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Teologia Moral Fundamental

Sumário

Teologia Moral Fundamental ......................................................................................................... 1


Apresentação do curso ............................................................................................................... 9
Objetivos do curso ................................................................................................................... 10

Tema I: Noção de Teologia Moral ............................................................................................... 11


Introdução ................................................................................................................................ 11
1. Objeto e método da Teologia moral .............................................................................. 11
2. Unidade de Teologia dogmática e Teologia moral ........................................................ 12
3. Fontes da Teologia moral .............................................................................................. 13
3.1. As Sagradas Escrituras .............................................................................................. 13
3.2. A Tradição ................................................................................................................. 13
3.3. O Magistério da Igreja ............................................................................................... 14
4. Relações da Teologia moral cristã com as ciências humanas........................................ 17
4.1. O caráter sobrenatural da moral cristã ....................................................................... 17
4.2. Teologia moral e ética natural ................................................................................... 17
4.3. Teologia moral e ciências positivas ........................................................................... 18
Leitura complementar .............................................................................................................. 19
Exercícios de auto comprovação .............................................................................................. 19

Tema 2: História da Teologia Moral ............................................................................................ 21


Introdução ................................................................................................................................ 21
1. Teologia Moral na Sagrada Escritura ............................................................................ 21
2. A moral na doutrina dos Padres da Igreja ..................................................................... 22
3. Do Século V ao XII ....................................................................................................... 23
4. A moral na alta Idade Média: Santo Tomás de Aquino ................................................ 23
5. Séculos XIV ao XVI...................................................................................................... 24
5.1. A revolução da moral em Ockham ............................................................................ 24
5.2. A Teologia moral como independente ...................................................................... 25
6. Séculos XVII - XVIII .................................................................................................... 26
7. Séculos XIX ao início do século XX ............................................................................. 27
7.1. A renovação da Teologia moral ................................................................................ 27
7.2. Novas correntes por ocasião da renovação da Teologia moral: a “nova moral” e a “ética
de situação” 28

1
7.3. Outras tentativas de renovação e fundamentação da Teologia moral........................ 28
8. O Concílio Vaticano II .................................................................................................. 29
9. A Teologia moral depois do Concílio Vaticano: algumas tendências e questões em debate
29
9.1. A moral autônoma ..................................................................................................... 29
9.2. A opção fundamental................................................................................................. 30
9.3. O teleologismo .......................................................................................................... 31
10. Últimas intervenções do Magistério da Igreja sobre temas de Moral ........................... 32
Leitura complementar: ............................................................................................................. 33
Exercícios de auto comprovação:............................................................................................. 33

Tema 3: Antropologia Cristã e Moralidade ................................................................................. 34


Introdução ................................................................................................................................ 34
Parte I: A Antropologia revelada que sustenta a moral cristã .................................................. 34
1. O projeto originário de Deus: a criação-elevação ..................................................... 35
2. O pecado de nossos primeiros país: o homem caído ................................................. 35
3. A Redenção do homem e da história da salvação ..................................................... 36
Parte II: A criação, fundamento da moralidade........................................................................ 36
1. A bondade criada.............................................................................................................. 37
2. A bondade moral, comum a toda criatura espiritual ........................................................ 37
3. A bondade moral própria do homem................................................................................ 39
3.1. A união com Deus através do caminhar terreno ................................................................. 39
3.2. A verdade da criação e as noções morais fundamentais ..................................................... 41
Parte III: Elevação à ordem sobrenatural e moralidade ........................................................... 42
1. Participação na vida íntima de Deus: graça criada e presença de inabitação ............ 42
2. A bondade sobrenatural ............................................................................................. 42
3. Características da dimensão sobrenatural da bondade de nosso agir ........................ 43
4. A moralidade no homem caído e redimido ............................................................... 44
4.1. As feridas do pecado original e sua pena ...................................................................... 44
4.2. A conduta moral do homem novo em Cristo................................................................. 46
Exercícios de auto comprovação .............................................................................................. 48

Tema 4: O fim último................................................................................................................... 49


Introdução ................................................................................................................................ 49
1. Deus, fim último do homem e de toda a criação ........................................................... 50
1.1. O fim último do universo .......................................................................................... 50
1.2. Fim, bem e fim último ............................................................................................... 50
1.3. Glória de Deus e bem das criaturas ........................................................................... 51
2. O modo próprio em que o homem tende ao fim último ................................................ 51

2
2.1. Algumas consequências do modo de glorificar a Deus, próprio da pessoa humana . 52
2.2. A glorificação de Deus e os bens particulares que integram a perfeição do homem 53
2.3. Alguns erros atuais sobre o fim último ...................................................................... 53
2.4. Aplicações práticas .................................................................................................... 54
3. O destino sobrenatural do homem ................................................................................. 54
3.1. A revelação do fim sobrenatural................................................................................ 54
3.2. Características do fim sobrenatural ........................................................................... 55
4. Necessidade da graça e universalidade da redenção ..................................................... 56
4.1. Universalidade do dom da graça ............................................................................... 56
4.2. Cristo, caminho universal de Salvação ...................................................................... 57
4.3. A perfeita glorificação de Deus em Cristo ................................................................ 58
5. Glória de Deus e felicidade do homem ......................................................................... 59
6. O fim último e o agir humano ....................................................................................... 59
6.1. Influência do último fim em todo ato humano .......................................................... 60
6.2. Os dois fins últimos possíveis para o homem: o amor de Deus e o amor desordenado
pela própria excelência .................................................................................................................. 60
6.3. A estrutura temporal do amor ordenado .................................................................... 61
6.4. Fim último fim e retidão de intenção ........................................................................ 62
Exercícios de auto comprovação .............................................................................................. 63

Tema 5: Liberdade, graça e agir humano ..................................................................................... 64


Introdução ................................................................................................................................ 64
Parte I: Natureza e divisão dos atos humanos .......................................................................... 64
1. Noção do ato humano ................................................................................................ 64
1.1. Caráter imanente do ato livre ............................................................................................. 65
1.2. Estrutura do ato livre ..................................................................................................... 65
2. Natureza e defectibilidade da liberdade criada .......................................................... 66
2.1. A finalidade da liberdade............................................................................................... 66
2.2. A liberdade como autodomínio ..................................................................................... 67
2.3. A possibilidade de realizar o mal, sinal, mas não essência da liberdade humana ......... 67
2.4. Escravidão da liberdade pelo pecado ............................................................................ 68
3. Liberdade e responsabilidade pessoal ....................................................................... 69
Parte II: Os princípios intrínsecos do ato humano ................................................................... 70
1. O conhecimento no ato humano ................................................................................ 70
1.1. Tipos de advertência ........................................................................................................... 71
1.2. Regras sobre a advertência ............................................................................................ 72
2. O consentimento da vontade ..................................................................................... 73
2.1. Divisões do consentimento ............................................................................................ 73
2.2. Regras sobre o consentimento ....................................................................................... 74

3
3. A unidade do ato humano .......................................................................................... 75
4. O papel da afetividade sensível ................................................................................. 76
4.1. Noção de paixão ............................................................................................................ 76
4.2. Moralidade das paixões ................................................................................................. 76
4.3. Influxo das paixões nos atos humanos .......................................................................... 77
5. As paixões ................................................................................................................. 77
5.1. Paixões do concupiscível............................................................................................... 78
5.2. Paixões do irascível ....................................................................................................... 80
6. A intervenção da graça no agir livre.......................................................................... 81
6.1. A graça recria a pessoa e a sua liberdade ...................................................................... 82
Parte III: Impedimentos da voluntariedade .............................................................................. 83
1. A violência ................................................................................................................ 83
1.1 Noção............................................................................................................................. 83
1.2 Regras sobre seu influxo ............................................................................................... 84
2. A ignorância .............................................................................................................. 84
2.1 Noção............................................................................................................................. 84
2.2 Algumas divisões .......................................................................................................... 85
2.3 Regras sobre seu influxo ............................................................................................... 86
3. As paixões desordenadas ........................................................................................... 86
4. O medo ...................................................................................................................... 87
4.1 Noção e divisões ............................................................................................................ 87
4.2 Regras sobre seu influxo ............................................................................................... 87
5. As enfermidades mentais........................................................................................... 88
5.1 Noção............................................................................................................................. 88
5.2 Regras morais ................................................................................................................ 88
Parte IV: Elementos que determinam a moralidade dos atos humanos ................................... 89
1. O objeto moral ou “finis operis” ............................................................................... 89
2. O fim do ato moral ou “finis operantis” .................................................................... 91
3. Regras morais sobre o objeto e o fim ........................................................................ 92
4. As circunstâncias ....................................................................................................... 93
5. Alcance ou extensão da moralidade .......................................................................... 94
5.1 Sentido dos atos indiferentes ......................................................................................... 94
5.2 Moralidade do ato exterior e dos seus efeitos................................................................ 95
5.3 O princípio de duplo efeito ou voluntario indireto ........................................................ 96
5.4 Dimensão social do agir moral ...................................................................................... 97
Parte V: O mérito sobrenatural dos atos humanos ................................................................... 99
1. Noção e classes de mérito.......................................................................................... 99
1.1. Noção ................................................................................................................................. 99
1.2. Classes .............................................................................................................................. 100

4
1.3. Condições requeridas para o mérito sobrenatural............................................................. 101
Exercícios de auto comprovação: Tema 5.............................................................................. 102

Tema 6: A lei moral ................................................................................................................... 103


Introdução .............................................................................................................................. 103
PARTE I: Noção e divisões da lei.......................................................................................... 104
1. Noção....................................................................................................................... 104
2. Divisões da lei ......................................................................................................... 104
PARTE II: A Lei Eterna......................................................................................................... 105
1. Noção....................................................................................................................... 105
2. Propriedades da Lei Eterna ...................................................................................... 105
3. A Lei Eterna, fundamento de toda lei ...................................................................... 106
Parte III: A Lei Natural .......................................................................................................... 106
1. Noção....................................................................................................................... 107
2. Propriedades da lei natural ...................................................................................... 108
3. O conhecimento e o conteúdo da lei natural............................................................ 111
3.1. Conhecimento dos primeiros princípios e dos preceitos morais concretos ................. 111
3.2. O conteúdo da lei natural e o Decálogo ....................................................................... 114
3.3. A ignorância da lei natural e seus limites .................................................................... 115
3.4. Os cristãos e a lei natural ............................................................................................. 116
PARTE IV: A Nova Lei ......................................................................................................... 117
1. Natureza da Nova Lei .............................................................................................. 117
1.1. O elemento interno da Nova Lei ................................................................................. 117
1.2. O elemento externo ..................................................................................................... 118
2. Conteúdo da Nova Lei ............................................................................................. 118
3. Propriedades da Nova Lei ....................................................................................... 119
3.1. A Nova Lei, lei do amor .............................................................................................. 120
3.2. A Nova Lei, Lei de perfeita liberdade ......................................................................... 120
3.3. A Nova Lei, Lei definitiva........................................................................................... 120
4. A formulação do princípio personalista em termos especificamente cristãos ......... 121
5. Uma síntese da moral e o ethos do cristianismo:..................................................... 121
6. A antiga e a nova lei ................................................................................................ 121
Parte V: As Leis humanas ...................................................................................................... 121
1. Necessidade e noção da lei humana ........................................................................ 121
1.1. A lei humana, participação mediata da Lei eterna....................................................... 122
1.2. Âmbito das leis humanas ............................................................................................. 123
2. Obrigatoriedade moral da lei humana ..................................................................... 124
3. A aplicação equitativa e a dispensa das leis humanas ............................................. 125
3.1. A equidade................................................................................................................... 125

5
3.2. A dispensa da lei.......................................................................................................... 125
4. Finalidade moral da lei civil .................................................................................... 126
4.1. As Leis “mere poenales” ............................................................................................. 126
4.2. A tolerância nas leis civis ............................................................................................ 126
4.3. As obrigações morais do legislador ............................................................................. 127
Exercícios de auto comprovação ............................................................................................ 128

Tema VII: A Consciência Moral ................................................................................................ 129


Introdução .............................................................................................................................. 129
Parte I: Noção, propriedades, e divisões da consciência ........................................................ 130
1. Noção....................................................................................................................... 130
2. Relações entre consciência, sindéreses, ciência moral e prudência ......................... 131
3. Características da consciência cristã ....................................................................... 131
4. Propriedades da consciência .................................................................................... 132
5. Divisões da consciência........................................................................................... 135
5.1. Antecedente e consequente.......................................................................................... 135
5.2. Consciência verdadeira e errônea ................................................................................ 135
5.3. Consciência certa, provável e duvidosa....................................................................... 136
Parte II: Dever de formar a consciência e de agir com consciência reta ................................ 136
1. Dever de formar a própria consciência .................................................................... 136
1.1. Meios para formar a consciência ................................................................................. 137
1.2. A consciência e os ensinamentos do Magistério da Igreja .......................................... 138
1.3. A relação entre a consciência e a lei ............................................................................ 138
Parte III: A obrigação de seguir o juízo da consciência reta .................................................. 140
1. A consciência verdadeira obriga sempre ................................................................. 140
2. A consciência inculpável ou invencivelmente errônea............................................ 140
3. A consciência culpável ou vencivelmente errônea não pode ser seguida ............... 142
Parte IV: A dúvidas de consciência e o modo de resolvê-las ................................................. 142
1. Regras morais sobre a consciência duvidosa ........................................................... 142
2. Meios para resolver as dúvidas de consciência ....................................................... 144
2.1. Os meios diretos .......................................................................................................... 145
2.2. Os princípios indiretos ou reflexos .............................................................................. 145
Parte V: Deformações da consciência: consciência laxa, perplexa e escrupulosa ................. 146
1. Influxo da vontade nos juízos de consciência ......................................................... 146
1.1. As causas e o processo de deformação da consciência ............................................... 147
1.2. A consciência laxa ....................................................................................................... 147
1.3. Consciência escrupulosa.............................................................................................. 148
1.4. A consciência perplexa ................................................................................................ 151
Exercícios de auto comprovação ............................................................................................ 151

6
Tema 8: As Virtudes Humanas e Sobrenaturais......................................................................... 152
Introdução .............................................................................................................................. 152
Parte I: As Virtudes em Geral ................................................................................................ 153
1. Noção....................................................................................................................... 153
1.1 A virtude implica crescimento no conhecimento e no amor ............................................. 153
1.2 A virtude é um hábito, mas não um automatismo ............................................................. 154
2. O sujeito da virtude ................................................................................................. 154
3. Multiplicidade e divisão das virtudes ...................................................................... 155
3.1. A especificação das virtudes por seu objeto: sua multiplicidade ................................ 156
3.2. Caráter analógico da virtude ........................................................................................ 156
Parte II: A Classificação ou Esquema Geral das Virtudes ..................................................... 157
1. A tradição judeu-cristã das virtudes ........................................................................ 157
2. O Esquema das virtudes na Suma Teológica de Santo Tomás ................................ 157
3. Alguns pontos da reflexão atual sobre as virtudes .................................................. 158
Parte III: As Virtudes Humanas ou Adquiridas e suas Características .................................. 159
1. As Virtudes Intelectuais .......................................................................................... 159
1.1. Os hábitos dos primeiros princípios especulativos e práticos ..................................... 160
1.2. Sabedoria ..................................................................................................................... 161
1.3. Ciência ......................................................................................................................... 161
1.4. A Prudência ................................................................................................................. 162
1.5. Artes ............................................................................................................................ 162
2. As virtudes morais ................................................................................................... 162
2.1. A humildade ................................................................................................................ 163
2.2. O amor de amizade ...................................................................................................... 163
2.3. A justiça e a solidariedade ........................................................................................... 164
2.4. A fortaleza ................................................................................................................... 165
2.5. A Temperança ............................................................................................................. 165
2.6. A Laboriosidade .......................................................................................................... 166
2.7. A penitência................................................................................................................. 167
3. A conexão das virtudes humanas entre si e com as sobrenaturais ........................... 168
3.1. Conexão entre as virtudes adquiridas .......................................................................... 168
3.2. Relação entre as virtudes naturais ou adquiridas e as gratuitas ou infusas .................. 169
3.3. O justo meio da virtude ............................................................................................... 170
4. O progresso no desenvolvimento das virtudes humanas ......................................... 170
5. O empenho pessoal e a educação na aquisição das virtudes ................................... 171
Parte IV: As virtudes sobrenaturais (gratuitas ou infusas) e os dons do Espírito Santo ........ 171
1. O dinamismo operativo dos filhos de Deus ............................................................. 171
2. As virtudes teologais ............................................................................................... 172
2.1. A fé .............................................................................................................................. 173

7
2.2. A esperança ................................................................................................................. 174
2.3. 2.3. A caridade............................................................................................................ 175
3. As Virtudes Morais Infusas ..................................................................................... 175
4. Os Dons do Espírito Santo ...................................................................................... 176
4.1. O número dos dons ...................................................................................................... 177
4.2. Dons de entendimento e ciência .................................................................................. 177
4.3. Dom de sabedoria ........................................................................................................ 177
4.4. O dom do temor ........................................................................................................... 177
4.5. Dons da piedade, conselho e fortaleza ........................................................................ 178
4.6. O instinctus Spiritus Sancti ......................................................................................... 178
5. Algumas características das virtudes infusas e dons ............................................... 178
6. As virtudes cristãs e a santificação do trabalho e os deveres sociais da pessoa ...... 180
Exercícios de auto comprovação: Tema 8.............................................................................. 181

8
Apresentação do curso

A Teologia moral é uma ciência teológica que visa aprofundar com as luzes da razão
e da fé os ensinamentos morais de Cristo e da sua Igreja com o fim de apresenta-los de modo
sistemático e organizado.
Cristo nos ensinou com sua vida e doutrina a meta que nos espera e o caminho que
devemos seguir, e nos deixou sua Igreja, assistida pelo Espírito Santo, para que nos transmitisse
fielmente sua doutrina e nos comunicasse através do Sacramentos a vida divina.
O cristão é filho de Deus em Cristo. Pelo Batismo começou a fazer parte da Igreja, foi
incorporado a Cristo, recebeu a graça santificante – participação da mesma vida divina – e se
converteu em templo da Santíssima Trindade. O cristão está chamado, portanto, a alcançar
através de suas obras, em correspondência com a graça de Deus, a plenitude da vida divina de
que foi feito participante. O filho de Deus por adoção está chamado a parecer-se cada dia mais
ao seu modelo, Cristo, Filho de Deus por natureza, seguindo docilmente as inspirações de seu
modelador, o Espírito Santo, para glória de Deus Pai.
Para estudar a moralidade de determinadas condutas concretas, é preciso situar o
homem redimido neste contexto e conhecer assim os fundamentos da moralidade: o fim último
do homem; sua vocação a viver unido a Cristo, lutando por identificar-se com Ele e
amorosamente em direção a felicidade; a percepção da vontade divina através de sua
consciência etc.
A Teologia Moral Fundamental estuda os temas que fixam os critérios básicos para
todas as demais concretizações da Teologia Moral.

9
Objetivos do curso

O objetivo central desta matéria é conhecer os fundamentos da vida moral do


cristão, filho de Deus em Cristo, que pelo Batismo começou a fazer parte da Igreja, foi
incorporado a Cristo, recebeu a graça santificante – participação da mesma vida divina –
e se converteu em templo da Santíssima Trindade.
O cristão é filho de Deus em Cristo. Pelo Batismo começou a fazer parte da
Igreja, foi incorporado a Cristo, recebeu a graça santificante – participação da mesma vida
divina – e se converteu em templo da Santíssima Trindade. O cristão está chamado,
portanto, a alcançar através de suas obras em correspondência à graça de Deus, a
plenitude da vida divina de que foi feito participante. O filho de Deus por adoção está
chamado a parecer-se cada dia mais ao seu modelo, Cristo, Filho de Deus por natureza,
seguindo docilmente as inspirações de seu modelador, o Espírito Santo, para glória de
Deus Pai.
Cristo nos ensinou com sua vida e doutrina a meta que nos espera e o caminho
que devemos seguir, e nos deixou sua Igreja, assistida pelo Espírito Santo, para que nos
transmitisse fielmente sua doutrina e nos comunicasse através do Sacramentos a vida
divina.
A Teologia Moral é uma ciência teológica que visa aprofundar com as luzes da
razão e da fé os ensinamentos morais de Cristo e da sua Igreja com o fim de apresenta-
los de modo sistemático e organizado.

Por isso, antes de estudar a moralidade de determinadas condutas concretas


(objetivo da Moral da Pessoa e da Moral Social), é preciso conhecer as bases, os
fundamentos da moralidade: o fim último do homem; sua vocação a viver unido a Cristo,
lutando por identificar-se com Ele; a lei moral, através da qual nosso Pai Deus nos quer
conduzir livre e amorosamente em direção a felicidade; a percepção da vontade divina
através da consciência etc. Estas bases são estudadas pela Teologia Moral Fundamental.

10
Tema I: Noção de Teologia Moral

1. Objeto e método da Teologia moral


2. Unidade da Teologia dogmática e da Teologia moral
3. Fontes da Teologia moral
4. Relações da Teologia moral cristã com as ciências humanas

Introdução

O estudo da Teologia moral deve começar, como o de qualquer ciência, por uma
delimitação de seu objeto e suas características enquanto saber. A Teologia moral é o
saber sobre o homem e sua conduta, ancorado na Revelação divina. É a suprema ciência
sobre o atuar humano, e a única capaz de guiar ao homem a sua perfeição e sua felicidade
temporal e eterna. Mas é uma ciência peculiar.
Este primeiro tema se ordena a conhecer o objeto, as fontes e as características
próprias da Teologia moral, e sua unidade com a Teologia dogmática. É preciso distinguir
bem esta ciência teológica da Ética natural, e saber que relações tem com o Magistério da
Igreja.

1. Objeto e método da Teologia moral

A Teologia é o estudo de Deus e de suas obras sob a luz sobrenatural da fé – que


é uma participação da ciência divina – e contempla a Deus e a tudo o que foi criado por
Ele: Deus é considerado em si mesmo; as criaturas, por sua vez, enquanto estão
relacionadas com seu Criador como a seu princípio e fim.

A Teologia moral é a parte da ciência teológica que estuda quem é e como deve
agir o homem para encaminhar-se para o seu fim sobrenatural, ou seja, à bem-aventurança
eterna e comportar-se já neste mundo como filho de Deus.

O objeto da Teologia moral é o estudo da conduta, ou seja, dos princípios


operativos e dos atos que conduzem o homem ao seu fim último sobrenatural, que é a
união com Deus Uno e Trino e implica sua progressiva divinização já neste mundo.

A luz com que a Teologia moral estuda a conduta humana é a razão iluminada
pela fé.

11
«A verdade oferecida na revelação de Deus ultrapassa certamente as capacidades
de conhecimento do homem, mas não se opõe à razão humana. Ela a penetra, eleva e
chama à responsabilidade de cada um (cf. 1 Ped. 3,15)» para aprofundar nela1.
A Teologia moral realiza sua tarefa desde a base firme das verdades possuídas
graças à revelação divina, que permite entender o homem na perspectiva do inteiro plano
de Deus.
As verdades da fé conferem uma particular claridade ao estudo das condutas
humanas, porque proporcionam uma certeza absoluta em relação ao seu conteúdo próprio
– que é todo o revelado – do que formam parte verdades de ordem natural, sobre as que
adquirimos assim uma segurança nova, que não dariam somente as luzes da razão.

2. Unidade de Teologia dogmática e Teologia moral

A moral cristã forma parte da Doutrina da Salvação e não pode ser separada da
inteira Revelação divina: o mais importante que a moral ensina ao homem é a plenitude
da verdade sobre si mesmo e seu destino, fundando-se no modo em que é amado por
Deus e ajudado pela sua graça. Daqui parte toda a luz que proporciona sobre sua conduta.
A divisão da Teologia em partes não significa separação, cisão em ciências
diversas. O dogma e a moral são indissociáveis como o são a fé e a vida: formam parte
de uma só ciência teológica, que é ao mesmo tempo especulativa e prática.
A divisão da Teologia em dogmática e moral é uma distinção
fundamentalmente didática, que não pode prescindir – sem deformar-se – da sua radical
unidade.
Mais precisamente, a distribuição programática do estudo das verdades da fé e dos
princípios e normas de viver cristão se dá sobretudo a partir do século XVII, e
obedeceu a motivos pastorais: a conveniência de atender à formação dos confessores
mediante uma cuidada e necessária casuística. Entretanto, com o tempo a divisão se
transformou às vezes em uma separação exagerada. Então surgiram vários
inconvenientes, sobretudo o empobrecimento dos fundamentos e da dinâmica própria
da moral cristã.
Por esta razão o Concílio Vaticano II pediu um «especial cuidado em aperfeiçoar
a Teologia moral, cuja exposição científica, nutrida com maior intensidade da doutrina
da Sagrada Escritura, deverá mostrar a excelência da vocação dos fiéis em Cristo e
sua obrigação de produzir frutos na caridade para a vida do mundo»2. Conservando
as conquistas dos manuais anteriores, deve ser reforçada a sua fundamentação na
necessária unidade com a dogmática.

Além disso, enquanto guia à santidade, a Teologia moral é inseparável da


Teologia espiritual.
A Teologia trata de matérias únicas e variadas, sem deixar de ser uma única
ciência. De fato, seu objeto é uno, mas não é simples, e engloba desde as relações

1 CONGREGACIÓN PARA LA DOCTRINA DE LA FE, Instr. Donum veritatis sobre la


vocación eclesial del teólogo, n. 1.
2 CONCILIO VATICANO II, Decr. Optatam totius, n. 16.
12
intratrinitárias até aos vários aspectos da conduta humana, como a justiça nos contratos
civis.
Como as verdades da fé formam uma unidade inseparável, todas iluminam
conjuntamente cada aspecto da vida cristã:
 Algumas verdades da fé se referem mais diretamente à conduta humana e resulta
mais simples ver sua conexão com a ordem moral: por exemplo, a justificação ou o
pecado original;
 Porém, todas as verdades de fé devem ser consideradas ao estudar a vida moral,
senão corre-se o risco de perder a perspectiva da Revelação e falsificar o método próprio
da ciência teológica: se não se sabe bem o que é a vida da graça e o seu dinamismo
próprio, é fácil perder o específico da moral cristã.

3. Fontes da Teologia moral

As fontes da Teologia moral são as mesmas de toda a Teologia: a Escritura, a Tradição e o


Magistério, em sua indissociável unidade.

3.1.As Sagradas Escrituras

Nas Sagradas Escrituras se encontram formuladas expressamente as principais


verdades de moral cristã, segundo o estilo próprio dos livros sagrados; ou seja, não ao
modo de um tratado sistemático, mas em forma de ensinos mais ou menos amplos, frases
concisas e incisivas, exortações, exemplos, comparações etc.
O centro e ápice da Revelação – e da moral cristã – é a vida e ensinamentos de
nosso Senhor Jesus Cristo. Um dos bens da encarnação foi precisamente oferecer-nos
nele o modelo de vida plena e perfeita.
As Sagrada Escrituras não se limitam a dar-nos um critério genérico sobre a
imitação de Cristo. Contém normas morais concretas e específicas de imutável validade
para todos os tempos. Sobretudo contém a inteira verdade sobre o homem e sua conduta,
sobre seu destino eterno e as virtudes que deve praticar para alcançá-lo.

3.2.A Tradição

O conteúdo moral das Sagradas Escrituras exige ser interpretado sempre na sua
unidade com a Tradição e sob a guia do Magistério. Isso proporciona um quadro muito
claro do que são diretrizes permanentes e o que constitui indicações ligadas a certo
momento histórico.
O recurso exclusivo à Escritura é um defeito metodológico particularmente
inclinado a falsificar a doutrina de Cristo em matéria moral. Por isso, é de importância
central ater-se ao princípio de «observar o contexto e a unidade de toda a Escritura para

13
apreender com exatidão o sentido dos textos sagrados, tendo em conta também a Tradição
vida de toda a Igreja e a analogia da fé»3.

3.3.O Magistério da Igreja

Com base na Escritura e na Tradição, e sob a assistência do Espírito Santo, o


Magistério dita sobre as verdades morais contidas na revelação cristã, sendo a regra
próxima e última para sua interpretação: «a norma próxima e obrigatória da doutrina
da fé compete ao Magistério Hierárquico»4.
A sua autoridade compreende a conduta implicada na Revelação salvífica: o
dissenso teológico contemporâneo pretende que o Magistério seja só regra segura do
crente em matérias dogmáticas e para os princípios «abstratos ou formais»
(«transcendentais») da moral, mas não para as normas de condutas concretas, que não
existiriam. Neste terreno sua função não seria propriamente doutrinal, mas apenas
pastoral.
Entretanto, a Igreja afirmou sempre sua competência não somente em questões
de fé, mas também em matéria de moral (fides et mores), e o exerceu ao longo dos séculos
para dar – juntamente a critérios prudentes orientadores – ensinos que devem ser
considerados como definitivos e exigem a obediência da fé, tanto sobre os princípios
morais como sobre condutas concretas:

«É, entretanto, indiscutível – como tantas vezes declaram nossos predecessores –


que Jesus Cristo, ao comunicar a Pedro e aos Apóstolos sua autoridade divina e ao
enviá-los a ensinar a todas as gentes os seus mandamentos (cf. Mt. 28, 18-19), os
constituía em custódios e em intérpretes autênticos de toda a lei moral, ou seja não só
da lei evangélica mas também da natural, também essa expressão da vontade de Deus,
cujo cumprimento fiel é igualmente necessário para se salvar (cf. Mt. 7,21)»5. Em
razão desta assistência divina, constituem para o crente um guia seguro.

Para o correto uso do Magistério em matéria moral, deve-se ter em conta que as
suas afirmações exigem a obediência mesma da fé quando se trata de ensinamentos
infalíveis. E são infalíveis:
 As afirmações definidas como verdades de fé;
 O inteiro conteúdo do Magistério ordinário e universal, porque também
se anuncia infalivelmente a doutrina de Cristo quando os bispos, «ainda dispersos no
mundo, mas mantendo o vínculo de comunhão entre si e com o sucessor de Pedro,
expõem como definitiva uma doutrina em matéria de fé e de costumes»6. Além disso, o
«Magistério ordinário universal pode ser considerado como a expressão habitual da

3 CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Dei Verbum, n. 12.


4 JUAN PABLO II, Exhort. apost. Familiaris consortio n. 73 §5.
5 PABLO VI, Enc. Humanae vitae, 25-VII-1968, n.4.
6 Cf. CONCILIO VATICANO II, Cons. dogm. Lumen gentium, n. 25, §§ 2-4.

14
infalibilidade da Igreja, ou seja, o modo habitual em que exerce seu “carisma veritatis
certum”» (Dei Verbum, n. 8)7.
O restante Magistério autêntico – ainda que não com a prerrogativa da
infalibilidade – exige um «religiosum animi obsequium»8. Esta «religiosa submissão da
vontade e da inteligência» implica, especialmente em relação ao Magistério do Romano
Pontífice, a obrigação em consciência de obedecer.
Por último, os decretos disciplinares, que emanam não da potestade de
Magistério, mas da de jurisdição, não vinculam a fé, mas a conduta externa9, sem que a
obediência que lhes é devida queira dizer que sejam sempre os mais perfeitos e adequados
desde todos os pontos de vista. De fato, a Hierarquia da Igreja reforma-os e atualiza de
acordo com as necessidades pastorais, circunstâncias históricas, etc. Por exemplo, a este
campo pertencem as normas sobre certos aspectos da administração dos sacramentos, a
liturgia etc.

Sem fidelidade ao Magistério não pode haver verdadeira Teologia, nem ela pode
ser uma válida guia para a vida cristã. A Teologia moral não pode ser edificada nem progredir
«sem uma convicta adesão ao Magistério, que é a única guia autêntica do Povo de Deus»10.

Santo Tomás de Aquino dizia que a Teologia «deve ensinar como é, ou seja,
como podemos entender aquilo que afirma a fé; de outro modo, se se limitasse a repetir o
que dizem as autoridades, certificaria que tal é a verdade, mas não daria ciência nem
inteligência delas, e a mente dos que escutam sairia vazia»11. Isso significa que «as
certezas que nos oferece o Magistério não podem nos eximir da reflexão pessoal,
teológica e filosófica, com o fim de mostrar aos homens de nosso tempo o caráter
razoável, a inteligibilidade e a profunda humanidade das exigências éticas»12 do
cristianismo.
Ademais, a Teologia moral, como o resto da Teologia, exige um reto uso da
filosofia. Não pode haver Teologia – isto é, um intellectus fidei – sem uma metafísica ou
filosofia do ser, que esteja implícita no dogma da criação: a fé não destrói, mas supõe e
aperfeiçoa a razão.
A Teologia moral tem na sua base um correto uso da razão, que é pressuposto
do intellectus fidei sobre as verdades morais; assim, por exemplo, considerando a
liberdade como autodomínio (como ensina uma correta metafísica) entendemos melhor
que a liberdade dos filhos de Deus consista em usar desse autodomínio para deixar-se
conduzir pelo Espírito Santo (cf. Rom. 8, 14). Por outro lado, a fé comprova e assegura
as verdades que a razão pode alcançar sobre a conduta humana.

7 JUAN PABLO II, Discurso, 15-X-1988, n.3.


8 CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 25.
9 Cf. A. DEL PORTILLO, Fieles y laicos en la Iglesia, EUNSA, Pamplona 1991, pp. 120-121.
10 JUAN PABLO II, Exhort. ap. Familiaris consortio, n. 32 §21 4.
11 Quodlibet, IV, c. 9, a. 3 resp.
12 A. DEL PORTILLO, Magisterio della Chiesa e Teologia Morale, en “Persona, Verità e Morale”,
Roma 1988, p. 23.
15
16
4. Relações da Teologia moral cristã com as ciências humanas

4.1.O caráter sobrenatural da moral cristã

A vida moral cristã parte da divinização do homem pela graça, que o converte
em uma «nova criatura» (Gal. 6, 5): é recriado para uma vida nova e capacitado para uma
conduta moral mais alta.
Entretanto, esta recriação não rechaça, mas supõe a dignidade natural do
homem, feito à imagem do seu Criador: para viver como filho de Deus deve levar uma
conduta digna no homem, ainda que o primeiro esteja muito acima do segundo.
A participação da vida divina pela graça, que nos converte em filhos de Deus,
implica que a vida moral cristã possua princípios e exigências próprias nascidas da
graça e cognoscíveis somente pela Revelação.
A moral cristã supõe um estilo de vida muito superior ao modelo ético humano
mais elevado: convida-nos a imitar a Cristo, até nos identificar com Ele, e assim
ter um trato de intimidade com as três Pessoas Divinas. É um novo modelo de vida,
que exige uma profunda conversão, fruto da graça que Deus outorga e de nossa
correspondência a ela; implica não só a repulsa do pecado, mas uma autêntica
santificação e renovação interior.
Quem não possui a fé a graça, que são os princípios da vida sobrenatural, ou ao
menos não os possui em plenitude, não pode desenvolver perfeitamente essa vida: de
aí vem, ao mesmo tempo, a especificidade da moral cristã – que a diferencia
radicalmente de qualquer ética meramente humana – e sua tendência de
universalidade.

A conduta moral cristã, por outro lado, assume todas as exigências naturais da
dignidade humana, cujo respeito é necessário a todo homem para sua própria perfeição
temporal e para se salvar. São o que tradicionalmente são chamados princípios e
exigências da lei moral natural que correspondem aos preceitos básicos do Decálogo. A
moral cristã ensina, ainda que não se limite a isto, a plenitude da ordem da criação, a cuja
realização se alude falando da lei natural.

4.2.Teologia moral e ética natural

A ética filosófica opera exclusivamente com os conhecimentos acessíveis à razão


natural, e a certeza das suas afirmações descansa sobre a validez das suas premissas e o rigor
dos seus argumentos.

Por sua vez, a Teologia opera desde a fé, com uma certeza própria, e pode dar
plena razão das exigências da divinização do homem e da situação da sua natureza caída
e redimida, esclarecendo assim muitas verdades naturais. Ainda que a Teologia
compreenda e não possa prescindir das verdades éticas que a razão alcança, ela nos dá
sobre elas um conhecimento mais perfeito e seguro do que a ética.

17
Para que a ética preste um serviço à moral, basta uma condição: que seja
verdadeira. A verdade ética é única, como única é a natureza humana criada. Entretanto,
é possível – e de fato ocorre – que a inteligência humana elabore diversos sistemas éticos.
Quanto mais se aproximem da verdade – e sempre que não a contradigam – maior é o
serviço prestam à Teologia.
De modo semelhante, também a Teologia assiste e contribui com o
desenvolvimento da ética em seu próprio âmbito. Depois da queda original, tornou-se
difícil conhecer com certeza a verdade moral natural, e impossível cumpri-la na sua
integridade sem a ajuda da graça divina. Precisamente por esta dificuldade, Deus quis
incluir na sua Revelação – confiando-a a sua Igreja – não apenas os mistérios da sua
Sabedoria, mas as principais verdades naturais necessárias para a salvação de todos os
homens13.
O Magistério da Igreja é também guardião infalível da moral natural. «A
Igreja Católica – declarou o Concílio Vaticano II – é mestra da verdade e sua missão é
expor e ensinar autenticamente a Verdade, que é Cristo, e ao mesmo tempo declarar e
confirmar com a sua autoridade os princípios da ordem moral que fluem da mesma
natureza humana»14.
À propósito da relação entre ética e Teologia moral, interessa advertir outro
ponto: inclusive no que a sua análise da conduta humana tem de comum, seguem em parte
caminhos diversos:
 A ética filosófica parte da consideração da criatura para elevar-se ao seu fim em
Deus: integra a experiência humana em uma concepção da pessoa, caracterizada pelos
limites com que a inteligência alcança as realidades do espírito.
 A Teologia por sua vez, ilumina essa experiência desde as verdades que Deus
mesmo revelou sobre o homem: que é imagem e filho seu, que goza de uma liberdade
ferida pelo pecado e restaurada por Cristo, que seu destino é eterno etc.

É um perigo para a Teologia moral abandonar a sus perspectiva própria, tentando


assentar suas certezas pelo mesmo caminho que a ética filosófica. A fé dá um
conhecimento que não se funda na evidência racional, mas é seguro, porque se apoia na
autoridade de Deus; por isso, é capaz de iluminar o sentido das novas interrogações e
descobrimentos.
Uma característica metodológica própria da Teologia é a sua relação não só com
a fé, mas também com a oração, na qual se recebem e exercitam os dons de inteligência,
sabedoria e ciência. De outro modo não é possível sustentar «uma Teologia viva, capaz
de se renovar e progredir. Separada da oração, a Teologia se auto condena à decadência,
à aridez e, mais cedo ou mais tarde, à desintegração»15.

4.3.Teologia moral e ciências positivas

13 Cf. CONCILIO VATICANO I, Const. dogm. Dei Filius, cap. 2.


14 CONCILIO VATICANO II, Decl. Dignitatis humanae, n. 14.
15 S. PINCKAERS, La prière chrétienne, Edit. Univer. Fribourg (Suisse) 1989, p. 311.
18
É próprio da Teologia moral considerar os atos humanos refletindo sobre eles
à luz da Revelação. As ciências positivas, por sua vez, contemplam os mesmos atos
desde o exterior, e segundo o método de observação próprio de cada uma delas (jurídico,
sociológico etc).
Estas ciências não são suficientes para conhecer o homem, nem para dar
respostas aos seus interrogantes fundamentais: não bastam nem mesmo para guiar
adequadamente nossa conduta.
Por sua vez, a Teologia moral necessita das ciências positivas enquanto lhe
ajudam a conhecer fatores – de ordem social, psicológico, histórico etc. – que se
encontram implicados nas ações concretas, e que lhe convém saber para fazer mais
precisos seus juízos éticos.
Em suma, oferecem dados importantes para a Teologia moral, mas não os
critérios de discernimento. Por isso, é importante sublinhar que «a utilização por parte
da Teologia de elementos ou instrumentos conceituais provenientes da filosofia ou de
outras disciplinas exige um discernimento desses elementos ou instrumentos conceituais,
e não ao contrário»16.
Por si, os conhecimentos científicos são ambivalentes; podem ser usados para
bem ou para o mal: «Por isso, quando a ciência se separa da moral, o homem corre graves
riscos»17. Em uma palavra, a Teologia e a ética fazem o possível que essas ciências se
ponham verdadeiramente ao serviço do homem, da sua perfeição e da sua salvação
eterna.

Leitura complementar

Do livro: COLOM. E. – RODRIGUEZ LUÑO, Á., Escolhidos em Cristo para ser santos.
I. Moral Fundamental, Quadrante, São Paulo 2015, pp. 11-22:

Cap. I, 1. A Vida cristã: a) Filhos de Deus em Cristo por meio do Espírito Santo; b)
Caráter sacramental e eclesial da vida moral cristã; c) moral cristã e moral humana.

Exercícios de auto comprovação

É necessário responder brevemente, mas com exatidão. Ambas condições são


necessárias para uma boa resposta teológica: a concisão, para expressar com clareza o
essencial da resposta, sem se perder em questões acidentais; a exatidão, porque todas as
questões teológicas dependem muito dos matizes e dos enfoques. E, portanto, requerem
que se utilize a linguagem precisa, sem excessos, nem defeitos.

16 CONGREGACION PARA LA DOCTRINA DE LA FE, Instr. Donum veritatis sobre la


vocación eclesial del teólogo, n. 10.
17 JUAN PABLO II, Discurso 7-VII-84, n.2.
19
Em consequência, é necessário, primeiro, captar o sentido da pergunta e, depois,
responder com exatidão.

1. Qual é o objeto da Teologia moral? Que relação existe entre a Teologia moral e a
Ética?

2. Quais as relações entre a Teologia moral e a Teologia dogmática?

3. Quais são as fontes da Teologia moral?

4. Qual é o papel do Magistério da Igreja na Teologia moral?

20
Tema 2: História da Teologia Moral

1. A Moral na Sagrada Escritura;


2. A Moral na doutrina dos Padres da Igreja;
3. Do século V ao XII;
4. A Moral na Idade média: Santo Tomás de Aquino;
5. Séculos XIV ao XVI;
6. Séculos XVII ao XVIII;
7. Séculos XIX e começos do XX;
8. O Concílio Vaticano II;
9. A Teologia Moral depois do Concílio Vaticano II: algumas tendências e questões
em debate;
10. Últimas intervenções do Magistério da Igreja sobre temas de moral.

Introdução

O exemplo da vida de Cristo e a mensagem moral pregada por ele dá origem não
só à vida cristã, mas também ao pensamento científico sobre essa mensagem, que se
desenvolve ao longo da história da Igreja. É importante conhecer os momentos mais
significativos deste processo, as dificuldades que os teólogos têm enfrentado para
apresentar fielmente a moral cristã, as soluções que eles têm dado, e como tem exercido
a Igreja nas diversas épocas sua função de ensinar a verdade moral, servindo de guia para
o povo cristão.
Sem entrar em detalhes, que excederiam o nosso propósito, é muito útil fazer um
breve percorrido para admirar os momentos mais significativos da história da teologia
moral.

***

1. Teologia Moral na Sagrada Escritura

Nos Evangelhos, não há uma exposição sistemática da doutrina moral. No


entanto, nela se encontra uma verdadeira doutrina moral completa, unificada, universal e
original.
Os ensinamentos morais de Jesus estão todos compreendidos no anúncio da Boa
Nova.
Cristo, o único mestre da nova aliança, fundada na oblação de seu próprio
sangue, estabelece uma nova lei, uma lei de proporções inauditas: a de viver com Ele, a

21
de seguir seus passos, servir por amor, carregar a cruz, ser humilde e amar inclusive aos
inimigos.
O verdadeiro Evangelho contém verdadeiras normas precisas que abarcam as
relações do homem com Deus, consigo mesmo, com os demais e com as coisas. São
normas canalizadas para a unidade interior e própria do amor.
Duas grandes características da moralidade de Jesus Cristo são:
a) É universal: está destinada a todos, não somente aos eleitos, inclusive aos
pecadores;
b) O mesmo Jesus Cristo apresenta-se como exemplo e modelo de vida moral.
A exigência moral da vida cristã está presente em toda a pregação apostólica.
Algumas cartas contêm, de maneira especial, a exposição dos mais variados temas de
moral: especialmente as cartas de São Paulo aos Romanos, a segunda aos Coríntios,
Efésios e Colossenses.
A doutrina moral de São Paulo concentra-se em Jesus Cristo e na incorporação
a Ele, que o homem recebe no sacramento do Batismo. Dele vem de novidade de vida em
Cristo, cuja incorporação se realiza, se aperfeiçoa e se consuma na e através da Igreja.

2. A moral na doutrina dos Padres da Igreja

Não há, nos inícios do cristianismo, uma preocupação por estruturar de modo
sistemático os mistérios revelados.
Nos escritos dos Padres predomina a pregação e a catequese sobre o trabalho
mais específico de construção teológica, embora, evidentemente, esta não falte. Nessa
catequese, a exposição das verdades morais ocupa um lugar importante, e podemos
encontrar todos os temas centrais da moral fundamental e especial.
Algumas características da moral dos Padres:
 A riqueza e espontaneidade com que se nutre da Escritura. Os
Padres são particularmente conscientes do caráter inspirado da Bíblia,
reconhecendo a Deus como seu autor principal: a fé com que leem o
texto sagrado e procuram colocá-lo em prática leva-os a extrair em
abundância sua força diretiva para a conduta humana.
 Os Padres usam com grande naturalidade a filosofia de seu tempo,
mas sempre depois de tê-la contrastado e purificado desde o superior
conhecimento da fé.
 Não separam a moral da dogmática, nem da espiritualidade.
 Inculcam, como exigência para todos os cristãos e não somente
para alguns, o dever de levar uma vida santa, em contraste com a
decadência moral que os circunda, e em meio da qual dão um audaz
testemunho.
Merecem se destacar pela especial abundância e riqueza de suas considerações
morais os escritos de Clemente de Alexandria (150-210), São Basílio (329-379), São João
Crisóstomo (340-407) e Santo Ambrósio (339-397).

22
A primeira estrutura científica da Teologia moral se deve a Santo Agostinho
(354-430); não que ele tenha elaborado uma Teologia moral como ciência autônoma, mas
analisa de modo orgânico, dentro da teologia, as grandes questões morais, de forma
semelhante a como havia de fazer mais tarde Santo Tomás.
Algumas características da moral de Santo Agostinho:
 Considera a moral cristã como um viver das verdades
professadas pela fé, que dispõe a alma para conhecer e possuir
plenamente Àquele em quem começou a crer.
 As realidades temporais, embora dotadas de um valor próprio, só
adquirem seu verdadeiro sentido como vias de acesso a Deus.
Tampouco deve o homem buscar sua finalidade em si mesmo: fora
de Deus nada se deve amar como último fim. A atividade moral
consiste em amar bem, conforme a ordem que a fé nos dá a
conhecer.
 A moral cristã não está centrada primordialmente na ideia de
obrigação e de lei, embora as compreenda e valorize na sua
importância, mas, sobretudo, no ideal da perfeição humana: mais
ainda, daquela perfeição pela qual o homem alcança a salvação, a
felicidade temporal e eterna.
 A novidade cristã radica-se em ser capaz de liberar o homem da
situação de escravidão e impotência moral em que se encontrava,
mediante a verdade e a graça de Jesus Cristo, segundo o panorama
das bem-aventuranças.

3. Do Século V ao XII

A época que vai do final do século V ao X é pouco ativa no campo da construção


teológica. As Etimologias de Santo Isidoro é uma obra representativa destes séculos.
Desde o ponto de vista da Teologia moral, a novidade mais importante é a
aparição dos libri poenitentiales, cuja função é ajudar aos confessores a fixar as
penitências aplicáveis no sacramento da Confissão.
Dentro da época, deve destacar-se a obra de São Leão Magno (390?-461) e São
Gregório Magno (540-604).
O século XI conhece um renascer da tarefa teológica com o início da escolástica.
O descobrimento da filosofia de Aristóteles exerce sua positiva influência, embora às
vezes provoque desvios, como em Berengário de Tours, mas em tantos outros permite um
progresso na Teologia que redunda na melhor compreensão da fé.
O personagem desta época que mais se destacou por seu serviço a teologia é
Santo Anselmo.

4. A moral na alta Idade Média: Santo Tomás de Aquino

O caráter unitário da ciência sagrada segue na idade de ouro da


Escolástica (séc. XII e XIII). Para Santo Alberto Magno, São Boaventura e Alexandre
23
de Hales, a teologia é um tratado de Deus, do homem e do mundo enquanto criados
por Deus e redimidos por Cristo; não cabe entender quem é o homem sem recorrer a
Deus: a antropologia cristã é teocêntrica.
Santo Tomás de Aquino representa o cume deste período áureo da ciência
teológica.
Dentro de sua concepção teológica, a moral está harmonicamente integrada
com a dogmática. Os temas básicos da moral, na Summa Theologiae, formam a
Secunda pars; isto levou a identificar a moral de Santo Tomás com as questões nela
tratadas; na realidade toda a Summa Theologiae é dogmática e moral.
Na Summa contra gentes os temas morais aparecem desde a primeira página
do livro I, pois Deus é o Criador do homem, seu fim último e causa exemplar de todas
as suas perfeições.
Em toda a obra teológica do Doctor Angelico, dogmática e moral se
apresentam em sua unidade; e são muitos os escritos que dedica, concretamente, a
questões morais. Pode-se afirmar que seus comentários bíblicos, tão ricos em uma
análise das verdades morais nutrida da Sagrada Escritura, constituem um verdadeiro
modelo de uso da Escritura na Teologia moral, tão aconselhado pelo Concílio
Vaticano II.
Entre os pontos mais salientes da síntese moral de Santo Tomás,
ressaltaremos os seguintes:
 A centralidade do último fim do homem, que consiste na eterna e
sobrenatural bem-aventurança, que se inicia já na terra pelo
conhecimento e o amor de Deus, que deve inspirar todas as suas obras.
 A profundidade com que a liberdade se mostra como capacidade de
glorificar a Deus pelo conhecimento e pelo amor.
 Sua análise da moralidade das ações humanas, com a distinção entre os
momentos – ato interior e exterior – que permite sublinhar a primícias
da interioridade na conduta moral, realçando o papel essencial – junto
ao objeto – da finalidade ou intenção.
 Seu modo de ressaltar o caráter intrínseco da lei divina, tanto natural
como sobrenatural, embora, seja ademais uma lei exterior – a letra da
Sagrada Escritura – e a conseguinte inseparabilidade entre perfeição e
felicidade humanas.
 O modo em que as virtudes – adquiridas e infusas – se mostram como
princípios da vida moral cristã em sua íntima unidade com os dons do
Espírito Santo.

5. Séculos XIV ao XVI

5.1. A revolução da moral em Ockham

Os séculos XIV e XV, junto a continuação da escolástica, contemplam a aparição


de um novo modo de conceber a moral, em torno da ideia de obrigação.

24
Guilherme de Ockham entende a liberdade como indiferença da vontade; e a
moralidade como a relação da vontade humana com a norma divina, dependente do
arbítrio absoluto do criador, que poderia haver determinado que fossem boas as ações
que agora são más, ou vice-versa.
A relação entre o homem e Deus resume-se no cumprimento da vontade de
Deus pelo homem. E como a vontade divina se expressa na lei, que tem força de
obrigação, a lei e a obrigação constituíram, para Ockham e seus seguidores, o núcleo da
moral.
A moral não se funda já no íntimo desejo de felicidade ou bem-aventurança, nas
inclinações interiores ao bem e no desenvolvimento das virtudes, mas na obrigação
marcada por uma lei de algum modo extrínseca ao homem.
A influência de Ockham sobre a evolução posterior da moral foi muito forte.
Não somente por haver dado origem às morais da obrigação, senão porque na sua
concepção da liberdade como indiferença da vontade, se encontre no germe a
reivindicação de sua autonomia, e, portanto, das várias e sucessivas morais autônomas
que proclamam a consciência como juiz supremo da moralidade.

5.2. A Teologia moral como independente

No início do século XVI ocorreu um renascimento do trabalho teológico, que


busca se inspirar em Santo Tomás e do que pode se considerar especialmente
representativa a Escola de Salamanca. Os temas morais ocupam um lugar importante,
sendo de destacar os comentários à Secunda pars de Konrad Koellin, Francisco de Vitória
e o Cardeal Caetano. Merecem, também, atenção as obras de Gabriel Vázquez e Francisco
Suárez.
Esta teologia, que se desenvolve sobretudo nas Universidades, caracteriza-se
pelo uso crescente dos procedimentos racionais da escolástica: se multiplicam as
questões, as divisões, os argumentos e se difunde um vocabulário técnico especializado,
com uma crescente abstração e complexidade dos problemas e as soluções.
Semelhante produção teológica, fortemente especulativa e de escola, se separa
pouco a pouco do que se chamará na teologia mística e das grandes correntes de
espiritualidade da época.
Merece, por isso, uma particular menção, enquanto supera esta divisão e retorna
à unidade tradicional, São Francisco de Sales: em sua obra aparecem ligados o saber
teológico e a experiência espiritual, mostrando que todo cristão deve e pode adquirir
sólida vida interior. Destacam-se sua Introdução à vida devota e seu Tratado do amor de
Deus.
Na maioria dos autores da época, entretanto, sob a influência do
nominalismo e a crescente difusão do modelo de Ockham, a moral
tende a se ocupar «essencialmente dos preceitos, que fixam as
obrigações nos distintos setores do agir humano e se impõem
indistintamente a todos. Os conselhos descreverão um nível
suplementar, de atos excepcionais, deixados à livre iniciativa de cada

25
um, e de fato reservados a uma elite que busca a perfeição: será o
terreno da ascética e da mística»18.

Ao mesmo tempo, a teologia moral se separa da pastoral, mais ao alcance de


todos os sacerdotes: diversificam-se, assim, o teólogo e o pastor de almas.
Neste ambiente teve lugar o nascimento da Teologia moral como disciplina
independente. Entre os eventos que condicionaram sua aparição, pode-se considerar a
nova organização de estudos da Companhia de Jesus. Essa estabelecia que os princípios
morais – Teologia moral especulativa – fossem expostos conforme ao plano da Summa
Thelogiae e previa a criação de uma nova disciplina – a Teologia moral prática –
explicada por professores distintos e destinada a solução de casos de consciência, com a
que abordava a necessidade de formar os confessores.
Os novos tratados de moral tendem a adotar como introdução um estudo sobre a
consciência que se desenvolve em função de perguntas: este penitente cometeu pecado
ou não? Como aconselhar? Tal abordagem levará – através do recurso ao método
casuístico – a uma clarificação de muitas questões concretas e importantes, mas anexará
o perigo de construir uma moral de mínimos; perigo reforçado pelo fato de que a
exposição não se enquadra mais em torno da virtude, senão dos preceitos e obrigações
que deles dimanam.
Pouco a pouco o pensamento moral se desgarra da espiritualidade, perdendo
sua dimensão mais própria e positiva: ser guia para a união com Deus, estimulando o
crescimento nas virtudes. Os novos tratados de moral deixam assim de considerar parte
dos elementos necessários para formar e dirigir as consciências; e a nova moral prática
recorta suas metas e inspirações.
Por outro lado, ao apresentar a lei divina ao modo das leis humanas, ressaltando
do ensinamento moral bíblico somente ou quase somente os preceitos, tende-se a
obscurecer sua função intrínseca e dinâmica: a ordem moral objetiva aparece quase
como um mandato extrínseco que restringe a liberdade; a visão cristã da lei, princípio
vital e guia divino para a união com Deus e a prática do amor de caridade, tende a ser
confundida.

6. Séculos XVII - XVIII

Durante dois séculos a investigação teológica, no terreno moral, se desgasta em


boa parte na famosa controvérsia sobre os sistemas morais (tuciorismo, probabiliorismo,
probabibilismo, equiprobabilismo, laxismo): uma tarefa salpicada por duras polêmicas,
pouco frutuosa, que os Papas (Alexandre VII, Inocêncio XI e Alexandre VIII) se viram
obrigados a resolver.
Como exemplo de moralista que dá uma grande importância a uma intensa vida
cristã para a tarefa teológica, e que põe suas riquezas ao serviço da formação dos fiéis,
cabe recordar Santo Afonso Maria de Ligório.

18 S. PINCKAERS, Las fuentes de la moral cristiana, Eunsa, Pamplona 1998, p. 334.


26
Embora sua Theología moralis, apareça em 1775, permanece ligada aos
esquemas da época e em parte a sua metodologia, incentiva nela uma viva experiência
apostólica e um profundo conhecimento sapiencial. A exposição e solução dos casos, e a
sábia orientação das almas – muitas vezes em ambientes difíceis e entre pessoas
desprovidas de formação – nunca se encaixam nos esquemas racionalistas e abstratos,
mas apoiam suas bases na experiência de almas, discernida à luz da Sagrada Escritura,
dos Santos Padres e do Magistério. Marca um passo de renovação positiva da Teologia
moral.

7. Séculos XIX ao início do século XX

7.1. A renovação da Teologia moral

O impulso que Leão XIII deu ao tomismo com a encíclica Aeterni Patris (1879),
o desejo de superar a casuística dos manuais mediante uma mais profunda reflexão
teológica etc., produzem um novo movimento renovador nos finais do século XIX.
Já no século XX, encontramo-nos com um conjunto de autores que contribuem
para certa renovação da teologia moral graças, em grande parte, ao impulso tomista, pois
este provocou algumas mudanças de perspectiva que facilitaram a renovação posterior. A
comparação dos manuais com a Summa Theologiae de Santo Tomás mostrou diferenças
de importância que animaram aos autores a realizar retoques e introduzir tratados
desconsiderados (D. Prümmer, B.H. Merkelbach, A.B. Tanquerey, A. Veermeersch etc.).
A modificação mais importante que se produziu nos manuais consistiu em
estruturar a moral em torno às virtudes teologais no lugar dos mandamentos. Se
reintroduziu ao começo da moral o tratado do fim último e da bem-aventurança.

Suas obras representam, portanto, um início da volta aos traços da moral


perene, embora na realidade sigam tomando seu conteúdo fundamental da moral de
obrigações. Não aparece ainda uma verdadeira reestruturação da moral baseada na
especulação dos Padres e de Santo Tomás, centrada na bem-aventurança, o caráter
intrínseco da lei divina e o desenvolvimento das virtudes sob a ação da graça.

O período de renovação que vai dos anos 30 até a metade do século,


caracterizado pela pesquisa metodológica de um princípio organizador especificamente
cristão da teologia moral. Trata-se de ver se a pregação do Senhor contenha um
pensamento fundamental ou uma ideia diretriz adequada para ser o princípio estruturador
e plasmador da vida moral cristã.
 F. Tilmann afirma que o princípio fundamental da moral cristã é a
imitação de Cristo.
 E. Mersch propõe a incorporação a Cristo como o princípio capaz de
oferecer uma abordagem unitária e especificamente cristã ao discurso
moral.
 G. Gilleman e R. Carpentier situam na caridade o princípio fundamental.

27
Na prática, estes autores mostraram a necessidade de uma renovação mais ligada
à tradição patrística e a essas duas colunas da moral que representam Santo Agostinho e
Santo Tomás.
7.2. Novas correntes por ocasião da renovação da Teologia moral: a “nova moral” e a
“ética de situação”

Na década de 50 (do séc. XX) começa a se usar a expressão “nova moral”. Nos
documentos pontifícios, esta expressão foi usada pela primeira vez pelo Papa Pio XII na
Radio mensagem sobre a educação cristã dos jovens (23-III-1952).
O erro fundamental desta “nova moral” consistia em negar o valor objetivo das
normas universais e no outorgar à consciência do indivíduo o único critério determinante
da moralidade do ato humano.
Na “nova moral” a consciência é separada da tutela do Magistério, e desse
modo – afirma – o homem adquire a possibilidade de obrar com espontaneidade e
inocentemente, já que, por não contar com intermediário algum, a consciência obrará só
pela lei do amor, superando assim a atadura do rigorismo legal da moral.
Neste contexto adquire um protagonismo especial que chegou a se denominar
‘ética de situação”. Quando se atende exclusivamente às “circunstâncias” de cada
sujeito, a “nova moral” é despojada dos grandes princípios e vem a ser um dos maiores
perigos que pode correr a fé.
Uma coisa é valorizar as circunstâncias, e outra muito distinta é fazer depender
a moralidade somente – ou principalmente – das circunstâncias. Na “ética de situação” se
dissolve toda norma moral objetiva e universal.

7.3. Outras tentativas de renovação e fundamentação da Teologia moral

Na segunda metade do século XX, um crescente número de autores fornecem


considerações de grande interesse e acerto – corrigindo o legalismo da moral dos últimos
séculos – que, de fato, serviram de base para algumas posturas tomadas no Concílio
Vaticano II como, por exemplo, a renovação bíblica da moral ou o prestar maior
atenção à pessoa e sua dignidade.
Com o retorno à Escritura, sublinha-se também a necessidade de:
 Unir a moral com a dogmática e a espiritualidade;
 Partir da antropologia bíblica;
 Um maior recurso aos ensinamentos dos Padres da Igreja e do estudo
direto de Santo Tomás;
 Uma mais sólida fundação metafísica da moral;
 Aproveitar os dados das novas ciências humanas para elaborar os juízos
morais.
Destacam entre os autores a que nos referimos: S. Pinckaers, C. Spicq, Ph.
Delhaye, O. Lottin e tantos outros. Não se deveria esquecer as contribuições para a moral
realizadas por aqueles que se ocupavam fundamentalmente da Teologia dogmática – por
exemplo., Ch. Journet, L. Bouyer o grupo da Communio (J. Ratzinger, H. U. von Baltasar,

28
I. Congar, H. de Lubac etc.) –, ou a decisiva contribuição daqueles que cultivaram a
renovação da moral desde seus fundamentos filosóficos, como O. N. Derisi, E. Gilson, C.
Fabro, K. Wojtyla e D. von Hildebrand.
8. O Concílio Vaticano II

Concluindo esta referência histórica, faz-se necessária uma referência aos


ensinamentos do Concílio Vaticano II, que se concentra na renovação da moral em uma
mais direta fundamentação na Sagrada Escritura, envolvida com o que foi o ponto central
dos ensinamentos conciliares: a proclamação da chamada universal à santidade19.

Dois são os pressupostos imprescindíveis desta renovação anunciada: uma volta aos
seus fundamentos bíblicos e o ser instrumento para promover frutos de santidade.

Outros pontos importantes da doutrina conciliar para a renovação da moral são:


 Sua insistência na dignidade da pessoa e sua raiz transcendente
(Gaudium et spes, n. 19);
 A afirmação da dimensão social e comunitária da conduta humana (cf.
Gandium et spes n. 23 e ss.);
 E a que a vida da pessoa cristã é sempre uma vida na Igreja: nela é gerada
e se desenvolve (cf. Lumen gentium, n. 4 e ss.).
Seus ensinamentos, que aparecem entrelaçados com os dogmáticos, se
concentram especialmente na Constituição Pastoral Gaudium et spes:
 Na sua primeira parte trata os temas capitais da moral fundamental
(natureza humana, sabedoria e inteligência, liberdade, consciência,
pecado, divinização do homem pela graça, reta ordem da atividade
humana, bem comum, etc.);
 A segunda parte vem a ser uma moral especial, dedicada às questões
éticas mais urgentes no mundo de hoje (matrimônio e família, cultura,
ordem econômica, ordem social e internacional).

9. A Teologia moral depois do Concílio Vaticano: algumas tendências e questões


em debate

9.1.A moral autônoma

Tem sua origem em determinadas orientações éticas contemporâneas que


atribuem a cada indivíduo ou aos grupos sociais a faculdade de decidir sobre o bem e o
mal, de modo que a liberdade humana se converteria em criadora de valores e
gozaria de primazia sobre a verdade. A liberdade «reivindicaria tal grau de autonomia
moral que praticamente significaria sua soberania absoluta» (VS, 35).

19 CONCILIO VATICANO II, Const. Dogm. Lumen gentium, n. 11 e cap. V.


29
Propunha uma completa autonomia da razão no âmbito moral das normas
morais relativas ao reto ordenamento da vida neste mundo (normas intramundanas).
Tais normas constituíram o âmbito de uma moral somente “humana”; isto é: estas
normas seriam expressão de uma lei que o homem se dá autonomamente a si mesmo, e
que tem sua origem exclusivamente na razão humana. Deus, de modo algum, poderia
ser considerado Autor desta lei; só no sentido de que a razão humana exerce sua
autonomia legisladora em virtude de um mandato originário e total de Deus ao homem
(cf. VS, 36).
Esta corrente fala de “autonomia teônoma”: Deus criou o homem e lhe confiou
a tarefa de estabelecer, por sua própria responsabilidade, as normas do bem e do mal:
algo que o homem leva a cabo em um processo histórico-cultural que se rege por suas
próprias leis.

A teonomia desta “autonomia teônoma” é assim praticamente reduzida à ideia


de que o sujeito autônomo tem em Deus o fundamento do caráter autônomo de seu
ser. O homem depende totalmente de Deus (posto que recebeu sua liberdade como
um dom), mas ao mesmo tempo é também totalmente independente d’Ele, enquanto
que lhe foi confiado a configuração da sua própria liberdade.

A moral autônoma se esquece de que a razão humana depende da Sabedoria


divina, e que no estado atual da natureza caída se encontra também necessitada da
Revelação para o conhecimento das mesmas verdades morais de ordem natural (cf. VS,
36)20.

9.2.A opção fundamental

O tema da “opção fundamental”, embora relativamente recente, foi adquirindo


uma importância cada vez maior na tarefa da Teologia moral nos anos posteriores ao
Concílio Vaticano II.
O Magistério da Igreja pronunciou-se advertindo que esta categoria deve ser
atendida adequadamente a fim de «não pôr em dúvida a concepção tradicional» e «ser
fieis à palavra de Deus»21.
A Encíclica Veritatis splendor rechaça uma opção fundamental entendida como
um ato realizado pela liberdade fundamental, nenhuma escola ou reflexão, mas
transcendental e atemático, por ele que a pessoa dispõe de si para o Bem absoluto (cf. VS,
n. 65).
Esta noção de liberdade procede da distinção dos níveis diversos de liberdade no
homem:
 Um nível fundamental ou transcendental, que tem por objeto o Bem
absoluto;

20 Para uma adequada compreensão dos conceitos de autonomia, teonomia e teonomia participada
(cf. VS, 41).
21 Exortação Apostólica Reconciliatio et paenitentia, n. 17.
30
 E outro categorial ou intramundano, que tem por objeto ou bens
particulares ou finitos.
O ato próprio da liberdade transcendental seria a opção fundamental; os atos
próprios da liberdade categorial seriam as eleições particulares pelas quais o sujeito
tende aos bens finitos. Estas eleições, obviamente, guardam uma relação com a
fundamental, pois são o seu sinal, e modos de sua realização prática. Mas, precisamente
por não poder expressá-la totalmente, ao estar a outro nível de liberdade – afirmam –
tampouco podem rompê-la.
Deste modo se introduz uma dissociação do obrar humano e dos níveis:
 O transcendental, que seria propriamente o moral;
 O categorial, que não teria propriamente significado moral,
mas simplesmente de correção ou incorreção, dependendo das exigências
naturais e sociais da vida intramundana dos homens.
 Uma das consequências desta visão é que, para os autores,
só haveria pecado (mal moral) quando a opção fundamental é mudada
por outra contrária, mas não quando algum ato particular é contrário à lei
moral. Elimina-se assim a realidade do pecado moral tal e como foi
entendido na tradição da Igreja a partir da revelação mesma (cf. VS, nn.
65, 69 e 70).

9.3.O teleologismo

As teorias teleológicas22 fazem depender o bem e o mal morais do fim


proposto, e da soma de bens que se perseguem. Não se considera se a ação é em si boa ou
má: a fonte da moralidade é o fim que se propõe conseguir o sujeito, junto com os “bens
que se seguem”.
 A distinção entre “valores morais” e “valores pré-morais”, não morais,
ônticos ou físicos. Estas teorias consideram que os valores ou bens implicados em
um ato humano são de ordem moral, quando se relacionam diretamente com os
valores propriamente morais, como o amor de Deus, a benevolência com o próximo,
a justiça, etc. Seriam, no entanto, de ordem pré-moral os que se referem às
vantagens ou inconvenientes originados por uma ação. Por exemplo, a morte de um
inocente poderia estar justificada em algumas circunstâncias, mesmo quando
estivesse proibido pelas leis universais. A morte do inocente não seria julgada como
homicídio – ato moral – mas se trataria de um valor pré-moral.
 Partem de um pressuposto antropológico errôneo: a contraposição entre
pessoa e natureza23: por pessoa compreendem o homem enquanto liberdade
autônoma; a natureza, no entanto, seria a corporeidade vivificada junto às relações
e conexões com o mundo circundante.
 Negam a existência de normas morais absolutas de validade
supratemporal.

22 Cf. Veritatis splendor, nn. 75ss.


23 Para uma análise desta distinção e suas consequências para a moral, ver Veritatis splendor, nn. 43-
46 e 65-69.
31
Dentro das correntes teleológicas surgem e se desenvolvem o
consequencialismo e o proporcionalismo.
1. O consequencialismo afirma que a moralidade está em que a soma final de
bens supere os males que se sigam a uma ação concreta.
 A moralidade das ações humanas deriva fundamentalmente, e em
alguns casos, de modo exclusivo, das consequências que se seguem da ação
realizada.
 Situa a moralidade não na conformidade da pessoa com o querer
de Deus, mas no resultado prático-temporal de suas ações, segundo as
previsões do sujeito e sua escala de valores.

2. O proporcionalismo afirma que o ato é moralmente bom se existe proporção


entre os bens que se conseguem e os males que se evitam.

10. Últimas intervenções do Magistério da Igreja sobre temas de Moral

As orientações dadas pelo Concílio Vaticano II são completadas com uma alusão
ao trabalho magisterial realizado pelos Papas: Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, que
velaram pela sua aplicação.
De fato, nunca na História precedente da Igreja o Magistério havia se ocupado
com tanta atenção e profundidade dos fundamentos e conceitos básicos da moral, a
parte de seu discernimento sobre as questões morais mais importantes hoje debatidas.
Pode-se realmente dizer que todas as noções básicas da vida e a experiência
moral (a liberdade, a consciência, a lei, o pecado, a conversão, as bem-aventuranças, as
virtudes, a graça, o ato moral etc.) foram objeto de claros e profundos ensinamentos
fundados na Escritura e na Tradição, segundo as diretrizes do Concílio.
Talvez o ponto chave na ansiada renovação seja a fundação de um personalismo
cristão de profunda tradição metafísica, donde a consideração da pessoa como imagem
de Deus amor, que deve ser amada por si mesma, desvela em toda sua força o caráter
central do mandamento da caridade.
Deve-se citar entre os distintos documentos que, sobre Teologia moral,
apareceram a partir do Concílio Vaticano II:
• A Encíclica Humanae vitae, do Papa Paulo VI (25-VII-1968).
• A Declaração Persona humana, acerca de certas questões de ética sexual,
da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (29-XII-1975).
• A Exortação Apostólica Familiaris consortio, (22-XI-1981).
• A Exortação Apostólica Reconciliatio et paenitentia, (2-XII-1984).
• A Encíclica Sollicitudo rei socialis (30-XII-1987).
• A Carta Apostólica Mullieris dignitatem (15-VIII-1988).
• A Encíclica Evangelium vitae (25-III-1995), de Papa João Paulo II.
• O Catecismo Igreja Católica (11-XI-1992).
• E, de maneira especial, a Encíclica Veritatis splendor, do Papa João Paulo
II (6-VIII-1993).
32
A oportunidade do pronunciamento de cada um destes documentos e a
profundidade de sua doutrina faz com que no momento presente não possa ter lugar uma
dúvida razoável ou um dissenso honrado nos mais variados temas de teologia moral
fundamental, objeto dessa documentação. À luz desses documentos, resulta-se
relativamente fácil descobrir os temas mais discutidos, quando não tergiversados, que nos
últimos anos necessitaram de uma clara intervenção do Magistério da Igreja.

Leitura complementar:

S. Pinckaers, A moral católica, Quadrante, São Paulo 2015, pp. 11-77.

Exercícios de auto comprovação:

É necessário responder brevemente, mas com exatidão. Ambas condições são


necessárias para uma boa resposta teológica: a concisão, para expressar com clareza o
essencial da resposta, sem se perder em questões acidentais; a exatidão, porque todas as
questões teológicas dependem muito dos matizes e dos enfoques. E, portanto, requerem
que se utilize a linguagem precisa, sem excessos, nem defeitos.
Em consequência, é necessário, primeiro, captar o sentido da pergunta e, depois,
responder com exatidão.

1. Qual é a novidade da moral pregada por Jesus Cristo com respeito a do


Antigo Testamento?
2. Explique, em grandes linhas, a doutrina moral de Santo Agostinho.
3. Quais são os pontos básicos da doutrina moral de Santo Tomás?
4. Quais são as linhas mais significativas da renovação da Teologia Moral
segundo o Vaticano II?

Fonte do material:
T. Trigo, Teología moral fundamental, ISCR, Pamplona 2006 (trad. Pe. Anderson
Alves).

33
Tema 3: Antropologia Cristã e Moralidade

1. A antropologia que sustenta a moral cristã


2. A criação: fundamento da moralidade
3. Elevação à ordem sobrenatural e a moralidade

Introdução
A moralidade é prerrogativa do agir humano. O agir livre da pessoa humana
tem uma característica ou dimensão específica: é um agir moral, ou seja, qualificável
como bom ou mal.

Como deve ser a vida moral da pessoa humana? Que ações ou condutas são boas
ou más, do ponto de vista moral? Esta é a pergunta da moral filosófica e da teologia
moral.
A resposta a tal pergunta depende de outra: que é a pessoa humana? Esta é a
pergunta da antropologia filosófica e da antropologia revelada ou cristã.
Há antropologias filosóficas que concebem o homem como um ser cuja perfeição
e felicidade dependem do desenvolvimento científico e técnico, do bem estar econômico
etc. Essas antropologias negam a criação do homem por Deus e a relação que há entre o
homem e Deus.
A antropologia revelada na Sagrada Escritura, especialmente por Cristo (que
revela o homem ao próprio homem) responde que o homem é criado por Deus e filho
desse mesmo Deus. A teologia moral é a ciência que estuda a vida moral do filho de Deus.
Vejamos com mais profundidade, na Parte I, a antropologia revelada ou cristã;
na Parte II, veremos a criação como fundamento da moralidade; e na Parte III, nos
deteremos na elevação à ordem sobrenatural em relação com a moralidade.

Parte I: A Antropologia revelada que sustenta a moral cristã

O Gênesis descreve – como ensinamento primordial – o projeto de Deus sobre o


homem, seu desígnio originário e, quando nossos primeiros pais abusaram de sua
liberdade e pecaram, o projeto da Redenção.
Desta maneira, o plano de Deus – tendo em conta a intervenção da liberdade
humana – é-nos apresentado como integração de três elementos, que dão o fundamento
da antropologia revelada:
 O projeto do princípio (que a Escolástica chamou “estado de natureza
íntegra”);
 A situação do homem depois da queda (que a Escolástica chamou
“estado da natureza caída”);
 A história da Salvação: o modo pelo qual Deus ofereceu novamente a
salvação a toda humanidade, de diversas maneiras com a obra da Redenção
– segundo os tempos e as circunstancias pessoais.
34
Nesses três pontos de referência, que se iniciam com a verdade da criação, há de se
fundamentar a antropologia verdadeira que, por sua vez, fundamenta a verdadeira
moralidade – o bem e o mal – de nossas ações e a maneira pela qual o homem se
encaminha para a sua perfeição.

1. O projeto originário de Deus: a criação-elevação

 O homem foi criado à imagem de Deus,


 Com uma natureza espiritual e corpórea,
 E elevado à condição de filho de Deus pela graça;
 Por tal perfeição, a harmonia de suas potencias era plena, até o ponto de não poder
pecar por uma desordem sensível, senão unicamente por soberba, como os anjos;
o homem estava, também, imune à dor e à morte.

Com essa plenitude de forças, o homem havia recebido um duplo mandato de


Deus para sua vida terrena, com os quais alcançaria a bem-aventurança: “crescer e
multiplicar-se” e “dominar a terra”.
Ao mesmo tempo, Deus lhe deu uma ordem que devia cumprir livremente: não
devia comer da árvore da ciência do bem e do mal, ou seja, não devia constituir-se dono
do bem e do mal.
Esta situação da origem – o estado de inocência original – foi definitivamente
perdida. Cristo, veio para restaurar a inicial amizade do homem com Deus, mas não para
devolver a inocência nem o tornar imune à dor e à morte.

2. O pecado de nossos primeiros país: o homem caído


O pecado de nossos primeiros pais foi um pecado de desobediência por
soberba. Sua queda nasceu do desejo de agir desprezando o preceito de Deus e tendo a
si mesmo como única medida de suas ações.
Seu pecado determinou a perda do estado de justiça original e, a partir de
então, toda a raça humana foi concebida no pecado: «pela desobediência de um, todos
foram constituídos pecadores» (Rm 5,19).
Desde então, a natureza humana ficou ferida, mas não corrompida, pois
conserva sua mais profunda inclinação a Deus. Entretanto, o que era uma natural
possibilidade de pecar, converteu-se em inclinação ao pecado, como a Escritura
sublinha continuamente: a “concupiscência da carne”24 ou “concupiscência do
coração”25. É uma inclinação ao mal que se observa em todo homem desde o momento

24 1Pd 2,11; 2Pd 2,18; Gal 5,16; Rm 6,12; 1Jo 2, 16.


25 Rm 1,24; Mt 5,28; Ap 18,14.

35
em que age com consciência e dessa inclinação cada um sabe que não pode livrar-se por
si mesmo.
Todo ser humano – com exceção de Maria Santíssima – nasce neste triste estado:
privado da amizade com Deus e inclinado ao pecado. Só por suas forças, os homens
não só estão impossibilitados de tornarem-se íntimos de Deus, mas também não
conseguem sequer viver de modo pleno sua vida conforme à dignidade humana26. Há,
portanto, no homem decaído, um forte contraste: conserva suas aspirações à verdade e ao
bem e possui a realidade de suas forças feridas (cf. Rom 7,15-19).

3. A Redenção do homem e da história da salvação


Imediatamente depois de haver rompido a primeira Aliança com seu Criador,
Deus ofereceu ao homem a salvação ao longo da história por distintos caminhos, até que,
chegada a plenitude dos tempos, enviou seu Filho para que instaurasse a Nova e
Definitiva Aliança, com sua Encarnação e morte de Cruz. Como o primeiro Adão foi
causa de pecado para todos, Cristo – segundo Adão – foi causa de salvação para todos.

A Redenção de Cristo é universal. Chega a todo homem, ainda que não chegue
a todos do mesmo modo. Por isso, a finalidade da Igreja é que «todo homem possa
encontrar a Cristo, para que Cristo possa percorrer com cada homem o caminho da
vida»27.
A apropriação da oferta da Redenção por parte da pessoa depende de diversas
circunstâncias e, em particular, de suas relações com a Igreja e do uso de sua liberdade;
pois os homens podem recusar a oferta de Cristo e afastar-se d’Ele por toda a eternidade.
Em síntese, os modos pelos quais os homens encontram a Cristo são dois:
 Os que pertencem ou ingressam na Igreja de Cristo pela adesão à fé e
utilização dos meios que a Igreja recebeu de Cristo: os Sacramentos, a Sagrada
Escritura, a Tradição e o Magistério, o Governo e a Hierarquia, o exemplo dos
Santos etc.
 Para os que não conhecem a Cristo, ainda que não contem com a facilidade e
abundância dos meios instituídos por Cristo para a Salvação, mas se agem com
boa vontade – ensina o Concílio Vaticano II –, recebem a graça de um modo
conhecido apenas por Deus e «conseguem a salvação»28.

Parte II: A criação, fundamento da moralidade


A verdade da criação (acessível à razão e revelada por Deus) é fundamental para
saber quem somos e como devemos agir.

26 Cf. CONCILIO DE TRENTO, Ses. VI, Decr. de iustificatione, DS 1520/792 a 1583/893.


27 JOÃO PAULO II, Enc. Redemptor hominis, nn. 13 e 14.
28 CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 16; Const. past. Gaudium et spes,
n. 22.
36
Ser criados significa dizer que tudo que somos e temos recebemos de Deus, por
amor gratuito. Existimos porque Deus quer que existamos.
Fomos criados à imagem de Deus, a fim de que imitemos nosso Autor e
resplandeça em nós, com em um espelho, a beleza da bondade divina.

1. A bondade criada
A bondade das criaturas é o conjunto de perfeições recebidas da divina
sabedoria, que manifestam a bondade de Deus.

As coisas criadas receberam sua bondade de Deus: não são a bondade por
essência, senão boas por participação. Daqui se derivam várias e importantes
consequências:
 A bondade das criaturas é limitada, encontra-se repartida em diversas
perfeições, e podem aumentar ou diminuir;
 A bondade das criaturas depende de sua maior ou menor participação e
manifestação da bondade divina;
 As criaturas adquirem a plenitude de sua bondade mediante suas ações,
àquelas que estão conforme o plano da divina sabedoria. Há na criatura uma
dupla bondade: a bondade recebida com seu ser (bondade primeira) e a que
adquire por seu agir (bondade segunda).

2. A bondade moral, comum a toda criatura espiritual

A bondade da criatura espiritual provém, como em toda criatura, das perfeições


com as quais o Criador a dotou.
Mas nas criaturas espirituais, as características comuns a toda bondade criada se
dão de forma especial, pois participam de modo mais perfeito e mais alto da bondade
divina.
Essas criaturas são muito mais perfeitas que as demais: são imago Dei. São
capazes de operações de conhecimento e amor espirituais, e graças a elas podem entrar
em comunhão com Deus de modo mais perfeito.
A sua condição de imago Dei, pela qual participam de modo supremo da nobreza
divina, comporta a realidade de que têm o ser por si mesmas. A compreensão deste ponto
é fundamental para entender a raiz última da dignidade da pessoa e o que constitui sua
bondade específica ou bondade moral.

37
a) Enquanto as outras criaturas são queridas em ordem ao bem geral do universo,
cada criatura espiritual é querida por si mesma, para que conheça e ame a Deus 29.
Por isso, o indivíduo de natureza racional recebe um nome específico, o de pessoa,
expressivo dessa dignidade30.
b) Cada pessoa é única e irrepetível, com uma missão singularíssima a cumprir.
No plano da criação, Deus não conta com o homem em geral, mas com cada um dos
homens; cada alma humana é criada diretamente por Deus, responde a um preciso
desígnio seu: «na origem de cada pessoa há um ato criador de Deus: nenhum homem vem
a existência por sua casualidade; é sempre o ato do amor criador de Deus»31.

A verdade revelada de que Deus quer a cada criatura espiritual por si mesma
ilumina uma experiência fundamental de todo homem: a consciência da
própria dignidade, o caráter imperativo com que percebe – em sua consciência
– que deve amar a todo homem por si mesmo como ele quer ser amado.

c) Por ser imagem de Deus, que é Amor (1Jo 4,8), a pessoa está chamada
(vocação) a amar a Deus e ao próximo. «Criando-o à sua imagem e semelhança, Deus
increve na humanidade do homem e da mulher a vocação e, portanto, a capacidade e
responsabilidade do amor e da comunhão»32.
Todo o sentido da auto possessão do próprio ser e o consequente autodomínio
sobre suas ações é que o homem possa dar-se, por amor, a Deus e aos demais. Auto
possuir-se para dar-se por amor.
O amor é uma dimensão ontológica e ética da pessoa:

 Dimensão ontológica: o homem se aperfeiçoa amando: quanto mais ama,


mais é.
 Dimensão ética: as ações do homem são boas na medida em que ama.

d) Graças à perfeição de seu ser, a criatura espiritual pode alcançar por suas ações
uma bondade peculiar, única e suprema no universo: a bondade moral ou união com Deus.
Aqui está a razão mais alta de sua dignidade: «A razão mais alta da dignidade
humana consiste na vocação do homem à união com Deus. (...) E só pode dizer que vive
plenamente segundo à verdade de seu ser, quando reconhece livremente esse amor e se
confia por inteiro ao seu Criador»33.

29 «O homem, única criatura terrestre a qual Deus amou por si mesma». CONCILIO VATICANO
II, Const. past. Gaudium et spes, n. 24.
30 Cf. SANTO TOMÁS, S.Th., I, q. 29, a. 1, c.
31 JOÃO PAULO II, Discurso 17-IX-1983, n. 1.
32 JOÃO PAULO II, Exhor. Ap. Familiaris consortio, n. 11.
33 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 19.
38
e) O caráter absoluto da moralidade deriva da relação que o bem – ou valor –
moral tem com Deus.
O fato de que cada pessoa tenha sido querida por si mesma e que seu bem próprio
comporte sempre uma relação com Deus, implica que quanto faz referência ao bem da
pessoa como tal se apresente para a pessoa com um valor absoluto.
Destas características deriva a extrema seriedade do valor moral, sua decisiva
importância e seu valor incondicional:

 Extrema seriedade: pois nenhum outro valor, nem sequer os que pertencem
apenas ao homem (como os valores intelectuais ou estéticos), é igualmente
exigente para a pessoa;
 Importância decisiva: pois apenas ele é de tal natureza que nunca deve ser
descuidado e, muito menos, traído;
 Valor incondicional: pois apenas ele vale por si mesmo, não em razão de
sua utilidade para alcançar qualquer outro fim, nem em razão do prazer que pode
causar. Não é necessariamente útil ou agradável.34
A percepção do valor moral conforme ou contrário à dignidade da pessoa, ainda
que é um dado imediato da experiência, só alcança seu fundamento em relação com a
verdade da Criação: a decisão divina de criar o homem à sua imagem e semelhança e
destinado à união com Ele.

3. A bondade moral própria do homem

3.1. A união com Deus através do caminhar terreno


Entre toda a criação visível, só o homem tem o poder de transcender o universo
material e relacionar-se com o Criador. A criatura humana foi querida por Deus para que
se unisse a Ele e, assim, levasse a criação inteira ao Criador.

a) A união com Deus não se refere apenas à alma, mas a toda a pessoa: alma e
corpo.
A pessoa humana não é a sua alma, mas a unidade substancial de alma e corpo.
Decorre daí que a perfeita e eterna união amorosa com Deus, que constitui a plenitude do
ser e perfeição própria do homem, compreenda a ressurreição da carne e que esta verdade
revelada manifesta, entre outras coisas, a dignidade do próprio corpo e sua capital
importância para a moral cristã.
 Não poucos dos problemas enfrentados hoje pela Teologia Moral se devem à
difundida tendência de contrapor as noções de natureza e pessoa, assim como,
respectivamente, a dimensão espiritual e a corpórea do homem. Essa tendência

34 Cf. C. CAFFARRA. Vida en Cristo, Eunsa, Pamplona 1988, pp. 57-58.


39
afirma a existência de uma certa incomunicabilidade entra a natureza material e o
mundo espiritual, o que obscurece a dignidade pessoal do corpo humano;
 Não se podem contrapor natureza e pessoa, fazendo do corpo humano um
objeto do domínio técnico. Nosso corpo é pessoal, e não cabe considera-lo – como
nada na pessoa – um puro meio, mas deve-se reconhecer sua dignidade.

b) A conduta humana possui, por consequência, uma dupla dimensão: temporal e


eterna:
 Por sua alma espiritual, o homem está destinado à união com Deus;
 Mas devido ao seu corpo, há de alcançar essa união no tempo. Não em um
único ato, mas na multiplicidade de ações e decisões da vida terrena.

c) Nesta união com Deus que o homem consegue quando, livremente, reconhece e
cumpre o plano do Criador, ao qual está destinado, radica a bondade moral
própria da pessoa humana.

d) O homem com sua conduta, intervém no universo visível e, de algum modo, com
seus atos o transforma. Mas com suas boas ou más ações, o homem não só
influencia no mundo, mas também, transforma a si mesmo, e faz-se
moralmente bom ou mau:
 Junto a dimensão transeunte, pela qual influi no universo material e visível,
seus atos têm uma
 Dimensão imanente, pela qual o homem cresce em humanidade, ou de certo
modo se rebaixa e se auto destrói, une-se a Deus ou distancia-se d’Ele,
segundo essa única e íntima mutação de que é capaz o ser espiritual. Esta
dimensão imanente transcende de algum modo o tempo e possui um valor
de eternidade.

e) As ações humanas têm, ao mesmo tempo, valor temporal e valor eterno. Não
se pode separar no homem, por um lado, sua relação com Deus e por outro, sua conduta
profissional, familiar, política, econômica etc. A pessoa deve unir-se a Deus através de
todas as suas ações. E para isso, é preciso que suas ações sejam boas e se realizem com
boa intenção: não basta a intenção.

f) Perceber o valor de eternidade das ações humanas leva ao máximo apreço da


ordem temporal.

 Todos os atos do homem no tempo, precisamente, por ser caminho para a


união com Deus, têm valor para a eternidade: nenhum dos seus atos têm
valor exclusivamente terreno. A moral cristã se atreve a afirmar que, em
cada uma de suas ações, o homem, de algum modo, une-se ou se
distancia de Deus. Por isso, a moral cristã não se desinteressa dos assuntos
temporais. Pelo contrário, implica amar as realidades terrenas como caminho
40
para que o homem conquiste a eterna bem-aventurança e ajude aos demais a
conquistá-la.
 Tudo o que o homem realiza livremente, tem a ver com o bem ou com o
valor moral. Não existem, portanto, no homem, âmbitos ou dimensões pré-
morais.

3.2. A verdade da criação e as noções morais fundamentais

As noções morais fundamentais devem ser contempladas à luz da verdade sobre a


criação:

 Fim último. Sabendo que o homem é uma criatura querida pelo Criador
e feita à Sua imagem, a afirmação de que Deus seja o fim último aparece em toda
sua coerência e grandeza: a busca da união com Deus é o bem mais conveniente
à natureza e à profunda aspiração de quem é conforme à imagem divina.
 Liberdade. Por sua vez, a liberdade é-nos apresentada como aquela
perfeição da pessoa que a capacita para dirigir-se por si mesma à busca do
próprio bem, e encontra-lo é sua própria perfeição e, assim, adquire a felicidade
à qual tende por exigência de sua própria natureza. Graças a sua liberdade, o
homem pode buscar livremente a Deus, aderir livremente a Ele e alcançar
livremente sua perfeição plena.
 Lei moral. Em consequência, a lei natural não aparece como um limite para
a liberdade, mas como uma participação mais alta nos planos da Providência,
que só ao homem é dado conhecer e cumprir ativamente. A lei não se opõe à
liberdade, mas é a guia, possuída pelo homem, que o conduz a amar a Deus e aos
demais, e que é revelada na Escritura externamente.
 A consciência, consequentemente, não se vê como uma faculdade criadora
de normas, mas como a capacidade que o Criador concedeu ao homem, ao lhe dar
a inteligência, para descobrir o plano de Deus inscrito em seu ser e discernir o
que é bom do que é mau para o homem.
 As virtudes. Neste quadro, as virtudes não se apresentam como um conjunto
de atitudes que devem cultivar-se para melhor cumprir um conjunto de
mandamentos extrínsecos – que constituem o limite de nossa liberdade –, mas
como o aperfeiçoamento progressivo e interior do homem – em particular de
sua inteligência e sua vontade – enquanto permanece no tempo, como fruto de sua
boa conduta.
 O pecado. Por último, a perfeição com a qual fomos criados e pela qual Deus
governa o homem e os destinos da humanidade, leva a entender a gravidade do
pecado, como tentativa – que apenas pode dar-se numa vontade livre – de
introduzir a desordem na ordem divina, com dano e destruição de si mesmo e
dificultando aos demais conseguir seu próprio bem; o modo desordenado de agir
nos mergulharia no desespero, se não fosse precedido pela misericórdia de Deus,
que nos abre à conversão.

41
Parte III: Elevação à ordem sobrenatural e moralidade
Deus elevou o homem a uma ordem sobrenatural – constituiu-o como filho,
divinizou-o –, tornando-o capaz de uma bondade que excede por completo às forças e
aspirações da natureza criada: a bondade sobrenatural.

1. Participação na vida íntima de Deus: graça criada e presença de inabitação

O homem foi criado na graça e há uma continuidade entre natureza e graça, ainda
que não pertençam ao mesmo nível metafísico: seria um contrassenso.
 Criação. Criar é dar o ser a partir do nada: criando, Deus comunica sua
bondade a outros, pondo de certo modo as criaturas fora de si ao dar-lhes sua
consistência própria, que não impede que continuem em permanente relação de
dependência com o Criador, de quem participam com todo o ser e a bondade que
possuem.
 Elevação. Deus fez a criatura espiritual participante de sua vida íntima, de
sua vida divina, sem destruir sua natureza, mas elevando-a acima de suas
possibilidades e introduzindo-as em sua intimidade.

2. A bondade sobrenatural

Para ver em que consiste e como se desenvolve a bondade sobrenatural,


examinaremos a recriação que a graça realiza em nós e a consequente conduta que ela
exige.
A graça é o início de um modo novo e mais perfeito de vida. A fé ensina que,
pela graça, o homem participa – misteriosamente, mas de um modo real – da mesma vida
divina: somos divinae consortes naturae (2 Ped. 1,4). Com a graça santificante, que nos
regenera e vivifica, recebem-se também as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo.
Nossas potências operativas – de modo particular, o intelecto e a vontade – adquirem
assim a plenitude para agir conforme a essa nova vida.

Mediante a graça, o homem, que por sua natureza já é imagem de Deus, adquire
uma ulterior bondade primeira ou entitativa; já não é apenas uma criatura à imagem do
Criador, mas verdadeiro filho de Deus e possuidor de um título para gozar da visão
beatífica.

A esta nova dignidade da qual foi investido, corresponde um novo estilo de


conduta e de bondade moral: não deve agir de acordo com sua condição de pessoa
somente, mas também de acordo com sua dignidade de filho de Deus.
Esta recriação ou regeneração é fruto de uma intervenção direta de Deus que,
por consequência, gera uma nova presença de Deus na pessoa. Apenas Deus pode
deificar, comunicando uma participação em sua vida íntima, que excede a todas as forças
da natureza, de modo que a graça só pode ser causada na alma por uma peculiar presença

42
de Deus segundo sua Trindade: somos filhos de Deus em Cristo, o Verbo encarnado, por
obra do Espírito Santo.

A pessoa é regenerada e feita partícipe de uma vida nova, que não anula sua vida
humana nem se justapõe a ela, mas que a transforma intimamente, de modo não
observável diretamente – como também não se pode observar a alma – mas,
reconhecível pela novidade que opera na sua conduta, ou seja, pelas obras de fé,
esperança e caridade.

As ações boas, realizadas pelo homem na graça, possuem uma nova bondade moral:

 Inicia-se nesta terra uma união com Deus muito mais perfeita e plena do
que a que corresponde ao mero agir natural, e nos faz credores da bem-
aventurança eterna.
 Essa união se realiza através de todos os atos moralmente bons do homem
na graça e se manifesta na esfera temporal: a graça implica uma divinização de
toda a conduta terrena.

3. Características da dimensão sobrenatural da bondade de nosso agir

A vida da graça é muito mais perfeita que a vida natural, mas a possuímos mais
imperfeitamente. Ela não é parte de nossa natureza, mas é um dom gratuito que
transforma nossa natureza partindo do mais íntimo e onde só Deus pode agir. Daí as
peculiares características da dimensão sobrenatural da bondade de nossos atos.
Concretamente:
a) O início e o crescimento da bondade sobrenatural é sempre dom gratuito,
ou seja, não se obtém apenas com as próprias forças humanas, ainda que estas estejam
em jogo.
 Não possuímos a vida da graça de um modo inato, por natureza;
 Nem a adquirimos por nossa atividade,
 Mas correspondendo à ação sobrenatural divina em nós.
 Não se incrementa nem se aperfeiçoa diretamente através do bom
comportamento moral,
 Mas – quando com livre cooperação correspondemos a ela – merecemos que
Deus nos conceda maior graça.

b) A bondade sobrenatural pode crescer ilimitadamente não só em suas


manifestações operativas – na perfeição das obras – mas em sua mesma raiz e
fundamento, que é a graça.
 Na ordem natural, a perfeição é crescimento de bondade através da ação.

43
 Na ordem sobrenatural, a perfeição é aumento da participação na vida da
graça.
 As virtudes naturais ou adquiridas são atualização progressiva das
capacidades da natureza.
 As sobrenaturais são incremento da capacidade de agir bem por obra de
Deus mesmo.

Isto explica o motivo pelo qual a moral cristã não teme pedir a santidade a
todos os homens; nem se assusta em anunciar exigências de conduta heroica a pessoas
ainda medíocres, pois se o homem se abre à graça, ela o transforma: a sublimidade moral
das bem-aventuranças ou do mandamento da caridade é proclamada por Cristo não para
um grupo reduzido e seleto, mas para todos os homens dispostos a empenhar-se em tais
horizontes com humildade e abandono filial em Deus.

c) A bondade sobrenatural é mais difusiva que a natural. O bem por si


mesmo tende a comunicar-se. Os bens espirituais são mais comunicativos que os
materiais: um conhecimento ou uma alegria não apenas são bens especialmente valiosos,
mas que não se consomem ao distribuir-se, pelo contrário, conservam-se e enaltecem-se
ao dar-se a participar.
Por isso, não se comporta como cristão que não se preocupa pela salvação dos
demais. A fé católica assim ensina na doutrina da Comunhão dos Santos. Cada ação de
uma pessoa na graça reverte-se em bem para todos que compõem a Igreja e para a
humanidade inteira.

4. A moralidade no homem caído e redimido

Desde o pecado original, o homem nasce privado da graça e ferido também nas
forças de sua natureza, de modo que lhe é muito difícil viver conforme sua mera
dignidade natural.
Depois da queda e da Redenção, há dois novos aspectos no agir moral do
homem, que serão o objeto deste parágrafo:


Primeiro, o homem age com uma natureza ferida, que apenas a graça pode
sanar;

Segundo, que, em virtude da Revelação, toda a graça nos vem através da
Humanidade de Cristo, o que implica a missão da Igreja – continuadora da
presença visível do Verbo encarnado – na salvação dos homens.

4.1. As feridas do pecado original e sua pena

Quando nossos primeiros país usaram mal de sua liberdade, o pecado original
produziu a perda imediata da graça – do bem sobrenatural – além de uma ferida na
natureza humana.
44
A origem desta situação de nossa natureza conhecemos apenas pela fé; mas o
que nos ensina «a Revelação divina coincide com a experiência. O homem, de fato,
quando examina seu coração, comprova sua inclinação ao mal e se sente circundado por
muitos males, que não podem ter origem em seu santo Criador»35.

O homem caído é incapaz, com suas forças apenas, de viver como filho de Deus
e também de cumprir integralmente a ordem natural.

Pela culpa original, os homens nascem privados da graça e inclinados ao pecado.


Isto não significa que a capacidade de fazer o bem tenha sido totalmente destruída. O
homem pode sem a graça realizar obras boas – na ordem natural –36, mas é para ele
impossível na prática usar sempre bem de sua liberdade37. Suas forças não estão
corrompidas, mas sim diminuídas: pode evitar cada pecado mortal, mas não consegue
evitar a todos38.
Concretamente, a diminuição das forças naturais se manifestam nos chamados
vulnera naturae (feridas da natureza), dos que cada homem tem experiência:
a) A malícia ou inclinação da vontade ao mal. Esta malícia se manifesta na
tendência ao orgulho e ao egoísmo, opostos ao amor de amizade, onde está o bem da
pessoa; na propensão a rechaçar a ajuda de que necessitamos para fazer o bem;
b) A ignorância entorpece a inteligência, especialmente para o conhecimento
moral; não implica simples ausência do conhecimento, mas uma certa resistência diante
da verdade no que tem de princípio ao qual deve submeter-se;
c) A “infirmitas” ou debilidade ante o esforço requerido pelas boas obras;
d) A concupiscência ou afã desordenado do prazer: mostra-se na exagerada
atração pelos prazeres e bens temporais, obscurecendo a inteligência para apreciar a
ordem com a qual é lícito usá-los e tirando forças da vontade para querê-los apenas na
justa medida.

A graça cura nossa natureza, ainda que sem apagar totalmente suas feridas.

 A graça que Cristo nos conquistou na Cruz devolve ao homem a vida


sobrenatural e, por sua vez, restaura o dano causado em sua natureza pelo pecado,
ainda que não completamente. As vulnera naturae coexistem no cristão com a
vida da graça.

35 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n.13.


36 Cf. SANTO TOMÁS, S.Th., I-II, q.109, a.2, c.
37 Cf. SANTO TOMÁS, In II Sent., d.28, q.1, a.2, sol.
38 Cf. SANTO TOMÁS, S.Th., I-II, q.109, a.8, c.
45
 Sem a graça, o homem ferido é incapaz de evitar todos os pecados mortais;
com a ajuda da graça, pode evitar todas as culpas graves, mas não todos os
pecados leves.
 Enquanto a ferida do pecado original é um mal da natureza – acompanha
todos os homens por descenderem de Adão – a graça da Redenção é um bem
pessoal que requer nossa correspondência.

4.2. A conduta moral do homem novo em Cristo

Apenas em Cristo o homem é capaz de conhecer-se e viver plenamente segundo


sua dignidade. A vida moral cristã passa sempre através de Cristo e de seu Corpo místico,
que é a Igreja.
a) A bondade moral, identificação com Jesus Cristo
A moral que surge do Evangelho se concentra ao redor da pessoa mesma de Jesus
Cristo. A moral cristã não pode reduzir-se a um código de obrigações e de proibições.
Consiste principalmente no aderir à pessoa mesma de Cristo, partindo de sua
obediência livre e amorosa à vontade do Pai.

Seguir Jesus Cristo é o fundamento essencial e original da moral cristã

Depois da queda e da redenção, toda a graça que chega aos homens provém de
Cristo (cf. Jo. 1,16). Isto significa que a divinização, que é união pela graça com Deus
Uno e Trino, seja através de Cristo, e pela progressiva identificação com Ele, que nos une
ao Pai e é obra do Espírito Santo. É a Trindade quem nos faz filhos de Deus.

A vida da graça é, no homem histórico, uma participação na graça criada da


alma de Cristo, que nos vem através de sua Humanidade.

A teologia explica tal afirmação com uma comparação que tem um claro
fundamento bíblico: assim como pela geração carnal participamos da natureza de Adão,
pela regeneração espiritual participamos – de um modo mais pleno ainda – da vida mesma
de Cristo que nos faz filhos de Deus.
Crescer na graça e santidade é, por conseguinte, identificar-se
progressivamente com Cristo, até ter seus próprios e mesmos sentimentos.
Cristo é o princípio e modelo da atividade moral do cristão, tanto na ordem
sobrenatural como na natural.


É o princípio, pois sua graça nos dá a vida sobrenatural e cura as vulnera
naturae.
 É, também, nosso modelo. N’Ele a natureza humana foi assumida, não
absorvida, e mantém em inigualável plenitude todas suas perfeições.

46
 Daí que o seguimento e imitação de Cristo não se pode reduzir a uma cópia
externa de seus gestos, mas há de ser o resultado de uma transformação íntima,
de um abrir-se à comunicação e infusão de sua vida, que deve refletir em toda
nossa conduta.

b) a Igreja, comunidade de salvação, continuadora da presença e da ação de Cristo


Salvo o caso dos que sem culpa não conhecem o Evangelho e buscam com
sinceridade e boas obras a Deus39, a ação de Cristo nos chega através da Igreja que Ele
fundou, continuadora de sua presença visível entre os homens.

Cristo vive permanentemente em sua Igreja, em seus Sacramentos, em sua


Liturgia, em toda sua atividade. De modo especial, Cristo está presente entre nós pela
Sagrada Eucaristia.

A Igreja é, de fato, o Corpo místico de Cristo, que d’Ele recebeu o poder de


engendrar os homens para a vida divina e alimentá-los com sua Palavra e com os
Sacramentos.
Por isso, a conduta moral do cristão, membro da Igreja, vem ilustrada pelo
Magistério, enquanto sua verdade, e é tornada possível pelos Sacramentos.
 A vida cristã se origina, se nutre e se desenvolve na Igreja. Como em sua
vida natural, o homem é gerado e vive numa comunidade humana, também a vida
sobrenatural da graça nasce e se desenvolve numa comunidade: a Igreja. Nela o
homem é gerado – pelo Batismo – para a vida em Cristo e progressivamente se
configura com Ele.
 O cristão, para viver uma vida plenamente humana e de filho de Deus,
necessita recorrer aos Sacramentos. Quando uma pessoa, podendo, não se
aproxima com frequência dos Sacramentos, principalmente dos Sacramentos da
Eucaristia e da Penitência, inevitavelmente vai se distanciando do cumprimento
delicado da lei moral e acaba, frequentemente, por violá-la; não raramente tende
depois a imaginar que as exigências divinas são excessivas.
 O cristão deve ver no ensinamento da Igreja o ensinamento mesmo de
Cristo. A tarefa do Magistério é, efetivamente, transmitir, com divina autoridade,
a verdade da salvação trazida por Cristo: continua a função profética de Cristo no
anúncio da verdade40. A missão do magistério consiste, portanto, em transmitir a
Palavra de Deus em seu nome e com sua autoridade. Por tal motivo, a Igreja
recebeu o carisma da infalibilidade, que é o carisma da fidelidade à verdade. Os
fiéis, por sua vez, são inclinados pela graça a aderir aos ensinamentos da Igreja,
já que o Espírito Santo, enquanto assiste o Magistério no propor a doutrina,
ilumina internamente os corações dos fiéis, convidando-lhes a prestar seu
assentimento.

39 Cf. CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium, n. 16.


40 Cf. CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Dei Verbum, nn. 7-10; Const. dogm. Lumen
gentium, n. 25.
47
c) Cristo e as noções básicas da moral
Se o conhecimento e o amor de Deus já se manifestava como o último fim
conveniente à natureza humana, a intimidade com Deus Uno e Trino, que é o fim
sobrenatural ao qual o homem foi gratuitamente chamado, é-nos apresentado como o
cume da generosidade de Deus, que quer que os homens sejamos seus filhos e
participemos de sua eterna bem-aventurança. Apenas este fim, que Cristo nos revelou,
desvela a imensa dignidade de cada pessoa humana, a grandeza de sua vida.
A partir da perspectiva da bem-aventurança, que a graça inicia nesta vida,
penetramos em nova profundidade as restantes noções básicas da moral.

 A liberdade se mostra como o autodomínio que capacita para deixar-se


conduzir pelo Espírito Santo e Cristo nos ensina que o melhor uso da liberdade é
a caridade – o totalizante amor a Deus e ao próximo – que se realiza na doação e
no serviço. Para tal liberdade é que Cristo nos libertou (cf. Gal. 5,1)
 A Nova Lei não só renova o dinamismo da natureza, mas também o prolonga
com a graça, aperfeiçoando-o mediante a guia externa da Escritura, Tradição e
Magistério.
 A consciência, mostra ser a voz de Deus não apenas porque a inteligência
do homem é uma participação da luz divina que o permite conhecer a verdade de
seu ser, mas porque o conhecimento eficaz e a atuação plena dessa verdade tem
lugar apenas por obra do Espírito Santo.
 As virtudes sobrenaturais e os dons do Espírito Santo aparecem como o
progressivo aperfeiçoamento da pessoa não pelas suas obras apenas, mas pela
íntima atividade das Pessoas divinas na alma.
 Por fim, o pecado, não apenas mostra toda sua maldade destrutiva – enquanto
priva da vida da graça – mas pela Redenção faz brilhar a misericórdia de Deus,
«aquela particular força de seu Amor que triunfa sobre o pecado e a infidelidade»,
e os precede, facilitando nossa conversão.41

Exercícios de auto comprovação

1. Explique em que sentido a criação é o fundamento da moralidade.

2. Explique o que significa a condição de “filho de Deus”.

3. Quais são as feridas do pecado original, e em que consiste a sua cura?

4. Descreva brevemente em que consiste a conduta moral do homem novo em Cristo.

41 JUAN PABLO II, Enc. Dives in misericordia, n. 4.


48
Tema 4: O fim último

1. Deus, o fim último do homem e de toda a criação;


2. O modo próprio em que o homem tende ao seu fim último;
3. O destino sobrenatural do homem;
4. Necessidade da graça e a universalidade da redenção;
5. Glória de Deus e felicidade do homem;
6. O último fim e o obrar humano.

Para fazer referência às regras morais que o homem deve observar, é necessário
saber qual é o seu destino, o sentido de sua vida e o fim supremo ao qual deve aspirar. A
moral não se limita ao problema do permitido e do proibido. E não se pode responder a
esse problema se antes não conhecermos a meta a qual nos dirigimos. Deus nos revelou
que essa meta ou fim sobrenatural consiste no conhecimento e no amor da Trindade, um
fim que não podemos alcançar com nossas próprias forças, mas sim com a graça. Nessa
união eterna com Deus realizamos nossa aspiração à felicidade.

Introdução

Antes de fazer referência às normas morais que havemos de observar, é preciso


responder à pregunta sobre o sentido da vida.

Todo homem aspira à felicidade, entendida não como prazer ou bem-estar material,
mas como plenitude e perfeição da pessoa.

É um desejo natural que Deus colocou no coração de todo homem para atraí-lo
até Ele, o único que pode satisfazer esse desejo (cfr. CEC, n. 1716ss.).

Não há oposição entre bem e felicidade, entre dever moral e desejo de felicidade.

A contraposição felicidade-dever só tem sentido para quem reduz o desejo de


felicidade à ânsia de bens exteriores. Uma felicidade baseada no amor de amizade, que
inclina ao dom de si, nada tem a ver com o egoísmo, mas responde àquela concepção de
pessoa humana que se inspira na revelação da Trindade: «Ser pessoa significa tender à
realização de si, que não pode cumprir-se mais que mediante um dom sincero de si.
Modelo de uma tal interpretação da pessoa é Deus mesmo como Trindade, como
comunhão de Pessoas»42.
A felicidade do homem não será plena sem que se encontre com a posse do fim
último ou bem supremo, ao qual aspira.

42 JOÃO PAULO II, Carta Apost. Mulieris dignitatem, n. 7.


49
Mas, qual é o fim último do homem? Qual é o nosso destino e como deve influir
em nosso operar para viver uma vida verdadeiramente humana, amar, ser feliz e fazer
feliz aos demais?

  
1. Deus, fim último do homem e de toda a criação

O conhecimento do fim último, ou seja, do objeto que se propôs ao nos criar – e


para cuja consecução, depois do nosso pecado, Cristo quis morrer na Cruz – é decisivo
para a orientação pessoal e a atitude que o homem toma diante da sua tarefa livre.
Constitui a primeira verdade iluminante do obrar moral.

O último fim, com efeito, não é somente algo a se conseguir no futuro, mas a raíz
de todo dinamismo existente nas criaturas: sua inclinação radical e em sentido de sua
perfeição.

1.1. O fim último do universo

A fé católica ensina que «Deus criou o mundo por sua bondade e virtude
onipotente, não para aumentar sua bem-aventurança nem para adquiri-la, mas para
manifestar sua perfeição pelos bens que reparte às criaturas»43. Deus, ao criar não pode
ter outra finalidade que fazer a outros participantes de sua bondade e neste sentido fez
todas as coisas para sua glória.
Para melhor ilustrar o sentido do ensinamento bíblico sobre a glória de Deus
como fim último da criação, convém analisar as noções de fim, bem e último fim, e a
relação que existe entre a glória de Deus e o bem da criatura.

1.2. Fim, bem e fim último

a) Em geral, fim é aquele bem pelo qual se faz algo, como por exemplo o fim
do médico é recuperar a saúde do paciente.

b) Por sua vez, a noção de bem é correlativa à de perfeição, porque a criatura


deseja algo enquanto o percebe como integrante da sua perfeição, e por isso age sempre
buscando o seu bem.
 Bem honesto ou bem moral verdadeiro: é o que se quer dentro da ordem moral,
por si mesmo.
 Bem útil: aquele que se quer em função de outro bem honesto. Se sua escolha ou
seu uso não serve ou não está ordenado à consecução de um bem honesto, sua
eleição aparece como boa, sem que realmente a seja.

43 CONCILIO VATICANO I, Const. dogm. Dei Filius, cap. I, can 5, DS 1805/3025.


50
 Bem deleitável é o que produz prazer, podendo seguir ao bem honesto ou ao útil,
e serve para aspirar e conseguir outros fins honestos e úteis. Busca-lo por si
mesmo seria uma desordem e não suporia nenhum benefício.

Qualquer bem criado deve querer-se sempre dentro da ordena da criação: alguns
por si mesmos – por exemplo, a pessoa e seus bens fundamentais – outros como meios
para um fim posterior; e todos em sua ordem ao último fim.

c) Fim último é aquele bem que se busca de tal maneira que não se refere a
nenhum outro bem, e todos os demais bens se referem a ele.
O único fim verdadeiro só pode ser o bem que é fundamento de todos os demais
bens, ou seja, Deus. Somente Ele é digno de ser amado com todo coração, com toda a
alma e com toda a mente (cf. Mt. 22, 37)
Os diversos bens criados: a ciência, a riqueza, etc., aperfeiçoam o homem se são
buscados ordenadamente segundo seu próprio valor, mas não quando se buscam como
meta que satisfaz todas as aspirações da vida.

1.3. Glória de Deus e bem das criaturas

O verdadeiro bem das criaturas é inseparável da glória de Deus.

 Nenhuma criatura pode ser perfeita sem, ao mesmo tempo,


glorificar ao Senhor: à medida que aumente a perfeição da criatura, manifesta-se
em maior grau a bondade divina, e Deus é mais glorificado.
 Por isso, a perfeição própria do homem, a perfeição moral, revela
de modo particular a bondade divina e glorifica maximamente a Deus
 Esta perspectiva é profundamente otimista e plenamente conforme
à Revelação, que afirma que Deus, ao ordenar a si todas as coisas, quer a perfeição
– e com ela a felicidade – dos homens, também aqui na terra (cf. Mt. 19, 29).

2. O modo próprio em que o homem tende ao fim último

A criatura humana pode glorificar o Criador de modo mais perfeito que as


demais criaturas: unindo-se a Ele, pelo conhecimento e pelo amor.

 O homem está chamado a glorificar a Deus conhecendo-o e amando-o. Deus


busca sua glória na amizade do homem, em que este possa saber-se filho seu: por
isso colocou em seu coração um desejo infinito de bem, que só Ele pode saciar.
 Aqui se encontra o fundamento para superar a aparente contraposição entre
desejo de felicidade e dever moral: o desejo de felicidade, é, em sua raiz mais
profunda, desejo de Deus, de conhece-lo e ama-lo, e obedece-lo como a um Pai.

51
2.1. Algumas consequências do modo de glorificar a Deus, próprio da pessoa humana

a) Glória de Deus e glória do homem

À medida em que o homem cresce em perfeição moral, cresce em semelhança com


Deus e o glorifica de modo mais admirável, e, por sua vez, aumenta sua felicidade
subjetiva.

Quanto o homem mais conhece e ama a Deus, mais brilha nele a imagem de seu
Criador. Daí que quanto mais resplandece Deus, tanto mais reverbera a luz do homem;
quanto mais se exalta a Deus, tanto mais se exalta a dignidade humana.
«A glória do homem está radicalmente condicionada por sua relação com Deus:
somente consegue plenamente sua dignidade real realizando-se como imagem, e
unicamente é na verdade ele mesmo quando conhece a ama Àquele por quem
recebeu a inteligência e a liberdade»44.

b) Fim último e dinamismo da liberdade

O homem pode dirigir-se por si mesmo (livremente) ao fim último, ordenando


todos os seus atos à glória do Criador.
Para isso, Deus escreveu em sua natureza uma radical inclinação ao bem
absoluto ou desejo de felicidade.
O homem é capaz de amor de amizade: um amor generoso, à semelhança do
amor divino, donde se quer ao outro por si mesmo, porque se reconhece digno de ser
amado, que engendra a comunhão entre as pessoas.
O homem é despertado ao amor de amizade por alguém que lhe ama e lhe liberta
de sua tendência ao egoísmo; em último termo por Deus. «O homem é amado por Deus.
Este é a simplíssima e revolucionária mensagem que a Igreja é doadora ao homem»45.

O último fim do homem é o amor de amizade com Deus, que por sua vez é o
término a que aspira e o princípio de todo seu dinamismo.

c) A possiblidade de voltar-se o último fim

O homem pode, fazendo mal-uso de sua liberdade, não glorificando a Deus.


Quando atua assim rebaixa sua dignidade pessoal e frustra sua felicidade. O pecador, ao
pôr o último fim de suas ações fora de Deus, perde seu bem e felicidade próprios. Buscam
nas criaturas uma felicidade que estas não podem dar-lhe por si só.

44 JOÃO PAULO II, Carta Apost. Patres Ecclesiae, 2-1-1980, III.


45 JOÃO PAULO II, Exhort. Ap. Christifideles laici, 34.
52
2.2. A glorificação de Deus e os bens particulares que integram a perfeição do homem

1) O preciso valor dos vários bens particulares que integram a perfeição do


homem só se percebem à luz de seu destino: a união com Deus.
São elementos necessários ou convenientes à perfeição do homem na medida em
que são necessários ou convenientes à sua união com Deus: o desejo de saber, a amizade,
a preocupação com a justiça, a defesa da própria vida, têm sua medida no amor de Deus,
que inseparavelmente compreende o amor do próximo.
Estes bens nunca bastam, nem para a perfeição, nem para a felicidade do homem
(cf. Mt. 16, 26): não são somente os materiais, são inclusive os mais espirituais e
necessários, como a felicidade, a paz e as amizades humanas, pois o que principalmente
confere a plenitude e o amor de Deus. Por outra parte, se buscamos antes de tudo a Deus,
Ele nos promete que os outros bens, na medida que nos convenham, não nos faltarão.

2) É importante e necessário promover os bens humanos, no somente os


espirituais, mas também os materiais, para si e para os demais, como exigência de retidão
moral.

3) A chamada à plenitude da vida cristã, à santidade, se dirige a todos os que


creem no Cristo, qualquer que seja seu estado ou estilo de vida.
Toda a existência humana possui uma possibilidade e uma chamada a uma
dimensão mística, ou seja, a uma união cada vez mais íntima com Cristo.
Não precisamos identificar “vida mística” com fenômenos extraordinários. O
principal da vida mística se desenvolve e se realiza no ordinário da vida cristã.

2.3. Alguns erros atuais sobre o fim último

a) As várias formas de antropocentrismo que deformam a verdade cristã que


afirma o homem como centro da criação visível, tentando colocar o homem por si mesmo
como término definitivo das aspirações e obras humanas.
b) As diversas formas de materialismo, que diminuem ou negam a dimensão
espiritual do homem levam, igualmente, a prescindir de Deus como o nosso último fim.
O Concílio Vaticano II preveniu expressamente contra a tentação de qualquer
humanismo que exaltasse a dignidade do homem, negando a sua origem e dependência
de Deus. «A criatura, sem o criador, se destrói»46.

46 CONCILIO VATICANO II Const. past. Gaudium et spes. n. 36, && 2 y 3.


53
2.4. Aplicações práticas

É tarefa fundamental do apostolado cristão recordar que o homem foi criado por
Deus e para Deus. «A razão mais alta da dignidade humana consiste na vocação do
homem à união com Deus»47. Disso derivam consequências de suma importância para o
comportamento moral:

1. A grandeza e a dignidade do homem nunca serão entendidas e defendidas com


eficácia se se nega ou se esquece a sua relação com Deus.

2. O amor de Deus comporta ao máximo empenho por amar e respeitar a sua obra:
e, portanto, leva a apreciar e praticar todos os valores criados.

Somente o amor de Deus faz permanentemente forte e limpo os demais amores


do homem, dotando-os já na terra, de sua dimensão de eternidade. Enquanto a negação
de Deus desumaniza, sua afirmação e busca nos faz mais humanos.

3. O destino sobrenatural do homem

Deus criou o homem para fazê-lo participante da sua vida íntima. «Desde a sua
concepção o homem está destinado à bem-aventurança eterna» (CEC, n. 1703).

3.1. A revelação do fim sobrenatural

A realidade de seu destino sobrenatural não aparece claramente revelada ao


homem, senão no Novo Testamento, através de Cristo.
A fé nos ensina que «Deus, por sua infinita bondade, ordenou ao homem a um
fim sobrenatural, ou seja, a participar nos bens divinos que excedem totalmente à
inteligência humana»48.

Em concreto, o fim sobrenatural do homem consiste no conhecimento e no amor à


Trindade, como disse o Concílio de Florença49. Nosso Criador quis nos fazer capazes,
pela graça, de conhecê-lo e amá-lo em sua mesma vida íntima intratrinitária50.

47 Ibid., n. 19.
48 CONCILIO VATICANO I, Const. dogm. Dei Filius, cap. 2, DS 1786/3005.
49 Bula Laetentur caeli, DS 693/1305.
50 SAN AGUSTIN, De Trinitate, VIII, 17-18.

54
 Por virtude da graça, o homem inicia nesta vida sua união sobrenatural com
Deus, mas a alcança plenamente só na Bem-Aventurança. O fim último
sobrenatural só é obtido como tal em sua vida perdurável para a visão beatífica (1
Jo. 3,2).
 A bem-aventurança consistirá no conhecimento e amor à Divindade por si
mesma51, que nos outorgará uma perfeita felicidade; por isso, pode-se definir
como «a estável e interminável posse do bom perfeito, que satisfaz
completamente nossos desejos»52. Mas, teremos todos os outros bens humanos,
de modo conveniente.

3.2. Características do fim sobrenatural

a) O fim sobrenatural é gratuito.


A vida da graça é metafisicamente um novo dom de Deus, pelo qual «o homem
entra em uma vida nova, vem introduzido na realidade sobrenatural da mesma vida divina
e se faz morada do Espírito Santo, templo vivo de Deus»53.

b) A vocação sobrenatural responde a uma capacidade da natureza humana.


Há uma harmonia total entre a natureza humana e a vida da graça; esta não
destrói nem contraria nada de que é natural no homem, mas realiza uma aptidão sua para
receber de Deus essa perfeição superior: uma habilitas ad gratiam, que forma parte da
natureza humana, segundo uma expressão de Santo Tomás54.

c) A ordem natural não perde sua consistência.


Alguns pensam que o pluralismo atual das culturas exige silenciar o sentido
último da vida humana, particularmente a sua relação com Deus, para organizar a
sociedade, abandonando normas morais que haviam sido claras durante séculos, e que
nascem dessa relação e dessa transcendência. Essa perspectiva é equivocada, e em
nenhum modo conatural ao homem, pois em todo homem vive – por natureza – o
sentido de sua vocação transcendente, que funda sua libre abertura à ação da graça.
Nunca, portanto, é teoricamente correto renunciar à questão sobre o sentido
último da vida e do destino transcendente do homem. Por mais que esteja ferida, a
natureza humana tem uma aspiração a Deus e à ordem do amor de que daí nasce. É
necessário contar com isso sempre no diálogo com os que não possuem a fé.

51 Cf. BENEDICTO XII, Const. Benedictus Deus, 19.I.1336, DS. 530/1000.


52 D. PRÜMMER, Manuale Theologiae Moralis, vol. I, n. 21.
53 JUAN PABLO II, Enc. Dominum et vivificantem, n. 112.
54 Cf. Quest. disp. De malo, q. 2, aa. 11 y 12.
55
4. Necessidade da graça e universalidade da redenção

O homem alcança seu fim sobrenatural por obra da graça. Conhecer e amar a
Trindade Beatíssima excede às forças de toda natureza criada ou criável55.

A beleza e a grandeza da doutrina moral cristã dão lugar a essa pregunta crucial:
É possível praticar uma exigência moral tão elevada? Não nos coloca ante o impossível,
ante um ideal, que excede ao comum dos mortais?
A dificuldade se torna insuperável quando se compreende a moral unicamente
como um conjunto de obrigações impostas.
 O homem não pode imitar o amor de Cristo somente com suas forças; só
poderá chegar a uma plena imitação de Cristo em virtude de um dom de Deus.
Esse dom será precisamente a graça do Espírito de amor. Deus sempre dá,
qualquer que sejam as dificuldades e tentações, a possibilidade de observar
gozosamente seus mandamentos através do dom da graça, com a qual o homem
coopera mediante o exercício livre de sua resposta.
 Portanto, não se podem apresentar as exigências da doutrina moral cristã sem
ter em conta a graça, reservando-lhe o papel principal que lhe corresponde no agir
moral da pessoa humana.
 Além disso, a mesma experiência de nossa própria debilidade faz perceber a
necessidade da graça para responder convenientemente às exigências da condição
de cristão, e às próprias da vocação específica de cada um.

4.1. Universalidade do dom da graça

A necessidade da graça para alcançar a salvação se harmoniza com outra verdade


de fé: a vontade salvífica universal de Deus (cf. 1 Tim 2, 4)56.

Isso implica, como recorda o Concílio Vaticano II, que o Espírito Santo oferece
«não só aos cristãos, mas a todos os homens de boa vontade», a possibilidade de que «de
uma forma só por Deus conhecida», recebam a graça e alcançarem a bem-aventurança
eterna57.
«Quem ignorar sem culpa o Evangelho de Cristo e sua Igreja, não obstante busque
a Deus com coração sincero e se esforça, sob a influência da graça, em cumprir com
obras de sua Vontade, conhecida mediante o juízo da consciência, pode conseguir a
salvação eterna»58.

55 Cf. S.Th., I, q. 12, a. 1; Summa contra gent., III, c. 48.


56 CONCILIO DE QUIERCY, c. 3, DS. 318/623; CONCILIO DE TRENTO, Decr. De
iustificatione,c. 2 y ss., DS 794 y ss/1522 y ss.; CLEMENTE XI, Const. Dogm. Unigenitus Dei Filis, 8-IX-
1713, DS 1380/2430.
57 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 22.
58 CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 16.
56
Esta convicção de que a graça divina chega a todos os homens, embora não
conheçam a Cristo, não deve em absoluto diminuir a verdade sobre a missão da Igreja
e a necessidade do apostolado.

A primeira beneficiária da salvação que Cristo adquiriu com seu sangue é a


Igreja (cf. At. 20, 28), que foi feita colaboradora da obra da salvação. O Concílio
reclamou amplamente este papel e necessidade: ao mesmo tempo que reconhece que Deus
ama a todos os homens e lhes concede a possibilidade de salvar-se59, a Igreja professa
que Deus constituiu a Cristo único mediador, e que ela mesmo é sacramento universal de
salvação60.
É necessário manter unidas estas duas verdades:
 A possibilidade real da salvação em Cristo para todos os homens;
 A necessidade da Igreja em ordem a esta mesma salvação.

Ambas favorecem a compreensão do único mistério salvífico, de maneira que


se pode experimentar a misericórdia de Deus e a nossa responsabilidade. A salvação, que
sempre é dom do Espírito, exige a colaboração dos homens61.
Todo homem recebe de Deus a ajuda conveniente para chegar ao fim
sobrenatural. Cristo, que morreu por todos os homens (Cf. 2 Cor 5,15, Mt. 28, 18),
oferece a todos a sua graça, ainda quando, sem culpa própria, não a descobriram em sua
Igreja visível.

Santo Tomás explica que «todo homem com uso de liberdade pode conseguir a
vida eterna, já que faz o que está de sua parte, Deus não lhe nega a graça, pela qual
merecerá a bem-aventurança»62. Por isso, ou se dirige ao fim sobrenatural, ou se afasta
de Deus, e se não se enraíza a graça nele, será porque não fez o que lhe correspondia63.

4.2. Cristo, caminho universal de Salvação

59 Cf. Ibidem, nn. 14-17; Decr. Ad gentes, n. 3.


60 Cf. Const. dog. Lumen gentium, n. 48; Const. past. Gaudium et spes, n. 42; Decr. Ad gentes, nn. 7
y 21.
61 JOÃO PAULO II, Enc. Redemptoris missio, n. 9.
62 In II Sent., d. 33, q. 2, a. 2, sol.
63 Cf.
CONCILIO DE QUIERCY, cap. 3, DS. 318/623; CONCILIO DE VALENCE, c.2, DS
321/626; CONCILIO DE TRENTO, Decr. De iustificatione, c. 17, DS 827/1567.

57
A Humanidade Santíssima de Cristo, é, em virtude da obra da redenção, o
instrumento da Divindade para outorgar toda graça (cfr. Jo 1, 16): somente «per Ipsum,
cum Ipso et in Ipso» entraremos na vida sobrenatural64.

A graça com que alcançamos o fim sobrenatural vem sempre através de Cristo:
«a graça e a verdade procedem de Jesus Cristo» (Jo 1, 17). Nele temos sempre a fonte de
vida (cfr. Jo 7, 37). Em Cristo, e somente nele, os homens recuperam a filiação divina,
porque Ele nos revela e encerra a misericórdia do Pai.
Aos cristãos a graça lhes chega em sua vida na Igreja e particularmente
através dos sacramentos. Os demais homens recebem a graça também do Senhor, mas
por canais que não nos foram revelados. Cristo é para todos o Sacramento Universal de
Salvação, dele que permanentemente manam os sete sacramentos de sua Igreja.

Por isso, a moral cristã é uma moral sacramental, e tem como seu centro e raiz o
Sacrifício da Missa.

4.3. A perfeita glorificação de Deus em Cristo

A glorificação do Senhor alcança seu auge, dentro da ordem da criação, pelo


conhecimento e amor das criaturas intelectuais. Mas, em realidade, só culmina na
plenitude e na glorificação do Pai realizada por Cristo, e, continuada, em virtude da
ação do Espírito Santo pelos crentes de todos os tempos65.
Cristo, com sua vida, Paixão, gloriosa Ressureição e Ascenção aos Céus, oferece
ao homem a possiblidade de conhecer em sua plenitude o amor do Pai, em sua unidade
com o Filho e o Espírito Santo, o qual resulta na mais perfeita glorificação da Trindade
que o homem pode dar nesta vida e lhe abre a plena glorificação da bem-aventurança.
Nesse sentido, Santo Tomás salienta que a obra da redenção é mais excelente
que a da criação, e que a justificação de um só pecador glorifica a Deus mais que a criação
do universo66.
Esta perfeita glorificação de Deus em Cristo se manifesta em toda a vida
humana. A consciência da filiação divina e da misericórdia do Pai, mostradas em Jesus
Cristo e testemunhadas continuamente em nosso espírito pelo Espírito Santo (cfr. Rom 8,
15-16; Gal 4, 6), implicam e fazem possível um modo de viver ao mesmo tempo mais
humano e mais divino, que se manifesta em toda a conduta e em particular na gratuidade
do amor ao próximo, à semelhança da gratuidade com que somos amados.

64 O fato de que Cristo seja o único mediador, não impede que os que já gozam da bem-aventurança
possam ser mediadores precisamente em virtude da sua união com Cristo; e em modo particular isto ocorre
com a Santíssima Virgem.
65 Cf. C. CAFFARRA, Vida en Cristo, cit. p. 46; cf. Jn 1, 4 14, 11; 17, 1-5.
66 S.Th., I-II, q. 113 a. 9.
58
5. Glória de Deus e felicidade do homem

A felicidade é consequência da glorificação de Deus

O homem glorifica a Deus unindo-se a Ele pelo conhecimento e pelo amor,


uma união que a graça leva para a mesma intimidade divina, outorgando uma bem-
aventurança sobrenatural altíssima, que é participação do mesmo gozo inefável de Deus.
A doutrina da Igreja sobre o fim último – a revelação do nosso fim sobrenatural
– é a única resposta plena ao desejo de felicidade que todo homem experimenta.
O ideal moral do cristianismo não se contrapõe, pois, ao de felicidade: de
outro modo, seria desalentador, desumano. Pelo contrário, é próprio da moral cristã tomar
como ponto de partida dinâmico a força mesma do desejo de felicidade que, retamente
entendida, se revela em profundidade como desejo natural – vivificado pela graça – de
união com Deus, de amor de amizade com Ele, e por Ele com todos os homens. O desejo
natural de felicidade possui uma origem divina. «Deus o colocou no coração do homem
a fim de atraí-lo para Ele, único que o pode satisfazê-lo» (CEC, 1718).
Ao recordá-lo, a Igreja não faz mais que seguir os ensinamentos do Mestre,
precisamente no ponto de arranque do Sermão da Montanha, centro da Nova Lei para a
Tradição patrística-tomista, que são as bem-aventuranças.

A verdadeira felicidade não é fruto da posse, mais ou menos casual, de bens


temporais e exteriores: é um prêmio que segue intrinsicamente às nossas ações, quando
as dirigimos para a glória de Deus.

No Sermão da Montanha, particularmente ao anunciar as bem-aventuranças, o


Senhor dá uma resposta precisa sobre o modo de satisfazer ao desejo de felicidade,
que late no coração de todo homem.
Não buscar a glória de Deus, mas a própria glória é para o homem um
fracasso, e fonte de infelicidade: é “inanis gloria” vanglória. Quem se busca a si
mesmo, encontra seu próprio nada, o abismo de sua miséria, as angústias do egoísmo.
As bem-aventuranças são precisamente o caminho de purificação do desejo
humano de felicidade, de modo que se transforme sempre mais em um amor generoso e
dedicado, um verdadeiro amor de amizade com o Amigo, o único que nos dá um amor
sem traição, que sacia sem saciar.

6. O fim último e o agir humano

O fim último – o sentido autentico e definitivo da vida humana – tende e está


chamado a determinar os ideais do homem e a orientar toda a sua conduta.

59
Mas este pode resistir a reconhecer que Deus é seu fim, e então, inevitavelmente
tende a deformar a inteira perspectiva da vida, produzindo um desajuste em seus ideais e
na sua conduta. Como disse Santo Tomás, a intenção é o que move todo o querer, e o
princípio de toda intenção é o fim último, seja o verdadeiro último fim, ou aquele que -
ao rejeitá-lo – o homem coloca em seu lugar67.
Ainda que nossa atividade moral em cada momento se dirija a objetos concretos
e variados, o fim último, verdadeiro ou falso, influi sempre no agir. Por isso, o que
casa um se propõe como fim supremo da vida configura a sua personalidade, seu
pensamento e sua atuação moral.

6.1. Influência do último fim em todo ato humano

O homem age sempre, em última instância, em busca da felicidade ou do bem


absoluto.

A liberdade comporta o poder de dirigir-se por si mesmo ao fim último. Por isso,
todos os atos livres estão relacionados explícita ou implicitamente com o fim último.

Aquela meta em que se põe o último fim determina toda nossa escala de valores.

Ainda que todos os homens trabalhem sempre necessariamente por causa do


desejo de felicidade, nem todos situam o bem absoluto onde verdadeiramente está, em
Deus. Alguns convertem em fim último os bens criados, passando a considera-los como
bens absolutos. O bem tomado como absoluto influi então nas sucessivas eleições.
Isso não significa que o fim último esteja sempre presente de modo explícito.
O viajante não considera continuamente o término da sua viagem, mas esta é a razão de
cada um dos seus passos.

6.2. Os dois fins últimos possíveis para o homem: o amor de Deus e o amor desordenado
pela própria excelência

Em prática, o homem só pode propor-se como último fim ou Deus ou a própria


excelência. Todos seus demais fins se reduzem a estes.

Efetivamente, só há dois bens que podem apresentar-se ao homem como


absolutos, e por tanto, constituir-se como fim último: Deus e o próprio eu.

67 Cf. S.Th., I-II, q.1, a.4, c.


60
A alternativa entre o amor de Deus e do próximo e o amor egoísta de si, se
apresenta existencialmente, ao menos de ordinário, não como uma decisão lúcida e
pontual, mas como uma contínua batalha ou luta entre duas tendências da liberdade.
A reta eleição do último fim é sempre fruto e dom da iniciativa divina: a íntima
verdade do ser humano, que «só se encontra plenamente a si mesmo através do dom
sincero de si», é «uma verdade cujo conhecimento eficaz e plena atuação tem lugar
somente por obra do Espírito Santo. O homem aprende essa verdade de Cristo e a atua
na sua própria vida por obra do Espírito, que ele mesmo nos deu»68.
Alguns pontos merecem serem agora sublinhados, em visão de conjunto:
 O homem caído tende inevitavelmente ao egoísmo, e só aprende a
amar com amor de amizade pelo amor que gratuitamente recebe dos outros e,
em definitiva, de Deus;
À partir desta perspectiva se faz patente a íntima relação existente
entre a noção bíblica de glória de Deus como finalidade última da existência e a
noção também bíblica de conversão pela qual o homem deixa de colocar-se a si
mesmo como fim e começa a mover-se por amor de Deus;
 A reta orientação da vontade ao fim último se mantém através de
uma luta constante por fazer o bem, por reger-se pela lei do amor de Deus e do
próximo e não pela lei do próprio gosto;
 A rejeição do amor de Deus e do próximo e a eleição do amor
egoísta de si, não só tem lugar, ao menos não se inicia, como uma opção lúcida
entre ambos. Mais precisamente, o homem, pela debilidade da sua natureza
caída, cede às tentações do egoísmo, e sucessivamente tende a se esquecer de
Deus.

Que o homem tenha a vontade habitualmente ordenada a Deus ou a si mesmo,


não significa que esse fim habitual determine todos os seus atos.
 O justo pode cair em pecados veniais, naqueles que desordena
respeito a Deus, sem abandoná-lo como último fim; e o pecador pode realizar atos
bons, observando a ordem divina, sem que por isso tenha se convertido a Deus.
 Por outro lado, o homem in via pode trocar seu fim último habitual:
o pecador, com a ajuda da graça, pode converter-se, e o justo pode pecar
mortalmente, por um ato em que ama desordenadamente um bem criado que o
afasta de sua ordenação ao fim último verdadeiro.
É equivocado o posicionamento segundo o qual a reta ordenação ao fim último
só seria modificada por uma «opção fundamental», que comportaria a rejeição explícita
de Deus ou a lúcida decisão de viver para o próprio egoísmo69.

6.3. A estrutura temporal do amor ordenado

68 JOÃO PAULO II, Enc. Dominum et vivificantem, n. 59.


69 Cfr. JOÃO PAULO II, Exhort. apost. Reconciliatio et paenitentia, n. 17.
61
Nossa condição corpóreo-espiritual, de que depende nosso modo de estar no
tempo, comporta que a eleição sobre o último fim, a adesão a Deus, único fim real, ou
seu rechaço egoísta, se desenrole de ordinário na eleição de bens particulares.
A estrutura da ordem ou desordem do amor, não é um alternar-se de opções
fundamentais.
Além disso, por sua condição histórico-temporal, o homem decide sempre, em
razão do que já é, por sua própria história precedente e, simultaneamente, do que quer
ser em geral e com esse ato concreto: existe sempre uma tensão entre as disposições
habituais (virtudes e vícios, temperamento, humor, projetos e desejos) e o que faz e quer
em cada ato; entre sua disposição habitual e cada eleição concreta.
A retidão da vontade depende simultaneamente das disposições habituais e do
querer atual: nesse sentido nenhuma opção precedente vale por si mesma e toda «opção
fundamental» é alternável por um ato.

6.4. Fim último fim e retidão de intenção

O dever de procurar a glória de Deus se traduz na prática no que se chama atuar


com retidão de intenção que consiste em amar as coisas de tal modo que todas nos
conduzam, de algum modo, a Deus e nenhuma nos separe dele.
Para que se dê essa retidão não se requer que a inteligência esteja explicitamente
considerando a ordem e as ralações dos bens queridos, nem que a vontade esteja
conscientemente escolhendo-os: quando o amor ao fim último verdadeiro impregna a
pessoa, a retidão no concreto é uma redundância dessa disposição radical. Ao mesmo
tempo, o esforço por amar as coisas retamente, reforça e acrescenta a adesão do homem
ao bem verdadeiro.
Na vontade que busca a Deus se contém o mais alto amor ao próximo e ao
mundo. O que tem a intenção colocada em Deus, ama retamente todas as coisas, porque
em Deus se encontram compreendidos e exigidos todos os amores nobres, e os busca com
a peculiar força da grandeza do amor divino.
A retidão de intenção, que nos move a agir, tem umas manifestações práticas
que nos ajudam a reconhecê-la. Por exemplo:
 O desejo de conhecer e cumprir as próprias obrigações;
 Realizar o trabalho de modo que não leve a descuidar o trato com
Deus ou a caridade com o próximo;
 Na vida de piedade, a retidão de intenção se manifesta na
constância;
 Mostras claras da retidão de intenção, são, em geral, a simplicidade
no trato e na conduta e a sinceridade na direção espiritual.

62
Exercícios de auto comprovação

1. O que se entende por fim último?

2. O que nos ensina o Evangelho sobre o fim último do homem?

3. Por que é necessária a graça para que o homem alcance o seu fim último?

4. Como influencia o fim último no agir humano?

63
Tema 5: Liberdade, graça e agir humano

1. Natureza e divisão dos atos humanos;


2. Os princípios intrínsecos do ato humano;
3. Impedimentos da voluntariedade;
4. Elementos que determinam a moralidade dos atos humanos;
5. O mérito sobrenatural dos atos humanos.

Parte I: Natureza e divisão dos atos humanos  Noção do ato humano  Natureza e defectibilidade da
liberdade criada  Liberdade e responsabilidade pessoal  Divisões do ato humano Parte II: Os princípios
intrínsecos do ato humano  O conhecimento do ato humano  O consentimento da vontade  A unidade do ato
humano  O papel da afetividade sensível  As paixões em particular  A intervenção da graça no agir livre Parte
III: Impedimentos da voluntariedade  A violência  A ignorância  As paixões desordenadas  O medo
 As enfermidades mentais Parte IV: Elementos que determinam a moralidade dos atos humanos  O objeto
moral ou “finis operis”  O fim do ato moral ou “finis operantis”  Regras morais sobre o objeto e o fim  As
circunstâncias  Alcance ou extensão da moralidade Parte V: O mérito sobrenatural dos atos humanos 
Noção e classes de mérito.

Introdução

Uma vez estudado o fim último do homem, dedica-se este capítulo ao estudo dos
atos humanos, com os quais o homem se dirige ou separa-se do seu próprio fim.
Começaremos por analisar o ato livre e a liberdade, que a Revelação nos mostra
como capacidade de alcançar a própria perfeição segundo o plano de Deus; seguidamente,
os princípios intrínsecos do ato humano (ou seja, como intervém em nosso agir livre a
inteligência e a vontade, as paixões e a graça), e os impedimentos à liberdade da ação
(violência, ignorância, paixões desordenadas, medo, enfermidades mentais, ambiente
cultura e social etc.). Finalmente, veremos os elementos que determinam a bondade ou
maldade de nossas ações para encerrar com a análise do mérito ou relação de nossa
conduta com a vida eterna.

  
Parte I: Natureza e divisão dos atos humanos

1. Noção do ato humano

Entende-se por ato humano ou livre aquele que surge da vontade ilustrada pela inteligência.
Somente dele se predicam o bem ou o mal moral.

Somente se consideram especificamente humanas as ações que procedem de uma decisão


deliberada; as demais, é preferível chamá-las atos do homem, mais que atos humanos, pois não
procedem do homem enquanto homem. Atos do homem são, por exemplo, as funções fisiológicas,
as sensações, as reações, as reações involuntárias, os atos realizados em estado de inconsciência
etc.

64
Sempre que houver liberdade, o ato é moral.
Existe uma estreita correlação entre liberdade e moralidade:
a) A liberdade é o poder de dirigir os próprios atos ao bem próprio do homem, radicado no
amor de Deus e do próximo;
b) A moralidade é a proporção que esses atos guardam com esse bem. Portanto, qualquer
ato livre será necessariamente bom ou mal. O que se faz querendo, ainda que se trate de uma coisa
insignificante, é bom se está ordenado ao amor de Deus e do próximo, e mal em caso contrário.

1.1. Caráter imanente do ato livre

O agir humano tem um duplo aspecto:


O transitivo ou fático (facere);
O imanente ou moral (agere).
Agindo, o homem não só produz objetos ou influi sobre o mundo exterior (aspecto fático),
como também transforma a si mesmo, como dono de seus atos (aspecto moral), aproximando-se
ou distanciando-se de Deus.

Junto aos seus resultados ou consequências externas, todo ato livre imprime una marca no
sujeito, segundo sua bondade ou maldade moral (ou seja, pelo conteúdo objetivo de nossas obras e a
intenção que as valora).

O homem não só realiza ações boas ou más, como também, ao levá-las a cabo, torna-se bom
ou mau; em outras palavras, a pessoa, mentindo, torna-se mentirosa e, ao sacrificar-se pelos
outros, faz-se amiga sincera.

A moral ocupa-se deste aspecto imanente de nosso agir, em sua íntima relação com nossas ações
externas.

1.2. Estrutura do ato livre

O ato livre, que procede da vontade deliberada, é na realidade o ato da pessoa enquanto tal. Toda
a pessoa está implicada nele, o que permite esclarecer sua estrutura essencial, assim como entender a
variedade de formas que pode revesti-lo e a complexidade que, às vezes, tende a apresentar-se.

No homem, composto de alma e corpo, o aspecto instintivo da conduta – seus impulsos


e tendências vitais – vem tomado por seu dinamismo espiritual, fruto de seu
conhecimento e amor espirituais. Deste modo, em seus atos humanos – não puramente
reflexos ou involuntários – se estabelece um hiato entre a tendência e a ação: a tendência
é advertida pela inteligência e representada e valorada como meta, que a pessoa pode
querer, ou que constitui o ato interior da vontade, seguido pela mobilização de todas as
energias necessárias para executar a ação (ato exterior voluntário).

65
A intervenção da inteligência e da vontade, com seu domínio sobre as tendências, deve-
se ao fato que – por sua espiritualidade – a alma humana está aberta à totalidade do ser e
do bem, de modo que o homem pode conhecer seu fim ou perfeição, e ordenar a ele todos
os seus atos.
Esta estrutura essencial – própria de toda ação voluntária – torna-se mais complexa nas
chamadas ações eletivas, nas quais a meta tendencial aparece em competência com
outras. O ato interior da vontade requer, então, todo um processo de ordem intelectual
(deliberação, consentimento) para determinar a meta que deve prevalecer, que termina
na eleição ou decisão voluntária da pessoa.

Interessa sublinhar que é livre não só aquele ato humano no qual se dá uma eleição entre várias
metas possíveis, senão também aquele pelo qual se aceita ou se rejeita a única possibilidade que se
apresenta como boa para ser elegida.

2. Natureza e defectibilidade da liberdade criada

A liberdade é essencialmente domínio sobre os próprios atos.

O próprio do ato livre é o autodomínio, com a qual o homem se realiza. Em contrário, não
é essencial à liberdade a indiferença da vontade ante o bem ou o mal, e muito menos a
possibilidade de tomar partido pelo mal. Isso somente é uma manifestação de que a liberdade que
possuímos é imperfeita70.
O que define a liberdade é o poder de dirigir os próprios atos: é a capacidade da
criatura espiritual de mover-se por si mesma ao fim, de buscar e construir o bem que
convém a sua natureza, crescendo assim em perfeição; reside no domínio com que o
homem, graças a suas potências espirituais, ordena suas ações.
O fato de que o homem seja livre, não exclui que o mesmo tenha necessidade moral de
fazer o bem em que reside sua perfeição. Pelo contrário, a liberdade lhe confere a
capacidade de encaminhar-se por si mesmo para o bem.
O livre e o necessário não são realidades contraditórias nem mesmo se excluem: o único
que se opõe à liberdade é a necessidade de coação. Um ato é fruto da coação quando se realiza
em virtude de uma força exterior, que violenta as obras da pessoa. Então esse ato não é seu, não
pertence ao sujeito, posto que não o tenha realizado com domínio, mas sim forçado. Porém, isso
é muito distinto à necessidade moral – intrínseca à liberdade – de tender ao bem em que consiste
a sua perfeição, sem a qual o homem não possuiria um dinamismo livre, mas sim uma autonomia
sem sentido, absurda.

2.1. A finalidade da liberdade

A liberdade tem como fim que o homem possa amar ou, em outras palavras, que ele possa fazer a
vontade de Deus.

A liberdade é capacidade de dar-se, como se deu Cristo, ao amor do Pai e dos homens.

70 Cf. C. CAFFARRA, Vida en Cristo, cit., pp. 137 y ss.


66
Neste dom de si, para o qual a liberdade capacita, está precisa a perfeição da pessoa:
«ser pessoa significa tender livremente à realização de si (o texto conciliar fala de
encontrar-se a si mesmo), e para tanto não pode haver outro lugar senão mediante um
sincero dom de si (...). Dizer que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus
significa que foi chamado a ser para os outros, a converter-se em um dom, a dar-se»71.

2.2. A liberdade como autodomínio

A liberdade não é indiferença da vontade, mas sim autodomínio do homem, com o qual
cultiva sua própria perfeição temporal e eterna. É um erro bastante difundido conceber a liberdade
como uma espécie de neutralismo da vontade entre quaisquer possibilidades.

Não há oposição entre a liberdade e o dever de realizar o bem; nem entre a liberdade e a presença
de inclinações para o bem.

Seria pouco humano pensar que onde há amor ou atração, não existe a liberdade, e que esta
somente é compatível com a insensibilidade ou a indiferença. A liberdade é o poder de fazer as
coisas porque se quer, e, portanto, por amor do bem. Esse amor voluntário está favorecido no
homem por suas inclinações naturais – espirituais, psíquicas e sensíveis – que fazem com que se
sinta atraído pelos bens concretos que se apresentam a ele.
Precisamente porque o autodomínio não exclui, senão que se baseia nas inclinações
naturais, as verdadeiras relações entre lei moral e liberdade não são de contraposição, mas de
mútua complementariedade: «A liberdade do homem e a lei de Deus não se opõem, pelo contrário,
complementam-se», porque «Deus conhece perfeitamente o que é bom para o homem e, em
virtude de seu mesmo amor, lhe propõe seus mandamentos. A lei de Deus, pois, não atenua nem
elimina a liberdade humana, ao contrário, garante e promove-a.» (VS, nn. 17 e 35).

Conceber a liberdade como indiferença é um erro ligado ao esquecimento de que


nossa liberdade é criada. Nossas potências receberam de Deus seu dinamismo
próprio, para cooperar no plano da Providência, que tudo o conduz ao fim: a
inteligência está dirigida à verdade; e a vontade inclinada, pelo desejo natural de
felicidade, ao bem verdadeiro. Inclinações obscurecidas pela ferida do pecado
original, porém, que a graça sana.
Nossa liberdade está “finalizada”: é o autodomínio recebido como capacidade para ordenar
os próprios atos ao amor de Deus e do próximo.
O homem não é livre para dar-se um fim último, nem para dar a ele uma ordem distinta
da que recebeu. Sem dúvida, no exercício da sua liberdade põe em jogo a ordem ao seu fim último:
temos o tremendo poder de rejeitar a Deus para buscarmos desordenadamente a nós mesmos.
Uma eleição contraditória com nossa situação metafísica de criaturas.

2.3. A possibilidade de realizar o mal, sinal, mas não essência da liberdade humana
A liberdade do homem, enquanto está nesta vida, comporta o risco de eleger o bem aparente.

71 JUAN PABLO II, Litt. ap. Mulieris dignitatem, n. 7.


67
Mediante os bens que solicitam a sua vontade, o homem pode eleger alguns que satisfaçam
seu egoísmo, ao invés de querer os convenientes ao seu verdadeiro fim e felicidade.
Realizar o mal é deixar-se seduzir pelo bem aparente, é querer saciar o desejo de felicidade
mediante um afã desordenado de prazer, honra etc. O homem age sempre sob a necessidade íntima
do bem sem restrições, o Bem absoluto, porém nem sempre conhece – consciente ou
inconscientemente – onde se encontra e a ordem que os bens criados guardam com Ele; e ainda o
conhecendo, nem sempre o quer. E mais, por sua natureza ferida, está inclinado a eleger esse bem
aparente, que é o mal.
Por isso, necessita da ajuda da graça para buscar com constância o bem verdadeiro;
E, por isso mesmo, é tão necessária a educação da liberdade, que é a tarefa própria da
moral: dar a conhecer o bem e ensinar a vivê-lo.
O poder de eleger o mal não pertence à essência da liberdade, é, sim, manifestação –
sinal – de que temos uma liberdade que, todavia, é imperfeita: «pertence à perfeição da liberdade
o poder de eleger coisas diversas mantendo a ordem ao fim; mesmo que se incline para algo que
lhe aparta de Deus – nisso consiste o pecado – é uma imperfeição sua: os bem-aventurados e os
anjos, que já não podem pecar, são mais livres que nós»72.

2.4. Escravidão da liberdade pelo pecado

Somente nas ações retas a pessoa realiza a verdade do seu ser; em contraste, quando não age
retamente, atua seu próprio mal, destrói a ordem do próprio ser.

A verdadeira e mais profunda alienação do homem é a ação moralmente má: por ela, a
pessoa não perde aquilo que tem, mas perde aquilo que é, ou seja, perde-se a si mesma73.
Uma parte dessa autodestruição é o escravizar-se ao pecado: «Todo aquele que comete
pecado, é escravo do pecado». (Jo. 8,34).
Vejamos como se produz tal escravidão:
a) O essencial da liberdade, como vimos, é o domínio e não a ausência de inclinação ao
bem;
b) Pois bem, tanto o conhecimento da bondade que há nas coisas, como a atração que
exercem sobre a vontade, são aperfeiçoáveis, suscetíveis de incremento ou diminuição. Neste
sentido, a liberdade pode aumentar ou diminuir;
c) Ao comportar-se retamente, o homem cresce no conhecimento – ao menos
experimental – do bem, e reforça a tendência da sua vontade para ele. São fortalecidas as
disposições para agir com retidão; resulta mais fácil eleger esse bem, porque se vai tendo cada
vez mais clara a experiência do que nos aperfeiçoa. A liberdade, portanto, volta-se mais hábil;
d) Pelo contrário, a má eleição – o pecado – introduz um elemento de desorientação no
conhecimento e no querer. A inteligência fica confusa, debilitada a inclinação da vontade para o
bem, e o homem corre o risco de ver-se arrastado pelas paixões. Não perde certamente o domínio
sobre seus atos, porém é mais difícil que eleja aquilo que, verdadeiramente, conduz-lhe ao seu
fim e perfeição. A sua liberdade, a capacidade de decidir-se pelo Bem absoluto, fica constrangida
e dominada – escravizada – pelas tendências desordenadas a bens finitos, como o culto da própria
excelência, a ambição de possuir, a fuga do sacrifício, a ânsia de gozo sensível etc.

72 S.Th., I, q. 62, a.8, ad 3.


73 Cf. JUAN PABLO II, Audiencia General, 20-VII-1983, n. 4.
68
e) Em qualquer caso, não se pode esquecer que o pecador conserva sua liberdade
essencial, e suas ações continuam sendo imputáveis. Mais ainda, a mesma dificuldade que
encontra para comportar-se retamente, a diminuição de sua capacidade de conhecer e amar o bem,
é fruto do mau uso de sua liberdade: foi o homem quem provocou esse empobrecimento, e é ele
quem o mantêm; trata-se, em definitivo, de uma auto escravidão da qual é responsável, ao menos
enquanto não revogue as disposições desordenadas que livremente contraiu.

3. Liberdade e responsabilidade pessoal

«A liberdade torna o homem responsável por seus atos, na medida em que estes são voluntários»
(CEC, 1734).

Todo ato livre é imputável ao sujeito que o realiza, que, portanto, responde a ele. Imputar
é atribuir algo a alguém, e, mais especificamente, consiste em reconhecer que tal fato foi causado
por essa determinada pessoa. Os atos livres são justamente imputados a seu agente: são seus,
pertencem-lhe, sem seu querer não se haveriam produzido. Daí que a cada um se reconheça o
mérito ou demérito que resulta do seu comportamento.
A imputabilidade, sem dúvida, é uma consideração mais jurídica do que moral: na moral,
antes da imputação, está a transformação mesma do sujeito pelos próprios atos. A
responsabilidade abarca antes de tudo a própria transformação, fruto do caráter imanente de
nossas ações e, em segundo lugar, os resultados externos de nossa conduta.
O agente livre é a causa da totalidade da sua conduta, quem determina o que faz e o fim
ao qual se ordena, e – com ele – em que tipo de pessoa ele mesmo se transforma
progressivamente. Por isso, deve não só dar razão de seus atos, senão reconhecer que é tal como
quis ser.
A liberdade segue a responsabilidade como assunção do próprio crescimento ou degradação
e como dever de dar conta de quanto resulta de nossas ações. Liberdade e responsabilidade são
conceitos correlativos e inseparáveis: tanto alcança a responsabilidade, quanto chega a liberdade;
e vice-versa.

A quem deve o homem responder as suas ações?

Cada pessoa é responsável diante os demais e da sociedade, porém, em primeiro lugar, responde
perante Deus e a si mesmo.

Somos responsáveis diante dos demais na medida em que nossa conduta lhes afeta.
Porém, isso não deve obscurecer – porém, é o único modo de dar solidez às
responsabilidades humanas – nossa direta, total e primária responsabilidade perante Deus e
perante nós mesmos: a Escritura sublinha que o homem terá de prestar contas a Deus até da
palavra ociosa (cf. Mt. 12, 36).
Sem fundar, deste modo, a responsabilidade, é difícil entender a obrigatoriedade com que
se impõe o cumprimento de nossos deveres temporais, porque se não nos sentimos responsáveis
perante nós mesmos de quem somos, e a Deus se nega o direito a pedir-nos conta de nossa
conduta, quem poderá pretender uma autoridade semelhante? Evidentemente, ninguém.
À partir do ponto de vista de sua moralidade, o ato humano pode ser considerado sob
distintos aspectos. Os mais relevantes são os que examinamos a seguir:

69
a) Segundo se manifesta ou não ao exterior:
Os atos somente internos: são os que se desenvolvem somente no interior do sujeito,
como um pensamento, um desejo, um ato de fé etc.;
Os atos externos, que são levados a cabo com a intervenção – perceptível exteriormente
– dos órgãos externos; por exemplo, dar esmola, caminhar, roubar etc. Os atos externos
pressupõem sempre uma prévia decisão da vontade, ou seja, um ato interno; de outro
modo não seriam objeto da moral.

b) Segundo sua relação à potência:


Atos elícitos, que são os causados imediatamente por uma potência operativa. Por
exemplo, são atos elícitos da vontade o querer, o desejar, o odiar;
Atos imperados, que são os que uma potência operativa causa através da outra. Por
exemplo, são atos imperados pela vontade, os atos livres das demais potências, como
correr, atender, imaginar etc. Como todos os nossos atos livres são voluntários, todos são
elícitos ou imperados por ela.

c) Segundo a ordem ao fim último (ou adequação com a lei moral):


Atos bons: ordenados a Deus;
Atos maus ou pecados: contrários à ordem ou norma divinos;
Atos indiferentes, que por si mesmos não implicam nem ordem nem desordem a Deus,
como passear, sentar-se, cantar ou ficar calado etc. Na prática não existem atos concretos
indiferentes, posto que toda ação humana possui uma valoração moral ao menos pela
intenção que teve o sujeito.

d) Segundo a intervenção ou não da graça:


Atos naturais: os que se podem realizar somente com as forças humanas, como estudar,
construir uma casa, ajudar um amigo etc.;
Atos sobrenaturais, que procedem da cooperação da pessoa com a graça divina, como
os atos das virtudes teologais e, em geral, qualquer ato bom do homem na graça.

Parte II: Os princípios intrínsecos do ato humano

Veremos, em primeiro lugar, o papel do conhecimento, logo o do querer voluntário e, por


último, o que corresponde às paixões. Terminaremos com um estudo sobre a intervenção da
graça no agir humano, imprescindível para contemplá-lo na situação real do homem histórico,
criado em graça, caído e redimido.

1. O conhecimento no ato humano

Toda ação livre exige a intervenção do conhecimento intelectual.

70
Não é possível querer senão o que previamente se conheceu, ainda que seja obscuramente,
por via intelectiva: «nihi volitum, nisi praecognitum», diziam os antigos; e ensina a Escritura: «o
princípio de toda obra é a razão, por isso antes de cada obra devemos refletir» (Eclo 37, 16).

O conhecimento ou advertência requeridos para o ato moral, não é mais que o juízo do
entendimento prático necessário para a ação livre.

O entendimento prático é a mesma inteligência em sua função de regular a conduta.


O juízo do entendimento prático compreende tanto o que se realiza como sua moralidade,
ou seja, o juízo da consciência; e admite graus: a advertência pode ser mais ou menos explícita,
mais ou menos intensa.
A intensidade e perfeição da advertência influem no grau da liberdade e responsabilidade
do ato; em qualquer caso o comportamento livre não exige atender aqui e agora ao que se torna
em todas as suas circunstâncias e detalhes.

1.1. Tipos de advertência

A variedade de possíveis estados do conhecimento no ato moral induziu a Teologia a


estabelecer uma série de divisões da advertência, que não devem tomar-se como esquemas
rígidos, senão como orientadores para a valoração prudencial da moralidade das ações e a
progressiva purificação das intenções:

a) Atual e virtual
Chama-se atual àquela advertência, sobre a ação e sua moralidade, presente no
momento em que se realiza.
Virtual é aquela que – sem que se torne explícita no momento de agir – influi no ato
em virtude de um juízo anterior da inteligência, cuja eficácia perdura no querer atual da
vontade.

Por exemplo, fixemo-nos em uma pessoa que escreve à máquina uma obra
caluniosa: realiza seu trabalho – que é uma ação imoral – sem necessidade de
considerar em cada página que está caluniando e infligindo as exigências da
veracidade. Se agora escreve é porque antes decidiu fazê-lo, e quando desejar
interromperá a sua atividade. Escreve com advertência virtual; não há dúvida de que
essa ação é livre e responsável. Provavelmente, quem digitaliza amiúde o faz sem
advertência atual da moralidade de sua ação; porém esta é boa ou má na função do
juízo anterior da inteligência, que advertiu se devia levá-la ou não a cabo, porque era
um meio lícito ou ilícito para conseguir um fim legítimo ou não etc.

b) Plena e semiplena
A advertência chama-se plena quando a pessoa conhece com substancial integridade o que
está fazendo e o seu valor moral;
Chama-se semiplena quando falta essa integridade substancial da mente no ato. Por
exemplo, esta última é a que tem uma pessoa sonolenta, ou sem uso completo da razão
etc.
71
c) Distinta e genérica (ou confusa)
Esta distinção não se funda na integridade, senão no detalhe com que se adverte o ato e a
sua moralidade.
Quando se percebe clara e detalhadamente, falamos de advertência distinta (ou
seja, que distingue). Por exemplo, quem satisfaz uma dúvida sabendo porquê e de que
modo lhe obriga a justiça e/ou a magnanimidade etc.
Na advertência genérica, o sujeito se dá conta de que tal ação é boa ou má, e
gravemente boa ou má, porém não distingue exatamente sua moralidade específica.
Por exemplo, quando alguém lê um livro de doutrina errônea e percebe que lhe traz danos;
adverte claramente que prosseguir a leitura não é bom, senão mal e, de algum modo,
grave, ainda que – pelo motivo que seja – não perceba como próprio dessa ação ser uma
ocasião próxima de pecar contra a fé.
A advertência genérica não deve se confundir com a consciência duvidosa: na primeira, a
pessoa não duvida sobre a maldade ou bondade da ação; simplesmente não concretiza com
precisão a espécie moral do ato.
1.2. Regras sobre a advertência

a) Para que um ato possa considerar-se humano e, portanto, moralmente responsável, é suficiente
a advertência virtual.

Outra coisa resultaria ilusória; assim, por exemplo, quem pensar que somente se reza uma
oração quando se tem advertência atual de todas as palavras se obrigaria a recomeçar
continuamente sua oração.

b) Para que um ato seja bom ou mal basta a advertência genérica de seu caráter moral.

Nossa inteligência nos dá a conhecê-las como são em si, e, portanto, em sua verdade e
bondade; conhecimento que se traduz na consciência daquilo que é bom ou mal.
A advertência genérica é suficiente para a imputabilidade moral de uma ação. Quem atua
nessas condições sabe se sua conduta está ordenada ou não, é boa ou má, grave ou leve. Se não
fosse assim, então teríamos que falar de inadvertência ou de advertência semiplena. Portanto, é
responsável da bondade ou malícia do que atua. Não saberá se aquilo cai no campo da caridade
ou da justiça, porém sim que atua reta ou distorcidamente, desde o ponto de vista moral.

c) Para o pecado mortal necessita-se sempre advertência plena, ainda que seja virtual e genérica.

O pecado mortal, ou conversão desordenada às criaturas que nos separa de Deus, requer o
uso substancialmente pleno da liberdade; e, portanto, da parte do conhecimento, uma advertência
plena74. Não é necessário, absolutamente, que a mente pense in actu no caráter gravemente
pecaminoso da ação (quer dizer, que tenha advertência atual), nem que distinga com precisão a
espécie moral do ato (ou seja, que a advertência seja distinta).

74 Cf. JUAN PABLO II, Exhort. apost. Reconciliatio et paenitentia, n. 17.


72
Não deve confundir-se a advertência plena com a consideração lúcida e expressa
de que se está ofendendo a Deus em matéria grave. Este último, não é necessário para
que haja pecado mortal; ainda que acrescente uma malícia ulterior. Para pecar
mortalmente basta consentir com plena advertência em uma conduta que por si se
opõe em matéria grave à lei de Deus75.

A advertência semiplena ainda que insuficiente para o pecado mortal, não suprime
totalmente a liberdade e a responsabilidade das próprias ações. Daí que uma ação que, em
condições de plena advertência, tivesse sido pecado grave, seja então culpa leve.

2. O consentimento da vontade

O consentimento é o assentimento voluntário da pessoa em querer o bem – real ou aparente – que


a inteligência lhe apresenta.

O estudo do consentimento está, pois, intimamente ligado ao da advertência, que é uma


condição prévia e indispensável.
O consentimento não se reduz a uma mera redundância do advertir, pois a vontade pode
querer mais ou menos intensamente, ou não querer, o bem – real ou aparente – que a inteligência
– com o concurso da afetividade sensível – conhece.
São diversos os momentos ou passos que podem integrar-se a um ato livre. Sem dúvida, os
componentes essenciais são dois: o juízo da inteligência e o consentimento da vontade, que se
entrecruzam e informam mutuamente no consentimento.
O consentimento ou decisão da vontade se manifesta no comportamento pelo qual opta
a pessoa, de modo que – a menos que interfira um obstáculo a ação voluntária: violência,
ignorância inculpável, enfermidade mental, paixão que priva do uso da razão – toda pessoa quer
o que faz.

2.1. Divisões do consentimento

Segundo os diversos modos no qual a pessoa adere voluntariamente ao bem apresentado


pela inteligência, fala-se de distintos tipos de consentimento ou formas do ato voluntário, que não
devem ser vistos como esquemas rígidos, mas sim como ajuda para facilitar o juízo prudencial.

a) Consentimento perfeito e imperfeito


O consentimento é perfeito quando a vontade adere plenamente ao bem – real
ou aparente – que lhe propõe a razão. É o modo próprio de agir do homem em
condições normais.
Em contraste, o consentimento é imperfeito, se a vontade adere ao objeto
somente de modo parcial: bem, porque houve uma advertência semiplena, ou porque a

75 S.C.D.F. Decl. Persona humana, 29-XII-1975, n. 10. Doctrina reafirmada, frente a la reiteración
de errores al respecto, por el Santo Padre en la Exhort. apost. Reconciliatio et paenitentia, n. 17.
73
vontade mesma não acabou de querer plenamente o ato. Por exemplo: juízos temerários,
que não se combatem com fortaleza e tampouco se acabam de aceitar.

b) Voluntário direto e indireto. Voluntário “in causa”


É voluntário direto tudo aquilo desejado pela pessoa como objeto imediato do
próprio ato. Por exemplo: o roubo na ação do ladrão etc.
O voluntário indireto é aquele que é desejado não por si, senão por razão de outro
bem que se busca ou de um mal que se trata por evitar; ou seja, é algo livremente querido,
porém por razão de outra coisa.
O voluntário “in causa” refere-se aos atos realizados em uma disposição de
liberdade diminuída, porém previamente querida, como os efeitos de um ato voluntário:
assim a conduta desagradável e brusca em família que se segue à sobriedade e se diz
desejada “in causa” pelo que se embebeda.

2.2. Regras sobre o consentimento


a) Os atos são morais na medida em que são voluntários.

O ato que se realiza sem intervenção do conhecimento, ou por pura violência, é involuntário.
Portanto, se há alguma voluntariedade, há também moralidade e responsabilidade, mais ou menos
plena segundo o seja o consentimento.
Para o caráter moral de nossos atos basta o consentimento imperfeito, que segue
a advertência semiplena, ou a advertência plena com aquiescência incompleta da vontade.
Para o pecado mortal é preciso plenitude de consentimento, pois uma desordem
grave e com graves consequências somente pode considerar-se realmente querida por
quem goza do pleno uso de suas faculdades. Essa plenitude não significa uma especial
lucidez, uma advertência atual e detalhada; nem tampouco a malícia direta da vontade.
Basta que esta consinta sem mais, ou seja, que verdadeiramente queira o ato.

b) Se é responsável das próprias obras a menos que haja mediado um obstáculo à sua
voluntariedade.

Às vezes podem surgir dúvidas a respeito do consentimento. Nos atos externos, essa dúvida
costuma versar principalmente sobre a gravidade do obstáculo (medo, violência, ignorância),
porque uma vontade que chega ao ato externo é plena. Nos atos internos, a margem de dúvida é
maior porque não é tão fácil discernir até onde se chegou o império da vontade. Em qualquer
caso, haveremos de estudar os elementos de juízo disponíveis sobre a plenitude do conhecimento
e do assentimento da vontade.
Para ajudar a discerni-los, pode-se ter em conta as seguintes características:
Em pessoas de consciência delicada, ordinariamente, se há dúvida sobre a
plenitude do consentimento à ação gravemente desordenada, haverá pela presunção de
que não houve culpa mortal, ainda que não se exclua a culpa leve.
Em contrapartida, com as pessoas de consciência laxa ou endurecida, a presunção
é primeira. É a consequência de que o homem tende a advertir com clareza se consentiu
plenamente, quando se trata de uma mudança radical em suas disposições; porém, não o
adverte com igual facilidade quando se trata de algo que faz habitualmente, bem ou mal.

74
Além do mais, sempre que interfiram sinais de falta de plena advertência
(sonolência, embriaguez não culpável, perda parcial do uso da razão), há que presumir
que o consentimento foi imperfeito;
Se alguém se propõe realizar um ato que podia executar facilmente e não o faz,
se se trata de uma ação má, presume-se que não consentiu perfeitamente ao desejo, ainda
que possa haver consentimento imperfeito e, portanto, culpa venial; se se trata de um bem
proposital, mostra com isso que seu querer era imperfeito, porque o pleno – se não há
obstáculos – mostra-se em obras;
A respeito dos pecados de pensamento, é preciso compreender o modo com que
se lutou contra os mesmos: se não houve luta, haverá de presumir pleno consentimento,
como sucede quando alguém se abandona por completo a pensamentos ou imaginações
imorais, ainda que logo o lamente; se foram colocados meios para lutar, haverá de
presumir, ao contrário, que não houve consentimento pleno, ainda que fosse imperfeito.
Por último, e com caráter geral, quando não foram colocados meios facilmente
acessíveis se presume, ao menos, consentimento imperfeito.

O Magistério recordou sua perene doutrina: se um ato é grave pela matéria, ainda que se
tenha cometido sob influxo de um hábito ou por paixão, «não se pode presumir, como regra geral,
a ausência de uma responsabilidade grave. Seria desconhecer a capacidade moral das
pessoas»76.

3. A unidade do ato humano

O ato livre é propriamente ato de toda pessoa. Não somente intervém a inteligência e a vontade,
bem como todos os seus dinamismos somáticos e psíquicos.

a) Em todo ato livre se entrecruzam em unidade o conhecimento intelectivo e o


consentimento da vontade. Isto é uma consequência da unidade da pessoa e da dualidade das
potências pelas quais age livremente: não é a inteligência quem adverte e a vontade quem
consente; mas sim, o homem quem consente e adverte, cada vez que realiza livremente uma ação.
b) O homem decide mediante a vontade, porém com base em todas as suas disposições e
inclinações; o querer voluntário é fruto do exercício simultâneo das várias energias dinâmicas
de seu ser, assentadas em suas inclinações naturais. Os atos livres não são obra de um querer
autônomo e absoluto, mas se enraízam em nossa natureza e na própria história pessoal.
c) Por isso, no ato livre influi tudo quanto influi na pessoa: os condicionamentos
materiais, as pressões, ajudas e solicitações do ambiente, nas características – também não
conscientes – da sua personalidade.

As ciências modernas do homem, especialmente a psicologia e a sociologia,


contribuíram com dados valiosos a este propósito, para entender e guiar a conduta
humana. De fato, essas ciências vêm confirmar que o ato livre não é uma realidade
isolada, mas sim que se inscreve na história pessoal, conquanto alguém o tenha feito
e lhe diga respeito. Com seus atos a pessoa modela-se a si mesma.

76 S.C.D.F., Decl. Persona humana, n. 9; cf. también JUAN PABLO II, Exhort. apost.
Reconciliatio et paetitentia, nn. 17-18.
75
d) A partir do ponto de vista da moral, o que temos de sublinhar é que, no processo de
amadurecimento da pessoa e da sua liberdade, são decisivas a retidão de intenção, querer o fim
último verdadeiro, a humildade e a sinceridade na direção espiritual. Evita-se assim a
complexidade interior: o deixar-se levar por motivos menos conscientes ou pouco retos, que
entorpecem a alma.

4. O papel da afetividade sensível

O homem não atua somente com a inteligência e a vontade, mas também se move com o
concurso da sua afetividade sensível: desejos, reações emocionais...; entusiasmo, alegria,
tristeza. Daí a necessidade de dedicar-lhe um espaço no estudo da conduta moral e de não a ver
unicamente como possível obstáculo ao exercício da liberdade humana – isso ocorre somente
no caso da afetividade desordenada – pois em si mesma é uma ajuda que Deus concedeu ao
homem, para facilitar-lhe o bom exercício de sua liberdade, conforme a condição corpóreo-
espiritual que lhe é própria.

4.1. Noção de paixão

Tradicionalmente a ética e a moral ocuparam-se das comoções da afetividade sensível com o nome
de paixões, entendendo por tais qualquer movimento do apetite sensitivo para um bem conhecido
pelos sentidos e apreciado como conveniente ou inconveniente.

Esse conceito inclui tanto os movimentos de atração ou de repulsa – desejos, impulsos,


rejeições, etc. –, como as reações emocionais que os integram: alegria, cólera, nostalgia etc.; que
amiúde são acompanhados de mudanças somáticas: que vão desde as mudanças fisiológicas até
os gestos e atitudes motoras. São como a expressão corporal do afeto interno: o sorriso de alegria,
as lágrimas de dor etc.
A paixão, porém, consiste na reação afetiva íntima, e não em suas manifestações
corporais.
Quando um tipo de reação passional tende a se estabilizar na pessoa, falamos de estados de
ânimo.
As paixões e estados de ânimo não são, no homem, movimentos meramente instintivos,
como nos animais. A vida espiritual influi e dá características próprias à nossa vida sensitiva
e vice-versa. Entre as potências intelectivas e os apetites sensíveis há relações muito estreitas,
porque o sujeito é único: a pessoa. Na prática, resulta, muitas vezes difícil separar os afetos
espirituais e os sensíveis.

4.2. Moralidade das paixões


As paixões não são de per si moralmente boas nem moralmente más, posto que o valor ético
não afeta senão aos atos que, de alguma maneira, são voluntários e deliberados. Não se pode falar de
maldade moral de todas as paixões, a não ser que se entenda por paixão algo contra a razão.

«As paixões não são, em si mesmas, boas nem más. Somente recebem qualificação
moral na medida em que dependem da razão e da vontade. As paixões são chamadas
voluntárias ou porque estão ordenadas pela vontade ou porque a vontade não se opõe a

76
elas. Pertence à perfeição do bem moral ou humano que as paixões estejam reguladas
pela razão» (CEC, n. 1767).

«Os sentimentos mais profundos não decidem nem a moralidade nem a santidade das
pessoas; são o depósito inesgotável das imagens e das afeições nas quais se expressa a
vida moral. As paixões são moralmente boas quando contribuem com uma ação boa, e
más no caso contrário. A vontade reta ordena ao bem e à bem-aventurança os movimentos
sensíveis que assume; a vontade má sucumbe às paixões desordenadas e as exacerba. As
emoções e os sentimentos podem ser assumidos nas virtudes, ou pervertidos nos vícios»
(CEC, n. 1768).
O homem há de ordenar, e inclusive dominar as paixões, ordená-las e fazer com que
sirvam para o bem total de cada pessoa; e com que lhe ajudem a lograr os fins que lhe são próprios,
sem permitir que as paixões tiranizem ao homem e lhe escravizem.
Em resumo, a moralidade das paixões será valorada em relação com o querer voluntário;
na medida em que a vontade as ordena ao bem moral do homem o permite que lhe apartem dele.

4.3. Influxo das paixões nos atos humanos


As paixões ordenadas preparam e contribuem com o reto querer da vontade; as desordenadas
dificultam e, quando são muito intensas, podem chegar a anular o juízo da razão.

Ainda que na linguagem usual se costume dizer que deformam o juízo da inteligência, isto
é certo somente quando são descontroladas, ou seja, desordenadas. Ao contrário, as reações
afetivas ordenadas contribuem para a lucidez da mente e o bom comportamento moral.
Geralmente, pode se dizer que por si mesmas as paixões tendem a facilitar o ato voluntário,
e o reforçam e aperfeiçoam. A alegria, por exemplo, ajuda a trabalhar com mais intensidade e
cuidado. Se, às vezes, assim não ocorre, é devido à desarmonia introduzida pelo pecado original
e agravada pelos pecados pessoais. Somente as paixões desordenadas tendem a dificultar o
uso da razão e o exercício da liberdade; diminuindo, se não são culpáveis in causa, a
voluntariedade e a responsabilidade.
Definitivamente, o importante é procurar orienta-las ao serviço do bem integral da pessoa.
«A vontade reta ordenada ao bem e à bem-aventurança os momentos sensíveis que assume; a
vontade má sucumbe às paixões desordenadas e as exacerba. As emoções e os sentimentos podem
ser assumidos nas virtudes ou pervertidos nos vícios» (CEC, 1768).

No mais, convém à natureza humana dominar os movimentos passionais, para


ordená-los e amar todos os bens em sua relação com Deus. Em contraste, é inumano
deixar-se arrastar pelas paixões, permitindo que obnubilem a razão.
Daí que a educação da liberdade pertença ao empenho por orientá-las; não se trata
de reprimi-las, mas sim de integrá-las em uma vida dirigida aos verdadeiros valores.
Não existe oposição entre paixões e vontade, mas complementariedade; a educação
da pessoa e de sua liberdade não se orienta a suprimir as paixões. Certamente, o
pecado original turbou essa harmonia, e a tornou, às vezes, difícil, porém não a negou
nem desfigurou. A ascética cristã dirige-se antes de tudo a orientar positivamente a
emotividade e a afetividade da pessoa para os verdadeiros bens humanos.

5. As paixões

77
Uma tradição secular as agrupa segundo sua referência ao apetite concupiscível ou ao
apetite irascível. Com estes termos, indicam-se dois tipos de tendências do apetite sensitivo:
As que se referem ao gozo do bem: concupiscível;
E as que se referem à sua conquista, ou seja, à agressividade: irascível.
Consideraremos as paixões e estados de ânimo, em seu entrelaçamento com os afetos da
vontade. Frequentemente ambos levam idêntico nome e o mesmo ocorre com as virtudes que
lhes moderam.
Os movimentos passionais costumam seguir e, ainda, transformar-se em afetos voluntários.
As paixões estão submetidas à razão e à vontade, e ordinariamente não podem desenvolver-se
sem o seu consentimento.
Os afetos espirituais facilmente despertam uma reação no apetite sensível.
Daí que seja conveniente estudar simultaneamente a afetividade sensível e a espiritual,
porque no homem suas paixões estão penetradas pela espiritualidade da alma, e a maneira de
expô-las há de refletir a continuidade existente entre o somático, o psíquico e o espiritual.

5.1. Paixões do concupiscível

a) Amor
Chama-se amor ao primeiro movimento de atração que o bem apreendido engendra no apetite:
é a inclinação atualizada do apetite ao bem e inclui em si os sentimentos de simpatia, estima, admiração.

Trata-se da primeira e mais radical das paixões. Todo movimento afetivo procede do amor
a algo ou a alguém. Quando se teme perder a vida, isso ocorre porque se ama; alguém se entristece
com a perda de um ente porque lhe ama; se alguém se alegra na companhia de um amigo, é porque
lhe quer bem.
Há um amor próprio do apetite sensitivo e outro próprio da vontade.
O primeiro, amor sensível, tem por objeto os bens que se conhecem através dos sentidos.
O segundo se refere especificamente aos bens espirituais (Deus, a verdade, a amizade, o
próximo etc.), e aos demais por referência a eles.
A causa do amor é o bem conhecido que atrai o apetite. Quando é conveniente ao homem
conforme o plano divino, dá lugar a um amor ordenador; se não, esse amor resulta desordenado.
Quanto mais perfeito é o bem e melhor o conhecemos, tanto maior tende a despertar.
O efeito do amor é a união com o amado. Por isso o amor dos bens verdadeiros aperfeiçoa
e o dos falsos bens avilta.

b) Ódio
É a reação de rejeição que o mal percebido, como tal, provoca no sujeito.

É um movimento de repulsa, que inclui os sentimentos de antipatia, repugnância, nojo; sua


causa é sempre o amor ou inclinação positiva para algo, pois se apresenta como inconveniente
ou danoso o que contraria um bem desejado.

78
Há um ódio ordenado e outro desordenado. O amor dos bens verdadeiros gera o ódio ao
mal verdadeiro e, em primeiro lugar, o ódio ao pecado. Em contrapartida, o amor dos falsos bens
traz consigo a aversão ao autêntico bem.

c) Desejo e aversão
O amor facilita e produz o desejo, que leva à busca do bem. A moral atribui a esta paixão
um significado mais restrito e preciso que o da linguagem corrente.
Desejo não é simplesmente sentir atração ou aspirar alguma coisa, mas sim querer efetivamente
possuí-la e alcançá-la.

Por isso, o desejo costuma traduzir-se em ação. De outro modo, tratar-se-ia de desejos
ineficazes ou veleidades, que, na realidade, não são verdadeiros desejos.
O ódio leva por si a um desejo contrário, que denominamos aversão, posto que conduz à
fuga ou ao afastamento – e ainda à destruição – do objeto que provoca essa reação passional.

d) Gozo
É a complacência no bem amado e já possuído.

O gozo autêntico se dá nos verdadeiros bens, pois somente neles descansa o apetite: os
gozos nos bens desordenados – maus – são passageiros e enganosos, atrás de si deixam o vazio.
A função do gozo é facilitar a continuidade no bem. O homem tende com veemência e mais
diligentemente à ação quando é prazerosa.
O gozo sensível se chama prazer; o espiritual, alegria.
O prazer sensível origina-se no desfrutar dos bens materiais, porém pode acompanhar
também o desfrute dos bens espirituais. Se os bens sensíveis se amam ordenadamente, tal
prazer é bom. Pelo contrário, a busca desordenada do prazer é má e degrada o homem.
A alegria é o gozo que é gerado antes de tudo pelos bens espirituais, porém também
por bens materiais; neste último caso é um movimento do espírito que acompanha o gozo
sensível e nos move à gratidão. A verdadeira alegria segue à posse dos bens verdadeiros:
os aparentes, dão somente um gozo passageiro. A fonte de máxima alegria é Deus, que é
o Sumo Bem.

e) Tristeza e dor
A dor ou tristeza é a reação causada pela presença do mal ou privação do bem conveniente.

Para evitar mal-entendidos no estudo moral da dor e da tristeza, temos que distinguir a mera
sensação dolorosa – independente da vontade –, da reação ou “estado de ânimo” que pode lhe
seguir.
O juízo moral dessa paixão depende – como em toda paixão – do amor de que provém e do
modo com que reage à vontade. Há uma tristeza boa, que provém da aversão ao pecado como
mal absoluto e dos demais males dentro da ordem devida. E uma tristeza má que provém do
amor desordenado de si mesmo, que leva a julgar como mal tudo o que lhe contraria.

79
5.2. Paixões do irascível

a) Esperança e desespero
A esperança é o movimento que provoca no apetite o bem custoso, porém possível.

Diferencia-se do desejo – que acompanha o amor de um bem distante e ausente –. A reação


passional tem em conta os obstáculos e, por sua vez, acredita poder vencê-los. Quando se julga
impossível alcançá-lo, produz-se o desespero.
Para saber se é ordenada a esperança, teremos que considerar duas coisas:
- Se é dirigida à verdadeiros bens, difíceis de alcançar;
- A razão na qual se aprova a confiança de consegui-los. Deus, bondade e poder infinitos, é
o fundamento mais radical de toda esperança e o próprio da esperança sobrenatural. A esperança
humana é reta quando, buscando bens adequados, apoia-se em forças humanas nobres e
proporcionadas: ciência, virtude, amizade etc.
É causa de esperança a grandiosidade do bem esperado e tudo aquilo que aumenta a
capacidade de vencer as dificuldades. Todos os poderes humanos são limitados e ninguém é
capaz de dar uma esperança plena à pessoa. Somente a amizade com Deus assegura conseguir o
fim último da vida, e dispõe de todo o necessário para lográ-lo: «Bem-aventurado o homem que
põe sua esperança no nome do Senhor» (Sal. 39, 5).

b) Temor
É a paixão que move a afastar um mal ameaçador que parece inevitável.

Como toda paixão, nasce do amor a algo: teme-se um perigo na medida em que ameaça um
bem amado. O temor modera a virtude da fortaleza e quando se apodera da alma, turba
especialmente a inteligência, dando lugar a um estado de ânimo, que se chama medo e influi
particularmente no uso da liberdade.
Com o temor se relaciona outro sentimento muito importante da pessoa: o pudor. É o
desassossego e certa repulsa que a pessoa sente por manifestar a própria intimidade e os próprios
valores, quando teme que não vão ser respeitados: um campo importante, embora não exclusivo,
refere-se à sexualidade.
O temor é ordenado ou desordenado segundo nasça do amor aos bens verdadeiros ou falsos.
O amor a Deus causa o temor de perdê-lo pelo pecado, e é uma grande ajuda para praticar o bem.
Por isso, é bom o temor ao pecado e também às penas eternas.
A causa do temor é a gravidade e iminência do perigo, e tudo o que diminui as forças para
rechaçá-lo. Por isso, a confiança exclusiva nas próprias forças – que sempre são limitadas –,
conduz, muitas vezes, a uma falsa esperança em triunfar contra o temor. O contrário ocorre com
quem confia em Deus e nos demais.

c) Audácia
É a paixão que leva a tentar superar os obstáculos que se opõem à execução do bem.

De algum modo, a audácia prossegue o movimento da esperança, pois quem confia em


conseguir algo que vale e é custoso, combate com vigor até alcançá-lo; opõe-se à força
80
paralisadora do temor; não é simples ausência de temores, senão capacidade de superá-los; é a
paixão própria do empenho confiado por conseguir o bem.
A audácia pode ser ordenada ou desordenada, como todas as paixões e afetos da alma,
segundo os bens aos quais se dirige e as causas em que se apoia. Seus movimentos são moderados
pela virtude da fortaleza, adquirida ou infusa.
São causa de audácia, em primeiro lugar, a importância do bem a que se tende; e além
do mais, tudo o que aumenta a esperança ou reprime o temor. É motivo de audácia a amizade
com Deus. Confiando nele, brota a magnanimidade pela qual se busca procurar o maior e melhor
bem para cada um e para todos. Também incrementam a audácia, a humildade e a retidão de
intenção, pois quem busca exclusivamente a vontade de Deus, sabe que tudo é para seu bem e
nada tem que temer.
Há uma audácia aparente, que nasce da inexperiência, da soberba e da presunção –
desconhecedora da própria debilidade – e leva a depreciar os perigos: é a temeridade. Com
frequência a temeridade, ante às reais dificuldades da empresa, se transforma em desespero.

d) Ira
É o movimento de repulsa do apetite perante os obstáculos que impedem, aqui e agora, alcançar o
bem.

Quando o mal é causado voluntariamente por outro, a ira leva a responder procurando
corrigi-lo ou simplesmente tentando causar-lhe dano: se a ira é reta, move ao desejo de querer
retificar com fortaleza e, se for necessário, com sanções adequadas; quando não é reta, induz ao
afã imoderado de vingança.
A ira que nasce ordenadamente de um amor reto, é boa; é má a ira desordenada, que
nasce de um amor desordenado. A indignação diante do mal verdadeiro e, em especial, ante a
ofensa a Deus, é prova de selo e de amor a Ele. Em qualquer caso, a ira deve ser sempre moderada,
encaminhada somente à remediação do mal e guiada pela misericórdia.

6. A intervenção da graça no agir livre

Desde o princípio, vemos que sem a ajuda da graça, não é possível viver uma vida cristã, nem uma
vida digna do homem; é imprescindível para seguir a Cristo e cumprir seu mandamento novo: «Imitar e
reviver o amor de Cristo não é possível para o homem somente com suas forças. Torna-se capaz desse
amor somente graças a um dom recebido» (VS, 22).

81
6.1. A graça recria a pessoa e a sua liberdade

A graça é um novo princípio de vida que, se o homem consente com a sua ação, transforma
o dinamismo da liberdade.
No tratado da graça, analisa-se com detalhe o que o homem pode ou não fazer com suas
próprias forças.
O alcance das forças do homem caído, sem o auxílio da graça, pode resumir-se nos
seguintes pontos:
É capaz de conhecer a verdade inteligível que cabe alcançar a partir das coisas
percebidas pelos sentidos (inclusive a existência de Deus), mas não as verdades referentes
à vida íntima divina e a sua gratuita participação em nós.
Com respeito à mesma ordem da criação, encontra dificuldade para conhecê-lo na sua
integridade, sobretudo enquanto as verdades, cuja dimensão moral é mais direta
(imortalidade da alma, certas exigências de conduta, relação do homem com Deus etc.);
Quanto às obras, pode realizar o bem, porém não amar estavelmente a Deus sobre todas
as coisas, nem, certamente, com amor de caridade; não pode merecer a vida eterna;
Por outro lado, ainda que possa evitar cada pecado mortal, não é possível evitar todos.

Com a graça, o homem

Pode conhecer em sua integridade a ordem moral;


Pode, em relação a si mesmo, evitar todos os pecados mortais e cada um dos veniais, porém
não todos, salvo especial privilégio divino;
Pode realizar atos sobrenaturais e merecer o aumento da graça e da vida eterna, porém não
o dom da perseverança final, porquanto in via perdura inevitavelmente a liberdade de rejeitar a
graça;
Porém, sobretudo pela graça, o homem é capaz de viver vida sobrenatural.
Em qualquer caso, o mais importante é a transformação – a divinização – que se realiza
na pessoa dócil à sua ação; a nova vida em Deus, sem a qual não se entende a novidade moral
cristã. Essa novidade de vida pode, inicialmente, sintetizar-se nos seguintes pontos:
1) A vida da graça constitui uma gratuita regeneração da pessoa que não somente a liberta
da sua escravidão das obras da carne, mas também a capacita com um agir que excede todas as
previsões humanas.

Surge assim o trato de intimidade com as Três Pessoas da Trindade Beatíssima, e


o afã de ordenar a esse amor toda a conduta: «Vê com que amor nos amou o Pai, que
não quis somente que nos chamássemos, mas que fôssemos realmente filhos de Deus»
(I Jo 3, 1). O Cristão logra então amar com o amor mesmo de Cristo: «Deste modo
se manifesta o rosto verdadeiro e original do mandamento do amor e da perfeição a
qual está ordenado; se trata de uma possibilidade aberta ao homem exclusivamente
pela graça, pelo dom de Deus, por seu amor» (VS, 24)

2) A ação santificadora e divinizante da graça assume a liberdade humana e não a anula: é


um novo princípio vital, que não age sem a correspondência da criatura.

82
Daí que, por uma parte, o homem possa resistir à graça já possuída e fazer o mal: «o
que recebe a graça, continua sendo homem, e como tal age, não por necessidade. Não
segue necessariamente o impulso da graça, como tampouco a reta ordem da natureza que
igualmente está ordenada ao bem -, mas age de acordo com a sua vontade livre»77.
Por isso, a transformação realizada pela graça na pessoa não é instantânea, mas conta
com o tempo; exige o abandono em Deus e o passar pela Cruz: esse morrer a si mesmo é
incompreensível para a carne, porém é a única raiz de segura fecundidade. Assim também
é compatível com o perdurar das debilidades, mas de modo que já não desanimam nem
se tenta dissimulá-las, e sim incitam a confiar mais e melhor, a lutar com maior amor.
Deste modo, pouco a pouco o coração do homem vai se alargando, crescem as ânsias de
amar a Deus e a todas as pessoas.

3) A caridade assume o papel do princípio motor da vida nova do homem. Por obra da
caridade, o conatural desejo de ser feliz se concretiza e transfigura no afã de unir-se a Cristo pelo
amor e de chegar, com Ele, por Ele e nele, ao trato íntimo com as três Pessoas divinas, guiados
pela fé e sustentados pela esperança.
4) Sob o império da caridade, toda a vida humana se diviniza: «As almas levadas pelo
Espírito Santo são iluminadas por Ele e se tornam também elas espirituais e enviam sua graça a
outras (...). Daí brota a alegria sem fim, a perseverança no Amor de Deus, a semelhança com Deus
e o mais sublime que se pode pedir: o endeusamento»78. É uma gozosa e total transformação da
pessoa.

Parte III: Impedimentos da voluntariedade

Os impedimentos da voluntariedade são os fatores que privam ou diminuem a integridade de algum


dos elementos essenciais para a liberdade do ato: ou seja, a ignorância, que se opõe ao conhecimento
necessária; a violência, que em diversos graus forçam a vontade; as paixões, na medida em que
obscurecem a razão e entre as quais tem especial importância o medo; enfim, os distúrbios psíquicos da
inteligência e da vontade, ou enfermidades mentais.

1. A violência

1.1 Noção
Violência é a pressão externa que força a pessoa para que atue contra sua vontade.

Para que haja violência, em seu sentido próprio ou completo, requer-se:


Que seja exercida por outro, pois ninguém pode causar-se violência a si mesmo;
Que se oponha ao querer do sujeito: se este cede ou colabora, já não se pode falar de
violência, ao menos perfeita.
A violência torna o ato involuntário e exime de responsabilidade moral.

77 SANTO TOMÁS, In II Sent., d. 4, q. 1, a. 3, ad 5.


78 SAN BASILIO, Liber de Spiritu Sancto, IX, 23.
83
Há uma outra espécie de violência, a moral: é a pressão que se pode exercer sobre uma
pessoa na base de promessas, ameaças, propaganda etc. Essa forma de violência – muito relevante
na prática: basta pensar no peso exercido pelos meios de comunicação, ou na difusão de certos
modelos de conduta imorais, que parecem quase obrigados – não suprime a voluntariedade do
ato. Ainda que possa constituir uma forma de pressão análoga ao medo, ao qual se podem aplicar
os princípios que a tal propósito veremos.

1.2 Regras sobre seu influxo


a) O consentimento da vontade não pode ser causa por nenhuma força alheia à mesma vontade.
O mesmo ato interno da vontade – o consentimento – nunca pode ser forçado, porque
mediante tal acontecimento a pessoa se move intrinsecamente a si mesma para o fim que quer.
Ainda no caso de que o sujeito sofra coação externa, nem por isso sua vontade há de dobrar-se;
pode interiormente rejeitar o que lhe é proposto. Por violência se pode impedir uma pessoa de
cumprir o seu dever: porém, essa omissão externa não é sua, nem lhe transforma nem lhe torna
responsável diante de Deus.

b) Os atos exteriores podem ser impostos por violência física, dando lugar à ações total ou
parcialmente involuntárias.

Quando a resistência exterior e a interior, ou a rejeição íntima, são totais, trata-se de uma
ação completamente involuntária e não imputável, posto que a violência anula a liberdade.
Anula-se totalmente porque a vontade não coopera em absoluto; na medida que há cooperação.
Ainda que o ato seja induzido por outro, será parcialmente voluntário: terá algum efeito imanente
na pessoa e lhe fará responsável diante de Deus.
A violência, como a violência física imperfeita, gera uma mescla de voluntário e
involuntário semelhante ao que produz o medo: por isso, as regras sobre seu influxo na moralidade
podem ser tomadas da experiência moral cristã em relação ao que descreveu e individuou em
relação ao medo.

2. A ignorância

2.1 Noção
A ignorância é carência de ciência em quem deveria tê-la.

Difere da nesciência ou simples falta de um conhecimento, em quem não tem porque possuí-
lo; assim, para um médico é nesciência ignorar o cálculo integral, porém ignorância não saber
quanto requer o cuidado da saúde de seus enfermos.
Enquanto a seus efeitos sobre a liberdade do ato, à ignorância se equiparam o erro e a
inadvertência.
O erro acrescenta à ignorância a aprovação como verdadeiro de algo que é falso.
A inadvertência, em contrapartida, é a falta do conhecimento requerido para a
plenitude da liberdade, que se produz respeito de um ato concreto e determinado, devido
somente a uma falta de atenção da mente.

84
O erro e a ignorância sobre as verdades éticas fundamentais procedem de culpa ou
negligência, não excluem de pecado, e são em si mesmos pecados.

Ante a verdade moral não cabe desentender-se, porque se trata de uma obrigação
que todos temos por natureza, estando ordenados ao conhecimento e ao amor de Deus
e do próximo. Ninguém pode legitimamente despreocupar-se de temas como o fim
último da vida, ou das exigências que dizem respeito ao amor de Deus e dos demais,
que dimanam da natureza humana. O homem pode sem culpa não chegar à verdade
moral em um ou mais aspectos, porém nunca se desentender de buscá-las sem incorrer
já – por isso mesmo – em uma desordem ética. Daí a gravidade do indiferentismo em
matéria moral e religiosa.

O pecado de ignorância tem graves repercussões morais, porque é causa de muitos outros
erros e culpas; e leva, além do mais, a não os valorar em sua real malícia. Daí que urja em
consciência a todo fiel cristão, o estudo das verdades principais da fé e da moral; e também o
difundi-las, de modo particular onde há confusão e, para muitos, resulta mais difícil sair de seus
erros.

2.2 Algumas divisões

a) Ignorância “iuris” e ignorância “facti”


A ignorância “iuris” é o desconhecimento da lei, divina ou humana, civil ou
eclesiástica; por exemplo, quando alguém não sabe que se deve jejuar em determinados
dias marcados pela Igreja.
A ignorância “facti” é o desconhecimento de alguns aspectos de ação que a tornam
boa ou má; por exemplo, comprar um objeto sem saber que é roubado.

b) Ignorância culpável e inculpável


Há ignorância inculpável quando se colocam os meios devidos e, apesar disso, não
se chega ao conhecimento da verdade. Para saber se foram postos ou não esses meios,
toma-se como critério o que costuma fazer os homens prudentes e de consciência reta.
Há circunstâncias em que se deve por maior diligência, pela gravidade do assunto, ou a
exemplaridade da pessoa. A ignorância inculpável se chama também invencível,
enquanto quem a padece não pode vencê-la e livrar-se dela, apesar dos devidos esforços
postos para alcançar a verdade.
A ignorância culpável – também chamada vencível – supõe que se pode e se deve
superar, ou seja, procede de negligência ou culpa do sujeito. Cabem vários graus:
Simplesmente vencível, quando se puseram meios incompletos ou
insuficientes.
Grosseira ou supina, quando a ignorância se deve à negligência
grave;
Afetada, é a que evita informar-se para atuar segundo aquilo que lhe
apetece.
À ignorância inculpável se assimilam ao erro e à inadvertência involuntária. À ignorância
inculpável, por sua vez, se equiparam o erro e a inadvertência culpáveis.

85
2.3 Regras sobre seu influxo
a) A ignorância, se é alheia à vontade do sujeito, pode diminuir ou anular sua responsabilidade moral,
porque priva o sujeito do conhecimento necessário para a plena liberdade e moralidade do ato.
Evidentemente o caráter inculpável cessa no momento em que a pessoa começa a descobrir que está
equivocada.

b) A ignorância culpável não anula a responsabilidade. Ainda que possa diminuí-la, exceto se está
sendo buscada de propósito. Podem-se distinguir três aspectos deste princípio:

1) A ignorância culpável não elimina nunca por completo a responsabilidade do ato.


A razão é que, ainda faltando o conhecimento atual, sua ausência é de algum modo voluntária in
causa. Por exemplo, o descuido em adquirir os conhecimentos professionais necessários torna o
médico ou o advogado responsáveis pelos danos causados a seus clientes, na medida da gravidade
do próprio descuido;
2) Quando não procede de dolo, mas somente de culpa ou negligência, a ignorância
diminui a responsabilidade. Assim, por exemplo, o que difunde uma afirmação caluniosa por
não ter se preocupado suficientemente de informar-se antes, tem menor responsabilidade de quem
o faz sabendo;
3) Em contrapartida, a ignorância afetada (ou dolosa) aumenta a responsabilidade, e
torna mais grave o ato. «A ignorância afetada e o endurecimento do coração (cf. Mc. 3, 5-6; Lc.
16, 19-31) não diminuem, mas sim aumentam o caráter voluntário do pecado» (CEC, 1859). É
evidente que se alguém recusa informar-se para atuar assim, sem dúvida, tem maior culpa:
demonstra uma vontade mais intensamente desordenada.
Na prática, não é sempre fácil determinar o tipo de responsabilidade que veio a provocar
uma ignorância; nem é possível classificar em regras rígidas o processo pessoal pelo qual se
chegou à situação de ignorância in actu. O grau de culpa ou negligência que aparece no ato nunca
é – de fato – independente da trajetória pessoal do sujeito.

3. As paixões desordenadas
Enquanto as paixões ordenadas, com suas emoções, sentimentos e estados de ânimo, facilitam a
atividade voluntária, as desordenadas constituem um obstáculo, enquanto diminuem a função reta da
razão.

Inclusive sob o ímpeto de uma paixão descontrolada, a pessoa pode chegar a perder o
domínio de seus atos: porém é raro que as paixões desordenadas cheguem a anular totalmente o
uso da razão, e por isso, os atos realizados sob esse impulso, são ordinariamente voluntários e, às
vezes, inclusive mais desejados.
Para entender melhor a influência das paixões desordenadas, convém recordar uma
distinção: as paixões que precedem o querer voluntário, chamam-se antecedentes; as que o
seguem, consequentes; as que o acompanham, concomitantes.
a) A paixão antecedente desordenada diminui a liberdade do ato e, portanto, sua
culpabilidade, enquanto obscurece a inteligência e diminui o conhecimento requerido
para o voluntário. Os pecados que se cometem sob seu influxo são menos graves,
comparados com os que se realizam friamente: costumam chamar-se pecados de
debilidade.
b) A paixão provocada voluntariamente aumenta a imputabilidade. A razão é óbvia: a
vontade que age sob uma paixão excitada propositadamente, não somente quer, mas quer

86
de tal modo que move o apetite sensitivo para mais facilmente não reparar no mal que
comete.
c) A paixão que acompanha espontaneamente o ato voluntário não aumenta a
responsabilidade, senão que manifesta a intensidade do querer: torna patente que o
ato voluntário é veemente e redunda no apetite sensitivo.

Sabemos bem, em qualquer caso, que nem as ações humanas nem os ímpetos
passionais se dão isolados do conjunto da atitude e da conduta de cada homem, de
suas virtudes e de seus vícios, de suas eleições e disposições fundamentais. Daí que
as regras enunciadas se façam entender em uma perspectiva global e dinâmica do
comportamento: há paixões antecedentes a um ato que, atendida a história e
circunstâncias pessoais do sujeito, são na realidade consequentes ou voluntárias in
causa; por isso, nem sempre é fácil saber, nem se pode julgar rapidamente, se o
despertar descontrolado de uma paixão, que induz a pecar, era ou não culpável:
geralmente, não o são em quem vive na graça.

4. O medo

4.1 Noção e divisões


O medo é um temor que chega a turbar a inteligência, e ainda que ordinariamente não suprima a
voluntariedade, limita-a de modo notável.

Consente-se sob a pressão de um temor, que não é já um passageiro movimento passional,


mas um estado de ânimo que afeta particularmente a mente. O medo assim entendido não são os
“temores” de algo ou alguém, senão uma verdadeira perturbação generalizada do ânimo.
O medo pode ser grave ou leve segundo a importância do dano temido e a efetividade do
risco. Assim, de ordinário, causa medo grave o perigo de morte, mutilação, séria infâmia, notável
perda de bens etc.; ao contrário, gera medo leve a possibilidade de contrair uma enfermidade
ligeira, perder um ganho pequeno etc.
Temos que ter em conta que o que para alguns é leve pode resultar grave para outros. Esse
caráter relativo do medo – como ocorre com outras paixões – pode dever-se às circunstâncias do
sujeito (idade, saúde etc.) ou ao seu estado de ânimo. Há um medo irracional, desproporcionado
ao perigo que o produz, que pode ser inclusive um transtorno patológico.
Além do mais, na medida em que o medo é causado por um agente pessoal, cabe falar de
temor justa ou injustamente inferido.
O medo justamente inferido nasce de uma ameaça justificada em seus motivos e em
seu modo.
Seria injusto o medo inferido a um réu se se lhe ameaçasse não com um legítimo
processo senão com uma lesão à sua pessoa ou a seus familiares.

4.2 Regras sobre seu influxo


a) O medo – a menos que seja tão forte que impeça o uso da razão – não anula a responsabilidade
do ato: somente a diminui. Todavia, se o medo é superado, torna-se sinal de maior voluntariedade, já que
se atua apesar do temor.

87
A proporção em que o medo diminui a voluntariedade depende, em princípio da
gravidade – absoluta ou relativa – do dano que se teme, e a importância mesma bem que se lesiona
na ação má cometida por medo; e, em última instância, do grau de perturbação efetivamente
causado na pessoa:
Um medo leve somente alivia a responsabilidade;
Um medo grave pode diminui-la, fazer que um ato grave pela matéria seja culpa
subjetivamente leve, e inclusive suprimir a responsabilidade se priva do uso da razão.
No caso de ações intrínseca e gravemente ilícitas, nem sequer o medo grave – por si, e a
menos que chegue a privar do uso da razão – exclui de culpa inclusive mortal. Ainda que diminua
a gravidade do pecado.
O medo justamente inferido per se nunca induz ao mal, nem priva da liberdade, porque não
é mais que tornar patente o que nos exigirá a responsabilidade que nos compete por nossos atos.

b) As leis humanas não obrigam em caso de medo grave: mas, geralmente, não obrigam quando
há um motivo sério (grave incommodum).

Esse princípio se aplica a todas as leis positivas humanas, porque sua finalidade é o bem
comum na medida em que o discerne o legislador humano, que nunca pode conhecer todos os
particulares e entende que não quer – nem pode – obrigar em condições de dificuldade
desproporcionada.

5. As enfermidades mentais

5.1 Noção
A unidade substancial entre a alma e o corpo comporta que haja estreitas inter-relações entre
as potências espirituais da alma e dos dinamismos psíquico-somáticos, até o ponto de que
determinadas disfunções somáticas ou psíquicas impeçam total ou parcialmente o uso da razão
ou debilitam o autodomínio da vontade.
São as enfermidades da mente e da vontade, que diminuem a liberdade do ato, porque falta a
necessária luz da inteligência para que a pessoa possa tomar uma decisão responsável, ou se dá uma
situação de esgotamento psíquico que, ainda percebendo o que deveria fazer, falta energias para realizar
o correspondente.

Ao mesmo tempo, como a psicologia experimental reconhece, a própria atitude espiritual


da pessoa pode influir, junto a outros fatores, no aparecer dessas disfunções.

5.2 Regras morais


a) Na mesma medida em que priva do uso da razão ou debilita as energias da vontade, a
enfermidade mental exime de responsabilidade.

As consequências da enfermidade nem sempre são as mesmas. Os transtornos


mentais podem ter diversas influências no grau de consciência do indivíduo, desde a
anulação total em algumas psicoses, a ligeira diminuição em certo tipo de neurose.
Não é fácil falar em termos gerais segundo as várias enfermidades. Em linha de
princípio se pode assinalar os seguintes pontos: fora dos casos de alienação total

88
haverá que ater-se às circunstâncias que concorram em cada caso para ver em que
medida esses distúrbios afetam sempre, ou em certos aspectos, a integridade do juízo
da pessoa aplicando por analogia as regras sobre a ignorância.
Mais delicado é o caso das enfermidades psíquicas que afetam à vontade: não
privam da possibilidade de resistir à tentações, ainda que a diminuam; porém, podem
produzir-se uma verdadeira incapacidade para cumprir positivamente certos deveres
ou fazer frente a algumas responsabilidades.

b) Pela inter-relação entre os aspectos médicos e espirituais, deve-se acudir nestes casos a um
médico de reto critério ético e, na medida do possível, com sólida formação cristã.

É importante que diante da manifestação de enfermidades psíquicas se consulte


logo a um médico com conhecimentos certos sobre a matéria e critérios cristãos:
muitas vezes, o fator clínico é decisivo na ajuda à pessoa, e pode facilitar conselhos
em razão da origem do conflito psíquico, muito valiosos para ajudar o enfermo em
sua luta ascética. Por outra parte, é fundamental para o enfermo um acordo entre as
diretrizes médicas e ascéticas.

Parte IV: Elementos que determinam a moralidade dos atos humanos

A moralidade dos atos humanos – quer dizer, sua ordenação a Deus - depende do que
fazemos e da intenção com que fazemos: dois elementos que vão sempre unidos: objeto moral
e fim ou intenção. A estes dois elementos deve-se acrescentar as circunstâncias. «O objeto, a
intenção e as circunstâncias formam as fontes ou elementos constitutivos da moralidade dos atos
humanos» (CEC, 1750).

1. O objeto moral ou “finis operis”

É o fim próximo de uma eleição deliberada, que determina o ato de querer da pessoa que
age.

O objeto moral da ação não pode ser confundido com o objeto físico ou externo.
Não é a ação físicamente considerada.
Outorga ao ato a sua primeira e essencial moralidade. «A moralidade do ato
humano depende sobretudo e fundamentalmente do objeto escolhido racionalmente pela
vontade deliberada» (VS, 78).
Uma ação que é má por seu objeto moral, não se torna boa pela intenção. Dizer que uma
ação é má por seu objeto moral é dizer que o que quer a vontade é mal, ainda que com isso
busque um fim posterior bom.

a) Existem ações “intrinsecamente más” por seu objeto moral. Nelas, o que se
quer ou escolhe é mal e, portanto, estas ações nunca podem ser queridas ou
escolhidas, nem sequer como meios para conseguir algo bom: difamar,

89
blasfemar, matar a um inocente, mentir etc. São obras que uma pessoa nunca
pode querer sem fazer o mal moral, sem pecar.
 «As circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato
intrinsecamente desonesto por seu objeto em um ato “subjetivamente” honesto ou
justificável como eleição» (VS, 1).
 Neste sentido diz o Catecismo: «O objeto da eleição pode por si só viciar o
conjunto de todo o ato. Há comportamentos concretos – como a fornicação – que
sempre é equivocado escolhe-los, porque a sua escolha comporta uma desordem
da vontade, ou seja, um mal moral» (CEC, 1755).
 «Uma intenção boa (por exemplo: ajudar o próximo) não faz nem bom nem
justo um comportamento em si mesmo desordenado (como a mentira e a
maledicência). O fim não justifica os meios. Assim, não se pode justificar a
condena de um inocente como um meio legítimo para salvar ao povo» (CEC,
1753).
A Igreja sempre considerou como tais a morte direta do inocente, a mentira ou
engano, o adultério, o aborto, o roubo, a masturbação, a blasfêmia, a contracepção etc.
a) As normas que os proíbem são geralmente chamadas de normas absolutas ou
absolutos morais.
A postura do Magistério tanto em relação à existência de normas absolutas como
à possibilidade de ensina-las infalivelmente é e sempre foi inequívoca. O Papa João
Paulo II na Encíclica Veritatis Splendor, oferece, em síntese, estas afirmações: «A
razão testemunha que existem objetos do ato humano, que se configuram como não
ordenáveis a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, criada a sua
imagem. São os atos que na Tradição moral da Igreja foram denominados
“intrínsecamente maus”. E o são sempre e por si mesmos, por seu objeto
independentemente das ulteriores intenções de quem atua, e das circunstâncias (...). A
Igreja ao ensinar a existência de atos intrinsecamente maus, acolhe a doutrina da
agrada Escritura (...). As circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar
um ato intrinsecamente desonesto por seu objeto em um ato subjetivamente honesto,
ou justificável como eleição» (VS, nn. 79-82).

b) O consequencialismo e o proporcionalismo consideram o objeto da ação como


algo moralmente neutro.
Segundo estas correntes, a ação pode ocorrem em duas ordens diversas: moral e premoral:
 A ordem moral de um ato estaria determinada pela intenção do sujeito em
relação ao amor de Deus e do próximo;
 A ordem premoral se mediria a partir dos efeitos e consequências
previsíveis. Deste modo, «os comportamentos concretos seriam qualificados
como “retos” ou “equivocados”, sem que por isto fosse possível valorizar a
vontade das pessoas que os escolhe como moralmente “boa” ou “má”» (VS, 75).
Para julgar a moralidade de uma ação, contariam preferentemente as
consequências previsíveis. Se das consequências se deriva um bem superior ao
que se obteria omitindo dita ação, essa ação seria lícita. A intenção do sujeito se
considera boa sempre que não se oponha a este critério, e não por seu conteúdo
objetivo.
É preciso rejeitar estas teorias, porque:

90
 «O elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objeto do ato
humano, o qual decide sobre seu “ordenamento” ao bem e ao fim último que é
Deus» (VS, 79);
 «Existem objetos do ato humano que se configuram como “não-ordenáveis”
a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, criada a sua imagem.
São os atos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados “intrinsecamente
maus”» (VS, 80).
Quando dizemos que um ato é bom por seu objeto, assinalamos que se trata de uma
conduta ordenável a Deus como fim último.

2. O fim do ato moral ou “finis operantis”

É o objetivo ao qual o sujeito agente ordena seus atos, o que se propõe conseguir.

É a intenção principal do agente, sem a qual o ato não se realizaria. Não se pode
confundir, portanto, com os motivos ou intenções concomitantes, que são só
circunstâncias. As intenções concomitantes ou acidentais não levariam por si a realizar o
ato, nem a deixar de realiza-lo ante a impossibilidade de consegui-las.

É um elemento essencial na qualificação moral da ação. O fim, junto ao objeto, determina


a moralidade do ato. Para que a ação seja boa, se requer que o objeto e o fim sejam bons.

«Diante do objeto, a intenção se situa do lado do sujeito que atua. A intenção, por
estar ligada à fonte voluntária da ação e por determina-la em razão do fim, é um elemento
essencial na qualificação moral da ação. O fim é o término primeiro da intenção e designa
o objetivo buscado na ação» (CEC, 1752).
O fim pode converter a ação boa por seu objeto em um ato moralmente mau.
«Uma intenção má acrescentada (como a vanglória) converte em mau um ato que, por si,
pode ser bom (como a esmola)» (CEC, 1753).
Quando dizemos que o fim de uma ação é bom, nos referimos a que a vontade do
sujeito está efetivamente ordenada segundo o querer de Deus, ou, em termos mais
especificamente cristãos, que surge da caridade.
O ato humano é bom segundo o seu objeto se é ordenável ao fim último, e alcança
sua perfeição última e decisiva quando a vontade o ordena efetivamente a Deus mediante
a caridade.
«Não basta realizar obras boas; mas é preciso faze-las bem. Para que nossas obras
sejam boas e perfeitas, é necessário faze-las com o fim puro de agradar a Deus» (VS, 78).
Não basta que alguém esteja convencido de ter boas intenções para que sua atuação
seja por isso mesmo moralmente boa: «É errôneo julgar a moralidade dos atos humanos
considerando somente a intenção que os inspira ou as circunstâncias que são o seu marco»
(CEC, 1756).

91
3. Regras morais sobre o objeto e o fim

a) O objeto é elemento essencial da moralidade do ato: implica uma primeira bondade ou


maldade.

b) Uma ação só é boa por causa da conjunção da bondade do fim e do objeto.

Para que um ato seja bom se requer que o sejam a intenção e o objeto; para que seja
mal, basta que sejam tais qualquer um dos dois. De aí se seguem os seguintes princípios:
 As ações que por seu objeto são indiferentes, se tornam boas ou más pelo
fim;
 Uma ação boa por seu objeto, se torna mais ou menos boa, ou também má,
pelo fim. Em primeiro lugar, um objeto bom, ao adequar-se a um fim bom,
segundo a qualidade do fim. Por sua vez, um objeto bom pode perseguir-se por
um fim mal, dando lugar a uma ação má;
 Uma ação por seu objeto má, pode se tornar mais ou menos má pelo fim, mas
nunca boa. O objeto mal, paralelamente ao bom, pode ser querido por um fim
mais ou menos mal, e isto dá lugar a uma maior ou menor maldade da ação: assim,
comete maior pecado o que rouba para promover uma sociedade criminal, que o
que o faz por simples avareza.

c) O homem deve buscar em todas as suas ações um fim honesto que, pelo menos
implicitamente, se refira a Deus.

A retidão ou honestidade dos fins particulares, depende da sua ordem ao fim


último. A intenção do fim último é de tal eficácia, que configura todas nossas obras. Em
tudo o que fazemos, se deve por nossa intenção em Deus: «quer comais, ou bebais, ou
façais qualquer outra coisa, fazei tudo pela glória de Deus» (1 Cor. 10, 31).
Não se segue daqui que a intenção do fim último deva ser expressa em cada ato; de
fato, a ordem da vontade ao fim último tende a ser estável, e se mantém pela energia das
virtudes e, em definitiva, pela presença da graça na alma, sem que necessariamente tenha
que atualizá-la em cada ato. De todos modos, a renovação frequente da intenção do fim
último, da referência a Deus de quanto fazemos, facilita a retidão da vontade em cada ato.

O conhecido princípio, segundo o qual não é lícito agir só por prazer deve ser
entendido corretamente. Não significa de forma alguma que o prazer seja em si
mesmo mal. É pecado buscar o prazer como finalidade última (como aconteceria
com a volição de qualquer outro bem criado, se é tomado como último fim), ou bem
busca-lo evitando positivamente a finalidade à que um determinado prazer está
naturalmente ordenado. Em definitiva, o prazer é um bem que, quando querido
ordenadamente, dá lugar a uma ação boa: por exemplo, o prazer de contemplar uma
obra de arte, uma bela paisagem; o que implica o uso do matrimônio, enquanto os
cônjuges não rompam – por própria iniciativa – a sua ordem à procriação etc.

92
4. As circunstâncias

São aspectos acidentais do objeto ou da intenção do agente, que afetam de algum modo
à moralidade da ação, mas sem muda-la substancialmente. «Não podem fazer nem boa nem justa
uma ação que por si é má» (CEC, 1754).

Contribuem a aumentar ou a diminuir a bondade ou a malícia moral dos atos


humanos. Pelas circunstâncias, um ato mal pode ser mais grave que outro, e um ato bom
pode ser melhor ou mais meritório que outro.

A moralidade do ato humano que, em sua substância, depende do fim e do objeto, é


aumentada ou diminuída pelas circunstâncias morais, ou elementos que afetam ao objeto ou à
intenção em modo só acidental.
Convém ter presente que acidental não quer dizer pouco importante: a saúde, por
exemplo, é um acidente. Significa apenas que não afeta à espécie da ação: mas com a
mesma espécie, um ato pode ser muito mais grave ou mais meritório que outro; por
exemplo, um furto por si grave varia em sua maldade pelo maior ou menor valor, pela
condição do sujeito que o sofre etc. E o mesmo ocorre com um ato de generosidade,
segundo leve a sacrificar-se por outros durante umas horas, ou por toda a vida.
Principais tipos de circunstâncias:
1) Tempo (quando): seja como duração, seja como oportunidade com que se realiza
a ação;
2) Lugar (ubi): não é o mesmo roubar em um lugar sagrado, que em outro local;
3) Quantidade (quantum): é diversa a bondade de uma esmola pequena ou
magnânima; assim como a maldade de um roubo de umas poucas moedas, ou de uma
soma considerável;
4) Qualidade ou efeitos (quid): o roubo de uma mesma quantidade de dinheiro não
tem a mesma gravidade moral, si é feito a um pobre ou a um rico, porque suas
consequências são muito diversas;
5) Sujeito (quis): as qualidades do agente variam a moralidade do ato. Não reveste
a mesma gravidade a exposição de um erro doutrinal por um sacerdote ou por um leigo;
6) Modo de agir (quomodo): a modalidade da ação denota uma maior ou menor
bondade ou malícia: ex., a delicadeza em uma correção ou a brutalidade em uma injúria;
7) Meios empregados (quibus auxiliis): o uso de determinados meios matiza a
moralidade da ação. Assim, o roubo a mão armada é mais grave que o simples roubo;
8) Motivos circunstanciais (cur): trata-se de intenções concomitantes ao fim
principal, que não são a causa da ação, a qual se faria igualmente si essas finalidades não
fossem já alcançáveis. Por exemplo, quem realiza um ato de serviço desejando
agradecimento, retribuição, elogios, mas não deixaria de fazê-lo se faltassem.
Algumas circunstâncias mudam a espécie moral do ato: acrescentam uma nova
espécie moral, como por ex., a qualidade sagrada de um objeto roubado acrescenta outro

93
pecado ao do roubo: pecado contra a justiça e contra a religião. Ao roubo se acrescenta o
sacrilégio: em tal caso, são na verdade elementos do objeto moral ou do fim do
agente.
Certas circunstâncias mudam a espécie teológica (ou seja, o caráter grave ou leve
de um pecado da mesma espécie moral): por ex., a quantidade roubada faz que o roubo
seja pecado venial ou mortal; uma injúria, por suas circunstâncias, pode ser grave ou leve.
Todas as circunstâncias que mudam a espécie moral ou teológica do ato devem
declarar-se expressamente na confissão, porque podem afetar à gravidade moral do ato e
inclusive podem fazer que com um só ato se conectam vários pecados.

5. Alcance ou extensão da moralidade

Trata-se aqui os seguintes temas:


 O caráter necessariamente moral – bom ou mal – de cada ato humano
concreto;
 A medida em que a execução do ato exterior, com suas consequências, afeta
à moralidade do inteiro ato;
 O tema especial das ações de dúplice efeito;
 A dimensão social da bondade ou maldade da conduta.

5.1 Sentido dos atos indiferentes

As ações humanas podem ser consideradas em uma destas duas direções: de uma
maneira específica, ou de um modo concreto e singular.
 Segundo a sua espécie ou substância, existem atos humanos moralmente
indiferentes, posto que nem todo objeto primário de uma ação humana é, como
tal, conforme ou desconforme com a regra moral. Passear, sentar-se, estudar... não
são por si nem moralmente bons, nem moralmente maus.
 Mas se são considerados os atos desde um ponto singular e concreto, deve-
se afirmar que não existem atos indiferentes. Toda ação realizada livremente por
uma pessoa necessariamente tende a um fim determinado, presente na pessoa que
o realiza, pelo que adquire uma relação à ordem moral, positiva ou negativa.
Nos atos moralmente indiferentes por seu objeto, a moralidade dependerá do fim ao
qual o agente ordena esses atos. Estas ações na verdade têm alguma qualificação moral
(se não fosse assim, seriam meros fatos físicos), ao menos remota. Trata-se de atos lícitos,
ordenáveis ao fim último. Para ser plenamente bons, o agente deve efetivamente ordená-
los.
Há outros atos, porém, que apenas por seu objeto, ou seja, ainda abstraídos da
intenção do agente, têm já uma positiva bondade ou maldade. São atos especificamente
bons, que produzem um efeito bom com independência da mais ou menos reta intenção
do agente. E há atos maus especificamente.

94
Esta doutrina moral, ao afirmar que com todos nossos atos nos podemos unir a
Deus, é de grande estímulo para a boa conduta, e de uma grande transcendência no
comportamento moral. Quem procura fazer a vontade de Deus, se não segue seus
caprichos, ainda que nas mínimas ações faz o bem; mais ainda, pela caridade, até os
atos que parecem mais insignificantes são merecedores de graça nesta vida, e de glória
na outra.

5.2 Moralidade do ato exterior e dos seus efeitos

Tanto a execução do ato exterior, como as consequências que desencadeia, influenciam na


moralidade do ato.

a) A execução do ato exterior – por si - não acrescenta nem elimina bondade à


decisão voluntária.
A sua contribuição primária e decisiva na bondade da ação está no momento da
eleição, que é parte integrante do ato interior da vontade. Toda a bondade do ato está
radicalmente presente no ato interior da vontade, do que o ato exterior emana como
consequência. Se a vontade quis plenamente algo, se traduzirá inevitavelmente na
concreta obra externa querida, a não ser que haja um impedimento alheio à vontade,
o que não muda o valor moral do ato. Quem quer assassinar a outra pessoa, e no
momento de executar o seu propósito não pode fazê-lo porque a polícia o impede ou
encontra morta a sua vítima, cometeu o mesmo pecado que se tivesse cometido o
crime. Por isso diz o Senhor: «Todo o que olha a uma mulher desejando-a, adulterou
já com ela em seu coração» (Mt. 5,28).

b) Entretanto, a execução do ato exterior se relaciona com a intensidade e perfeição


da vontade, e, nessa medida, aumenta a bondade ou maldade da ação.
Só é perfeita a vontade quando, se dá a conveniência de atuar e se passa à ação.
Por isso, a ausência do ato externo devida ao mesmo sujeito, mostra que a vontade
não estava perfeitamente decidida.

c) Ademais, os efeitos ou consequências do ato externo acrescentam bondade ou


malícia na medida em que foram previstos ou se devia ter previsto.
O ato externo compreende a totalidade do fato, com todas suas consequências (por
exemplo, o roubo inclui os prejuízos que se causem ao danificado em suas
circunstâncias concretas). Como o ato moral é já perfeito na vontade deliberada, as
consequências "de facto" só se tomam em conta na medida em que derivam da
vontade, ou seja, quando tais efeitos fossem previstos ou, ao menos, deviam
razoavelmente terem sido previstos. É evidente que se alguém calcula que de sua
conduta se seguirão muitos males, e ainda assim não retifica, de algum modo quer
esses males. Paralelamente, os efeitos bons previstos integram a bondade do ato.

Ajuda elucidar se determinados efeitos não previstos deveriam tê-lo sido, ou


considerar se esses efeitos seguem ao ato "per se" ou "per accidens". Como regras práticas
orientadoras, cabe dizer:
 Se os efeitos não previstos seguem "per se" ao ato ou na maioria dos casos
("in pluribus"), deviam se prever, e, portanto, aumentam a responsabilidade

95
moral. Por exemplo, o que se embriaga, se sabe que normalmente esse estado
origina um mal comportamento é responsável in causa deles, e de suas
consequências.
 Se os efeitos não previstos ocorrem só "per accidens" e excepcionalmente
("in paucioribus"), é fácil que não seriam previstos, e, por isso que não tenha culpa
em não tê-los previsto. Assim, o que conduz a velocidade normal e em um lugar
não dê passo alguém atravessa inesperadamente, de maneira que não consegue
frear a tempo e lhe produz lesões, não tem culpa moral.

5.3 O princípio de duplo efeito ou voluntario indireto

Designa-se com estas duas expressões – e mais propriamente com a primeira – o caso de
uma ação que tem ao mesmo tempo efeitos bons e maus, e a possível licitude de realiza-la em
certas condições.

Normalmente se assinalam quatro requisitos para sua legitimidade:


1) A ação deve ser lícita por seu objeto, ou seja, boa ou indiferente. Nunca pode
realizar-se o mal moral para alcançar um bem. Uma ação em si imoral jamais pode ser
justificada por grandes que sejam os bens que se esperam dela.

Portanto, quando há efeitos bons e maus, o primeiro que deve ser feito é analisar o
objeto moral da ação. Deve-se ter em conta que formam parte do objeto moral todos
os efeitos – previstos ou previsíveis – que lhe seguem necessariamente e tenham
relevância moral: ou seja, que suponham uma privação de bem contrária à razão. Por
isso, se um efeito imoral segue sempre à ação, esta nunca será lícita. Para que a ação
seja boa ou indiferente, o efeito mau não deve ser efeito per se da ação: só deve ser
um risco que se corre com justa causa e que não se está obrigado a evitar. A assegurar
isto, tende o segundo requisito do voluntário indireto.

2) O segundo requisito é formulado pelos autores de muitas diversas maneiras: que


«o efeito bom não seja consequência do mau»; que «o efeito bom seja imediato à ação e
não consequência do mau» etc. Talvez a melhor formulação deste princípio seja que o
efeito mau não deve afetar ao objeto moral da ação mas sim deve advir "per
accidens"; como um risco que se corre ao realizá-la, sempre que seja assumido com reta
intenção e justa causa.

Em uma palavra, o "segundo requisito" deve ser entendido como uma garantia de
que o efeito mau não entranha uma alteração do objeto moral do ato: não basta que o
efeito seja não desejado, se por si afeta ao objeto moral. Quando se interpreta de outra
maneira, pode dar origem ao proporcionalismo; quer dizer, à admissão de qualquer
mal com tal de que não seja desejado e se queira por uma causa proporcionada. A
moralidade da ação requer a bondade do objeto, e esta exige que o ato como tal seja
ordenável a Deus, ou seja não tenha em si mesma nem nos efeitos que lhe seguem
"per se", uma privação do bem contraria à razão. Em definitiva, trata-se de estudar o
caso concreto para ver se o efeito mal seja determinante ou não do objeto moral.

96
3) O fim do agente deve ser honesto; quer dizer, deve querer unicamente o efeito
bom, e rejeitar de verdade o mal. Isto implica que deva por todos os meios devidos para
evitar que se produza o efeito mau.

Assim, por exemplo, o que examina publicações, espetáculos etc., para orientar
criticamente ao público, deve tomar as cautelas necessárias para que esse trabalho não
lhe faça dano; quer dizer, deve ter verdadeira vontade de evitar o efeito mau: só assim
se assegura que a intenção é reta.

4) Que exista uma causa suficientemente grave em proporção à entidade do dano


e à probabilidade de que este siga à ação: é outra manifestação de que a intenção do agente
é verdadeiramente reta. Concretamente, a causa deverá ser tanto mais grave:
 Quanto mais provável é o perigo de que se produza o efeito mau;
 Quanto maior será o dano que se arrisca produzir;
 Quanto mais imediatamente o dano siga à própria ação;
 E quanto maior seja o dever de impedi-lo.
5.4 Dimensão social do agir moral
Segundo sua bondade ou maldade moral os atos humanos edificam ou destroem o bem
comum, assim na sociedade civil como na Igreja.

 Qualquer ato libre ou moral, por sê-lo, influí no bem ou mal de outras
pessoas: não só quando fazem referência a deveres com o próximo, mas todos
enquanto influem na própria abertura ou fechamento à comunhão com os demais,
ao dom sincero de si mediante o qual se edifica a comunidade humana.

Todos os atos livres que o homem realiza dizem necessariamente alguma relação com o
bem da sociedade.

 O bem da sociedade e o bem da pessoa se distinguem, mas estão intimamente


enlaçados entre si. O bem social ou bem comum temporal não subsiste
hipostasiado, mas sim nas pessoas concretas: é a ordem adequada entre os homens
segundo o qual a todos se facilita e a ninguém se dificulta alcançar a própria
perfeição e, com ela, sua felicidade temporal e eterna. Por isso mesmo, as
desordens sociais são «sintomas da desordem moral» e para poder eliminá-los
«deve-se estabelecer, aceitar e aprofundar o sentido da responsabilidade moral,
que deve assumir todo homem»79.
 Este influxo das ações concretas das pessoas singulares sobre o bem dos
demais membros do corpo social se dá a um nível superior, mais profundo e eficaz
– em definitiva, sobrenatural – na Igreja, pela comunhão dos santos, o trato

79 JUAN PABLO II, Enc. Redemptor hominis, n. 16. Cfr.

97
fraterno e a íntima efusão da graça que redunda de uns em outros, como
membros do Corpo místico de Cristo80.

O bem pessoal e o bem comum se requerem mutuamente: na base desta harmonia está
Deus, enquanto é o Criador e fim do universo e o fim pessoal de cada homem.

 É uma harmonia inscrita na natureza humana, enquanto Deus quis que o


homem viva, lhe reconheça e se salve, em sociedade. Há uma radical congruência
entre a perfeição pessoal de cada homem e a justa ordem social. O conflito
violento entre o bem pessoal e social procede da desordem moral das pessoas que
compõem a comunidade, seja da autoridade ou dos súditos81.

O influxo dos atos humanos na ordem social depende, por sua vez, da sua retidão objetiva
exterior e da retidão interior do sujeito que os causa.

 Segundo a sua maldade ou bondade externas, os atos humanos influenciam


no bem comum social, com independência da intenção da pessoa que obra. Mas
ninguém é constante em uma reta conduta externa se não possui as virtudes
necessárias.

Por outra parte, os atos humanos influenciam na ordem social não só por seu efeito imediato
mas sim pelas estruturas sociais que contribuem a criar.

 É um aspecto capital da responsabilidade de cada pessoa: com nossos atos


geramos progressivamente, o desejemos ou não, estruturas sociais que favorecem
a outros viver virtuosamente o lhe dificultam, lhes facilitam levar uma vida
humanamente digna ou lhes submetem a situações degradantes e injustas. As
estruturas contrárias ao bem comum são chamadas geralmente de estruturas de
pecado, «porque se radicam no pecado pessoal, e estão sempre em relação a atos
concretos das pessoas, que as introduzem, as consolidam ou as fazem difíceis de
remover. E assim se reforçam, se difundem e se convertem em fonte de outros
pecados, condicionando a conduta dos homens»82.

A formação das consciências, em relação à dimensão social de nosso agir, é de grande


importância.

80 Cf. PIO XII, Enc. Mystici corporis, 29-VI-1943.


81 Cf. SANTO TOMÁS, In Ep. ad Rom, c. 12, lect. 1.
82 JUAN PABLO II. Enc. Sollicitudo rei socialis, n. 36.

98
 Há um primeiro aspecto, mais patente, constituído pelos deveres de justiça e
caridade para quem padece necessidades materiais83. É um tema sobre o que
sempre será necessário insistir: um mínimo de bem-estar material é muito
conveniente para o desenvolvimento da pessoa e o cultivo dos valores espirituais.
Portanto, deve fazer-se todo o possível para resolver essas situações, que afetam
– ainda nos países desenvolvidos– a inteiras faixas da sociedade e são a chaga dos
países do subdesenvolvimento sabendo que os obstáculos em ocasiões são sérios
e difíceis de superar, e precisam a contribuição de um esforço geral.
 Entretanto, não cabe reduzir a isto só a exigente expressão do Senhor: «o que
não ama ao seu irmão, que vê, como poderá amar a Deus a quem não vê?» (Jo.
4,10). Quantos, por exemplo, se esquecem o dano grave que causam a outras
pessoas quando difundem doutrinas morais inseguras sobre a sexualidade, o
matrimônio, o aborto etc.; ou contribuem a que se aprovem leis contrárias à ordem
natural, como se isso não tivessem um influxo bem concreto na existência
dramática de muitas vidas, e na supressão de outras, em números comparáveis às
maiores chagas da humanidade.

Parte V: O mérito sobrenatural dos atos humanos

Com o seu bem agir o homem se torna idôneo diante de Deus para receber outros dons e
favores. Esta expectativa de novos dons de Deus, como consequência dos atos bons, se conhece
com o termo mérito. É um dado muito importante no amplo campo da moral.

É verdade que Deus não se sente obrigado a dar ao homem seus dons e favores; ele
os dá gratuitamente. Mas na mesma medida em que reponde à graça, adquire agora um
aumento da graça, e da glória depois. Adquire uma espécie de direito diante de Deus;
torna-se merecedor de novas graças divinas.

1. Noção e classes de mérito

1.1. Noção

Mérito é aquela propriedade dos nossos atos que os faz dignos de prêmio.

Em teologia, e em ordem à participação na vida divina, se chama mérito


(sobrenatural) ao título que nossos atos possuem que Deus nos conceda o aumento da
graça e a vida eterna. O mérito, em suma, é uma propriedade das boas obras feitas em
graça, que nos dá uma certa dignidade ou idoneidade para que Deus no conceda o
aumento da graça e o prêmio da glória.

83 Cf. CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 72.


99
Os atos realizados por quem não vive e age em estado de graça são estéreis para a vida
eterna; mas se são bons, a misericórdia divina pode premia-los de uma maneira para nós
desconhecida.

 As ações, que não estão informadas pela caridade, nunca se ordenam ao fim
sobrenatural, mas podem manter a ordem da reta razão. O que carece da graça,
que é a raiz do mérito, pode ter outros dons de Deus – a fé ou a esperança
informes, e o que conserva de suas forças naturais –, e se age segundo eles, seus
atos são bons, ainda que não sejam meritórios. Esta bondade, sem ter razão de
mérito, possui uma certa semelhança com o ato meritório: não é um direito, mas
pode atrair a misericórdia de Deus.

Os atos desordenados relacionados ao amor de Deus e do próximo são maus, e são causa
de demérito.

 Assim como há o mérito, existe também um demérito, merecedor de um


castigo. Todo ato desordenado, que se opõe à honra devida a Deus e ao próximo,
é causa de demérito, e, portanto, se faz merecedor da pena: é mais, pelo caráter
imanente do ato livre, a culpa implica a pena da progressiva desintegração
pessoal.
1.2. Classes

a) Mérito “de condigno”

Chama-se mérito "de condigno" a aquele que nasce da proporção de uma obra com sua
retribuição em justiça, ao menos em virtude de uma promessa feita.

Com efeito, suposta a instituição do prêmio, há uma certa relação de justiça – em


virtude ao menos da promessa feita – entre as obras do agente e o prêmio que merece. Na
ordem sobrenatural, “de condigno” se podem merecer a vida eterna, o aumento da graça
e da glória, em virtude da Redenção de Jesus Cristo.

b) Mérito “de congruo”

O mérito "de congruo", por sua vez, não surge de uma restrita proporção do ato com o
prêmio, mas sim de uma certa conveniência, pela liberalidade do que premia.

Por exemplo, o trabalhador fiel cumpridor do seu dever merece de congruo que lhe
promovam ou lhe aumentem o salário, acima das previsões legais. Na ordem sobrenatural,
são objeto de mérito "de congruo" as graças que alguém pode merecer para outro. Ainda
que a perseverança final não seja objeto de mérito, nem de condigno nem de congruo –
posto que implica o bom exercício da nossa liberdade, e isso depende de nosso querer

100
(sabendo que Deus nunca nega a ninguém a graça necessária) –, costuma-se dizer que
cabe, em certo modo, o que se chama de mérito de congruo improprie dicto.
O sentido desta expressão é que a misericórdia de Deus não deixará – a aqueles
que lhe foram habitualmente fiéis – de agir com a sua Providência e com a influência
da sua graça para favorecer o arrependimento final, no caso de voltar a pecar
gravemente. Os atos bons, feitos por uma pessoa que não vive em graça, se diz – de
modo semelhante – que tem algo parecido, ainda que imperfeito, com o mérito de
congruo, em ordem a receber a graça que Deus concede por pura misericórdia ao
pecador que faz obras retas.

1.3. Condições requeridas para o mérito sobrenatural

Os atos são meritórios na medida em que são bons e procedem da liberdade com a ajuda
da graça.

Expliquemos estes requisitos:


 Para merecer, se requer primeiramente que o ato seja livre e bom.
Ninguém é merecedor de um prêmio, se não é dono dos seus atos; sem
liberdade não pode haver mérito. A liberdade «se converte em fonte de louvor
ou reprovação, de mérito ou demérito» (CEC, 1734). Por isso, são meritórios os
atos da vontade, e os das demais potências enquanto procedem dela. Para que o
ato livre seja capaz de mérito, se requer também que seja bom e, portanto, que
se realize em obséquio de Deus, para sua glória: ou seja, que seja bom por seu
objeto e se faça com reta intenção.

 Em segundo lugar, o mérito exige que a vontade esteja informada pelo hábito
sobrenatural da caridade.
A liberdade é princípio do mérito só como condição, não como raiz da
eficácia meritória, porque nossas obras só têm mérito sobrenatural, quando
procedem da inabitação do Espírito Santo na alma pela caridade (cf. Rom. 8,17).
No homem em graça todas as obras retas são meritórias.

 Por último, o mérito ocorre somente no homem em estado de peregrino, e


pressupõe sempre a promessa de Deus.
Depois da morte o homem já não pode merecer mais, porque terminou o
período de provas previsto por Deus.

A medida dos méritos depende do grau de caridade.

 O determinante no mérito é a caridade implicada em cada ato: assim pode


merecer mais alguém que deseje ardentemente reparar, realizando obras mesmo
pequenas de amor a Deus, que outro que tenha grandes sofrimentos, mas pouco
amor. O árduo do objeto não é determinante de por si do mérito, ainda que em

101
muitos casos vá unido ao aumento de mérito, porque implica intensidade da
vontade em seguir a moção da graça.
 Como consequência os atos mais meritórios são os de caridade, e os demais,
na medida em que se reduzam mais ou menos imediatamente a ela. Isto não
significa que as outras virtudes sejam supérfluas para merecer: mas sim que são
úteis para aumentar o mérito, enquanto facilitam a intensidade do ato de caridade.

Exercícios de auto comprovação: Tema 5


1. O que são os atos humanos?

2. Em que consistem a liberdade e a responsabilidade pessoal?

3. O que são as paixões? Como influenciam no ato humano?

4. Quais são os princípios intrínsecos do ato humano?

5. O que é o princípio de dúplice efeito ou voluntário indireto?

102
Tema 6: A lei moral

1. Noção e divisão da lei


2. A Lei Eterna
3. A Lei Natural
4. A Nova Lei
5. As leis humanas

Parte I:Noção e divisão da lei  Noção  Divisão da lei Parte II: A Lei Eterna  Noção
 Propriedades da Lei Eterna  A Lei Eterna, fundamento de toda lei Parte III: A Lei Natural 
Noção  Propriedades da Lei Natural  O Conhecimento e o conteúdo da Lei Natural Parte IV: A
Nova Lei  Natureza da Nova Lei  Conteúdo da Nova Lei  Propriedades da Nova Lei  A
formulação do princípio personalista em termos especificamente cristãos  Uma síntese da moral e o
ethos do cristianismo  A antiga e a nova lei Parte V: As leis humanas  Necessidade e noção da
lei humana  Obrigatoriedade moral da lei humana  A aplicação equitativa e a dispensa das leis
humanas  Finalidade moral da lei civil

É necessário estudar agora o que seja a lei moral e os pontos essenciais do seu conteúdo. Os
atos que estão de acordo com a lei moral, são ordenados para alcançar o bem do homem e da sua
felicidade. Mas esta ordenação não é algo arbitrário ou extrínseco à pessoa, mas está inscrito na
mesma natureza humana, por ser feito à imagem de Deus. Essa lei moral foi confirmada,
completada e aperfeiçoada por Deus na Sagrada Escritura e na Tradição, guardadas pelo
Magistério da Igreja.
É especialmente importante compreender bem as relações entre lei e liberdade. As normas
justas não são obstáculos para viver a liberdade, mas uma ajuda para descobrir onde estão os
valores morais, para o qual temos de decidir e agir livremente.
Neste tema, é preciso que o aluno trate de assimilar os conceitos fundamentais: lei, lei
divina, lei natural, lei divino-positiva (veja lei e nova lei), lei humana etc.

Introdução

Há uma intima relação entre liberdade e lei moral, da mesma forma que entre liberdade e
verdade. A exigência da verdade no que se refere ao bem, longe de diminuir a liberdade, é
necessária para seu desenvolvimento. Do mesmo modo, a lei moral não é um obstáculo para a
liberdade, mas uma ajuda para descobrir onde estão os valores normais, pelos quais o homem
deve decidir e agir livremente.
Quando se contrapõe liberdade e lei, esta contradição se deve a um desenvolvimento da lei
em chave voluntarista.
Contudo, o homem é a imagem de Deus. Tudo o que vem de Deus não lhe é alheio ou
estranho, mas é o mais seu. Por isso, a lei moral não é heterônoma, mas o mais próprio do homem.
 A moralidade é a propriedade dos atos humanos segundo o qual se ordenam ou
não à obtenção do bem do homem e da sua felicidade;
 Esta ordenação a Deus não é algo arbitrariamente acrescentado ou extrínseco à
pessoa, mas está inscrito – como dinamismo seu – na mesma natureza humana
por ter sido feita à imagem de Deus, e em virtude da graça, que recria o homem
como filho do Altíssimo;

103
 É aí que reside essencialmente a lei moral, que, além disso, encontra-se
externamente revelada na Sagrada Escritura e na Tradição, guardada pelo
Magistério da Igreja.
 A autonomia do homem não deve ser entendida como autonomia absoluta, mas
como “Teonomia Participada”: a lei moral tem Deus como autor, e o homem,
mediante sua razão, participa dela (cf. VS,36,41-46)

***

PARTE I: Noção e divisões da lei

1. Noção
A lei é uma ordenação racional da conduta humana, que guia o homem a sua perfeição.

As leis físicas e biológicas existem na natureza mesma das coisas, como dom do Criador,
que conduz ao seu fim o universo.
A lei moral é a ordenação intrínseca e dinâmica ordenada a sua própria perfeição. A criatura
humana a recebe como dom do Criador.
O peculiar das criaturas espirituais é que sua ordenação ao fim não implique nelas uma
necessidade física; mas livre, isto é, uma necessidade ética ou moral: a necessidade de seguir
livremente uma conduta para alcançar sua perfeição ou plenitude, à qual por sua vontade não pode
se subtrair, mas somente à custa de renunciar a tal perfeição e de degradar-se.
Por isso a lei moral é exclusivamente definida como ordenação racional dos atos humanos
ao fim devido:

 É uma ordenação que assinala a direção e a medida dos atos para alcançar o fim
último;
 É racional, porque foi sabiamente estabelecida pela Inteligência Divina, e é
reconhecida pela razão humana;
 Afeta aos atos humanos, isto é, as ações livres;
 Dirige os atos humanos ao fim devido: impõe assim uma necessidade moral ao
agir humano, uma obrigação ou dever, para que a pessoa alcance sua perfeição.
Como ordenação racional, toda lei pressupõe uma autoridade inteligente ou um legislador
que a estabelece. O supremo Legislador é Deus, que com sua Providência rege todas as criaturas,
com a mesma perfeição, domínio e plenitude com que as cria, de modo que nada se subtraia do
seu governo e senhorio.

2. Divisões da lei
A lei se divide em divina e humana: a lei divina se divide em natural e divino-positiva; a lei
humana, em civil e eclesiástica.
a) Por lei divina se entende, em geral, a que tem por autor Deus. Em sentido prévio
e mais amplo falamos de lei eterna para referirmos a própria Sabedoria de Deus, enquanto
originária de toda ordem e de toda lei.
 Deus, ao criar, imprimiu na natureza das criaturas a ordem de sua Sabedoria. As
criaturas intelectuais participam dessa ordem de modo superior, enquanto

104
podem conhecê-lo e amá-lo e, assim, governar-se a si mesmo: é o que chamamos
lei moral natural ou simplesmente lei natural.
 Além disso, Deus deu a conhecer ao homem a sua lei-eterna – sobretudo que se
refere ao fim sobrenatural – mediante a Revelação. É a lei divino-positiva,
preparada imperfeitamente na Antiga Lei (Antigo Testamento), e dada com
plenitude por Cristo na Nova Lei (Novo Testamento)

b) Por outra parte, Deus fez os homens participes de sua capacidade de governar e
de promulgar leis humanas na ordem do bem comum. Há dois tipos de leis humanas.
 Lei civil, que emana da autoridade que se ocupa do bem temporal; e
 A lei eclesiástica, que procede da Hierarquia da Igreja.

PARTE II: A Lei Eterna

1. Noção
A lei eterna é a mesma Sabedoria Divina, enquanto dirige todas os movimentos das
criaturas.

Deus rege todas as causas com sua Providência, provendo os meios suficientes e
superabundantes para que as criaturas consigam seu fim. Na Providência Divina se podem, por
isso, distinguir dois aspectos: no primeiro, o plano de governo, que se identifica com a mesma
Sabedoria Divina; segundo, a efetiva execução desse plano.
A lei eterna é o primeiro aspecto da Providência, o plano amoroso de governo divino. Na
execução dos desígnios providenciais, no entanto, Deus se serve também das criaturas, como
causas segundas.

2. Propriedades da Lei Eterna

a) É necessária
Diz-se que é necessária porque toda perfeição da criatura só se realiza por causa da sua
adequação à lei eterna, e porque se cumpre sempre, de um modo ou de outro, em todos os seres.

b) Ordena ab intrinseco
A lei eterna ordena ab intrinseco porque, à diferença das leis dos homens, que governam
exteriormente os atos humanos, a lei de Deus os ordena interiormente, mediante os dinamismos
que imprimem em sua natureza – e na ordem sobrenatural pela graça –, com suas potências e
inclinações a agir em ordem para o fim.
O plano da Lei eterna está, pois, inscrito intrinsicamente na criatura, o que se manifesta
em que nos proporciona a inclinação e as forças para que nossos atos se conformem com ela,
tanto a ordem da criação ou participação natural na bondade divina (lei natural), como na recriação
ou participação sobrenatural (lei da graça).
Portanto, o que a Revelação divina ensina sobre a lei corresponde a mais profunda
inclinação do homem criado e redimido. Não cabe sequer pensar que Deus, infinita Bondade,
exija de alguém uma conduta sem dar os meios oportunos.

105
c) Alcança a toda criatura e a todas as suas ações
Uma vez que as penetra desde o seu ser, a ordem da Lei eterna alcança a toda criatura e
a cada uma de suas ações em sua singularidade. É um erro pensar que Deus ordena as coisas e
as ações somente de modo geral, como fazem as leis humanas.
Nada escapa à Lei eterna e por isso nunca pode haver causa real para não a cumprir em um
caso concreto.
No entanto, as leis humanas podem não ter previsto um caso particular específico, que não
se adequasse às necessidades concretas de determinada pessoa. Isto não ocorre nunca com a lei
eterna. Por isso, seu cumprimento é sempre possível e faz feliz todo homem em toda
circunstância. Isto não quer dizer que, em ocasiões, o homem custe a entender a conveniência e a
sabedoria das exigências divinas.

3. A Lei Eterna, fundamento de toda lei


Qualquer lei só existe na medida em que participa da lei eterna.

A lei eterna, como ordem divina, é a raiz e o fundamento de toda ordem: não é somente
modelo, mas a causa de que qualquer ordem, norma ou preceito alcance o seu caráter de
verdadeira lei, ou guia até a perfeição, e, portanto, tenha força de obrigar em consciência a uma
criatura livre.

a) Toda ordenação existente no mundo provém da Lei eterna.


Qualquer ordem verdadeira entre as criaturas, em sua singularidade e em suas relações
mútuas, estão contidas na Lei eterna, e procede dela de alguma maneira. Todas as leis devem
fundar-se nela e concretar suas exigências na medida da própria autoridade de quem governa: e
não podem contradize-la sem desvirtuar-se como leis.

b) As leis humanas têm a eficácia diretiva na medida de sua participação na lei


eterna.
 Quando o homem obedece a uma lei reta e justa, em última instância, está
seguindo à sabedoria de Deus.
 A lei humana é justa e é verdadeira lei, na medida em que seu autor busca e
respeita a lei de Deus.

Parte III: A Lei Natural

No estudo da lei natural é necessário ter presente algumas questões básicas:


1. O autor da lei moral natural é Deus, porque a promulgou pelo fato mesmo de ter
criado a natureza humana, e por haver dado ao homem a capacidade de conhecê-la;
2. O fundamento ontológico da lei natural é a natureza humana;
3. Não se pode confundir com a lei física ou biológica.
 Por lei natural deve ser entendida a lei da pessoa humana, que por ser natural
ao homem, se denomina lei natural ou lei moral natural. Chama-se natural «não
por referência à natureza dos seres irracionais; mas porque a razão que a proclama
pertence propriamente à natureza humana» (CEC, 1955).
 A lei natural física domina o campo das causas necessárias. A lei natural moral
abarca a esfera do comportamento moral, como fruto de exercícios livres e
responsáveis da pessoa humana.

106
4. É necessária uma reta consideração metafísica e teológica da natureza humana
para compreender a lei moral natural. Recordemos a este respeito duas declarações importantes:
 A natureza humana não é uma natureza pura; mas uma natureza caída, que deve
converter-se em uma natureza curada e elevada à vida sobrenatural pela união
com Cristo.
 Quando falamos das inclinações naturais da pessoa humana, não nos referimos
a todas as inclinações, mas às inclinações essenciais (a inclinação ao bem, à
verdade, à vida em sociedade, à procriação e educação dos filhos, à conservação
da vida). Nem tudo o que o homem se sente inclinado a fazer pode ser
considerado natural.
5. O Magistério da Igreja tem também a missão de interpretar a lei natural, porque
«Jesus Cristo, ao comunicar a Pedro e aos Apóstolos sua autoridade divina e ao envia-los a ensinar
a todas as pessoas seus mandamentos, os constituía guardiões e intérpretes de toda lei moral, quer
dizer: não somente da lei evangélica, mas também da lei natural, expressão da vontade de Deus,
cujo cumprimento fiel é igualmente necessário para salvar-se»84.

1. Noção

 A lei moral natural «é a mesma Lei eterna gravada nas criaturas racionais»85.
 «A lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os
inclina ao ato e ao fim que os convém; é a mesma razão eterna do Criador e
governador do universo» (VS, 44).
 «A lei natural não é outra coisa que a luz da inteligência infundida em nós por
Deus. A lei deve considerar-se como uma expressão da sabedoria divina» (VS,
40).
 «A Lei natural está inscrita e gravada na alma de todos e de cada um dos homens,
porque é a razão humana que ordena fazer o bem e proíbe pecar. Mas esta
prescrição da razão humana não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o
intérprete de uma razão mais alta, à qual o nosso espírito e nossa liberdade devem
estar submetidos» (CEC, 1954).
 Em consequência, a lei natural poderia conhecer, como obrigatória, mediante a
lei natural da razão.

«Quando então os pagãos, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito
pela lei, eles, não tendo lei, para si mesmo são lei; eles mostram a obra da lei
gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus
pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem» (Rom. 2,14).

a) A lei moral natural inclina o homem a cumprir tudo aquilo que afeta a própria
perfeição, e a consecução da ordem exterior; ajuda a conhecer e amar o Criador e a ordem
que Ele imprimiu no universo, dirigindo toda sua vida a união com Deus.

Na criatura espiritual a lei natural é não somente a medida de seus atos, mas também o
princípio que a capacita para reger a si mesmo, dirigindo-se a sua própria perfeição e felicidade.
A lei natural tem um conteúdo objetivo, determinável, que pode ser anunciado e ensinado,
descoberto e conhecido.

84 PAULO VI, Enc. Humanae vitae, n. 4.


85 LEÃO XIII, Enc. Libertas praestantissimum, 20-VI-1988, DS 3247
107
b) Como medida do bem e do mal a lei natural está, primeira e formalmente, na
inteligência, que descobre a ordem ou desordem dos atos em relação ao fim da vida.

Mas enquanto dinamismo livre ordenado à própria perfeição, a lei natural está em toda a
pessoa: no conjunto de suas inclinações naturais, reunidas e regidas pela inclinação da inteligência
à verdade e da vontade ao bem e, mais precisamente, pela inclinação ao bem absoluto, que confere
ao homem idoneidade e energia para viver o amor de Deus e do próximo.

c) O caráter livre do dinamismo da lei natural na pessoa, explica que o homem pode
prescindir da sua guia, mas a lei não deixa de atuar como medida. Quando o homem
obscurece e debilita voluntariamente o vigor da lei natural, como princípio ativo impresso
em seu ser, diminui sua capacidade de amar a Deus e ao próximo.

Isto explica que, em sua condição de dinamismo ativo, a lei natural se intensifica e se
desenvolve com o comportamento virtuoso, e é obscurecida pelo pecado. Por isso, a lei natural,
permanecendo em seus princípios em todos os homens, torna-se mais plenamente atualizada na
pessoa reta do que na pessoa desordenada.

d) A existência e o conceito de lei moral natural é entendida incorretamente, tanto


no plano filosófico como no jurídico, quando se desliga de Deus, e fica dependente
unicamente da razão humana, da vontade geral dos povos, das leis da evolução, ou do
resultado histórico.

2. Propriedades da lei natural

A lei natural está impressa no coração humano, como dinamismo e medida intrínseca da
sua natureza, por isso, é comum a todos os homens, e não pode ser mudada pela autoridade
humana.

a) Universalidade
A Igreja tem ensinado sempre que a lei natural é «norma universal de retidão
moral»86; «é universal em seus preceitos; e sua autoridade se estende a todos os homens»
(CEC, 1956).

Isto implica que a lei natural:


 Guia com suas inclinações dinâmicas,
 Obriga com a luz de seus preceitos,
 Outorga seus direitos a todos os homens, qualquer que sejam suas características
pessoais de cultura, talento, bens materiais etc.
 E em qualquer circunstância: é uma ordenação universal que afeta a todos sem
exceção. «Impõe-se a todo ser dotado de razão e que vive na história» (VS, 51).

86 PIO XII, Enc. Summa pontificatus, 20-X-1939, DS 3780/2279

108
O fundamento desta universalidade é que «todos os homens, dotados de alma racional e
criados à imagem de Deus, têm a mesma natureza e a mesma origem»87 e, portanto, a mesma lex
indita (interior), ainda que não tenham a mesma lei escrita, nem a graça lhe chegue de igual modo
e grau.
 Como as «obrigações fundamentais da lei moral estão baseadas na natureza do
homem e em suas relações essenciais», «valem, por conseguinte, em todas as
partes onde se encontre o homem»88.
Os homens não criam nem inventam a lei natural, como não criam a natureza: descobrem a
ordem da lei divina impressa por Deus em seu ser e no universo inteiro.
O conteúdo da lei natural não é medido pelo que faz a maioria dos homens, mas pelo que
devem fazer segundo a ordenação de Deus, que é cognoscível se há reta vontade: e desse
conhecimento nascem as justas leis escritas, tanto promulgadas pelos legisladores como ensinadas
pelos filósofos.
Em consequência, a vigência da lei natural não depende de aprovação ou promulgação
humana, mas da força divina do ato criador. «As leis escritas, assim como não dão vigor à lei
natural, tampouco podem trocar sua própria natureza»89. Qualquer vontade ou lei humana «é
impotente para fazer honesto o que contraria o Direito natural; mas o simples fato contraria-lo faz
que uma lei deixe de sê-lo»90.
«Esta universalidade não prescinde da singularidade dos seres
humanos, nem se opõe a unicidade e a irrepetibilidade de cada pessoa; ao
contrário, abarca basicamente cada um de seus atos livres, que devem
demostrar a universalidade do verdadeiro bem. Nossos atos, ao submeter-se
à lei comum, edificam a verdadeira comunhão das pessoas e, com a graça de
Deus, exercitam a caridade, “que é o vínculo da perfeição” (Col 3,14). No
entanto, quando nossos atos desconhecem ou ignoram a lei, de maneira
imputável ou não, prejudicam à comunhão das pessoas, causando danos»
(VS, 51).
Por esta universalidade, a lei guia e está presente na consciência de toda pessoa humana.
Assim a lei natural promove a colaboração entre todos os homens.

b) Imutabilidade
Em seu conteúdo essencial, a lei natural é imutável e válida para todos os tempos:

 «É imutável e permanece através das variações da história... subsiste sobre o


influxo de ideias e costumes, e sustenta seu progresso. As normas que expressam
permanecem substancialmente válidas. Inclusive, quando se chega a renegar seus
princípios, não se pode destruir nem arrancar do coração do homem» (CEC,
1958).

87 CONCÍLIO VATICANO II, Const. Past. Gudium et spes, n.29


88 PIO XII, Alloc., 18-IV-1952, AAS 44 (1952), p.417.
89 S.Th. I-II, q 60, a. 5, ad 1.
90 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaratio de aborto procurato, 18-XI-1974,
n.21.

109
Isto é assim porque a natureza humana é a mesma não somente em todos os homens de
cada época, mas também em todos os homens de todas as épocas. As mudanças histórico-sociais,
as diversidades de cultura, etc., não podem afetar nunca a sua essência: se limitam a dar o
panorama concreto no qual o homem deve desenvolver sua vida de acordo com o desígnio divino.
A imutabilidade da lei natural não é a de uma “forma abstrata” mas a de um princípio
intrínseco e dinâmico que «não exclui a historicidade; ao contrário, a reclama, visto que conota a
pluralidade e diversidade das circunstâncias históricas na ordem da determinação do que em cada
momento hoje e agora, deve realizar-se»91.
 «As normas morais absolutas nunca mudaram»92. As condutas dos que nos
precederam na fé reconhecidas como intrinsicamente contrárias à dignidade da
pessoa, seguem sendo agora e serão sempre. Em tudo o que é essencial a nossa
natureza, o único que os homens podem fazer é progredir em seu conhecimento
ou perder a sabedoria que haviam adquirido a respeito, especialmente como
sequela de uma conduta desviada.
A imutabilidade da natureza humana e da lei natural não se opõem a que o homem
intervenha na história e tenha ele mesmo uma história93. A historicidade da pessoa consiste em
que, mediante sua liberdade, vá configurando sua própria vida e, em última instância, seu destino
eterno.
 Não se deve confundir a condição histórica do homem com a historicidade de sua
natureza. Imaginar que o homem carece de natureza em sentido metafísico,
levaria a considerar a pessoa como um “projeto aberto”, nas suas próprias mãos.
A lei natural e a cultura. A natureza humana é «a medida da cultura e da condição para
que o homem não caia prisioneiro de nenhuma de suas culturas, mas que defenda sua dignidade
pessoal vivendo de acordo com a verdade profunda de seu ser» (VS,53).
 Não é argumento em favor da mutabilidade da lei natural, o fato, invocado por
alguns, de que determinadas sociedades abandonam às vezes a prática de alguns
de seus preceitos. Quando em uma comunidade humana se generaliza um
comportamento contrário à ordem moral natural, não é porque ela tenha mudado,
mas porque em tal aspecto essa sociedade se degenerou: não responde já à
grandeza da vocação do homem.
 A condição histórica do homem explica que, nos costumes das distintas épocas e
de cada cultura, e ainda na mesma época, haja modos diversos de viver as
exigências substanciais, comuns e permanentes da lei natural. Os elementos
mutáveis dos costumes ou os usos morais não são exigências necessárias da
natureza humana, mas aspectos que, em circunstâncias determinadas,
acompanham e concretizam o cumprimento da lei moral natural.

Por exemplo, um certo direito à propriedade privada se desprende


necessariamente da natureza humana, mas pode variar o alcance desse direito, os
modos de adquirir, usar e perder o direito a uma propriedade concreta.
Analogamente, da natureza humana se segue a exigência de viver a modéstia,
mas o modo de vestir modestamente varia não somente com as épocas e culturas,
mas também com as circunstâncias (o que é modesto, por exemplo, para o
esporte, resultaria imodesto em outros momentos e atividades etc.). Ainda que

91 Cf. J.L. ILLANES, continuidade y discontinuidad del Magisterio sobre cuestiones Morales.
Trasfondo de un debate, en Persona, verità e morale, cit, pp. 260-261.
92 JOÃO PAULO II, Discurso, 12-XI-1988, n. 5. Sobre os atos intrinsecamente maus, foi tratado no
Tema 5.
93 Cf. JOÃO PAULO II, Enc. Redemptor hominis, n. 14.
110
estes aspectos sejam em si mesmo mutáveis, a medida em que o aqui e agora
sejam de fato necessários para viver conforme às exigências da lei natural, nessa
mesma medida caem também sob a sua jurisdição.
É importante distinguir entre as exigências da lei natural e as formulações dessas
exigências imutáveis:
 «É necessário buscar e encontrar a formulação das normas morais universais e
permanentes mais adequadas aos diversos contextos culturais, mas capaz de
expressar incessantemente sua atualidade histórica e fazer compreender e
interpretar autenticamente a verdade. Esta verdade da lei moral – como todo o
“depósito da fé” –desenvolve-se através dos séculos. As normas que expressam
seguem sendo substancialmente válidas, e devem ser precisadas e determinadas
eodem sensu eademque setentia94, segundo as circunstâncias históricas, pelo
Magistério da Igreja, cujas decisões estão precedidas e acompanhadas pelo
esforço da leitura e formulação própria da razão dos crentes e da reflexão
teológica» (VS, 53).

Em consequência, em relação à lei natural não tem sentido a dispensa nem a


epiqueya.

Como consequência da perfeição da lei natural e do caráter intrínseco com que ordena a
natureza humana, segue-se que não pode haver nem dispensa nem epiqueya em relação à lei
natural. Estes conceitos são aplicáveis somente às leis humanas, para salvar sua possível
imperfeição: buscar dispensas em um caso da lei natural, seria dispensar a dignidade de sua
natureza; e aplica-la com epiqueya, uma pretensão de corrigir o plano de Deus inscrito no ser
mesmo de cada homem.

3. O conhecimento e o conteúdo da lei natural

3.1. Conhecimento dos primeiros princípios e dos preceitos morais concretos

O homem pode, por suas próprias forças, conhecer os princípios fundamentais da lei natural;
mas no estado atual, de natureza caída, o conhecimento da lei natural está tão debilitado que é
moralmente necessário o auxílio da Revelação divina, para ser adquirido por todos, com
facilidade, firmemente e sem erro.
Por isso a Igreja, encarregada de guardar o depósito da Revelação, não somente tem plena
autoridade para especificar os preceitos da lei natural contidos nesta Revelação, mas também para
especificar o conjunto da lei natural.

a) Os primeiros princípios da lei natural

A pessoa humana, sempre que deseja e busca a verdade, capta como evidente algumas
primeiras verdades sobre o bem e o ser, que chamamos primeiros princípios, e que são evidentes
por si mesmas.

94 S. VICENTE DE LERÍNS, Conomonitorium priman, c. 23: PL 50, 668.


111
 Os primeiros princípios morais ou da lei natural não são umas ideias vagas ou
genéricas, mas uma luz pela qual reconhecemos se cada ato nos aproxima ou
afasta de Deus; se é bom ou mau.
Na ordem pratica, há um primeiro princípio que diz «deve-se fazer o bem e evitar o mal».
Sob a luz deste conhecimento evidente, e aplicando-o aos diversos bens que integram a perfeição
humana, a razão descobre os vários e diversos preceitos particulares da lei natural.
Entretanto, o homem não busca somente o bem, mas o bem absoluto e os demais bens
relacionados com ele. Por esta razão, considera esta verdade: devo conhecer e buscar o bem
absoluto, Deus, amá-lo sobre todas as coisas, e ao próximo como a mim mesmo por amor de
Deus. Por isso, o amor de Deus e do próximo constituem os primeiros e mais comuns preceitos
da lei natural, conhecidos por si mesmo pela inteligência humana.
Com frequência, junto ao preceito ou princípio de «fazer o bem e evitar o mal», e o princípio
de amar a Deus e ao próximo, se enumeram outros: por exemplo, «não fazer a outro o que não
quero para mim mesmo» (ou, em sua formulação positiva: «dar a cada um o que é seu»; «dar a
todos a honra devida», etc.). Trata-se de diversos modos de expressar a mesma verdade ou o
preceito fundamental do amor a Deus e ao próximo, que está na raiz de todos os demais, mas
que nem sempre é o primeiro que se capta, nem é ele mais fácil de expressar e demonstrar segundo
as diversas circunstâncias históricas.
 Com efeito, afirmar que os primeiros princípios são conhecidos por si mesmo, não dizem
que sua evidencia é imediata – como se o conhecimento de Deus e de que seu amor é o
último fim de nossa vida fosse nossa primeira evidência –, mas o caráter originário e
fundamental de tal verdade. Não há nenhuma verdade moral que funde esta e, uma vez
captada, assegura todas as demais95.
Tendo presente tanto a tradição como a reflexão moderna, pode-se fazer a seguinte
descrição do primeiro princípio, em seu desenvolvimento em vários subprincípios primeiros:

1. O homem deve amar a Deus sobre todas as criaturas, e a estas segundo a ordem
estabelecidas por Ele.

2. Em consequência, o homem deve respeitar sempre em toda pessoa sua dignidade


humana, pois cada homem é término direto do amor criador de Deus, e está destinado a conhecê-
lo e a amá-lo pela eternidade; ou, com formula diretamente evangélica, deve «amar o próximo
como a si mesmo, por amor de Deus». Este segundo princípio se divide em dois:

 Não querer para os demais o mal que não queremos para nós mesmos (aqui se encontra
a maioria dos absolutos morais: não matar, não roubar, não mentir, não adulterar etc.);
 Desejar e promover para os demais o bem que desejamos para nós mesmos.

3. O homem deve amar as demais criaturas, usando-as à serviço do bem do homem,


porque este é o fim com que Deus as quis.

b) O preceito do amor a Deus como fundamentos de todos os demais

A obrigação de amar a Deus sobre todas as coisas determina o reto amor das pessoas e dos
demais bens, e assim o conteúdo da lei natural: aquela atitude diante das pessoas e aquele uso dos

95 SANTO TOMÁS, Summa contra Gent., III, c. 116.


112
bens criados que levam o homem a conhecer e amar a Deus, é naturalmente reto; o que o impede,
é mal.
Quando o homem se esforça por cumprir esse preceito, é mais fácil conhecer e cumprir os
demais: quem ama a Deus está naturalmente inclinado a amar com ordem as suas criaturas, e põe
empenho em utilizar sua capacidade, orientando-as ao conhecimento e ao amor de Deus. Ainda
quando o cumprimento das normas morais suponha esforço, aquele que ama a Deus as observa
com gosto96.
Pelo contrário, afastar-se ou negar a Deus conduz à perda do sentido moral:
«quando se arranca do coração do homem a ideia mesma de Deus, os homens se
vem impulsionados a barbárie (...), pois tirando esse fundamento (a fé em Deus) se
derruba toda lei moral e não há remédio que pode impedir a gradativa e inevitável
ruína dos povos, de família, do Estado e da mesma civilização humana»97. A moral
ateia é um mito, frente a qual repetidamente foi prevenindo o Magistério: «A
insensatez mais característica de nossa época consiste no intento de estabelecer uma
ordem temporal sólida e proveitosa, sem apoiá-la em seu fundamento indispensável,
ou seja, prescindindo de Deus»98.

c) Os primeiros princípios e as normas particulares

Sob a luz dos primeiros princípios, e pela experiência ética e reflexão sobre os vários bens
humanos, se alcançam os preceitos ou princípios secundários, chamados também conclusões
imediatas, as que se admitem por fáceis raciocínios.
Quando para alcançar a norma, ou a exigência de um bem humano, se requer uma reflexão
mais completa e difícil, fala-se então de conclusões mediatas da lei natural.
 A lei, com seus preceitos, pressupõe e promove as virtudes. Na realidade,
somente graças às virtudes se consegue cumprir sempre o mandato do amor – e
os que o concretizam –, e somente mediante as virtudes chega-se a conhecer bem
suas exigências.

d) Os preceitos positivos e negativos da lei natural

O primeiro preceito da lei natural é o amor a Deus e ao próximo. A pessoa se realiza no


dom de si, o qual consiste no amor e na verdadeira liberdade: o homem terá mais liberdade, quanto
maior for a sua caridade.
O primeiro passo no caminho do amor é não fazer nada que prejudique o próximo: amar
a uma pessoa é querer seu bem; e não é possível querer o bem de alguém buscando o seu mal.
Daí a distinção entre os preceitos positivos, que comandam as obras do amor, e os preceitos
negativos, que proíbem as obras contrárias a eles.

96 SANTO TOMÁS, In Matth. Ev. c. 11, lect 3.


97 PIO XI, Enc. Divini Redemptoris, 19-III-1937, AAS 29 (1937), pp 76 e 103. Ensinamentos
estabelecidos, nas condições atuais, pela Enc. de JOÃO PAULO II, Evangelium vitae, nn. 23-24.
98 JOÃO XXIII, Enc. Mater et Magistra, 15-V-1961, AAS 53 (1961), p. 452. No mesmo sentido,
PIO XI, Enc. Mit brennender Sorge, 14-III-1937, AAS 29 (1937), p. 159; PIO XII, Enc. Summi
Pontificatus, 20-X-1939, AAS 31 (1939), pp. 440 e ss.
113
a) Os preceitos positivos dizem respeito às obras e às disposições que agradam a
Deus e com as quais podemos amor o próximo: são as obras e virtudes que devemos cultivar,
como expressão do verdadeiro amor.
 Os preceitos positivos são universais e permanentes; no entanto, segundo a
expressão cunhada pelos antigos, obrigam semper sed nos pro semper, segundo
as condições e circunstâncias de cada pessoa: não se pode, portanto, encerrar
exaustivamente em nenhuma fórmula.
b) Ao contrário, os preceitos negativos, como a maioria dos conteúdos da segunda
tábua – não matar, não cometer adultério, não roubar, não dar falso testemunho – esclarecem o
que nunca deve ser feito para amar a Deus e ao próximo: são «a condição básica do amor» e «ao
mesmo tempo sua confirmação»; «expressam com singular força a exigência indeclinável de
proteger» os bens da pessoa; «a vida humana, a comunhão das pessoas no matrimônio, a
propriedade privada, a veracidade e a boa fama» (VS, 13).
 À diferença dos positivos, os negativos podem ser formulados em termos
concretos, que «obrigam a todos e a cada um, sempre e em toda circunstância.
Com efeito, trata-se de proibições que vetam uma determinada ação semper et
pro semper, sem exceções, porque a eleição de determinados comportamentos
em nenhum caso é compatível com a bondade da vontade da pessoa que atua»
(VS, 52)
Convém agora notar uma coisa: «o fato que somente os mandamentos
negativos obriguem sempre e em toda circunstância, não significa que, na vida
moral, as proibições sejam mais importantes que o compromisso em agir bem, tal
como indicam os mandamentos positivos». O motivo principal é, ao contrário, este:
«o mandamento do amor de Deus e do próximo não tem em sua dinâmica positiva
nenhum limite superior, mas sim um inferior, sob o qual se viola tal mandamento»
delimitando este efeito pelos preceitos negativos. Por outro lado, os preceitos
positivos não podem estabelecer algo que se deve fazer necessariamente em toda
circunstância, pois aquilo que se pode e se deve fazer não é o mesmo em cada
situação (cf. VS, 52).

3.2. O conteúdo da lei natural e o Decálogo

O conteúdo da lei natural, que a razão pode alcançar, foi também revelado no Decálogo.
Deste modo, o crente conhece seu conteúdo também mediante um elemento externo ou escrito,
não somente pela tradição dos homens, mas outorgado pela mesma Sabedoria de Deus. O
Decálogo contém a totalidade dos preceitos da lei natural:
 Em primeiro lugar, como princípio explícito que compreende em sua raiz todos
os demais, está o amor a Deus e ao próximo99.
 De modo também explícito, em cada um dos dez mandamentos se promulgam as
conclusões imediatas da lei natural: nossas obrigações para com Deus e para
com o próximo.
 De modo implícito, no Decálogo se contém as conclusões mediatas, que a Igreja
foi sancionando expressamente com sua autoridade: obrigação de buscar a
verdadeira fé e direito à liberdade religiosa; indissolubilidade do matrimônio;
obrigação de não fechar as fontes da vida; deveres e direitos dos pais na educação
dos filhos; direito de todas à propriedade privada etc.

99 O Senhor quis ensinar com claridade que todos os mandamentos se conduzem ao duplo preceito
da caridade: «Amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente.
Este é o maior e primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: amarás a teu próximo como a ti
mesmo. Nestes dois mandamentos está baseada toda a Lei e os Profetas» (Mt 22, 37-40; cf. Mc 12, 19-31).
114
3.3. A ignorância da lei natural e seus limites

A lei natural está inscrita no coração dos homens com tal vigor que todos, se tem boas
disposições, chegam a conhecê-la ao menos em seus princípios e em suas conclusões imediatas,
com a ajuda da graça que Deus nunca nega a quem tenta cumpri-la: está impressa «nas tábuas do
coração humano, pelo dedo do mesmo Criador (cf. Rom. 2,14-15, e a sã razão humana, não
obscurecida pelo pecado e pelas paixões, é capaz de descobri-la»100.
 Não obstante, quando um meio social está cheio de ideias confusas e errôneas
sobre o homem e seu fim, os erros sobre a lei natural aparecem em cadeia. Por
isso o homem pode chegar a agir notavelmente contra à lei natural, ou a não
captar o grave rompimento que umas condutas supõem à dignidade humana,
mediante a manipulação ideológica.
Todos conhecem a lei natural somente pelo fato de ter o uso da razão, já que sua
promulgação coincide com a aquisição do uso da razão. Todos os homens possuem a capacidade
de elevar-se ao conhecimento da lei natural na medida em que é necessária para sua salvação101.
 Supondo a vontade salvífica universal de Deus, e que o cumprimento da lei
natural é necessário para salvar-se, é evidente que todo homem é capaz de
conhecê-la, ainda que com as forças de sua natureza ferida, com a ajuda que em
seu momento receberá da graça. A explicação corrobora que nenhuma pessoa
com reta disposição carece do conhecimento necessário para agir bem e distingui-
lo do mal. Não há falta que chegue a esse conhecimento por via do rigoroso
raciocínio: basta que haja por redução espontânea aos primeiros princípios
morais, ou o conhecimento por conaturalidade.
Todo homem pode alcançar as principais normas morais.
 Assim, por exemplo, a respeito das normas negativas, ensina o Magistério «Das
relações essenciais entre o homem e Deus, entre o homem e o homem, entre os
cônjuges, entre os pais e os filhos; as relações essenciais em cada comunidade –
na família, na Igreja, no Estado resulta entre outras coisas o ódio a Deus, a
blasfêmia, a idolatria, a deserção da verdadeira fé, a negação da fé, o perjúrio, o
homicídio, o falso testemunho, o abuso do matrimônio, o pecado solitário, o
roubo e a rapina, a subtração do que é necessário à vida, a fraude do salário justo,
o reter os bens de primeiras necessidade, e o aumento injustificado dos preços, a
falência fraudulenta, as injustas manobras de especulação, tudo isto está
gravemente proibido pelo divino Legislador. Não há motivos para duvidar»102.

Isto não implica que seja sempre imediatamente acessível este conhecimento, mas sim
que todo homem que se esforça por consegui-lo, com a diligência que qualquer um põe nos
assuntos que verdadeiramente lhe interessam, alcança a resolver retamente o que deve fazer em
cada caso particular (pelo menos, dando conta de que tem necessidade de pedir conselho).
Pode dar-se, entretanto, uma ignorância invencível de alguns preceitos da lei natural, nas
condições que veremos a seguir:

100 PIO XI, Enc. Mit brennender Sorge, 14-III-1937, AAS 29 (1937), p. 159.
101 Cf. PIO XII, Enc. Humani generis, 12-VIII-1950, Ds 3875/2305.
102 PIO XII, Alloc, 18-IV-1952; AAS 44 (1952), pp. 418, ss.

115
 Não cabe ignorância inculpável dos primeiros princípios da lei natural. O
primeiro princípio da razão prática, e – mais cedo ou mais tarde, o duplo preceito
de amar a Deus e ao próximo, se conhecem de modo indefectível de forma que
não cabe erro inculpável acerca deles103.

A razão é que a marca do Criador está de tal modo na estrutura da pessoa que,
enquanto o homem toma consciência de sua liberdade, percebe de algum modo –
ainda que seja no véu do mistério – que essa liberdade faz referência a Deus e que
essa mesma relação se dá em todo homem. Errar acerca deste princípio fundante
do agir moral nunca é natural ao homem, nem a sua inteligência, nem a sua
vontade. Para errar neste ponto, a vontade há de desordenar e escurecer a luz
natural da inteligência.

 Ao contrário, pode acontecer que ignore as conclusões imediatas da lei natural.


Em determinadas condições (educação gravemente deformada etc.), alguns a
ignoram sem culpa.

Ainda que não seja uma opinião unanimemente aceitada, as teses mais comuns
e mais conforme com a experiência é que, em circunstâncias particulares, cabe
ignorância inculpável por um certo tempo, mas não durante toda a vida, de
alguns, mas não de todos104: a ignorância inculpável sobre alguns preceitos do
Decálogo, cedo ou tarde desparece ou se torna culpável. Esta opinião é, também,
a mais coerente com a realidade da Providência divina. No princípio, não aparece
que – em questões tão importantes – Deus deixe de dar aos homens os meios para
conhecer o caminho que os conduzem a sua perfeição e felicidade. Entre esses
meios, está o exemplo e a palavra das pessoas retas, especialmente os cristãos105.

 Enquanto à ignorância acerca das conclusões remotas, como para conhecê-las


se requer formação e estudo, com mais frequência podem ser ignoradas sem culpa
– é opinião comum – uma ou várias; nem todos estão em condições de alcançar
esse conhecimento, que exige maior penetração da inteligência e ajuda do
ambiente, além da boa disposição da vontade. Assim pode ocorrer, por exemplo,
com a indissolubilidade do matrimônio, com a maldade da contracepção etc.

3.4. Os cristãos e a lei natural


Os cristãos que gozam da certeza da fé sobre o conteúdo da lei moral natural
devem procurar que ela informe à sociedade.

103 Cf. S. Th., I, q.79, a. 12, ad 3.


104 Cf. SAN AGUSTIN, De Sermone domini in monte, lib. 1, c.16: PL 34 1254; S. Th., I-II, q. 94.
A.6.
105A ignorância temporal em boa fé é explicada porque conhecer as conclusões imediatas exigem
um certo esforço para descobri-las, e cabe errar sem culpa; mas não é possível que esse erro se mantenha
durante muito tempo, se há uma boa vontade, porque se trata de coisas que repugnam por si e de modo
imediato a própria natureza: depois de um certo tempo se verifica, ao menos porque surge a dúvida, que
não se está agindo bem.

116
Somente Cristo revelou ao homem sua própria dignidade, o valor transcendente de sua
humanidade, o sentido último de sua existência106. A Igreja tem, portanto, a inteira verdade sobre
o homem: por isso, «recordando as prescrições da lei natural, o Magistério eclesiástico exerce
uma parte essencial de sua função profética de anunciar aos homens o que são de verdade e de
recordar-lhes o que devem ser diante de Deus (cf. Dignitatis humanae, 14)» (CEC, 2036). Daí
que o Magistério da Igreja seja interprete autêntico da lei natural.
Os cristãos contam com esta grandíssima ajuda, que reforça com garanta divina seu
conhecimento da ordem moral natural. Isto comporta uma séria responsabilidade: a de
esforçar-se porque «a lei divina fique gravada na cidade terrena»107. A este propósito, o Concílio
Vaticano II quis ressaltar especialmente a responsabilidade dos leigos: «O Senhor deseja dilatar
também seu reino por mediação dos fiéis leigos. Devem, pois, os fiéis conhecer a natureza íntima
de todas as criaturas, seu valor e sua ordenação à glória de Deus»108.
Ao ensinar e defender a lei natural, os cristãos não impõem aos demais suas próprias
opiniões ou crenças religiosas, mas cumprem um sagrado dever de mostrar a todos os
homens o caminho de sua própria dignidade e felicidade.

É necessário que os cristãos estejam prevenidos contra os sofismas que pretende inibi-los
da defesa da ordem moral da criação, por exemplo, argumentando que de outro modo não
respeitam a pluralidade de opiniões na sociedade. Ante questões como o divórcio, o aborto, a
justiça social, a moralidade pública etc., não cabe abster-se por um falso respeito às opiniões dos
demais: seria uma fraude ante essas mesmas pessoas109. Certamente, há que defender a verdade
em modo positivo, respeitando os demais, vivendo a caridade; mas ela deve ser proclamada sem
medo.

PARTE IV: A Nova Lei

1. Natureza da Nova Lei


«A Lei nova ou Lei evangélica é a perfeição aqui embaixo da lei divina, natural e
revelada. É obra de Cristo e se expressa particularmente no Sermão da Montanha. É
também obra do Espírito Santo, e por Ele vem a ser a lei interior da caridade» (CEC,
1965).

1.1. O elemento interno da Nova Lei

A Nova Lei consiste principalmente na graça do Espírito Santo, que nos chega
através de Cristo, e nos move a agir segundo a luz da fé que opera pela caridade.

106 Cf. JOÃO PAULO II, Enc. Redemptor hominis, n. 11; cf. CONCILIO VATICANO II, Const.
past. Gaudium et spes, n. 22.
107 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 43.
108 CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n.36.
109 Cf. CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 36; Const. past. Gaudium et
spes, nn. 16, 26, 43; etc.

117
Seu elemento primeiro e principal é a presença operante do Espírito Santo, que a graça
outorga a cada crente, mediante a fé e a caridade, unidas ao conjunto das demais virtudes infusas
e dons.
Se a lei natural está inscrita no homem como luz de sua inteligência e inclinação de sua
vontade ao bem, a lei de Cristo é luz sobrenatural da fé e força operante da caridade.
«O Espírito escreve em vossos corações a lei de Deus... Não está inscrita somente no
exterior: na Sagrada Escritura, nos documentos da Tradição e do Magistério da Igreja.
Está escrita também dentro de vós»110. E por isso Cristo não é um modelo externo, e seu
surgimento não é uma simples imitação exterior.
A Nova Lei é, portanto, uma guia intrínseca e ativa de nossos atos: não somente
mando o que devemos fazer, mas dá a luz para conhecê-lo e força para cumpri-lo:
«Foi-nos doado o Espírito Santo, afim de que nos mova desde dentro a agir em Cristo e
como Cristo. A lei de Cristo está inscrita em nossos corações mediante o Espírito
Santo»111.

1.2. O elemento externo


A Nova Lei é, também, lei externa: guia-nos com os ensinamentos, exemplos e
preceitos contidos na Escritura e na Tradição.

Estes ensinamentos e preceitos escritos, ainda que sejam secundários em relação à graça,
são muito importantes, porque nos dispõem a recebê-la e a seu reto uso.
Convém considerar, também, que a letra da Nova Lei possui uma perfeição muito superior
à das leis humanas, porque seu autor é Deus mesmo, que não está sujeito às limitações dos
homens.

2. Conteúdo da Nova Lei

Pode-se resumir o conteúdo da Nova Lei nos seguintes pontos:


1. A lei de Cristo confirma a lei natural e contém novos ensinamentos e
preceitos referentes à graça e à vida nova que instauras.

a) A Nova Lei contém os preceitos necessários à recepção e à conservação da fé e


da graça, em especial pelos sacramentos da Igreja e pela obediência a seus legítimos Pastores.
Assim, são imperativos da Nova Lei: a recepção do Batismo, como porta necessária para
a vida sobrenatural (Mc. 16,16); para quem depois de recebe-lo cair em culpa grave, a prática da
confissão (Jo. 20,22-23); a recepção da Eucaristia para manter e aumentar a vida da graça na alma
(Jo. 6,5 e ss.); a prática da oração (cf. Mat. 6,5 7,7;26,41; Lc 18,1; etc.); a prática da penitência e
da conversão (cf. Mt 3,8; 4,17; 6,16; Mc1,15; etc.).
Estas indicações, sobre a transmissão da graça e de Revelação, foram entregues à Igreja
e são fonte primordial do Direito canônico.

b) Em segundo lugar, a lei de Cristo contém ensinamentos e mandatos sobre as


obras próprias da vida nova no Espírito.

110 JOÃO PAULO II, Homilía, 2-XI-82, n. 4.


111 JOÃO PAULO II, Audiência geral, 31-VIII-83, n. 2.
118
Algumas destas obras, tanto internas como externas, a Nova Lei as manda ou proíbe
diretamente, tanto que marcam uma necessidade ou contrariedade imediata com a vida da graça,
como: a confissão da fé: «o que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu
Pai; o que me renegar diante dos homens, eu o negarei diante de meu Pai» (Mt 10,32); o perdão
dos inimigos; orar pelos que nos perseguem e caluniam (cf. Mt 5, 17 e ss.); manter a paz e a
caridade com todos, a paciência, a longanimidade (cf. Gal. 5,12); o amor ordenado aos demais
homens, e, em primeiro mandato, aos irmãos na fé (cf. Gal. 6,10); a correção fraterna (cf. Mt
18,15-17; At. 20,26-27; etc.)
Outras obras, ao contrário, a Nova Lei simplesmente as aconselha, se tem conveniência,
mas não necessidade na ordem da vida da graça, ou podem realizar-se de diversas maneiras: por
ex. a virgindade (cf. Mt 19,12).

c) Finalmente, a Nova Lei ensina e ratifica todo o conteúdo da lei natural, já que
aclara e interpreta autenticamente seu sentido.
O Senhor insistiu que não havia vindo invalidar o Decálogo, mas dar-lhe seu perfeito
cumprimento (Mat. 5,17); e aclarou os pontos que haviam sido mal interpretados pelos doutores
da lei: por exemplo, o alcance da proibição do adultério e do homicídio, que estavam referindo
somente ao caso exterior e não ao desejo interior; o mesmo com o perjúrio e o juramento:
pensavam que o primeiro estava proibido e o segundo era desejável, mas o Senhor ensinou que
se devia jurar somente quando fosse necessário.

2. A substância da Nova lei pode compreender-se no seguimento de Cristo


(sequela Christi).

«Seguir a Cristo é o fundamento essencial e original da moral cristã (...). Não se trata
somente da escuta de um ensinamento e de cumprir alguns mandamentos, mas de algo muito
mais radical: aderir à pessoa mesma de Jesus, compartilhar sua vida e seu destino, participar
de sua obediência livre e amorosa à vontade do Pai (...). Jesus pede que lhe sigam e imitem o
caminho do amor, de um amor que se dá totalmente a os irmãos pelo amor a Deus: “Este é o
meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu os tenho amado” (Jo. 15,12)» (VS,
19,29).

O seguimento de Cristo leva à identificação do batizado com Cristo. Implica a


comunhão de vida com Ele.
As obras do cristão se resumem, pois, na recepção dos sacramentos, e em um
comportamento que leva a dar a vida à imitação de Cristo, reflexo da ação interior da graça.
De fato, foi nos dado o Espírito Santo, para que nos mova a agir como Cristo e em Cristo.
A Nova Lei, em sua plenitude, é Cristo mesmo: o Verbo Encarnado, modelo e
princípio de toda nova criatura. Ser cristão consiste precisamente em ter sido vivificado por
Cristo e encontrar n’Ele o princípio e a regra da própria vida.
A semelhança com Cristo, sob o domínio crescente da graça, leva à identificação
com Ele, até ter seus mesmos sentimentos (cf. Fil. 2,5): um empenho por viver somente
para a glória do Pai, fazendo em tudo sua vontade (cf. Jo. 16,31; 15,10), e cumprir no mundo
a obra que o Pai lhe havia encomendado, para a salvação de todos os homens (cf. Jo. 17,18)

3. Propriedades da Nova Lei

Diz o catecismo que esta nova lei, ou lei evangélica, se chama «Lei do amor,
porque faz agir por amor, que infunde o Espírito Santo, mais que por temor... Lei
da Graça, porque confere a força da graça para agir mediante a fé e os

119
sacramentos... Lei da liberdade, porque nos liberta das obrigações rituais e
jurídicas da lei antiga. Nos inclina a agir espontaneamente sob o impulso da
caridade e nos faz passar da condição de servo, à de amigo de Cristo; ou também
à condição de filho herdeiro» (CEC, 45).

3.1. A Nova Lei, lei do amor

A Antiga Lei foi chamada “lei do temor”, porque levava a maioria do povo a agir mais
por medo da sanção, do que por amor.
Ao contrário, a Nova Lei reside essencialmente na caridade, que leva a amar a Deus
e ao próximo com amor sobrenatural, fazendo do amor a regra e o princípio de todos os atos (Jo.
13, 34).
Toda a Nova Lei é fruto do amor divino, do amor paterno de Deus, que o levou a
entregar por nós seu próprio Filho, quando ainda éramos pecadores: «Nós amamos, por Ele nos
amou primeiro» (1 Jo 4,19).
O mandamento novo (mandatum novum) não se limita a exigir o amor a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, segundo o primeiro preceito da lei natural,
recordado pela lei de Moisés; pede amar a Deus Uno e Trino, em cada uma de suas Pessoas e com
a força que Ele nos dá, e aos outros em Deus, com essa nova força sobrenatural da caridade, que
se estende ao próximo e o transforma.

3.2. A Nova Lei, Lei de perfeita liberdade

Pelo pecado, a liberdade se encontra escravizada a falsos bens que afastam de Deus, o
bem verdadeiro. A escravidão mais radical é a escravidão do pecado.
Mas o homem continua também escravizado, de alguma maneira, quando faz o bem
principalmente por temor.
De ambas servidões nos livra a graça, unindo-nos de novo a Deus, e movendo-nos a
cumprir sua lei por amor.
Ademais, a Nova Lei é lei de perfeita liberdade porque, ao conferir a caridade, não
necessita manda mais que o estritamente requerido para a união com Deus: se alguém se dirige
voluntariamente ao fim, basta mandar-lhe o necessário para que o alcance. Por isso, a Nova Lei
manda ou proíbe somente o diretamente necessário ou contrário à nossa identificação com Ele;
no demais deixa a concretização das obras à ação sempre original do Espírito Santo e à
correspondência singular e irrepetível a cada um, sob a guia da legítima autoridade.
Esta máxima liberdade da Nova Lei não significa menor exigência, nem ausência de
dificuldades, mas perfeição da virtude que outorga para cumprir seus mandatos: a caridade não é
a negação da lei, mas sua plenitude.

3.3. A Nova Lei, Lei definitiva

A lei da graça nos faz partícipes da vida divina, já neste mundo, e assim de algum modo
nos introduz no fim verdadeiro da vida humana, que é a união com a Trindade. Por isso, não
admite ulterior perfeição.
Este caráter definitivo e, portanto, não sujeito a mutações, não significa que não haja no
conteúdo da Escritura indicações ou mandatos que dependam em certa medida das circunstâncias
históricas.
No entanto, nunca mudaram seus princípios, em particular o duplo preceito da
caridade, ao nível superior de santidade em que revelou Cristo. Tampouco as exigências que de
um modo ou de outro são diretas expressões suas.

120
Sem variar em absoluto, cabe uma compreensão sempre nova e criativa do tesouro da
Revelação: não porque antes não se entendera – o que equivaleria a pensar que Cristo se revelou
insuficientemente –, mas por sua infinita riqueza, que faz inesgotável o progresso em sua
inteligência. Isto é o que sempre entendeu a Igreja, falando da custódia do depósito.

4. A formulação do princípio personalista em termos especificamente cristãos

O que acabamos de ver pode-se resumir, em temos de um personalismo evangélico,


afirmando como primeiro princípio a moral cristã:
Saber e agir como filhos muito amados de Deus, o que leva a amar os demais com
o amor de Cristo, sob o impulso do Espírito Santo.

Esta formulação parte de que, segundo expressamente afirma Santo Agostinho e Santo
Tomás, e definitivamente cada homem sabe por experiência, nada move tanto a amar como
saber-se previamente amado.

5. Uma síntese da moral e o ethos do cristianismo:

a) A doutrina da imitação: «Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados» (Ef. 5,1);
b) A observância dos mandamentos como manifestação do amor: «se me amas guardareis
meus mandamentos» (Jo. 14,13);
c) A Cruz e a submissão às provas: «Deus os trata como filhos, e que filho não é corrido por
seu pai? Se os privasse da correção que todos receberam, seriam bastardos e não filhos» (Heb.
12, 4-8);
d) O reconhecimento das próprias culpas e a conversão (cf. Lc 15, 13-20).

6. A antiga e a nova lei


A Lei antiga foi a preparação da Lei de Cristo, seus preceitos morais foram sendo
confirmados por Ele; os judiciais e os cerimoniais foram revogados.

Na Antiga Lei, Deus atuou como pedagogo (cf. Gal. 3,24): tinha em comum com as leis
humanas seu caráter extrínseco; não sanava à natureza, mas instruía e mandava o povo de Israel
observar a lei natural, para que se dispusesse a receber a graça, conservasse a fé no Messias e
cumprisse com sua missão de povo eleito.
Esta missão de pedagogo, que tinha a lei mosaica, a cumpre agora a Igreja de um modo
mais perfeito: com os ensinamentos de seu Magistério ajuda a batizados e não batizados a
reconhecer a lei natural; e em sua pregação todos encontram facilidade para reconhecer a
verdadeira dignidade da pessoa e seu chamamento a participar na vida divina.

Parte V: As Leis humanas

1. Necessidade e noção da lei humana


A lei humana é uma ordenação da razão dirigida ao bem comum, promulgada por
aquele que tem função de governo na comunidade.

121
 Trata-se de uma ordenação ou ditame da razão. Não se funda em um simples
capricho, ou no afã do poder, mas no descobrimento – que compete à razão – daquilo que é mais
conveniente para o bem comum.
 Ademais, a lei humana é ordenação imperativa da conduta: não somente ensina
o que se deve fazer mas manda fazê-lo pelo mandato, dado com intenção de obrigar;
 Por isso, toda lei humana deve ser promulgada, ou seja, deve-se comunicar
externamente aos sujeitos que vão obedecê-la.
 A lei humana somente pode ser estabelecida pela autoridade legítima, não um
particular, porque somente à autoridade incumbe determinar as concreções do bem comum.
 O fim da lei humana é sempre facilitar o conhecimento e concretizar as
exigências do bem comum, que consiste no «conjunto daquelas condições da vida social que
permitem aos grupos e a cada um de seus membros conseguir mais plena e facilmente sua própria
perfeição»112 (Gaudium et spes,26).

O Catecismo sintetizou as exigências do bem comum em três elementos essenciais:


a) «Em primeiro lugar, o respeito à pessoa enquanto tal. Em nome do bem comum as
autoridades estão obrigadas a respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana.
A sociedade deve permitir a cada um de seus membros realizar sua vocação. Em particular, o bem
comum reside nas condições de exercício das liberdades naturais que são indispensáveis para o
desenvolvimento da vocação humana: “direito a atuar de acordo com a norma reta de sua
consciência, à proteção da vida privada e a justa liberdade, especialmente em matéria religiosa”»
CEC, 1907);
b) «Em segundo lugar, o bem comum exige o bem estar social e o desenvolvimento do
grupo» (CEC, 1908);
c) «O bem comum implica, finalmente, a paz, ou seja, a estabilidade e a segurança de uma
ordem justa» (CEC, 1909).
A sua manutenção exige uma autoridade, capaz de determinar imperativamente alguns
aspectos das condutas individuais, na função e de acordo com a ordem divina. A autoridade civil
é algo querido por Deus com a natureza humana, de modo análogo e como é querida a autoridade
paterna. E um modo fundamental do exercício da autoridade, para levar a cabo sua função de
governo, são precisamente as leis.

1.1. A lei humana, participação mediata da Lei eterna

As leis humanas participam e imitam, na medida de suas possibilidades, a lei divina. Regem
o homem ilustrando sua inteligência para que conheçam o caminho do bem, e movendo sua
vontade a recorrê-lo com a força do mandato.
a) Sua forma primária e mais universalmente eficaz de participar na Lei eterna é
sua “vis directiva”.

Ensinam e mandam cumprir a ordem justa. São, deste modo, uma participação da luz da Lei
divina, que nos chega extrinsecamente, através de uma autoridade humana. Por isso:
 Devem recordar, embora não os estabeleçam, os preceitos da lei natural com mais
diretas repercussões sociais, especialmente se são conclusões cujo conhecimento
e observância são mais difíceis a grande número de homens;

112 Const. past. Gaudium et spes, n. 26.


122
 Compete-lhes também determinar, entre as diversas possibilidades da ordem
social conforme a lei natural, a mais conveniente ao bem comum, em cada tempo
e comunidade particular.

b) Em segundo lugar, as leis humanas participam da Lei eterna por sua “vis
coactiva”.

Mediante às sanções que induzem extrinsecamente a prática do bem. A coercibilidade é


elemento necessário da lei humana; somente são leis em sentido pleno as emanadas de uma
autoridade com poder de exigir coercitivamente seu cumprimento.
As leis civis não são nunca questão alheia à moral. O direito, em uma visão realista, é
essencialmente o respeito das exigências da justiça: seu objeto é o justo. As leis têm como fim
regular os direitos e os deveres dos homens, enquanto procedem da virtude da justiça em modo
necessário para a vida social. Por isso têm, por natureza, uma dimensão ética: «forma parte dos
deveres da autoridade pública atuar de modo que a lei civil se atenha às normas fundamentais da
moral no que concerne aos direitos do homem, da vida humana e da instituição familiar»113.

1.2. Âmbito das leis humanas

As leis humanas participam do poder da Lei divina exclusivamente no âmbito do bem


comum, para o que Deus institui cada autoridade: os homens estão submetidos em tudo a Deus,
e a outros homens somente na medida determinada por Ele114.
Na sociedade civil, o âmbito das leis está em função do bem comum temporal. Este bem
comum temporal não é simplesmente nem meramente matéria, mas fundamentalmente espiritual.
A sua instauração exige o estabelecimento e a conservação daquela estrutura social que a todos
permita, e, no possível, facilite viver retamente.
Portanto, a lei civil deve promover positivamente as atitudes e a conduta ética; mas
somente pode exigi-la enquanto a seus atos externos.
 O bem comum – fim da lei humana – exige a prática das virtudes (justiça,
honestidade, laboriosidade etc.). No entanto, as leis humanas não podem
imperar todos os atos de virtude, mas somente os acessíveis à maioria: as
normas humanas se dirigem a todos os homens e não somente aos melhores115.
 Daí que não proíba expressamente todos os vícios, mas somente os que danificam
mais diretamente a ordem social: à diferença da lei divina, não esgota o campo
da moral; por isso se diz que o Direito é o minimum ethicum.
 Por outra parte, a lei humana regula somente os atos externos, porque a
autoridade civil não consegue mover intrinsecamente à virtude, mas somente a
salvaguardar aquela ordem exterior que facilita sua prática.
Na Igreja estas características da lei humana se dão com certas peculiaridades, porque
seu fim é sobrenatural: a salvação das almas, uma a uma. Por isso as leis eclesiásticas, não só

113 CONGREGACION PARA LA DOCTRINA DE LA FE, Instrucción sobre el respeto de la vida


humana naciente y la dignidad de la procreación, III.
114 S.Th., II-II, q. 104, a. ad 2.
115 Cf. S.Th., I-II, q. 96, a. 2.

123
ordenam os atos externos, mas também o interno: podem mandar atos interiores, dentro do poder
concedido por Cristo. Ainda que sobrenatural por sua origem, por seu fim e seus meios, como se
compõe de homens, a Igreja utiliza também meios humanos. Neste caso, leis, quer dizer: as leis
eclesiásticas, destinadas a guiar os fiéis para a salvação eterna.

2. Obrigatoriedade moral da lei humana

A força de obrigar das leis humanas não radica no poder dos homens, na pura força
coercitiva, mas em sua participação na Lei eterna: ou seja, na medida que são justas.
As leis humanas são justas e legítimas na medida em que derivam da lei eterna. Esta
derivação é dupla:
 Algumas vezes, é direta, quando se limitam a assinalar o que estabelece a lei
divina;
 Outras, é através de determinação de algumas conclusões da Lei divina,
convenientes segundo as circunstâncias concretas de cada sociedade: por
exemplo, exigências de salários justos etc.
Naturalmente, as leis humanas não têm em um e outro caso o mesmo valor:
 A lei humana que recolhe a lei natural simpliciter, rege com a força desta última,
de modo que quando indica um preceito, esse passa a ser vigente para a
consciência, ainda quando a lei humana não a recolhesse.
 Ao contrário, no segundo caso a lei humana rege somente no âmbito do mandato
e a promulgação da legítima autoridade;

a) Enquanto são justas, nessa mesma medida as leis humanas obrigam em


consciência. O homem somente pode ser vinculado em consciência por Deus e
por quem –sabendo ou não – atua retamente com a autoridade que, em última
instancia, d’Ele recebe.

As condições para que uma lei seja justa são:


 Que provenham de uma autoridade legítima, dentro do âmbito de suas
atribuições;
 Que se ordene ao bem comum, em sua dependência do bem divino. É injusta
qualquer norma que se oponha à lei natural ou à lei divino-positiva;
 Que reparta – quando for o caso – as cargas necessárias ao bem comum de modo
proporcional, cumprindo a justiça distributiva116.

b) As leis injustas não são propriamente leis, e não obrigam por si mesmas em
consciência.

De todos modos, a atitude devida diante da lei injusta varia segundo o modo em que
contraria o bem comum:

116 Cf. SANTO TOMÁS, In Ep. ad Romanos Lect., c. 13, lect. 1.

124
 Se a lei injusta ordena algo diretamente contrário à lei divina, não somente não
obriga em consciência, mas que a consciência reta obriga a desobedecê-la. Em
tal caso «a resistência é um dever: a obediência, um pecado»117;
 Se a lei injusta não se opõe diretamente ao bem divino, ainda que não obrigue
por si mesmo em consciência, tampouco a consciência obriga a desobedecê-la e
per accidens pode vincular a conduta: se não a seguir produz um maior dano ao
bem comum, por escândalo ou por algum outro motivo. Assim, por exemplo, as
disposições que estabelecem algum monopólio ou taxa injusta por si não obrigam
em consciência; mas na medida em que a desobedecer provocará uma
desnecessária desordem social, seriam obrigatórias per accidens.

3. A aplicação equitativa e a dispensa das leis humanas

A participação da lei humana na lei eterna é imperfeita, pois tem os limites próprios da
inteligência e da vontade humana. As leis dos homens sofrem do fato de que a inteligência do
legislador não alcança todos os casos singulares, e da possível falta de retidão em sua vontade.
Daí seu duplo risco de deficiência:
 Seu caráter geral, que há de remediar-se com a equidade;
 A possibilidade de que sejam injustas.

3.1. A equidade
É a interpretação adequada da lei em um caso particular, por cima de sua letra,
para seguir o seu espírito.

O legislador, ao ditar suas leis, observa o que ocorre na maioria das vezes, porque é
impossível contemplar a totalidade dos casos contingentes sobre os que podem versar os atos
humanos. Por isso, quando as circunstâncias que concorrem em um suposto concreto não tenham
sido levadas em conta, e o que manda a lei resulta ocasionalmente contrário ao bem comum, a
letra de tal lei não obriga: a razão e a justiça exigem que se aplique com equidade, por cima do
sentido literal, seguindo seu espírito.

3.2. A dispensa da lei


Chama-se dispensa o ato da autoridade que exime em um caso particular da
obrigação de observar uma lei.

Esta possibilidade é uma consequência a mais do caráter extrínseco e limitado das


leis humanas. A dispensa é um modo de remediar, em razão do bem comum ou do bem da pessoa,
as insuficiências da lei. Por isso, somente cabe dispensa das leis humanas, civis ou eclesiásticas;
nunca a autoridade humana pode dispensar da lei divina, pois esta alcança perfeitamente a todos
e a cada um dos casos singulares.
No geral, pode dispensar de uma lei o que a promulgou, seu sucessor, seu superior e
aqueles que tenham recebido deles a delegação correspondente para outorgar a dispensa. Em caso
de necessidade, como norma geral, o indivíduo pode recorrer à aplicação equitativa da lei ao caso
singular, quando não é possível o recurso à autoridade competente118. Por exemplo, em uma

117 LEÃO XIII, Enc. Sapientiae Christianae, 10. I. 1890.


118 Cf. S.Th., II-II, q. 147, a. 4. c.
125
situação particular não contemplada adequadamente pela lei, pode ser lícito interpretar com
equidade leis impositivas.

4. Finalidade moral da lei civil

Toda a autoridade humana está dentro dos planos da Providência, para cooperar com eles,
nunca para tentar suplantá-los: existe para contribuir a que se viva a justiça. Daí que as leis que
emanam de qualquer autoridade humana tenham irrecusavelmente uma relação com a ética. Esta
dimensão ética das leis se faz presente considerando que o fim da sociedade é o bem das pessoas,
que é um bem moral119.
Portanto, a lei, se quer verdadeiramente ordenar ao bem comum, deve promover a honra
pessoal dos cidadãos: o legislador não se deve limitar a manter uma ordem externa destinando
somente a garantir que nada interfira na autonomia alheia, mas que tenha de preocupar-se por
tutelar os princípios éticos, no âmbito de sua competência. Se não atendesse a este dever, a
autoridade civil agiria com desordem e não lograria o bem comum120.
O respeito da ordem moral e em particular das normas morais absolutas constitui o único
fundamento sólido de uma convivência humana estável.

4.1. As Leis “mere poenales”

Alguns autores falam da existe de leis mere poenales, que se caracterizariam por não
vincular a consciência do sujeito, obrigando somente a satisfazer eventualmente a pena: deixar de
as observar não seria culpa, mas o sujeito estaria moralmente obrigado a cumprir a sanção
estabelecida, em caso de ser descoberta sua infração (aplicam-no, geralmente, a leis de tráfico,
contrabando em pequena escala, caça e pesca etc.)121. Talvez seja mais preciso, no entanto,
afirmar que toda lei justa envolve alguma obrigação moral, e somente segundo as normas da
equidade – ou se é injusta – deixa de obrigar.

4.2. A tolerância nas leis civis

As leis humanas permitem, às vezes, condutas contrárias à lei moral. Não se trata, contudo,
de uma realidade necessariamente oposta ao bom governo: o legislador humano pode «tolerar
alguns males em razão de algum bem amor maior que deles provenha, ou para evitar piores
males»122.
A tolerância não é positiva autorização do mal, mas ausência de sua repreensão.

Ao modo que Deus permite o mal moral sem aprová-lo, a autoridade humana pode tolerar,
sem aprová-la, uma conduta contrária à lei divina. No entanto, «nenhum estado, nenhuma
comunidade de estados, quaisquer que sejam sua condição religiosa, pode dar um mandato

119 SANTO TOMÁS, De regimine Principum, I, c. 14.


120 Cf. JOÃO PAULOII, Enc. Centessimus annus, 44 y 46
121 Cf. D. M. PRÜMMER, Manuale Theologiae Moralis, cit., nn. 209-212.
122 S.Th., II-II, q. 10, a. 11.

126
positivo ou outorgar uma positiva autorização para ensinar a fazer o que é contrário à verdade e
ao bem moral. Um tal mandato ou autorização careceria da força de obrigar»123.
Nem sempre a autoridade tem «o dever de reprimir positivamente» todas as condutas
imorais124. Assim o legislador justo tolera às vezes abusos como, por exemplo, certo grau de
imoralidade nos negócios; mas nunca aprovando essas condutas e declarando-as retas, mas
unicamente quando se considera impotente para endireitá-las. Não é o mesmo, portanto, uma lei
tolerante e uma lei que autoriza positivamente o mal, ou seja, permissiva.
Para que uma lei tolerante seja justa se requer:
 Que exista uma causa proporcionalmente grave;
 Que a lei não autorize positivamente o mal.
O legislador não pode tolerar o mal moral, a não ser quando, às medidas mais graves que
deveriam ser tomadas, se opõe una causa suficientemente grave. O mal moral gera sempre uma
desordem social, contrária ao bem comum. Somente resulta legítimo tolerar essa desordem
quando a reprimir for origem, na prática, de um mal claramente maior, ou impedir um bem mais
alto125.
Como não é o mesmo tolerar e aprovar, a lei tolerante se faz com o objetivo de regularizar
o ato desordenado somente no sentido de limitar sua comissão; mas não pode outorgar direito
a cometê-lo, nem o facilitar, porque em tal caso o legislador cooperaria formalmente no mal: em
geral a despenalização, sempre que esteja em jogo direitos de terceiros, comporta
permissivismos, é uma garantia de que a vítima não será protegida. Pode, ao contrário, proteger
os direitos para terceiros que surjam do ato desordenado, deixando a salvo os direitos preferentes
dos prejudicados.
Não podem, portanto, chamar-se tolerantes normas diretamente contrarias à lei divina: ex.
uma lei que outorgue direito ao divórcio. Essas leis não são tolerantes, mas permissivas e
injustas. Por isso, participar em sua aprovação será sempre uma cooperação ao mal, somente
legítima dentro dos limites que estabelecem a moral nesta difícil matéria, precariamente
resolvido com o voluntário indireto.

4.3. As obrigações morais do legislador

Uma importante consequência da finalidade ética das leis civis, e os delicados problemas
que este levante, é a exigência de que os legisladores sejam pessoalmente justos e conheçam
a ordem moral. Se o legislador se esforça por conhecer a lei divina, buscará o verdadeiro bem
da sociedade. Quando a autoridade humana se esquece desta dependência, suas leis perdem
progressivamente a eficácia ordenadora ao bem comum. A eficácia diretiva da justiça tende a
substituir então à mera planificação externa do bem-estar material, frequentemente levada de
modo crescentemente invasor da esfera privada, e abrindo caminhos para a desordem moral.
Parece importante ressaltar aqui, ainda que sejam temas aos quais se haja brevemente
aludido, o delineado dos instrumentos jurídicos-morais muito importante para assegurar a
presença e o influxo dos cristãos na progressiva evangelização da sociedade, segundo critérios
verdadeiramente humanos, e apesar das não poucas dificuldades reais do ambiente:
a) Em primeiro lugar, as chamadas leis imperfeitas, expressamente acolhidas pela
Encíclica Evangelium vitae, que marcam o critério para intervir na progressiva

123 PIO XII, Alloc. 6.XII. 1953. AAS 43 (1953) p. 798.


124 Ibidem, p. 799.
125 Cf. S.Th., II-II, q. 10, a. 11, c.
127
melhora de leis – na prática, difíceis de mudar totalmente de modo imediato (ex.
sobre o aborto, divórcio) – que, por si, vão claramente contra a lei divina.

«Quando não seja possível evitar ou revogar completamente uma lei abortista, um
parlamento, cuja absoluta oposição pessoal ao aborto seja clara e notória a todos,
pode licitamente oferecer seu apoio a propostas encaminhadas a limitar os danos
dessa lei e diminuir assim os efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade
pública. Com efeito, agindo deste modo não se presta uma colaboração ilícita a uma
lei injusta; antes bem se realiza uma tentativa legitima e forçada de limitar seus
aspectos iníquos»126.

b) Em segundo lugar, a objeção de consciência – hoje admitida na maioria dos Estados,


inclusive para questões de muita importância –, que deve ser praticada com valentia
pelos profissionais (médicos, enfermeiras, farmacêuticos, etc.) que trabalham em
campos conflitivos, contribuirá à mudança crescente de mentalidade.

Exercícios de auto comprovação

1. O Que é a lei? Quais tipos de leis existem?


2. Quais são as propriedades da lei natural?
3. Qual é o conteúdo da lei natural?
4. Quais são as propriedades da Nova Lei?

126 JOÃO PAULO II, Enc. Evangelium vitae, n. 73.


128
Tema VII: A Consciência Moral

Parte I: Noção, propriedades e divisões da consciência


Parte II: Dever de formar a consciência e de agir com consciência reta
Parte III: A obrigação de seguir o juízo da consciência
Parte IV: As dúvidas de consciência e o modo de resolvê-las
Parte V: Deformações da consciência: consciência laxa, perplexa e escrupulosa

Conhecida a lei moral, a pessoa pode realizar com a sua inteligência um juízo
sobre a bondade ou maldade dos atos concretos que pensa fazer, está fazendo ou já fez.
Esse juízo sobre a moralidade da ação se chama consciência moral. A consciência leva o
homem a atuar de um modo determinado: indica-lhe o bem que deve fazer e o mal que
deve evitar; ela não é o fundamento último do bem e do mal, mas sim a lei de Deus; ela
é o fundamento imediato do agir. Como a consciência não é infalível, é preciso formá-la,
educa-la. A este respeito é importante saber quando se pode e se deve seguir a própria
consciência, e quando não. A consciência pode também se deformar, e por isso é
necessário saber como devemos atuar para evitar suas deformações. Por último, ante
determinadas ações nossa consciência pode duvidar sobre sua bondade ou maldade: de aí
vem a importância de saber como sair da dúvida para poder agir com certeza.

Introdução

O tema da consciência é de especial importância, até o ponto de constituir um


elemento básico na apresentação da Teologia moral. Estuda o encontro entre Deus e o
homem, que se situa na consciência moral.
Nos últimos tempos ocorre uma campanha deliberada, quase uma conspiração,
contra os direitos da consciência, como se o seu ditado fosse pura imaginação, e como se
fosse uma imposição, fruto de uma cultura dominante, ou de uma influência de poderes.
Por isso é importante sublinhar que a consciência é conatural ao homem, uma
característica natural e essencial da sua condição de homem livre e responsável,
independente da sua cultura e influências da educação moral e religiosa que tenha
recebido. “Quando os gentios, que não têm lei, fazem por razão natural o que manda a lei
(…) mostram que o que a lei ordena está escrito nos seus corações, como se o
testemunhasse a sua própria consciência e as diferentes considerações que lá no seu
interior os acusam, ou os defendem” (Rom 2, 14-15).

  

129
Parte I: Noção, propriedades, e divisões da consciência

1. Noção

É “o juízo moral sobre a retidão, sobre a moralidade dos nossos atos”127. “A consciência
moral é um juízo da razão, pelo qual a pessoa humana reconhece a qualidade moral de um ato
concreto que pensa fazer, está fazendo ou já fez” (CEC, n. 1778).

1) A consciência moral é um juízo do intelecto prático: portanto, um ato, e não uma


potência nem um hábito.
A potência com que conhecemos a moralidade de nossas ações é a inteligência, que
tem duas funções:
A especulativa, pela qual conhecemos o que são as pessoas e as coisas (por
exemplo, ao fazer um juízo matemático, geográfico etc.);
 E a prática, pela qual percebemos, junto ao que as pessoas e as coisas são, a
ação que nos convém realizar. O juízo da consciência não se limita a enunciar
uma verdade sobre o ser, mas nos indica em cada caso o que devemos fazer.
O caráter prático deste juízo significa que a consciência considera o bem ou o mal
moral de nossas ações particulares: “A atividade da consciência moral não indica
somente o que seja o bem e o mal em geral. O seu discernimento diz respeito à ação
singular e concreta que vamos realizar ou já realizamos”128.

2) O juízo da consciência se realiza iluminando com a luz dos primeiros


princípios, naturais e revelados, o ato concreto.
A consciência não é juiz ou árbitro da lei divina; pelo contrário, se pode julgar sobre
nossos atos singulares é porque ela mesma possui a medida – universal – da lei divina, e
assim a aplica às próprias, reais e concretas circunstâncias. A consciência «não é um juiz
autônomo de nossas ações. Toma os critérios daquela “lei divina, eterna, objetiva e
universal”, daquela “verdade imutável” de que fala o Concílio (Decl. Dignitatis humanae,
3), aquela lei e aquela verdade que a inteligência do homem pode descobrir na ordem do
ser»129.

3) A matéria do juízo de consciência é a moralidade de nossos atos concretos. O


ofício primeiro da consciência é julgar os atos que vamos realizar:
 Antes do ato, a consciência mostra a ordem ao bem, e assim se diz que
instiga, induz ou liga à vontade.

127 PABLO VI, Alloc., 13-II-1969.


128 JUAN PABLO II, Alloc., 17-VIII-1983, 1.
129 Ibidem, 2.
130
 Em segundo lugar, compete à consciência julgar a moralidade dos atos já
realizados: se a sua ordem foi seguida, a consciência aprova e dá paz. Porém se
ela foi contrariada acusa e causa remorso.

São concepções erradas da consciência as que a interpretam não como um juízo da


inteligência, mas como um sentimento ético, ou como una situação da alma fruto da
educação e da cultura.

2. Relações entre consciência, sindéreses, ciência moral e prudência

A sindéreses designa tradicionalmente o hábito dos princípios morais, ou


primeiras e mais ricas verdades acerca do homem e do seu agir moral. A luz da sindéresis
se explicita e complementa com os hábitos da ciência moral e a prudência:
 Ciência moral. Graças à experiência, ao exemplo dos outros, à leitura e ao
estudo, os ensinamentos de país e mestres etc., adquirimos o hábito da ciência
moral ou conhecimento das principais verdades sobre o bem do homem e da
sua conduta. Este conhecimento que dá a ciência moral nos faz saber o que seja
o bem e o mal, e não inclui por si – ainda que favoreça o adquiri-la – a energia
necessária para aplicar esse conhecimento à própria vida. Essa energia é fruto das
disposições morais.
 A prudência. A virtude da prudência é um hábito prático, precisamente
enquanto implica essa conaturalidade com o bem pessoal e move a emitir juízos
precisos sobre a própria conduta, mediante o discernimento da verdade universal
em nossos atos singulares e concretos.

A consciência moral é o juízo que a pessoa emite à luz da sindéresis, sobre o ato singular;
juízo facilitado pelos hábitos da ciência e prudência.

3. Características da consciência cristã

Convém considerar que, no tempo da Nova Lei, a consciência não só é aperfeiçoada


pelo dinamismo interior da fé e da graça, mas mediante a guia externa e sensível que
proporciona as Sagradas Escrituras, em sua indissociável unidade com a Tradição e o
Magistério. Graça interior e ensinamentos escritos – elemento interno e externo da Nova
Lei – em íntima interação aperfeiçoam o juízo da consciência cristã.

A consciência constitui a mais importante luz na vida do homem, a que lhe ensina
a viver como tal. Entretanto, neste mundo imperfeito e não raramente com ambientes
sociais mais ou menos corrompidos, aos que se acrescenta a cumplicidade de nossa
natureza caída, não é sempre fácil encontrar e reconhecer qual seja a verdade sobre o
bem e o mal moral. Por isso, Deus quis vir em ajuda da fragilidade da natureza humana
com a presença visível da Igreja e do seu Magistério, que continuam esse socorro em
forma perceptível a nossos olhos como quando Cristo ensinava às multidões e curava
os enfermos.

131
4. Propriedades da consciência

A consciência possui as seguintes propriedades:


a) Acompanha a todo ato livre;
b) Não obriga por si mesma, mas em virtude do preceito divino;
c) Pode errar e obscurecer-se parcialmente, mas nunca se extinguir totalmente;
d) Deve acolher livremente a verdade, mas não goza de arbítrio sobre ela.

a) Em todo ato livre intervém o juízo da consciência

Em todo ato livre ocorre o juízo da inteligência e, por isso, conhecimento ao


menos implícito da sua moralidade. O juízo de consciência acompanha
inseparavelmente o agir livre, de um modo natural.

b) A consciência não obriga por virtude própria, mas pela força do preceito divino.

A consciência vincula a conduta do homem obrigando-lhe de um modo


determinado: indica-lhe o bem que deve realizar e o mal que deve evitar. Entretanto, não
obriga por si mesma, pois não é o fundamento último do bem e do mal, mas sim a lei
de Deus.
A consciência obriga porque mostra a Vontade de Deus: “Não obriga por sua
própria virtude, mas por virtude do preceito divino: não diz que há que fazer algo porque
a ela lhe parece, mas porque assim Deus o quer”130.
A consciência, portanto, não cria a lei, mas a descobre e a toma como guia: “O
homem percebe e reconhece por meio da sua consciência os ditados da lei divina”131; não
inventa as leis e preceitos morais, senão que os reconhece inscritos por Deus em seu
coração: “No mais profundo da sua consciência, descobre o homem a existência de uma
lei que ele não se dita a si mesmo, mas a que deve obedecer»132.
Portanto, a consciência se diz norma próxima e subjetiva da moralidade, no
sentido de que apresenta a lei divina ao homem. É norma só em sentido análogo:
norma fundada, enquanto a lei é norma fundante; só esta última estabelece a verdade
sobre o bem e o mal: “a consciência não cria a norma moral, mas a deve aceitar e
aplicar”133.

130 SANTO TOMÁS, In II Sent., d. 39, q. 3, a. 3, ad 3.


131 CONCILIO VATICANO II, Decl. Dignitatis humanae, n. 3.
132 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 16.
133 PABLO VI, Alloc. 24-VII-1974.

132
É errônea a ética da situação134, segundo a qual a consciência situada nas diversas
circunstâncias culturais, sociais etc., vai produzindo normas morais diversas ao longo da
história. O seu erro depende de uma filosofia que não admite verdades perenes e eternas
– historicismo – de cuja crítica nos ocupamos ao tratar da lei.
Na atualidade, o modo mais frequente de apresentar esta tese é afirmar que nem a
natureza – seja entendida desde o ponto de vista biológico ou desde o ponto de vista
metafísico – nem a Revelação podem conter normas irreversíveis e que só uma razão
não submetida aos esquemas da natureza, a metafísica e a fé, pode dar resposta aos
novos interrogantes sobre o homem que a ciência e o progresso apresentam.
Segundo a ética da situação, o homem é lançado à existência e carece – para suas
decisões morais – de todo apoio em leis ou normas gerais, devendo, portanto, estar aberto
ao que, em cada situação, reclame dele qualquer sugestão pessoal, circunstancial ou
inspiração do Espírito Santo. Esta ética da situação conduz inevitavelmente a um
subjetivismo.
Em uma linha semelhante outros se limitam a afirmar que, se a própria consciência
não a recrimina, pode se praticar uma conduta ainda que tenha sido condenada pelo
Magistério: de aqui a insistência só na “autenticidade” da consciência e não na sua
formação, no empenho para que seja verdadeira.
Quando surja um conflito real entre a consciência própria e as disposições do
Magistério, será preciso distinguir cuidadosamente se se trata de uma lei divina,
contida no Novo Testamento, ou de uma lei eclesiástica ou civil, julgando em cada
caso o valor da dita lei ou disposição, com o fim de discernir a obrigação em
consciência que surge da mesma. Mas é totalmente inadmissível o suposto de que a
consciência esteja sempre por cima da norma; ao contrário, no caso de que se trate de
una lei justa ou de uma disposição autorizada, a consciência está obrigada a aceitar a
norma.

Por último, o fato de que a consciência no crie a norma moral, não se opõe a que
possua uma própria função criadora. Afirmar que o homem não cria a “norma ética” –
como não cria também as leis biológicas ou as da matéria – não significa afirmar que a
pessoa tenha de carecer de iniciativa, de empenho, de audácia e imaginação em descobrir
e realizar o bem moral. Certamente, a inteligência é capaz de descobrir engenhosamente
o bem a realizar só enquanto se deixa guiar pelos princípios semeados por Deus em seu
coração: mede a bondade ou malícia dos atos humanos só se se reviste da medida da lei
divina. Então deve empregar todo seu engenho em realiza-lo: “A consciência é algo vivo
e não estático. Caminha em direção a um conhecimento cada vez mais perfeito dos
valores”135.

134 De la “ética de situación” ha dicho el Magisterio que sus tesis son «contrarias a la verdad y a los
dictados de la sana razón, siguen las huellas del relativismo y del modernismo, y se apartan mucho de la
doctrina católica sostenida a través de los siglos»: Inst. Sto. Of., 2-II-1956, DS 3921.
135 JUAN PABLO II, Discurso, 12-V-1985, n. 5.
133
c) A consciência pode errar e se obscurecer, mas a sua luz nunca se extingue totalmente.

Trata-se de duas propriedades da consciência – que possa errar e que a sua luz seja
inextinguível – ligadas ao caráter limitado da inteligência humana e a sua natural
inclinação à verdade.
Por ser um juízo da inteligência, a consciência pode se equivocar, segundo o modo
em que o erro se dá na mente humana: culpável ou sem culpa. A consciência não é
infalível.
O Concílio Vaticano II afirmou que “a consciência se torna quase cega por causa
do hábito de pecar”136. Por isso, «não é suficiente dizer ao homem: “segue sempre tua
consciência”. É necessário acrescentar imediatamente e sempre: “pergunta-te se a tua
consciência diz a verdade ou algo falso, e busca incansavelmente conhecer a verdade”.
Se fosse omitida esta advertência necessária, o homem arriscaria converter a sua
consciência em uma força destruidora da própria humanidade, em vez do lugar santo
onde Deus lhe dá a conhecer qual é o seu verdadeiro bem»137.
A consciência é uma luz inextinguível, porque nos é dada com a mesma
natureza. Enquanto tiver uso da razão, todo homem discerne – em modo mais ou menos
claro – o bem do mal, em virtude do hábito dos primeiros princípios morais. Assim como
ninguém pode despojar-se da sua inteligência, não se pode eliminar esta luz.

d) A consciência está chamada a acolher livremente a verdade: mas não goza de arbítrio
sobre ela.
A dignidade da pessoa exige que se respeite sempre a liberdade com que deve buscar
a verdade: neste sentido, se fala reta e devidamente de liberdade das consciências.
Liberdade, portanto, para alcançar a verdade: nunca em relação a ela, única fonte real de
liberdade: «a verdade vos fará livres» (Jo 8,32).
A liberdade das consciências é exigência do respeito à liberdade da pessoa diante
da coação externa: nunca independência da verdade.
Portanto, cada homem tem o dever, e não só o direito, de buscar a verdade em
matéria religiosa para formar, com os meios apropriados, juízos de consciência retos e
verdadeiros138.

Aplicações práticas

1. Sempre há juízo de consciência. Ninguém está abandonado até tal ponto que
não saiba de nenhuma maneira se faz o bem ou o mal. Inclusive as pessoas mais
pervertidas conservam essa luz de Deus, e este é precisamente o ponto desde o que lhes
pode atrair de novo ao bem.

136 CONCILIO VATICANO II, Const. pas. Gaudium et spes, n. 16.


137 JUAN PABLO II, Homilia, 18-VIII-1983, n. 3.
138 Cf. CONCILIO VATICANO II, Decl. Dignitatis humanae, n. 3.
134
2. Quando se atua contra a luz da consciência, nunca se tem uma plena
segurança no próprio juízo. A aparente certeza do erro vencível – obra da culpa ou
negligência da vontade – ou a mesma certeza do erro inculpável, nunca possui a luz
diáfana e segura da verdade.
3. A medida que a pessoa obra com retidão, se afirma no seu conhecimento do
bem, e adquire mais paz. A luz da consciência faz descobrir o bem real dos próprios
atos, cuja realização convence pelo modo mesmo em que nos aperfeiçoam, conferem paz
e alegria.

5. Divisões da consciência

A consciência se divide em: antecedente e consequente; verdadeira e errônea


(vencível ou invencivelmente); certa, provável e duvidosa.

5.1. Antecedente e consequente

a) Em relação com o ato, se diz antecedente a consciência que julga o que vai se realizar.
Seu ditado específico consiste em mandar ou proibir, em permitir ou aconselhar. Também poderia
falar-se de uma consciência “concomitante” ao ato, que se reduz à antecedente e a manifesta
durante o agir.
b) A consciência consequente julga o ato já realizado: pode aprová-lo, se é bom, ou
reprová-los como mal, e nesse caso produz uma dor ou inquietação, que se costuma
chamar remorso. De todos modos, a consciência é juízo, ato de conhecimento, e não se
confunde com os sentimentos que costumam acompanhá-lo.
A consciência moral funda-se no juízo da razão; não nos sentimentos de culpa. Tais
sentimentos costumar ser uma ajuda para reconhecer – levando a reconsiderar – o
verdadeiro valor moral das nossas ações.

5.2. Consciência verdadeira e errônea

Em razão da sua conformidade com a lei moral, a consciência se divide em


verdadeira e errônea.
a) É verdadeira a que julga retamente o bem e o mal, em conformidade com a lei
moral. Esta retidão é fruto de aplicar corretamente a luz dos princípios morais ao ato
singular.
b) Consciência errônea ou falsa é a que dissente da ordem moral. Pode ser
invencível o vencivelmente errônea.
 A consciência invencivelmente errônea é a que chega ao juízo equivocado
por ignorância inculpável: por exemplo, o que desconhece sem culpa a
existência de uma norma moral.
 A consciência vencivelmente errônea é a que se segue de uma ignorância
ou erro culpáveis: ocorre quando o homem se despreocupa de buscar a verdade e
o bem, seja em um caso singular, ou de modo geral.

135
5.3. Consciência certa, provável e duvidosa

Esta divisão se faz em razão da força com que o sujeito consente com o juízo da
consciência.
a) A consciência certa é a que se possui quando o juízo se dá sem temor a errar. A
certeza da consciência per se corresponde à consciência verdadeira; per accidens, cabe
uma consciência certa e equivocada, no caso da consciência invencível ou
inculpavelmente errônea.
b) A consciência provável e a duvidosa não possuem segurança em seu juízo, e são
acompanhadas do temor de errar, seja inclinando-se para uma das possibilidades
(provável), ou suspendendo um juízo definitivo (duvidosa).

Parte II: Dever de formar a consciência e de agir com


consciência reta

1. Dever de formar a própria consciência

Toda pessoa está obrigada a procurar com séria solicitude ter sempre uma consciência
verdadeira e certa.

A retidão do agir depende da retidão da consciência: é óbvia, portanto, a


obrigação de formar e de não obscurecer a luz da consciência.
 «A dignidade da pessoa humana requer agir com consciência retamente
formada: uma consciência que se oriente à verdade e, iluminada por ela,
decida»139.
 «A educação da consciência é indispensável aos seres humanos submetidos
a influências negativas, e tentados pelo pecado a preferir seu próprio juízo, e a
rejeitar os ensinamentos autorizados» (CEC, 1783). Esta tarefa dura toda a vida
(cf. CEC, 1784).
No Evangelho é clara e reiterado o ensinamento do Senhor: «Durante seus três anos
de ministério público, aproveitou todas as ocasiões para formar a consciência dos seus
ouvintes, especialmente dos doze apóstolos»140.
A formação da consciência é uma responsabilidade pessoal de cada homem
diante de Deus, da qual ninguém pode eximir-lhe. Toda pessoa é responsável de manter
e aplicar essa luz divina que, se ficar obscurecida, é por culpa sua.
Os ensinamentos, conselhos e ainda mandatos de outros pressupõem essa luz
pessoal, e a recordam, ressaltam ou ajudam a leva-la ao particular: nunca a substituem.

139 JUAN PABLO II, Discurso, 24.VI.1988.


140 JUAN PABLO II, Discurso, 12-V-1985, n. 5.
136
Cada homem deve agir de acordo com a sua própria consciência e sabendo que
prestará contas a Deus: «portanto, examine bem cada uma das suas próprias obras» (Gal.
6, 4), porque segundo a própria consciência será julgado. Não podemos desculpar-nos
com os ditames da consciência alheia. Menos ainda com os seus erros.

1.1. Meios para formar a consciência

A obrigação de formar a própria consciência exige pôr os meios necessários para que a
consciência seja sempre reta.
Fundamentalmente são: ciência devida e cultivo das virtudes.

a) Ciência devida. A aquisição do devido conhecimento da lei moral, mediante o


estudo, o pedido de conselhos e a oração. Para tê-la se requer:
Amor à verdade. A consciência retamente formada é a que se orienta para
a verdade e, iluminada por ela, decide. «O ponto de partida da formação da
consciência é o amor da verdade. Não se encontra a verdade se não a ama; não se
conhece a verdade se não se quer conhecê-la»141.
Respeito e aceitação da lei. A consciência não age tomando decisões
autônomas sobre o bem e o mal, mas mediante juízos que recebem seu valor da
verdade que se expressa na lei.
O conveniente esforço para adquirir a ciência moral e pedir
oportunamente conselho. A ciência moral devida compreende, para todos os
homens, o conhecimento da lei natural, e para os cristãos, ademais, o da lei divino-
positiva e dos Mandamentos da Igreja.

b) Cultivo das virtudes. A luta ascética, com o recebimento dos sacramentos, é


necessária para assegurar a retidão da vontade, e evitar que o juízo se obscureça por
desejos desordenados: «Confiamos ter uma boa consciência porque desejamos
comportar-nos bem em tudo» (Hb 13, 18).
 Para poder «distinguir qual é a vontade de Deus: o bom, o agradável, o
perfeito» (Rm 12,2), é necessário sem dúvidas o conhecimento da lei de Deus em
geral, mas não é suficiente: «é indispensável uma espécie de conaturalidade entre
o homem e o verdadeiro bem. Tal conaturalidade se fundamenta e se desenvolve
nas atitudes virtuosas do homem mesmo» (VS, 64).
 Uma das virtudes que mais importância tem para conhecer a verdade moral
é a humildade: só a humildade situa ao homem na verdade. Para que a humildade
se reflita na prática é muito conveniente o exame de consciência.
 Um meio especialmente eficaz para manter uma reta consciência é a
frequência de sacramentos, e em particular o da confissão. Ela ordena à vontade,
libertando-a da escravidão do pecado, e a fortalece com a graça. Os pecados

141 JUAN PABLO II, Homilía, 24.VIII.1983.


137
graves, se não são remediados logo pela contrição – que implica o propósito de
una rápida confissão – tendem a causar uma deformação da consciência.

1.2. A consciência e os ensinamentos do Magistério da Igreja

Para uma formação correta da consciência é imprescindível que a relação do homem


com Deus se fundamente em um clima de confiança e , portanto, de docilidade. Esta
docilidade permite abrir-se à fé —pela obediência da fé - e à comunhão eclesial.
Quando a pessoa obedece ao Magistério não faz mais que obedecer à verdade profunda
sobre si mesma.

Algumas pessoas têm afirmado que a consciência deve mover-se somente enquanto
a convençam os argumentos racionais, de modo que o Magistério só poderia ser aceito na
medida em que convencesse racionalmente.
Neste caso as afirmações do Magistério seriam somadas ao número das distintas
opiniões particulares, sem que tivessem a autoridade recebida de Deus.
Deve se advertir que Deus concedeu à Igreja o dom do Magistério para que os fiéis
– e os homens de boa vontade – pudessem alcançar mais facilmente e sem mescla de erro
as verdades por si acessíveis à razão.
Um juízo definitivo do Magistério ordinário, por mais que não seja infalível,
vincula a consciência.
O Evangelho, a Tradição e o Magistério representam uma ajuda à consciência cristã.
«Os cristãos, na formação da sua consciência, devem prestar diligente atenção à
doutrina sagrada e certa da Igreja, pois por vontade de Cristo a Igreja Católica é a
mestra da verdade, e a sua missão é expor e ensinar autenticamente a verdade, que é
Cristo, e ao mesmo tempo declarar e confirmar com a sua autoridade os princípios da
ordem moral que fluem da mesma natureza humana»142.

1.3. A relação entre a consciência e a lei

a) Consciência autônoma e criadora da lei

Alguns negaram a existência, na Revelação, de conteúdos morais específicos e


determinados, universalmente válidos e permanentes. A Palavra de Deus se limitaria –
segundo esta opinião – a propor uma exortação, uma parênesis genérica, que logo só a
razão autônoma preencheria de determinações normativas objetivas. «Não há ninguém
que não veja que semelhante interpretação da autonomia da razão humana comporta teses
incompatíveis com a doutrina católica» (VS, 37).

142 CONCILIO VATICANO II, Decl. Dignitatis humanae, 14.


138
b) A “gradualidade da lei”

Houve também autores que consideraram a norma como um ideal ao que se deve
tender, e cujo mandato deve-se aplicar segundo distintos graus: seria a aplicação gradual
da lei.
Implicações da gradualidade da lei:

 Seria o homem que marcaria o âmbito das suas obrigações e recortaria


aquelas exigências que não fossem do seu agrado.
 Ocorre uma redução prática do bem moral à capacidade das forças da
natureza humana ferida somente.
Como consequência, a lei divina corre o risco de aparecer como uma carga
insuportável se não se recorre a sua pretendida gradualidade.

c) A “lei da gradualidade”

Algo muito distinto a ser considerado é a “lei da gradualidade”. A graça cresce na


vida dos homens e da sociedade através de um processo que avança gradualmente, com
a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor.
«A “lei da gradualidade” pastoral... implica uma decisiva ruptura com o pecado, e
um caminho progressivo para a total união com a vontade de Deus e com as suas amáveis
exigências»143.
O progresso para a total união com a vontade de Deus começa e pressupõe a
conversão do homem. Não comporta nunca concessões, porque exige desde o princípio
a conversão, com o total desprendimento de todo mal, e com a adesão ao bem na sua
plenitude.

d) A objeção de consciência

«Julgai por vós mesmos se é justo diante de Deus que os obedeçamos a vós mais
que a Ele, porque nós não podemos deixar de dizer o que vimos e ouvimos» (At. 4, 19-
20).
Às vezes ocorrem discrepâncias entre as leis civis e as convicções da consciência
pessoal.
«Não se pode forçar a ninguém a agir contra a sua consciência. Nem mesmo pode-
se impedir que age de acordo com ela, principalmente em matéria religiosa»144.

143 CONSEJO PONTIFICIO PARA LA FAMILIA, Vademécum para los confesores sobre algunos
temas de moral conyugal, 9.
144 CONCILIO VATICANO II, Decl. Dignitatis humanae, 3.
139
Não se pode identificar, em princípio, objeção de consciência e desobediência civil.
O conflito entre consciência e lei divina não é possível. Unicamente pode surgir
quando se trata de leis humanas, que são “falíveis”.
A objeção de consciência se deve à tentativa de defender uns valores que a
disposição legal não contempla.
«As leis – quando não defendem direitos fundamentais relacionados com a vida
humana – não só não criam nenhuma obrigação de consciência, mas, ao contrário,
estabelecem uma grave e precisa obrigação de se opor a elas mediante a objeção de
consciência»145.

Parte III: A obrigação de seguir o juízo da consciência reta

A consciência que procede de uma vontade reta obriga sempre, tanto se é verdadeira como
se é invencivelmente errônea.

Sempre que o homem põe os meios devidos para conhecer a vontade de Deus, o
juízo da consciência é vinculante.
O ditame da inteligência que nasce de uma vontade reta é o guia que Deus lhe deu
para realizar livre e responsavelmente o bem: por isso cada um «está obrigado a segui-la
fielmente em todas as suas ações, para alcançar a Deus que é o seu fim»146. Isto vale tanto
quando a consciência é verdadeira como quando em boa fé se equivoca.

1. A consciência verdadeira obriga sempre

A consciência verdadeira obriga sempre porque apresenta realmente a vontade de


Deus.
Quando o homem age de boa fé, procurando conhecer a vontade de Deus, o normal
é que a sua consciência seja verdadeira: que descubra realmente o que a lei divina exige
no caso particular, e lhe conduz a sua própria plenitude ou perfeição.
A consciência obriga então por causa do que diz, porque realmente apresenta a
vontade de Deus, que é o caminho para alcançar a vida eterna e a felicidade ainda na
terra: obriga simplesmente.

2. A consciência inculpável ou invencivelmente errônea

A consciência inculpável ou invencivelmente errônea, por sua vez, obriga só “per accidens”
e enquanto se mantém em boa fé.

145 JUAN PABLO II, Enc. Evangelium vitae, 73.


146 CONCILIO VATICANO II, Decl. Dignitatis humanae, n. 3.
140
«O homem tem a obrigação de segui-la sem que se possa forçar a atuar contra ela,
nem impedir que atue de acordo com ela, a não ser que se viole um direito fundamental e
inalienável de uma terceira pessoa»147.
A possibilidade deste tipo de erro aparece nas Sagradas Escrituras, quando São
Paulo trata dos alimentos sacrificados aos ídolos, fazendo notar que quem erroneamente
considera que, ao comê-los, ofende a Deus, não pode usar deles sem pecar (cf. Rom. 14,
1-23).
O fundamento da obrigatoriedade da consciência inculpavelmente errônea é que,
com reta vontade, se julga ser essa a Vontade de Deus: «Quando a razão ainda se
equivocando, propõe algo como preceito divino, desprezar o ditame da razão equivale a
desprezar o mandato de Deus»148.
Não obriga, pois, por si mesma – por seu conteúdo – mas sim porque aquilo que
manda ou proíbe foi tomado em boa fé como preceito divino: isto significa que obriga
acidentalmente – por erro – se julga conforme à vontade de Deus algo que não é.
Normalmente a consciência inculpavelmente errônea, ainda que salve de cometer
pecado, não se torna por isso verdadeira. De fato, a ação realizada – objetivamente,
ainda que sem culpa – tende a destruir a unidade e harmonia da pessoa: toda desordem
moral, ainda não culpável, se opõe à perfeição do ser pessoa, tende a impedir-lhe de amar.
«Se (...)a ignorância é invencível, ou o juízo errôneo sem responsabilidade do
sujeito moral, o mal cometido pela pessoa não lhe pode ser imputado. Mas não deixa
de ser um mal, uma privação, uma desordem. Portanto é preciso trabalhar para corrigir
a consciência moral dos seus erros» (CEC, 1793)

Observações práticas
 A obrigatoriedade que possui a consciência inculpavelmente errônea,
implica um grave dever para os confessores e, em geral, para os que se ocupam
da formação das almas, de não impor como mandatos de Deus o que são apenas
bons conselhos ou piedosas costumes; ainda que saudavelmente recomendem
com zelo essas práticas, devem advertir ao mesmo tempo que omiti-las não
constitui pecado.
 De forma semelhante, deve se evitar tratar como culpa grave, o que não o es,
insinuando para uma ação una gravidade que não possui. Santo Tomás afirma:
«Toda afirmação sobre o que é pecado mortal, se não se conhece expressamente
a sua verdade, resulta perigosa»149.

147 CONFERENCIA EPISCOPAL ESPAÑOLA, Instrucción pastoral La verdad os hará libres, 39.
148 S.Th., I-II, q. 19.
149 Quodl., IX, a. 15.
141
3. A consciência culpável ou vencivelmente errônea não pode ser seguida

A consciência vencivelmente errônea é una forma de consciência duvidosa, na qual o


sujeito tende a ignorar e inclusive a sufocar a dúvida: não é reta nem proporciona verdadeira
certeza.

Este princípio engloba duas afirmações:


 A consciência culpavelmente errônea não autoriza a agir, porque não é reta;
 Sempre sabemos de alguma maneira se temos tal consciência, porque
perdura uma certa inquietação, pois em outro caso o erro não seria culpável ou
vencível, mas sim inculpável ou invencível.
A consciência culpável ou vencivelmente errônea se manifesta como tal porque não
proporciona a devida certeza.
É importante considerar que esta insegurança própria da consciência culpável ou
vencivelmente errônea é compatível com uma aparente certeza no juízo. Com efeito, as
disposições do sujeito, quando deseja agir mal, levam com frequência a apagar essa
dúvida interior, ainda que nunca a elimina-la totalmente: quem faz o mal com uma
ignorância culpável nunca tem certeza plena (Jo. 9, 41).
A consciência vencivelmente errônea não pode ser seguida precisamente porque a
sua dúvida implica o perigo de pecar, e agir nessas condições é já pecado. Quem tem
dúvidas, antes de agir deve pôr os meios para esclarece-las.
O princípio segundo o qual o homem «deve seguir a sua consciência» apenas quer
dizer que deve fazer o que considera objetivamente bom; e realmente bom é aquilo que
objetiva y subjetivamente é bom. A primeira obrigação em consciência que tem o
homem é a de ter sua consciência bem formada.

Parte IV: A dúvidas de consciência e o modo de resolvê-las

1. Regras morais sobre a consciência duvidosa

Só pode ser regra de conduta a consciência certa: nunca é lícito agir com dúvida
prática e positiva de consciência.
Analisemos as duas partes desta proposição:
Para agir bem, deve-se ter certeza ou segurança de juízo – ao menos, a que nasce
do ter posto os meios ao nosso alcance para eliminar a dúvida –, pois está em jogo o
cumprimento da vontade divina: de outro modo, o sujeito se exporia imprudentemente a
fazer o contrário do que Deus quer e é o seu bem verdadeiro, o que constitui já um ato
contrário à reta razão e, portanto, pecaminoso.
Recordemos agora os principais tipos de certeza. Em concreto, por seu fundamento,
se costuma distinguir:

142
 Certeza metafísica (fundada diretamente nos princípios do ser): por
exemplo, que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo;
 Certeza física (fundada no conhecimento certo das leis da natureza): por
exemplo, que todos os homens morrem, que quem perdeu o uso da razão, não é
responsável dos seus atos etc.;
 E certeza moral (fundada em um juízo de prudência e caracterizada pela
ausência de temor razoável de errar): é a que se tem, por exemplo, sobre a boa
vontade de um amigo e, em geral, a que se exige para as decisões ordinárias da
vida;
A estas se acrescenta a certeza de fé, que é sobrenatural, e se funda na
Revelação divina, na graça e na nossa correspondência a ela.
A consciência se diz certa quando julga o valor de um ato sem razoável temor de
errar.
Entretanto, não se requer o ter chegado a uma certeza absoluta, metafísica nem
física: basta uma certeza moral prática; a que ordinariamente alcança quem pôs a normal
diligência para conhecer o que deve fazer, manifestada pela ausência de um temor
razoável de errar.
A experiência mostra que não é difícil obter esta certeza, quando se pôs os meios
adequados. Por outro lado, a busca de uma certeza absoluta, que elimine toda dúvida
possível, não seria razoável e se opõe à prudência: se quiséssemos este tipo de certeza
em nossos atos, quase nunca agiríamos.
A certeza moral, portanto, não excluí em modo necessário uma certa dúvida: a
contingência do agir humano torna impossível eliminar toda ansiedade150. Exclui motivos
graves contrários, mas não toda possível incerteza.

b) Nunca é lícito agir com dúvida positiva e prática de consciência

1. Quando se trata de uma dúvida positiva, ou seja, quando se tem um fundado medo
de errar: por exemplo, a de quem não sabe com segurança se determinada afirmação é
caluniosa, porque se trata de uma conduta insólita na pessoa a quem é atribuída a dita
afirmação.

Se os motivos são fúteis, temos a dúvida negativa: por exemplo, a de quem sendo
habitualmente delicado com os demais, teme ter faltado com a caridade, porque
observa a outra pessoa triste. As dúvidas negativas se devem desprezar, porque são
inconsistentes e facilmente poderiam degenerar em escrúpulos, fazendo antipática a
prática do bem.

Não é lícito agir com dúvida positiva, tanto se esta é de direito como de fato.

150 Cf. S.Th., I-II, q. 47, a. 9, ad 2.


143
 A dúvida de direito versa sobre a existência ou o conteúdo de uma lei moral:
por exemplo, sobre os dias em que se deve jejuar.
 A dúvida de fato não se refere à lei, mas sim à realização de um ato ou
acontecimento, ou a que certo ato fique compreendido na lei: por exemplo, a
dúvida de se se consentiu a um mal pensamento ou não; a dúvida sobre se uma
pessoa foi batizada ou não etc.

2. De mesmo modo, quando se trata de uma dúvida prática, ou seja, que se refere
ao modo concreto de agir e não a controvérsias doutrinais, que constituem o que se chama
dúvida especulativa: por exemplo, a dúvida sobre se as leis de alfândenga são ou não e
sempre “mere poenales”; por outro lado, é prática a de quem não está certo se no seu dia
declarou à alfândega uma mercadoria pela qual não sabia se devia pagar taxas.
Para a “devida” certeza de consciência contam as dúvidas práticas, porque só estas
afetam ao juízo moral sobre a própria ação. Por outra parte, eliminar as dúvidas
especulativas – sobretudo tendo em conta que duvidam os mesmos teólogos e a Igreja
não se pronunciou – seria impossível para muitos.
Os critérios enunciados se referem, como é óbvio, às dúvidas sobre a licitude do ato,
mas o se deve fazer quando a dúvida diz respeito ao melhor modo de cumprir a
vontade de Deus?
Os manuais, em geral, não tratam deste tema, por sua tendência a se limitar à licitude
dos atos sem abordar a perfeição da pessoa. Entretanto, todos temos experiência deste
tipo de dúvidas e da importância de resolvê-las bem. É claro que, não estando em jogo
um perigo de pecar, o sujeito pode licitamente decidir no modo em que considere mais
oportuno. Mas a Revelação divina não se limitou a nos dizer o que é pecado: Cristo chama
a todos à santidade, e não só a evitar o mal. Ante tais dúvidas, pois, deve-se recorrer
igualmente aos meios tradicionais para eliminar as dúvidas: oração, pedido de conselho
etc.

2. Meios para resolver as dúvidas de consciência

Deve-se pôr, antes de tudo, os meios diretos; em caso de que não as dissipem se recorre
aos chamados princípios reflexos.

A ninguém é lícito realizar, com dúvidas práticas de consciência, uma ação que
implique a possibilidade de pecar. Quem se encontra em tal estado deve sair da dúvida,
eleger uma opção sem esse risco ou abster-se de agir.
Se, apesar disso, não se consegue eliminar a dúvida, deve-se recorrer aos chamados
meios ou princípios reflexos, que proporcionam uma certeza não sobre a verdade da
bondade moral do ato, mas sim sobre a retidão com que se age nesse estado.
É evidente que se pode agir quando se escolhe uma opção que exclua o perigo de
pecar: o que duvida se está obrigado a jejuar, pode sempre jejuar; o que não sabe qual
quantia deve reparar, pode fazê-lo pela soma maior possível.

144
2.1. Os meios diretos

Os meios diretos para eliminar a dúvida são a oração, o estudo e o pedido de conselhos.

As dúvidas provêm não só da dificuldade da matéria, mas em diversas ocasiões de


falta de formação e, não raramente, da dificuldade para ser objetivos em assuntos
pessoais. Todos estes obstáculos tendem a desaparecer quando, pedindo ajuda a Deus, se
estuda devidamente o caso, acudindo à doutrina cristã; e se pede também conselho a quem
pode e deve dá-lo.

2.2. Os princípios indiretos ou reflexos

Ainda que estes critérios podem ser classificados e divididos de muitos modos, por
razões de claridade, cabe resumi-los em dois:
a) Quando estão em jogo questões graves, deve-se escolher a parte mais segura, ou
seja, deve-se ter a máxima segurança possível de que a solução adotada seja correta.

Este critério se aplica às seguintes matérias:



Validade dos Sacramentos: a menos que haja uma urgente e grave
necessidade, não é lícito expor os Sacramentos a perigo de irreverência,
administrando-os com dúvida positiva sobre a sua validez: por exemplo, não se
pode celebrar o matrimônio quando se duvida positivamente de que exista um
impedimento. Foi dito pelo Magistério que não é lícito, na administração do
Sacramento do batismo, da ordem sacerdotal ou episcopal, seguir uma opção só
provável, si esta afeta a sua validade151;
 Matérias necessárias para a salvação: sempre que esteja em jogo a
felicidade eterna das almas, deve-se optar pelo mais seguro. Assim deve-se agir
diante de todo perigo próximo de pecar, e nas dúvidas sobre a recepção de um
sacramento necessário para a salvação. Por exemplo, se há dúvida de que alguém
esteja batizado, se deve batizá-lo sub conditione;
 Questões que afetam gravemente ao bem espiritual ou material alheio:
a lei de Deus exige viver a caridade e a justiça com o próximo, com as que não é
compatível correr o risco positivo de inferir um grave dano a outro. Por exemplo,
um médico deve empregar remédios certos e sem riscos desnecessários, e não
experimentar com a saúde e a vida dos seus pacientes;
 Quando está em jogo o direito certo de um terceiro (o que, no fundo, não
é mais que uma concreção do caso precedente): por exemplo, nunca se deve
condenar a um réu sem provas suficientes.

151 Cf. INOCENCIO XI, Decr. S. Off., 4-III-1679, DS 2101/1151.


145
b) Nos demais casos, de ordinário se pode decidir com liberdade o que honestamente se
julgue mais oportuno.

Certamente, trata-se de agir com liberdade responsável, tendo em conta o que de


ordinário é o mais certo.
Não se trata de agir arbitrariamente, mas sim de escolher com liberdade o que se
considere mais conveniente; por isso, há uma série de critérios práticos, ditados pela
experiência, que facilitam uma eleição prudente. Assim o princípio de que se deve preferir
aquilo que goza do favor da presunção. Entende-se por presunção uma regra para
conjeturar a solução normalmente verdadeira em um tipo de assuntos152.
Há presunções de direito, estabelecidas pelas leis. Por exemplo, 1) na dúvida, é
mais favorável a condição do possuidor ou do acusado; 2) na dúvida, deve-se estar
pela validez dos atos jurídicos. Outras, são de sentido comum, por exemplo: 1) nas
dúvidas sobre se há pecado grave, respeito das pessoas de consciência delicada se
presume que não o cometeram, e nas de consciência laxa o contrário; 2) na dúvida, é
presumível o que ocorre mais frequentemente: assim, se presume que tem razão o
superior, a pessoa de maior prudência etc.
Outro princípio é que nas dúvidas sobre leis civis ou eclesiásticas, há que ser
amplos para interpretar as leis favoráveis às pessoas, e restringir a aplicação das
que resultam gravosas, por exemplo, as penais.

Parte V: Deformações da consciência: consciência laxa,


perplexa e escrupulosa

As disposições habituais e condições de uma pessoa, incitam-lhe a juízos morais de


determinada qualidade: assim, se diz que alguém tem a consciência bem formada,
acostumam-se emitir juízos verdadeiros; que possui uma consciência laxa, se com
facilidade julga não ser pecado algo que sim é; fala-se também de consciência
escrupulosa, delicada etc. Antes de examinar os vários tipos de deformações habituais,
com sua origem e remédios, nos ocuparemos do influxo que exerce a vontade no processo
de formação ou deformação da consciência.

1. Influxo da vontade nos juízos de consciência

A retidão da vontade é condição para que o juízo da consciência seja habitualmente


verdadeiro: «Os homens maus não têm bom juízo; por outro lado, os que buscam ao Senhor,
julgam corretamente» (Prov. 28, 15). As disposições do coração são decisivas para o
conhecimento moral.

152 Es importante no confundir nunca las reglas, las formulaciones generales sobre la conducta que
debe seguirse normalmente, válidas ut in pluribus, con las exigencias intrínsecas de la ley moral.

146
Quando se age sem retidão, o juízo da consciência tende a obscurecer-se de modo
progressivo: tanto a razão, como a fé, se nublam pelo pecado. O Magistério não duvida
em afirmar que «a consciência, pelo costume de pecar, chega paulatinamente quase a
cegar-se»153.
De todos modos, a vontade não possui um domínio absoluto sobre a consciência até
chegar a suprimi-la: por isso se diz que a cala, ou seja, luta por silenciá-la.

1.1. As causas e o processo de deformação da consciência

Na deformação da consciência, que costuma ser gradual, influenciam tanto causas


pessoais como externas. Mas sempre a vontade joga um papel decisivo. Quando o
ambiente é ordinariamente correto, o início destes processos costumam ser o abandono
prático das verdades morais.
Como nessas condições não é fácil rejeitar a luz dos primeiros princípios, se tende
a provocar a dúvida, através de negar-lhe gravidade aos fatos, ou pretendendo encontrar
dificuldades para aplicar os critérios da lei moral no próprio caso.
O obscurecimento pode, porém, começar de um modo menos pessoal, favorecido
pela situação moral e doutrinal do ambiente, por um contágio quase insensível dos
maus costumes dominantes, que desintegram a personalidade e obscurecem a consciência
desde o início do seu despertar. O triste fato do dissenso teológico complicou o elucidar
as responsabilidades na deformação da consciência154.
De todas as maneiras, e ainda que a responsabilidade pessoal pode quedar às vezes
muito diminuída, deve-se ter presente que a luz dos primeiros princípios perdura, e
neles há uma resistência natural a todo erro moral, sobretudo se se trata de questões
graves. Porque, além disso, nunca costuma faltar notícia de que outros teólogos
rejeitem essas atitudes, o que enfrenta a própria responsabilidade para usar bem da luz
recebida, e de acordo com os ensinos do Magistério, especialmente do Santo Padre155.

1.2. A consciência laxa

A consciência laxa é a que, por uma razão insuficiente, julga que os atos maus não são
pecado ou, pelo menos, diminui a sua gravidade.

É a situação daquelas pessoas que fazem o mal com pouco remorso de consciência (pessoas
sem escrúpulos, se costuma dizer popularmente). Julgam que os seus atos maus não são
pecaminosos ou que, pelo menos, não possuem a gravidade moral que realmente têm.
Existem graus extremos de consciência laxa: a chamada consciência cauterizada
que, pelo hábito constante de pecar, quase não adverte já a sua culpa. Ocorre em

153 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 16.


154 Cf. JUAN PABLO II, Discurso, 14-III-1988, n. 3.
155 Cf. CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen Gentium, n. 25. Juan Pablo II ha insistido
explícitamente en que el Magisterio de la Iglesia es «la única guía auténtica del Pueblo de Dios» y «la
norma próxima y obligatoria de la fe, también en cuestiones morales»: Exhort. ap. Familiaris consortio,
nn. 31 y 73.
147
pessoas com costumes pervertidos, insensíveis até mesmo para os pecados mais
graves; entretanto, nunca desaparece totalmente no homem a distinção entre o bem e
o mal moral, e um mínimo de sentido moral permanece (salvo em caso de estrita
loucura).
Outra modalidade é a consciência farisaica, que atribuí grande importância a
coisas mínimas e despreza as verdadeiramente importantes (Mt. 32, 25).

a) Causas da consciência laxa


 A deformação doutrinal e a influência do ambiente;
 A desordem na própria conduta e,
 De modo particular, a soberba que inclina a não querer reconhecer ou, pelo
menos, a tirar importância das próprias culpas.
Naturalmente, em cada pessoa e caso, estas causas se combinam diversamente,
implicando maior ou menor responsabilidade do sujeito.

b) Responsabilidade moral dos atos que procedem da consciência laxa


Os juízos feitos com consciência laxa ou obscurecida são, na prática, juízos de uma
consciência vencivelmente errônea. Por isso, os pecados assim cometidos seguem sendo
culpáveis: o grau de culpa varia segundo a influência preponderante que, na aparição
desse relaxamento, tenham julgado as disposições voluntárias ou, por outro lado, a
educação e os fatores ambientais.
Em casos extremos – má educação e exemplo, unidos a conselhos errôneos de
pessoas com autoridade etc. – o grau de responsabilidade diminui fortemente e com
frequência resulta difícil de medir: de todos modos, sempre deve haver mediado um
mínimo de consentimento.

c) Remédios
É importante, quando se descobre um estado de relaxamento de consciência, tratar
com benignidade à pessoa, ao mesmo tempo que se deve instruí-la com fortaleza: a alma
deve perceber a gravidade do mal ao mesmo tempo que entende a misericórdia de Deus
com o pecador, e adquire a convicção de que a correspondência à graça lhe fará vencer.
Deve-se pôr os meios para remover as causas que produziram a consciência laxa.
Se esta provinha, sobretudo, de uma defeituosa educação, se deverá prover a oportuna
formação doutrinal e prática; se dependeu de maus costumes ou companhias, deverá se
ajudar à pessoa a desembaraçar-se dessas situações.

1.3. Consciência escrupulosa


A consciência é escrupulosa quando por motivos fúteis e insuficientes considera ou teme
que um ato seja pecado.

Assim há pessoas que com frequência se torturam pensando, sem razões para isso,
se as suas confissões foram bem feitas ou não; ou se inquietam quando se esquecem
alguma prática de piedade, ou omitido por erro o cumprimento de uma lei eclesiástica

148
(jejum, cerimônias litúrgicas) etc. Este estado se transforma as vezes em verdadeiro peso
para a alma, que se vê dificultada para o trato com Deus; por isso, deve-se combater tais
ansiedades.
Os escrúpulos não devem ser confundidos com a delicadeza de consciência, que
leva a evitar até o mais leve perigo de ofender a Deus, mas não pelo afã de estar “seguro”
por ter agido bem, mas por amor156.

a) Sinais da consciência escrupulosa

Podem se enumerar os seguintes:

 Inquietação imotivada acerca do valor moral dos próprios atos e em


particular das confissões passadas: intranquilidade não fundada em motivos
sérios – distinta da contrição, que é dor de amor – e que perdura inclusive depois
da confissão e dos conselhos do confessor que busca tranquilizar;
 Prolixas acusações sobre múltiplas circunstâncias que não vem ao caso, nas
quais se adverte que o penitente se debate com ansiedade nas suas dúvidas,
querendo ter uma espécie de evidência de que agiu corretamente;
 Insistência no juízo, apesar das indicações claras que se recebem na direção
espiritual; isto às vezes leva a multiplicar indevidamente as confissões, ou a
mudar com frequência de confessor.

Deve-se ter prudência para julgar se uma pessoa é realmente escrupulosa: o fato de
que qualifique a si mesmo como tal, não significa simplesmente que o seja; às vezes, uma
alma pode se complicar em um ponto concreto ou durante uma temporada etc., por
diversas razões. Para determinar retamente, deve-se observar os sinais próprios do
escrúpulo, que acabamos de enumerar.

b) Causas dos escrúpulos

 Não raramente os escrúpulos respondem a uma disposição patológica:


nervosismo, pusilanimidade de caráter, debilidade psíquica, tendência às ideias
fixas, etc.
 Em outros casos, podem ser causadas por uma defeituosa formação moral.
 No que não tem de provocado pelo sujeito, são tentações permitidas por
Deus para purificar a alma; e, se não procedem de enfermidade, costumam ser
transitórias e acabar em uma grande paz.
Às vezes, os escrúpulos têm um componente de excessivo amor próprio, de un
desejo desordenado de “estar em dia” com Deus, de modo que prevalece mais o anseio

156 Ph. DELHAYE, La conciencia moral del cristiano, Herder, Barcelona 1963, pp. 150-169.

149
de não ser culpáveis que a dor de amor. «Com frequência os escrúpulos – diz Santo
Afonso – nascem do vício da soberba»157.

c) Remédios

Além da possível conveniência da intervenção médica no caso de transtornos


psíquicos, o melhor remédio é a contrição profunda, que supõe abandono nas mãos de
Deus e sinceridade na confissão.
Outro meio imprescindível é a docilidade na direção espiritual. O escrupuloso
deve se submeter docilmente a quem dirige sua alma e depor seus vãos temores.
Ademais, é conveniente que os escrupulosos façam um exame de consciência
breve, que se limite ao essencial, e que enfoquem de modo positivo os propósitos de
melhoramento espiritual.
Quando as causas dos escrúpulos são em parte físicas (depressão nervosa, cansaço
etc.) deve-se recorre a um médico prudente e cristão, porque o mesmo problema médico
pode ter aspectos morais.

d) Modo de atuar do confessor

O confessor, ao perceber que o penitente é escrupuloso, deve aplicar os remédios


oportunos que se resumem nos seguintes:
1) Mostrar uma paternal benignidade com o penitente, procurando ganhar a sua
confiança;
2) Agir com autoridade: nunca deve manifestar dúvidas quando fala com o
escrupuloso, porque alimentaria suas inquietações. O confessor indicará ao penitente
conselhos claros e breves, repetindo-os quantas vezes forem necessários, sem permitir-
lhe prolixas exposições nem as esperar com excesso: em caso necessário, pode-se proibir
que se acuse de faltas graves, se não têm certeza absoluta de as ter cometido;
3) Exigir, portanto, obediência ao penitente. À consciência escrupulosa não se deve
seguir, porque está deformada: o confessor deve ajudar ao penitente a que se abandone
ao juízo da direção espiritual.
Ademais, convém recomendar-lhe que não torne a considerar os pecados
confessados, o qual poderia ser inclusive ocasião de novas tentações. Por motivos
análogos, aos escrupulosos não lhes ajudam as confissões gerais, nem é conveniente, de
ordinário, admitir que acudam ao sacramento da confissão com mais frequência da
normal.

157 Theologia moralis, 1. 1., n. 13.


150
1.4. A consciência perplexa

Entende-se por tal a situação dos que não se decidem a agir por temor ao pecado,
tanto se realizam o ato como se o omitem. São diversos os graus e modos em que isto
pode dar-se: em geral costuma tratar-se de casos de consciência duvidosa, aos que se
acrescentam temores próprios do escrúpulo.

Quando há perplexidade de consciência, se devem aplicar em primeiro lugar as


normas sobre as dúvidas de consciência. Se, apesar de tudo, a pessoa segue intranquila
por escrúpulos, deve-se ater aos critérios que acabamos de ver.

Ao término destas considerações sobre as formas ou modos de consciência


deformada e as regras para remediá-los, queremos insistir que são só uma descrição de
traços gerais de situações típicas, mas em nenhum modo pretendem nem podem
enquadrar uma realidade tão complexa e rica como a vida moral de cada pessoa, com a
diversidade de fatores que incidem em uma alma segundo as distintas conjunturas da sua
existência.
Momentos ou elementos de perplexidade, de escrúpulo, de tentativas de auto
justificação são normais e quase inevitáveis em toda vida humana; e as causas por que
estas situações degeneram em uma deformação habitual de consciência são muito
variadas e dependem de fatores diversos, por isso a responsabilidade da pessoa joga
também diferentemente.

Exercícios de auto comprovação

1. O que é a consciência?

2. Que relação existe entre consciência, sindéreses, ciência moral e prudência?

3. Divisões da consciência.

4. Quais são as propriedades da consciência?

5. Defina os seguintes tipos de consciência: laxa, perplexa e escrupulosa.

6. Quais são as principais regras morais sobre a consciência duvidosa?

151
Tema 8: As Virtudes Humanas e
Sobrenaturais

Parte I: As virtudes em geral  Noção  O sujeito da virtude 


Multiplicidade e divisão das virtudes Parte II: A classificação ou esquema
geral das virtudes  A tradição judeu-cristã das virtudes  O esquema das
virtudes na Suma Teológica de Santo Tomás  Alguns pontos da reflexão atual
sobre as virtudes Parte III: As virtudes humanas ou adquiridas e suas
características  As virtudes intelectuais  As virtudes morais  A conexão
das virtudes humanas entre si e com as sobrenaturais  O progresso no
desenvolvimento das virtudes humanas  O empenho pessoal e a educação,
na aquisição das virtudes Parte IV: As virtudes sobrenaturais (gratuitas ou
infusas) e os dons do Espírito Santo  O dinamismo operativo dos filhos de
Deus  As virtudes teologais  As virtudes morais infusas  Os dons do
Espírito Santo  algumas características das virtudes infusas e dons  As
virtudes cristãs e a santificação do trabalho e os deveres sociais da pessoa.

Introdução

As virtudes são disposições habituais e firmes de fazer o bem. Com todas as suas
forças, a pessoa virtuosa tende a fazer o bem, o busca e o exige em ações concretas. Umas
virtudes são adquiridas por meio das forças humanas, e podem ser morais ou intelectuais;
outras são infundidas por Deus em nossa alma junto com a Graça. A vida cristã não se
reduz ao cumprimento de umas normas éticas, mas consiste em viver segundo as virtudes
teologais e as virtudes morais. É importante saber qual é o objeto de cada uma delas e
como se relacionam entre si. Os dons do Espírito Santo aperfeiçoam as virtudes; a
perfeição da vida moral exige a docilidade ao Espírito Santo.
Também a este tema interessa, sobretudo, que o aluno assimile as noções
fundamentais: hábito, virtude, virtude intelectual, virtude moral, prudência, justiça,
fortaleza, temperança, humildade, penitência, virtude teologal, fé, esperança, caridade,
dom do Espírito Santo etc. De modo especial interessa compreender a conexão das
virtudes humanas entre si com a sobrenaturais.

  

152
Parte I: As Virtudes em Geral

1. Noção
As virtudes são hábitos operativos que inclinam as potências ao bem; ou, melhor, os hábitos
operativos bons.

O termo “virtude” (de virtus) indica uma força ou energia que orienta as potências a operar
numa forma adequada para a realização de seu fim.
São, pois, qualidades que aperfeiçoam as potências operativas do homem, e na raiz do
homem mesmo, dando-o uma maior habilidade e energia em ordem aos seus atos.
Provavelmente, a definição que fez renome é a de Santo Agostinho, comentada por Santo
Tomás, que sem embargo, se refere plena e propriamente, somente às virtudes sobrenaturais:

“A virtude é uma boa qualidade da alma, pela qual o homem vive retamente, nada usa mal, e que
Deus opera em nós sem nós”.

Os elementos desta definição são:


a) Constituem uma boa qualidade; e, em concreto, entre as quatro classes de
qualidade (potência, hábito, paixão e figura), há de ser um hábito operativo,
especificado por sua bondade; e nisto radica o elemento essencial comum a
toda virtude: ser um hábito operativo bom que faz boa a pessoa.
b) Adiciona-se “da alma” para ressaltar que esta qualidade só pode encontrar-
se nas potências essencial ou participativamente racionais, já que a virtude
aperfeiçoa o agir livre.
c) O fato de que por ela se vive retamente e nada usa mal, não pode aplicar-
se a todas as virtudes; concretamente, algumas das intelectuais (como a
ciência o a arte) podem ser mal-usadas pelo homem;
d) O que Deus opera em nós sem nós, refere-se exclusivamente às virtudes
infusas (e devem entender-se sem desconsiderar a necessária cooperação
da liberdade, na qual tem seu uso).

1.1 A virtude implica crescimento no conhecimento e no amor

Toda virtude moral, incluindo a prudência e a sabedoria, e todas as virtudes teologais


estão integradas por um crescente conhecimento e amor do bem e por uma maior
ordem nas paixões.
É mais: não há virtude moral sem conhecimento da verdade e amor do bem,
que nunca são plenos fora do amor de Deus. A perfeição de toda virtude inclui crescer no
conhecimento e amor divino.

153
1.2 A virtude é um hábito, mas não um automatismo

A virtude não pode confundir-se com um costume, automatismo ou rotina: é


perfeição da liberdade, energia do espírito.
O costume, ainda que guarde certa semelhança com a virtude, não se confunde come
ela: ambas são disposições estáveis que inclinam a operar de uma maneira determinada,
é fruto de uma reiteração dos atos.
É preciso ter muito claro que a virtude se diferencia do costume.
 O costume é somente o reflexo corpóreo, e em certo modo passivo, da
repetição de uma conduta externa; a virtude supõe um íntimo crescer no
conhecimento e amor do bem: “é a capacidade do espírito humano, da vontade,
do coração”.
 O costume depende sobretudo da repetição de atos exteriores; a virtude
depende da reiteração de atos interiores, que, frequentemente, exigem condutas
exteriores bem diversas.

Tudo isto tem importância para a educação e aquisição da virtude: evita confundi-la
com um simples condicionamento impulsivo ou um estoico domínio de si mesmo.
A palavra grega areté e a latina virtus tiveram sempre o sentido de força ou energia
que caracteriza a pessoa; e tal sentido tem sido aprofundado e incrementado na tradição
cristã.
A confusão entre “hábitos” e “costumes”, difundida na linguagem e na cultura, tem
influenciado o descrédito da noção de virtude, entendida como submissão a umas regras
mais ou menos formalistas e mecânicas.
Toda virtude é um crescimento na liberdade, e depende do desenvolvimento das
forças da alma através não somente do empenho ascético pessoal, senão da oração e dos
sacramentos; a aceitação das provas, e das mesmas derrotas, frequentemente mais
importante que as vitorias; enfim, do afeto e amor que se recebe dos demais e, sobretudo,
do Amor e do perdão de Deus.
O vício, por sua vez, sendo um hábito, tem em maior medida a estrutura do
costume, porque a liberdade do vicioso – pela desordem causada pelo pecado – não
consegue colocar a seu serviço as paixões, sim que está escravizado por elas: na pessoa
“dominada” pelo vício, sua força para dirigir-se ao bem desordenadamente amado
procede, não tanto do autodomínio quanto da mobilização do espírito ao serviço da
paixão.

2. O sujeito da virtude

O sujeito da virtude é a pessoa, através das potências pelas quais opera livremente, quer dizer
a inteligência e a vontade, com o concurso das paixões.

Todo hábito pertence ao sujeito, que é quem atua; as virtudes são qualidades da
pessoa, pelas quais se dispõe a operar bem: propriamente, não é justa a vontade, mas sim
154
o homem, que mobiliza todas suas forças, para operar de modo justo. Sem dúvida, as
virtudes afetam o sujeito em suas potências, sempre de modo conjunto.
Nas potências sensitivas e corporais as virtudes se encontram participativamente,
enquanto o apetite sensível do homem é racional por participação. Estão como
disposições para obedecer às potências espirituais: e é neste sentido que se diz que a
temperança está no apetite concupiscível. Tais disposições são virtuosas porque acentuam
o senhorio da pessoa sobre seus atos, e a ajudam a refletir também externamente.

3. Multiplicidade e divisão das virtudes

Todas as virtudes se agrupam, de acordo com as diversas forças de que o homem


dispõe para realizar o bem, sendo:
 Humanas ou adquiridas;
 Gratuitas ou sobrenaturais, também chamadas infusas.

As virtudes humanas ou adquiridas são as que dispõe o homem ao realizar o bem próprio de
sua natureza.

São chamadas humanas não somente porque inclinam ao fim próprio da natureza
humana, senão porque estão incoadamente depositadas pelo Criador na mesma natureza
de todo o homem – a modo de uma semente: semina virtutum – e cada indivíduo as
desenvolve com seus atos; por este motivo se chamam também adquiridas.
As virtudes adquiridas se dividem em:
 Intelectuais, que aperfeiçoam o homem enquanto ao conhecimento da
verdade, seja especulativa (entendimento, sabedoria, ciência), seja prática
(sindéresis, prudência e artes);
 Morais, que aperfeiçoam o homem para agir retamente com respeito à
eleição do bem (justiça, fortaleza e temperança)

As virtudes sobrenaturais e dons são os hábitos que Deus gratuitamente dá junto com a vida da
graça e que capacitam ao homem para agir em ordem ao seu fim sobrenatural.

Assim como na natureza humana está o princípio de todas as virtudes humanas que inclinam
o homem a agir como tal, assim da graça fluem os hábitos sobrenaturais, princípios de um modo
de entender e agir na Terra conforme a nova condição de filhos de Deus. São:
 As virtudes teologais (fé, esperança e caridade),
 As chamadas pela escolástica morais infusas, e
 Os dons do Espírito Santo.
A distinção entre virtudes adquiridas e sobrenaturais deve-se entendê-la bem: não
se trata de forças de dois organismos autônomos e sobrepostos – natureza e graça –; sim

155
que faz referência aos aspectos entrelaçados da energia operativa que a pessoa possui por
natureza e graça.
Todo o mistério das relações entre ambas incide aqui: quer dizer, o mistério da ação
do Espírito Santo e da correspondência da criatura no desenvolvimento da vida cristã.
Nenhuma virtude moral é perfeita – no homem histórico – se não está sanada e
aperfeiçoada pela graça. A caridade é a mãe e a forma de todas as virtudes, também
humanas, precisamente porque a graça sana a natureza e recria o homem em filho de
Deus.

3.1. A especificação das virtudes por seu objeto: sua multiplicidade

Além de se distinguir por sua origem, as virtudes se distinguem e especificam pelo


objeto ou bem a que dispõe: assim, a sobriedade inclina ao reto uso da comida e da
bebida; a justiça a dar cada um o que é seu; pela fé assentimos a verdade revelada; pela
caridade amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos etc.;
A multiplicidade e distinção das virtudes não é fruto de um capricho, senão de uma
real diversidade de atos – e dimensões de cada ato – requeridas ao homem para alcançar
seu fim, segundo os vários bens que devemos amar ordenadamente para agir conforme
à dignidade humana e a nossa condição de filhos de Deus.

3.2. Caráter analógico da virtude

A plenitude essencial da virtude se dá somente nas virtudes informadas pela


caridade, que fazem possível e desenvolvem nossa união sobrenatural com Deus,
fazendo-nos plenamente humanos e bons filhos seus em meio a nossas ocupações
cotidianas.
A esta realidade obedece a distinção corrente nos Padres e escolásticos, entre
virtudes simpliciter e secundum quid; e a afirmação de que somente as virtudes cristãs
o são plenamente. Santo Agostinho, para recordar, chegou a afirmar que as virtudes dos
pagãos eram vícios; com isto não negou a existência de verdadeiras virtudes entre os
pagãos, mas quis deixar claro que, para o ser, não podiam estar corrompidas pelo amor
próprio e pelo esquecimento de Deus.
Recolhendo e completando esta doutrina, Santo Tomás disse que a condição de
virtude por excelência pertencia às sobrenaturais; as adquiridas são também
verdadeiras virtudes, porém não perfeitas, mesmo que as informe a caridade; são
somente virtudes aparentes, as que procedem de um amor desordenado de si, como do
avaro.
Algumas virtudes intelectuais (como a ciência e a arte) aperfeiçoam o intelecto e
não necessariamente o agir da pessoa enquanto tal; ademais são virtudes secundum quid:
levam a realizar obras bem-feitas, porém não necessariamente boas, quer dizer,
informadas pelo amor de Deus e do próximo e, em última instância, pela caridade.
Nesta perspectiva se entende a riqueza das virtudes humanas do cristão. As virtudes
humanas são o fundamento das sobrenaturais; e estas proporcionam sempre um novo
impulso para desenvolver-se

156
Parte II: A Classificação ou Esquema Geral das Virtudes

Dando por suposto o conhecimento do esquema seguido por Platão e Aristóteles,


faremos na continuação uma breve descrição do esquema judeu-cristão das virtudes e do
seguido por Santo Tomás de Aquino.

1. A tradição judeu-cristã das virtudes

A virtude aparece, no Antigo Testamento, através de várias figuras, que de um modo


ou de outro fazem referência à ideia de força ou potência, próprias do modo de agir do
homem justo: fé, esperança, sensibilidade, sabedoria, paciência, penitência, obediência,
misericórdia, prudência, agradecimento, perseverança, fortaleza, humildade, temor de
Deus, amor ao próximo etc.
Algumas destas atitudes dinâmicas não encontram equivalente preciso no
pensamento grego, porque supõem a concepção do homem como imagem de Deus, caído
de sua dignidade pelo pecado, e a quem Deus perdoa e ensina a perdoar.
O cristianismo enriquece a visão grega:
 Incorpora novas virtudes, como a castidade, a modéstia, a mansidão;
 Exalta a energia virtuosa de atitudes quase inconcebíveis para um pagão,
como o amor a Cruz e sua docilidade, submissão e esperança diante das provas
enunciadas nas bem-aventuranças.
 Privilegia outras, incluindo comparativamente o Antigo Testamento, como a
humildade;
 Sobretudo, de algum modo as reestrutura desde sua base, pondo como raiz
e mãe de todas a caridade, participação do homem da força mesma do amor
divino; basta recordar o texto de São Paulo (1Cor 13,2-7).
De acordo com a visão de homem, própria da Revelação salvífica, os Padres
elaboraram sua doutrina sobre as virtudes. Fazem-no desde diversas perspectivas: junto à
novidade cristã seguem recolhendo a tradição clássica grega e romana. Talvez os pontos
mais importantes sejam:
 A noção de virtudes teologais e de dons do Espírito Santo;
 A ideia do império da caridade sobre todas as virtudes, também humanas;
 O papel atribuído a uma virtude tão tipicamente cristã e pouco exaltada pelos
pagãos: a humildade.

2. O Esquema das virtudes na Suma Teológica de Santo Tomás

Santo Tomás utiliza amplamente em sua exposição o conjunto da sabedoria pagã,


tal como era acessível em seu tempo; e nisto segue o ensinamento do apóstolo: “Tudo o
que há de verdadeiro, de nobre, de justo, de puro, de amável, honrável, tudo o que há de
virtuoso e de louvável disciplina” (Fil. 4, 8). Em igualdade de sentimentos com os Padres,

157
não perde de vista a novidade irredutível do Evangelho em seu contraste com a moral do
“mundo”, porém apresenta a fé apoiando-se solidamente no que a razão humana havia
alcançado.
Para Tomás de Aquino, a virtude é um dos princípios interiores pelos quais o homem
se move até Deus e alcança a própria perfeição. A moral se estrutura em torno a distintas
virtudes, analisando junto a elas os dons e frutos do Espírito Santo, os preceitos da lei e
as bem-aventuranças correspondentes. Serve de núcleo aglutinante as virtudes centrais da
tradição cristã (fé, esperança e caridade) e da tradição clássica (prudência, justiça,
fortaleza e temperança).
A sua originalidade maior radica na insistência sobre o fato de que as virtudes
constituem um organismo vivo, presidido pela caridade, forma das demais. O seu
esquema oferece, não obstante, alguma dificuldade para enquadrar duas virtudes
fundamentais no cristianismo e em sua própria visão, e hoje envolvida em uma
obscuridade semelhante a que teve no paganismo: a humildade e a penitência.
A propósito da relação entre lei e virtudes, para Santo Tomás, a virtudes constituem
o desenvolvimento e a progressiva atualização do dinamismo da Lex indita (a lei natural
e o elemento interno da Nova lei: A graça):
 As virtudes adquiridas ou humanas desenvolvem a sindéresis e os semina
virtutum, pelos quais a lei eterna se encontra participada na criatura racional;
 As virtudes gratuitas ou infusas e os dons do Espírito Santo desenvolvem a
participação na vida divina, que a graça criada instaura de modo imanente ao
homem.

3. Alguns pontos da reflexão atual sobre as virtudes

A virtude é uma noção que, desvalorizada por algumas das éticas dos últimos
séculos, tende a recuperar hoje sua secular importância. Basta recordar a corrente dos
pensadores anglo-saxões que está advogando pelo retorno a uma ética da virtude
(MacIntyre), e que considera que tal retorno é o único modo de recuperar o fator subjetivo
e estimulante da conduta, que a ética deontológica ou centrada no dever havia
obscurecido.
Trata-se de uma reação muito significativa: embora não cabe ignorar a importância
básica da ideia do dever. Quando se perde – como na ética moderna – a relação entre
dever e obrigação, e natureza e fim do homem, a mesma noção de dever termina por
esvaziar-se de sentido.
A sugestão fundamental que se desprende da análise dos ditos autores é a urgência
de recuperar a consciência da riqueza de energias com as quais conta a pessoa ao serviço
de suas ações concretas. A redução da bondade moral a somente uma atitude básica de
obediência as leis (a ideia de obrigação, de imperativo categórico) tem se demonstrado
empobrecedora.

158
Parte III: As Virtudes Humanas ou Adquiridas e suas
Características

A virtude humana se adquire com a realização constante de atos bons. Embora se dê


no homem uma predisposição natural a determinadas virtudes, está não é ainda uma
virtude moral, mas somente uma preparação, que facilita a sua aquisição.
A virtude nasce da atividade humana livre, por meio do exercício perseverante de
atos bons, e não é suficiente a mera reflexão ou somente a instrução sobre a virtude. Por
meio da realização de atos bons, a vontade e os apetites são orientados com maior firmeza
para o bem.
Estas virtudes naturais dão uma maior firmeza, facilidade, eficácia e satisfação
para o bem agir.
 A virtude imprime na vontade uma progressiva firmeza na realização do
bem. A pessoa vai adquirindo assim um carácter inteiro e constante.
 A vontade se sente pronta e inclinada a agir bem, e o homem o realiza com
certa facilidade natural.
 O bem agir produz uma satisfação nobre. A virtude faz com que as coisas
indiferentes se mostrem atrativas.
As virtudes adquiridas geralmente se classificam em intelectuais e morais.
Unicamente as morais (entre as que incluem a prudência, que é intelectual por seu sujeito,
porém moral por seu objeto, e, em certo modo, a sabedoria) são verdadeiras virtudes,
porque exercem uma influência imediata na retidão de vida, e dão valor moral ao homem
mesmo.
Em comparação com a moralidade sobrenatural, as virtudes adquiridas são
evidentemente de menor valia e importância. Sem dúvida, são verdadeiras virtudes,
embora, em si mesmas, não sejam perfeitas, e só se convertem em virtudes perfeitas
mediante a elevação pela graça e sua união com a caridade.

1. As Virtudes Intelectuais
São as que aperfeiçoam o homem no conhecimento da verdade. A saber: hábitos do
primeiros princípios especulativos e práticos, sabedoria, ciência, prudência e artes.

A razão dispõe de duas funções:


 A especulativa ou teórica: tem como fim conhecer a verdade; apreender o
real como verdadeiro;
 A prática: tem como fim dirigir a ação segundo a verdade conhecida;
apreende o real como bem.
A primazia da razão especulativa é condição de garantia de que o bem diante da
pessoa se encontra no verdadeiro e não no aparente.
a) As virtudes que aperfeiçoam a razão especulativa são as seguintes:

159
 O hábito dos primeiros princípios especulativos ou entendimento (nous,
intellectus). Graças a ele a razão percebe de modo imediato as verdades evidentes
por si mesmas, sobre as que se assentam todos os demais conhecimentos.
 A sabedoria (sophia, sapientia): é a virtude que aperfeiçoa a razão para
conhecer e contemplar a verdade sobre as causas últimas de todas as coisas; a
verdade que responde aos problemas mais profundos que a pessoa, enquanto tal,
se coloca. É, em último termo, o conhecimento de Deus como causa primeira e
fim último de toda a realidade.
 A ciência (episteme, scientia): é o conhecimento da verdade sobre os
diversos campos da realidade observada.

b) A razão prática, por sua vez, é aperfeiçoada pelas seguintes virtudes:


 O hábito dos primeiros princípios práticos ou sindéresis (do grego
synteréo: observar, vigiar atentamente): hábito pelo qual se conhece as primeiras
verdades da lei moral natural e os fins das virtudes.
 A prudência (phronesis, prudentia): virtude que aperfeiçoa a inteligência
para que raciocine e julgue bem sobre a ação concreta que deve realizar em ordem
a conseguir um fim bom, e impulsione sua realização.
 A técnica ou arte (téjne, ars): consiste em aplicar retamente a verdade
conhecida a produção ou fabricação de coisas.
As virtudes intelectuais potenciam a inteligência humana para conhecer o universo
criado e seu Criador e, com ele, o modo adequado de mover-se dentro dele, facilitando
que o homem acerte na valoração dos vários fins que se propõe e, mediante sua
prossecução, possa unir-se a Deus, que é seu último fim.
Cada uma das virtudes se especifica e diferencia das demais em razão de seu objeto,
é dizer, daquele concreto campo ou dimensão que o aperfeiçoa.

1.1. Os hábitos dos primeiros princípios especulativos e práticos


São hábitos que aperfeiçoam a inteligência e o conhecimento dos primeiros princípios do real

Afirma-se que são hábitos naturais, porque sempre que queremos conhecer a verdade e o
bem, os primeiros princípios do ser e da bondade, esses nos aparecem como auto evidentes (ao
menos, no modo pré-reflexivo e sem explícita formulação).
Porém são também virtudes, enquanto esse conhecimento afirma-se e torna-se mais ou
menos lúcido por obra do sujeito, a quem lhe cabe também o obscurecer.
São uma luz intelectual, uma perfeição da inteligência, que facilita julgar o que
experimentamos pelos sentidos e de nossos raciocínios, distinguindo quando são verdadeiros ou
falsos. A função dos hábitos dos primeiros princípios é muito importante na vida humana: guiam
todo nosso saber e com sua luz não nos afastamos da verdade e do bem.
São particularmente perigosas as doutrinas que chegam à negação dos mesmos
primeiros princípios, pois seu erro já não é removível por verdades mais evidentes.
Especial importância para a vida moral tem a sindéresis.

160
 A importância da sindéresis radica em que constitui no começo e, por sua
vez, o guia natural de toda a vida moral da pessoa.
 É um hábito que aperfeiçoa à razão prática. Graças a ele, a razão, de modo
natural, assinala e estipula o bem e rechaça o mal. Por isso, o homem não é
indiferente ante o bem e o mal, mas experimenta de modo natural que deve amar
o bem e evitar o mal.
 A sindéresis pode julgar e mandar o bem porque conhece de modo natural e
habitual os fins virtuosos que a pessoa deve perseguir e, portanto, os primeiros
princípios da lei moral.
 É um hábito natural da nossa mente. Isto quer dizer que o homem é dotado
deste hábito naturalmente, de modo imediato, pelo Criador.
 Uma consequência do anterior é que a sindéresis é uma luz inextinguível:
permanece sempre no homem, ainda que este a obscurece à força de não seguir
suas indicações. Neste sentido, a sindéresis representa um ponto de esperança,
porque sempre está aí para fazer ouvir sua voz a quem quer encaminhar sua vida
moral.

1.2. Sabedoria
Este é o hábito que leva a conhecer as causas últimas do universo visível, isto é, a conhecer a
Deus como causa Primeira de todas as criaturas, e a estas em relação com Ele.

Leva a ver que o universo inteiro tem como fim a Deus: “É próprio do sábio, ver a
Deus como fim das coisas criadas, e buscá-lo como tal”158. O verdadeiro sábio não só
conhece que o universo tem como fim a Deus, senão que o busca em todas suas ações. A
sabedoria é, neste sentido, virtude moral, e por isso, para poder alcançá-la, se requer que
a vontade tenha boas disposições morais. A Bíblia tem um livro dedicado à sabedoria, e
são contínuos seus elogios a esta virtude, que nasce da humildade e do amor a Deus, e
nos faz poderosos para servir.

1.3. Ciência
A virtude da ciência aperfeiçoa o entendimento para conhecer as coisas em razão de suas
causas particulares.

Com a luz da ciência, o entendimento penetra o conhecimento das criaturas, segundo


mostram-nas suas causas próximas: assim são hábitos de ciência a física, a matemática, a biologia
etc.
Convém advertir que a palavra ciência e, sobretudo, o adjetivo científico, geralmente se
utiliza também para designar todo o conhecimento rigoroso e ordenado: neste sentido são também
ciências a teologia e a metafísica.

158 S. BERNARDO, Sermo III de Pentec., n. 4, Obras de San Bernardo, BAC, Madrid, p. 575.
161
1.4. A Prudência
A prudência aperfeiçoa a inteligência para o conhecimento da dimensão moral dos atos
humanos, ou seja, em sua ordem ao fim último.

Dirige o agir moral do homem; por isso, se costuma chamar recta ratio agibilium: reto
conhecimento do que se deve obrar moralmente (agere, no sentido aristotélico e clássico da
palavra).
Ensina os caminhos (os meios) até o fim último da vida e o modo operativo e imediato,
agudizando a mente da pessoa para averiguar em todo o momento qual seja a vontade de Deus.
Por isso, é virtude moral: aperfeiçoa o entendimento para orientar bem à vontade.
A prudência é uma virtude fundamental no homem, pois o guia, iluminando e
impulsionando as boas obras, até sua plena realização como pessoa e filho de Deus. A prudência
exige ponderação da realidade e das exigências morais universais nas circunstâncias concretas,
e, portanto, retidão de critério, docilidade e impulso.

1.5. Artes
São os hábitos que aperfeiçoam o entendimento para que ordene o fazer humano (facere)
segundo seus fins próximos.

A arte é a recta ratio factibilium, a reta razão do fazer ou produzir (facere, no sentido
aristotélico e clássico da palavra).
As artes são múltiplas, tantas como variedades do humano querer. Sem dúvida, a bondade
moral do artista, e em algum modo da arte mesma, procede de sua ordenabilidade e efetiva
ordenação ao fim último.
Hoje em dia a palavra arte se reserva melhor para as belas artes. Para as demais artes, se
costuma utilizar o nome de técnicas ou habilidades profissionais etc.

2. As virtudes morais
São as que aperfeiçoam o homem na prática do bem moral próprio de sua natureza humana.

As virtudes morais, enquanto dispõem ao bem moral, não podem ser usadas para
o mal, pelo que convém estritamente a clássica definição de Santo Agostinho: “A virtude
é uma boa qualidade do espírito, pela qual se vive retamente, e de nada usa mal”159.

Como se distinguem por seu objeto, o número das virtudes morais se multiplica segundo as
distintas classes de boas obras necessárias ou convenientes ao homem, quer dizer, segundo os
bens que integram sua perfeição.

159 De libero arbitrio, II, 19: PL 32, 1268.


162
Desde a antiguidade, vem sendo agrupadas ao redor de quatro delas – prudência,
justiça, fortaleza e temperança –, que costumam chamar-se cardeais, porque constituem
a dobradiça ou eixo (cardo), ao redor do qual giram e se desenvolvem as demais.
Santo Tomás põe a principal razão para destacar estas quatro virtudes em que
constituem como as condições ou aspectos gerais de todo reto agir: não se prática o bem
sem a prudente discrição do que é grato a Deus; sem a imprescindível retidão de alma,
própria da justiça; sem vencer com fortaleza as dificuldades, que frequentemente se
opõem à pratica do bem; enfim, sem a temperança que dá medida e domínio do uso dos
bens e paixões160.

Não convém, contudo, tomar de maneira rígida este esquema e parece útil destacar
junto as quatro virtudes cardeais, algumas outras virtudes fundamentais na tradição
cristã, como a humildade, o amor de amizade (que é assumido e aperfeiçoado pela
caridade), a laboriosidade e a penitência. Serão descritas brevemente na
continuação, salvo a prudência (vista já com as virtudes intelectuais).

2.1. A humildade
É a virtude que modera o afã da própria excelência e leva a saber quem somos, facilitando-
nos o conhecimento simultaneamente de nossa miséria e de nossa grandeza.

O Senhor a elogiou especialmente, indicando-nos que devíamos aprender dele, que


é “manso e humilde de coração” (Mat. 11, 29).
De algum modo, encontra-se na raiz de todas as virtudes do homem, enquanto
chamado ao conhecimento e amor de Deus.
A mais radical tendência da pessoa – imagem de Deus-amor – é amar; porém o amor
do homem está fechado por uma ambiguidade inseparável de sua condição de criatura: a
possibilidade de desviar-se até o amor desordenado de si. Daí a necessidade de reconhecer
seus próprios limites. Este reconhecimento, convertido em virtude pela própria
experiência da própria miséria e a grandeza do amor de Deus, constitui a humildade.
À humildade, são conaturais a paz e a alegria.

2.2. O amor de amizade


Enraizada na humildade, cresce na pessoa a virtude da amizade, pela qual se desenvolve
e arraiga sua inclinação natural ao amor de Deus e do próximo.

Junto ao mandato do amor como primeiro princípio ético, há que se recuperar


também a função da amizade no desenvolvimento das virtudes e aceitar que constitui o
objeto de uma virtude
Que a vontade esteja naturalmente inclinada à felicidade, ao amor de Deus e do
próximo, não impede que tal inclinação deva reafirmar-se como virtude. A vida moral,

160 Cf. S.Th., I-II, q.61, a.3 y 4.

163
dizia S. Agostinho, é a ordo amoris, e as demais virtudes são um desenvolvimento seu161
.
São virtudes que acompanham o amor de amizade: a compreensão, a capacidade de
desculpar, a abertura aos demais, o saber escutar, a delicadeza no trato, a disponibilidade
etc. E, convém colocá-lo particularmente de relevo hoje – precisamente porque muitos
não compreendem – a castidade, que não é simples continência, senão uma das condições
do amor: “a energia espiritual que sabe defender o amor dos perigos do egoísmo e da
agressividade, e promove-lo a sua plena realização”162.

2.3. A justiça e a solidariedade


A justiça é a virtude que, sustentada na humildade e no amor de amizade a Deus e aos
demais, inclina o homem a dar a cada um o que é seu, e se manifesta em relação à vida social
na solidariedade.

Não se restringe, pois, à mera justiça comutativa – que rege o intercâmbio entre
iguais – senão que leva a orientar toda a vida retamente ao bem comum e, portanto, a
Deus163. Por isso, disse Santo Tomás que “a justiça tende a que o homem, na medida de
suas forças, dê tudo a Deus, submetendo-lhe totalmente sua alma”164.
Na Sagrada Escritura o justo é aquele que tem sua vontade totalmente posta em
Deus. “Esta é a regra da vida que a justiça prescreve à alma enamorada: que sirva de boa
vontade e gostosamente a Deus de seus amores, que é o Sumo Bem, Suma Sabedoria e
Suma Paz; e governe todas as demais coisas, umas como sujeitas a si e outras como
prevendo que algum dia estarão. Está regra de vida a confirma, como dissemos, o
testemunho dos dois testamentos”165. O justo por excelência é Deus: “Deus fiel, e justo e
reto”166.
Assim entendida a justiça, denomina-se justiça geral, porque abarca a integridade
do trato com Deus e com os demais, e compreende:
 A religião, que nos leva a adorar a Deus e a dar-lhe o culto devido;
 A piedade, pela qual damos honra e assistência aos pais e à pátria;
 A solidariedade, que nos leva a reconhecer em todos os homens – e nos
grupos humanos – sua condição de pessoas, com sua singular e irrepetível
dignidade;
 A justiça particular (comutativa ou distributiva), pela qual damos o que é
seu a cada homem.

161 SAN AGUSTÍN, De moribus Ecclesiae, Libro I, cap. 15.


162 JUAN PABLO II, Exhort. ap. Familiaris consortio, n. 33.
163 Cf. S.Th., II-II, q. 58, aa. 5 y 6; I-II, q. 109, a. 3, q. 100, a. 6.
164 S.Th., II-II, q. 57, a. 1, ad 3.
165 SAN AGUSTÍN, De moribus Ecclesiae Catholicae cit., lib. I, cap. 25.
166 Dt 32,4.
164
 A obediência, pela qual realizamos os mandatos legítimos dos superiores
etc.

2.4. A fortaleza
É a virtude que nos vigoriza para praticar o bem, apesar das dificuldades, com constância e
paciência.

Pela fortaleza o homem aprende a superar as contradições que aparecem na vida, e


a não desanimar ante os próprios defeitos, superando o temor ao esforço, os perigos e as
dificuldades que entravam a prática do bem, perseverando com tenacidade para conseguir
as metas e os ideais propostos.
Aludindo o fundamento de toda a virtude no amor de Deus, disse São Gregório que a
fortaleza faz huius mundi aspera pro aeternis praemiis amare, amar as dificuldades deste tempo
para ganhar uma eternidade com Deus167.
É superação – com a ajuda da graça – da própria debilidade:

“A virtude da fortaleza requer sempre uma superação da debilidade humana e,


sobretudo, do medo. O homem, com efeito, por natureza teme o perigo, as moléstias,
os sofrimentos. Por isso, é necessário buscar homens valentes não somente nos
campos de batalha, senão também nos corredores dos hospitais ou junto ao leito de
dor (…). Desejo render homenagem a todos estes valentes desconhecidos, a todos os
que tem valor de dizer “não” ou “sim” quando isto custa, a todos os que dão assim um
testemunho singular de dignidade humana e de profunda humanidade. Justamente
porque são desconhecidos merecem uma homenagem e uma gratidão particular”168.

São virtudes anexas à fortaleza a audácia, a paciência, com a qual “suportamos os


males com bom ânimo”169, a perseverança, a serenidade, e a lealdade, pela qual o homem
não se aparta de seus empenhos e promessas, de suas convicções e deveres; a
magnanimidade e a magnificência etc.

2.5. A Temperança
É a virtude que modera o amor aos bens da terra e ajuda a por o coração no céu, donde
“estão os verdadeiros bens” e donde “não roubam os ladrões e nem rói a traça” (Luc. 12,33).

167 SAN GREGORIO MAGNO, Moralia in Job, VII, c. 21: ML 75, 778.
168 JUAN PABLO II, Audiencia General, 15-XI-1978.
169 SAN AGUSTÍN, De patientia, 2.

165
Promete-nos, disse Santo Agostinho, “a pureza e incorruptibilidade do amor que nos
une a Deus” 170. A temperança é medida do agir e do amor das criaturas, quer dizer
“senhorio”.
O homem temperante sabe prescindir de quanto entrava seu amor a Deus e aos
demais, sacrificando-se com prazer, “porque o viver assim – com sacrifício – se livra de
muitas escravidões e alcança, no íntimo de seu coração, saborear todo o amor de Deus”171.
Os Padres descobriram na temperança, virtude aplaudida pelos pagãos, um dos
pilares da vida cristã:

“O homem moderado encontra nos dois testamentos uma regra de vida, que lhe
ajuda a comportar-se ante a multidão de bens caducos e passageiros, que lhe envolvem
e ameaçam a cegá-lo. É o seguinte: não amar nenhum desses bens nem desejá-los por
si mesmos, senão servir-se deles unicamente segundo as necessidades e deveres da
vida, com a moderação de quem os usa, e não de quem lhes dá valor demasiado e se
vê arrastado por eles”172.

Dentro da temperança entra a continência, a modéstia, a sobriedade, a pobreza, a


clemência, a mansidão (que não exclui a ponderada defesa dos próprios direitos: cf. Heb.
22, 25) etc.
A temperança, no conjunto destas atitudes que compreende, virtude especialmente
apostólica, por ser sinal claro do senhorio dos filhos de Deus, que atrai sempre os homens.

2.6. A Laboriosidade
É a virtude que “leva a colocar o empenho em fazer bom uso dos talentos que cada um
recebeu de Deus (…). O que é laborioso aproveita o tempo, que não é somente ouro, é gloria de
Deus! Faz o que deve e está no que faz, não por rotina nem por ocupar as horas, senão como
fruto de uma reflexão atenta e ponderada. Por isso é diligente. O uso normal desta palavra –
diligente – nos evoca a sua origem latina. Diligente vem do verbo diligo, que é amar”173.

Trata-se de uma virtude humana central, embora pouco analisada nos tratados de
moral dos últimos séculos, na medida mesma em que o trabalho humano não era sempre
apreciado em sua realidade santificadora174.
Sem embargo, de acordo com a experiência e o ensinamento da Sagrada Escritura,
a laboriosidade é uma virtude fundamental: “vós sabeis bem que deveis imitar-nos,
porque entre vós não fomos desordenados, nem comemos de graça o pão de ninguém,
senão trabalhamos dia e noite com cansaço e fadiga, para não ser pesado a ninguém (…);

170 SAN AGUSTÍN, De moribus Ecclesiae, cit., lib. I, c. 19.


171 SAN JOSEMARÍA ESCRIVÁ, Amigos de Dios, n. 84.
172 SAN AGUSTÍN, De moribus Ecclesiae, cit., lib. 1, c. 21.
173 SAN JOSEMARÍA ESCRIVÁ, Amigos de Dios, n. 81.
174 Cf. sobre el tema: J.L. ILLANES, La santificación del trabajo, tema de nuestro tiempo, Palabra,
Madrid 1986.
166
e quando estávamos com vós lhe dávamos também esta norma: se alguém não quer
trabalhar, que não coma” (2 Tes. 3, 7-8 e 10).
Insiste o Magistério:

“A Igreja está convencida de que o trabalho é uma dimensão fundamental


da existência do homem sobre a terra (…). As diversas ciências humanas o
confirmam, porém, a Igreja tira sua convicção sobretudo da Palavra revelada
de Deus (…). O homem como imagem de Deus recebeu o mandato do Criador
de subjugar e dominar a terra. E no cumprimento do mandato do homem, cada
ser humano reflete a ação mesma do Criador do universo (…). O trabalho é um
bem do homem – um bem de sua humanidade –, porque mediante o trabalho o
homem não somente transforma a natureza adaptando-a as próprias
necessidades, senão que se realiza a si mesmo como homem”175.

Como qualquer das virtudes humanas fundamentais, a laboriosidade solicita e


estimula a viver as demais. Porém talvez as virtudes que mais se relacionem com
laboriosidade, e esta alimenta de maneira particular, sejam a maturidade, a força, o sentido
de responsabilidade, o aproveitamento do tempo e, para hoje, a capital e aludida
solidariedade, como em geral as que afetam o trato com os demais.

2.7. A penitência
É a virtude que impulsiona a doer-se dos próprios pecados, principalmente enquanto ofensa
a Deus, e a fazer quanto seja possível para removê-los e voltar à amizade divina.

Virtude, sem dúvida, muito necessária ao homem que, de outra maneira, diante as
repetidas experiências de seus fracassos morais, podia desesperar.
A penitência, como o perdão, era quase desconhecida na cultura pré-cristã. O mundo
antigo tendia a considerar que a reação apropriada para os que infringem as regras da
comunidade é a punição.
O ideal do amor pelos pecadores, que dá sentido ao perdão e leva ao arrependimento
e à penitência, é uma ideia bíblica, sobretudo do Novo Testamento, que supõe um
desenvolvimento ulterior e mais rico da noção de justiça – cujas exigências o perdão não
nega, senão que afirma, num modo superior – por obra da caridade176.
Porém a virtude da penitência supõe também a percepção – com a radical
profundidade e novidade – da espiritualidade do homem e sua relação com Deus; em
virtude do amor paternal de Deus, o homem pode cancelar mediante a próprio dor,

175 JUAN PABLO II, Enc. Laborem excercens, n. 4 y 9.


176 Bento XVI, Caritas in veritate, n. 6: “A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao
outro do que é «meu»; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é «dele», o que lhe
pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso «dar» ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado
aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para
com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à
caridade, mas é «inseparável da caridade», é-lhe intrínseca”.
167
plenamente na medida que seja dor de amor – obra da graça – quando em sua vida teve
de pecado e desumanização, e não somente tornando-se para a eternidade, mas com o
tempo.

3. A conexão das virtudes humanas entre si e com as sobrenaturais

As virtudes morais estão determinadas por seu fim próximo e, em certo modo, são
independentes. Como sua orientação é um fim sempre geral, e os atos em troca são sempre
concretos, é preciso que a prudência determine sempre a reta medida de seu exercício
em cada caso particular.
Uma vida verdadeiramente virtuosa supõe a aquisição de todas as virtudes. Sem
dúvida, a falta de alguma virtude em particular não priva de seu caráter moral as restantes.

Inclusive num mesmo homem as virtudes podem ter diversos graus ao longo de
distintas épocas de sua vida, até o ponto que é possível viver as virtudes de um modo
ordinário, ou de maneira extraordinária e heroicamente; desde uma vivência incipiente,
até crescer progressivamente. Podem diminuir, inclusive podem se perder. Cada pecado
debilita a virtude, e a repetição frequente de pecados termina extinguindo plenamente as
virtudes adquiridas.

3.1. Conexão entre as virtudes adquiridas


As virtudes morais adquiridas estão de tal modo unidas entre si que, se uma se possui com
perfeição, todas as demais estão presentes; se uma falta, nenhuma outra é perfeita.

Se a diversidade de atos com que o homem se dirige a seu fim último implica a
multiplicidade e distinção entre as virtudes, a unidade da pessoa e o fim da vida humana
exige sua conexão.
Esta conexão entre as virtudes não se opõe a que possam existir independentes
umas das outras, como imperfeitas: ou seja, como hábitos perfeitamente arraigados e
estáveis.
Devem possuir as virtudes em graus diversos: nascem do crescente conhecimento
e amor do bem de cada virtude e comportam um exercício de atos adequados a ele, e uma
pessoa pode exercitar-se mais em uns do que em outros atos de virtude, incluindo estar
naturalmente melhor disposto a uns do que a outros.
Ocorre uma tendencial inclinação a possui-las em grau semelhante, pois cada
virtude, em último termo, diz ordenada a Deus, e, na medida em que amamos mais, todas
se enraízam progressivamente. Daí que quem se exercita em uma, tende a crescer nas
demais.
A conexão entre as virtudes, manifestação e exigência da unidade da pessoa e de
seu fim, se desenvolve no que é chamado, com fórmula sugestiva e de profunda raiz
metafísica, a unidade de vida. Esta unidade alcança um novo e mais alto grau no
cristianismo, pela graça que faz o homem participante da mesma vida divina, donde a
unidade se dá em única e irrepetível plenitude.

168
3.2. Relação entre as virtudes naturais ou adquiridas e as gratuitas ou infusas
As virtudes adquiridas condicionam o exercício das infusas, porque a graça supõe a
natureza.

Quanto maior seja a prudência natural, melhor se viverá a sobrenatural; o que é


humanamente desleal, dificilmente guardará fidelidade a Deus.
Isto não significa que umas se adquirem ao largo de tempos ou com atos
necessariamente diversos dos que se alcançam as outras. As virtudes infusas se recebem
com a graça, embora faltem as adquiridas; porém não se assentam sem estas. A
divinização é uma tarefa do Espírito Santo, porém o homem tem de cooperar com ela.
Sem a graça nenhuma virtude humana é perfeita, e com a graça se recebe inclinação e
impulso a prática de todas as virtudes.

Nenhuma virtude é perfeita sem a graça, porque, desprovido dela, o homem caído
não alcança manter a reta ordem habitual de sua vontade. Por sua vez, as virtudes
sobrenaturais, recebidas com a graça, facilitam a aquisição e crescimento das virtudes
naturais. Por isso, crescer na graça é o modo mais eficaz para crescer também em virtudes
humanas.
Considera-se a graça como uma elevação e uma divinização da alma. A graça
santificante concede ao homem uma nova vida em Cristo; as virtudes são como as
faculdades vitais próprias desta nova vida sobrenatural.
As diferenças entre as virtudes adquiridas e as infusas são as seguintes:
1. Ao falar das virtudes infusas, a palavra “virtude” não significa uma disposição
moral, no sentido de uma orientação pessoal. Esta disposição não existe, por
exemplo nos bebes sem uso da razão que recebem o batismo, juntamente com a
graça santificante, as virtudes infusas. Porém, para seu normal desenvolvimento,
são necessários os meios naturais; Ex.: as vivências da fé requerem a transmissão
das correspondentes verdades religiosas, mediante a instrução humana.
2. O termo “hábito” tem um sentido diferente ao falar das virtudes adquiridas e ao
referir-se às sobrenaturais. As adquiridas seguem uma facilidade e satisfação no
agir virtuoso; as infusas fazem referência à capacidade de realizar atos morais
sobrenaturais.
3. A virtude natural é adquirida pelo constante exercício moral. A virtude
sobrenatural é obra imediata de Deus; o homem com suas boas obras coopera no
desenvolvimento das virtudes infusas, como causa dispositiva e meritória. As
virtudes naturais aumentam com o exercício das mesmas; as sobrenaturais só
podem ser acrescentadas por Deus.
4. A condição sobrenatural das virtudes infusas não se funda nos motivos morais
de seus atos; mas sim na elevação entitativa das faculdades da alma.

Tanto a virtude sobrenatural como a natural coincidem em que ambas tendem,


como fim e motivos únicos, à glória de Deus.

169
3.3. O justo meio da virtude
Se a virtude dispõe o homem para alcançar seu fim, este há de ser o critério para
medi-la. A expressão in medio virtus significa precisamente isto: exata adequação à
medida que dita a razão, na ordem do fim.

“É um equívoco pensar que as expressões termo médio ou justo meio, como algo
característico das virtudes morais, significam mediocridade: algo assim como a
metade do que é possível realizar. Este meio entre o excesso e o defeito é um cume,
um ponto alto: o melhor que a prudência indica. Por outra parte, para as virtudes
teologais não se admitem equilíbrios: não se podem crer, esperar ou amar
demasiado”177.

Deve-se entender como o meio entre os extremos, ambos desordenados; e, portanto,


os dois viciosos e maus, como por exemplo, na virtude da laboriosidade, um extremo
seria a preguiça; e outro, o excessivo e obsessivo trabalho que impede de cumprir os
demais deveres.

4. O progresso no desenvolvimento das virtudes humanas

A teologia moral estuda o desenvolvimento das virtudes humanas, porém não em


abstrato, senão dentro do modo real em que progride a vida humana; por isso, toma em
conta os meios sobrenaturais.
1) Para o desenvolvimento de qualquer virtude, é preciso crescer no conhecimento
do bem que é próprio, e que maximamente se alcança pela contemplação da
humanidade de Cristo.
2) Adquirir as virtudes humanas exigem ademais o exercício dos atos concretos da
virtude, sem os quais não se cresce no amor ao bem; não basta o conhecimento do bem,
nem o afã de possuir as virtudes: é preciso aprender a praticá-las, exercitar-se
habitualmente nos atos correspondentes, que implicam não somente boas intenções, mas
também boas obras.
3) Finalmente, temos o papel da graça – que restaura a natureza e outorga as virtudes
morais infusas –, e é imprescindível a recepção frequente dos sacramentos; sem eles não
há virtudes, que são harmonia das forças do homem – inteligência, vontade e paixões –,
dirigidas a busca amorosa de Deus, sob a ação do Espírito.

A ordem ao amor de Deus livra as virtudes humanas do cristão de cair na rigidez


estoica. A virtude não é mero domínio de si, mas fruto de estar todas as forças da alma
ao serviço do amor de Deus e do próximo, sob a ação da graça.

177 SAN JOSEMARÍA ESCRIVÁ, Amigos de Dios, p. 83.


170
5. O empenho pessoal e a educação na aquisição das virtudes

A virtude é perfeição pessoal – nada é tão pessoal como a ordem da virtude e a


desordem do pecado – e é grandemente facilitada ou obstaculizada pelas condições
externas: a educação recebida; o sustento que encontra na família e nas outras
comunidades mais imediatas em que um homem vive; e, em certa medida, da comunidade
política, a quem compete velar pelo bem comum de todas elas178.
Normalmente, o homem se inicia na virtude graças ao trabalho dos educadores – os
pais principalmente e a Igreja – que lhe proporcionam o conhecimento das obras
virtuosas, como a disciplina e o ambiente que facilitam praticá-las; a Igreja, ademais,
abre-nos as fontes da graça, indispensável em nossa condição caída.

Nos últimos anos, especialmente na área da filosofia anglo-saxã, colocou-se em


relevo o papel decisivo da comunidade no desenvolvimento das virtudes. Afirma-se
que, na prática, a gênese da virtude e da educação moral não é possível senão dentro
de comunidades humanas unificadas por uma concepção da vida virtuosa e
possuidoras de uma tradição em que haja delimitado experimentalmente suas
exigências, base para determinar as que resultam em sucessivas novas condições179.
A experiência histórica vem mostrar que a noção de virtude e sua prática generalizada
estiveram sempre ligadas à vitalidade de determinadas comunidades.
Sem esquecer esta experiência, decisiva sobretudo no desenvolvimento inicial da
pessoa, a história ensina também que os heróis e os santos, que cultivaram virtudes
fora do comum, em ocasiões surgiram em ambientes nada favoráveis; mais ainda,
essas pessoas singulares tem sido a origem de comunidades onde floresceu logo a
virtude. A isto deve-se adicionar que a família possui por si, contra o peso do
ambiente, a capacidade para fazer que a virtude nasça e arraigue no início da vida e
se expanda logo.

Parte IV: As virtudes sobrenaturais (gratuitas ou infusas)


e os dons do Espírito Santo

1. O dinamismo operativo dos filhos de Deus


Nenhum dos hábitos virtuosos, sejam naturais ou sobrenaturais, são “coisas” que, por assim
dizer, estão além das potências, mas a implantação ordenada destas, progressiva “atuação”.

É o caso das virtudes gratuitas e os dons, cujo desenvolvimento realiza-se pela


misteriosa presença da Trindade na alma, mediante a graça criada. Cada virtude
sobrenatural intensifica a energia da pessoa para melhor conhecer e amar o bem divino e
os diversos bens criados, por uma participação gratuita e sobrenatural no conhecimento e
amor intratrinitários.

178 Cf. G. ABBÀ, Felicidad, vida buena y virtud, Eunsa, Barcelona 1992, pp. 226ss.
179 Cf. por exemplo o célebre livro de A. MAcINTYRE, Tras la virtud, Barcelona 1987.
171
A análise das virtudes na ordem da natureza, antes realizado, facilita entender agora
como se entrelaçam virtudes naturais e sobrenaturais.
Toda virtude está cheia de conhecimento e amor de um bem humano – uma
dimensão integrante da perfeição da pessoa – que adquire sua plenitude de sentido no
conhecimento e amor de Deus.
A vida da graça prolonga esse conhecimento e esse amor mais além das forças
naturais do homem: as virtudes teologais levam a pessoa ao conhecimento e ao amor de
Deus em sua intimidade, participando daquele conhecimento e amor com que Ele mesmo
se conhece e ama, e se desdobra na caridade para com o próximo, que se sustenta no
esquecimento e no dom de si, na vida de infância espiritual e abandono.
Esse amor sana intrinsecamente, aperfeiçoa e prolonga todos os demais amores.
Toda a vida do homem – todo seu agir no tempo e no mundo, segundo o modo próprio
das virtudes naturais – requer ser elevado à dimensão de um filho de Deus.
Em suma, as virtudes são elementos – sempre unidos – de uma vida

“Não se pode separar, na realidade, as virtudes teologais, a toda luz sobrenaturais,


das morais, em sua raiz humana e natural. A fé e a caridade assumem em nós as
virtudes humanas e penetram nelas como a seiva na árvore, como o sangue no corpo.
Infunde-lhes uma vida e uma força novas, especialmente com a ajuda dos dons do
Espírito Santo (…) A vida do cristão torna-se uma vida plenamente cristã e
plenamente humana, de tal maneira que não se pode dissociar uma dimensão da outra.
Há como uma encarnação moral da graça”180.

2. As virtudes teologais
Junto com a graça santificante são infundidas no homem as virtudes teologais – fé,
esperança e caridade – pelas quais ele une-se a Deus em sua vida íntima.

É continua a referência da Sagrada Escritura a estas três virtudes como os princípios


da vida cristã “como filhos da luz vivamos sobriamente, vestidos da armadura da fé e da
caridade, e o elmo da esperança” (1 Tes. 5, 8); “Agora permanecem estas três virtudes:
fé, esperança e caridade; e das três a mais excelente é a caridade” (1 Cor. 13, 3); “A
caridade de Deus foi difundida em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado”
(Rom 5,5).
De acordo com estes ensinamentos bíblicos, o Concílio de Trento declarou que “na
mesma justificação, juntamente com a remissão dos pecados, recebe o homem as
seguintes coisas, que lhe são infundidas por Jesus Cristo, em quem é enxertado: a fé, a
esperança e a caridade”181.
É fácil entender a missão e a necessidade destas três virtudes para a vida cristã: não
podíamos entrar na intimidade de Deus, se não fossem convenientemente elevadas as
forças da nossa inteligência e vontade.

180 S. PINCKAERS, El Evangelio y la moral, Eunsa, Barcelona 1992, pp. 68-69.


181 CONCILIO DE TRENTO, sess. VI, c. 7, DS 1530/800.
172
Somente pela luz da fé, a inteligência criada pode conhecer a vida íntima
divina, assentindo ao que Deus lhe revelou; e, em concreto, saber que a
visão beatífica é o seu fim.
Porém, às vezes, é preciso reforçar a vontade duplamente: em primeiro
lugar, pela esperança nas promessas de Deus, que faz confiar que podemos
alcançar um fim tão alto, com sua ajuda, e assim mover a desejá-lo.
Ademais, pela caridade, que nos confere o amor efetivo a nosso fim
sobrenatural, por uma certa conformidade com Deus mesmo: “Deus é
caridade, e o que permanece na caridade permanece em Deus, e Deus nele”
(1 Jo. 4, 16-17).

Toda a vida cristã deve ser sustentada por estas três virtudes, que constituem como sua
essência e fundamento.

 A fé nos dá o modo de ver as coisas próprio dos filhos de Deus.


 A esperança proporciona a segurança e o otimismo – apesar das dificuldades
– com que deve atuar um filho de Deus.
 A caridade faz amar a Deus e a todos os homens com o mesmo amor de
Deus.
Não se trata de atitudes para certos momentos decisivos ou extraordinários, mas sim
de disposições permanentes do cristão, se quer viver a imitação de Cristo, como filho de
Deus.
Não há autêntica vida cristã se a fé não atua como luz para descobrir o sentido divino
das coisas; a caridade como princípio do amor sobrenatural a Deus e ao próximo em
qualquer ação; a esperança como empenho confiado e a luta por ser sempre mais humano
e melhores filhos de Deus.
Ainda que os atos de fé, esperança e caridade sejam específicamente distintos e
possam dar-se separados, o próprio da vida da graça é que, ao vivê-la, entrelaçam-se estas
virtudes.
Descreveremos agora as três virtudes teologais.

2.1. A fé
A fé é a “virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que Ele nos revelou, que a
Santa Igreja nos propõe, porque Ele é a verdade mesma” (CEC, 1418).

A Escritura, afirmando que «est autem fides substantia sperandarum rerum,


argumentum non aparentium» fundamento das coisas que se espera e conhecimento das
coisas que não se veem (Hb 11, 1), ressalta que constitui uma incoação da visão de Deus
que teremos na bem-aventurança, precisamente por isso nos guia em nosso caminhar
terreno. Proporciona-nos uma luz, com a que aprendemos e movemos como filhos de
Deus, não só em momentos isolados e esporádicos de entusiasmo, mas em meio às
circunstâncias mais normais, e ainda através das maiores provas e dificuldades da vida.

173
O Catecismo ensina que “pela fé o homem se entrega inteira e livremente a Deus”
(DV). Por isso, o crente se esforça por conhecer e fazer a vontade de Deus. “O justo
viverá pela fé” (Rom. 1, 17). A fé viva “atua pela caridade” (Gal. 5, 6) (CEC, 1814).
Interessa sublinhar que a fé não compete com a razão: não são duas luzes em
contraste, e não há duas verdades. Pelo contrário, a fé fortifica a luz da razão, ratifica-a
quando é necessário, e a ultrapassa na linha da perfeição do homem como filho de Deus.
Faz assim os crentes capazes de um juízo moral que, aberto aos descobrimentos da ciência
e às orientações culturais do próprio tempo, saibam iluminá-los com as riquezas da
Sabedoria Divina e o sincero amor e respeito por cada pessoa.

2.2. A esperança
A esperança sobrenatural é a virtude infusa pela qual, apoiados no auxílio da onipotência
divina, confiamos viver como filhos de Deus e alcançar a bem-aventurança182.

A virtude teologal da esperança responde “ao desejo de felicidade posto por Deus
no coração de todo homem; assume as esperanças que inspiram às atividades dos homens,
purifica-as para ordená-las ao Reino dos céus; protege do desalento; sustenta em todo
desfalecimento, dilata o coração na espera da bem-aventurança eterna. O impulso da
esperança preserva do egoísmo e conduz à vitória da caridade” (CEC, 1818).
O objeto primordial da esperança é a bem-aventurança, mas indissociavelmente
unida à confiança de aprender a viver como filhos de Deus, pois só vivendo como tal,
amando como tal, caminhamos em união com Ele até à eterna bem-aventurança, segundo
a sugestiva expressão de Agostinho: «os que amam, caminham, pois em direção a Deus
não se corre com passos, mas sim com o afeto »183. Sem esta esperança das coisas futuras,
deixam de manter-se em pé as mesmas coisas presentes.

O caráter escatológico da esperança cristã não significa, pois, desentender-se deste


mundo, mas vê-lo em sua verdadeira luz, na perspectiva da nova criação (cf. Rom. 8,
19-25). Por isso, o primeiro que temos de esperar nesse mundo é a própria santidade,
pela qual caminhamos até Ele até possui-lo plenamente na vida perdurável. A Igreja,
comunhão dos crentes, necessita que os cristãos recuperem pessoalmente, assim como
pediu o Concílio, recordando a vocação universal à santidade, a esperança de ser
santos, dado o crescido secularismo e a experiência da própria miséria.

A esperança cristã dirige-se também ao logro dos meios necessários, não somente
para nossa própria santidade, mas para difundir e ajudar nosso próximo: tantos problemas
dos homens que devemos ajudar a resolver. Empurra o Cristianismo a não ser tímido na
ação social e em sua tarefa apostólica, e fazer com atrevimento grandes obras por amor
de Deus e esperar de sua ajuda os meios oportunos, inclusive quando não há nenhuma
garantia prévia de alcançá-los. Pede-se ao crente uma esperança muito concreta e realista,
que chega até estes aspectos e lhe abra à esperança dos bens espirituais e eternos.

182 Cf. S.Th., II-II, q. 17, aa. 1-8.


183 Sermo 306, B, 1.

174
2.3. 2.3. A caridade
A caridade, diz Santo Tomás, é certo amor de amizade entre o homem e Deus184, que
constitui a fonte e o motor de toda a vida cristã185.

Por isso temos vindo tratando, inevitavelmente, desta virtude ao longo de todo o
curso: para explicar qual seja o sentido da vida humana, o dinamismo da lei divina, o
princípio da perfeição e plenitude dos atos humanos etc. Aqui queremos somente
sublinhar alguns pontos.
a) Em primeiro lugar, que sempre os cristãos a consideraram como a mais
importante e portentosa das virtudes.
b) Em segundo lugar, é interessante a noção de amor de amizade para explicar
a natureza de caridade. Santo Tomás, para definir a caridade serve-se da
noção aristotélica de amor de amizade, como o amor característico do ser
de natureza espiritual, fundado na capacidade de tal natureza –
exclusivamente sua – de abrir-se aos outros e acolhê-los como são,
permitindo amá-los por si mesmos. É próprio do amor de amizade superar
o amor egoísta e estático, cumprindo a “maravilha de que cada um dos
sujeitos em comunhão reconhece o outro como digno de ser amado por ele
mesmo e quer eficazmente seu bem”, mas sem auto anular-se, porque com
isso traria danos ao amigo, para quem nosso bem é algo propriamente seu186.
c) O Catecismo acolheu explicitamente a doutrina da caridade como princípio
e forma de todas as virtudes: “o exercício de todas as virtudes está
animado e inspirado pela caridade. Esta é o ‘vínculo da perfeição’ (Col. 3,
14); é a forma das virtudes; articula-as e as ordena entre si, é fonte e término
da prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa faculdade humana de
amar. E eleva a perfeição sobrenatural do amor divino (CEC, 1827).
d) Nós não construímos a caridade; ela nos invade com a graça de Deus: porque
Ele nos amou primeiro (cf. 1 Jo. 4, 10). Convém que nos encharquemos bem desta
verdade bela: se podemos amar a Deus, é porque fomos amados por Ele.
Um dom divino que dá frutos divinos, não somente de união com o Amor – que leva
a não querer mais do que Ele quer, como quer e quando quer – mas também de amor ao
próximo. Dilata o coração para amar com um amor universal.

3. As Virtudes Morais Infusas


Junto com a graça, o homem recebe também o cortejo das virtudes morais infusas, que
levam o cristão a realizar com sentido divino todas as suas tarefas humanas.

184 S.Th., II-II, q. 23, a. 1.


185 Cf. S.Th., II-II, qq. 22-3.
186 Cf. S. PINCKAERS, La renovación de la moral, cit., pp. 256-257.
175
O Catecismo disse que “as virtudes humanas adquiridas mediante a educação, os
atos deliberados, e uma perseverança reiterada sempre no esforço, são purificadas e
elevadas pela graça divina” (CEC, 1810).

De fato, a existência das virtudes morais infusas, ou elevação das virtudes morais
pela graça é uma doutrina comum entre os Padres e teólogos.
Como argumento de razão em prol de sua existência, costuma-se utilizar a
analogia entre a ordem natural e sobrenatural, pois a graça não corrompe, mas sim
aperfeiçoa a natureza. Na ordem natural, para agir reta, pronta e deliberadamente, o
homem necessita das virtudes morais, quer dizer, um crescimento no conhecimento e
no amor dos vários bens; paralelamente, na ordem sobrenatural, para realizar atos
conforme a sua nova condição de filho de Deus, ordená-los ao fim sobrenatural,
precisa desse novo e sobrenatural conhecimento conhecimento e amor de cada bem,
que constitui o conteúdo das virtudes morais infusas187.

O cristão se encaminha à eterna bem-aventurança através de todas e cada uma de


suas ações, devendo fazer delas uma ocasião de trato amoroso com a Trindade. Isto requer
não somente a retidão do agir, senão que tal atitude seja reforçada e elevada por uns
princípios mais altos, que são precisamente as virtudes morais infusas: prudência infusa,
humildade infusa, justiça infusa etc. Ou se se prefere dizer assim, o fruto da elevação das
virtudes morais pela graça.

4. Os Dons do Espírito Santo


Os dons do Espírito Santo são hábitos sobrenaturais, concomitantes à graça santificante,
pelos quais as potências da alma se dispõem a receber as ilustrações e moções do Espírito Santo.

A missão dos dons é, portanto, aperfeiçoar o dinamismo da vida sobrenatural


próprio das virtudes infusas. Acompanham a caridade e têm seu assentimento em toda
alma em graça.

“O homem justo, que já vive a vida da graça e opera pelas correspondentes


virtudes, como é alma por suas potências, tem necessidade dos sete dons do Espírito
Santo. Graças a eles a alma se dispõe e fortalece para seguir mais fácil e rapidamente
às inspirações divinas”188.

Mover-se por amor de caridade excede de tal maneira às forças do homem que, ainda
contando com as virtudes teologais e morais infusas, necessita, para viver como filho de
Deus, da guia contínua do Espírito Santo, que ilustra sua inteligência e sustenta sua
vontade. Os dons o dispõe a seguir essa guia, segundo ensina a Escritura: “Todos os que
seguem a guia do Espírito Santo, esses sãos os filhos de Deus” (Rom. 18, 14).

187 Cf. S.Th., I-II, q. 63, a. 3.


188 LEON XIII, Enc. Divinum illud munus, 9-V-1887, ASS 29 (1896/97) 646 y ss.

176
“Em ordem ao seu fim último sobrenatural, ao qual a razão move na medida em
que de algum modo imperfeito e conformado com as virtudes teologais, não basta seu
impulso, mas sim se acrescenta o instinto e a moção do Espírito Santo (…). Por isso,
para conseguir tal fim é necessário ao homem possuir os dons do Espírito Santo189.

4.1. O número dos dons


A Sagrada Escritura fala de sete: “Descerá sobre ele, o Espírito do Senhor: Espírito
de sabedoria e inteligência, Espírito de conselho e fortaleza, Espírito de Ciência e Piedade
e lhe preencherá o Espírito do Temor de Deus” (Is. 11, 2-3).
Entre estes, os dons de inteligência, ciência, temor de Deus e sabedoria aperfeiçoam
a alma para seguir as moções do Espírito Santo naquilo que inclinam as virtudes teologais;
por sua vez, os dons de fortaleza, piedade e conselho aperfeiçoam as inclinações e
energias próprias das virtudes morais adquiridas, já aperfeiçoadas pelas gratuitas.
Descrevemos brevemente os referidos dons a seguir.

4.2. Dons de entendimento e ciência


Ambos ilustram o conhecimento próprio da fé.
O dom do entendimento é uma luz sobrenatural que faz o homem aprender os
mistérios divinos sob a guia do Espírito Santo: pela fé já assente a eles, mas com o dom
do entendimento, percebe-os em forma mais viva e profunda, segundo um instinto divino.
Por sua vez, o dom de Ciência leva a entender e valorizar as coisas criadas enquanto
obra de Deus e em sua relação ao fim sobrenatural da vida humana.

4.3. Dom de sabedoria


Aperfeiçoa a virtude da caridade, fazendo dócil a mente do homem para tudo julgar
sob o impulso do Espírito Santo, segundo as exigências do amor de Deus, torna
conatural querer tudo e só o que leva a Deus, quando Ele o quer e como Ele o quer.
Acrescenta aos dons anteriores não somente uma maior penetração nas exigências e
horizontes do amor divino, mas também a inclinação amorosa a os seguir; a sabedoria
percebe o que vale é o amor de Deus. Os cristãos têm particular necessidade deste dom,
que permite conhecer e desfrutar de Deus, na medida em que facilita poder julgar sobre
as mais diversas situações e realidades.

4.4. O dom do temor


E o hábito que leva, sob a ação do Espírito Santo a reverenciar à majestade de
Deus, e a temer o afastamento Dele. Não é ter medo de Deus, que não está em harmonia
com o espírito de filiação divina, mas temor filial a não corresponder à generosidade dos
dons divinos. Aperfeiçoa a esperança e está intimamente unido à caridade, porque só o
que ama algo teme perdê-lo.

189 S.Th., q. 68, a. 2.


177
4.5. Dons da piedade, conselho e fortaleza
Afirma-se que aperfeiçoam respectivamente as virtudes da justiça, prudência e
fortaleza.
A piedade nos dá a consciência gozosa e sobrenatural de ser filhos de Deus, e em
Jesus Cristo, irmãos de todos os homens, o qual impulsa a cumprir, sob da guia do Espírito
Santo, com todo dever de justiça. Deste dom fala a escritura quando diz: Porque não
recebestes um espírito de escravidão para estar de novo sob o temor, mas recebestes um
Espírito de filhos adotivos, no qual clamamos: ‘Abbá, Pai” (Rom. 8, 15)
O dom do conselho faz-nos dóceis aos homens para apreciar em cada momento o
que mais agrada a Deus, tanto para a vida como para aconselhar aos outros.
Por último, o dom da fortaleza confere firmeza na fé e constância na luta interior,
para vencer os obstáculos segundo a moção do Espírito Santo: “minha fortaleza e minha
glória e o Senhor. Ele é meu salvador” (Sal. 61, 5.7-8).

4.6. O instinctus Spiritus Sancti


Segundo uma tradição aflorada já em alguns Padres, Santo Tomás vê o dinamismo
da graça resumido e contendo um instinto interior sobrenatural, inseparável da
divinização da pessoa e sua transformação em filho de Deus.
Toda vida procede de Deus, que, ao outorgá-la, confere juntamente a suas cristuras
o poder e dinamismo que as inclinam e fazem idôneas as suas operações próprias, pelas
quais se dirigem a sua perfeição ou plenitude. Esta orientação dinâmica é chamada com
frequência de instinto.
No homem encontra-se, diferente dos instintos animais, um instinctus rationis, que
funda e contém em unidade de suas inclinações ao bem, a verdade a vida em sociedade e
a amizade etc190. Mas, sobretudo, descobre um instinctus Spiritus Sancti ou gratiae, que
compreendia o dinamismo da graça e em particular dos dons, enquanto dispõem a receber
a moção do Espírito Santo. Deste modo, a expressão instinctus gratiae designa o conjunto
de virtudes teologais e os dons que formam um instinto espiritual divino, que nos dispõe
a corresponder à ação do Espírito em nós191.
Trata não de um instinto cego, semelhante o dos animais, mas particularmente
luminoso; como as virtudes adquiridas dão já uma conaturalidade para conhecer e amar
o bem, as infusas com os dons dão uma nova e mais perfeita instintividade para conhecer
e amar o bem: um instinto que concentra as energias da alma, e está totalmente penetrado
pelo sentido da filiação divina, fazendo-nos trabalhar conaturalmente como filhos de
Deus.

5. Algumas características das virtudes infusas e dons


a) As virtudes teologais e morais infusas outorgam a capacidade e a inclinação para agir
segundo a vida do Espírito Santo, porém somente de modo incoativo outorgam a facilidade.

190 S. PINCKAERS, El Evangelio y la moral, cit. pp. 215-216.


191 S. PINCKAERS, El Evangelio y la moral, cit. pp. 215-216.
178
É esta uma diferença com as virtudes adquiridas, que supõem o desenvolvimento e
a atualização do poder próprio das potências da natureza, que as faz conatural ao seu agir
eletivo. Os hábitos infusos, por sua vez, elevam as potências conferindo-as uma
capacidade que não possuem, pela qual podem agir sobrenaturalmente.
De todos os modos, sendo verdadeiros hábitos, as virtudes sobrenaturais ou infusas
e os dons inclinam para a realização de seus atos próprios; ainda que por si só não
confiram plena facilidade para agir: hão de vencer a inclinação contrária da natureza
caída, e Deus não as desenvolverá tampouco em sua dimensão especificamente
sobrenatural sem a devida correspondência. De qualquer modo, a graça – com a qual se
recebe as virtudes infusas – comporta por si uma certa facilidade – ao menos remota –
para desenvolver todas as virtudes: incita e possibilita a pessoa de praticá-las.
As virtudes e os dons crescem com o aumento da graça; nossos atos podem fazer-
nos merecer este aumento.

Não está nas mãos da criatura nem a aquisição nem o aumento das virtudes infusas
e dons que, por ser sobrenaturais, excedem a sua potência operativa. Somente nascem e
crescem pelo dom gratuito da graça e pelos meios que Deus dispôs para seu aumento: a
oração, a recepção frutuosa dos sacramentos, as obras boas que o homem – em graça
– realiza e lhe merecem seu aumento de graça e por conseguinte das virtudes.

c) Os hábitos sobrenaturais, embora não aumentam, tampouco diminuem por nossos atos,
porém se perdem pelo pecado mortal.

Ao não proceder da ação do homem, estes hábitos e virtudes tampouco são


diminuídos por causa dela. Nem seu exercício nem o pecado venial privam da fé,
esperança, ou temperança infusas: isto não quer dizer que agir assim careça de
importância, porque tal modo de comportar-se diminui a facilidade para exercitar-se, a
minguar a dimensão natural do amor do Bem correspondente em que se enraíza.
Por outra parte, o pecado venial dispõe ao mortal, e com o pecado mortal são
perdidos a graça santificante, todas as virtudes e hábitos infusos, exceto a fé e a
esperança, que se destroem somente se o pecado mortal vai diretamente contra eles
(por ex; pecados de infidelidade, desespero etc.). Assim o ensina o Magistério: “Há que
afirmar que não somente por infidelidade, pela qual se perde a fé mesma, senão também
por qualquer pecado mortal, ainda que não se perca a fé, perde-se a graça da justificação”
192.

d) Para o desenvolvimento das virtudes infusas e dos dons, importa particularmente cultivar
a humildade e a docilidade.

O fato de que os hábitos infusos cresçam com o aumento da graça implica que, desde
o ponto de vista da cooperação humana, as disposições fundamentais a cultivar sejam

192 CONCILIO DE TRENTO, Sess VI, cap. XV, DS 1544/808.


179
estas duas – humildade e docilidade – que marcam nossa atitude de abertura à ação do
Espírito Santo. O desenvolvimento da vida sobrenatural é fruto da iniciativa divina.
A ação de Deus na alma se intensifica na mesma proporção em que se abre espaço
para ela pela humildade. Junto à humildade, e como manifestação da graça na alma
humilde, se requer a docilidade. A humildade e a docilidade não são atitudes que
desdizem a liberdade e a dignidade do homem, senão muito próprias de sua capacidade
de progredir e educar-se. De novo aqui a moral moderna prestou um fraco serviço, com
sua ideia voluntarista da autoridade e da obediência.

6. As virtudes cristãs e a santificação do trabalho e os deveres sociais da pessoa


Um corolário da unidade com que se desenvolve as virtudes na ordem ao fim
sobrenatural do homem, é a relação que existe entre a prática das virtudes e o
cumprimento das tarefas humanas, entre a vida interior e a perfeita observância dos
próprios deveres sociais e profissionais.
As virtudes teologais e morais dirigem e informam o bom uso de todas as forças
humanas. É certo que há uma distinção entre os hábitos do agere e do facere:
 Os hábitos do facere tomam sua regra do objeto, do modo de fazer bem uma
obra (a perfeição de um quadro depende de que se observem as normas da arte de
pintar);
 Os hábitos morais tomam seu critério da reta ordem ao fim último, que é o
que faz bom o homem (que o artista observe em seu trabalho a caridade ou a
temperança).
Sem embargo, esta distinção não é independência, porque do fim do homem
dependem todas suas obras. Por isso, as disposições morais influenciam no modo em que
se cumpre as tarefas profissionais e sociais: o afã de servir ou o egoísmo de uma pessoa
refletem-se em seu trabalho.
Em definitivo, a plena realização de qualquer tarefa humana exige o concurso
das virtudes morais e dos hábitos técnicos e profissionais: para dirigir bem uma
empresa, atuar na política, cuidar da delicadeza da vida social no descanso, é necessário
ter capacidade política, visão de negócios, capacidade técnica, artística, dominar as regras
do esportes e da boa educação etc.; porém, com frequência será difícil usar bem essas
qualidades se se carece de afã por tornar felizes às pessoas que nos rodeiam, de realizar
um serviço à sociedade etc.; o que – em sua plenitude – é obra da caridade.

Evidentemente, cabe uma certa dissociação entre a virtude e capacidade técnica ou


artística, porque falta unidade de vida. Pode-se possuir uma habilidade literária sem
virtudes, pois a perfeição de uma novela ou poesia não depende diretamente da boa
vontade, senão da qualidade da composição; é possível ser um bom novelista não
sendo um homem bom, e vice-e-versa. Porém esta dissociação é válida até certo
ponto; o homem verdadeiramente reto termina sempre por aprender as ciências e artes
necessárias segundo sua condição. Vice-e-versa, se faltam as virtudes morais, acaba-
se por fazer mal as obras, ainda que se possua a arte, porque se carece da energia
interior para usá-la sempre bem; assim com frequência os homens imorais acabam
realizando obras que desdizem se sua própria capacidade profissional, porque o
egoísmo os induz a não usar sempre sacrificadamente seus talentos humanos.
Em suma, não se pode dizer de nenhum homem se agiu bem e é bom, se não cumpre
seus deveres profissionais; por outro lado, ninguém os cumpre com perfeição, de
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modo habitual, se não prática as virtudes. Há um modo de desenvolver as tarefas
profissionais e sociais, que desvela a harmonia interior do homem, e é obra própria
da caridade, graças a qual a pessoa integra plenamente suas energias, sob o impulso
do Espírito Santo, e atua no mundo como filho de Deus.

Exercícios de auto comprovação: Tema 8


1. O que é um hábito operativo?

2. Em que consiste a virtude?

3. Que conexão existe entre as virtudes adquiridas?

4. Explique o que quer dizer a expressão in medio virtus.

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