferido com amor em o nada absoluto e sem
Deus”7, se pela encarnação houve verdadeira “in-humaniza-
ção ” de Deus *, então é o homem enquanto homem que se
torna expressão do mistério de Deus. Segue-se que “todas
as dimensões do homem, conhecidas e desconhecidas, de-

1 H. de Lubac, “Le problème du développement du dogme”, Recher-


:he de science religieuse, 35 (1948): 157-158.
2 L.-M. Dewailly, Jésus-Christ, Parole de Dieu (Paris, 1945), p. 28.
3 G. Sõhngen, Oie Einheit in der Théologie (München, 1952), pp.
(1952), pp. 316, 354s, 359.
4 K. Rahner, Écrits théologiques, I: 164.
5 J. Mouroux, L’expérience chrétienne (Paris, 1952), p. 193.
6 R. Guardini, Essence du christianisme (trad. Lorson, Paris,
1947), p. 74.
7 K. Rahner, “Réflexions théologiques sur l’Incarnation”, Sciences
Ecclésiastiques, 12 (I960): 15.
8 H. Urs von Balthasar, “Dieu a parlé un langage d’homme”, em
Parole de Dieu et liturgie (Paris, 1958), p. 73.
472 REFLEXÃO TEOLÓGICA

verão ser assumidas e utilizadas para servir de expressão à


Pessoa absoluta” ’. É por suas ações, seus gestos, sua atitude,
seu comportamento global, tanto quanto por suas palavras,
que o Cristo é perfeitamente revelação de Deus 10.
No Antigo Testamento, para a compreensão da revela­
ção o problema central é o das relações entre revelação e his­
tória. Em o Novo Testamento, o problema central é o das
relações entre encarnação e revelação, entre o Cristo e a
revelação. Qual é pois a relação entre o Cristo e a revela­
ção? E, mais precisamente, como o Cristo utilizou os ca­
minhos da encarnação para revelar-nos Deus e seus desígnios
de salvação? Nessa economia, qual a situação do Cristo,
dos apóstolos, da Igreja? Há oposição entre revelação da
pessoa e revelação da verdade?

I. INTELIGIBILIDADE DE UMA ECONOMIA


DE ENCARNAÇÃO PARA A REVELAÇÃO

Falando da economia de encarnação com relação à re­


velação, santo Tomás declara tranqüilamente: da mesma ma­
neira que o homem, para comunicar seu pensamento, o re­
veste de certo modo, com letras e sons, “assim também
Deus, querendo manifestar-se aos homens, revestiu de car­
ne, no tempo, seu Verbo concebido desde toda a eternida­
de” 11. Não é possível exprimir mais simplesmente a sobe­
rana conveniência duma economia de encarnação para a
revelação.
Demonstrar a conveniência de um mistério é manifes­
tar sua inteligibilidade, isto é, sua harmonia, sua coerência
interna. Ora, em se tratando de uma revelação de Deus

9 Ibid., p. 73.
10 H. Niebecler, Wesen und Wirklichkeit der übernatiirlichen Offen­
barung, p. 155; H. Urs von Balthasar, La théologie de Vhistoire (Pa­
ris, 1955), p. 193; R. Guardini, Essence du christianisme, p. 48; Id.,
Oie Offenbarung, ihr Wesen und ihre Formen ( Würzburg,_ 1940), pp.
78-79; L.-M. Dewailly, Jésus-Christ, Parole de Dieu, p. 28;” P. Benoit,
“Révélation et Inspiration”, Revue Biblique, 70 (1963): 340.
11 “Et sicut homo volens revelare se verbo cordis, quod profert ore,
induit quodammodo ipsum verbum litteris vel voce, ita Deus, volens se
manifestare hominibus, Verbum suum conceptum ab aeterno, carne induit
in tempore” (In Jo., c. 14, lect. 2).
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 473

ao homem mediante encarnação, essa inteligibilidade apa­


rece evidente, quer consideremos o mistério do ponto de
vista de Deus, quer do ponto de vista do homem.
Primeiramente, Deus exprime a si mesmo, em si mes­
mo, para si mesmo: Ele se conhece em seu Verbo. E quan­
do Ele se exprime ad extra, então essa expressão é a expressão
desse Verbo imanente. Aquele que no seio da Trindade
já é a Palavra eterna de Deus é também quem a exprime
aos homens 12. Aquele que no seio da Trindade já é o Filho,
isto é, puro dom de si mesmo ao Pai, é também quem tem
a missão dé manifestar aos homens sua condição de filhos.
Que outra pessoa mais bem podería revelar o Pai, senão
essa Pessoa que é a perfeita Imagem do Pai, a Palavra que
esgota o conhecimento que o Pai tem de si mesmo? E como
outra pessoa, que não o Filho, podería revelar-nos nossa ati­
tude filial e ensinar-nos a adorar o Pai? Era sumamente con­
veniente que o Verbo de Deus fosse o seu Revelador, que
o Filho do Pai, seu Amém, iniciasse o homem em sua vida
filial. Também os Padres gregos, como Justino, Irineu,
Clemente de Alexandria, Origines, vêem no Verbo, não só
o único Revelador de Deus, mas, em certo sentido, o único
Revelador possível. Mais: sendo a revelação, revelação de
pessoas e não de problemas, como salientamos anterior­
mente, somente uma pessoa poderia introduzir-nos no co­
nhecimento do mistério trinitário.
Por outro lado, o homem, carne e espírito, em
seu nível somente se pode comunicar mediante a corporei-
dade. Convinha que Deus atingisse o homem nesse nível e
se dirigisse a ele mediante os sinais do corpo. Pela encar­
nação Deus tomou o suporte material que nos era neces­
sário para que sua presença nos fosse acessível. No Cristo
Deus tornou-se presente para nós de maneira humana, ao
mesmo tempo que se manifestava como Deus. O papel
desempenhado pelo gesto e pela palavra na presença ordi­
nária, foi desempenhado pela encarnação na ordem sobrena­
tural da revelação. Em Jesus Cristo e por Jesus Cristo,
aquele que em Deus é a Verdade e o Amém do Pai, inter-

12 K. Rahner, “Réflexions théologiques sur l’Incarnation”, Sciences


Ecclésiastiques, 12 (1960): 14-15.
474 REFLEXÃO TEOLÓGICA

preta para nós o Pai (Jo 1,8) em palavras e gestos huma­


nos: Λ Palavra eterna faz-se Evangelho. O Cristo diz hu­
manamente o que Deus quer dizer de si mesmo. Do mes­
mo modo como percebemos a pessoa nos gestos e princi­
palmente nas palavras, assim também na vida, nos gestos
e nos ensinamentos do Cristo nós podemos ter acesso à
sua pessoa de Verbo, e por ele temos acesso ao Pai e ao
Espírito. Nele conhecemos os mistérios da vida pessoal e
íntima de Deus 13.
Finalmente era muito conveniente que Deus le­
vasse a termo em o Novo Testamento essa economia de
encarnação que inaugurara de certo modo no Antigo Testa­
mento, ao usar como instrumentos de sua revelação a pala­
vra e o psiquismo dos profetas. Com efeito, como com­
preender que Deus tenha realmente podido falar pelos pro­
fetas, se não pretendia inaugurar assim uma economia na
qual usasse não apenas a palavra, mas todo o ser do homem
que tem na palavra sua expressão mais perfeita? Se Deus
usou realmente a linguagem do homem é que a economia
profética era a primeira etapa de uma economia de encar­
nação na qual Deus fosse pessoalmente assumir o qué é pró­
prio do homem. O mistério de Deus que usa os lábios e as
palavras dos profetas é o mistério de Deus que começa entre
os homens seu aprendizado de Verbo encarnado 14. A en­
carnação completa assim a economia de revelação do An­
tigo Testamento ’5.

II. PLENITUDE E REALISMO DA ENCARNAÇÃO

É preciso insistir na plenitude e no realismo da en­


carnação. A humanidade do Cristo não é uma simples apa­
rência, uma espécie de personagem da qual se servisse para
manifestar sua presença e dissimulá-la ao mesmo tempo.

13 A. Brunner, La personne incarnée, pp. 272-273; E. H. Schlle-


beeckx, Le Christ, sacrement de la recontre de Dieu (Paris, 1960), pp.
40-41, 55, (Trad. Cristo Sacramento do Encontro com Deus [Petrópolis,
1967], pp. 22-23, 35-36); W. Temple, Nature, Man and God (London,
1956), p. 319.
14 Irenaeus, Adversus Haereses, IV, 12, 4.
15 G. Martelet, “L’homme comme parole et Dieu comme révélation”,
Cahiers d’études biologiques, n. 6-7 (1960), pp. 177-180.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 475

A natureza humana é a expressão do próprio Deus, “a auto-


-expressão de Deus-para-fora-de-si-mesmo” w. O Cristo é Fi­
lho de Deus até em sua humanidade. A segunda pessoa da
Trindade é pessoalmente homem; esse homem é pessoalmen­
te Deus. O Cristo é Deus de maneira humana e é homem
de maneira divina. Deus é Caridade, mas é enquanto ho­
mem que ele o demonstra. Seu amor humano é a forma
humana do amor redentor de Deus, “vinda visível do amor
de Deus” 17. As palavras do Cristo são palavras humanas
de Deus; os atos do Cristo são os atos de Deus em forma
de manifestação humana. O Filho de Deus, com uma pa­
lavra humana dirige-se ao homem, de pessoa a pessoa.
Entre os homens, todos os encontros espirituais reali­
zam-se mediante o corpo. É pelo corpo e no corpo que o
homem se torna presente aos outros homens. O corpo é
o sinal que ao mesmo tempo cobre e descobre á interiori-
dade humana. Para os contemporâneos de Jesus, o encon­
tro pessoal com ele era pois o encontro com o Deus vivo.
Aquele que eles podiam ouvir e ver, mediante o sinal do
corpo, era pessoalmente o Filho de Deus. O Cristo não era
um Outro, era Deus. Atingir o Cristo pela sua humanida­
de é atingir o Verbo de Deus. Era assim que são João po­
dia testemunhar de sua experiência do Verbo de Vida ( 1 Jo
1,1-3). O Verbo apareceu, pois se encarnou; graças ao
sinal de sua humanidade, João pode ouvir, ver, contemplar,
tocar o Deus vivo.
Deus mesmo, em pessoa, concretamente se revelou no
Cristo: tal é o fato inaudito, decisivo que o Novo Testa­
mento proclama e se esforça por traduzir pela plenitude
de suas fórmulas nas quais o Cristo e o conhecimento de
Deus estão indissoluvelmente ligados: “Deus, nestes últi­
mos tempos, falou a nós no Filho” (Hebr 1,2). “A Deus
ninguém jamais viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus,
que está ho seio do Pai” (Jo 1,18). “Nisto consiste a
vida eterna: que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus,
e a àquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). A graça
16 K. Rahner, “Réflexions théologiques sur L’Incarnation”, Sciences
Ecclésiastiques, 12 (1960): 15.
. 17 E. H. Schillebeeckx, Le Christ, sacrement de 1η rencontre de
Dieu, p. 39, (Cristo Sacramento do Encontro com Deus, 20).
476 REFLEXÃO TEOLÓGICA

de Deus “manifestou-se agora pela aparição de nosso Sal­


vador, Cristo Jesus, que destronou a morte e fez resplan­
decer a vida e a imortalidade por meio do Evangelho”
(2Tim 1,10). Realiza-se a salvação “pelo conhecimento de
Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Pdr 1,2; Tit 2,11;
lTim 3,16). Também no Cristo apareceu a agape de Deus
(Rom 5,8; IJo 4,9), isto é, “a bondade de Deus nosso Sal­
vador e seu amor pelos homens” “apareceu” para nós (Tit
3,4). Foi necessária a realidade do Cristo para que esse
amor estivesse efetiva e propriamente presente entre nós.
No Cristo, Deus mesmo deu-se ao homem sem reservas e
por meios humanos: seu amor divino veio até nós em um
coração humano. É essa plenitude da encarnação que os
santos Padres exprimem em sua forma ao mesmo tempo
concisa e concreta: “O conhecimento de Deus é Jesus Cris­
to”, diz santo Inácio de Antioquia 1β. Ou ainda: “Não exis­
te senão um Deus, manifestado por Jesus Cristo seu Filho,
que é a Palavra saída de seu silêncio” 19. Conforme santo
Irineu, a revelação é a epifania do Pai através do Verbo
encarnado: “Pelo Filho, feito visível e palpável, apareceu
o Pai” M.
Isso, porém, não quer dizer que a revelação se iden­
tifique com o simples acontecimento objetivo da encarna­
ção do Verbo. O mero fato do aparecimento de Deus en­
carnado em nosso mundo, ainda não é a revelação. Redu­
zir assim a revelação da história seria declarar inútil a eco­
nomia duma revelação mediante a Encarnação. Semelhan­
te revelação seria apenas uma ação, sem qualquer nexo com
a nossa consciência: permanecería incognoscível. Mais pro­
priamente, a encarnação é o caminho escolhido por Deus
para revelar e se revelar. Tem por fim tornar possível, ao
nível do homem, o conhecimento de Deus e de seu desígnio
de salvação. É dada para que Deus exprima ao homem, em
todas as dimensões humanas — em tempos humanos e em ges­
tos humanos — o conhecimento e o amor do único Verdadei­
ro. Portanto, é legítimo dizer que a encarnação do Filho —

18 Ef 17,2.
19 Magn. 7,2.
20 Adversus Haereses, IV, 6, 6.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 477

concretamente entendida — é a revelação do Filho e, por


ele, do Pai.

III. REVELAÇÃO MEDIANTE A ENCARNAÇÃO

Se o Filho se encarna para revelar, devemos afirmar


que todos os recursos da natureza humana serão assumidos
por ele para servirem de expressão à sua Pessoa de Filho
de Deus. Portanto, as palavras do Cristo, seu ensinamento,
e também suas ações, suas atitudes, seu comportamento,
toda sua existência humana será perfeitamente utilizada para
revelar-nos as profundezas do mistério divino.
Essa afirmação está de acordo com o modo concreto
de agir do próprio Cristo. O método que o Mestre adotou
para formar seus apóstolos foi o dos doutores da Pales­
tina. O discípulo não abandonava seu mestre; ligava-se a
ele, observava-o, gravava na memória suas atitudes, suas res­
postas, seus conselhos. Não perdia nenhum gesto, nenhuma
palavra. O Cristo não introduziu inovações. Aceitou a tra­
dição do ambiente. Principalmente guardou o contato, a
vida em comum do mestre com seus discípulos. Os apósto­
los estão sempre com ele: acompanham-no nas viagens, as­
sistem aos milagres, participam em sua ação. Ouvem sua
palavra, pois que ele é o Mestre que fala com autoridade:
explica-lhes a lei, descobre-lhes o sentido das parábolas,
inicia-os nos mistérios de sua pessoa e no conhecimento
do Pai. As ações e os gestos, porém, acompanham e su­
blinham o ensinamento como um comentário contínuo. O
Cristo ensina aos apóstolos que eles são filhos do Pai e
que se devem comportar como tais na oração, no jejum,
na provação, na perseguição, e mesmo quando caem e quan­
do se levantam. Mas, ao mesmo tempo, por sua atitude
quando reza, por sua submissão constante à vontade do Pai,
mostra de maneira visível e vivida o comportamento que
lhes ensina. A misteriosa inclinação do amor de Deus para
com os pequenos, com os pobres, e os pecadores, aparece
claramente nas parábolas do Cristo. Muito mais concreta­
mente, porém, em seus gestos de bênção, de cura, de per­
dão, em suas tentativas junto aos publicanos e às pecado-
478 REFLEXÃO TEOLÓGICA

ras. Os princípios da moral nova (humildade, doçura, pa­


ciência, caridade, perdão ) iluminam-se com os gestos do Mes­
tre, manso e humilde de coração, que serve a seus discí­
pulos e lava-lhes os pés, em seu olhar cheio de amor para
Pedro e Judas, em sua paciência e doçura sob os escar­
ros e os ultrajes, e principalmente em sua paixão e morte.
“Ele passou fazendo o bem” (At 10,38). “Dei-vos o exem­
plo” (Jo 13,15).
A revelação, portanto, realiza-se seguindo uma dupla
linha de manifestação: por palavras e por ações, por pala­
vras e por gestos; as palavras explicitando os gestos,
as ações, descobrindo seu mistério profundo; os gestos e as
ações, por sua vez, encarnam as palavras e lhes dão um
valor de vida. Nessa ação conjunta do facere e do docere
a serviço da revelação devemos dizer que é a palavra que
tem o primado, assim como na expressão humana. É a
palavra humana do Cristo, que nos fala para se explicar, que
nos manifesta o acontecimento e o sentido da encarnação.
O Cristo é ao mesmo tempo acontecimento e intérprete
do acontecimento. O mistério de sua pessoa, e de sua mis­
são, Cristo declara-o progressivamente, côm muito tato, mas
o fato de ele ser Deus e enviado de Deus é atestado por
sua palavra humana. Que adiantariam os gestos de Cristo
na ceia, sem as palavras que mostram o seu valor de re­
denção? É por suas ações e por seus gestos, mas princi­
palmente por suas palavras, que o Cristo testemunhou a
respeito do Pai e de si mesmo. As ações do Cristo são, ein
o Novo Testamento, correspondentes aos acontecimentos
da história na revelação profética. Não se tornam plena­
mente reveladoras a não ser pela palavra do Cristo que lhes
declara o sentido e as interpreta. O acontecimento da encar­
nação, que podemos chamar revelação “em primeiro grau”,
deve completar-se pela revelação-palavra que é seu comen­
tário necessário21. A revelação como acontecimento supõe
a revelação como palavra22. Fatos, ações, gestos, compor­
tamento do Cristo, dependem de sua palavra que exprime

21 E. Schillebeeckx, “Parole et sacrement dans l’Église”, Lumière


et Vie, 9 (janv.-mars 1960): 28-29.
22 E essa palavra é também acontecimento.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 479

seu alcance salvifico e os manifesta aos apóstolos como


objeto do testemunho divino.
A palavra do Cristo é pois o elemento formal neces­
sário da revelação. Isso por diversos títulos. Primeiro
porque Deus, assumindo a humanidade, assume ao mesmo
tempo a palavra como expressão privilegiada entre os ho­
mens: a mais espiritual e a mais perfeita. Assim Deus nos
diz com palavras inteligíveis o que está realizando. Segundo,
porque estando a verdade no juízo, e não na simples apre­
sentação dos acontecimentos, é pela palavra que se expri­
me o juízo, que une sujeito e predicado. Terceiro, porque
objeto da revelação não são apenas os fatos históricos,
mas também os mistérios: mistérios da Trindade, da filia­
ção divina do Cristo, de nossa participação na vida da Trin­
dade. Todos esses mistérios podem ser atestados apenas
pela palavra. Quarto, porque as ações, os gestos, os acon­
tecimentos, os mistérios da vida do Cristo não podem ser
cridos com fé divina a não ser que sejam apresentados como
objeto do testemunho divino. Atestação que é feita pela
palavra do Cristo.

IV. PROPOSIÇÃO HUMANA E VERDADE DIVINA

A encarnação parece resolver a mais grave e aparen­


temente única dificuldade da revelação, ou seja, a de uma
comunicação autêntica do desígnio divino para o espírito
humano. Com efeito, o Cristo é a Testemunha qualificada
dos mistérios divinos, pois sua revelação deriva da própria
visão que o Filho tem do Pai. E também Ele que vê, é ao
mesmo tempo Deus e homem, conaturalizado tanto com o
modo humano de falar como com o pensamento divino.
Verbo de Deus, não fala a nossa linguagem; fala somente
ao Pai; mas o Verbo encarnado pode falar-nos. E é a mes­
ma Pessoa que vive no seio do Pai e exprime em ter­
mos humanos o que sabe. A união de naturezas na uni­
dade da Pessoa possibilita a passagem do plano divino, ina­
cessível, ao plano humano e ao mesmo tempo garante a
fidelidade da transmissão. O Cristo é o perfeito Vidente-
-Deus que exprime em linguagem humana o que vê. Efe­
tua-se pois a passagem da visão divina à expressão humana.
480 REFLEXÃO TEOLÓGICA

Mas, de fato, essa resposta apenas levanta outra difi­


culdade, mais fundamental ainda. Se a revelação chega até
nós mediante noções e proposições humanas, como podem
essas noções e proposições dar-nos acesso ao mistério di­
vino? Como é que uma proposição humana, congenital-
mente composta de termos tomados ao mundo das criaturas,
pode pretender conter, e de certa forma “encarcerar”, uma
verdade divina e dizer: isso é, ou isso não é? Com outras
palavras: como pode Deus garantir a verdade duma afir­
mação essencialmente composta de ingredientes humanos? 23
Karl Barth responde que a verdade da afirmação hu­
mana, isto é, a correspondência entre o discurso humano e
a realidade divina, é garantida apenas pela graça da revela­
ção. Nossos conceito e nossos termos humanos, enquanto nos­
sos, são inteiramente incapazes de exprimir a Deus e seu mis­
tério. Sua aptidão a serem verdadeiros vem apenas da re­
velação24. Essa resposta não resolve o problema. Tem ra­
zão o P. H. Bouillard quando observa: “Apoiados ou não
pela revelação, conceitos e termos que atribuímos a Deus
são nossos, são humanos. Trata-se de saber como um dis­
curso humano, mesmo baseado na Bíblia, pode referir-se a
Deus. Dizer que se refere em virtude da revelação, isso é
responder à pergunta com a mesma pergunta. . . A ten­
tação seria dizer que o autor superpõe uma univocidade por
graça à equivocidade natural” 25.
A revelação, mesmo feita por Cristo, não é imaginável
a não ser que tenha por base a analogia, com seu processo de
negação e superação. Quem não aceita a analogia deve tam­
bém recusar a revelação. Pois a revelação supõe dois ter­
mos (Deus e o homem) que ao mesmo tempo se aproximam
e se distinguem. Se é impossível a distinção entre Deus e
o homem, estamos reduzidos ao monismo. Se, pelo contrá­
rio, for impossível a aproximação entre Deus e o homem,
então estamos reduzidos ao agnosticismo absoluto ou ao
transcendentalismo absoluto que condena Deus ao silên-

23 A. Durand. “Incarnation et christocentrisme”, Nouvelle Revue théo­


logique, 69 (1947): 482-483; P. Rousselot, art. “Intellectualisme”, Dic­
tionnaire apologétique de la Foi catholique, 2: 1075-1076.
24 H. Bouillard, Karl Barth (3. vol., Paris, 1957), 3: 210.
25 Ibid., 3: 210.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 481

cio26. A analogia nega ao mesmo tempo que a palavra di­


vina seja da mesma natureza da palavra humana, e que
seja uma palavra sem qualquer relação com a palavra hu­
mana, incapaz, portanto, de estabelecer qualquer diálogo
verdadeiro.
Porque Deus fez todas as coisas e particularmente a
natureza humana, como um reflexo de sua própria perfeição,
todas as coisas têm sua fonte em Deus, e porque por isso
é possível uma relação entre Deus e o homem. A revelação
pela palavra pressupõe a linguagem da criação feita por
Deus, do mesmo modo como a graça tem seu apoio em a
natureza intelectual e espiritual do homem. Portanto, não
é apenas porque foram escolhidos pelo Cristo que nossos
conceitos e nossos termos humanos são válidos para enunciar
o mistério: é antes porque eles têm uma relação com o Ser
Divino que o Cristo os pôde utilizar.
Não há dúvida que a revelação mediante a encarnação re­
presenta um caso privilegiado. Em Jesus Cristo o próprio
Deus se manifesta a nós como vivendo em nosso mundo,
como uma pessoa que podemos conhecer e com quem po­
demos comunicar diretamente como com qualquer outra
pessoa humana. Por isso as palavras do Cristo trazem a
marca da visão direta, interior (Jo 1,18; Lc 10,22; Jo 5,20).
Para o Cristo, o conhecimento de Deus é um bem de família,
que divide com o Pai e o Espírito, que ele comunica a quem
ele quer.
No conhecimento natural de Deus o ponto de partida
está na criatura como tal. No Cristo, porém, o conheci­
mento de Deus procede da própria Pessoa de Deus: “o Pai
e eu somos um” (Jo 10,27-30; 14,6;8,58). É a partir des­
se conhecimento que o Cristo condescende, isto é, desce
ao nível daquele que ele quer atingir, escolhendo em nosso
mundo as realidades que têm valor de símiles para o mis-
26 H. W. Robinson observa com justeza: “If, in our desire to exalt
God, we make Him the “altogether other”, we leave it impossible for
Him to communicate with man. However transcendent God is, the point
at which He reveals Himself to us must be a point at which He becomes
intelligible to us, that is, a point at which there is a kinship between His
nature and ours. This is a principle which some theologies have ignored
or denied, notably the present-day Barthianism” (Redemption and Reve­
lation (London, 1947), p. 165).

16 - Teologia da revelação
482 REFLEXÃO TEOLÓGICA

tério divino. Por exemplo: o Cristo, contemplando as ri­


quezas da vida divina, que comunica toda sua realidade sem
nada se reservar, a não ser a própria comunicação, disso
encontra nas criaturas uma imagem longínqua, mas real: a
comunicação orgânica que constitui a um pai e a outro filho.
Paternidade e filiação: duas analogias reveladas, escolhidas
pelo Cristo, que, têm, portanto, o caráter necessário e nor­
mativo de analogias impostas pelo próprio Deus. Essas
analogias reveladas despertam a reflexão humana que pro­
cura purificá-las e transfigurá-las para poder entrever algu­
ma coisa das profundezas da vida divina. Trabalho que é
feito sob a direção da Igreja que aprova, corrige ou recusa27.
O fato é que as noções escolhidas pelo Cristo para in­
troduzir-nos no mistério divino são noções humanas. O
Cristo tomou-as da linguagem humana, da imensa varieda­
de das realidades criadas. É a partir dessas realidades, obje­
tos da experiência humana, que se operam a purificação e
a ampliação provocadas pelo impulso da revelação. Se essas
realidades, ainda que deficientes, não tivessem nenhuma re­
lação com o mistério do Ser divino, então, o diálogo entre
Deus e o homem seria, de fato, apenas dois monólogos
paralelos, sem nenhum ponto de contato possível. O Cristo
pôde utilizar todos os recursos do universo criado para nos
fazer conhecer Deus e os hábitos divinos, porque a palavra
criadora precedeu e fundamentou a palavra reveladora, por­
que ambas têm como princípio a mesma Palavra interior de
Deus. A revelação do Cristo supõe a verdade da analogia28.
A revelação do Cristo não se compõe apenas de ana­
logias reveladas: compreende também juízos que ligam es­
sas* analogias entre si. Por exemplo: O Pai e o Filho são
um. A verdade desse juízo escapa completamente à evi­
dência ou à demonstração humana. Uma tal perfeição não é
participada nem participável por nenhuma criatura. O ho-
27 C. de Moré-Pontgibaud, Du fini à l’infini (Paris, 1957), pp.
121-131; M.T.-L. Penido, Le rôle de l’analogie en théologie dogmatique
(Paris, 1931), pp. 244-247, (A Função da analogia em teologia dogmática
(Petrópolis, 1946), Y. Congar, art. “Théologie”, DTC 15: col. 473-474;
Id., La foi et la théologie (Tournai, 1962).
28 Evidentemente supõe também que o espírito humano é apto para
conhecer e significar a realidade objetiva das coisas, para abrir-se a tudo
aquilo que tiver valor de ser e de verdade.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 483

mem pode apenas receber o testemunho daquele que em


si manifesta a glória de Javé no esplendor dos sinais.
Portanto, se a afirmação humana do Cristo pode pre­
tender “conter” a verdade divina, deve-se isso à analogia que
autoriza o emprego de noções humanas e à presença entre
nós daquele cujo conhecimento nasce da visão e que com
exclusividade pode dizer: est e non est. É a analogia que
legitima o uso dos termos da proposição; é a qualidade de
Filho do Pai que permite ao Cristo uni-los em juízos con­
formes à realidade do mistério divino.

V. SITUAÇÃO DO CRISTO

A encarnação estabelece entre o Cristo, os apóstolos


e a Igreja, com referência à revelação, relações que devemos
agora definir. O Cristo é ao mesmo tempo Deus que re­
vela e Deus revelado, caminho e sinal da revelação, res­
posta à revelação.
O Cristo é Deus que revela, pois o Verbo de Deus,
o Filho, Jesus Cristo, é tudo uma só realidade. “Êle é a
imagem do Deus invisível” (Col 1,15; 2Cor 4,4), “irra­
diação do seu esplendor e cunho da sua substância” (Hebr
1,3), ontologicamente qualificado para revelar o Pai, de
quem é, de certa forma, a eterna revelação. O Cristo é
causa e autor da revelação, pois a revelação origina-se tanto
do Cristo como do Pai e do Espírito. É ele a luz que bri­
lha e faz ver (Jo 8,12;9,5;1,9). Deus, Verbo de Deus,
Palavra de Deus, Filho único do Pai, ele nasceu para re­
velar, para dar ao mundo a plenitude da revelação29.
O Cristo, sendo o Deus que revela, é ao mesmo tempo
o Deus revelado. O Deus verdadeiro que ele ensina é o Deus
por ele anunciado e nele reconhecido, assim que ao confessar
o Filho confessamos também o Pai. O Cristo é ao mesmo
tempo o Deus que fala e o Deus do qual se fala, a testemunha
e o objeto do testemunho, autor e objeto da revelação, aque-

29 Observa santo Tomás: “Christus enim est ipsum Lumen com­


prehendens, immo ipsum Lumen existens. Et ideo Christus perfecte tes­
timonium perhibet et perfecte manifestat veritatem” (In Jo., c. 1, lect. 4).
484 REFLEXÃO TEOLÓGICA

le que revela o mistério e o próprio mistério em Pessoa.


Enquanto Verbo encarnado, ele é a expressão que revela;
enquanto Verbo de Deus, é em Pessoa a Verdade que ele
prega e ensina. É a verdade que nos liberta da mentira,
o Amor que nos livra da solidão de nosso egoísmo. “Ele
é a Verdade e a Vida” (Jo 14,6), a Verdade que nos en­
sina (Tit 2,12). “Ouvi-o”, diz-nos o Pai (Mt 17,5).
Sob esse ponto de vista, o Cristo não pode ser comparado com
Buda, Confúcio, Maomé ou qualquer outro fundador de
religião. Nas outras religiões a doutrina e seu objeto dis-
tinguem-se do fundador. Aqui, pelo contrário, a doutrina
do Cristo tem o Cristo por objeto. Nossa fé é a fé no
Cristo como Deus. A salvação é uma opção a favor ou con­
tra o Cristo. “Jesus Cristo, dizia Pascal, é o objeto de tudo,
o centro para o qual tudo tende” 30.
O Cristo é o caminho da revelação (Jo 14,5-6; Mt 11,
27), isto é, o meio escolhido por Deus para nos manifes­
tar o que ele é (Pai, Filho e Espírito) e o que nós somos
(pecadores chamados à vida). Ele é o caminho que nos
revela a vida e o caminho da vida. No Antigo Testamento
Deus utilizou-se do psiquismo dos profetas para se fazer co­
nhecer; agora, une-se hipostaticamente à natureza humana
e manifesta seu desígnio de vida pelas palavras, ações,
gestos, atitudes, comportamento do Cristo. Em Jesus Cris­
to, a Palavra eterna e interior de Deus ressoa para fora e
se faz ouvir pelo homem mediante a carne. De agora em
diante todo o conhecimento do verdadeiro Deus e toda sal­
vação, chega-nos mediante o Cristo.
O Cristo é o Sinal da revelação: sinal ao mesmo tempo
confirmativo (motivo de credibilidade) e figurativo (sím­
bolo). A glória do Deus onipotente e três vezes santo re­
pousa sobre o Cristo e designa-o como aquele que se declara
igual ao Pai. Pela sublimidade de sua doutrina, pelo brilho
de sua santidade, pelo poder de suas obras, isto é, pelo res­
plendor de seu ser e de seu agir, o Cristo faz sinal, indican­
do que é verdadeiramente o que pretende ser: Deus entre
os homens, e que seu testemunho é verídico. É em Pessoa,
o motivo de credibilidade por excelência. Deixa ao mesmo
30 Brunschvicg, fr. 556.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 485

tempo transparecer aos nossos olhos a transformação da


humanidade, realizada pela invasão da graça. É, em Pessoa,
o Homem novo que ele anuncia, totalmente vivificado pelo
Espírito.
Finalmente, o Cristo é a perfeita Resposta que a hu­
manidade dá à revelação. Ao movimento descendente da
revelação corresponde um movimento ascendente, que vai
do Cristo ao Pai. O Cristo é ao mesmo tempo revelação
do amor do Pai e resposta a esse amor. É a realização pro-
totípica, suprema, perfeita da resposta humana de amor ao
apelo divino do Pai. O Cristo estabelece com o Pai esse
diálogo harmonioso que é a norma de toda resposta e de
todo encontro com Deus. Por seu comportamento humano de
Filho que faz sempre a vontade do Pai, ele é o protótipo
da atitude filial da humanidade adotada pelo Pai. É o per­
feito adorador do Pai.
O Cristo é, pois, a Plenitude da revelação. Nele culmi­
na a revelação como ação, como economia,, como mensagem
e como encontro.

VI. SITUAÇÃO DOS APÓSTOLOS

Na economia da encarnação da revelação os apóstolos


ocupam lugar único com relação ao Cristo e à Igreja31.
São as testemunhas privilegiadas, “de antemão desig­
nadas” (At 10,41), “escolhidas” (Rom 1,1) para serem
31 Nota Ph.-H. Menoud: “Il ne suffit pas, pour sauver le monde,
que Jésus soit mort et ressuscité; il faut, que Jésus des témoins et
que ces témoins parlent. S’il s’agit de propager une religion philosophique
comme l’était la sagesse stoïcienne commune de l’âge hellénistique, des
prédicateurs et des maîtres suffiraient à la tâche. Pour annoncer aux
hommes qu’ils sont suavés, non par une doctrine intemporelle, mais par
une intervention de Dieu dans l’histoire, par des faits qui ont eu lieu une
fois pour toutes, à un moment donné et en un lieu donné, il faut des té­
moins, c’est-à-dire des hommes qui étaient présents lorsque ces faits sont sur­
venus et dont la prédication se fonde sur ces mots: “Nous avons vu”. La
révélation chrétienne comporte donc nécessairement ces deux faces: d’une
part, l’oeuvre rédemptrice accomplie par Jesus et, d’autre part, le témoignage
rendu au Ressuscité par ses disciples... C’est donc dire que l’Église est
fondée à la fois sur l’oeuvre du Christ et sur le témoignage des apôtres”
(“Jésus et ses témoins”, Église et Théologie, juin 1960, p. 1).
486 REFLEXÃO TEOLÓGICA

“ministros da palavra” (Lc 1,2) e “fundamento” da Igreja


(Ef 2,20,21). São Doze, como os doze patriacas e as doze
tribos de Israel. Constituem o germe do novo povo que o
Cristo conquistou com seu sangue, e desse povo eles serão os
pastores (Jo 21,15-17; Mt 10,6; IPdr 5,2-3; ICor 9,7).
O Cristo chamou-os, reuniu-os, para que estejam com ele:
companheiros de viagem, ouvintes de sua palavra, teste­
munhas de suas ações. Os apóstolos seguiram-no (Mt 1,29);
ficaram com ele em meio às tentações (Lc 22,28), mesmo
quando os outros o abandonavam (Jo 6,66). O Cristo
fez deles seus colaboradores íntimos, confiou-lhes seus pode­
res e sua missão. Filho do Pai, deu-lhes a conhecer tudo que
aprendera de seu Pai (Jo 15,15). Manifestou-lhes o nome
do Pai, deu-lhes as palavras e a doutrina do Pai (Jo 17,6.
8.14). Assim como fora enviado pelo Pai para pregar,
expulsar os demônios e curar toda enfermidade, assim tam­
bém enviou seus apóstolos para pregarem e expulsarem
os demônios (Mc 3,13-15), curando toda enfermidade (Mt
10,40-41; Lc 10,16). Sua missão é uma participação na mis­
são que o próprio Cristo recebera do Pai. Já Clemente de
Roma, em sua Carta, apresentava assim essa continuidade
entre a missão do Cristo e a dos apóstolos: “O Cristo vem
de Deus e os apóstolos vêm do Cristo” (42,1-4). Tertu­
liano fala da doutrina que “as Igrejas receberam dos após­
tolos; os apóstolos, do Cristo; o Cristo, de Deus” 32.
O Cristo não veio para escrever um livro ou criar um
novo sistema filosófico. Veio para fundar uma religião
cujo centro e objeto é ele mesmo em pessoa. Se a revela­
ção realizou-se pelo encontro com o Deus vivo, em Jesus
Cristo, então somente poderão ser mediadores autênticos
da revelação os que foram testemunhas de sua vida, inicia­
dos no mistério de sua Pessoa. Sem eles não podemos
atingir o Cristo. Quem se separa deles perde o contato com
o Cristo.
Ora, só os apóstolos tiveram do Cristo uma experiên­
cia viva, direta. Se o Cristo tivesse escrito um livro, os
homens teriam deixado o Cristo e os apóstolos por seu
livro. Como, porém, a Boa-nova tem como autor e como

32 De praescr., 21, 4.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 487

objeto o Cristo vivo, é essencial que a recebamos do pró­


prio Cristo e de suas testemunhas vivas. Os apóstolos são
os que viram, ouviram, tocaram o Cristo, antes e depois
de sua ressurreição (At 10,41), que estiveram com ele
“desde o começo” (Jo 15,27), desde o batismo de João até
a ressurreição (At 1,22). Essa primeira experiência tor­
nou-se mais profunda com a vinda e o dom do Espírito.
Num primeiro tempo, os apóstolos, de olhos carnais e ain­
da mal abertos, caminharam com o Cristo de Nazaré sem
compreendê-lo bem. Depois, num segundo tempo, sob a
luz do Espírito, releram todos os acontecimentos antes vi­
vidos em sua companhia (Jo 14,20.26; 16,12-13). Com­
preenderam então o que lhes fora impossível compreender
antes da paixão, da ressurreição e da efusão do Espírito. O
que agora transmitem à Igreja são as palavras e as ações
do Cristo, com a compreensão, porém, que lhes vem da
ação iluminadora do Espírito e da experiência da própria
vida da Igreja33. É tudo isso, palavras e ações do Cristo
compreendidas progressivamente pelos apóstolos, que tem
para nós valor de revelação e constitui o objeto de nossa
fé. Desde o início de nossa fé acreditamos naquilo que,
para os apóstolos, foi o termo de uma reflexão. Partici­
pamos do conhecimento pleno ao qual chegaram pelo Es­
pírito Santo.
Ninguém pode rivalizar com os apóstolos no conheci­
mento do Cristo. Momento único na história da revelação.
Plenitude e frescor do primeiro amanhacer da nova cria­
ção Evidente que os apóstolos não tiveram o conhe­
cimento explícito que a Igreja tem atualmente. Em
compensação, porém, pela intensidade, profundidade, ri­
queza de intuições, e totalidade, o seu conhecimento do

33 Tiveram assim os apóstolos completo conhecimento conceptual da


revelação, de um modo apropriado à sua missão de comunicar à Igreja
o depósito total da fé. Tiveram ainda uma compreensão privilegiada do
depósito, graças à iluminação do Espírito que os fazia penetrar até às
profundezas divinas (ICor 2,10).
34 Esse pensamento foi expresso pelos Santos Padres: Irineu (Adv.
Haer., III, 1-2), Tertuliano (De Praescr., 22), Epifânio (Haer., 66, n. 61),
e também por Sto. Tomás: “Qui fuerunt propinquiores Christo, vel ante,
sicut Joannes Baptista, vel post, sicut apostoli, plenius mysteria fidei cogno­
verunt” (la 2ae, q. 106, a. 4; 2a 2ae, q. 1, a. 7, ad 4; q. 171, a. 1, ad 1).
488 REFLEXÃO TEOLÓGICA

Cristo e da revelação supera todo conhecimento atual ou


futuro. Como afirma C. Journet, eles tiveram um “conhe­
cimento supremo, excepcional, que englobava, numa intuição
superior o sentido explícito imediatamente perceptível do
depósito por eles entregue à Igreja primitiva”; conheci­
mento que “superava também tudo que a Igreja, assistida
pelo Espírito, poderia descobrir ao longo dos séculos, expli­
citando e desenvolvendo esse primeiro depósito” 35.
Dessa plenitude de experiência, os apóstolos não trans­
mitiram tudo, nem o podiam transmitir. Sua pregação não
podia “esgotar” aquilo que há de inefável em qualquer
encontro pessoal. Tanto mais que não quiseram transmitir
tudo (Jo 20,30). Transmitiram pelo menos o essencial das
palavras e das ações do Cristo: aquilo que propriamente
constitui a economia da salvação (res fidei et morum).
Transmitiram o ensinamento do Cristo com a máxima fide­
lidade humanamente possível (o que não quer dizer trans­
missão “estenográfica”), no contexto de uma comunidade
cristã viva, para quem a doutrina do Cristo é uma doutrina
de vida, capaz de esclarecer situações novas, de resolver
problemas imprevistos. Transmitiram as ações do Cristo
com probidade e fidelidade (o que não quer dizer fideli­
dade fotográfica), levando em conta os ouvintes e os
ambientes.
A ação que dá a existência ao objeto de nossa fé e o
constitui, isto é, lhe permite ser para ser crido, é o teste­
munho apostólico, o depoimento dos que viram e ouviram
o Cristo e atestam o que dele viram e ouviram, sua morte
e sua ressurreição (At 4,33), mas também toda sua vida
(At 10,39) e toda sua obra de salvação (At 5,31ss;10,42).

VIL A SITUAÇÃO DA IGREJA

É pois diversa a condição dos apóstolos e a da Igreja.


Essa diferença de condição aparece claramente na primeira
Carta de são João. Os Cristãos aos quais ele sé dirige não
conheceram a Jesus; não têm outro meio de conhecê-lo
35 C. Jounet, L’Église du Verbe incarné (Bruges, 1955, 2*), I: 168-170.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 489

senão o testemunho de quem viveu com ele. Daí essa pro­


clamação solene do apóstolo: ele dá um testemunho para
fazer que os homens participem de sua experiência pessoal
do Cristo, Filho do Pai, e possam, através dessa experiên­
cia, participar do mistério da vida eterna: “O que era des­
de o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos
olhos, o que contemplamos e tocamos com as nossas mãos,
ou seja, o Verbo da vida, — porque a Vida apareceu e nós
a vimos e, por isso, atestamos e vos anunciamos a Vida
eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu — p que
vimos e ouvimos, anunciamos também a vós, para estardes,
vós também em comunhão conosco” (IJo 1,1-3). Graças
ao sinal da humanidade do Cristo, são joão pôde ouvir,
ver, contemplar o Deus vivo. Como poderíam os cristãos
participar dessa experiência? Mediante o testemunho apos­
tólico e a fé nesse testemunho (Jo 1,3;4,14-15; Jo 19,35).
É através da pregação objetiva do apóstolo, subjetivamente
acolhida pela fé e praticada pelos mandamentos, que os cris­
tãos entrarão em comunhão com o Verbo da Vida. Como
observa Ph.-H. Menoud, os apóstolos são “os intermediá­
rios obrigatórios entre o Cristo vivo e os homens desti­
nados a terem parte na salvação réalizada pela vida, morte
e ressurreição de Jesus. Mesmo quando essas testemunhas
inauguram o tempo da Igreja, pregando segundo sua voca­
ção, pertencem elas ainda ao tempo da revelação pelo nexo
especial que as une ao Cristo. Seu ministério é o último
ato da revelação anunciada por João Batista”36.
A experiência que os apóstolos tiveram do Cristo é
levada ao conhecimento dos homens pelo testemunho e
pelo quérigma apostólico. O conteúdo desse testemunho
é a Boa-nova, a mensagem da salvação, a palavra de ver­
dade, a palavra, ou simplesmente o Cristo. A ação que
corresponde à de testemunhar, pregar, evangelizar, é a de

36 les intermédiaires obligés entre le Christ vivant et les hommes


destinés à avoir part au salut réalisé par la vie, la mort et la résurrection
de Jesus. Alors même que ces témoins inaugurent le temps de l’Église
en prêchant selon leur vocation, ils appartiennent encore au temps de
la révélation par le lien unique qui les unit au Christ. Leur ministère
est le dernier acte de la révélation annoncée par Jean-Baptiste” (Ph.-H.
Menoud, “Jésus et ses témoins”, Église et théologie, junho 1960, p. 9).
490 REFLEXÃO TEOLÓGICA

ouvir com fé (At 18,8; Rom 10,17). O que se propõe


primeiramente à fé da Igreja (a revelação em sua forma
atual, realizada) não é, pois, a experiência concreta, viva,
intuitiva da Pessoa do Cristo como a puderam ter os após­
tolos mediante a encarnação, mas é o testemunho apósto-
lico sobre o facere e o docere do Cristo: testemunho que se
dirige “ex auditu” à inteligência que, internamente ilumi­
nada pelo Espírito, assimila o que os ouvidos ouviram. Tra­
ta-se, contudo, de um testemunho concreto (não apenas
verbal, mas real), que inclui também exemplos ou manei­
ras de agir, ritos e instituições. A revelação mediata trans­
mitida à Igreja está totalmente contida nesse testemunho
apostólico, isto é: na palavra dos apóstolos que nos convi­
dam a crer o que o Cristo disse e fez. O objeto da fé é
o Cristo, suas palavras e gestos, maneiras de agir, toda a
pessoa, enquanto, porém, propostos na doutrina dos após­
tolos sobre o Cristo. É essa doutrina, confiada à Igreja
como um depósito, que são Paulo exige que seja conservada
(ITim 6,20; 2Tes 2,15).
Portanto, os documentos do Magistério estão confor­
me aos dados da Escritura e da tradição quando equivalen­
temente falam de doutrina apostólica (D. 300), de doutri­
na revelada (D. 2314), de revelação transmitida pelos após­
tolos ou de depósito da fé (D. 1836), de depósito da fé
confiada à Igreja (D. 2204). A revelação, em sua forma
atual, objetiva, é o testemunho apostólico depositado na
memória da Igreja.
A teologia protestante atual resiste à idéia de uma re­
velação concebida como dispensação de verdades divina­
mente garantidas37. Vê na revelação principalmente um ato
divino, um acontecimento: a ação do Deus vivo que irrom­
pe na existência do homem e o convida a uma opção que
salva. Conseqüentemente, a fé é principalmente acolhida da
epifania divina, encontro existencial de Deus em Jesus
Cristo. Para Bultmann, a revelação tende a ser apenas uma

37 J. Baillie, The Idea of Revelation in Recent Thought (New


York and London, 1956), pp. 29, 32; G. E. Wright, God who acts
(London, 1958), pp. 35-38, 57-58» 83, 107, 109.
ENCARNAÇÃO E REVELAÇÃO 491

ação, com exclusão prática de qualquer doutrina; estrita­


mente, não existe a não ser no encontro existencial da féM.
A teologia católica é a primeira a declarar que a re­
velação é uma ação, um acontecimento, um encontro que
transtorna a existência do homem e o convida a uma de­
cisão, a um comprometimento de toda a pessoa. Ajunta, po­
rém, fiel até ao fim ao realismo da encarnação, que o en­
contro do Cristo e de seu mistério se dá pela audição do
testemunho apostólico, transmitido pela Igreja e consigna­
do na Escritura. É pela adesão à doutrina apostólica que
atingimos a Deus e seu mistério; é mediante a fragilidade
dos sinais — gestos e palavras — que chegamos à própria
realidade do Cristo: não apenas pelos sinais, mas com o
socorro e o poder de penetração da luz da fé. A adesão
ao quérigma, à mensagem é meio de encontro e de comu­
nhão com a Pessoa39. A revelação é uma ordem de conheci­
mento que tem por finalidade uma ordem de vida. Se Deus
nos fala, é para associar-nos à sua vida (D. 1786). Caminha­
mos da mensagem para a vida, como caminhamos do conhe­
cimento para o amor, da fé para a caridade. A doutrina
não tem por finalidade garantir a fidelidade de pensamento
a uma ortodoxia por si mesma; deve garantir um encontro,
uma união na verdade com o Deus verdadeiro. Nossa ade­
são ao Cristo é mediatizada enormalizada pela nossa adesão
ao testemunho e à doutrina dos apóstolos: uma doutrina de
salvação, uma palavra de vida.
Essa maneira de ver nada tem de ofensivo para o es­
pírito humano. Se admitimos que Deus pôde escolher uma
economia de encarnação para se revelar, devemos pensar
que Deus foi lógico até o fim de seu desígnio: é pelos ges­
tos e pelas palavras do Cristo, é pelo testemunho apostó­
lico que temos acesso ao Mistério. A Palavra de Deus se
reveste com a carne do Cristo, com a carne das palavras,

38 R. Bultmann, L’interpretation du Nouveau Testament (Trad.


O. Laffoucrière, Paris, 1955), pp. 203-214. Encontramos a mesma ten­
dência no artigo “Αποκαλύπτω” de A. Oepke, Theol. Wõrterbuch
zum N.T., 3: 575, 586.
39 Com muita razão observa santo Tomás que a fé não tem por fim
os conceitos, mas a realidade (2a 2ae, q. 1, a. 2, ad 2; q. 11, a. 1; De
Verit., q. 14, a. 8).
492 REFLEXÃO TEOLÓGICA

dos sinais sacramentais. Encobrimento e descobrimento de


Deus, dialética essencial de uma revelação que ainda não é
visão. A resistência contra uma revelação entendida como
doutrina procede, em muitos protestantes atuais, do de­
sejo de marcar ainda mais a característica personalista, exis­
tencial, “fatual” da revelação; em outros, porém, procede
da recusa clara ou disfarçada da encarnação.
5.
REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ

Durante muito tempo, na tradição escolástica, os teó­


logos designavam com o termo revelação duas realidades:
a comunicação ao homem, do pensamento divino sob a for­
ma de doutrina, de mensagem; a graça interior que move
o homem a dar seu assentimento àquela palavra exterior.
Geralmente esse modo de falar baseava-se nos textos
da Escritura que mencionam, paralelamente à pregação ex­
terior do Cristo e dos apóstolos, uma revelação, um ensina­
mento, uma iluminação, uma atração, um testemunho in­
teriores. São Boaventura, por exemplo, atribui a fé prin­
cipalmente a uma audição interior, a uma revelação (Mt
16,17), a uma atração do Pai (Jo 6,44). Santo Tomás não
usa habitualmente o termo revelação para designar essa ação
interior, fala, porém, de instinto interior,1 de um apelo
interior2, de uma atração interior3. Trata-se de uma graça
que convida para crer, que move à fé. Após a crise do
protestantismo, certo número de teólogos, principalmente
Cano e Banes, continuam a designar com o termo revela­
ção a iluminação interior da graça da fé. A exemplo de
Suárez e de De Lugo, porém, é mais comum reservar o
termo para a proposição do objeto da fé, por Cristo e pelos
apóstolos. Os teólogos, porém, nunca deixam de notar a
ação conjunta da palavra exterior e da palavra interior.
Scheeben principalmente, no século XIX, refere-se a uma
palavra e a uma audição interiores, a um ensinamento, a
uma abertura do coração que correspondem à palavra exte-

1 III Sent., d. 23, q. 3, a. 3; IV Sent., d. 17, q. 1, a. 1 sol. 2; Quodl.


2, q. 4, a. 6; In Jo., c. 6, lect. 5; 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3; a. 3, ad2;
q. 10, a. 1, ad 1; Rom., c. 8, lect. 6.
2 Quodl., 2, q. 4, a. 6.
3 In Jo., c. 6, lect. 5.
494 REFLEXÃO TEOLÓGICA

rior e a vivificam. A teologia do século XX é particular­


mente atenta a essa dimensão interior que dá à palavra
divina sua característica específica. Qual é, pois, a natu­
reza dessa revelação interior, qual o seu relacionamento com
a palavra exterior? A que título entra em a noção de re­
velação? Rigorosamente, qual o nome que lhe conviría dar?

I. AS BASES ESCRITURÍSTICAS

1. Os teólogos e santos Padres constantemente in­


vocam duas passagens dos Sinóticos quando denominam
revelação a iluminação interior da graça da fé. O primeiro
pertence a uma dupla tradição: “Eu te louvo e agradeço, ó
Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas
aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos simples” (Mt
11,25; Lc 10,22). O texto opõe à dos pequenos a con­
dição dos sábios e sagazes. Eles são os escribas e os fari­
seus (Mt 23,1-12) e os que lhes são semelhantes, os que
pretendem bastar-se a si mesmos, que não compreendem
que na ordem do Reino tudo é dom. Os pequenos são os
que, com toda simplicidade e humildade, como os discípu­
los, reconhecem sua insuficiência diante de Deus e se abrem
à sua palavra. Sua sabedoria vem, não deles mesmos, mas
de Deus. A estes, Deus revelou os mistérios do Reino,
tudo que o Cristo tinha por missão comunicar aos homens,
principalmente quem é o Pai e quem é o Filho. Tudo isso,
pelo contrário, foi escondido aos sábios e aos sagazes da
terra. Não há dúvida que a revelação de que se fala
aqui é uma ação interior do Pai, e não a simples proposição
exterior da doutrina, pois que esta foi feita tanto aos sábios
como aos pequenos. É uma ação divina que se refere an­
tes à aceitação da doutrina do que à sua comunicação. Para
que se possa reconhecer a missão do Cristo e a verdade de
sua mensagem, é preciso uma iluminação interior, que
é obra do Pai. Ao Cristo, Filho do Pai, compete manifestar
o Pai e seus segredos; compete, porém, ao Pai fecundar
essa palavra exterior para que o homem possa dar-lhe a
adesão da fé4.
4 L. Cerfaux, “L’Évangile de Jean et le logion johannique des
REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 495

Encontramos, a mesma expressão em Mt 16,17: Após


a confissão de Pedro em Cesaréia, diz Jesus: “Bem-
-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a
carne e o sangue que to revelou mas meu Pai que está
nos céus”. O que vem a ser essa revelação? Evidentemen­
te não se trata de uma manifestação distinta e autêntica
do Pai, que se acrescentasse às declarações do Cristo, e indi­
casse a Pedro quem é o Cristo. Pelo contrário, é tão pouco
distinta essa revelação que o próprio Cristo deve chamar
a atenção de Pedro para a ação da qual foi objeto, pois
que ele não se dera conta de estar sendo interpelado interna­
mente. A revelação de que fala Cristo deve ser antes assimila­
da à ação interior do Pai da qual se fala em Mt 11,25, que
dá a Pedro, como aos humildes e pequenos, a possibilidade de
se abrir à pregação exterior e de confessar o Cristos. Con­
fessando que Jesus é o “Cristo” (Marcos), “O Cristo, o
Filho de Deus vivo” (Mateus), Pedro não obedece apenas
aos sonhos messiânicos dos judeus de seu tempo, nem ape-

Synoptiques”, em L’Évangile de ]ean (Louvain, 1958), pp. 147-159; Id.’


“Les sources scripturaires de Mt 11,25,30”, Eph. theol. lov., 31 (1955):
334ss; L. Charlier, “L’action de grâces de Jésus (Mt 11,25-30)”, Bible
et Vie chrétienne, 1957, pp. 87-99; A. Feuillet, “Jésus et la sagesse
.divine d’après les Évangiles synoptiques”, Revue biblique, 1955, pp.
161-196.
5 Ao que parece, Mateus apresenta essa confissão de Pedro como
confissão da divindade: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo” (Mt
16,16). Marcos, porém, na passagem paralela diz simplesmente: “Tu
és o Messias” (Mc 8,29). Se levarmos em conta que essa confissão vem
após o ministério na Galiléia, centralizado sobre a messianidade de Jesus,
e se considerarmos também o modo totalmente humano de os apóstolos,
até a ressurreição, considerarem a função messiânica de Jesus, podemos
supor que o texto de Mateus é uma releitura do acontecimento “em fun­
ção de uma fé mais evoluída” (P. Benoit, “La divinité de Jésus dans
les Synoptiques”, Lumière et Vie, n. 9 [abril 1953], pp. 58-59, 53). A
interpretação proposta por D. M. Stanley, ainda que nos pareça menos
provável, merece ser citada. O progresso da fé nos apóstolos, diz ele, é pa­
ralelo ao da revelação que o Cristo faz do mistério de sua pessoa: revela-
-se inicialmente como rabino e mestre, depois como Messias, finalmente
como Filho glorioso do Pai. Neste crescimento contínuo dos apóstolos
na fé, podemos compreender que haja momentos privilegiados. É pos­
sível pois que em Cesaréia, quando a proclamação do mistério do Cristo
ainda não era completa, Pedro tenha sido levado pela graça acima de
seu conhecimento atual. “Profissão de fé na divindade oculta, ainda não
percebida conscientemente, mas já pré-aceita” (D. M. Stanley, Études
matthéennes: la confession de Pierre à Césarée”, Sciences Écclésiastiques,
6 [1954]: 51-61).
496 REFLEXÃO TEOLÓGICA

nas aos sentimentos de admiração que ele tem por seu mes­
tre, mas adere docilmente ao testemunho do Pai que está
nos céus: abre-se ele a uma luz que vem do alto.
2. Há um texto dos Atos, muitas vezes citado, que
salienta como os cristãos são gerados para a fé pela pala­
vra apostólica e pela ação interior de Deus. Lídia, negocian­
te da cidade de Tiatira, ouvia a pregação de Paulo. “O
Senhor abriu-lhe o coração de sorte que aderiu ao que Paulo
dizia” (At 16,14). “Abrir o coração”, na mentalidade se-
mítica significa esclarecer a inteligência6. Enquanto Paulo
propunha a mensagem divina, a graça agia secretamente em
Lídia para iluminá-la e bem dispor.
3. Em suas cartas aos coríntios Paulo fala de ilumi­
nação e de unção divinas. Numa primeira passagem ( 2Cor 4,
4-6), são Paulo compara a iluminação por ele recebida com
a fé, no momento de suas conversão e de sua vocação apos­
tólica (Gál 1,15-16; At 26,18), com a criação da luz na
primeira manhã do universo7. A glória de Deus, que ou­
trora brilhara na face de Moisés, brilha agora na face do
Cristo; para reconhecê-la, porém, é preciso que Deus ilumine
nossos corações: “O Deus que disse à luz que brilhasse no
seio das trevas, brilhou ele próprio em nossos corações,
para fazer resplandecer o conhecimento de sua glória, na
face de Jesus Cristo” (2Cor 4,6 )8. Em 2Cor 1,21-22,
Paulo usa o termo unção para designar a ação divina que
suscita a fé no coração dos que ouvem a verdade: “aquele
que nos fortifica em Cristo, juntamente convosco, e que
nos concedeu a unção, é Deus, o qual também nos marcou
com o seu selo e colocou o Espírito em nosso coração como
arras”. O Deus que fortalece Paulo e os cristãos na fé,
é aquele que, por sua unção, os levou a crer’.
4. A intervenção divina na origem da fé, que são

6 L. Cerfaux et J. Dupont, Les Actes des apôtres (Paris, 1953),


p. 146.
7 Também a Epístola aos hebreus diz que aqueles que receberam a
fé foram “iluminados” pelo Espírito Santo (Hebr 6,4).
8 J. Dupont, Gnosis, La connaissance religieuse dans les épitres de
S. Paul (Louvain et Paris, 1949), pp. 36-37; D. Mollat, “Nous avons
vu sa gloire”, Christus, n. 11 (1956), p. 316.
9 I. de la Potterie, “L’onction du chrétien par la foi”, Bíblica,
40 (1959): 24,27.
REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 497

Paulo denomina iluminação, unção, é designada por são


João como atração, testemunho, ensinamento. “Ninguém po­
de vir a mim, se não o atrair o Pai, que me enviou. .. Todo
aquele que ouviu o Pai e recebeu o seu ensinamento vem a
mim” (Jo 6,44-45). Isaías 54,13 e Jeremias 31,33ss anun­
ciaram o dia em que todos seriam instruídos pelo próprio
Deus. Esse tempo chegou. Deus fala pôr seu Filho (Jo
1,18). É preciso ouvir Aquele que viu a Deus e vem de
Deus. Mas, para aderir à palavra do Cristo não basta ter
ouvido sua pregação (Jo 6,21-41), nem ter visto seus mi­
lagres (Jo 6,1-21 ): é necessária também uma atração interior,
dom do Pai (Jo 6,66). A adesão à fé depende de um
princípio dado pelo Pai, mediante uma inclinação que ele
suscita em nós, uma sedução, uma atração sobrenatural que
ele exerce sobre nós, à qual consentimos, livremente, po­
rém. Assim pode o Cristo dizer que o Pai lhe dá aqueles
que acreditam em sua palavra (Jo 6,39; 17,9-11,24; 10,29).
O Pai que atrai os homens e os dá ao Cristo, é tam­
bém o Pai que testemunha. Testemunha em favor do Filho
pelas obras de poder que lhe concede realizar (Jo 5,37),
pelas Escrituras que anunciam sua vinda (Jo 1,45;5,47),
e também por um testemunho mais íntimo e pessoal (Jo
5,37;6,44). Em sua primeira Carta são João volta a esse
tema, agora, porém, mencionando expressamente a ação do
Espírito. Numa seção totalmente dominada pelo tema da
fé ( 1 Jo 5,5-12), declara: “É o Espírito que dá testemunho,
porque o Espírito é a verdade” (IJo 5,6). O Espírito tes­
temunha enquanto age no interior da alma para que ela
reconheça a verdade do Cristo e confesse que ele é o Filho
de Deus. Aquele que acredita, rende-se ao testemunho do
Espírito qu nele age para fazê-lo aceitar a palavra do Cris­
to 10. É também o Espírito que grava a palavra do Cristo
para que permaneça na alma como uma força viva e ativa:
é o princípio da assimilação contínua da palavra recebida
na fé (IJo 2,27).
Em todas essas passagens, fala-se de uma ação interior
que acompanha a palavra exterior. Ação descrita como atração,

10 I. de la Potterie, “La notion de témoignage dans S. Jean”, em


Sacra Pagina, (Paris, 1959), pp. 205-206.
498 REFLEXÃO TEOLÓGICA

iluminação, testemunho, ensinamento, revelação, unção. Há


em nós alguém que age primeiro: numa iniciativa sobera­
na que nos convida a crer na palavra do Cristo que ressoa
externamente. Á resposta é livre, brota, porém, da inicia­
tiva divina. Na atração da graça já está como que em ger­
me a reação, ou seja, a resposta do homem à palavra de
Deus. A vida cristã começa com essa primeira passividade
à conquista divina. A palavra vem acompanhada pelo sopro
do Espírito que vem para fixá-la definitivamente.
Os santos Padres, por sua vez, retomam as expressões
da Escritura. Podemos dizer que entre eles existe uma ver­
dadeira tradição do magistério interior. Os documentos da
Igreja não usam o termo revelação para designar a atração
interior que convida a crer na mensagem evangélica. O
Concilio de Orange fala de uma “iluminação, e inspiração
do Espírito Santo que dá a todos a suavidade da adesão e
da crença.na verdade” (D. 180). A expressão é retoma
da pelo primeiro Concilio do Vaticano (D. 1791). O con­
cilio de Trento fala de uma graça “excitante” (D. 798),
de uma “iluminação” com a qual Deus “toca o coração do
homem”, “excita”, “chama” (D. 797, 814). O concilio
do Vaticano fala de uma inspiração da graça (D. 1789),
de um “auxílio” vindo do alto. Deus, por sua graça “excita”
os que procuram a verdade (D. 1794). Essa graça acom­
panha a pregação da mensagem evangélica (D. 180), a pa­
lavra exterior (D. 798).

II. NATUREZA E FUNÇÃO DA ATRAÇÃO INTERIOR

Partindo das indicações da Sagrada Escritura e do Ma­


gistério, vamos procurar precisar as características dessa re­
velação ou atração interior.
1. Diversas vezes santo Tomás observa que Deus
convida o homem para crer, não apenas com um ensina­
mento exterior, mas também por um instinto interior 11. O
Pai atrai os homens pela palavra de seu Filho e por uma
11 2a 2ae, q. 2, a. 9, ad 3; q. 10, a. 1, ad 1. Sobre a teologia e a
psicologia da fé em santo Tomás, cfr. principalmente: B. Duroux, La
psycologie de la foi chez Saint Thomas d’Aquin (Fribourg, Suisse, 1956);
I. de "Wolf. La justification de ia foi cez Saint Thomas d’Aquin et le
REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 499

atração interior 12. Essa atração divina produz na alma uma


inclinação como que natural13. Instinto, inclinação, atração:
termos que bem se adaptam à realidade.
Na ordem natural, a faculdade de conhecimento, sen­
sível ou espiritual, tende para seu objeto formal como para
seu bem próprio, com um impulso inato, isto é, por sua pró­
pria estrutura ontológica, por sua constituição e seu dinamismo
interno. Mesmo antes de qualquer exercício atual de sua
capacidade inata, o olho está destinado a perceber a cor
e a inteligência é apta para a percepção do ser. O objeto
formal, portanto, age sobre a faculdade como causa final:
atrai. Na ordem da fé, o homem é dotado de um novo
princípio de conhecimento, de um novo objeto formal. Deus,
elevando a inteligência humana, imprime-lhe uma ten­
dência, um impulso sobrenatural que a inclina para ele, Ver­
dade primeira, como para seu Bem supremo. Obscuramen­
te Deus atrai para si a inteligência, convidando-a a con­
formar seus pensamentos aos pensamentos divinos, seu co­
nhecimento ao conhecimento do próprio Deus, Verdade
pessoal e subsistente.
Acreditar é abandonar-se voluntariamente à solicitação di­
vina e procurar apoio no próprio Deus, como soberana­
mente infalível e veraz. Santo Tomás diz que essa tendência,
inscrita na atividade intelectual como um instinto primeiro
e profundo, como se fosse uma inclinação natural, é neces­
sária. Isso porque, na fé, a inteligência deve renunciar ao seu
modo conatural de conhecer baseado na evidência e apoiar-
-se, como num Absoluto, no testemunho incriado do Deus
Père Rousselot (Paris, 1946); A. Stolz, Glaubensgnade und Glaubenslicht
nach Thomas von Aquin (Studia Anselmiana, I, Romae, 1933); H. Lang,
Oie Lehre des bl. Thomas von Aquim von der Gewiss heit des überna-
türlichen Glaubens, historisch untersucht und systematisch dargestellt
(Augsburg, 1929); Id., Die Entfaltung des apologestischen Problems in
der Scholastik des Mittelalters (Freiburg, 1962). M.-D. Chenu, “Pro
fidei supernaturalitate illustranda” Xenia Thomistica, III (Romae, 1925),
pp. 297-307; Id., “La psycologie de la foi dans la théologie du -XIIIe
siècle”, em Études d’histoire littéraire et doctrinale du XIIIe siècle,
deuxième série (Paris, 1932), pp. 163-191; R. Tucci, “La soprannatura-
lità della fede per rapporte al suo oggetto formale secondo S. Tommaso
d’Aquino”, Aloisiana, II (Napoli, 1961), pp. 1-95; R. Aubert, Le pro­
blème de l’acte de foi (Louvain, 1958, 3·), pp. 43-71.
12 In Jo., c. 6, lect. 5.
13 2a 2ae, q. 1, a. 4, ad 3; III Sent., d. 23, q. 2, a. 1, ad 4.
500 REFLEXÃO TEOLÓGICA

que ela não vê. É uma passagem da autonomia à teonomia.


Essa rendição da inteligência é psicologicamente impossível
sem uma conaturalização do espírito com o mundo superior ao
qual acede. Assim, sob a ação de Deus que a inclina e
atrai, a inteligência pode dar um assentimento total ao mis­
tério da vida íntima de Deus e de seu desígnio, como vem
apresentado na mensagem cristã M.
O convite à fé não se reduz à manifestação exterior
pela linguagem e pelos sinais de poder; tem também uma
dimensão mais profunda, obra do Espírito. Deus não apenas
dá, pelo Cristo, o Evangelho; dá-nos também a força
para a adesão. Enquanto a pregação do Cristo, dos após­
tolos e da Igreja ressoa externamente, anunciando clara­
mente o desígnio salvifico de Deus, nosso espírito é interna­
mente solicitado por Deus para que aceite como verdadeira
a nova ordem proposta pela Igreja 15.
2. Atração interior e palavra exterior estão estreita­
mente ligadas, mas a atração não é uma revelação. Estrita­
mente, só podemos falar de revelação quando há uma pro­
posição explícita de um conteúdo de pensamento, um con­
vite explícito para acreditar nesse conteúdo de Densamento.
percepção explícita desse conteúdo de pensamento e desse
convite para crê-lo como autenticamente de Deus. Ora, na
atração interior Deus age interiormente, mas sua ação per­
manece indistinta. É antes pelas fontes da revelação do
que pela reflexão psicológica sobre a experiência vital de
nossa fé que conhecemos a existência dessa atração divina.
A atração do verum e a atração do Verum pessoal es­
tão de tal modo unidas no dinamismo intelectual que, a não
ser nos casos de vida mística extraordinária, é impossível
distingui-las pela consciência reflexa. A atração divina in-
14 A mesma tendência é chamada inclinação relativamente à sua causa
eficiente; atração, relativamente à sua causa final.
15 E. Dhanis, “Révélation explicite et implicite”, Gregorianum, 34
(1953): 229-231; J. Alfaro, Adnotationes in tractatum de Virtutibus
(curso mimeografado, Roma, 1959), pp. 140-155; L. Malevez, “Théolo­
gie dialectique, théologie catholique et théologie naturelle”, Recherchés
de science religieuse, 28 (1938): 527-540; M.-L. des Lauriers, Dimen­
sions de la foi (2 vol., Paris, 1951), 2: 253-269; R. Aubert, Lé Pro­
blème de l’acte de foi (Louvain. 1958, 3’); B. Duroux, La psycologie
de la foi chez Saint Thomas d’Aquin, pp. 32-38.
REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 501

dica que Deus está convidando à fé; indica-o, porém, obscu­


ramente como tendência que, por seu exercício mesmo, de­
signa o objeto ou o termo de seu impulso. Essa atração age
como inspiração e não como expressão. Precisa de uma
determinação posterior que lhe vem da palavra explícita
de Deus, ou seja, da mensagem da salvação. Contudo, sua
influência é real e decisiva no assenso da fé, pois é ela
que dá à inteligência a capacidade de apoiar-se na Ver­
dade primeira, em si e por si mesma. Dá o poder aderir
ao Evangelho e ao Deus do Evangelho. Ela, porém, não
é o Evangelho nem uma nova palavra. É a primeira na
ordem da eficiência, como o Evangelho é o primeiro na or­
dem da expressão. Não pode, estritamente, ser chamada
revelação: convida para crer, permanecendo, porém, o ano­
nimato. É antes uma inspiração ou iluminação do Espírito
Santo (D. 180, 1791)
3. A atração interior pode mais exatamente ser
designada como testemunho. Isso porque indica “ obs­
curamente o Deus de verdade como pedindo um assen­
timento. .. que se apóie em Deus, que atrai ou convida,
como garantia incomparável de verdade” 17. Ora, pelo visto
anteriormente, o convite para crer, como garantia de ver­
dade, é o elemento específico do testemunho. Deus, prin­
cípio e termo da atração interior da graça da fé, pode ser
designado, em senso lato, mas não impróprio, como um Deus
que testemunha. Esse testemunho, porém, não é uma re­
velação no sentido estrito, pois continua indistinto e obs­
curo. Está totalmente ordenado para a mensagem da sal­
vação, para cuja aceitação e assimilação ele dispõe a alma “.

III. AS DUAS DIMENSÕES DA PALAVRA DE DEUS

Não podemos falar de testemunho exterior e de tes­


temunho interior sem que logo surja a questão: qual a rela-

10 E. Dhanis, “Révélation explicite et implicite”, Gregorianum, 34


(1953): 203; J. Alfaro, Adnotationes in tractatum de Virtutibus, pp.
157-163.
17 E. Dhanis, “Révélation explicite et implicite”, Gregorianum, 34
(1953): 231.
18 Ibid., p. 231 e p. 203, nota 40.
502 REFLEXÃO TEOLÓGICA

ção entre ambas essas realidades que a Escritura, a Tradi­


ção e os documentos do Magistério emparelham constante­
mente? Como é que o Cristo histórico que anuncia a Boa-
-nova e o Espírito que age interiormente se integram na
unidade de nosso encontro com Deus? Julgámos que são
duas realidades complementares, mutuamente ordenadas, for­
mando como que duas dimensões da palavra de Deus.
1. Deus interpela e convida à fé mediante a mensa­
gem que o Cristo, os apóstolos e a Igreja anunciam exter­
namente; complementariamente interpela e convida median­
te a inclinação e a atração internas que produz na alma. Há
uma ação conjunta do anúncio exterior e da atração interior.
A atração adapta-se ao testemunho exterior, que ela sub­
entende, assume, vivifica e fecunda. A graça in-spira o que
a pregação exterior ex-prime e pro-clama. O Cristo e os
apóstolos declaram o que o Espírito insinua e jixa nas al­
mas. Deus testemunha pelos sinais conceptuais e por um
apelo interior. Exteriormente a mensagem da salvação nos
atinge numa manifestação distinta e solidamente garantida,
convidando-nos a crer, enquanto interiormente a graça nos
faz perceber a mensagem e o apelo exterior como uma palavra
viva pessoalmente dirigida a nós. A atração interior move-
-nos a dar o assentimento da fé à Verdade primeira, en­
quanto, porém, significada pelos conceitos e pelos enuncia­
dos. Num ato único dizemos sim à Igreja e a Deus. Mas
a força para pronunciar este sim e para nos abandonar a
Deus por causa dele mesmo, vem da ação interior da graça.
Sem ela jamais poderiamos crer com fé teologal.
2. De certo modo podemos dizer que a atração tem
um primado sobre a apresentação objetiva da mensagem,
pois na inclinação sobrenatural produzida por Deus já está
como que pre-significado o objeto da tendência. A atração
está à espera de seu objeto. Isso é mais visível no caso dos
povos que ainda não ouviram a pregação do Evangelho.
Antes mesmo que recebam a mensagem, a graça já está agin­
do. Neles a atração da graça obscuramente designa o Deus
de verdade como o objeto soberanamente capaz de saciar
a inteligência que anseia pela verdade. Deus, por essa atra­
ção, já se dá incoativamente, infundindo uma inclinação que
leva a ele, Verdade suprema. Os homens, sob a influência
REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 503

dessa graça, procuram tateantes, pressentindo vagamente um


mistério de salvação.
Na economia atual, contudo, essa iniciativa da graça
está ordenada ao Evangelho que ela prepara e que não é
simples sugestão confusa de um mistério de salvação, mas
sim manifestação distinta do desígnio salvifico de Deus.
O Espírito está à espera da palavra para a fecundar e fazer
frutificar. Na ordem dò conhecimento, que é o da reve­
lação, a mensagem, isto é, o Evangelho, tem um primado
sobre a atração.
A atração é dada para dispor o homem para ouvir a
mensagem, para conaturalizá-lo com o mistério divino e dar-
-Ihe a força de aceitar como verdadeira a nova ordem do
Reino de Deus. A revelação interior feita a Pedro refere-se
às afirmações do Cristo sobre sua missão. A iluminação
dada a Lídia, abre-lhe o espírito para a mensagem ouvida.
A atração de que fala são João está em relação com o en­
sinamento do Cristo sobre o pão da vida (Jo 6,21-41):
destina-se a fecundar a palavra do Cristo. A inspiração
para crer está a serviço da mensagem. No fundo, mesmo
na experiência contemplativa e mística, encontramos sem­
pre essa conformidade com a palavra de Deus, enquanto
proposta pela Igreja. É essa conformidade que garante re­
tidão e autenticidade à nossa busca e ao nosso encontro da
verdade. A experiência da fé permanece submetida à dou­
trina que a julga. A graça age sempre em dependência da
doutrina. Portanto, se no plano da revelação déssemos o
primeiro posto à experiência inefável da Palavra secreta­
mente dirigida à alma, estaríamos falseando as perspectivas
da Escritura e do Magistério. Na ordem da revelação, a
missão do Espírito completa e termina a missão do Cristo.
A atração está a serviço do Evangelho. O Cristo, os após­
tolos, a Igreja proclamam a mensagem da salvação, enquan­
to o Espírito fecunda a audição da palavra e dá à alma a
força para aderir-lhe. É uma ação conjunta para um efeito
único: a fé. A manifestação dos desígnios divinos é feita
pelo Evangelho; a eficiência (disposição para ouvir, capa­
cidade de aprender) é obra da atração.
Devido a essa dimensão da graça, a revelação é pala­
vra única na sua espécie. À sua eficácia de palavra exte-
504 REFLEXÃO TEOLÓGICA

rior acrescenta-se uma eficácia particular que lhe vem da


ação divina que penetra o íntimo de nossa atividade in­
telectual e volitiva para dar começo em nós à resposta da
fé. Essa graça é um socorro atual que age sobre o espírito,
movendo, excitando, chamando, prevenindo, como o ensinam
os documentos do Magistério.

IV REVELAÇAO E SACRAMENTO

A palavra da revelação tem, pois, uma ana­


logia com os sacramentos. Ela também pode ser conside­
rada palavra eficaz, num sentido, porém, que se deve precisar.
De modo geral, revelação e sacramentos podem ser
considerados como formas diversas e análogas da vasta eco­
nomia divina segundo a qual a salvação nos é dada me­
diante os sinais. Nessa economia, a sacramentalidade for­
ma como que círculos concêntricos numa ordem decres­
cente de eficácia: a) encarnação do Verbo, fonte de toda
graça; b) sacramentos propriamente ditos; c) palavra re­
velada w. A revelação, enquanto palavra divina, tem eficá­
cia própria, superior à da palavra humana) inferior à dos
sacramentos. A palavra humana pode soliçitar apenas exte-
Tiormente, enquanto que a palavra divina, pelo auxílio que
» acompanha, atinge o íntimo das faculdades.
Revelação e sacramentos ordenam-se para a salvação,
de maneira diversa, porém. A revelação tem por fim a obe­
diência da fé, que é o “começo da salvação, o fundamento
e a raiz da justificação” (D. 801); não a produz, po­
rém, ex opere operato, como o faz o sacramento. É eficaz
porque o auxílio atual, que constitui a sua dimensão inte­
rior, excita, chama, atrai realmente para a aceitação da men­
sagem, e desenvolve realmente na alma uma força de per­
cepção capaz de chegar à adesão de fé, se o homem livre­
mente aceita os prevenientes convites da graça. Da parte
de Deus nada falta, se o homem não foge à graça; a efi­
cácia da palavra está assim condicionada à livre resposta do
homem.
19 E. Schillebeeckx, “Parole et sacrement dans l’Église”, Lumière
et Vie, 9 (1960): 33-35.
REVELAÇÃO E LUZ DA FÉ 505

Nesse primeiro e dramático encontro de Deus e do


homem, que é a opção da fé, Deus, pela palavra fecundada
pelo Espírito, solicita a adesão do homem, sem, porém, vio­
lentar sua livre decisão. Se a revelação é acolhida pela fé,
leva aos sacramentos, que supõem a‘ fé como condição para
sua recepção frutuosa; sem a fé os sacramentos nada mais
seriam que sinais vazios e sem eficácia.
Aquilo que se anuncia pela revelação, realiza-se pelo
sacramento. A salvação anunciada, manifesta-se no sacra­
mento. A revelação excita para a obediência da fé na salvação
que o sacramento realiza entre nós. Pelo sacramento torna-se
presente a salvação notificada pela revelação e reconhecida pe­
la fé20. “Proclamai a Boa-nova {quérigma) a toda a criatura.
Quem crer {fé) e for batizado (sacramento) será salvo”
(Mc 1,16). “Depois de terdes ouvido a palavra da verda­
de — diz são Paulo aos efésios (Eí 1,13) — a Boa-nova
da vossa salvação (quérigma), e terdes acreditado (fé), fos­
tes marcados com um selo pelo Espírito da Promessa” (Sa­
cramento do batismo)21. Revelação, fé, sacramento estão
estreitamente ligados. A revelação tem em vista a fé; esta,
por sua vez, é necessária para receber o sacramento. Essa
ligação faz-nos compreender que o sacramento não é um
rito mágico: exige-se do homem a fé na salvação anunciada
por Deus. O mesmo acontece no Antigo Testamento, onde
a promessa de Javé e a fé de Abraão levam a um rito de
Aliança (Gên 17; Rom 4,11), onde um rito sangrento ra­
tifica a revelação do Sinai e a obediência de Israel ( Êx 24 ).
Assim, também o sacramento conclui o que foi começado
pela revelação e pela fé. Foi por isso que Cristo confiou
à sua Igreja o duplo ministério da palavra e do sacramento.
O verbo foi-nos dado inicialmente sob a forma de palavra,
para ser finalmente recebido sob a forma de eucaristia. Véu
das palavras, véu das espécies: pelos sinais avançamos para
o Deus da visão.

20 E. Schillebeeckx, ibid., pp. 32-39; G. Davis, “The Theology


of Preaching”, The Clergy Review, 45 (1960): 354-358
21 Cfr. 2Cor 1,21-22.
6.
MILAGRE E REVELAÇÃO

“Para que a homenagem de nossa fé fosse conforme


à razão, quis Deus acrescentar aos auxílios internos do Es­
pírito Santo as provas exteriores de sua revelação, isto é,
fatos divinos, principalmente milagres e profecias, que
demonstrando abundantemente a onipotência e infinita sa­
bedoria de Deus, são sinais certíssimos da revelação, ao
alcance da inteligência de todos” \
O primeiro concilio do Vaticano denomina os mila­
gres fatos divinos, provas, sinais. Sua função é estabelecer
solidamente “a origem divina da religião cristã”2. Assim
o magistério da Igreja põe em destaque uma função impor­
tante do milagre — seu papel comprobatório: aprovação, se­
lo de Deus sobre uma palavra que pretende ser divina. Aliás,
o concilio cita explicitamente o texto de Marcos sobre a
missão dos apóstolos: “Então eles partiram a pregar por
toda parte, com a cooperação do Senhor que lhes confir­
mava a palavra com os milagres que a acompanhavam” (Mc
16,20). Pelo milagre Deus garante que está com seu envia­
do, que a sua palavra é realmente palavra de Deus. Evi­
dente que o concilio; insistindo nessa função comprobató-
ria do milagre, não quis excluir outras funções significati­
vas. Como tantas outras vezes o magistério afirma sem
excluir.
Realmente, o milagre é um sinal polivalente. Como

1 Ut nihilominus fidei nostrae obsequium rationi consentaneum (Rom


12,1) esset, voluit Deus cum internis Spiritus Sancti auxiliis externa
jungi revelationis suae argumenta, facta scilicet divina, atque imprimis
miracula et prophetiae, quae cum Dei omnipotentiam et infinitam scientiam
luculenter commonstrent, divinae revelationis signa sunt certissima et
omnium intelligentiae accommodata (D. 1790).
2 Ibid., nn. 1813, 2145, 2305, 1638, 1639.
MILAGRE E REVELAÇÃO 507

tantas realidades cristãs, age ao mesmo tempo em diversos


níveis, indica direções diversas. É nos Evangelhos que mais
aparece essa multiplicidade de aspectos, pois que os mila­
gres do Cristo são como que arquétipos do verdadeiro mi­
lagre. Os milagres dos santos participam desse esplendor
sem jamais esgotá-lo. Vamos pois tomar como ponto de
referência os milagres evangélicos para estudarmos as re­
lações entre revelação e milagre.

I. POLIVALÊNCIA DO MILAGRE

1. Sinal da agape de Deus

Até para os menos atentos os milagres do Cristo mos­


tram-se primeiramente como obras de misericórdia e de bon­
dade. Se Deus, no Cristo, vem até o homem e se inclina
para ele, como poderia essa presença não ser graça e salva­
ção para o homem? No Cristo “apareceu a benignidade de
Deus, nosso Salvador, e seu amor pelos homens” (Tit 3,4).
Os milagres do Cristo são as manifestações da agape de
Deus, isto é, de sua caridade, ativa e compassiva, que se
inclina sobre a miséria humana.
Às vezes, a iniciativa é do próprio Cristo que se adian­
ta à súplica do homem. No milagre da multiplicação, foi
o Cristo que primeiro “teve dó” da multidão, “porque eram
como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34;8,1-13 ). Conta Lucas
que o “Senhor teve compaixão” da viúva de Nairn e ressus­
citou seu filho (Lc 7,13). No milagre do homem que
tinha uma mão ressequida (Lc 6,6-7), na cura da mulher
recurvada (Lc 13,11-12), do enfermo da piscina de Be-
tesda (Jo 5,5-9), é sempre o Cristo que tem a iniciativa.
Outros milagres, porém, apresentam-se como resposta
do Cristo a uma prece, às vezes clara, outras muda, implí­
cita num gesto, numa atitude. Os cegos de Jerico pedem
que seus olhos se abram (Mt 20,29-34). A cananéia con­
segue a cura depois de muito insistir (Mt 15,21-28). É
ajoelhado que o leproso implora (Mc 1,40-41). O cen-
turião (Lc 7,3), Jairo (Lc 8,40-42), o pai do menino epi­
léptico (Lc 9,38-42), Marta e Maria (Jo 11,3) suplicam
508 REFLEXÃO TEOLÓGICA

a intervenção de Jesus. A hemorroíssa, porém (Mc 5,27),


e o povo do país de Genesaré (Mt 14,36), apenas tocam
a orla do manto de Jesus e são curados.
Todas essas curas e ressurreições são gestos de amor.
Deus visita-nos no meio de nossas enfermidades. Compade-
ce-se, comove-se, perturba-se em seu coração de homem (Mt
11,28). Em seu aspecto mais evidente os milagres são a
resposta da agape de Deus ao apelo da miséria humana.
Deus é Amor, diz são João (IJo 4,8). No Cristo esse amor
toma forma humana, coração humano, para chegar à misé­
ria do homem e mostrar-lhe a intensidade do amor divino.

2. Sinal da chegada do reino redentor

Os profetas do Antigo Testamento anunciaram a era


messiânica e os sinais dessa era-. Será um tempo de mila­
gres. “Então — proclama Isaías — abrir-se^ão os olhos
aos cegos, e os ouvidos aos surdos descerrar-se-ão. Então
o coxo saltará como cervo e desatar-se-á em cânticos a língua
do mudo” (Is 35,5-6;29,18); então “reviverão os mortos,
ressuscitarão seus cadáveres” (Is 26,19). No pensar dos
profetas, a era messiânica reproduzirá, mais grandiosamen­
te ainda, as maravilhas do Êxodo. Os evangelistas vêem
nos milagres do Cristo a realização dessas profecias, o cum­
primento das promessas de Deus, a irrupção no mundo da
salvação anunciada3. Até parece que o tema do cumpri­
mento das Escrituras guiou são João na escolha de seus
milagres: sinais da água viva, do maná, da luz, da vida4.
Sob esse aspecto, pois, os milagres do Cristo ligam-se ao
tema mais vasto do cumprimento das Escrituras. Signifi­
cam que o Reino de Deus, anunciado pelos profetas du­
rante séculos, chegou finalmente. Em Jesus de Nazaré está
presente o Messias. O acontecimento, tão esperado, reali­
zou-se. Na sinagoga de Nazaré o Cristo declara explicita-

3 A. Richardson, The Miracle Stories of the Gospels (London,


1956), pp. 134-135.
4 D. Mollat, “Le Semeion johannique”, em Sacra Pagina (Mis­
cellanea biblica congressus internationalis catholici de re biblica, Paris et
Gemloux, 1959), p. 214.
MILAGRE E REVELAÇÃO 509
mente que seus milagres o indicam como Aquele que deve
vir (Lc 4,16-22)5.
Pedro, no seu discurso a Cornélio, resume a carreira
de Jesus dizendo que no batismo ele foi ungido “de Espí­
rito Santo e de força” para curar e libertar os que tinham
caído sob o poder de Satanás (At 10,38). Na vida de Cris­
to as curas e os exorcismos estão intimamente ligados à sua
obra de zalvação. Estão igualmente ligados aos poderes
que ele conferiu a seus apóstolos: Cristo deu-lhes autori­
dade para pregar, para curar e para expulsar os demônios ( Mt
10,1; Mc 3,14; Lc 9,1 ). Isso porque existe uma estreita rela­
ção entre o pecado, a doença e a morte. Por detrás de quem
está doente, possesso ou morto, está sempre Satanás, o Ini­
migo, homicida e mentiroso desde a origem, cujo Reino
Cristo veio destruir6. Satanás reina pelo pecado e estende
seu império até a carne mediante a doença e a morte. Es­
craviza a humanidade, como aquela mulher que mantinha
ligada havia dezoito anos (Lc 13,16). Aquele que deve
vir, o Messias, para destruir o reino de Satanás deve triun­
far também da doença e da morte. Curas (Is 35,5-6) e li­
bertação do pecado (Jer 31,34; Ez 36,25), milagres e exor­
cismos devem marcar a chegada do Reino messiânico7.
Ora, o Cristo apresenta-se justamente como aquele que
vem destruir o Reino de Satanás. Toda sua vida pública
está dominada pela consciência de dever manter um com­
bate pessoal contra Satanás. “Para isso aparece o Filho
de Deus: para desfazer as obras do diabo” (IJo 3,8). Ten­
tação no deserto, polêmicas com os fariseus cegos e obsti-

5 Portanto, no contexto judaico, os milagres do Cristo têm duplo


valor de demonstração: 1? em virtude de sua função jurídica, tradicional;
2? como realização das Escrituras.
6 Ph. H. Menoud, “La signification du miracle dans le Nouveau
Testament”, Revue d’histoire et de philosophie religieuses, 1948-1949,
n. 3, p. 180.
7 Era idéia corrente da linha apocalíptica judaica que ao chegar o
Reino de Deus os demônios seriam aprisionados: “En ces jours-là, on les
amènera dans l’abîme de feu, dans les tourments, et ils seront pour
toujours enfermés dans la prison” (Livre d’Hénoch 10,3 trad. F. Martin,
Paris, 1906). Le Testament de Lévi 18,12, diz sobre o novo sacerdote
suscitado por Deus: “Et Belial sera lié par lui et il donnera pouvoir
à ses fils de fouler les esprits mauvais” (J. Bonsirven, La Bible apo­
cryphe en marge de l’Ancien Testament, Paris, 1953, p. 130).
510 REFLEXÃO TEOLÓGICA

nados, encontros com os possessos, incompreensão e aban­


dono por parte das multidões, traição de Judas: sempre,
sob formas diversas, encontra-se a resistência de Satanás 8.
O Cristo, porém, é aquele mais forte de que fala a pará­
bola (Lc 11,17-22; Mt 12,29), que abate o forte, acor­
renta-o e liberta os cativos que estavam sob seu poder.
Dá-se a mudança da situação profetizada por Isaías (Is 49,
25). Palavras e ações do Cristo estão carregados de um
poder que expulsa Satanás e instaura o Reino de Deus:
“Se eu expulso os demônios pela virtude do Espírito de
Deus, então já chegou a vós o Reino de Deus” (Mt 12,28).
Voltando de sua missão, alegram-se os setenta e dois discí­
pulos porque dominaram até o demônio: “Eu via Satanás
cair do céu como um raio”, respondeu Jesus (Lc 10,17-18).
Ao mesmo tempo que o pecado recuam também seus efei­
tos: a doença e a morte. Por isso Cristo responde aos
enviados de João Batista: “cegos recuperam a vista, coxos
andam, leprosos ficam limpos, surdos ouvem, mortos ressus­
citam, aos pobres é anunciada a Boa-nova” (Lc 7,22).
Curas e exorcismos significam que o reino de Satanás é
destruído e que o Reino de Deus chegou. O Cristo está
dotado de um poder único, irreprimível, que aniquila o
Adversário e tudo renova, os corpos e as almas. Onde está
o Cristo, ali está agindo o poder de salvação e de vida do Deus
vivo: triunfa da doença e da morte, do pecado e de Sata­
nás. O Cristo é o mais forte porque a Δύναμις de Deus nele
habita a seu inteiro dispor (Mt 28,18).
Para que os judeus possam compreender que os orá­
culos dos profetas estão sendo cumpridos, que Satanás é
vencido e que o Reino de Deus chegou, Cristo faz que uma
libertação física acompanhe a libertação espiritual que ele
traz. De um homem submetido a Satanás ele faz um homem
livre e justificado; para que os olhos possam testemunhar
a salvação concedida, de um paralítico ele faz um homem
válido (Mc 2,3-12). O milagre torna sensível e visível a
renovação espiritual e invisível. Torna visível a presença
e a ação salvifica do Cristo. Sua vitória sobre a doença e
sobre a morte é penhor e figura de sua vitória sobre o pecado e

8 L. Monden, Le miracle, signe de salut (Burges, 1960), p. 130.


MILAGRE E REVELAÇÃO 511

sobre Satanás. Deus continua fiel à divina filantropia da En­


carnação 9.

3. Sinal da missão divina

Em toda a tradição bíblica o milagre tem como função


garantir uma missão como divina. É um gesto de Deus
que garante a autenticidade de uma missão por ele confiada.
Sob esse aspecto, tem um valor de certo modo jurídico", é a
credencial do enviado de Deus 10. Do profeta que se apre­
senta em nome de Deus, os judeus exigem provas. Moisés
pede e recebe de Javé o sinal que lhe prove que Javé “está
com ele” e que “sua missão vem dele” (Êx 3,12). Os pro­
dígios realizados por Moisés farão que seja ouvido entre
os seus, provarão que Javé “apareceu-lhe” realmente, que
é preciso “acreditar nele e escutá-lo” (Êx 4,1), que é o
enviado de Deus. Tendo saído do Egito e atravessado o
mar Vermelho, o povo “acredita em Javé e em Moisés, seu
servo” por causa dos prodígios que tinha visto (Êx 14,31).
Através de toda a história do profetismo é o milagre cons­
tantemente invocado para fazer a separação entre os ver­
dadeiros e falsos profetas. Elias, que ressuscita o filho da
viúva de Sarepta e faz descer o fogo do céu sobre o monte
Carmelo, mostra que Javé é o verdadeiro Deus ( 1RS 18,
37-39), que ele mesmo é seu “servo” (lRs 18,36) e que
a “palavra de Javé em sua boca é verdade” (lRs 17,24) 11.

9 Sobre esse aspecto do milagre, ver principalmente: C. Dumont,


“Unité et diversité des signes de la révélation”, Nouvelle Revue Théolo­
gique, 80 (1958): 136-137; P. Biard, La Puissance de Dieu (Paris,
1960), pp. 117-120; L. Monden, Le Miracle, signe de salut, pp. 127-132;
F. Taymans, “Le miracle, signe du surnaturel”, Nouvelle Revue théolo­
gique, Tl (1955): 230-231; A. George, “Les miracles de Jésus dans
les Évangiles synoptiques”, Lumière et Vie, n. 33, juillet 1957, pp. 18-20;
Ph. Ho. Menoud, “La signification du miracle dans le Nouveau Testa­
ment” Revue d’histoire et de philosophie religieuses, 1948-1949, n. 3,
pp. 177-181; A. Richardson, The Miracle Stories of the Gospels (Lon­
don, 1956), pp. 38-58.
10 Segundo R. Bultmann, o milagre responde à Legitimationsfrage
(Das Evangelium des Johannes [Gottingen, 1950], pp. 88-89).
11 Não é porém o milagre o único critério do profeta verdadeiro.
Há outros critérios: a fidelidade do profeta à religião tradicional (Dt
13;2-6), o cumprimento de suas predições (Jer 28, 9; 32, 6-8; lRs 22,28),
o testemunho do próprio profeta sobre a sobrenaturalidade de sua voca-
512 REFLEXÃO TEÓLÓGICA

“Os judeus pedem sinais” (ICor 1,22). É mais exi­


gência humana que simples reflexo tradicional. Q ho­
mem, antes de comprometer sua vida por uma palavra pro­
cura um apoio para sua razão: quer saber a quem se confia.
Quando o Cristo se apresentou, teve que enfrentar essa
exigência. Por duas vezes é intimado a fornecer sinais que
justifiquem suas ações e suas pretensões de enviado de Deus
(Jo 2,18;6,30). Também na cura do paralítico (Mc 2,10),
na ressurreição de Lázaro (Jo 11,41-42), nas apóstrofes
contra Betsaida e Corozaín (Mt 11,21) apela explicitamen­
te para seus milagres como garantias de sua missão e de
seus poderes.
Essa função jurídica do milagre aparece principalmen­
te no Evangelho de são João. Observa o evangelista que,
“à vista dos sinais” de Jesus, muitos judeus acreditaram
nele (Jo 2,23). Nicodemos reconhece que o Cristo “vem
da parte de Deus”, porque ninguém podería fazer os sinais
que ele realiza “se Deus não estiver com ele” (Jo 3,2). O
cego de nascença invoca, contra os fariseus que o acossam,
o argumento tradicional: “se ele não viesse de Deus nada
teria podido fazer” (Jo 9,33). Para muitos, já a grande
multidão de milagres é um sinal: “O Messias, quando vier,
fará acaso mais milagres do que ele faz?” (Jo 7,31). Se­
gundo João, a entrada triunfal em Jerusalém foi diretameri-
te provocada pela ressurreição de Lázaro (Jo 12,18) 12. Os
milagres do Cristo atestam, pois, que ele é o Enviado de
Deus. Depois de Pentencostes, Pedro dirá aos judeus refe­
rindo-se ao Cristo: esse “homem comprovado por Deus
junto de vós pelos milagres, prodígios e sinais que operou”
(At 2,22). Se o Cristo realizou curas e expulsou demônios
é porque “Deus estava com ele” (At 10,38).
O mesmo se diga dos milagres feitos pelos apóstolos:
são sinais que atestam a autenticidade de sua missão (Mc

ção (Am 3,8; Is 8,11; Jer 1,4-6), mantido mesmo na perseguição e no


martírio.
12 D. Mollat, “Le Semeion johannique”, Sacra Pagina, pp. 211-212;
L. Cerfaux, “Les miracles, signes messianiques de Jésus et oeuvres de
Dieu”, em L’Attente du Messie (Coll. “Recherches bibliques”, Louvain,
1958), p. 134; R. Formesyn, “Le sèmeion johannique et le sèmeion
hellénistique”, Eph. theol. lov., 38 (1962): 883-890.
MILAGRE E REVELAÇÃO 513

16,20; Hebr 2,4). Nos Atos diz-se que os apóstolos com


“grande poder”... “davam testemunho da réssurreição do
Senhor Jesus” (At 4,33). O poder miraculoso-.dos apósto­
los é um testemunho dado por Deus: “o Senhor confir­
mava a pregação da sua graça, operando sinais e prodígios
por suas mãos” (At 14,3). A intervenção de Deus confir­
ma a pregação apostólica e o seu objeto, isto é, que Jesus
ressuscitou e que tem o poder de salvar os que nele
acreditam 13.
4. Sinal da glória do Cristo
Para quem os recebeu, os milagres são sinais,
mas do ponto de vista do Cristo, são mais pro­
priamente obras do Filho. Considerados como obras, os mi­
lagres prendem-se à consciência que o Cristo tem do mis­
tério de sua filiação divina e à revelação desse mistério 14.
São testemunho do Pai em favor daquele que é maior que
Jonas e Salomão (Mt 12,41-42), maior que Moisés e Elias
(Mc 9,2-10), maior que Davi (Mc 12,35-37 e João Ba­
tista (Lc 7,18-28), elevado acima dos profetas como o
Filho acima dos servos (Mc 12,1-12). Os milagres enquan­
to obras do Cristo são a sua atividade propriamente divina
de Filho de Deus entre os homens. Devem garantir sua
missão de Enviado de Deus, não, porém, como simples
profeta ou Messias humano, mas como Filho do Pai, igual
ao Pai, que partilha com o Pai o conhecimento (Mt 11,27)
e a onipotência (Mt 28,18; Jo 3,35). Confirmam a pre­
tensão central do testemunho do Cristo, isto é: ser Filho
de Deus vivo.
Com efeito, o Pai “ama o Filho e todas as coisas en­
tregou em sua mão” (Jo 3,35). Se pois o Pai entrega ao
Filho sua onipotência, os milagres são os sinais manifestos
da aprovação do Pai. São o selo inimitável da onipotência
divina no testemunho de quem se apresenta como o Filho
do Pai. Apresentam-no em sua glória de Filho unigênito.
Com eles o Pai atesta que o Cristo é veraz (Jo 6,27). Tan-
13 J. Dupont, “Repentir et conversion d’aprè les Actes des apôtres”,
Sciences Ecclésiastiques, 12 (1960): 16'0.-162.
14 H. VAN DEN Bussche, “La structure de Jean I-XII”, em L’Évan­
gile de Jean (Coll. Recherches bibliques", Louvain, 1958), p. 89.

17 - Teologia da revelação
514 REFLEXÃO TEOLÓGICA

to que o Cristo, ante seus ouvintes e contraditores, sempre


apresenta seus milagres como testemunho do Pai em seu fa­
vor. “As obras que o Pai me deu para realizar, essas mes­
mas obras que faço, atestam, a meu respeito, que o Pai me
enviou” (Jo 5,36-37; 10,25). É preciso acreditar no Cristo,
se não por suas palavras, ao menos por causa de suas obras
(Jo 10,37-38). Esse testemunho do Pai em favor do Filho,
pelas obras de poder, tira aos judeus qualquer desculpa: é
culpável sua oposição ao Cristo. “Se eu, entre eles, não tivesse
realizado obras, como nenhum outro realizou, não teriam
culpa; mas agora, não obstante tenham visto, odeiam a
mim e a meu Pai” (Jo 15,24,9,41). Assim como Cristo
se esforçou por levar os judeus a compreender sua filia­
ção divina, assim também se esforçou para levá-los a ver
nos milagres não apenas prodígios, mas as obras do pró­
prio Filho, vivo e agindo em seu meio 15. Contudo, essa
revelação das obras do Filho, bem como a de sua pessoa,
terminou com um fracasso (Jo 10,31-34). Destinava-se, po­
rém, a manifestar nas obras do Cristo sua glória de Filho
único (Jo 1,14;2,11;11,40), pois o Cristo está entre os ho­
mens com o Poder de Javé. O milagre é a manifestação
evidente desse Poder, é o gesto do Verbo de Deus feito
carne.

5. Revelação do mistério trinitàrio


Na perspectiva do quarto Evangelho, os milagres-obras
não são apenas o selo do Pai sobre a palavra do Filho; intro­
duzem também no próprio mistério trinitàrio. Obras co­
muns do Pai e do Filho, eles manifestam a unidade pro­
funda que os une.
De fato, as obras do Cristo são ao mesmo tempo suas
obras (Jo 5,36;7,21;10,25) e obras do Pai (Jo 9,3-4;10,
32.37; 14,10). O Cristo recebe-as do Pai de quem tudo
recebe, de quem é sempre a iniciativa (Jo 5,19-20.30; 14,
10), e que lhe confia a sua realização (Jo 5,36). Essas
obras, porém, são ao mesmo tempo do Filho, porque o
Pai entregou ao Filho todo seu poder para que o Filho
15 H. van den Bussche, “La structure de Jean Ι-ΧΠ”, em L’Évan­
gile de Jean, pp. 94-96.
MILAGRE E REVELAÇÃO 515

realize os milagres como obras próprias 16. A glória do Pai


e a glória do Filho estão indissoluvelmente ligadas. “Assim
como o Pai desperta e reaviva os mortos, assim também o
Filho dá a vida àqueles que quer” (Jo 5,21). “As obras
que o Pai me deu para realizar, essas mesmas obras que
faço...” (Jo 5,36). Portanto, ver a atividade do Cristo
é ver o Pai presente no Filho, exercendo através das obras
do Filho sua atividade criadora e salvifica (Jo 14,9-10); é,
num só olhar, ver o Filho e o Pai que ele manifesta 17.
O fato de o Pai entregar assim ao Filho seu poder e
suas obras, a tal ponto que as obras sejam ao mesmo tempo
do Pai e do Filho, isso mostra entre o Pai e o Filho uma alian­
ça única, uma perfeita união na ação e no amor; mais ainda,
uma unidade no amor, um mistério de amor. Os milagres re­
velam que o Pai está no Filho e o Filho no Pai, unidos num
mesmo Espírito. O Cristo diz a Filipe: “Não acreditas que eu
estou no Pai e que o Pai está em mim?... o Pai que está
em mim, ele faz as obras. Crede em mim: eu estou no Pai e
o Pai está em mim. Ao menos crede-o por causa das obras
mesmas” (Jo 14,10-ll;10,37-38). “O Pai e eu somos um”
(Jo 10,30;17,11.22).
Portanto, os milagres do Cristo devem ser postos em
paralelo com as grandes obras de Deus na história de Israel,
a criação e os prodígios: magnalia Dei, ao mesmo tempo
obras de poder e de salvação, reveladoras do mistério de
Deus. Devemos, porém, lembrar que suas virtualidades de
revelação não se mostram claramente senão à luz da pa­
lavra que as acompanha. As obras do Cristo são revelado­
ras da vida trinitária, isso porém enquanto unidas ao teste­
munho de Jesus sobre si mesmo e sobre sua missão 18.

16 A. Vanhoye, “L’oeuvre du Christ, don du Père”, Recherches de


science religieuse, 48 (1960): 404-405; Observa Vanhoye: “Que le Père
donne à Jésus son oeuvre, cela signifie qu’il lui fait connaître sa volonté
et le charge de l’exécuter, mais aussi qu’il lui fait confiance pour la
réalisation de son dessein de salut, cela signifie, d’autre part, qu’il confère
à Jésus le pouvoir de la réaliser personnellement” (Ibid., p. 1408). Cfr.
tb. A. Vanhoye, “Opera Jesu, donum Patris”, Verbum Domini, 36 (1958):
83-92; H. van den Bussche, “la structure de Jean I-XII”, em L’Évan­
gile de Jean, pp. 92-93.
17 L. Cerfaux, “Les miracles, signes messianiques de Jésus et oeuvres
de Dieu”, em L’Attente du Messie, pp. 136-137.
18 Quanto a isso observa H. van den Bussche: “Le miracle...
516 REFLEXÃO TEOLÓGICA

6. Símbolo da economia sacramental

Estaríamos falseando a Escritura se reduzíssemos o


milagre apenas a seu valor comprobatório ou jurídico. O
milagre está intrinsecamente ligado à mensagem. Não apenas
acompanha e autentica a palavra, mas também, a seu modo,
manifesta a sua natureza profunda. Como diz santo Agos­
tinho: “Perguntemos aos milagres o que eles nos têm a
dizer sobre o Cristo; para quem os compreende, os mila­
gres têm sua linguagem. Com efeito, o Cristo sendo o
Verbo de Deus, cada ação do Verbo é também uma palavra
que nos é dirigida” 19.
A vinda de Cristo inaugura um múndo novo, o mun­
do da graça; faz uma revolução, a da salvação pela cruz.
O milagre manifesta, como que por transparência, a trans­
formação operada. É a imagem expressiva dos dons es­
pirituais oferecidos aos homens na pessoa do Cristo. As
maravilhas operadas na ordem física são figuras, símbolos
das maravilhas da graça, do esplendor e da diversidade de
seus dons.
Já nos Sinóticos se delineia o simbolismo dos milagres.
Em Lucas, a pesca milagrosa é sinal, sem dúvida, da ex­
pansão espiritual da Igreja mediante a evangelização: “do­
ravante ficarás a pescar homens” (Lc 5,10). A cura do pa­
ralítico confirma, em primeiro lugar, a veracidade das pala­
vras do Cristo: “Teus pecados são perdoados” (Mc 2,5). O

n’est compris comme oeuvre du Père que par l’explication de Jésus, qui,
elle, est à son tour garantie par le miracle. Miracle et discours ne font
qu’un seul procédé de révélation. Le miracle se prolonge en discours et
le discours fait comprendre le miracle” (La structure de Jean I-XII”,
em L’Évangile de Jean, p. 93).
19 “Interrogemus ipsa miracula, quid nobis loquantur de Christo;
habent enim, si intelUgantur, linguam suam. Nam quia ipse Christus
Verbum Dei est, etiam factum Verbi verbum nobis est” (Aug. In Jo.
tract. 24, 6: PL 35 col. 1953). Os milagres são: “l’expression signifi­
cative d’une oeuvre divine, langage surnaturel, parole de salut qui s’adresse
à nous en actes intelligibles. Tous les grands thèmes de l’Évangile: libé­
ration du péché, intimité avec Dieu par le sacrement de son Verbe in­
carné, sen rédempteur de la croix, gloire promise et gloire déjà présente,
tous ces thèmes se traduisent en action dans les miracles de Jésus, ils
deviennent images vécues et symboles chargés de sens” (L. Monden,
Le miracle, signe de salut, pp. 102-103).
MILAGRE E REVELAÇÃO 517

Cristo vem salvar, libertar do pecado. Para atestar a pre­


sença dessa atividade salvifica, Cristo prolonga-a na saúde
corporal. Em primeiro lugar sua ação atinge a raiz do mal,
o pecado; mas a atividade salvifica sensível simboliza, ao
mesmo tempo que a garante, a atividade salvifica espiri­
tual. Esta é mais importante e tem a precedência: “O que
é mais fácil dizer ao paralítico: teus pecados são perdoa­
dos, ou dizer-lhe·. levanta-te?” (Mc 2,9) ”. A cura sensí­
vel “é a indicação do pecado perdoado, não por simbolismo
arbitrário e puramente artificial, mas na identidade do mes­
mo fato salvifico: o perdão é seu aspecto invisível, a visão
do paralítico curado é seu reflexo imediato e perceptível
em a natureza sensível” 21. A cura do leproso (Mc 1,40-45)
simboliza o retorno do pecador para a sociedade do Reino de
Deus, sinal tanto mais expressivo pelo fato de a lepra afas­
tar o homem da sociedade, assim como o pecado o exclui
da sociedade divina. O prodígio da figueira que secou (Mc
11,12-14) é uma parábola dramatizada: indica e condena a
esterilidade do povo judeu. A mulher recurvada havia de­
zoito anos (Lc 13,16), atada por Satanás e libertada pelo
Cristo, evoca a escravidão e a libertação da humanidade.
A libertação dos possessos de Gerasa, cujos espíritos maus
se apoderam de uma vara de porcos que se precipitam no
mar, significa o poder de destruição do pecado, ao mesmo
tempo que o poder do Cristo que vem aniquilar a força de
Satanás (Mt 8,28-34). A cura dos doentes pela imposição
das mãos (Mt 9,18; Lc 13,13), as unções com óleo que
os apóstolos fazem nos doentes (Mc 6,13) são sinais pre-
figurativos da unção sacramental que a Igreja faz em nome
do Cristo (Mc 16,18; Tg 5,14-16). Para os judeus, que
percebem o nexo profundo que une pecado, sofrimento e
morte, esse simbolismo já de per si é muito eloqüente.
Mesmo se o Cristo nem sempre insiste na relação, o contex­
to total de sua doutrina e de seu comportamento sugerem-na
suficientemente.

20 R. Schnackenburg, Gottes Herrschaft und Reich (Freiburg,


1959), pp. 59-62; A. Schlier, Mãchte und Gewalten im Neuen Testa­
ment (Freibürg, 1958), pp. 37-49.
21 C. Dumont, “Unité et diversité des signes de la Révélation”,
Nouvelle Revue théologique, 80 (1958): 137.
518 REFLEXÃO TEOLÓGICA

É, porém, no Evangelho de João que principalmente se


manifesta o simbolismo dos gestos miraculosos do Cristo.
Seu Evangelho é propriamente o Evangelho dos sinais. Ali
os milagres são prefigurativos da economia sacramental. A
transformação da água em vinho em Caná (Jo 2) inaugura
a nova criação. Nas vasilhas de pedra, que serviam para
as purificações legais, o Cristo coloca o vinho novo, melhor
que o velho, e reservado até o fim. Esse vinho novo é
sinal da Nòva Aliança no sangue do Cristo, sinal das núpcias
do Cristo e da sua Igreja, sinal de nosso ingresso na socie­
dade nova pela água e pelo sangue, isto é, pelo batismo e
pela eucaristia22. A cura do paralítico (Jo 5) pela pala­
vra do Cristo que perdoa os pecados (Jo 5,14) e pela água
da piscina é símbolo da regeneração do homem pelas pa­
lavras e pela água do batismo. A cura do cego de nascença,
na piscina de Siloé (Jo 9), é sinal do batismo como ilumi­
nação: o Cristo é a luz do mundo (Jo 9,5;1,9;8,12). O
batismo é ao mesmo tempo purificação e iluminação, novo
nascimento pela água e pelo espírito (Jo 3,5). A cura do
filho do oficial real manifesta o poder da palavra de Jesus
e da fé nessa palavra (Jo 4,50). Na multiplicação dos
pães (Jo 6), o Cristo convida a reconhecer o sinal do ver­
dadeiro pão, do “pão de Deus que desce do céu e dá a vida
ao mundo” (Jo 6,32): símbolo evidente da ceia euca-
rística. Finalmente, a ressurreição de Lázaro (Jo 11, 1-44)
apresenta o Cristo como a ressurreição e a vida, uma vida
que pode vivificar o que está morto. Simboliza a vitória
total do Cristo sobre a morte e préfigura nossa ressur­
reição e a sua.

7. Sinal das transformações do mundo escatológica

O milagre, finalmente, é sinal prefigurativo das trans­


formações que se devem operar no fim dos tempos, no cor­
po humano e no universo físico. Pois a redenção não se
restringe ao mundo do espírito: deve tomar conta do cos­
mos todo com a sua luz e o seu poder, deve renovar tudo quan­
to foi atingido pelo pecado.
22 D. Mollat, “Le Semeion Johannique”, Sacra Pagina, p. 212; F.
MILAGRE Ε REVELAÇÃO 519

Em primeiro lugar, o mliagre é sinal da libertação e


da glorificação dos corpos. O Cristo ressuscitou como “pri­
mogênito dos redivivos” (Col 1,18), como “príncipe da
vida” (At 3,15): “ele destruiu a morte” (2Tim 1,10).
Ora, pela ressurreição, o Espírito, que é vida e princípio
vivificante, foi dado aos homens. Se esse Espírito que em
nós habita pela graça (ICor 3,16) “ressuscitou Jesus den­
tre os mortos”, “vivificará também nossos corpos mor­
tais” (Rom 8,11). Invisível agora, essa transformação apa­
recerá na parusia, quando o corpo será glorifiçado. “É, de
fato, necessário que este corpo corruptível se revista da
incorruptibilidade e que este corpo mortal se revista da
imortalidade ” ( 1 Cor 15,5 3 ).
Os milagres do Cristo já anunciam essa ação do Espí­
rito sobre toda a carne. A vitória sobre a doença corporal
manifesta o triunfo da vida. A vida subitamente reencon­
trada é o sinal da vida que o Cristo dá em abundância.
Ο μμηη Ηβμη

Principalmente a ressurreição do Cristo é o penhor e o tipo


de nossa própria ressurreição. O corpo transformado do
Cristo, o corpo de Maria já associado à sua glória, signi­
ficam que o Senhor “transformará o nosso corpo miserável,
tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, em virtude
daquele poder com que pode sujeitar ao seu domínio todas
as coisas” (Flp 3,21). Quando tudo se tiver cumprido, a
carne será transformada em glória.
O milagre é também sinal anunciador da redenção do
universo. Na mentalidade bíblica, há uma íntima solidarieda­
de entre o homem e o universo físico. O homem e a terra da
qual foi tirado (Gên 2,7) partilham do mesmo destino.
A palavra de Deus, julgamento ou salvação, dirige-se ao
homem-no-mundo. Todo o universo, arrastado pelo homem,
participa de seu pecado e de sua redenção. Ora, segundo
o Gênesis, a harmonia da criação foi destruída pelo peca­
do de Adão. A Aliança foi rompida entre o homem e seu am­
biente; começa existir uma luta silenciosa entre ele e os ani­
mais, entre ele e a terra (Os 4,2-3: Gên 3,17-18; Jer 5,6).
A desordem é universal, no mundo físico e nas consciências.
Bourassa, “Thèmes bibliques du baptême”, Sciences Ecclésiastiques, 10
(1958): 429.
520 REFLEXÃO TEOLÓGICA

O homem faz a aprendizagem do trabalho, da dor, da doen­


ça, da morte (Gên 3,19).
Mas o Cristo, por sua morte e sua ressurreição, veio res­
tabelecer a ordem onde reina o pecado. A redenção deve
estender seus benefícios até o universo material, que reen­
contrará seu esplendor primitivo. A presença de Deus en­
tre os homens era o princípio de harmonia no paraíso. A
paz entre Deus e o homem era a fonte de paz entre o homem
e o mundo. O pecado, rompendo a intimidade entre Deus
e o homem, destruiu essa harmonia. Com o Cristo, porém,
Deus novamente habita entre os filhos dos homens (Jo
1,14). E a criação toda está novamente submetida ao novo
Adão. A natureza torna-se de novo maleável e obediente.
Os profetas tinham anunciado que os tempos da sal­
vação messiânica trariam uma vólta à paz do paraíso, à
harmonia perfeita entre o homem, a terra e os animais (Is
11,5-9;35,l-2.5-9;41,18-19; Am 9,13; J1 4,18-19; Os 2,
23-24; Ez 34,25-27; SI 91,13;85,13; Jó 5,22-23). Ora, os
pães já se multiplicam entre as mãos do Salvador (Mc 6,
30-45); o mar e os ventos obedecem-lhe (Mc 4,39); as
ondas tornam-se firmes sob seus pés (Mc 6,49); os filhos
da nova criação, os apóstolos, seguram as serpentes, tomam
veneno e nada sofrem (Mc 16,17-18). Esses milagres cós­
micos são sinais prenunciadores das transformações do mun­
do escatológico, da renovação que deve marcar o termo da
história da salvação 23.
Em Rom 8,19-21, são Paulo vê o homem e o universo
arrastados pelo movimento da redenção para sua glorifica­
ção final. “A criação atende ansiosamente a revelação dos
filhos de Deus”, esperando ser libertada “da escravatura da
corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de
Deus” (Rom 8,19-20). O universo é chamado para de certa
forma participar da glória dos filhos de Deus. Será liber­
tado de seu atual estado que é “vaidade, servidão, corrup­
ção”, para passar a uma nova situação que Paulo chama
de “liberdade do estado glorioso”. O universo atual sofre
as dores de parto de um estado melhor (Rom 8,22). Se-

23 E. Beauchamp, La Bible et le sens religieux de l’univers (Paris,


1959) pp. 187-192.
MILAGRE E REVELAÇÃO 521

gundo são Paulo, o universo não está destinado a ser ani­


quilado; deverá ser transformado, glorifiçado; o como, po­
rém, dessa transformação, não o conhecemos24.
É de se notar que os últimos capítulos do Apocalipse
retomam os primeiros capítulos do Gênesis. Quando tudo
se tiver cumprido, a carne será transfigurada na glória. A
morte será vencida. Já não haverá choro, gritos, sofrimen­
tos, (Apoc 21,4). Haverá, porém, “novo céu, nova terra”
(Apoc 21,1; 2Pdr 3,12-13). O Rio de água viva jorrará
sem cessar; suas margens estarão cobertas de frutos sabo­
rosos (Apoc 22,1-2). Entre o Gênesis e o Apocalipse, tem­
po de Israel e da Igreja, o milagre é uma réstea dc luz que
préfigura a luz plena. Manifesta que o corpo glorifiçado do
Cristo trabalha para restituir à criação seu esplendor per­
dido. Anuncia e inicia a transformação definitiva do univer­
so, quando o poder de Deus, destruídos a morte e o pecado,
estabelecerá todas as coisas como perpetuamente novas. San­
to Ambrósio diz com muita precisão: “Resurrexit in eo
[Christo] mundus, resurrexit in eo coelum, resurrexit in eo
terra. Erit enim coelum novum et terra nova”

24 S. Lyonnet, “La rédemption de l’univers”, Lumière et Vie, n. 48,


juillet-août 1960, pp. 43-62.
25 De Fide resurrectionis, segundo noturno do quinto domingo de­
pois da Páscoa. Ver também: H. Holstein, “Le miracle, signe de la
Présence”, Bible et Vie chrétienne, n. 38, mars-avril 1961, pp. 56-58;
L. Monden, Le miracle, signe du salut, pp. 36-37. O P. de Grandmaison
faz uma magnífica exposição desse aspecto do milagre. Mostra que, no
mundo do pecado, o milagre é o sinal da presença do Filho de Deus.
Sob a ação de seu Criador que vem refazer e resgatar o que o pecado tinha
escravizado e destruído, o mundo reencontra seu esplendor inicial. Os
milagres são o sinal dessa transformação, desse retorno ao esplendor, ori­
ginal. “Singes de réalités plus hautes, spirituelles, éternelles, oeuvres de
lumière et de bonté, ils sont encore des oeuvres de puissance et, comme
tels, ils commencent d’instaurer le royaume de Dieu qu’ils représentent
au vif. Par leur éclat, ils tirent les regards de ceux qui sont plus éloignés
de croire, plus indolents ou plus frivoles. Mais ils vont aussi à promouvoir
l’oeuvre de relèvement. Les esprits malins sont humiliés, contredits,
chassés; les infirmités, les tares, les misères du péché d’origine sont
mitigées, éloignées, vaincues. Le mal sous toutes ses formes, recule.
L’empire heureux exercé par le premier homme au temps de l’innocence
du monde, et l’image inchantait comme un beau rêve les yeux de l’huma­
nité vieillie, reparaît soudain comme un premier trait d’aurore, humble
début du redressement total, gage du jour ou les âmes et ensemble les
corps seront sauvés, pour vivre à Dieu” (Jésus-Christ, [Paris, 1928], t.
2, p. 368).
522 REFLEXÃO TEOLÓGICA

II. REVELAÇAO E FUNÇÕES DO MILAGRE

Em resumo, segundo a Escritura os milagres do Cristo


mostram-se primeiro como manifestações da Agape de Deus
que responde à miséria do homem. Depois, no contexto do
anúncio profético do Messias e de seu Reino, significam que
o Reino anunciado chegou finalmente e que Jesus de Nazaré
é o Messias esperado: os milagres cumprem as Escrituras.
Considerados à luz de uma longa tradição que vê no mila­
gre um dos principais critérios para garantir a autenticidade
de uma missão divina, eles certificam-nos que o Cristo é o
Enviado de Deus e que sua palavra é verdadeira; garantem-
-nos, ainda mais, que ele é o Filho do Pai, pois o milagre,
posto em relação com essa afirmação central da mensagem
do Cristo, garante-a como verdadeira. O milagre manifesta
que Deus está presente e age no Cristo; a glória de Deus
pertence ao Cristo e qualifica o seu ser. Os milagres, ao mes­
mo tempo que confirmam o Cristo como Filho de Deus, eles
nos manifestam a natureza profunda de sua mensagem; mos­
tram sensivelmente as maravilhas invisíveis do novo Reino;
são os símbolos do mundo da graça e dos sacramentos. Fi­
nalmente, deixam entrever antecipadamente a ordem gloriosa
da ressurreição dos corpos e da transformação do cosmos
no fim dos tempos.
Esses diversos aspectos não são independentes entre si.
Implicam-se e esclarecem-se mutuamente; de um a outro há
uma transição que mal se percebe. A análise obriga-nos a fazer
cortes na realidade, para podermos perceber sua riqueza; de­
vemos, porém recompor o que a análise distinguiu, sem per­
dermos de vista que as cores decompostas pelo prisma pro­
vêm do mesmo foco luminoso. Se, porém, queremos agrupar
e sistematizar os dados da Escritura, parece que podemos
reduzir a três as funções essenciais do milagre com referên­
cia à revelação: o milagre 1) dispõe, 2) comprova juridi­
camente, 3) figura e simboliza.
1 ) O milagre dispõe para ouvir a mensagem, pois é um
sinal de benevolência, é uma palavra de graça. Pois o mila­
gre é uma espécie de palavra. Inclui-se entre os sinais usa­
dos pelas pessoas para manifestarem seus pensamentos. Não
MILAGRE E REVELAÇÃO 523

é apenas traço, vestígio de uma presença, de uma ação, mas


exprime uma intenção de intercâmbio pessoal. Ê sinal de al­
guém para alguém, no sentido em que dizemos: “fazer sinal
para alguém”. Apresenta-se como uma interpelação ou uma
resposta de Deus. Pelo milagre, Deus se dirige ao homem, fa­
la-lhe, faz-lhe sinal em a natureza, por algum motivo M. Evi­
dentemente, o conteúdo dessa palavra deve ser definido con­
forme o contexto. Antes, porém, de qualquer determinação’
o milagre é um sinal expressivo da benevolência de Deus
para com o homem. Com efeito, se Deus intervém extraor­
dinariamente a favor do homem, para curá-lo, ressuscitá-lo,
então essa intervenção pode significar apenas a benevolência
extraordinária do Deus de amor. Blondel diz que o mila­
gre “manifesta analogicamente a derrogação real que a or­
dem da graça e da caridade introduz nas relações entre o
homem e Deus”27.
A maioria dos milagres do Cristo são curas e ressur­
reições, gestos de misericórdia e de bondade. Antes de
qualquer mensagem particular eles já são palavra de graça, ex­
pressão de amor. São como que saudação amiga e aten­
ciosa que dispõe para o diálogo. O Evangelho vai abrindo
seu caminho com a caridade. Quanto à revelação pois, a
primeira função do milagre é significar a presença e a be­
névola iniciativa do Deus de amor e dispor a alma para
ouvir a Boa-nova.
2) A segunda função do milagre é comprobatória ou
jurídica. Por sua transcendência física e pelo contexto re­
ligioso em que se manifesta, o milagre apresenta-se como
um sinal de Deus. Explicitamente invocada em favor de uma
mensagem que se pretende revelada, significa que Deus
a aprova, sanciona e garante. O conteúdo dessa palavra de
aprovação é radicalmente diverso do conteúdo daquela pa­
lavra que chamamos revelação. O enviado de Deus afir­
ma: “Êis o que Deus vos convida a acreditar”. O milagre afir­
ma: “Este homem é realmente meu enviado; fala em meu

26 E. Dhanis, “Qu’est-ce qu’un miracle?”, Gregorianum, 40 (1959)


228.
27 “Miracle”, Vocabulaire philosophique de Lalande (Paris, 1951),
p. 632.
524 REFLEXÃO TEOLÓGICA

nome: o que ele diz é verdade; acreditai em suas palavras”. A


revelação é comunicação da mensagem e convite para crer
nessa mensagem. O milagre é o selo divino sobre a men­
sagem, garantia de sua origem divina; não é a mensagem,
mas o que dá credenciais à testemunha e autoriza sua pa­
lavra. É o sim de Deus para uma palavra que apela para
ele. Devemos, porém, notar os matizes desse sim conforme os
títulos de quem fala. O profeta pede a Deus sinais que
confirmem sua missão de mensageiro divino: nesse caso
o milagre recomenda o profeta como enviado de Deus e sua
palavra como palavra de Deus. O Cristo, porém, declara-se
não apenas como mensageiro de Deus, mas como Filho do Pai
e seu igual. Já agora o sim de Deus confirma essa verdade
central de sua mensagem, ou seja, que é Deus; com isso ga­
rante também toda sua mensagem. A Igreja pretende ser
a continuadora do Cristo-Deus: historicamente (apostolici-
dade), moralmente (santidade), doutrinalmente (continui­
dade na fé). Em seu caso, o milagre atesta que Deus re­
conhece a verdade dessa sua continuidade com o Cristo e
com Deus; atesta a origem divina de sua doutrina e de seu
poder de santificação.
Em sua função confirmativa, pois, o milagre é palavra
comprobatória de Deus; é o selo da onipotência divina
aposto a uma palavra que se pretende divina. Ainda mais: se,
como no caso de Cristo e da Igreja são milagres que foram
preditos, então eles são comprobatórios por dois títulos:
enquanto milagres e enquanto cumprimento de profecias. O
argumento jurídico completa-se com o argumento profético.
3) A função comprobatória do milagre parecería po­
bre se isolada de ambas as outras. Com efeito, enquanto
palavra o milagre, sinal de aprovação divina, não poderia
competir com uma mensagem expressa em linguagem huma­
na: não tem nem a mesma riqueza nem a mesma precisão.
Acontece, porém, que a função comprobatória do milagre é
inseparável de sua função figurativa ou simbólica. O milagre
tem estreita afinidade com a própria mensagem. Sua parado­
xal transcendência, na ordem da natureza, torna-o maravilho­
samente apto para sugerir o mistério de nossa elevação à or­
dem sobrenatural, já que é a analogia sensível do mistério
revelado. Pela revelação tornou-se o universo o lugar do
MILAGRE E REVELAÇÃO 525

encontro inaudito entre Deus e o homem: confiou-lhe Deus


a missão de significar esse mistério, infinitamente maior
que o mistério atestado pela ordem das leis naturais28. Ainda
mais que o milagre, pela multiplicidade de suas formas, é
apto para sugerir a riqueza e a diversidade dos aspectos da
economia da graça e dos sacramentos. O alcance de signi­
ficação da analogia do milagre com o universo da graça ga­
nha consistência, precisão e maior riqueza de conteúdo
pela mensagem. Assim o milagre, selo divino da mensagem,
já não se apresenta como algo estranho à mensagem, mas
afim.
Mas também a mensagem recebe do milagre um acom­
panhamento contínuo no plano sensível. O milagre é a di­
mensão carnal da mensagem espiritual. Ele, numa economia
de encarnação, visualiza a palavra e lhe dá relevo29. Diz-
-nos o Evangelho que o Cristo veio salvar a humanidade,
libertá-la do pecado, purificá-la e vivificá-la eternamente.
O milagre, curando os corpos, ressuscitando-os, torna visível
essa libertação e essa ressurreição espiritual. Ele é, em a natu­
reza, o reflexo do mistério da salvação. Delineia a nova cria­
ção que se inicia e que espera sua plena glorificação. O mila­
gre demonstra também que a palavra da salvação não é uma
palavra ôca, mas sim uma palavra-energia, uma palavra-ato,
a palavra eficaz do Deus vivo. Milagre e revelação caminham
paralelamente: são como as duas faces, visível e invisível,
do mistério.
Portanto, o milagre dispõe para a revelação; autenti-
ca-a como palavra divina; é a sua figuração sensível. Essas
y três funções são inseparáveis e estão a serviço da mesma
realidade.

28 E. Dhanis, “Qu’est-ce qu’un miracle?”, Gregorianum, 40 (1959):


232-233; L. Monden, Le miracle, signe de salut, p. 30.
29 F. Taymans, “Le miracle, signe surnaturel”, Nouvelle Revue
théologique, 77 (1955): 234-235.
7.
IGREJA E REVELAÇÃO

Com o Cristo e os apóstolos, suas testemunhas, está


concluída a revelação. Deus não nos dirige outra palavra,
mas continua a dirigir-nos a palavra que disse uma vez para
sempre. A Igreja, que nasceu da palavra do Cristo, con­
serva essa palavra e não cessa de a meditar, repetir e expli­
car aos homens de todos os séculos. Entre a Igreja e a re­
velação, entre a Igreja e a palavra, existe doravante múlti­
plo e vital relacionamento. A Igreja depende da palavra e
a palavra depende da Igreja. Queremos agora examinar esse
relacionamento. Explicitamerite, qual é a relação entre a pa­
lavra e o mistério da Igreja e de seu crescimento? Como a
Igreja está a serviço da palavra? De que natureza é sua
ação quanto à mensagem da salvação e quanto aos homens
aos quais se dirige essa mensagem?

I. A PALAVRA CONVOCA E GERA A IGREJA

Foi a palavra do Cristo que deu aos apóstolos a ini­


ciação nos segredos do Pai, foi ela que fundou a Igreja z
dando aos apóstolos o tríplice poder de pregar, de santi­
ficar e governar. Foi da palavra do Cristo que os apóstolos
receberam a missão de convidar os homens para a fé e de in­
corporá-los, pelo batismo, à sociedade do Pai e do Filho
em um mesmo Espírito: uma fé, um batismo, um Espírito
(Ef 4,5). Num sentido, pois, podemos afirmar que a Igre­
ja é convocada e gerada pela palavra. “Fui eu que, por meio
do Evangelho, vos gerei em Cristo Jesus”, diz são Paulo
(1 Cor 4,15). Os cristãos são chamados pelo Evangelho
do Cristo (Rom 1,6). Antes de ser uma comunidade euca-
rística e batismal, a Igreja deve ser uma comunidade evan-
IGREJA E REVELAÇÃO 527
gélica, convocada pela palavra. Desde o começo a vida da
Igreja depende dessa palavra que a gera e nutre \
Na maneira de falar dos Sinóticos é a palavra de Deus
que funda o novo Reino (Mt 13,19). As parábolas nada
mais fazem senão descrever a história dessa fundação. Na
parábola do semeador, a palavra é semeada nos corações
para que os homens ouçam e compreendam (Mt 13,23),
isto é: para que acreditem (Mc 4,9; Mt 11,15; Lc 14,35)
e produzam frutos de vida (Mt 13,23). Como o fermen­
to, a palavra tende a unir os homens em um só pão vivo
(Mt 13,33).
Os Atos dos apóstolos mostram-nos a comunidade cris­
tã primitiva suscitada e alimentada pela palavra. É pela
pregação de Pedro que nasce a comunidade de Jerusalém,
que acolhe a palavra e se deixa batizar (At 2,41-42).
Os judeus da Samaria, ouvindo a pregação de Filipe que
“anunciava a Boa-nova do Reino de Deus e do nome de
Jesus Cristo”, também recebem a palavra e são batizados
(At 8,12.14). Nesses primeiros tempos da Igreja, a
palavra manifesta tal dinamismo que os Atos a represen­
tam como uma espécie de ser pessoal: “a palavra de Deus
crescia e se multiplicava” (At 12,24); “a palavra do Se­
nhor espalhava-se por toda a região” (At 13,49).
Segundo são Paulo a Igreja é a assembléia suscitada pela
convocação divina expressa na mensagem cristã (Rom 1,6;
ICor 1,2). Está fundada sobre a pregação dos apóstolos (Ef
2,20). A Igreja de Corinto nasceu da pregação de Paulo
(2Cor 3,3). Os efésios foram incorporados ao povo de
Deus porque acreditaram na palvra da verdade, na Boa-nova
da salvação (Ef 1,13). A palavra de Deus frutifica e de­
senvolve-se em todo o mundo (Col 1,6; ITes 1,8); desti­
na-se à edificação do corpo do Cristo que é a Igreja, à cons­
tituição do Homem perfeito, do Cristo total, cabeça e
membros (Ef 4,11-13).
São João refere-se a Cristo como ao Bom Pastor que
chama todas as suas ovelhas para que não haja senão um
só rebanho e um só pastor (Jo 10,16). A grande preocupa­
ção do Cristo é a convocação dos homens pela palavra: “Eu

1 T. Soiron, La condition du théologien (Paris, 1953), pp. 111-120.


528 REFLEXÃO TEOLÓGICA

comuniquei-lhes [aos apóstolos] a tua palavra. . . Consa-


gra-os na verdade: a tua palavra é a verdade. . . Não rogo
só por eles, mas também por aqueles que vão crer em
mim, por meio da sua palavra, para que todos sejam um,
assim como tu ó Pai, estás em mim e eu em ti, também
eles sejam um em nós” (Jo 17,14.17.20-21). A palavra
do Cristo quer prolongar entre os homens a unidade do
Filho e do Pai, em um mesmo Espírito de amor e de
verdade.
Essa edificação da humanidade à imagem da sociedade
trinitária é obra da graça. A palavra, em união com o Es­
pírito, convoca e gera a Igreja. De Pentecostes à Parusia,
a palavra e o Espírito agem inseparavelmente para edificar
o corpo do Cristo. É “o Espírito Santo em união com o
ministério apostólico ou a instituição eclesial, o agente reali­
zador da obra do Cristo” 2. Enquanto os apóstolos e a Igre­
ja agem visivelmente, o Espírito opera invisivelmente no co­
ração dos homens. Isso por uma necessidade intrínseca, pois
a palavra deve edificar “uma raça eleita, um sacerdócio real,
uma nação santa” (IPdr 2,9). O povo de Deus constitui-
-se a partir de dois apelos: a pregação do Evangelho (Rom
10,14-17; 2Tes 2,13-14) e o convite da graça (At 16,14;
Jo 6,44; 2Cor l,21-22;4,5-6). A vocação, ato divino con­
secutivo à eleição, externamente manifesta-se pela palavra;
internamente, por uma ação do Espírito. Assim a Igreja,
corpo de Cristo, está em contínuo crescimento até a revela­
ção final dos filhos de Deus. Esse mistério de crescimento
é fruto da palavra da revelação fecundada pelo Espírito.

II. A IGREJA “PRESENCIALIZA” A PALAVRA

A palavra de Deus convoca e gera a Igreja. A Igreja,


por sua vez, “presencializa” a palavra para os homens de
todos os tempos. Pela Igreja o Cristo interpela os homens
em cada geração, dá-lhes a conhecer seu desígnio de salva­
ção e os convida insistentemente à conversão (Mc 1,14-15).
Como dizia Mons. Martin no primeiro concilio do Vaticano,

2 Y. M.-J. Congar, Esquisses du mystère de l’Église (Paris, 1953),


p. 155 (Introdução ao Mistério da Igreja, São Paulo, 166, p. 128).
IGREJA E REVELAÇÃO 529

a Igreja quasi concreta est revelatio3. Pela Igreja a reve­


lação está sempre presente e sempre agindo (Lc 10,16; Mt
10,40). O tempo da Igreja é o tempo em que o Evange­
lho é dado a conhecer a toda criatura (Mc 16,15); é o
“tempo favorável”, o tempo da conversão (At 3,20; Hebr
3,7-10;4,7). No Apocalipse a Igreja é apresentada como o
lugar da última revelação de Deus. No tempo a Igreja é
o Templo em que não cessa de ressoar a palavra de Deus
(Ef 2,19-20). É o paraíso em meio do qual, como fonte
inesgotável e pura, jorra a palavra que fertiliza toda a ter­
ra4. É a Esposa do Cristo que, tendo recebido a palavra do
Esposo, não cessa de meditá-la para repeti-la aos homens,
viva e fiel como no primeiro dia5.
Para a Igreja a pregação da palavra não é apenas uma
honra, mas uma missão, que deriva de um mandamento ex­
presso do Senhor (Mt 28,18-20; Mc 16,15-16; Jo 17,18-
-20). O ministério da palavra procede do Cristo histórica,
jurídica e ativamente. Para a Igreja, pregar, evangelizar é
uma obrigação. Pois a Igreja é a Igreja da palavra tanto quan­
to a Igreja dos sacramentos. O dever do apóstolo é anunciar
o Evangelho, pois que ele é ministro da palavra do mesmo
modo que ministro dos sacramentos. Os Atos principiam
j com as palavras do Cristo que constitui os apóstolos como
suas testemunhas ( At 1,8 ) e terminam com são Paulo pre­
gando e eijsinando (At 28,31). Os apóstolos, devendo esco­
lher entre vários ministérios, optam pelo serviço da palavra
(At 6,2-4). São Paulo declara: “O Cristo não me enviou para
batizar mas para anunciar o Evangelho” (ICor 1,17). “O
Senhor assistiu-me e encheu-me de força para que, por mim,
a mensagem fosse proclamada e chegasse aos ouvidos de
todos os pagãos” (2Tim 4,17).
Na atual economia da salvação, a pregação é necessá­
ria e insubstituível, pois a fé é necessária para a salvação
I e a fé repousa sobre a pregação da salvação. Para que o Cristo
1 seja conhecido e o Pai glorificado, é preciso que haja lábios
I que anunciem a palavra. Mas, como invocarão a Deus “em

I 3 Mansi, 51: 314 B.


4 Irenaeus, Adversus Haereses, N, 20, 2: PG 7, col. 1177-1178.
3 D. 1800.
530 REFLEXÃO TEOLÓGICA

quem não crêem? E como hão de crer naquele de quem


não ouviram falar? E como hão de ouvir falar dele, se
não houver quem pregue?... A fé, portanto, vem da pre­
gação e a pregação é feita por mandato de Cristo” (Rom
10,14-17). O ministério da palavra pertence à própria es­
trutura da Igreja. Se a Igreja se calar, se a palavra já não
soar, morrerá o mundo na ignorância da salvação que lhe
é oferecida. Pregar a palavra pertence à missão profética
da Igreja. Assim como os profetas do Antigo Testamento
eram a boca de Deus em Israel, assim a Igreja é a boca
do Cristo e o instrumento do Espírito para a proclama­
ção do Evangelho. Não cessa de anunciar o acontecimen­
to da salvação, para que toda a humanidade, tendo ouvi­
do a palavra de Deus e tendo dado sua adesão pela fé, parti­
cipe eternamente da intimidade da vida trinitária.
Essa tarefa de presencialização da revelação realiza-se
principalmente pela pregação, e pela pregação viva, encar­
nada. A palavra falada não poderia ser substituída pelo
texto escrito. Não há dúvida que a palavra de Deus
tem de per si uma eficácia intrínseca objetiva, em analogia
com o sacramento6. Contudo, na pregação mais que no
sacramento, a pessoa do pregador desempenha uma função.
O que o pregador transmite não é um sistema de pensa­
mento ( matéria de ensino que poderia transmitir sem se com­
prometer pessoalmente), mas uma mensagem de salvação, li­
gada a um acontecimento que muda o sentido da existência
humana, em primeiro lugar a existência do próprio prega­
dor 7. Na brecha aberta pela miséria do pecado o Cristo in­
troduziu a esperança. Veio como a Luz e a Vida (Jo 14,5;
9,5). Pela sua morte e pela ressurreição fez-nos filhos do
Pai, chamados a participar de sua vida e de sua glória.
O que o pregador anuncia como Boa-nova e o que ates­
ta como a Verdade do homem, é justamente a realidade da
qual é o primeiro beneficiário. Prega a esperança que ilu-
6 Quanto às relações entre revelação e sacramento, cfr. o capítulo
V desta V parte, parágrafo 4.
7 D. Deden, “Le mystère paulinien”, Ephemerides theologicae lo-
vanienses, 13 (1936): 420-423; D. Grasso, “Il kérigma e la predicazione”,
Gregorianum, 41 (1960): 439-440; C. Dodd, The Apostolic Preaching
and its Developments (London, 1956, 8?), pp. 7-35.
IGREJA E REVELAÇÃO 531

minou e transformou sua própria vida. Conseqüentemente,


o ouvinte da palavra espera ver nele um reflexo dessa es­
perança. Ele prega o Cristo, que é o Tudo de sua vida.
Deve pois sua vida mostrar que o Evangelho é capaz de
transformar a existência humana; é vivendo do Espírito
do Cristo que ele prega ^ficazmente o Cristo.
A verdadeira pregação deve ser ao mesmo tempo um
serviço e um testemunho, palavra que brota de um compro­
metimento, credenciada pela santidade da vida. Caso contrá­
rio o próprio serviço da palavra manifestará sinais de can­
saço, como se fosse um peso. O servidor da palavra deve
anunciar o Cristo no poder do Espírito que nele habita e ne­
le testemunha. Esse comprometimento da pessoa permite
contemplar o Evangelho vivido e demonstra, ao mesmo
tempo, sua verdade e sua eficácia. Semelhante espetáculo
desperta no ouvinte o desejo de comungar desse universo de
valores que lhe é revelado pela palavra. Desse desejo, fe­
cundado pelo Espírito, poderá nascer a fé8.
Essa exigência de uma pregação autenticada pela vida
impõe-se também pelo fato de o essencial da mensagem
cristã ser a revelação do amor de Deus através do amor do
Cristo. A pregação deve iniciar o ouvinte no mistério do amor
infinito que se manifesta no Cristo. Ora, como introduzir
no amor por alguém, se não for por um contágio de amor?
Como conseguir que os homens se abram para o amor que se
oferece, a não ser pelo contato de alguém já conquistado
pelo amor? É preciso que o amor do Cristo tenha inva­
dido o coração do apóstolo para que as almas vejam,
no pregador, a Deus que é amado e Deus que ama. É pre­
ciso que a palavra ouvida desperte a reflexão dos discípulos
de Emaús: “Não nos ardia o coração no peito, quando
ele nos falava pelo caminho, enquanto nos explicava as
Escrituras?” (Lc 24,32).
III. A IGREJA SERVA, GUARDA E INTÉPRETE DA PALAVRA

Com os apóstolos terminou a revelação (D. 2021). De


uma vez para sempre Deus, pelo Cristo e pelos apóstolos,
8 A pregação do Evangelho é, pois, duplamente eficaz: a) devido à
dimensão de graça que vem unida ao anúncio exterior da mensagem; b)
532 REFLEXÃO TEOLÓGICA

manifestou a mensagem da salvação. A doutrina da fé cons-


titui-se definitivamente pelo depoimento das testemunhas
oficiais. Mas também é verdade que a palavra de Deus
deve continuar tão viva como no princípio. O homem do
século XX deve sentir-se atingido por ela tão vivamente
como o judeu, o grego ou o romano do primeiro século. Mes­
mo sendo palavra dirigida a um ambiente determinado, a um
determinado momento da história, ela deve ir ao encontro
dos homens de todos os tempos, atingi-los em sua situação
histórica, sempre única, dar resposta às suas questões, às
suas inquietudes, para encaminhá-los para Deus. Com isso no­
vamente enfrentamos o problema da historicização da reve­
lação. Como poderá a palavra adaptar-se às sucessivas ge­
rações, sem que jamais se desvie, mude de sentido, ou se
contamine? Atrayés da sucessão ou do encontro das civi­
lizações, ao longo das mudanças de estruturas políticas, so­
ciais ou econômicas, como poderá a palavra continuar sem­
pre idêntica e contudo sempre nova, tão atual como na
manhã de Pentecostes? Essas questões levàm-nos a precisar
a função do Magistério com relação ao depósito da fé.
Como depositária do Evangelho a Igreja recebeu a
missão de pregá-lo e interpretá-lo autênticamente. Foi dota­
da com a capacidade de compreendê-lo com um frescor sem­
pre novo e poder assim dar resposta às questões de cada
geração9.
Tentando compreender a função do Magistério deve­
mos evitar dois excessos: 1? A Igreja não substitui as fon­
tes, como o pensam muitos protestantes atuais, por exemplo:
G. Ebeling 10, W. Von Loewenich n, W. Schweitzer u. Eles
devido à santidade do pregador, que age sobre o ouvinte como um motivo
de credibilidade, como um sinal que atesta a origem divina da palavra
ouvida.
9 K. Rahner, “Zur Frage der Dogmenentwicklung”, Schriften zur
Théologie (Einsiedeln, 1956), 1: 57-58; G. Dejaifve, “Bible, tradition
et Magistère dans la théologie catholique”, Nouvelle Revue théologique,
78 (1956): 145-146.
10 G. Ebeling, Die Geschichtlickeit der Kirche und ihrer Verkün-
digung als theologisches Problem in drei Vorlesungen (Tübingen, 1954),
pp. 44-50.
11 W. von Loewenich, Der Moderne Katholizismus (Witten, 1955),
pp. 160-166.
12 W. Schweitzer, Schrift und Dogme in der Oekumene (Gütersloh,
1953),. pp. 32-52.
IGREJA E REVELAÇÃO 533

vêem na Igreja católica um absoluto que sucede ao Cristo,


ligando-se a ele simplesmente pela história, sem dever se preo­
cupar nem com a Escritura nem com a Tradição. 2? Para a
Igreja, a volta às fontes não é como o pensava L. Charlier uma
atitude de interesse principalmente histórico, uma vez que o
depósito se encontraria apenas no presente da Igreja 13. É bem
diferente a maneira de a Igreja falar sobre si mesma: de­
fine-se ela referindo-se ao depósito da fé, do qual se pro­
clama simplesmente serva (Vat. II), guardiã e intérprete
(D. 1793, 1800, 1836, 2145, 2307). A palavra chega até
nós pela Escritura, pela Tradição e pelo Magistério, os três
estreitamente ligados entre si. Ouvir a Igreja é ouvir a
palavra escrita e transmitida, mas enquanto compreendida
e explicada pela Igreja. Neste sentido, o Magistério é para
os fiéis a norma próxima e universal da verdade (D. 2313).
Não é norma constitutiva da fé, mas norma diretiva quan­
to à palavra recebida dos apóstolos 14.
Os documentos da Igreja atribuem ao Magistério três
funções ante o depósito da fé. Deve guardar, conservar
santa e fielmente, como um depósito, a doutrina recebida
do Cristo e dos apóstolos (D. 792a, 1793, 1800, 1836,
2145, 2307, 2313, 2315). Deve protegê-la e defendê-la
contra o erro (D. 792a, 1871, 2313). Deve fielmente ex­
por a doutrina revelada, declarar o seu verdadeiro sentido,
interpretá-la autenticamente (D. 1800, 1836, 2313, 2314,
2307). A autoridade doutrinai da Igreja tem como finali­
dade essa obra de conservação, defesa, interpretação. É
exercida pelo Magistério ordinário (ensinamento unânime
dos bispos e dos doutores da Igreja universal) ou pelas de­
finições do Magistério extraordinário (o concilio ecumênico
ou o papa falando ex cathedra).
Como Israel no Antigo Testamento, a Igreja é depo­
sitária da palavra de Deus e deve primeiramente conservar
o depósito que lhe foi confiado. Conservar o depósito quer
dizer guardá-lo íntegro, não deixar que nada seja esquecido,
13 L. Charlier, Essai sur le problème théologique (Thuillies, 1938),
p. 64.
14 C. Baumgartner, “Tradition et Magistère”, Recherches de science
religieuse, 41 (1953): 171-174.
534 REFLEXÃO TEOLÓGICA

mas também quer dizer nada acrescentar ao conjunto das


verdades atestadas, não introduzir novidade, nada inventar.
Defender a palavra revelada é protegê-la dando resposta às difi­
culdades que lhe são feitas e também imediatamente proscre­
ver os erros, condená-los, indicar os desvios. Expor, declarar,
interpretar', é o trabalho de crescente assimilação da palavra.
Pois a Igreja que recebeu a palavra, conserva-a como um ser
vivo cujo princípio de assimilação é o Espírito Santo. A
Igreja não a recebeu como um tesouro inerte a ser conser­
vado como uma jóia familiar, mas como palavra viva; não
um tesouro improdutivo, como o talento que o servo pre­
guiçoso enterrou, mas fonte de água viva, à qual vêm be­
ber os homens de todos os tempos. Como a Virgem fiel
que tudo conservava e meditava em seu coração, a Igreja
não cessa de meditar a palavra recebida. A Esposa do Cris­
to em uma alma contemplativa: medita sempre a palavra dó
Cristo, seu esposo, assimila-a, aprofunda-a, graças ao ilimi­
tado discernimento que lhe vem do Espírito, pois que essa pa­
lavra é infinitamente rica (D. 2314): indefinidamente soli­
cita o coração e a inteligência. Não é um domínio cuja ex­
ploração pudesse estar um dia terminada, é um abismo que
se aprofunda à medida que os olhos se acostumam à sua
profundeza.
Querendo descrever êsse dinamismo de assimilação da
palavra, essa tomada de consciência sempre mais plena das
riquezas da revelação, a Igreja refere-se a uma passagem
do implícito ao explícito 15, do obscuro ao claro (D. 2314).
Na encíclica Humani Generis encontramos reunidas ambas
as expressões. “Às fontes da revelação, Deus. . . acrescen­
tou o Magistério vivo para iluminar e particularizar o que
se encontra apenas obscura e como que implicitamente no
depósito da fé” 16.
O Magistério explica o que se encontrava apenas im­
plicitamente nas fontes da revelação. Por exemplo, na afir-
15 “Nullum sane inventum inducitur, nec quidquam additur novi ad
earum summam veritatem, quae in deposito revelationis, Ecclesiae tradito,
saltem implicite continentur” (Pius XI, Mortalium animos, AAS 20
[1928]: 14).
16 “Una enim cum sacris ejusmodi fontibus Deus Ecclesiae suae Ma­
gisterium vivum dedit, ad ea quoque illustranda et enucleanda, quae in
fidei deposito nonnisi obscure ac velut implicite continentur” (D. 2314).
IGREJA E REVELAÇÃO 535

mação: o Verbo fez-se carne (Jo 1,14), encontram-se im­


plícitas as seguintes verdades: o Cristo tem natureza huma­
na; tem corpo e alma, inteligência e vontade humanas; a hu­
manidade de Cristo, seu coração, podem ser adorados. Aqui
se opera o progresso mediante simples desdobramento de
uma verdade explicitamente afirmada pela Escritura. Ou,
então, o Magistério esclarece o que estava obscuramente
nas fontes da revelação. Assim, partindo dos dados da
Escritura referentes aos privilégios de Maria, penetrando
sempre mais as relações que ligam Maria a Eva, a Cristo e
à Igreja, refletindo assiduamente na grandeza e na santida­
de de Maria, a Igreja atingiu e definiu mais claramente os
pontos luminosos que pressentia desde o começo. Percebeu
mais claramente certos fatos fundamentais (Maria é mãe
de Deus, é a nova Eva, está associada ao Cristo na vitória
sobre o pecado e a morte) e definiu a Imaculada Concei­
ção e a Assunção de Maria. Não se trata propriamente de
um raciocínio linear; é antes uma convergência de perspecti­
vas, uma percepção mais precisa de traços já existentes,
graças a uma luz mais penetrante.
O que se aperfeiçoa, pois, não é o depósito da fé,
objetiva e definitivamente constituído, mas sim a inteli­
gência da revelação {quoad nos) mediante uma assimilação
que se exerce no interior do objeto da fé. Não há dúvida
que as verdades são apresentadas sempre mais precisa­
mente, de forma, porém, sempre homogênea com a verda­
de primitiva, sempre no interior do objeto da fé, sem, portan­
to, qualquer passagem da ordem das verdades salvificas
para verdades de qualquer outra ordem, ainda que conexas
com o próprio dogma ,7. Assim, o movimento da revelação
que se constitui ao longo do Antigo Testamento até Cristo
e os apóstolos, é continuado pelo movimento que faz pro­
gredir, não a revelação, mas a inteligência e a sua posse
mediante formulações cada vez mais claras e explícitas.
A Igreja foi dotada de um carisma para conservar e
declarar autenticamente a revelação. O Espírito Santo as-
siste-lhe na sua missão de custos et magistra verbi revelati

17 E. Dhanis, “Révélation explicite et implicite”, Gregorianum, 34


(1953): 197.
536 REFLEXÃO TEOLÓGICA

(D. 1793), dando-lhe um socorro atual especial para con­


servar, defender e interpretar o depósito da fé. Assistên­
cia infalível, que não é meramente negativa, mas ativa, pois
esse carisma intervém como fator de progresso dogmático.
O Espírito, não apenas preserva a Igreja do erro, mas também
a guia para a plenitude da verdade. A Igreja é sempre
“ensinada pelo Espírito Santo” 18, que age sobre ela, “suge- /
rindo” (D. 783a, 792a), e a “dirige infalivelmente para
um conhecimento mais perfeito das verdades reveladas* 19.
O Magistério se refere evidentemente às passagens de são
João onde se diz que o Espírito Santo “ensinará” aos após­
tolos e lhes “trará à lembrança” tudo quanto lhes disse o
Cristo (Jo 14,26). É o Espírito Santo que os “guiará para
a verdade plena” (Jo 16,12-13) e “dará testemunho” sobre
o Cristo (Jo 15,26). Esses textos, à luz da promessa que
o Cristo fez de assistir aos seus “até o fim do mundo” (Mt
28,20) e de enviar-lhes um Paráclito, o Espírito da Ver­
dade, que estará com os apóstolos “para sempre” (Jo 14,
16-17), não se compreendem plenamente a não ser que a as­
sistência prometida primeiramente aos apóstolos continue
também com seus sucessores e, portanto, com a Igreja de
todos os tempos20.
Contudo, o trabalho de assimilação e de interpretação
da revelação continuado pelo Magistério sob a assistência
do Espírito, não implica em uma nova revelação. Diz o pri­
meiro concilio do Vaticano: “O Espírito Santo não foi pro­
metido aos sucessores de são Pedro para que êles, em vir­
tude de uma revelação desse Espírito manifestem uma nova
doutrina. Foi-lhes dado para que, sob sua assistência, con­
servem santamente e fielmente exponham a revelação trans­
mitida pelos apóstolos”21. Com o Cristo e os apóstolos,

18 Pius IX, Ineffabilis Deus, Coll. Lac., t. VI, col. 836.


19 “Universa Ecclesia, in qua viget veritatis Spiritus qui quidem eam
ad revelatarum perficiendam veritatum cognitionem infallibiliter dirigit”
(Pius xii, Munificentissimus Deus, AAS 42 1950 768).
20 Muitos exegetas católicos admitem que as três passagens: Jo 14,
16-17; 15,26; 16,12-13, se aplicam não apenas aos apóstolos, mas também
à Igreja. Cfr. E. Dhanis, “Révélation explicite et implicite”, Gregorianum,
34 (1953): 206-207, n. 52.
21 “Neque enim Petri successoribus Spritus Sanctus promissus est, ut
eo revelante novam doctrinam patefacerent, sed ut, eo assistente, traditam
IGREJA E REVELAÇÃO 537

suas testemunhas, chegou a plenitude dos tempos. A Igre­


ja não pode contar com novas revelações para fundamen­
tar o seu ensinamento; sua missão é conservar a revelação
dada uma vez para sempre. A assistência que lhe é dada
é análoga à inspiração da luz da fé. £m ambos os casos o
Espírito age por atração e por inclinação. Jamais o socor­
ro da graça se faz sentir como uma palavra distinta de Deus
que convidasse a crer um novo conteúdo de pensamento:
permanece oculto como as graças da ordem da inspiração.
Portanto, há progresso na compreensão da palavra,
sempre mais profunda, mais detalhada, mais precisa,
sem, porém, nova mensagem ou novo mistério. Há inter­
pretação da revelação, sem nenhuma mudança de sentido.
A Igreja descobre pouco a pouco as dimensões do mistério
revelado. Cada época traz um novo esclarecimento, graças ao
qual pontos obscuros se tornam manifestos, um particular
oculto se manifesta. Quanto mais, porém, se descobre,
mais se encontra a mesma realidade: como um rosto que
da penumbra vem para a luz.
Ocasiões para esse desenvolvimento dogmático podem
ser os ataques contra a Igreja, as heresias (docetismo, aria-
nismo, nestorianismo, protestantismo), as controvérsias en­
tre os teólogos, as dificuldades práticas, os problemas pró­
prios de uma época, o progresso das ciências, as revelações
particulares. Os fatores positivos são: 1 ) a pesquisa teo­
lógica, 2) as sugestões do Espírito na consciência dos fiéis
e do Magistério, 3 ) o carisma da infalibilidade.
A pesquisa teológica é a inteligência da fé que se exer­
ce sob a direção da Igreja. Essa pesquisa usa de todos os
recursos do raciocínio humano. Quando feita em condições
ideais, isto é, quando o teólogo é ao mesmo tempo doutor
e confessor, ela possui, ainda mais, um poder de penetra­
ção superior, fruto da fé viva e dos dons do Espírito. Prin­
cipalmente o dom da inteligência torna o espírito mais agu­
çado para penetrar as verdades da fé a. O dom da sabedoria
infunde na alma do teólogo uma conaturalidade afetiva com

per apostolos revelationem seu fidei depositum sancte custodirent et fide­


liter exponerent” (D. 1836).
22 S. Thomas, S. Th., 2a 2ae, q. 8, a. 1.
538 REFLEXÃO TEOLÓGICA

o objeto da fé, que lhe permite um julgamento correto,


segundo o pensamento divino23. Como amigo que, graças
a uma sintonia afetiva, mais penetra nos pensamentos de
seu amigo, assim o teólogo tem em si a unção do Cristo
que, como instinto seguro, dirige e vivifica seus passos,
faz que seus pensamentos coicidam com os do Cristo, cap­
tando-lhe ccrretamente suas implicações e seus prolongamen­
tos (ICor 2,10-16;6,17).
A inspiração do Espírito age conforme as funções de
cada um: tanto na Igreja discente quanto na docente. Essa
atividade do Espírito no povo fiel é real e poderosa. Acon­
tece mesmo que, sob a moção do Espírito, a intuição dos
fiéis antecipa-se de certo modo às análises e conclusões do
labor teológico. É o caso dos dogmas da Imaculada Con­
ceição e da Assunção. O papa constatou que essas ver­
dades eram parte da fé da Igreja universal e com o seu
carisma de infalibilidade sancionou essa fé universal.
O fator principal e determinante do progresso dogmá­
tico é a declaração infalível do Magistério. É o carisma de
infalibilidade dado à Igreja para conservar, defender e pro­
por a doutrina da fé que, de modo definitivo, nos garante
que a verdade apresentada como revelada não é fruto de
iluminismo dos fiéis nem uma fosforescência da imaginação
dos pesquisadores, mas verdade verdadeiramente atestada por
Deus e contida no depoimento das testemunhas apostólicas.

IV. A IGREJA, SINAL DA REVELAÇÃO

A Igreja torna a revelação sempre presente pela sua


pregação; propõe-na e interpreta autenticamente para cada
geração. Mas não só isso. A Igreja, por si mesma consti-
tittii um grande e perpétuo motivo de credibilidade em fa­
vor da revelação. Deus, para fazer reconhecida sua pala­
vra, nunca a separou dos sinais que a garantissem como
divina. Desde o início, a proclamação do Evangelho esteve
ligada aos sinais do Reino, principalmente os milagres e

23 S. Thomas, S. Th., 2a 2ae, q. 45, a. 2, c.


IGREJA E REVELAÇÃO 539

as profecias (D. 1790). Conservam esses sinais todo seu


valor para estabelecer o fato da revelação. Normalmente,
porém, a fé contemporânea, mais que sobre os milagres da
Escritura, apóia-se no sinal sempre atual da Igreja. A Igre­
ja, pois, ao mesmo tempo recolhe e atualiza os sinais an­
tigos e, por sua presença sempre contemporânea, “faz sinal”
mostrando que sua missão e sua doutrina vêm de Deus.
Segundo o primeiro concilio do Vaticano: “Somente à
Igreja católica pertencem todos esses sinais, tão numerosos
e tão admiravelmente dispostos por Deus para fazer aparecer
claramente a credibilidade da fé cristã. Ainda mais: a Igreja
por sua admirável- propagação, por sua eminente santidade,
por sua inesgotável fecundidade em todos os bens, por sua
unidade católica e por sua invicta estabilidade, é de per si
um grande e perpétuo motivo de credibilidade e um teste­
munho irrefutável de sua missão divina. Por isso ela, como
um estandarte erguido entre as nações (Is 11,12), convoca
os que ainda não acreditaram, e aumenta em seus filhos a
certeza de que a sua fé repousa sobre sólidos fundamentos ” 24.
A Igreja, por si mesma, é um milagre moral15. Assim como
o Cristo fazia-sinais aos contemporâneos pela irradiação de
toda sua personalidade (doutrina, sabedoria, santidade, mi­
lagre), também a Igreja, pela irradiação de todo seu ser
(expansão, unidade, estabilidade, santidade, fecundidade),
faz-sinal aos homens de todos os tempos, mostrando que
recebeu do próprio Deus sua missão e sua mensagem. Par­
ticipa da glória do Cristo.
Esse aspecto da Igreja, que a torna um sinal da reve-
24 “Ad solam enim catholicam Ecclesiam ea pertinent omnia, quae ad
evidentem fidei christianae credibilitatem tam multa et tam mira divinitus
sunt disposita. Quin etiam Ecclesia per se ipsa, ob suam nempe admira­
bilem propagationem, eximiam Sanctitatem et inexhaustam in omnibus
bonis foecunditatem, ob catholicam unitatem invictamque stabilitatem
magnum quoddam et perpetuum est motivum credibilitatis et divinae suae
legationis testimonium irrefragabile. Quo fit ut ipsa veluti signum leva­
tum in nationes (Is 11,12) et ad se invitet, qui nondum crediderunt,
et filios suos certiores faciat, firmissimo niti fundamento fidem, quam
profitentur” (D. 1794).
25 Para nós, milagre moral é um modo de agir, individual ou cole­
tivo, que se manifesta num contexto religioso, e de tal modo supera ο
comportamento habitual dos homens, que sua única razão suficiente é
uma intervenção especial de Deus: mediante essa intervenção, Deus signi­
fica a instauração do Reino de Deus entre os homens.
540 REFLEXÃO TEOLÓGICA

lação, não é uma descoberta do primeiro concilio do Va­


ticano. O argumento é tradicional na Igreja. Os santos
Padres, desde os primeiros tempos, principalmente Irineu,
Tertuliano, Orígenes, Agostinho, para defender o cristianis­
mo apelam para sua miraculosa expansão, para a constân­
cia dos mártires, para o brilho de sua santidade. O argu­
mento é retomado por Savonarola no século XV, por Bossuet
e por Pascal no século XVII, por Fénelon no século XVIII,
por Balmes, Lacordaire, Bautain e Deschamps no século
XIX, e logo antes do Concilio é apresentado por J. Kleutgen
e J. B. Franzelin26. Contudo, o magistério da Igreja, san­
cionando com sua autoridade o valor desse argumento, con­
sagrou-o definitivamente e deu início a uma reflexão teoló­
gica muito fecunda27.
A Igreja, como sinal da revelação, pode ser considera­
da dogmática e apologeticamente. A visão dogmática, à luz
da própria fé, procura o segredo da glória exterior da Igre­
ja. A visão apologética, contemplando inicialmente o bri­
lho exterior da Igreja, procura sua fonte, procura uma
explicação proporcionada ao fenômeno dessa sociedade ex­
cepcional. São duas considerações complementares e não
opostas. O mistério ilumina o que há de espantoso nos
fatos, enquanto que o milagre desperta para a presença
do mistério28.
Vejamos primeiro o que nos mostra a visão dogmática
ou descendente. A primeira das sociedades, o protótipo e a
fonte de todas as outras, é a sociedade das Pessoas divinas.
Nessa sociedade é perfeita a unidade do Pai e do Filho em
um mesmo Espírito. “O Pai ama o Filho e tudo entregou em
suas mãos” ( Jo 3,35;5,21.26.36; 17,4.8.11 ). “Tudo quanto o
Pai tem é meu”, diz o Cristo (Jo 16,15). Tudo o que é

26 M. Grand’maison, L’Église par elle-même motif de crédibilité


(Rome, 1961), pp. 7-9; J. T. Tseng, De Apologetica methodo quae "via
empirica” audit (Hong Kong, 1960), pp. 2-5; S. Pesce, La Chiesa cattolica,
perenne motivo di credibilità (Catania, 1960), pp. 144-160.
27 Bibliografia completa em M. Grand'maison, L’Église par elle-
-même motif de crédibilité. Histoire de l’argument·. 1870-1960 (Rome,
1961), pp. 45-51. Cfr. tb. H. Holstein, “L’Église, signe parmi les Nations”,
Études, 315 (oct. 1962) pp. 45-59.
28 C. Journet, L’Église du Verbe incarné (2 vol., Paris, 1941, 1951),
2: 875-876.
IGREJA E REVELAÇÃO 541

meu-é teu e o que é teu é meu” (Jo 17,10). O Cristo, por


sua vez, ama o Pai com um amor sem limites. A vontade
do Pai é seu alimento, isto é, sua vida (Jo 4,32-33). É a
lei do seu ensinamento (Jo 7,16; 12,50), de sua missão (Jo
6,38-40;7,28;8,42 ), do seu sacrifício (Jo 10,17-18; 12,27-
-28; 14,30-31; 19,30). O Cristo é o Amém do Pai, que
sempre lhe diz ita (Hebr 10,5-7; Lc 10,21). Em são João,
exprime-se essa intimidade de vida com fórmulas de “in
esse” mútuo: “o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo 10,38).
“Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). O Espírito é a efusão
do amor mútuo e comum do Pai e do Filho.
Deus, pelo Cristo, quis introduzir os homens nessa so­
ciedade de amor. Quis que os homens dispersos, divididos,
filhos da cólera e da iniquidade, estejam juntos e unidos
entre si na caridade, à imagem da sociedade trinitária: “que
eles sejam um como nós” (Jo 17,11); quis que o elemento
de coesão fosse o próprio amor pelo qual o Pai dá ao Filho
tudo quanto ele mesmo possui, e o Filho, por sua vez dá
ao Pai tudo o que tem: “Dei-lhes a conhecer o teu nome.. .
para que o amor com que me amaste esteja neles e eu es­
teja neles” (Jo 17,26). “Que assim como eu vos amei,
vós também vos ameis uns aos outros. E nisto precisa­
mente todos reconhecerão que sois meus discípulos: se ti­
verdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35;15,12.17; IJo
3,11.18;4,7-8.11-12.20-21;5,l-2).
A passagem da humanidade, da dispersão e do ódio à
unidade da caridade, é fruto da morte do Cristo, imolado
para “reunir os filhos de Deus que andavam dispersos” (Jo
11,52 ). O Cristo é o único Pastor ( Jo 10,16 ) e a única Porta
(Jo 10,7.9) do aprisco. Por sua morte e por sua ressurreição
deu aos homens tornarem-se filhos do Pai (Ef 1,5; Rom
8,29; IJo 3,11.18;5,20), achegarem-se ao Pai em um só Es­
pírito (Ef 2,18), poderem dizer: “Abba, Pai”, com o Es­
pírito do Filho (Gál 4,6), e amarem os homens como
o Cristo e o Pai os amam ( 1 Jo 3,11.18).
À Igreja que ele fundou, Cristo deu-lhe como elemen­
to de coesão e de expansão, o Espírito que une entre si o
Pai e o Filho. Podemos assim compreender que a socieda­
de eclesial, animada por esse princípio, transcenda os limi-
542 REFLEXÃO TEOLÓGICA

tes do espaço ”, do tempo30 e dos particularismos huma­


nos31. Retomando os termos do primeiro concilio do Va­
ticano (D. 1794), podemos dizer que a Igreja triunfa da
divisão interior (unidade) e da divisão exterior, efeito do
particularismo humano (unidade católica); triunfa dos limi­
tes do tempo e da história (invicta estabilidade), dos li­
mites do desgaste, do envelhecimento e da morte (santi­
dade, fecundidade). Por força do princípio divino que a
vivifica, que é o Espírito de Deus, a Igreja constitui, já
na terra, como que um esboço da Jerusalém celeste, como
que uma antecipação do Reino dos santos.
A presença de semelhante sociedade, imersa nas socieda­
des humanas, atrai os olhares com seu brilho insólito. Tendo
contemplado o foco donde partem os raios ( visão dogmática ),
vejamos agora como os raios nos levam de volta ao foco
(visão apologetica). Na sociedade eclesial, como se nos ma­
nifesta exteriormente, quais são esses fatos observáveis que
fazem da Igreja, entre as sociedades humanas, uma socie­
dade miraculosa cuja existência não se explica sem uma
intervenção extraordinária de Deus?
O primeiro fato é a unidade da Irgeja. Não uma uni­
dade qualquer, superficial, mas uma unidade na complexi­
dade (de doutrina, de culto, de governo), que se mantém
há dois mil anos e conseguiu incorporar multidões de ho­
mens. O pertencer à Igreja traz consigo uma integração pro­
funda das personalidades. Atinge o íntimo das consciências
e estabelece entre os membros da Igreja — ainda que des­
conhecidos, isolados no espaço e no tempo — uma solida­
riedade e uma comunhão sem par. Testemunham todos os fiéis
que o elemento de coesão dessa sociedade é o Cristo e seu
Espírito. A Igreja, como um imenso organismo, cresce,
sem perder, porém, sua coesão interna. Penetra as estru­
turas humanas, sem se deixar absorver por elas. Há tam­
bém um fenômeno interessante: logo que um ramo se se-

29 “Quando o Espírito Santo tiver descido sobre vós, recebereis


vigor e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda
a Judeia e Samaria, e até às extremidades da terra” (At 1,8).
30 “E eis que eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo”
(Mt 28,20).
31 “Ide, pois, ensinai todas as gentes” (Mt 28,19).
IGREJA E REVELAÇÃO 543

para da Igreja, pelo cisma ou pela heresia imediatamente ex­


perimenta a divisão, as variações doutrinais, e freqüente-
mente se dissolve e desaparece32.
Essa unidade é dinâmica e católica: conquista o espaço
e convoca os homens de toda a terra. Nessa expansão da
Igreja, o que mais importa não é o próprio fenômeno, mas
a sua qualidade. É, com efeito, uma expansão que provoca
uma conversão radical dos espíritos e uma transformação
profunda dos costumes; não pela força armada ou pela
pressão moral, mas por uma pura sedução de amor, o amor
de Deus manifesto no Cristo. E isso apesar de todos os
obstáculos interiores e exteriores.
A expansão católica triunfa de todas as divisões do
espírito e do sangue. Transcende a comunidade biológica,
de laços tão fortes, da família, do clã, da nação; transcende
a comunidade política e cultural. Esforça-se por constituir
a comunidade dos filhos de Deus, no Cristo e pelo Cristo.
Procura construir, por sobre a geografia terrestre, uma
nova geografia, tão ampla quanto a terra, que reúna todos
os homens sem distinção de cor, de língua, de raça, de
instituições, de culturas33. Edifica o corpo do Cristo, no
qual já não há judeu, nem grego, nem escravos, nem ho­
mens livres, mas filhos do Pai, “tendo todos bebido de um
mesmo Espírito” (ICor 12,13). Edifica-se a Igreja não
contra, mas em união de amor com todos os homens. Essa
difusão na unidade, essa unidade na diversidade, essa uni­
versalidade na indivisibilidade e na caridade, essa vitória
sobre todos os particularismos, constitui um grande paradoxo.
A Igreja é estável. Atravessa a história, transcende,
porém, as vicissitudes da história. Conserva seu equilíbrio
interior apesar das oposições internas (erros conscientes ou
inconscientes, paixões individuais ou coletivas) e externas
(perseguições, imperialismo multiforme). Enquanto as re­
ligiões, com o passar do tempo, mudam, desintegram-se,
morrem ou cedem ao sincretismo mais condescendente, e por
isso mesmo mais nivelador, a Igreja conserva incontamina-

32 C. Journet, L’Église du Verbe incarné, 2: 1269-1278.


33 C. Dumon, “Unité et diversité des signes de la révélation”,
Nouvelle Revue théologique, 80 (1958): 148.
544 REFLEXÃO TEOLÓGICA

do um conjunto doutrinai muito complexo e, sobretudo, con­


trário às paixões humanas. Ainda mais que essa estabilidade
não é imobilismo, mas permanência, no equilíbrio, de um ser
vivo que sempre cresce e progride. Finalmente, essa estabili­
dade é perpétua, coextensiva com o tempo. Comprometida
no contexto da história e das estruturas políticas, que amea­
çam continuamente sufocá-la (império romano, mundo feudal,
estados modernos), acaba sempre se libertando34. Como
Israel que, pelo profetismo, viveu e sobreviveu entre as
forças de ocupação, apesar dos assaltos do naturalismo e do
nacionalismo, assim também permanece a Igreja segura da
eternidade, numa invicta estabilidade. Essa estabilidade pe­
rene mostra-se como uma espécie de participação na imuta­
bilidade divina, postula um princípio vital que transcenda
o tempo e a história35.
A Igreja é santa: em sua doutrina, em sua missão, em
seus meios de santificação (leis, sacramentos). Age na so­
ciedade humana como um fermento de contínua renovação
moral e espiritual, infundindo-lhe continuamente justiça, ca­
ridade, humildade, pureza. Não cessa de propor o altíssimo
ideal da perfeição evangélica, convidando os mais generosos
a viver plenamente, desde agora, a vida de filhos ado­
tivos de Deus, totalmente consagrados a ele pelo abandono
das riquezas (pobreza), e por uma aliança íntima, exclusiva,
do coração e do espírito com o coração e o espírito de Deus
( castidade, obediência ).
A Igreja leva consigo uma pesada massa de pecadores
e não cessa de implorar para eles o perdão de Deus. Ela,
porém, abrange também uma grande massa de membros que
vivem numa santidade comum. E mais ainda, em todos os
tempos, ela conta em suas fileiras homens de uma santidade
heróica, recrutados de todas as classes sociais. Todos pode­
mos encontrar-nos com essa santidade, se não pessoalmente,
pelo menos através da história. A santidade de Agostinho,
de Xavier, de Bernardo, de Francisco de Assis, de Tomás de

34 J. Guitton, L’Église et VÉvangile (Paris, 1959), p. 383.


35 A. Sertillanges, La miracle de l’Église (Paris, 1933), pp. 9
e 224.
IGREJA E REVELAÇÃO 545

Aquino, de Vicente de Paulo, do Cura d’Ars, pertencem à


História.
Todos podem perceber a sua intensidade, plenitude,
constância e fecundidade. Pois a Igreja é fecunda “em toda
espécie de bens”, com a fecundidade da caridade que se
expande em gestos e obras de beneficência, não para fazer
concorrência à sociedade civil, mas simplesmente porque
a Igreja vive do Espírito de Deus e reflete assim a fecun­
didade e a superabundância da vida divina sempre renova­
da no amor. A Igreja, vivendo da caridade do Cristo, “passa
fazendo o bem” como ele (At 10,38). Numa palavra, é a
santidade que tudo explica. Pois sem a caridade não existe
a união, só o cisma; não existe o universalismo, só o egoís­
mo; não existe estabilidade, só a mudança e a morte.
Tomados em conjunto, esses traços tornam a Igreja
uma sociedade excepcional entre as sociedades humanas.
Como o testemunham a história, a sociologia e a psicologia,
não existe nenhuma sociedade que como a Igreja apresente
esse espetáculo simultâneo de unidade interna e externa, de
universalidade, de perpetuidade, de estabilidade, de santida­
de, de fecundidade..Tudo isso, se o considerarmos conjunta e
qualitativamente, transcende o comportamento normal das
sociedades humanas.
Esses fatos exigem uma explicação, uma razão suficien­
te e proporcionada. De onde recebe a Igreja essa energia,
esse poder de coesão, de assimilação, de santificação, de per­
manência na estabilidade? Como explicação de si mesma a
Igreja propõe sua origem e sua missão divinas. Atesta que
todo seu ser e agir procedem de uma intervenção especial
de Deus no Cristo, Verbo encarnado. Afirma que é, por
vontade de Deus, o único caminho de salvação para todos
os homens. Não se pode rejeitar essa afirmação sem exame,
pois que parece ser justamente a única explicação adequada
dos fatos observados. Se o admitimos, tudo se esclarece e se
torna compreensível, mesmo o heroísmo dos santos e dos
mártires. Caso contrário, a Igreja continua sendo o enigma.
Levando em conta as características e a importância dos
fatos observados, será prudente reconhecer como verdadeiro
o testemunho que a Igreja dá sobre si mesma: sua missão
e sua doutrina vêm de Deus.
18 - Teologia da revelação
546 REFLEXÃO TEOLÓGICA

É tanto mais razoável essa conclusão quanto maior a


harmonia maravilhosa entre os fatos observados e a dou­
trina proposta pela Igreja. Com efeito, a Igreja ensina
que o Cristo é o Filho de Deus que veio até nosso meio
para iniciar na terra o Reino de Deus, para renovar o ho­
mem individual e social. Ora, o caráter miraculoso da
Igreja manifesta visivelmente essa transformação anunciada.
Onde está a Igreja, ali o poder santificador do Espírito está
agindo e renovando os corações. No santo aparece um tipo no­
vo de humanidade, um filho de Deus que vive e age sob o do­
mínio do Espírito. Surge uma sociedade nova, a Igreja, ci­
dade de Deus entre as cidades humanas, que deixa transpa­
recer desde agora alguns traços da Jerusalém celeste: uni­
dade, estabilidade, santidade, fecundidade, eternidade. Por­
tanto, a vida admirável da Igreja é ao mesmo tempo sinal
confirmativo e figurativo da revelação: atesta a origem di­
vina da revelação (sinal confirmativo) e ao mesmo tempo
simboliza a nova criação anunciada pela revelação (sinal
figurativo ).
Assim, pois, Igreja e revelação, Igreja e palavra são
duas realidades indissoluvelmente unidas e que mutuamente
se vivificam. A Igreja ao mesmo tempo convoca e é con­
vocada. Nasceu da Palavra, está a serviço da palavra, é
sinal da palavra. A Esposa recebeu a palavra do Esposo e
jamais a poderá esquecer. Ela vive dessa palavra, espe­
rando a volta do Esposo.
. 8.
REVELAÇAO E VISAO

O Deus da Nova Aliança, como o Deus da Antiga, per­


manece um Deus oculto: “Ninguém jamais viu a Deus” (Jo
1,18). Somente o Cristo, “que vem de Deus... viu a
Deus” (Jo 6,46). As revelações e arrebatamentos de Paulo
continuam ainda dentro dos limites da fé (2Cor 12,1-4).
“Caminhamos pela fé e não pela visão” (2Cor 5,7). Vive­
mos ainda na economia da palavra e da audição, do tes­
temunho e da fé. Só pela mediação de sinais temos acesso
até Deus: o sinal da carne do Cristo e os sinais de sua pa­
lavra humana. A revelação continua sendo um conheci­
mento indireto, imperfeito, parcial, obscuro. Subsiste sem­
pre um hiato entre o enunciado e a realidade, entre o tes­
temunho e a presença, entre a revelação revelada e a reve­
lação revelante. Acreditamos que Deus é Pai, Filho e Es­
pírito; a visão, porém, do Pai, do Filho e do Espírito,
continua sendo objeto de nossa esperança. Por enquanto,
o Ser divino continua sendo trevas para nós. A revelação defi­
nitiva, que será visão direta, só depois da morte.

I. A FÉ, COMEÇO DA VISÃO

A visão, porém, já preludia desde agora. Pela eco­


nomia da palavra e da fé, progressivamente passamos à
economia da visão, esperando a plena luz do encontro face
a face com o Pai. Pois a fé, se orienta para a ex­
periência luminosa do Deus vivo, possuído desde agora na
obscuridade. Orienta-se totalmente para a visão. Aspira
a contemplar claramente aquele que ela reconhece como a
sua felicidade. Na fé existe um apetite de visão, intensifi-
548 . REFLEXÃO TEOLÓGICA

cado pela própria fé que é “prelibação da visão futura” \


De vários modos podemos perceber que a fé é um começo
de visão:
1. O próprio fato de Deus sair de seu mistério, di­
rigir-se ao homem, falar-lhe, tem sentido para Deus somen­
te se ele tiver a intenção de comunicar-se mais plenàmente
com o homem, concluindo pelo encontro o intercâmbio ini­
ciado pela palavra. Uma vez que a revelação é essencial­
mente palavra de amizade, não tem sentido a não ser que
Deus queira consumar essa amizade com o homem num
dom mais completo de si mesmo na presença e na visão.
Deus, pelo simples fato de revelar e se revelar, começa a
se dar com a intenção de um dia dar-se plena e definitiva­
mente. E a fé, que é adesão à palavra de Deus que con­
vida à amizade e à doação, suscita no homem o desejo legí­
timo de chegar à plenitude dessa amizade e dessa doação
que se deve realizar na união transformante e beatificante
da visão. Revelação e visão, pois, nada mais são que dois
momentos de uma mesma manifestação e comunicação de
Deus ao homem. A visão consuma o que a revelação inaugura.
2. A fé inicia a visão enquanto é uma participação real,
ainda que imperfeita e obscura, no conhecimento que Deus
tem de si mesmo. A palavra de Deus, com efeito, nos in­
troduz nos mistérios de sua vida íntima, faz a nossa inicia­
ção num conhecimento que é próprio do Pai, do Filho e
do Espírito. Conhecimento que ninguém pode conseguir a
não ser por uma iniciativa gratuita das Pessoas divinas (Mt
11,25-27; ICor 2,7-10). A fé é começo, prelúdio de visão,
pois que seu objeto material é a mesma realidade misteriosa
que ela conhecerá na visão: a essência divina subsistente em
três pessoas, a essência divina subsistente na pessoa do Ver­
bo hipostaticamente unida à natureza humana, a essência
divina atuando intencionalmente a inteligência criada na vi­
são: numa palavra, os três mistérios fundamentais do cris­
tianismo. O conhecimento da fé, pelo fato de captar im­
perfeita e obscuramente seu objeto, deve amadurecer e desa­
brochar num. conhecimento pleno e completo. E mais, seu
motivo é a própria autoridade daquele que não pode nem en-

1 III Sent., d. 23, q. 2, a. 1, ad 4.


REVELAÇÃO E VISÃO 549

ganar nem se enganar. Apoiando-se assim na palavra de


Deus mesmo, esse conhecimento escapa à fraqueza natural
do conhecimento humano e participa da infalibilidade do
conhecimento divino, entra na imutabilidade da visão. Por­
tanto, sem a visão a fé não teria finalidade e seu impulso
seria barrado. Por seu objeto material e por seu motivo
ela pertence ao mundo da visão.
3. A fé preludia a visão devido à atração para Deus
que a graça da fé imprime em nós. Como vimos, a Verdade
primeira infunde na atividade intelectual uma tendência (in­
clinação ou atração) que age como um instinto primário
e profundo. Nessa tendência é pressentido o Deus da visão,
de maneira dinâmica, como objeto e termo do movimento
do espírito, do mesmo modo como o impulso precede e de­
signa a meta. A ação da graça determina uma tensão dinâ­
mica na direção do Deus da visão. O próprio Deus não
é visto, e o espírito continua conhecendo-o apenas media-
tamente. Mas, todo o dinamismo da fé tende a ultrapas­
sar esse modo de conhecimento e indica como termo de seu
movimento o próprio Deus que atrai para a visão de sua
essência. Ê, pois, a graça da fé um começo de visão, não
como visão imperfeita, mas enquanto inscreve no dinamis­
mo intelectual e volitivo da alma um impulso totalmente
orientado para a visão. É visão incoativa como inclinação
ativa, infusa, sobrenatural, em direção ao Deus da visão2.
4. Finalmente a fé, enquanto animada pela caridade,
torna-se princípio de visão. O cumprimento da vontade
de Deus atrai os olhares do Cristo que se manifesta a seu
discípulo. Se alguém guarda os mandamentos do Cristo,
o Cristo manifesta-se-lhe (Jo 14,21). A imanência nele
do Cristo, até então velada, começa a manifestar-se, ao mes­
mo tempo que se manifesta a imanência do Pai no Filho
(Jo 14,9-10). O Espírito, que prescruta as profundezas
divinas (ICor 2,10), torna sempre mais penetrante o es­
pírito do crente e mais luminoso o próprio objeto da fé.
Pelo dom da sabedoria infunde na alma de quem ama uma
consonância afetiva que é fonte de inteligência. Quem faz

2 Tomamos do P. Alfaro, Adnotationes in tractatum de Virtutibus,


pp. 236-238, a substância destas três primeiras considerações.
550 REFLEXÃO TEOLÓGICA

a vontade do Cristo, capta-lhe o pensamento, partilha de


seus gostos e inclinações. O Espírito do Cristo faz que
ele viva do pensamento e do amor do Cristo. Assim, me­
diante a economia da fé, entramos progressivamente na
economia da visão: se recebemos e guardamos a palavra do
Cristo, recebemos o Espírito do Cristo que nos dá a inteli­
gência do Pai e do Filho. Se lhe apraz, Deus pode con­
ceder a alguns privilegiados uma ampliação desse conheci­
mento da fé viva até às graças místicas extraordinárias.
Jamais, porém, enquanto aqui vive, poderá a alma romper
os véus que a separam do seu Amado.

IL A REVELAÇAO DEFINITIVA: VISÃO E ENCONTRO

A revelação por excelência pertence à escatologia. Será


então que se realizará em sua plenitude “á revelação de
nosso Senhor Jesus Cristo” (ICor 1,7; 2Tes 1,7) e de sua
glória (iPdr 1,7.13;4,13). Então, também se manifestará
a glória de todos os configurados ao Cristo (IPdr 1,5;
Rom 8,18.29; ICor 1,9).
Querendo descrever essa revelação definitiva que unirá
Deus e seus eleitos numa só felicidade, o Cristo usa imagens
tradicionais: reino, terra prometida, paraíso, núpcias, ban­
quete, tesouro, recompensa, salvação, vida, ressurreição, gló­
ria etc. Contudo, através dessas imagens, vai-se manifestando
um pensamento novo: a beatitude do reino consistirá essen­
cialmente na visão e na fruição de Deus. A visão de Deus,
impossível para o homem enquanto aqui vive (Êx 33,20),
privilégio do Filho (Jo 6,46; 1,18) e dos anjos (Mt 18,10)
será partilha dos eleitos: “Felizes os corações puros porque
verão a Deus” (Mt 5,8). O face a face, a descoberta do
semblante sagrado, tanto tempo procurado no Antigo Tes­
tamento, caracterizará a vida eterna3.
Em ICor 13,12, são Paudo faz uma oposição entre o
conhecimento que no estado presente temos de Deus e o
que teremos na felicidade escatológica. “No presente nós
3 A. George, “Le bonheur promis par Jésus d’après le Nouveau
Testament”, Lumière et Vie, n. 52 (avril-mai 1961), pp. 36-37.
REVELAÇÃO E VISÃO 551

vemos por meio de um espelho [per speculum], num enig­


ma [in aenigmate]; então veremos face a face”. Agora,
isto é, no conhecimento da fé, temos de Deus apenas um
conhecimento imperfeito: vemos num espelho, de maneira
indireta; num enigma, obscura e simbolicamente. A visão em
imagem não percebe a realidade em si mesma, só em sua ima­
gem; a visão num enigma dá apenas uma imagem confusa.
No final dos tempos, pelo contrário, o conhecimento será
às claras, face a face, um conhecimento imediato, intuitivo,
direto e claro. Essa visão face a face é a esperança suprema
do mundo que há de vir4.
Em sua primeira Espístola, são João estabelece um
nexo entre a visão de Deus e a nossa filiação divina: “Ago­
ra somos filhos de Deus, e ainda não se tornou manifesto
o que haveremos de ser. Sabemos, porém, que, quando
se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o vere­
mos tal qual é” (IJo 3,2). A primeira revelação, imper­
feita, suscitou, na fé, o começo de nosso ser cristão; a se­
gunda revelação, perfeita, suscitará, na visão, a plena reali­
zação de nossa condição de filhos. No estado atual de nossa
filiação permanece dupla obscuridade: obscuridade quanto
ao que somos na presente economia da fé e obscuridade
quanto ao que seremos quando irromper a visão. Nosso
atual conhecimento é imperfeito porque imperfeito é o
nosso ser; é também imperfeito porque Deus ainda não se
revelou na visão. Quando Deus se manifestar plenamente,
nós o veremos tal qual é, e à luz dessa revelação veremos
o que somos. A visão de Deus, a nossa transformação nele,
a revelação de nossa condição filial serão uma só realidades.
Finalmente, no Apocalipse lemos que “os servos de Deus..

4 J. Dupont, Gnosis, La connaissance religieuse dans les epîtres de


S. Paul (Louvain et Paris, 1949), pp. 105-148; N. Hugedé, La métaphore
du miroir dans les épîtres de S. Paul aux Corinthiens (Neuchâtel-Paris,
1957), pp. 98-150.
5 Também se pode entender o texto de João como se referindo ào
Cristo. Significaria então: quando aparecer o Cristo, seremos semelhantes
a ele, pois que o veremos tal como é. Referir-se-ia o texto ao Cristo se­
gundo a divindade, em sua glória de Filho de Deus (Jo 1,18; 17,5.24;
Apoc 22,3). Cfr. J. Mouroux, L’expérience chrétienne (Paris, 1952),
pp. 171-172.
552 REFLEXÃO TEOLÓGICA

verão sua face” (Apoc 22,4). Essa visão é apresentada


como sendo a suprema beatitude dos eleitos.
O magistério da Igreja indicou precisamente o objeto
e o modo dessa revelação definitiva. O objeto da visão
será a “essência divina” (D. 530), “do próprio Deus, uno
e trino, tal como ele é” (D. 693). O Deus que a visão
nos manifestará, e com o qual desde agora temos comunhão
pela fé, é o Deus vivo e verdadeiro, Pai, Filho e Espírito,
o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus que falou
com Moisés como amigo, o Deus ao mesmo tempo temível
e fascinante, separado e familiar, transcendente e muito pró­
ximo. Vê-lo-emos “numa visão intuitiva, face a face, sem me­
diação de qualquer criatura” que se interponha entre a es­
sência divina e a inteligência humana: a essência divina ma-
nifestar-se-á “imediatamente, a descoberta” (D. 530). É,
pois, um conhecimento imediato e intuitivo de Deus, que
atinge diretamente a própria essência divina percebida como
presente. Essa visão será fonte de fruição e de felicidade
eternas (D. 530).
Não é bastante dizer que a revelação escatológica será
uma visão da essência divina: a visão anunciada pela fé
realiza-se não como um simples espetáculo, de tipo platô­
nico; antes, como a presença mútua de dois amigos que
se encontram, como a presença de um Pai que vem ao
encontro do filho. O estar face a face, anulará todas
as distâncias; já não haverá tensão entre a palavra e a pre­
sença. A Palavra em pessoa será Presença. Deus então se
dará claramente num encontro e numa comunhão interpes­
soais. A visão de Deus será conhecimento e reconhecimento
mútuos, livremente aceitos, entre Deus e o homem, na mais
plena reciprocidade: “Conhecerei como sou conhecido”, diz
são Paulo (ICor 13,12).
Segundo os Sinóticos, a felicidade prometida aos que
tudo deixaram para acompanhar o Cristo, será a comunhão
com ele em seu Reino (Mt 19,28). O Cristo termina a
Ceia marcando um encontro com os seus à mesa do ban­
quete escatológico (Mt 26,29; Mc 14,25). A felicidade é
entrar na alegria do Senhor (Mt 25,21.23); é estar com
o Cristo, com o Esposo no salão das núpcias (Mt 25,10);
REVELAÇÃO E VISÃO 553

é ser comensal do Cristo (Lc 14,15;22,30) e ser por ele


servido (Lc 12,37).
São Paulo, a “permanecer na carne”, prefere “ir-se”,
morrer, pois que a morte lhe permitirá ir para junto de Cris­
to, “estar com o Cristo” (Flp 1,21-24), “permanecer jun­
to do Senhor” (2Cor 5,8). Para os cristãos, o essencial da
felicidade final será “estarem sempre com o Senhor” (iTes
4,17), “viverem unidos com ele” (ITes 5,10: 2Tes 2,1),
“reinarem com ele” (2Tes 2,12). Será pessoalmente que
cada um estará com o Cristo, fruirá de sua sociedade, de sua
felicidade, de seu amor. Em são João, a atenção concen­
tra-se ainda mais na pessoa do Cristo, que é em pessoa a
vida, a salvação, a glória (Jo 3,15-16; 5,24-26; 11,26; 12,
50). O Cristo quer que os seus estejam “onde ele estiver”
(Jo 14,3), “com ele” (Jo 17,24).
Numerosos textos, finalmente, insistem no aspecto co­
munitário desse encontro e dessa visão. Assim como a pri­
meira revelação é dirigida à humanidade como tal (Mt 28,
19; Mc 16,15), para formar o corpo do Cristo que é a
Igreja (Ef 1,22;4,16;5,23.30), assim também a revelação
escatológica se apresenta como uma experiência coletiva,
como uma alegria compartilhada. Essa idéia aparece prin­
cipalmente no tema do festim escatológico (Lc 14,15), tão
caro aos sinóticos. Esse festim é uma refeição comunitá­
ria que reúne todos os justos ao redor do Senhor (Mt
8,11-12). “Comereis e bebereis à minha mesa no meu
Reino”, promete o Cristo aos apóstolos (Lc 22,30; Mt 26,
29). O Apocalipse apresenta a Jerusalém celeste como sen­
do a sociedade dos eleitos “reunidos” em torno do Cordeiro
(Apoc 14,1-4) e com ele reinando (Apoc 22,4;1,6.9)6.
A oposição que a Escritura e o Magistério evidenciam
entre a economia da fé e a economia da visão não significa, po­
rém, que com o encontro e a visão de Deus desaparecerá todo
mistério. O homem, vendo a Deus, torna-se-lhe semelhante
( 1 Jo 3,2), mas não igual. O conhecimento que Deus tem
de si mesmo, além de intuitivo é exaustivo. O nosso co­
nhecimento, mesmo sendo imediato, continuará sendo conhe-

6 J. Dupont, L’Union avec le Christ suivant S. Paul (Bruges, 1952),


pp. 79-100.
554 REFLEXÃO TEOLÓGICA

cimento de criatura finita, limitada. Jamais poderia, pois, ex­


aurir a essência divina. A visão será o encontro com o Misté­
rio em Pessoa, e não mais apenas mediante testemunho e fé.
O próprio Deus inefável será o objeto de nossa visão; jamais,
porém, mesmo na revelação final, a nossa inteligência do
mistério poderá ser totalmente exaustiva. A vida eterna
será como que uma imersão no abismo que sempre mais se
aprofunda. Avançaremos de claridade em claridade, mas
também de abismo em abismo. O mistério já não será co­
nhecido mediante sinais, continuará, porém, sempre mis­
tério. A visãó será iniciação sem fim no Mistério de Deus.

III. REVELAÇÃO DA NATUREZA, DA GRAÇA E DA GLÓRIA


Tendo examinado as relações entre revelação natural
e revelação da graça, entre revelação da graça e revelação
da glória, deveremos examinar agora o nexo existente entre
essas três formas de revelação, pois que de uma a outra há
progresso e aprofundamento.
1. Na revelação natural o meio objetivo de manifesta­
ção é a obra da criação; na revelação sobrenatural, é a pa­
lavra e o testemunho de Deus; na revelação escatológica, é
a própria essência divina.
2. Uma luz subjetiva, cada vez maior, acompanha
essa manifestação objetiva; luz da razão, na revelação natu­
ral; luz profética e luz da fé, na revelação da graça; luz
da glória, na visão beatifica.
3. A cada nível de revelação corresponde um conhe­
cimento cada vez mais profundo de Deus: na revelação na­
tural, Deus é conhecido como princípio e fim do universo;
na revelação sobrenatural, conhecemos os mistérios de sua
vida íntima e seu desígnio de salvação; na revelação da gló­
ria, veremos claramente a Deus, no face a face da visão
de sua essência.
4. Cada forma de revelação é, da parte de Deus,
uma comunicação e uma doação de si mesmo cada vez maio­
res. Na revelação natural, Deus deixa o sinal e dá a facul­
dade que permite ao homem elevar-se até ele e discernir
sua presença no universo. Na revelação sobrenatural, por
sua palavra Deus inicia o homem no que de mais íntimo nele
REVELAÇÃO E VISÃO 555

existe, ou seja, o mistério de sua própria vida e o misterioso


desígnio de comunicar ao homem essa vida. A iniciação
num tal segredo é uma doação de Deus ao homem. Na
revelação da glória, o próprio Deus torna-se presente e doa-
-se completamente, sem nenhuma mediação.
5. Cada grau de revelação implica que também da parte
do homem haverá uma doação cada vez maior de si mes­
mo. À revelação natural corresponde a homenagem da glo­
rificação e da ação de graças. À revelação sobrenatural cor­
responde a fé, opção do homem que imprime à sua vida
uma nova orientação, apoiando-se total e unicamente na pa­
lavra de Deus. Na revelação da glória, à plena doação de
Deus corresponde a plena doação do homem7. Conquistado
pelo conhecimento e pelo amor de Deus, o homem livre e
plenamente, com a força do próprio Deus, corresponde a esse
conhecimento e a esse amor.
6. Princípio de cada uma dessas revelações é o Cristo,
Verbo de Deus. Todas as coisas foram criadas pelo Verbo
e no Verbo, de modo particular a luz da razão que Deus
colocou no homem como em sua imagem. O Cristo é o prin­
cípio da revelação da graça, pois que ele é o Filho que está no
seio do Pai e veio manifestar o Pai (Jo 1,18), é o ca­
minho único que leva ao conhecimento do Pai (Jo 5,36-
40;8,15-20; 12,44-50; 15,20-25; 16,3); e sua missão é glo­
rificar o Pai manifestando o seu nome, isto é, revelando-o
(Jo 17,4.6.26). Fínalmente, como o Cristo foi na terra,
em sua condição de escravo, o revelador do Pai, assim tam­
bém o Cristo glorioso será no céu o único revelador da gló­
ria do Pai. O Cristo, em sua oração sacerdotal pede ao
Pai a plena manifestação de sua glória de Filho para que os
homens, vendo a glória do Filho, vejam ao mesmo tempo a
glória do Pai (Jo 17,1.5.24.26). Nessa manifestação de
sua glória escatológica o Cristo manifestará, revelará aos ho­
mens a glória do Pai. Prolongará assim o Cristo na eter­
nidade a sua função de Palavra encarnada: será o revelador
do Pai para os homens glorifiçados. Assim como sobre a terra
“revelou o nome” do Pai (Jo 17,26.6), assim há de “reve­
lá-lo” na eternidade gloriosa ( Jo 17,26 ). “Dei-lhes a conhecer

7 J. Alfaro, "Persona y grada”, Gregorianum, 41 (1960): 11-13.


556 REFLEXÃO TEOLÓGICA

o teu nome e dar-lho-ei a conhecer ainda” (Jo 17,26). Esse


versículo resume toda a atividade reveladora do Cristo: re­
velador e glorificador do Pai aqui na terra (Jo 17,4.6.8.14.
22.26), continuará sua obra na . eternidade gloriosa (Jo
17,26). Durante sua vida terrestre revelou o Pai sob o
véu dos sinais e na obscuridade da fé; na eternidade, o
Cristo glorificado manifestará e comunicará a plenitude de
sua glória escatológica aos homens que lhe foram dados
pelo Pai e assim manifestará e glorificará o Pai. Jo 1,14
e Jo 17,24 relacionam-se8 como a antecipação temporal, in­
completa e a consumação escatológica e eterna da mesma
realidade, que é a manifestação e a comunicação da glória
do Cristo aos homens. O Cristo glorioso será eternamente
o revelador do Pai, o caminho para o Pai9.
7. Cada um dos graus da revelação prepara ou pelo me­
nos supõe o outro. Antes que o homem aceite a palavra é
preciso que possa reconhecer a existência de Deus, criador
e senhor da ordem moral. Caso contrário, como poderia a
palavra mostrar-se-lhe ao mesmo tempo como gratuita e exi­
gindo aceitação? Normalmente a economia da palavra pre­
cede a economia da visão, pois convém que o homem ouça
falar de Deus e se decida por ele antes de fruir de sua pre­
sença. A graça supõe a natureza e é por sua vez o funda­
mento e o penhor da glória.
8. Cada um dos graus está ordenado ao grau superior: a
criação em vista da palavra e a palavra em vista da visão. A
revelação explicita e amplia a linguagem implícita da cria­
ção; a glória confere o que foi anunciado pela palavra.
9. A revelação da graça é como um meio termo
entre a revelação natural e a revelação da glória. Supõe e
aperfeiçoa a primeira; prepara a última, à qual aspira. Par­
ticipa da imperfeição da primeira, e da perfeição da última.
Aproxima-se, porém, mais da glória, pois que pertence,
como a glória, à ordem da graça incomparavelmente acima
da natureza.
8 Jo 1,14: “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós; e nós fomos
espectadores de sua glória”. Jo 17,24: “Pai, os que me deste, quero
que, onde eu estiver, eles estejam também comigo, para verem a minha
glória, que tu me deste”.
9 J. Alfaro, “Cristo glorioso, Revelador dei Padre”, Grègorianum,
39 (1958): 234-239.
9.
FINALIDADE DA REVELAÇÃO

A via da finalidade é a terceira via sugerida pelo pri­


meiro concilio do Vaticano para entrarmos progressivamen­
te na compreensão dos mistérios cristãos. Agora a inte­
ligibilidade do mistério será procurada em sua causa final.
Podemos considerar a finalidade da revelação seja do
ponto de vista do homem, seja do ponto de vista de Deus.
Numa perspectiva teocêntrica diremos que a revelação é
feita em vista da glória de Deus. Numa perspectiva antro­
pológica diremos que é feita em vista da salvação do ho­
mem. É apenas uma questão de perspectiva, pois que glorifi­
cando a Deus o homem realiza sua salvação, e realizando sua
salvação glorifica a Deus.

I. A REVELAÇÃO É PARA A SALVAÇÃO DO HOMEM

A revelação ordena-se à fé, e a própria fé ordena-se à


salvação. O escopo da revelação, do ponto de vista do ho­
mem, é a salvação do homem. Ou em termos mais positi­
vos: é a visão, a participação na vida divina.
É bom insistir: a revelação é uma obra essencialmente
salvifica. Deus não revela para satisfazer nossa curiosidade
ou para aumentar nossos conhecimentos, mas para tirar
o homem da morte do pecado e fazê-lo viver de uma vida
eterna. Suscitada pelo Deus vivo, a palavra revelada, pregada
e recebida pela fé, gera seres vivos, filhos de Deus, participan­
tes na vida das três pessoas divinas. Privar a revelação de
seu caráter salvifico seria privá-la de uma de suas dimen­
sões fundamentais; seria também dar razão aos que acusam
os católicos de reduzirem a revelação a um conjunto de
558 REFLEXÃO TEOLÓGICA

proposições às quais o espírito humano estivesse obrigado


a aderir.
A idéia de salvação dirige e domina todo o Antigo
Testamento. Israel é o povo que Deus adquiriu, salvando-o
do Egito, do mar Vermelho, do deserto e dos habitantes
de Canaã. A revelação do Nome de Deus prende-se a essa
libertação. A mensagem de Moisés é ao mesmo tempo o
anúncio da libertação e a comunicação do Nome liberta­
dor: ambos os aspectos são inseparáveis. A proclamação do
decálogo começa: “Eu sou Javé, teu Deus, que te tirei
da terra do Egito e da casa da escravidão” (Ex 20,2). O
Êxodo e o Nome divino são uma só realidade (Êx 3,10-15).
Lembrar o Nome de Javé é lembrar o acontecimento deci­
sivo, a graça capital da libertação (Os 12,10; 13,4; Ez 20,
5-6; Lev 22,33). Javé será para sempre o Deus-que-salva.
Que também castiga, mas que, em última análise, o faz
para salvar e fazer viver1. O sacrifício da Páscoa (Êx 12,
1-4) é o memorial da salvação, da passagem de Deus que
salvou e sempre salva.
Em geral a espectativa messiânica tem suas raízes nessa
fé no Deus da Aliança que jamais abandona o povo que
adotou. A expectativa de um Messias pessoal abebera-se
na mesma fonte; com esta diferença, que a promessa de
Natan a Davi coloca sobre Davi e sua descendência a espe­
rança de Israel (2Sam 7,16). Apesar de o povo e seus prínci­
pes serem infiéis às condições da Aliança, mesmo assim Javé
continua fiel e sempre pronto para salvar. À medida que a re­
velação progride, aprofunda-se também a idéia de salvação.
Inicialmente, a salvação é concebida de forma muito ma­
terial: vitória sobre os inimigos, paz e prosperidade. Pouco
a pouco, sob o influxo dos profetas e como conseqüên­
cia das desgraças, Israel chega a compreender que a salva­
ção verdadeira é em primeiro lugar libertação do pecado e
de todas as formas do mal. A salvação anunciada pelos pro­
fetas será uma redenção dos pecados (Is 44,22;45,8;53,8).
A Nova Aliança será estabelecida com os corações purifi­
cados (Jer 24,7; Ez 36,23-28; Zac 13,9), e todos os povos
partilharão a salvação. A salvação será um acontecimento

1 G. Auzou, De la servitude au service (Paris, 1961), 124.


FINALIDADE DA REVELAÇÃO 559
da história, trazida aos homens pelo Ungido de Deus, que
salvará Israel e toda a humanidade mediante Israel.
O Cristo é aquele em quem se produz o acontecimen­
to anunciado. Nele, a bondade salvifica de Deus torna-se
presente à humanidade, estabelece com ela uma aliança e
dá aos homens um coração filial (Gál 4,6). Jesus quer
dizer Javé-Salvador, ou Salvação de Javé. Jesus é o Se­
nhor que vem realizar a salvação: êle é o Salvador (Mt 1,
21; Lc 2,11.30) e não existe outro Nome no qual sejamos
salvos (At 4,12; Rom 10,9).
Segundo os Sinóticos, a pregação de Cristo tem por
finalidade a instauração do Reino de Deus. Esse Reino,
começado agora pela pregação do Evangelho (Mc 1,14-15),
pela libertação do pecado (Mc 2,10-11; 14,24) e do Reino
de Satanás (Mc 5,1-20; Mt 12,28), pela fundação da Igre­
ja (Mt 16,18), terá sua perfeição no céu onde os homens,
participantes do banquete eterno (Lc 22,24-30; 12,37; Mc
10,43-45), partilharão da vida do Pai (Mt 25,34-41). O
Cristo veio chamar os pecadores (Mt 9,13; Lc 5,32) e sal­
var o que estava perdido (Lc 4,18; Mt 9,12). A salvação
é dada aos que acreditam na Boa-nova e são batizados:
“Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda cria­
tura. Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer
será condenado” (Mc 16,15-16). Esse versículo exprime
claramente a finalidade da revelação: o Evangelho em vista
da fé, e a fé em vista da salvação.
Nos Atos, os apóstolos dão testemunho da obra de
salvação realizada pela morte e pela ressurreição do Cristo
(At 5,30; 10,39-40). Sua palavra versa sobre a salvação
trazida por Jesus Cristo (At 4,12; 10,36; 11,14; 13,26.47;
15,11 ; 16,17.30.31 ) ou sobre a vida (At 3,15;5,20; 11,18;
13,46.48). Surgem daí as expressões: “todas as palavras
dessa vida” (At 5,20), “mensagem de salvação” (At 13,26),
“o Evangelho da graça” (At 20,24). O próprio Cristo é
o “Príncipe da vida” (At 3,15), “Salvador” (At 5,31;13,
23). Fora dele não existe salvação (At 4,12;5,31; 10,43).
Anunciar o Cristo é a mesma coisa que anunciar a Boa-nova
da salvação. Salvação que é concedida aos que acolhem a
palavra do Evangelho pela fé e se fazem batizar ( At
2,41;18,8).
560 REFLEXÃO TEOLÓGICA

Em são Paulo, o tema da salvação oferecida aos ho­


mens pela fé no Evangelho é o assunto da Epístola aos ro­
manos. O Evangelho é uma “força de Deus para a salvação
de todo o crente: primeiramente do judeu, depois do gen­
tio” (Rom 1,16). Já no Antigo Testamento, a salvação
prende-se à palavra de Deus (Is 40,8;44,26-28;55,10-11 ).
Assim também em o Novo Testamento são Paulo faz a sal­
vação depender da força divina da palavra que ele tem por
missão anunciar (Rom. 1,16). Pois que é no Evangelho que
se manifesta a justiça de Deus, ou seja, sua vontade misericor­
diosa, fiel às suas promessas de salvação. Afirma são Paulo
que só no Evangelho se manifesta finalmente de forma
clara essa justiça dinâmica, que deve restabelecer a ordem
no mundo convulsionado pelo pecado; justiça cujos efei­
tos o homem recebe pela fé (Rom 1,17) 2.
O cristianismo não é uma metafísica abstrata, mas sim
uma história da salvação, orientada segundo um plano di­
vino. A Epístola aos efésios desenvolve as maravilhas desse
plano. Em seu desígnio de amor, Deus estabeleceu o Cristo
princípio único de salvação para os judeus e para os gentios.
Esse plano, inicialmente oculto em Deus como um segredo,
anunciado depois aos homens, é essencialmente um plano
de salvação: deve fazer-nos filhos do Pai, co-herdeiros do
Cristo (Ef l,5-10;3,6; Col 1,25-28; Rom 16,25-27). Os
efésios, que ouviram a “palavra da Verdade, a Boa-nova
da salvação” e que “acreditaram” (Ef 1,13), receberam o
Espírito que “é o penhor de nossa herança” (Ef 1,14).
Para são Paulo o Cristo é essencialmente o Mediador e o
Salvador que reconcilia os homens com Deus (Rom 4,25;
2Cor 5,18-20; Gál 4,4-6). Assim também a palavra de
Paulo é uma palavra de “reconciliação” (2Cor 5,20).
Pode ser assim enunciado o tema central do Evangelho
e das epístolas de são João: o Filho do Pai encarnou-se para
revelar e comunicar aos homens a vida eterna. Vida eter­
na é como são João chama a salvação. “Com efeito, Deus
amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigenito para
2 A. Feuillet, “Le plan salvifique de Dieu dans l’épître aux Ro­
mains”, Revue biblique, 57 (1950): 338-340; S. Lyonnet, “L’histoire
du salut selon le chapitre VII de l’épître aux Romains”, Biblica, 43 (1962):
117-151.
FINALIDADE DA REVELAÇÃO 561

que todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida
eterna; porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para
condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por
sua obra. Quem nele crê não será condenado, mas aquele
que não crê já está condenado, porque não creu no nome
do Filho unigênito de Deus” (Jo 3,16-18). O essencial
do testemunho de Deus ou da revelação consiste nisto:
“Deus nos deu a vida eterna, e essa vida está em seu Filho”
(IJo 5,11). Pelo Cristo, que é seu Filho, sua Palavra, o
Pai mostra-nos o caminho que leva à vida, pois o Cristo
é a Luz (Jo 9,5;12,35-36) e o Caminho (Jo 14,6)
que leva à Vida (Jo 12,50). Os homens são convi­
dados a ouvir e a guardar a palavra do Filho: pela fé nessa
palavra terão a vida (Jo 12,46-50). O Cristo é o Bom
Pastor: ele dá a vida eterna (Jo 10,27-28) às ovelhas que
ouvem sua palavra.
A doutrina da Escritura é retomada pelo Magistério da
Igreja, às vezes com os mesmos termos. O concilio de La-
trão declara que a Santíssima Trindade “deu ao gênero hu­
mano uma doutrina de salvação”3 e que o Cristo “indi-
cou-nos... o caminho da vida”4. O concilio de Trento,
referindo-se explicitamente a Mc 16,15-16, diz que o Evan­
gelho é “a fonte de toda a verdade salvifica” 5. Diz tam­
bém que pela fé acreditamos “na verdade da revelação e
das promessas divinas, principalmente que Deus justifica
o ímpio por sua graça, mediante a redenção que está no
Cristo Jesus”6. Finalmente, o primeiro concilio do Vati-

3 “Haec Sancta Trinitas..., primo per Moysen et sanctos Prophetas


aliosque famulos* suos, juxta ordinatissimam dispositionem temporum,
doctrinam humano generi tribuit salutarem” (D. 428).
4 “Et tandem unigenitus Dei Filius Jesus Christus... viam vitae ma­
nifestius demonstravit” (D. 429).
5 “Sacrosancta oecumenica et generalis Tridentina Synodus... hoc
sibi perpetuo ante oculos proponens, ut sublatis erroribus puritas ipsa
Evangelii in Ecclesia conservetur, quod... Dominus noster Jesus Christus
proprio ore primum promulgavit, deinde per suos Apostolos, tanquam
fontem omnis et salutaris veritais et morum disciplinae omni creaturae
praedicari jussit” (D. 783).
6 “Disponuntur autem ad ipsam justitiam, dum excitati divina gratia
et adjuti, fidem ex auditu concipientes, libere moventur in Deum, cre­
dentes vera esse quae* divinitus revelata et promissa sunt, atque illud in
primis a Deo justificari impium per gratiam ejus, per redemptionem quae
est in Christo Jesu” (D. 798).
562 REFLEXÃO TEOLÓGICA

cano afirma que a revelação é “absolutamente necessária”


porque Deus, “em sua infinita bondade destinou o homem
a um fim sobrenatural, à participação dos bens divinos”7.
Deus quis adotar o homem como filho, chamado a parti­
lhar da vida da Trindade. Mas, porque o homem é um ser
dotado de inteligência e de vontade, Deus manifestou-lhe
seu desígnio de amor para que o homem, cônscia e livre­
mente, escolha por si mesmo sua condição de filho e chegue
livremente à visão 8.
A intenção salvifica da revelação deduz-se não apenas
das declarações explícitas da Escritura e do Magistério, mas
também a partir das duas considerações seguintes, que
bastará lembrar sucintamente, pois que já foram desenvolvi­
das nos capítulos precedentes: 1?) A intenção salvifica mos­
tra-se no próprio fato da revelação ou da palavra de Deus
para a humanidade. Pela revelação Deus vem ao encontro
de uma criatura, e criatura pecadora. Semelhante iniciativa
pode apenas significar, da parte de Deus, amizade e salva­
ção. Deus que fala é já um Deus-conosco, Deus com seu poder
de salvação. Antes mesmo de ser uma mensagem clara, a re­
velação já é um acontecimento salvifico. 2? ) A própria
mensagem, ligada a esse acontecimento salvifico, manifesta
ainda mais a intenção salvifica da revelação. Com efeito,
os mistérios essenciais que Deus nos revela são os misté­
rios da Trindade, da encarnação, de nossa filiação divina.

7 “Revelatio absolute necessaria dicenda est... quia Deus ex infinita


bonitate sua ordinavit hominem ad finem supernaturalem, ad participanda
scilicet bona divina, quae humanae mentis intelligentiam omnino su­
perant” (D. 1786).
8 A consideração da finalidade da revelação tem como conseqüência
a consideração da sua necessidade. De fato, se Deus decretou a elevação
do homem a um fim sobrenatural, será absolutamente necessária a re­
velação desse fim e dos meios proporcionados para atingi-lo. Criatura
inteligente e livre, o homem deve tender para seu fim conhecendo-o e
querendo-o. Ora, esse fim, sendo sobrenatural, ultrapassa totalmente as
forças e as exigências de qualquer natureza criada. A revelação é o
único meio para que o homem conheça esse fim e os meios que lhe
são proporcionados. Não se dá o mesmo com as verdades religiosas
de ordem natural. O homem pode, por si, conhecê-las pois que para isso
tem capacidade natural (D. 1807, 1782, 1795, 2305). Contudo, a re­
velação dessas verdades é moralmente necessária para que o homem,
“na presente situação do gênero humano”, possa conhecê-las “facilmente,
com firme certeza e sem mescla de erro” (D. 1789).
FINALIDADE DA REVELAÇÃO 563

Revelando-nos a Trindade, Deus inicia-nos no segredo de


sua vida íntima; esta iniciação, que já é por si mesma uma
incrível manifestação de amizade, é feita em vista de uma
participação na vida divina. A revelação da encarnação mos­
tra-nos em Jesus Cristo, Verbo encarnado, a economia de
amor que Deus escolheu para comunicar-nos essa vida divi­
na. Finalmente, a revelação de nossa filiação indica-nos a
natureza dessa comunicação: é uma certa extensão da vida
das pessoas divinas para a criatura humana. Deus reengendra
em nós seu próprio Filho e insufla-nos seu próprio Espírito.
Essa elevação da criatura até o seio e o coração de Deus
é essencialmente um mistério de salvação para a criatura,
pois que a faz participar em a natureza de Deus. Se o homem,
pela fé, adere ao mistério que lhe é revelado, e vive uma
vida de filho, totalmente inspirada pelo Espírito comum
do Pai e do Filho, ele realiza sua salvação e glorifica a Deus.

IL A REVELAÇÃO É PARA A GLÓRIA DE DEUS

O fim último da revelação é a glória de Deus. Tanto


em sua forma ativa quanto em sua forma acabada, a reve­
lação é toda em vista da glória de Deus.
Na sua oração sacerdotal o Cristo diz ao Pai: “Eu
glorifiquei-te na terra, consumando a obra que me deste
a fazer" (Jo 17,4). E acrescenta: "Manifestei o teu Nome
aos homens” (Jo 17,6). O Cristo veio à terra para dar
a conhecer aos homens a Pessoa do Pai (Jo 17,3), a dou­
trina do Pai (Jo 7,16), as palavras do Pai (Jo 17,8). Ele
“deu testemunho” do Pai (Jo 18,37) e “revelou seu Nome”
(Jo 17,26). Para o Cristo, dar testemunho ao Pai, manifes­
tar o seu Nome, revelar o seu Nome, é o mesmo que glori­
ficá-lo. Os apóstolos, por sua vez, tendo ouvido as palavras
e o testemunho de Cristo, acreditaram nele: “transmiti-lhes
as palavras que tu me comunicaste, e eles receberam-nas, e
conheceram verdadeiramente que eu saí de ti e creram que
tu me enviaste” (Jo 17,8). É por isso que o Cristo pode
dizer ao Pai: “glorifiquei-te na terra, consumando a obra
que me deste a fazer” (Jo 17,4). No Cristo e nos após­
tolos a revelação atinge plenamente sua finalidade. O Cris-
564 REFLEXÃO TEOLÓGICA

to, enquanto revelador, glorificou o Pai, pois que manifestou


aos homens o desígnio de graça do Pai. Doutra parte, o
Cristo e o Pai foram glorificados pelos apóstolos, pois que
eles reconheceram o dom da revelação e da salvação em
Jesus Cristo: “eles acreditaram. Neles eu sou glorificado”,
diz o Cristo (Jo 17,10).
A glória de Deus indica, em primeiro lugar, o próprio
Deus, na perfeição de seu Ser e na irradiação de sua per­
feição. Essa perfeição expande-se primeiro no interior da
Trindade, comunicando-se depois às criaturas em graus e
ordens diversas de participação. A seu modo o universo ma­
nifesta o poder, a sabedoria, a majestade do Criador.
O homem, podendo conhecer e amar, reflete a imagem de
Deus, infinitamente perfeito em seu entender e querer. De
modo ainda mais sublime, a revelação da Trindade, da en­
carnação e da filiação divina, manifesta a infinita caridade
de Deus.
A glória de Deus, se a consideramos do ponto de vista
da criatura espiritual, significa o reconhecimento da exce­
lência de Deus e de seus dons. Os homens são convidados
a glorificar a Deus, que se manifesta através das criaturas,
e a prestar-lhe a homenagem de seu agradecimento (Sab
13,1-9; Rom 1,18-21). Ainda mais: são convidados a glori­
ficar a Deus na sua obra de graça, isto é, no desígnio de sal­
vação que estabeleceu desde toda a eternidade. A Epístola
aos efésios, em estrofes muito densas e perpassadas de gra­
tidão e admiração, enumera todos os dons da salvação:
predestinação, filiação, redenção, revelação, eleição de Is­
rael, vocação dos gentios. São Paulo repete insistentemente
que todos esses dons, inclusive o da revelação, ordenam-se
ao “louvor da glória da sua graça” (Ef 1,6.12.14).
Também sob esse aspecto o Cristo é o perfeito glori-
ficador do Pai. No seu hino de júbilo (Mt 11,25-27; Lc
10,17-22), o Cristo dá graças ao Pai por ser o seu Filho
unigênito, único a participar da intimidade do Pai, e ao mes­
mo tempo, por ser aquele em quem o Pai manifesta aos
pequenos as insondáveis riquezas dessa intimidade. A ação
de graças do Cristo brota da contemplação da generosidade
do Pai que revela e comunica aos pequenos as riquezas de
sua vida. Essa ação de graças consiste em reconhecer a ge-
FINALIDADE DA REVELAÇÃO 565

nerosidade do Pai e revelar o Pai aos pequenos, transfor­


mando-os em filhos do Pai, capazes também eles de reco­
nhecer o Pai e render-lhe ações de graças como filhos:
“Abba, Pai” (Gál 4,6). Com esse reconhecimento e amor
os homens participam da perfeição de Deus que é Amor
e Verdade: eles glorificam a Deus.
Maria glorifica o Senhor, pois acolhe na obediência
da fé a palavra do anjo (Lc 1,27) e reconhece que o Senhor
fez grandes coisas por ela (Lc 1,49). Em são Paulo, a ação
de graças é um reflexo habitual e espontâneo da alma: “con­
tinuamente dou graças a Deus”, diz ele (ICor 1,4; Ef 1,
16; Col 1,3; ITes 1,2; 2Tes 1,3). Paulo dá graças a Deus
porque em Jesus Cristo fomos escolhidos para sermos sal­
vos (2Tes 2,13; ICor 4-5). Dá graças também porque os
fiéis de suas Igrejas, os tessalonicenses e os efésios, acredi­
taram quando ouviram a palavra da verdade, a Boa-nova
da salvação (ITes 2,13; Ef 1,13). O cristão glorifica a
Deus quando adere, pela fé, ao plano de salvação e leva
uma vida condizente com essa fé. O homem glorifica a Deus
pela fé, comunhão de espírito com o Pensamento de Deus,
e pela caridade, que insere no seu coração o próprio Amor
de Deus. É vivendo como filho, segundo o desígnio de Deus
revelado pelo Filho, que o homem atinge a finalidade última
da revelação: fazer que o homem participe da perfeição da
vida trinitária. Assim, ao mesmo tempo, glorifica a Deus
e realiza sua salvação; pois, vivendo plenamente a vida de
filho, realiza sua salvação que é também a glória de Deus.
10.
UNIDADE E COMPLEXIDADE
DA REVELAÇÃO

Como todas as grandes realidades cristãs, a revelação


mostra-se como extremamente complexa aos olhos do teólogo
que procura aprofundá-la. Essa complexidade manifesta-se nos
paradoxos da revelação, na sua multiplicidade de estados,
de aspectos e de propriedades, na variedade dos meios de
comunicação e de modos de expressão. E, contudo, essa com­
plexidade mesma leva à harmonia. A revelação, como a
Trindade que é sua fonte, é um mistério de unidade e de
complexidade. Como conclusão, gostaríamos de salientar am­
bas essas características da revelação.

I. OS ASPECTOS DA REVELAÇÃO

Na revelação há uma multiplicidade de aspectos. Há sem­


pre o perigo de a teologia exagerar alguns e subestimar ou­
tros, ou estabelecer entre eles antagonismo irredutível. As­
sim acontece que se faça oposição entre uma revelação-dou-
trina e uma revelação-acontecimento, uma revelação-encon-
tro e uma revelação-verdade. Em vez de tornar irredutíveis
essas oposições, é preciso reconhecer a diversidade de
aspectos da revelação, conforme as consideramos em Deus,
em seu termo temporal ou em sua maneira de atingir o
homem. Podemos assim distinguir, parece, quatro aspectos
essenciais da revelação: ela é ação de Deus, acontecimento
da história, conhecimento, encontro. Todos esses aspectos
devem convergir para uma apresentação sintética e har­
moniosa.
1. A revelação é primeiramente mistério e açao di­
vina: ação transcendente pela qual Deus, desde toda a eter-
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 567
nidade, decreta salvar o homem, intervir na sua história e
manifestar-se-lhe num desígnio de glória. Ao dizermos que o
motivo da fé é o próprio Deus que se revela, queremos di­
zer que a fé se apóia sobre o ato transcendental da palavra di­
vina: palavra onisciente, infalível, veracissima. Em Deus
a revelação é uma ação livre, porque Deus revela por amor,
sem nenhuma necessidade que o obrigue. É ação imanente·.
é uma decisão interior ao próprio Deus; apenas o seu
termo é exterior. Ê ação eterna, como todas as ações divinas.
É idêntica à substância de Deus, pois que o desígnio de reve­
lação de Deus é o próprio Deus que se revela. Na revelação
Deus se compromete totalmente, é ação do Deus de verda­
de e de amor. Por isso a revelação é ao mesmo tempo
noética e dinâmica.
2. A revelação é acontecimento da história e história·.
o termo da ação divina, eterna, imanente e livre é um efeito
temporal. A revelação realiza-se sob a forma de intervenções
na história, que vão balizando o tempo. A ação reveladora
de Deus manifesta-se em acontecimentos cujo conteúdo atual
de revelação deve ser explicitado pelos enviados de Deus.
A ação divina está no princípio dos acontecimentos (Êxodo,
acontecimento da cruz etc.) e no princípio da interpreta­
ção desses acontecimentos. O acontecimento total compreen­
de o fato histórico e sua interpretação, o acontecimento e
a interpretação profética que, graças à luz recebida, mani­
festa a inteligibilidade do acontecimento. Esses aconteci­
mentos não são isolados entre si; têm um sentido e mani­
festam um desígnio. Cada etapa liga-se à precedente, reto­
ma-a, torna-a mais precisa, leva-a para a frente. A reve­
lação é uma economia. À medida que a história progride, o
tempo da salvação torna-se mais rico. Sobe lentamente
em direção ao ponto de plenitude e de concentração que é
Jesus Cristo. De todos os acontecimentos da história da
salvação, o acontecimento da Encarnação é o mais pleno de
sentido: acontecimento que tem como sujeito o próprio Deus
e cuja significação é por ele mesmo expresso. A revelação,
como acontecimento e como história, culmina em Jesus
Cristo. Nele completa-se a revelação.
3. A revelação é conhecimento·, testemunho, mensa­
gem, palavra, doutrina. Em seu desígnio de amor, Deus
568 REFLEXÃO TEOLÓGICA

quer associar o homem à sua vida. Tendo, porém, feito


o homem inteligente e livre, à sua imagem, dá-lhe a conhe­
cer seu desígnio de salvação para que ele livremente o aceite.
Deus, sendo Espírito da verdade, dirige-se à inteligência do
homem. A revelação é um sistema de conhecimento orien­
tado para um sistema de vida. É um conhecimento do verda­
deiro Deus e de seu desígnio de salvação. No profeta, a ação
de Deus é uma iluminação do espírito, uma luz projetada so­
bre os acontecimentos da história, para que ele possa perceber
o alcance divino desses acontecimentos. O Crista exprime-
-se de forma inteligível: fala, prega, ensina, testemunha.
Também os apóstolos testemunham, pregam, ensinam.
O objeto de seu testemunho e de sua pregação denomina-se
o Evangelho, a Boa-nova, a palavra da verdade, a mensagem
da salvação. Em sua forma passiva a revelação apresenta-se
como o conteúdo de uma palavra, de um testemunho: como
o depoimento de testemunhas, como mensagem doutrinai.
Mensagem, porém, que nunca deve ser separada da pessoa
do mensageiro, que nunca se pode tornar realidade inde­
pendente, a ser aproveitada independentemente da Pessoa
que a proferiu. Finalmente, mensagem que sempre se deve
referir ao ato do próprio Deus que testemunha sobre si
mesmo.
4. A revelação é encontro. Pela revelação Deus di­
rige-se ao homem, interpela-o, abre-se-lhe, numa confidência
amorosa, falando sobre sua vida pessoal e sobre seu desígnio
de salvação. Essa comunicação de Deus ao homem só atinge
sua finalidade se terminar na fé, que é o encontro com o
Deus vivo e pessoal em sua palavra. Esse primeiro en­
contro, que preludia o face a face da visão, é o resultado
ao mesmo tempo da liberdade humana e da graça divina.
Todos esses aspectos da revelação devem ser levados
em conta e jamais esquecidos, caso contrário a realidade
sairá empobrecida e falseada. Se unilateralmente apresen­
tarmos a revelação como doutrina, haverá o perigo de des-
personalizarmos a revelação e rompermos seus nexos
com a história. Mas, também uma teoria por demais ex­
clusiva de revelação-acontecimento levaria rapidamente a
uma interpretação meramente historicizante da revelação,
sem que se desse importância ao papel das testemunhas (o
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 569

Cristo, os profetas, os apóstolos) e ao conteúdo da revela­


ção. Finalmente, uma revelação considerada apenas como
ação divina não teria ligação com a consciência humana:
seria mais um contato do que uma comunicação interpes­
soal do Deus da verdade.

II. OS PARADOXOS DA REVELAÇAO

A própria multiplicidade dos aspectos da revelação fa­


zem dela uma realidade cujos traços muitas vezes são pa­
radoxais: é, ao mesmo tempo, transcendência e imanência,
unidade e multiplicidade, exposição da verdade e ato salvi­
fico, testemunho doutrinai e manifestação pessoal, histó­
ria progressiva e verdade definitiva, acontecimento passado
e presença sempre atual, realização e expectativa \
1. A revelação é transcendência e imanência. É pa­
lavra eterna do Deus vivo e incriado, do Deus três vezes
santo e totalmente outro, que habita em luz inacessível, in­
finitamente acima de sua criatura humana. Ao mesmo tem­
po, porém, é acontecimento da história, diálogo humano
com os homens, utiliza o psiquismo dos profetas e expri-
me-se com os sinais da linguagem. Vem de Deus, mas di­
rige-se ao homem; é recebida pelo homem, proclamada pelo
homem. Dois exageros ameaçam continuamente a revela­
ção: exagero de uma teologia que dilui a transcendência da
relação no mundo dos homens, que degrada e naturaliza a
palavra de Deus, como o fizeram o protestantismo liberal e
o modernismo. Ou então o exagero de uma teologia que,
para não pôr em perigo a soberania de Deus, o mantém
numa transcendência inacessível, como K. Barth, e suprime
qualquer comunicação real entre Deus e o homem, entre o
ato de Deus e suas manifestações na história. Nesse caso,
a palavra não se consegue exprimir nem o homem a pode

1 A essas características da revelação poderiamos acrescentar muitas


outras que, diversas vezes, já salientamos no decorrer dçste estudo: a
revelação é gratuita, interpessoal, social, v hierárquica, salvifica, eclesial,
progressiva, histórica, definitiva, escatológica. Para não repetir, queremos
neste capítulo estabelecer um paralelo entre algumas características cujo
contraste espanta e às vezes, traz dificuldades.
570 REFLEXÃO TEOLÓGICA

perceber: Deus e o homem estão reduzidos a monólogos


paralelos. A teologia católica mantém ao mesmo tempo,
sem as corromper, a transcendência e a imanência da reve­
lação. São possíveis um encontro e um diálogo entre Deus
e o homem, pois a analogia entre o mundo divino e o mun­
do criado, a receptividade ou a capacidade do homem, auto­
rizam o diálogo.
2. A revelação é unidade e multiplicidade. A revela­
ção, em Deus, é um mistério de unidade. É uma só ação
do Pai, do Filho e do Espírito; é uma só a economia da
salvação por eles decretada. São três que testemunham,
mas os três são um só. Mas, por outro lado, a reve­
lação destinando-se ao homem, deve adaptar-se às condi­
ções do homem. Portanto, o homem recebe de forma di­
versa e múltipla uma verdade sumamente una e simples
em Deus. Disso decorre a multiplicidade dos meios de comu­
nicação: acontecimentos, pessoas, visões, imagens, símbolos,
intuições, sonhos, êxtase, arrebatamentos. E também a mul­
tiplicidade de modos de expressão ou de gêneros literários:
história, poesia, autobiografia, reflexão sapiencial. E, final­
mente, a multiplicidade de proposições e de verdades par­
ticulares que servem para exprimir a unidade do misté­
rio divino.
3. A revelação é enunciaçao da verdade e ato salvi­
fico do Deus vivo. É luz e poder. O dabar divino, sob
esse aspecto, é mais amplo que a realidade que nós ordi­
nariamente designamos como palavra, de ressonância mais
noética do que dinâmica. Sem dúvida, a palavra divina é
comunicação do pensamento e do desígnio de Deus ao ho­
mem. Essa palavra, porém, é dotada de poder. No profeta
ou no apóstolo ela age como fogo devorador: o enviado de
Deus não pode deixar de testemunhar. Ela não apenas
anuncia a salvação: ela realiza a salvação. O Cristo procla­
ma a Boa-nova da salvaçãb, mas no mesmo tempo muda a si­
tuação da humanidade, institui os meios que a salvam (Igre­
ja e sacramentos). A palavra de eleição, de perdão, de vida
nova, realiza o que diz. A palavra de Deus convida à obe­
diência da fé pela mensagem explícita do Cristo, dos após­
tolos ou da Igreja. Essa proclamação exterior, porém, é
acompanhada pela ação interior da graça que convida à
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 571

adesão da fé e dá à pessoa a força de se entregar ao Deus


vivo, nele e por ele mesmo. Para Deus, não há distân­
cia entre a intenção e a realização. O que ele diz acontece, pelo
simples fato de ele o ter dito. A palavra de Deus realiza
o que ela significa. É ativa e criadora. Transforma tanto
a existência individual como o curso da história. Destina-
-se a dar a vida, a salvação e a graça. Tem por finalidade
reunir os homens para constituir o reino de Deus, a Igreja,
o povo santo, a Jerusalém celeste. É a palavra do Deus
vivo. É suscitada pelo Espírito de amor, sustentada por
ele, penetrada pelo seu sopro e, portanto, dotada de eficá­
cia própria.
4. A revelação é testemunho doutrinai e manifesta­
ção pessoal. Só pelos sinais temos acesso ao mistério de
Deus: pelo conceito, pela imagem, pela palavra, pela escri­
tura. Em sua plena realização, o testemunho divino apre­
senta-se como um conjunto estruturado de noções e de pro­
posições sobre Deus e sobre seu desígnio salvifico. Ir contra
esse fato seria negar o fato do homem e o fato da encar­
nação. Sob um aspecto, a revelação é testemunho sobre
Deus: não existe revelação de Deus sem revelação sobre
Deus, sem doutrina, portanto. Sob outro aspecto, porém,
a revelação é manifestação da própria realidade divina. Si­
nais e proposições voltam-se para as realidades significadas.
A revelação é revelação do Deus vivo, dos mistérios de
sua vida íntima, de seu desígnio de salvação. A mensa­
gem coloca-nos em diálogo com o próprio Deus. Correlativa-
mente o termo da fé não são os enunciados, mas a própria
Pessoa: é resposta do homem ao Deus que fala.
5. A revelação é história progressiva e verdade defi­
nitiva. A revelação não é nem mítica nem intemporal, é
parte da história. Chega-nos em forma de acontecimentos
que se inserem na trama da história e constituem a histó­
ria da salvação. É uma história homogênea que se apresenta
como uma economia, isto é, como o resultado de uma dis­
posição da sabedoria divina. O centro dessa economia é o
Cristo preparado, anunciado e revelado pouco a pouco. Por
outro lado, essa revelação, que é comunicada mediante a
história e, sob esse aspecto, está incorporada à história e liga­
da às suas condições, essa revelação uma vez terminada, apre-
572 REFLEXÃO TEOLÓGICA

senta-se como a verdade absoluta sobre o homem e sobre


Deus. No plano das relações entre Deus e o homem (não
no plano dos valores meramente terrestres e humanos) a re­
velação declara-se como a verdade definitiva, imutável, vá­
lida para todos os homens e para todos os séculos; verda­
de que a Igreja tem por missão propor, aprofundar, interpre­
tar, mas não modificar ou suprimir.
6. A revelação é acontecimento passado e presença
atual. Enquanto série de acontecimentos em que é propos­
ta e como depoimento das testemunhas escolhidas, a reve­
lação encerrou-se. Mas, esse “uma vez” dos acontecimentos
da salvação não exclui o “agora”, o “hoje” da ação divina
que solicita nossa fé e nosso amor. O apelo de Deus con­
tinua ressoando, tão vivo, tão presente como no tempo de
Cristo e dos apóstolos. Permanece em sua verdade e em
sua eficácia. A palavra está consignada na Escritura, é pre­
gada na Igreja para atingir os homens de todas as gerações.
Deus, pela voz de sua Esposa, nunca deixa de nos interpe­
lar. A palavra foi escrita para durar, não para sedimen­
tar e morrer. A cada instante do tempo ela irrompe com
o frescor da primeira manhã, sempre contemporânea, sem­
pre atual. É por isso que a liturgia sempre repete:
hoje nasceu o Cristo, hoje o Cristo morreu por nossos pe­
cados, hoje o Cristo ressuscitou. Pela Igreja Deus interpela
cada homem em particular para introduzi-lo e associá-lo ao
mistério da salvação. Hoje a palavra ressoa para cada um
de nós; hoje se realiza para cada um de nós o que ela
anuncia.
7. A revelação é realização e expectativa. Com Je­
sus Cristo a revelação atingiu sua plenitude: o acontecimento
decisivo já está no centro da história, o Evangelho cumpre
as Escrituras. A revelação já não é algo que se deva es­
perar, mas algo que se deve proclamar como uma Boa-nova,
algo que deve ser acolhido pela fé. A palavra da Igreja é
o anúncio definitivo e eficaz da salvação. E, contudo, a Igreja
anuncia sempre que o Senhor vem, que há de vir. Isso
porque o último ato da revelação ainda não aconteceu:
a epifania do Cristo, em sua glória de Filho de Deus e de
Salvador, e a manifestação dos filhos do Pai, conquistados
pelo Filho do Espírito de amor. Espera a Igreja o retorno
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 573

do Esposo e a manifestação gloriosa das realidades que já


existem ocultas sob os véus da.fé.

III. A REVELAÇÃO COMO AÇÃO TRINITARIA

A complexidade da revelação não é cabalmente com­


preendida a não ser relacionada com a teologia das missões
trinitárias e com a doutrina da apropriação.
A revelação é obra de toda a Trindade: Pai, Filho e
Espírito. A fecundidade espiritual da Trindade expande-se
na linha do pensamento e do amor: o Verbo é proferido e
o Espírito é espirado. O proferir ad intra continua num pro­
ferir ad extra: é a revelação. Esta locução é uma locução
de amor, como a locução ad intra. A palavra do Cristo tem
sua origem na comunhão de vida do Pai e do Filho, e por
isso é palavra de Deus. O Espírito continua a missão do
Cristo, não porém, falando: ilumina a palavra do Cristo
em comunhão de vida com o Filho, que por sua vez está
em comunhão com o Pai. A palavra do Espírito é a do Filho,
e a palavra do Filho é a do Pai. A única palavra de Deus per­
tence ao Pai, ao Filho e ao Espírito. Tem sua origem na
unidade de vida da Trindade. Não é a verdade de uma
pessoa, mas das três pessoas. Está enraizada na comunidade
de vida das três pessoas e manifesta essa comunidade.
Ainda que o Pai, o Filho e o Espírito sejam um só
e o mesmo princípio da revelação, nem por isso podemos
concluir que a Trindade como tal não influa de modo algum
na revelação. Cada uma das pessoas age segundo os efeitos
que misteriosamente corresponde àquilo que, respectiva­
mente, são o Pai, o Filho e o Espírito no seio da Trindade.
Como sempre, é o Pai que tem a iniciativa, pois o Fi­
lho tudo recebe do Pai, natureza e missão. É gerado pelo
Pai, da substância do Pai, verdadeiro Deus de Deus ver­
dadeiro, consubstanciai ao Pai. É o Pai que envia o Filho
como revelador de seu desígnio de amor ( IJo 4,9-10; Jo
3,16); é o Pai que testemunha em favor do Filho e de
sua missão de revelação, pelas obras que ele dá ao Filho
realizar (Jo 10,25;5,36:37;15,24;9,41 ); é também o Pai
que atrai os homens em direção ao Filho pela atração in­
terior que produz nos seus corações (Jo 6,44).
•574 REFLEXÃO TEOLÓGICA

Sendo que o Filho já é, no seio da Trindade, a Palavra


eterna do Pai, a Palavra incriada na qual o Pai àdequada-
mente se exprime, está ontologicamente qualificado para
ser entre os homens a revelação suprema do Pai e de seu
desígnio salvifico. Sendo o Filho do Pai, aquele que sem­
pre faz a vontade do Pai e em quem o Pai se compraz,
ele é ontologicamente indicado para iniciar os homens na
sua vida de filhos. O Cristo é, pois, o perfeito Revelador.
Ora, o desígnio do Pai é estender à humanidade a própria
vida da Trindade. Pelo Cristo, o Pai quer associar-nos às
relações de filiação e espiração da vida trinitária. Quer
reengendrar seu próprio Filho em cada homem, insuflar-lhe o
seu Espírito e uni-lo a si na mais íntima comunhão, para
que todos sejam um, como o Pai e o Filho são um, em
um mesmo Espírito de amor. O Filho vem, ele que teste­
munha sobre o Pai e seu desígnio dê amor: “Deus amou
tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito para que
todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida
eterna” (Jo 3,16). Se acolhemos o testemunho que o Pai
nos apresenta mediante o Filho, o Pai faz de nós filhos
seus: “A quantos o [Verbo] receberam deu-lhes o poder
de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12). Mediante a
geração do Filho em nós, recebemos um espírito de filhos,
um espírito de amor: “Deus enviou aos vossos corações
o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai” (Gál 4,6).
Enquanto o Filho “faz conhecer”, o Espírito “inspi­
ra” 2. É o sopro e o calor do pensamento divino: dá po­
der e eficácia à palavra. O Cristo estabeleceu a realidade
objetiva da graça e da verdade, da salvação e da revelação.
O Espírito no-la aplica, no-la interioriza. Torna a palavra
solúvel na alma pela unção que lhe infunde, pois, sem o
Espírito que transforma a inteligência e o coração, como po­
dería o homem abrir-se a algo que lhe é estranho? O Cris­
to propõe a palavra de Deus: o Espírito repete-a, insinua-a,
fá-la penetrar e permanecer. Torna efetivo o dom da re­
velação.

2 Observa Sto. Tomás: “Spiritus Sanctus est Spiritus veritatis... his


quibus mittitur inspirat veritatem, sicut et Filius a Patre missus notificat
Patrem” (In lam ad Cor., c. 2, lect. 2).
UNIDADE E COMPLEXIDADE DA REVELAÇÃO 575

O Espírito interioriza. E também atualiza a revelação.


Nada inova, mas tudo leva à plena realização. Não traz
nova revelação, mas possibilita penetrar a primeira reve­
lação em toda a sua profundidade. Ele é que deu aos após­
tolos a memória viva e a compreensão das palavras do Cristo
(Jo 14,26; 16,12-13). Pela assistência que ele presta à Igre­
ja, atualiza para cada geração a revelação do passado. Ex­
plicita constantemente o que é do Cristo. Ele, Espírito do
Cristo, cuja missão é servir à palavra do Cristo, que garante
a continuidade e a fidelidade dessa penetração sempre maior,
tornando patente aquilo que a Igreja ainda não tinha obser­
vado, indicando como as novas realidades se prendem às
antigas. Às questões de cada época o Espírito responde
com suas sugestões; é o presente que nos faz.
É assim que o Pai, pela ação conjunta do Verbo e do
Espírito, como se fossem dois braços de amor, se revela à
humanidade atraindo-a a si. O movimento de amor pelo
qual o Pai, pelo Cristo, se manifesta aos homens, e o amor
que os homens lhe retribuem pela fé e pela caridade, mos­
tram-se como que imersos no fluxo e refluxo de amor que
une o Pai ao Filho no Espírito. A revelação é uma ação
ao mesmo tempo da Trindade e da humanidade, ação que
estabelece um ininterrupto diálogo entre o Pai e seus filhos,
conquistados pelo sangue de Cristo. Desenvolve-se, ao mes­
mo tempo, no plano dos acontecimentos históricos e no
plano da eternidade. A revelação começa pela palavra e
culminará na visão, no encontro face a face.
BIBLIOGRAFIA

1. Livros

Livros que tratam especificamente da revelação ou que lhe consagram


pelo menos o equivalente de um ou mais capítulos. As obras, bastante
numerosas que tratam da revelação de modo ocasional, já foram indica­
das ao longo dos capítulos, em notas no rodapé. A esta lista devem-se
acrescentar todos os tratados ou manuais De Revelatione utilizados nos
cursos de teologia.

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ÍNDICE
Pag.
5 Introdução

PRIMEIRA PARTE

NOÇÃO BÍBLICA DE REVELAÇÃO


13 Capítulo primeiro: A revelação no Antigo Testamento
15 1. As etapas da história da revelação
25 2. Valor noético e dinâmico da palavra de Deus
27 3. Revelação cósmica e revelação histórica
29 4. A revelação profética
34 5. Objeto da revelação
36 6. Resposta do homem à revelação
37 7. Traços característicos da revelação
40 8. Conclusão

41 Capítulo segundo: A revelação em o Novo Testamento


42 1. A tradição sinótica
42 1. Os vocábulos
43 . 2. Cristo como pregador
45 3. Cristo como doutor
47 4. Cristo como Filho do Pai
48 5. A fé, resposta do homem
49 6. Conclusão
49 2. Atos dos Apóstolos
50 1. Os apóstolos testemunham
53 2. Os apóstolos proclamam a Boa-nova
56 3. Objeto do testemunho e da pregação
57 4. A fé, resposta do homem
58 5. Conclusão
59 3. São Paulo
59 1. Os termos
60 .2. O mistério paulino
62 3. As etapas na revelação do mistério
65 4. A resposta do homem
66 5. Aprofundamento do mistério
67 6. Revelação histórica e revelação escatológica
68 7. Finalidade do mistério
69 8. Conclusão
69 4. Epístola aos hebreus
70 1. Revelação da Antiga e da Nova Aliança
73 2. Grandeza e exigências da Palavra de Deus
74 3. Conclusão
75 5. São João
75 1. Jesus Cristo, Palavra de Deus e Filho de Deus
76 2. A Gesta do Logos
77 3. A revelação no vocabulário joanino
79 4. O Cristo, Testemunha do Pai
80 5. O testemunho do Pai
82 6. O Cristo, Deus que revela e Deus revelado
83 7. Características da revelação
84 8. Conclusão

SEGUNDA PARTE

Ο TEMA DA REVELAÇÃO NOS SANTOS PADRES


91 Capítulo primeiro: Primeiras Testemunhas
91 1. Os Padres apostólicos
94 2. Os Apologetas
94 1. São Justino
98 2. Atenâgoras
99 3. São Teófilo de Antioquia
100 4. Epístola a Diogneto

103 Capítulo segundo: Santo Irineu


114 Capítulo terceiro: Testemunhas da Igreja Grega
114 1. Os Alexandrinos
114 1. Clemente de Alexandria
122 2. Orígenes
132 3. Santo Atanásio
135 4. S. Cirilo de Alexandria
137 2. Os Capadócios
138 1. S. Basilio
139 2. S. Gregório de Nissa
141 3. S. João Crisóstomo

145 Capítulo quarto: Testemunhas da Igreja Latina


145 1. Tertuliano
150 2. São Cipriano
151 3. Santo Agostinho
158 Conclusões

TERCEIRA PARTE

A NOÇÃO DE REVELAÇÃO
NA TRADIÇÃO TEOLÓGICA

169 Capítulo primeiro: A Escolâstica do século XIII


169 1. São Boaventura
169 1. Revelação e economia da revelação
172 2. A revelação profética
174 3. Fé e revelação
176 4. Conclusão
176 2. Santo Tomás de Aquino
177 1. A revelação como operação salvifica
178 2. A revelação como acontecimento da história
181 3. Revelação profética como carisma de conhecimento
188 4. A revelação como palavra
190 5. A revelação pelo Cristo e pelos apóstolos
192 6. Revelação, Escritura, Igreja
194 7. Da revelação à fé
196 8. Revelação como grau no conhecimento de Deus
197 9. Conclusões
199 3. Duns Scot
200 1. Necessidade e economia da revelação
201 2. A Escritura e o costume
202 3. Profetas e apóstolos

205 Capítulo segundo: Escolâsticos pos-tridentinos


205 1. Melchior Cano e Domingos Banes
208 2. Francisco Suarez
209 1. Revelação no sentido estrito
211 2. Iluminação ou revelação do objeto e da potência
213 3. João de Lugo
213 1. A revelação como palavra
215 2. Revelação e hábito ou auxílio da fé
216 4. Os carmelitas de Salamanca

218 Capítulo terceiro: A renovação escolástica do século XIX


218 1. João Mõhler
221 2. H. J. Domingos Denzinger
222 3. J. B. Franzelin
226 4. J. Henrique Newman
229 5. M. J. Scheeben

234 Capítulo quarto: Teologia da revelação no século XX


234 1. A doutrina comum no começo do século XX
241 2. Fatores da renovação e orientações atuais
242 1. Ponto de partida: insatisfações e queixas
244 2. Teologia protestante
246 3. Renovação bíblica e patrística
249 4. Reflexão sobre a teologia
256 5. Teologia querigmática
261 6. O problema teológico da pregação
265 7. Desenvolvimento do dogma
270 8. Teologia da revelação e da fé
277 Conclusões

QUARTA PARTE

NOÇÃO DE REVELAÇÃO E MAGISTÉRIO


ECLESIÁSTICO
289 Capítulo primeiro: O concilio de Trento e o Protestantismo
296 Capítulo segundo: O primeiro concilio do Vaticano e o
Racionalismo
296 1. A ação da Igreja no seu contexto
301 2. A constituição dogmática sobre a fé católica
I 314 Capítulo terceiro: A crise modernista
314 1. Ascendência liberal do modernismo
I
322 2. Os prodromes da crise
332 3. Documentos antimodernistas

346 Capítulo quarto: O período contemporâneo


I
346 1. No pontificado de Pio XI
j 354 2. No pontificado de Pio XII
357 3. No pontificado de Paulo VI

I 366 Capítulo quinto: O segundo concilio do Vaticano e a


I constituição “Dei Verbum"
I
j 368 1. Texto e comentário
370 2. Capítulo I: A revelação
! 387 3. Capítulo II: A · transmissão da revelação divina
399 4. Observações gerais
I 404 Conclusões
!
t QUINTA PARTE
I
I REFLEXÃO TEOLÓGICA
419 Capítulo primeiro: A revelação como palavra, testemunho
e encontro
420 1. A revelação como palavra
420 1. Palavra humana
423 2. Palavra divina
426 2. A revelação como testemunho
428 1. Testemunho humano
430 2. Testemunho divino
431 3. A revelação como encontro

436 Capítulo segundo: Revelação e criação


436 1. Do Deus da história ao Deus da criação
440 2. A criação como manifestação de Deus
447 3. Revelação natural e revelação sobrenatural

451 Capítulo terceiro: História e revelação


452 1. A história, lugar da revelação
455 2. A história da revelação
458 3. A revelação pela história
463 4. As implicações de uma revelação ha história e pela
história
469 5. Conclusões

471 Capítulo quarto: Encarnação e revelação


472 1. Inteligibilidade de uma economia de encarnação para
a revelação
474 2. Plenitude e realismo da encarnação
477 3. Revelação mediante a encarnação
479 4. Proposição humana e verdade divina
483 5. Situação do Cristo
485 6. Situação dos apóstolos
488 7 . Situação da Igreja

493 Capítulo quinto: Revelação e luz da fé


494 1. As bases escriturísticas
498 2. Natureza e função da atração interior
501 3. As duas dimensões da palavra de Deus
504 4. Revelação e sacramento

506 Capítulo sexto: Milagre e revelação


507 1. Polivalência do milagre
507 1. Sinal da agape de Deus
508 2. Sinal da chegada do reino redentor
511 3. Sinal da missão divina
513 4. Sinal da glória do Cristo
514 5. Revelação do mistério trinitário
516 6. Símbolo da economia sacramental
518 7. Sinal das transformações do mundo escatológico
522 2. Revelação e funções do milagre

526 Capítulo sétimo: Igreja e revelação


526 1. A palavra convoca e gera a Igreja
528 2. A Igreja “presencializa” a palavra
531 3. A Igreja serva, guarda e intérprete da palavra
538 4. A Igreja sinal da revelação

547 Capítulo oitavo: Revelação e visão


547 1. A fé, começo da visão
550 2. A revelação definitiva: visão e encontro
554 3. Revelação da natureza, da graça e da glória

557 Capítulo nono: Finalidade da revelação


557 1. A revelação é para a salvação do homem
563 2. A revelação é para a glória de Deus

566 Capítulo décimo: Unidade e complexidade da revelação


566 1. Os aspectos da revelação
569 2. Os paradoxos da revelação
573 3. A revelação como ação trinitária

577 Bibliografia
índice dos nomes próprios
índice de matérias

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