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Sumário
1
7.3. Outras tentativas de renovação e fundamentação da Teologia moral........................ 28
8. O Concílio Vaticano II .................................................................................................. 29
9. A Teologia moral depois do Concílio Vaticano: algumas tendências e questões em debate
29
9.1. A moral autônoma ..................................................................................................... 29
9.2. A opção fundamental................................................................................................. 30
9.3. O teleologismo .......................................................................................................... 31
10. Últimas intervenções do Magistério da Igreja sobre temas de Moral ........................... 32
Leitura complementar: ............................................................................................................. 33
Exercícios de auto comprovação:............................................................................................. 33
2
2.1. Algumas consequências do modo de glorificar a Deus, próprio da pessoa humana . 52
2.2. A glorificação de Deus e os bens particulares que integram a perfeição do homem 53
2.3. Alguns erros atuais sobre o fim último ...................................................................... 53
2.4. Aplicações práticas .................................................................................................... 54
3. O destino sobrenatural do homem ................................................................................. 54
3.1. A revelação do fim sobrenatural................................................................................ 54
3.2. Características do fim sobrenatural ........................................................................... 55
4. Necessidade da graça e universalidade da redenção ..................................................... 56
4.1. Universalidade do dom da graça ............................................................................... 56
4.2. Cristo, caminho universal de Salvação ...................................................................... 57
4.3. A perfeita glorificação de Deus em Cristo ................................................................ 58
5. Glória de Deus e felicidade do homem ......................................................................... 59
6. O fim último e o agir humano ....................................................................................... 59
6.1. Influência do último fim em todo ato humano .......................................................... 60
6.2. Os dois fins últimos possíveis para o homem: o amor de Deus e o amor desordenado
pela própria excelência .................................................................................................................. 60
6.3. A estrutura temporal do amor ordenado .................................................................... 61
6.4. Fim último fim e retidão de intenção ........................................................................ 62
Exercícios de auto comprovação .............................................................................................. 63
3
3. A unidade do ato humano .......................................................................................... 75
4. O papel da afetividade sensível ................................................................................. 76
4.1. Noção de paixão ............................................................................................................ 76
4.2. Moralidade das paixões ................................................................................................. 76
4.3. Influxo das paixões nos atos humanos .......................................................................... 77
5. As paixões ................................................................................................................. 77
5.1. Paixões do concupiscível............................................................................................... 78
5.2. Paixões do irascível ....................................................................................................... 80
6. A intervenção da graça no agir livre.......................................................................... 81
6.1. A graça recria a pessoa e a sua liberdade ...................................................................... 82
Parte III: Impedimentos da voluntariedade .............................................................................. 83
1. A violência ................................................................................................................ 83
1.1 Noção............................................................................................................................. 83
1.2 Regras sobre seu influxo ............................................................................................... 84
2. A ignorância .............................................................................................................. 84
2.1 Noção............................................................................................................................. 84
2.2 Algumas divisões .......................................................................................................... 85
2.3 Regras sobre seu influxo ............................................................................................... 86
3. As paixões desordenadas ........................................................................................... 86
4. O medo ...................................................................................................................... 87
4.1 Noção e divisões ............................................................................................................ 87
4.2 Regras sobre seu influxo ............................................................................................... 87
5. As enfermidades mentais........................................................................................... 88
5.1 Noção............................................................................................................................. 88
5.2 Regras morais ................................................................................................................ 88
Parte IV: Elementos que determinam a moralidade dos atos humanos ................................... 89
1. O objeto moral ou “finis operis” ............................................................................... 89
2. O fim do ato moral ou “finis operantis” .................................................................... 91
3. Regras morais sobre o objeto e o fim ........................................................................ 92
4. As circunstâncias ....................................................................................................... 93
5. Alcance ou extensão da moralidade .......................................................................... 94
5.1 Sentido dos atos indiferentes ......................................................................................... 94
5.2 Moralidade do ato exterior e dos seus efeitos................................................................ 95
5.3 O princípio de duplo efeito ou voluntario indireto ........................................................ 96
5.4 Dimensão social do agir moral ...................................................................................... 97
Parte V: O mérito sobrenatural dos atos humanos ................................................................... 99
1. Noção e classes de mérito.......................................................................................... 99
1.1. Noção ................................................................................................................................. 99
1.2. Classes .............................................................................................................................. 100
4
1.3. Condições requeridas para o mérito sobrenatural............................................................. 101
Exercícios de auto comprovação: Tema 5.............................................................................. 102
5
3.2. A dispensa da lei.......................................................................................................... 125
4. Finalidade moral da lei civil .................................................................................... 126
4.1. As Leis “mere poenales” ............................................................................................. 126
4.2. A tolerância nas leis civis ............................................................................................ 126
4.3. As obrigações morais do legislador ............................................................................. 127
Exercícios de auto comprovação ............................................................................................ 128
6
Tema 8: As Virtudes Humanas e Sobrenaturais......................................................................... 152
Introdução .............................................................................................................................. 152
Parte I: As Virtudes em Geral ................................................................................................ 153
1. Noção....................................................................................................................... 153
1.1 A virtude implica crescimento no conhecimento e no amor ............................................. 153
1.2 A virtude é um hábito, mas não um automatismo ............................................................. 154
2. O sujeito da virtude ................................................................................................. 154
3. Multiplicidade e divisão das virtudes ...................................................................... 155
3.1. A especificação das virtudes por seu objeto: sua multiplicidade ................................ 156
3.2. Caráter analógico da virtude ........................................................................................ 156
Parte II: A Classificação ou Esquema Geral das Virtudes ..................................................... 157
1. A tradição judeu-cristã das virtudes ........................................................................ 157
2. O Esquema das virtudes na Suma Teológica de Santo Tomás ................................ 157
3. Alguns pontos da reflexão atual sobre as virtudes .................................................. 158
Parte III: As Virtudes Humanas ou Adquiridas e suas Características .................................. 159
1. As Virtudes Intelectuais .......................................................................................... 159
1.1. Os hábitos dos primeiros princípios especulativos e práticos ..................................... 160
1.2. Sabedoria ..................................................................................................................... 161
1.3. Ciência ......................................................................................................................... 161
1.4. A Prudência ................................................................................................................. 162
1.5. Artes ............................................................................................................................ 162
2. As virtudes morais ................................................................................................... 162
2.1. A humildade ................................................................................................................ 163
2.2. O amor de amizade ...................................................................................................... 163
2.3. A justiça e a solidariedade ........................................................................................... 164
2.4. A fortaleza ................................................................................................................... 165
2.5. A Temperança ............................................................................................................. 165
2.6. A Laboriosidade .......................................................................................................... 166
2.7. A penitência................................................................................................................. 167
3. A conexão das virtudes humanas entre si e com as sobrenaturais ........................... 168
3.1. Conexão entre as virtudes adquiridas .......................................................................... 168
3.2. Relação entre as virtudes naturais ou adquiridas e as gratuitas ou infusas .................. 169
3.3. O justo meio da virtude ............................................................................................... 170
4. O progresso no desenvolvimento das virtudes humanas ......................................... 170
5. O empenho pessoal e a educação na aquisição das virtudes ................................... 171
Parte IV: As virtudes sobrenaturais (gratuitas ou infusas) e os dons do Espírito Santo ........ 171
1. O dinamismo operativo dos filhos de Deus ............................................................. 171
2. As virtudes teologais ............................................................................................... 172
2.1. A fé .............................................................................................................................. 173
7
2.2. A esperança ................................................................................................................. 174
2.3. 2.3. A caridade............................................................................................................ 175
3. As Virtudes Morais Infusas ..................................................................................... 175
4. Os Dons do Espírito Santo ...................................................................................... 176
4.1. O número dos dons ...................................................................................................... 177
4.2. Dons de entendimento e ciência .................................................................................. 177
4.3. Dom de sabedoria ........................................................................................................ 177
4.4. O dom do temor ........................................................................................................... 177
4.5. Dons da piedade, conselho e fortaleza ........................................................................ 178
4.6. O instinctus Spiritus Sancti ......................................................................................... 178
5. Algumas características das virtudes infusas e dons ............................................... 178
6. As virtudes cristãs e a santificação do trabalho e os deveres sociais da pessoa ...... 180
Exercícios de auto comprovação: Tema 8.............................................................................. 181
8
Apresentação do curso
A Teologia moral é uma ciência teológica que visa aprofundar com as luzes da razão
e da fé os ensinamentos morais de Cristo e da sua Igreja com o fim de apresenta-los de modo
sistemático e organizado.
Cristo nos ensinou com sua vida e doutrina a meta que nos espera e o caminho que
devemos seguir, e nos deixou sua Igreja, assistida pelo Espírito Santo, para que nos transmitisse
fielmente sua doutrina e nos comunicasse através do Sacramentos a vida divina.
O cristão é filho de Deus em Cristo. Pelo Batismo começou a fazer parte da Igreja, foi
incorporado a Cristo, recebeu a graça santificante – participação da mesma vida divina – e se
converteu em templo da Santíssima Trindade. O cristão está chamado, portanto, a alcançar
através de suas obras, em correspondência com a graça de Deus, a plenitude da vida divina de
que foi feito participante. O filho de Deus por adoção está chamado a parecer-se cada dia mais
ao seu modelo, Cristo, Filho de Deus por natureza, seguindo docilmente as inspirações de seu
modelador, o Espírito Santo, para glória de Deus Pai.
Para estudar a moralidade de determinadas condutas concretas, é preciso situar o
homem redimido neste contexto e conhecer assim os fundamentos da moralidade: o fim último
do homem; sua vocação a viver unido a Cristo, lutando por identificar-se com Ele e
amorosamente em direção a felicidade; a percepção da vontade divina através de sua
consciência etc.
A Teologia Moral Fundamental estuda os temas que fixam os critérios básicos para
todas as demais concretizações da Teologia Moral.
9
Objetivos do curso
10
Tema I: Noção de Teologia Moral
Introdução
O estudo da Teologia moral deve começar, como o de qualquer ciência, por uma
delimitação de seu objeto e suas características enquanto saber. A Teologia moral é o
saber sobre o homem e sua conduta, ancorado na Revelação divina. É a suprema ciência
sobre o atuar humano, e a única capaz de guiar ao homem a sua perfeição e sua felicidade
temporal e eterna. Mas é uma ciência peculiar.
Este primeiro tema se ordena a conhecer o objeto, as fontes e as características
próprias da Teologia moral, e sua unidade com a Teologia dogmática. É preciso distinguir
bem esta ciência teológica da Ética natural, e saber que relações tem com o Magistério da
Igreja.
A Teologia moral é a parte da ciência teológica que estuda quem é e como deve
agir o homem para encaminhar-se para o seu fim sobrenatural, ou seja, à bem-aventurança
eterna e comportar-se já neste mundo como filho de Deus.
A luz com que a Teologia moral estuda a conduta humana é a razão iluminada
pela fé.
11
«A verdade oferecida na revelação de Deus ultrapassa certamente as capacidades
de conhecimento do homem, mas não se opõe à razão humana. Ela a penetra, eleva e
chama à responsabilidade de cada um (cf. 1 Ped. 3,15)» para aprofundar nela1.
A Teologia moral realiza sua tarefa desde a base firme das verdades possuídas
graças à revelação divina, que permite entender o homem na perspectiva do inteiro plano
de Deus.
As verdades da fé conferem uma particular claridade ao estudo das condutas
humanas, porque proporcionam uma certeza absoluta em relação ao seu conteúdo próprio
– que é todo o revelado – do que formam parte verdades de ordem natural, sobre as que
adquirimos assim uma segurança nova, que não dariam somente as luzes da razão.
A moral cristã forma parte da Doutrina da Salvação e não pode ser separada da
inteira Revelação divina: o mais importante que a moral ensina ao homem é a plenitude
da verdade sobre si mesmo e seu destino, fundando-se no modo em que é amado por
Deus e ajudado pela sua graça. Daqui parte toda a luz que proporciona sobre sua conduta.
A divisão da Teologia em partes não significa separação, cisão em ciências
diversas. O dogma e a moral são indissociáveis como o são a fé e a vida: formam parte
de uma só ciência teológica, que é ao mesmo tempo especulativa e prática.
A divisão da Teologia em dogmática e moral é uma distinção
fundamentalmente didática, que não pode prescindir – sem deformar-se – da sua radical
unidade.
Mais precisamente, a distribuição programática do estudo das verdades da fé e dos
princípios e normas de viver cristão se dá sobretudo a partir do século XVII, e
obedeceu a motivos pastorais: a conveniência de atender à formação dos confessores
mediante uma cuidada e necessária casuística. Entretanto, com o tempo a divisão se
transformou às vezes em uma separação exagerada. Então surgiram vários
inconvenientes, sobretudo o empobrecimento dos fundamentos e da dinâmica própria
da moral cristã.
Por esta razão o Concílio Vaticano II pediu um «especial cuidado em aperfeiçoar
a Teologia moral, cuja exposição científica, nutrida com maior intensidade da doutrina
da Sagrada Escritura, deverá mostrar a excelência da vocação dos fiéis em Cristo e
sua obrigação de produzir frutos na caridade para a vida do mundo»2. Conservando
as conquistas dos manuais anteriores, deve ser reforçada a sua fundamentação na
necessária unidade com a dogmática.
3.2.A Tradição
O conteúdo moral das Sagradas Escrituras exige ser interpretado sempre na sua
unidade com a Tradição e sob a guia do Magistério. Isso proporciona um quadro muito
claro do que são diretrizes permanentes e o que constitui indicações ligadas a certo
momento histórico.
O recurso exclusivo à Escritura é um defeito metodológico particularmente
inclinado a falsificar a doutrina de Cristo em matéria moral. Por isso, é de importância
central ater-se ao princípio de «observar o contexto e a unidade de toda a Escritura para
13
apreender com exatidão o sentido dos textos sagrados, tendo em conta também a Tradição
vida de toda a Igreja e a analogia da fé»3.
Para o correto uso do Magistério em matéria moral, deve-se ter em conta que as
suas afirmações exigem a obediência mesma da fé quando se trata de ensinamentos
infalíveis. E são infalíveis:
As afirmações definidas como verdades de fé;
O inteiro conteúdo do Magistério ordinário e universal, porque também
se anuncia infalivelmente a doutrina de Cristo quando os bispos, «ainda dispersos no
mundo, mas mantendo o vínculo de comunhão entre si e com o sucessor de Pedro,
expõem como definitiva uma doutrina em matéria de fé e de costumes»6. Além disso, o
«Magistério ordinário universal pode ser considerado como a expressão habitual da
14
infalibilidade da Igreja, ou seja, o modo habitual em que exerce seu “carisma veritatis
certum”» (Dei Verbum, n. 8)7.
O restante Magistério autêntico – ainda que não com a prerrogativa da
infalibilidade – exige um «religiosum animi obsequium»8. Esta «religiosa submissão da
vontade e da inteligência» implica, especialmente em relação ao Magistério do Romano
Pontífice, a obrigação em consciência de obedecer.
Por último, os decretos disciplinares, que emanam não da potestade de
Magistério, mas da de jurisdição, não vinculam a fé, mas a conduta externa9, sem que a
obediência que lhes é devida queira dizer que sejam sempre os mais perfeitos e adequados
desde todos os pontos de vista. De fato, a Hierarquia da Igreja reforma-os e atualiza de
acordo com as necessidades pastorais, circunstâncias históricas, etc. Por exemplo, a este
campo pertencem as normas sobre certos aspectos da administração dos sacramentos, a
liturgia etc.
Sem fidelidade ao Magistério não pode haver verdadeira Teologia, nem ela pode
ser uma válida guia para a vida cristã. A Teologia moral não pode ser edificada nem progredir
«sem uma convicta adesão ao Magistério, que é a única guia autêntica do Povo de Deus»10.
Santo Tomás de Aquino dizia que a Teologia «deve ensinar como é, ou seja,
como podemos entender aquilo que afirma a fé; de outro modo, se se limitasse a repetir o
que dizem as autoridades, certificaria que tal é a verdade, mas não daria ciência nem
inteligência delas, e a mente dos que escutam sairia vazia»11. Isso significa que «as
certezas que nos oferece o Magistério não podem nos eximir da reflexão pessoal,
teológica e filosófica, com o fim de mostrar aos homens de nosso tempo o caráter
razoável, a inteligibilidade e a profunda humanidade das exigências éticas»12 do
cristianismo.
Ademais, a Teologia moral, como o resto da Teologia, exige um reto uso da
filosofia. Não pode haver Teologia – isto é, um intellectus fidei – sem uma metafísica ou
filosofia do ser, que esteja implícita no dogma da criação: a fé não destrói, mas supõe e
aperfeiçoa a razão.
A Teologia moral tem na sua base um correto uso da razão, que é pressuposto
do intellectus fidei sobre as verdades morais; assim, por exemplo, considerando a
liberdade como autodomínio (como ensina uma correta metafísica) entendemos melhor
que a liberdade dos filhos de Deus consista em usar desse autodomínio para deixar-se
conduzir pelo Espírito Santo (cf. Rom. 8, 14). Por outro lado, a fé comprova e assegura
as verdades que a razão pode alcançar sobre a conduta humana.
A vida moral cristã parte da divinização do homem pela graça, que o converte
em uma «nova criatura» (Gal. 6, 5): é recriado para uma vida nova e capacitado para uma
conduta moral mais alta.
Entretanto, esta recriação não rechaça, mas supõe a dignidade natural do
homem, feito à imagem do seu Criador: para viver como filho de Deus deve levar uma
conduta digna no homem, ainda que o primeiro esteja muito acima do segundo.
A participação da vida divina pela graça, que nos converte em filhos de Deus,
implica que a vida moral cristã possua princípios e exigências próprias nascidas da
graça e cognoscíveis somente pela Revelação.
A moral cristã supõe um estilo de vida muito superior ao modelo ético humano
mais elevado: convida-nos a imitar a Cristo, até nos identificar com Ele, e assim
ter um trato de intimidade com as três Pessoas Divinas. É um novo modelo de vida,
que exige uma profunda conversão, fruto da graça que Deus outorga e de nossa
correspondência a ela; implica não só a repulsa do pecado, mas uma autêntica
santificação e renovação interior.
Quem não possui a fé a graça, que são os princípios da vida sobrenatural, ou ao
menos não os possui em plenitude, não pode desenvolver perfeitamente essa vida: de
aí vem, ao mesmo tempo, a especificidade da moral cristã – que a diferencia
radicalmente de qualquer ética meramente humana – e sua tendência de
universalidade.
A conduta moral cristã, por outro lado, assume todas as exigências naturais da
dignidade humana, cujo respeito é necessário a todo homem para sua própria perfeição
temporal e para se salvar. São o que tradicionalmente são chamados princípios e
exigências da lei moral natural que correspondem aos preceitos básicos do Decálogo. A
moral cristã ensina, ainda que não se limite a isto, a plenitude da ordem da criação, a cuja
realização se alude falando da lei natural.
Por sua vez, a Teologia opera desde a fé, com uma certeza própria, e pode dar
plena razão das exigências da divinização do homem e da situação da sua natureza caída
e redimida, esclarecendo assim muitas verdades naturais. Ainda que a Teologia
compreenda e não possa prescindir das verdades éticas que a razão alcança, ela nos dá
sobre elas um conhecimento mais perfeito e seguro do que a ética.
17
Para que a ética preste um serviço à moral, basta uma condição: que seja
verdadeira. A verdade ética é única, como única é a natureza humana criada. Entretanto,
é possível – e de fato ocorre – que a inteligência humana elabore diversos sistemas éticos.
Quanto mais se aproximem da verdade – e sempre que não a contradigam – maior é o
serviço prestam à Teologia.
De modo semelhante, também a Teologia assiste e contribui com o
desenvolvimento da ética em seu próprio âmbito. Depois da queda original, tornou-se
difícil conhecer com certeza a verdade moral natural, e impossível cumpri-la na sua
integridade sem a ajuda da graça divina. Precisamente por esta dificuldade, Deus quis
incluir na sua Revelação – confiando-a a sua Igreja – não apenas os mistérios da sua
Sabedoria, mas as principais verdades naturais necessárias para a salvação de todos os
homens13.
O Magistério da Igreja é também guardião infalível da moral natural. «A
Igreja Católica – declarou o Concílio Vaticano II – é mestra da verdade e sua missão é
expor e ensinar autenticamente a Verdade, que é Cristo, e ao mesmo tempo declarar e
confirmar com a sua autoridade os princípios da ordem moral que fluem da mesma
natureza humana»14.
À propósito da relação entre ética e Teologia moral, interessa advertir outro
ponto: inclusive no que a sua análise da conduta humana tem de comum, seguem em parte
caminhos diversos:
A ética filosófica parte da consideração da criatura para elevar-se ao seu fim em
Deus: integra a experiência humana em uma concepção da pessoa, caracterizada pelos
limites com que a inteligência alcança as realidades do espírito.
A Teologia por sua vez, ilumina essa experiência desde as verdades que Deus
mesmo revelou sobre o homem: que é imagem e filho seu, que goza de uma liberdade
ferida pelo pecado e restaurada por Cristo, que seu destino é eterno etc.
Leitura complementar
Do livro: COLOM. E. – RODRIGUEZ LUÑO, Á., Escolhidos em Cristo para ser santos.
I. Moral Fundamental, Quadrante, São Paulo 2015, pp. 11-22:
Cap. I, 1. A Vida cristã: a) Filhos de Deus em Cristo por meio do Espírito Santo; b)
Caráter sacramental e eclesial da vida moral cristã; c) moral cristã e moral humana.
1. Qual é o objeto da Teologia moral? Que relação existe entre a Teologia moral e a
Ética?
20
Tema 2: História da Teologia Moral
Introdução
O exemplo da vida de Cristo e a mensagem moral pregada por ele dá origem não
só à vida cristã, mas também ao pensamento científico sobre essa mensagem, que se
desenvolve ao longo da história da Igreja. É importante conhecer os momentos mais
significativos deste processo, as dificuldades que os teólogos têm enfrentado para
apresentar fielmente a moral cristã, as soluções que eles têm dado, e como tem exercido
a Igreja nas diversas épocas sua função de ensinar a verdade moral, servindo de guia para
o povo cristão.
Sem entrar em detalhes, que excederiam o nosso propósito, é muito útil fazer um
breve percorrido para admirar os momentos mais significativos da história da teologia
moral.
***
21
de seguir seus passos, servir por amor, carregar a cruz, ser humilde e amar inclusive aos
inimigos.
O verdadeiro Evangelho contém verdadeiras normas precisas que abarcam as
relações do homem com Deus, consigo mesmo, com os demais e com as coisas. São
normas canalizadas para a unidade interior e própria do amor.
Duas grandes características da moralidade de Jesus Cristo são:
a) É universal: está destinada a todos, não somente aos eleitos, inclusive aos
pecadores;
b) O mesmo Jesus Cristo apresenta-se como exemplo e modelo de vida moral.
A exigência moral da vida cristã está presente em toda a pregação apostólica.
Algumas cartas contêm, de maneira especial, a exposição dos mais variados temas de
moral: especialmente as cartas de São Paulo aos Romanos, a segunda aos Coríntios,
Efésios e Colossenses.
A doutrina moral de São Paulo concentra-se em Jesus Cristo e na incorporação
a Ele, que o homem recebe no sacramento do Batismo. Dele vem de novidade de vida em
Cristo, cuja incorporação se realiza, se aperfeiçoa e se consuma na e através da Igreja.
Não há, nos inícios do cristianismo, uma preocupação por estruturar de modo
sistemático os mistérios revelados.
Nos escritos dos Padres predomina a pregação e a catequese sobre o trabalho
mais específico de construção teológica, embora, evidentemente, esta não falte. Nessa
catequese, a exposição das verdades morais ocupa um lugar importante, e podemos
encontrar todos os temas centrais da moral fundamental e especial.
Algumas características da moral dos Padres:
A riqueza e espontaneidade com que se nutre da Escritura. Os
Padres são particularmente conscientes do caráter inspirado da Bíblia,
reconhecendo a Deus como seu autor principal: a fé com que leem o
texto sagrado e procuram colocá-lo em prática leva-os a extrair em
abundância sua força diretiva para a conduta humana.
Os Padres usam com grande naturalidade a filosofia de seu tempo,
mas sempre depois de tê-la contrastado e purificado desde o superior
conhecimento da fé.
Não separam a moral da dogmática, nem da espiritualidade.
Inculcam, como exigência para todos os cristãos e não somente
para alguns, o dever de levar uma vida santa, em contraste com a
decadência moral que os circunda, e em meio da qual dão um audaz
testemunho.
Merecem se destacar pela especial abundância e riqueza de suas considerações
morais os escritos de Clemente de Alexandria (150-210), São Basílio (329-379), São João
Crisóstomo (340-407) e Santo Ambrósio (339-397).
22
A primeira estrutura científica da Teologia moral se deve a Santo Agostinho
(354-430); não que ele tenha elaborado uma Teologia moral como ciência autônoma, mas
analisa de modo orgânico, dentro da teologia, as grandes questões morais, de forma
semelhante a como havia de fazer mais tarde Santo Tomás.
Algumas características da moral de Santo Agostinho:
Considera a moral cristã como um viver das verdades
professadas pela fé, que dispõe a alma para conhecer e possuir
plenamente Àquele em quem começou a crer.
As realidades temporais, embora dotadas de um valor próprio, só
adquirem seu verdadeiro sentido como vias de acesso a Deus.
Tampouco deve o homem buscar sua finalidade em si mesmo: fora
de Deus nada se deve amar como último fim. A atividade moral
consiste em amar bem, conforme a ordem que a fé nos dá a
conhecer.
A moral cristã não está centrada primordialmente na ideia de
obrigação e de lei, embora as compreenda e valorize na sua
importância, mas, sobretudo, no ideal da perfeição humana: mais
ainda, daquela perfeição pela qual o homem alcança a salvação, a
felicidade temporal e eterna.
A novidade cristã radica-se em ser capaz de liberar o homem da
situação de escravidão e impotência moral em que se encontrava,
mediante a verdade e a graça de Jesus Cristo, segundo o panorama
das bem-aventuranças.
3. Do Século V ao XII
24
Guilherme de Ockham entende a liberdade como indiferença da vontade; e a
moralidade como a relação da vontade humana com a norma divina, dependente do
arbítrio absoluto do criador, que poderia haver determinado que fossem boas as ações
que agora são más, ou vice-versa.
A relação entre o homem e Deus resume-se no cumprimento da vontade de
Deus pelo homem. E como a vontade divina se expressa na lei, que tem força de
obrigação, a lei e a obrigação constituíram, para Ockham e seus seguidores, o núcleo da
moral.
A moral não se funda já no íntimo desejo de felicidade ou bem-aventurança, nas
inclinações interiores ao bem e no desenvolvimento das virtudes, mas na obrigação
marcada por uma lei de algum modo extrínseca ao homem.
A influência de Ockham sobre a evolução posterior da moral foi muito forte.
Não somente por haver dado origem às morais da obrigação, senão porque na sua
concepção da liberdade como indiferença da vontade, se encontre no germe a
reivindicação de sua autonomia, e, portanto, das várias e sucessivas morais autônomas
que proclamam a consciência como juiz supremo da moralidade.
25
um, e de fato reservados a uma elite que busca a perfeição: será o
terreno da ascética e da mística»18.
O impulso que Leão XIII deu ao tomismo com a encíclica Aeterni Patris (1879),
o desejo de superar a casuística dos manuais mediante uma mais profunda reflexão
teológica etc., produzem um novo movimento renovador nos finais do século XIX.
Já no século XX, encontramo-nos com um conjunto de autores que contribuem
para certa renovação da teologia moral graças, em grande parte, ao impulso tomista, pois
este provocou algumas mudanças de perspectiva que facilitaram a renovação posterior. A
comparação dos manuais com a Summa Theologiae de Santo Tomás mostrou diferenças
de importância que animaram aos autores a realizar retoques e introduzir tratados
desconsiderados (D. Prümmer, B.H. Merkelbach, A.B. Tanquerey, A. Veermeersch etc.).
A modificação mais importante que se produziu nos manuais consistiu em
estruturar a moral em torno às virtudes teologais no lugar dos mandamentos. Se
reintroduziu ao começo da moral o tratado do fim último e da bem-aventurança.
27
Na prática, estes autores mostraram a necessidade de uma renovação mais ligada
à tradição patrística e a essas duas colunas da moral que representam Santo Agostinho e
Santo Tomás.
7.2. Novas correntes por ocasião da renovação da Teologia moral: a “nova moral” e a
“ética de situação”
Na década de 50 (do séc. XX) começa a se usar a expressão “nova moral”. Nos
documentos pontifícios, esta expressão foi usada pela primeira vez pelo Papa Pio XII na
Radio mensagem sobre a educação cristã dos jovens (23-III-1952).
O erro fundamental desta “nova moral” consistia em negar o valor objetivo das
normas universais e no outorgar à consciência do indivíduo o único critério determinante
da moralidade do ato humano.
Na “nova moral” a consciência é separada da tutela do Magistério, e desse
modo – afirma – o homem adquire a possibilidade de obrar com espontaneidade e
inocentemente, já que, por não contar com intermediário algum, a consciência obrará só
pela lei do amor, superando assim a atadura do rigorismo legal da moral.
Neste contexto adquire um protagonismo especial que chegou a se denominar
‘ética de situação”. Quando se atende exclusivamente às “circunstâncias” de cada
sujeito, a “nova moral” é despojada dos grandes princípios e vem a ser um dos maiores
perigos que pode correr a fé.
Uma coisa é valorizar as circunstâncias, e outra muito distinta é fazer depender
a moralidade somente – ou principalmente – das circunstâncias. Na “ética de situação” se
dissolve toda norma moral objetiva e universal.
28
I. Congar, H. de Lubac etc.) –, ou a decisiva contribuição daqueles que cultivaram a
renovação da moral desde seus fundamentos filosóficos, como O. N. Derisi, E. Gilson, C.
Fabro, K. Wojtyla e D. von Hildebrand.
8. O Concílio Vaticano II
Dois são os pressupostos imprescindíveis desta renovação anunciada: uma volta aos
seus fundamentos bíblicos e o ser instrumento para promover frutos de santidade.
20 Para uma adequada compreensão dos conceitos de autonomia, teonomia e teonomia participada
(cf. VS, 41).
21 Exortação Apostólica Reconciliatio et paenitentia, n. 17.
30
E outro categorial ou intramundano, que tem por objeto ou bens
particulares ou finitos.
O ato próprio da liberdade transcendental seria a opção fundamental; os atos
próprios da liberdade categorial seriam as eleições particulares pelas quais o sujeito
tende aos bens finitos. Estas eleições, obviamente, guardam uma relação com a
fundamental, pois são o seu sinal, e modos de sua realização prática. Mas, precisamente
por não poder expressá-la totalmente, ao estar a outro nível de liberdade – afirmam –
tampouco podem rompê-la.
Deste modo se introduz uma dissociação do obrar humano e dos níveis:
O transcendental, que seria propriamente o moral;
O categorial, que não teria propriamente significado moral,
mas simplesmente de correção ou incorreção, dependendo das exigências
naturais e sociais da vida intramundana dos homens.
Uma das consequências desta visão é que, para os autores,
só haveria pecado (mal moral) quando a opção fundamental é mudada
por outra contrária, mas não quando algum ato particular é contrário à lei
moral. Elimina-se assim a realidade do pecado moral tal e como foi
entendido na tradição da Igreja a partir da revelação mesma (cf. VS, nn.
65, 69 e 70).
9.3.O teleologismo
As orientações dadas pelo Concílio Vaticano II são completadas com uma alusão
ao trabalho magisterial realizado pelos Papas: Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, que
velaram pela sua aplicação.
De fato, nunca na História precedente da Igreja o Magistério havia se ocupado
com tanta atenção e profundidade dos fundamentos e conceitos básicos da moral, a
parte de seu discernimento sobre as questões morais mais importantes hoje debatidas.
Pode-se realmente dizer que todas as noções básicas da vida e a experiência
moral (a liberdade, a consciência, a lei, o pecado, a conversão, as bem-aventuranças, as
virtudes, a graça, o ato moral etc.) foram objeto de claros e profundos ensinamentos
fundados na Escritura e na Tradição, segundo as diretrizes do Concílio.
Talvez o ponto chave na ansiada renovação seja a fundação de um personalismo
cristão de profunda tradição metafísica, donde a consideração da pessoa como imagem
de Deus amor, que deve ser amada por si mesma, desvela em toda sua força o caráter
central do mandamento da caridade.
Deve-se citar entre os distintos documentos que, sobre Teologia moral,
apareceram a partir do Concílio Vaticano II:
• A Encíclica Humanae vitae, do Papa Paulo VI (25-VII-1968).
• A Declaração Persona humana, acerca de certas questões de ética sexual,
da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (29-XII-1975).
• A Exortação Apostólica Familiaris consortio, (22-XI-1981).
• A Exortação Apostólica Reconciliatio et paenitentia, (2-XII-1984).
• A Encíclica Sollicitudo rei socialis (30-XII-1987).
• A Carta Apostólica Mullieris dignitatem (15-VIII-1988).
• A Encíclica Evangelium vitae (25-III-1995), de Papa João Paulo II.
• O Catecismo Igreja Católica (11-XI-1992).
• E, de maneira especial, a Encíclica Veritatis splendor, do Papa João Paulo
II (6-VIII-1993).
32
A oportunidade do pronunciamento de cada um destes documentos e a
profundidade de sua doutrina faz com que no momento presente não possa ter lugar uma
dúvida razoável ou um dissenso honrado nos mais variados temas de teologia moral
fundamental, objeto dessa documentação. À luz desses documentos, resulta-se
relativamente fácil descobrir os temas mais discutidos, quando não tergiversados, que nos
últimos anos necessitaram de uma clara intervenção do Magistério da Igreja.
Leitura complementar:
Fonte do material:
T. Trigo, Teología moral fundamental, ISCR, Pamplona 2006 (trad. Pe. Anderson
Alves).
33
Tema 3: Antropologia Cristã e Moralidade
Introdução
A moralidade é prerrogativa do agir humano. O agir livre da pessoa humana
tem uma característica ou dimensão específica: é um agir moral, ou seja, qualificável
como bom ou mal.
Como deve ser a vida moral da pessoa humana? Que ações ou condutas são boas
ou más, do ponto de vista moral? Esta é a pergunta da moral filosófica e da teologia
moral.
A resposta a tal pergunta depende de outra: que é a pessoa humana? Esta é a
pergunta da antropologia filosófica e da antropologia revelada ou cristã.
Há antropologias filosóficas que concebem o homem como um ser cuja perfeição
e felicidade dependem do desenvolvimento científico e técnico, do bem estar econômico
etc. Essas antropologias negam a criação do homem por Deus e a relação que há entre o
homem e Deus.
A antropologia revelada na Sagrada Escritura, especialmente por Cristo (que
revela o homem ao próprio homem) responde que o homem é criado por Deus e filho
desse mesmo Deus. A teologia moral é a ciência que estuda a vida moral do filho de Deus.
Vejamos com mais profundidade, na Parte I, a antropologia revelada ou cristã;
na Parte II, veremos a criação como fundamento da moralidade; e na Parte III, nos
deteremos na elevação à ordem sobrenatural em relação com a moralidade.
35
em que age com consciência e dessa inclinação cada um sabe que não pode livrar-se por
si mesmo.
Todo ser humano – com exceção de Maria Santíssima – nasce neste triste estado:
privado da amizade com Deus e inclinado ao pecado. Só por suas forças, os homens
não só estão impossibilitados de tornarem-se íntimos de Deus, mas também não
conseguem sequer viver de modo pleno sua vida conforme à dignidade humana26. Há,
portanto, no homem decaído, um forte contraste: conserva suas aspirações à verdade e ao
bem e possui a realidade de suas forças feridas (cf. Rom 7,15-19).
A Redenção de Cristo é universal. Chega a todo homem, ainda que não chegue
a todos do mesmo modo. Por isso, a finalidade da Igreja é que «todo homem possa
encontrar a Cristo, para que Cristo possa percorrer com cada homem o caminho da
vida»27.
A apropriação da oferta da Redenção por parte da pessoa depende de diversas
circunstâncias e, em particular, de suas relações com a Igreja e do uso de sua liberdade;
pois os homens podem recusar a oferta de Cristo e afastar-se d’Ele por toda a eternidade.
Em síntese, os modos pelos quais os homens encontram a Cristo são dois:
Os que pertencem ou ingressam na Igreja de Cristo pela adesão à fé e
utilização dos meios que a Igreja recebeu de Cristo: os Sacramentos, a Sagrada
Escritura, a Tradição e o Magistério, o Governo e a Hierarquia, o exemplo dos
Santos etc.
Para os que não conhecem a Cristo, ainda que não contem com a facilidade e
abundância dos meios instituídos por Cristo para a Salvação, mas se agem com
boa vontade – ensina o Concílio Vaticano II –, recebem a graça de um modo
conhecido apenas por Deus e «conseguem a salvação»28.
1. A bondade criada
A bondade das criaturas é o conjunto de perfeições recebidas da divina
sabedoria, que manifestam a bondade de Deus.
As coisas criadas receberam sua bondade de Deus: não são a bondade por
essência, senão boas por participação. Daqui se derivam várias e importantes
consequências:
A bondade das criaturas é limitada, encontra-se repartida em diversas
perfeições, e podem aumentar ou diminuir;
A bondade das criaturas depende de sua maior ou menor participação e
manifestação da bondade divina;
As criaturas adquirem a plenitude de sua bondade mediante suas ações,
àquelas que estão conforme o plano da divina sabedoria. Há na criatura uma
dupla bondade: a bondade recebida com seu ser (bondade primeira) e a que
adquire por seu agir (bondade segunda).
37
a) Enquanto as outras criaturas são queridas em ordem ao bem geral do universo,
cada criatura espiritual é querida por si mesma, para que conheça e ame a Deus 29.
Por isso, o indivíduo de natureza racional recebe um nome específico, o de pessoa,
expressivo dessa dignidade30.
b) Cada pessoa é única e irrepetível, com uma missão singularíssima a cumprir.
No plano da criação, Deus não conta com o homem em geral, mas com cada um dos
homens; cada alma humana é criada diretamente por Deus, responde a um preciso
desígnio seu: «na origem de cada pessoa há um ato criador de Deus: nenhum homem vem
a existência por sua casualidade; é sempre o ato do amor criador de Deus»31.
A verdade revelada de que Deus quer a cada criatura espiritual por si mesma
ilumina uma experiência fundamental de todo homem: a consciência da
própria dignidade, o caráter imperativo com que percebe – em sua consciência
– que deve amar a todo homem por si mesmo como ele quer ser amado.
c) Por ser imagem de Deus, que é Amor (1Jo 4,8), a pessoa está chamada
(vocação) a amar a Deus e ao próximo. «Criando-o à sua imagem e semelhança, Deus
increve na humanidade do homem e da mulher a vocação e, portanto, a capacidade e
responsabilidade do amor e da comunhão»32.
Todo o sentido da auto possessão do próprio ser e o consequente autodomínio
sobre suas ações é que o homem possa dar-se, por amor, a Deus e aos demais. Auto
possuir-se para dar-se por amor.
O amor é uma dimensão ontológica e ética da pessoa:
d) Graças à perfeição de seu ser, a criatura espiritual pode alcançar por suas ações
uma bondade peculiar, única e suprema no universo: a bondade moral ou união com Deus.
Aqui está a razão mais alta de sua dignidade: «A razão mais alta da dignidade
humana consiste na vocação do homem à união com Deus. (...) E só pode dizer que vive
plenamente segundo à verdade de seu ser, quando reconhece livremente esse amor e se
confia por inteiro ao seu Criador»33.
29 «O homem, única criatura terrestre a qual Deus amou por si mesma». CONCILIO VATICANO
II, Const. past. Gaudium et spes, n. 24.
30 Cf. SANTO TOMÁS, S.Th., I, q. 29, a. 1, c.
31 JOÃO PAULO II, Discurso 17-IX-1983, n. 1.
32 JOÃO PAULO II, Exhor. Ap. Familiaris consortio, n. 11.
33 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 19.
38
e) O caráter absoluto da moralidade deriva da relação que o bem – ou valor –
moral tem com Deus.
O fato de que cada pessoa tenha sido querida por si mesma e que seu bem próprio
comporte sempre uma relação com Deus, implica que quanto faz referência ao bem da
pessoa como tal se apresente para a pessoa com um valor absoluto.
Destas características deriva a extrema seriedade do valor moral, sua decisiva
importância e seu valor incondicional:
Extrema seriedade: pois nenhum outro valor, nem sequer os que pertencem
apenas ao homem (como os valores intelectuais ou estéticos), é igualmente
exigente para a pessoa;
Importância decisiva: pois apenas ele é de tal natureza que nunca deve ser
descuidado e, muito menos, traído;
Valor incondicional: pois apenas ele vale por si mesmo, não em razão de
sua utilidade para alcançar qualquer outro fim, nem em razão do prazer que pode
causar. Não é necessariamente útil ou agradável.34
A percepção do valor moral conforme ou contrário à dignidade da pessoa, ainda
que é um dado imediato da experiência, só alcança seu fundamento em relação com a
verdade da Criação: a decisão divina de criar o homem à sua imagem e semelhança e
destinado à união com Ele.
a) A união com Deus não se refere apenas à alma, mas a toda a pessoa: alma e
corpo.
A pessoa humana não é a sua alma, mas a unidade substancial de alma e corpo.
Decorre daí que a perfeita e eterna união amorosa com Deus, que constitui a plenitude do
ser e perfeição própria do homem, compreenda a ressurreição da carne e que esta verdade
revelada manifesta, entre outras coisas, a dignidade do próprio corpo e sua capital
importância para a moral cristã.
Não poucos dos problemas enfrentados hoje pela Teologia Moral se devem à
difundida tendência de contrapor as noções de natureza e pessoa, assim como,
respectivamente, a dimensão espiritual e a corpórea do homem. Essa tendência
c) Nesta união com Deus que o homem consegue quando, livremente, reconhece e
cumpre o plano do Criador, ao qual está destinado, radica a bondade moral
própria da pessoa humana.
d) O homem com sua conduta, intervém no universo visível e, de algum modo, com
seus atos o transforma. Mas com suas boas ou más ações, o homem não só
influencia no mundo, mas também, transforma a si mesmo, e faz-se
moralmente bom ou mau:
Junto a dimensão transeunte, pela qual influi no universo material e visível,
seus atos têm uma
Dimensão imanente, pela qual o homem cresce em humanidade, ou de certo
modo se rebaixa e se auto destrói, une-se a Deus ou distancia-se d’Ele,
segundo essa única e íntima mutação de que é capaz o ser espiritual. Esta
dimensão imanente transcende de algum modo o tempo e possui um valor
de eternidade.
e) As ações humanas têm, ao mesmo tempo, valor temporal e valor eterno. Não
se pode separar no homem, por um lado, sua relação com Deus e por outro, sua conduta
profissional, familiar, política, econômica etc. A pessoa deve unir-se a Deus através de
todas as suas ações. E para isso, é preciso que suas ações sejam boas e se realizem com
boa intenção: não basta a intenção.
Fim último. Sabendo que o homem é uma criatura querida pelo Criador
e feita à Sua imagem, a afirmação de que Deus seja o fim último aparece em toda
sua coerência e grandeza: a busca da união com Deus é o bem mais conveniente
à natureza e à profunda aspiração de quem é conforme à imagem divina.
Liberdade. Por sua vez, a liberdade é-nos apresentada como aquela
perfeição da pessoa que a capacita para dirigir-se por si mesma à busca do
próprio bem, e encontra-lo é sua própria perfeição e, assim, adquire a felicidade
à qual tende por exigência de sua própria natureza. Graças a sua liberdade, o
homem pode buscar livremente a Deus, aderir livremente a Ele e alcançar
livremente sua perfeição plena.
Lei moral. Em consequência, a lei natural não aparece como um limite para
a liberdade, mas como uma participação mais alta nos planos da Providência,
que só ao homem é dado conhecer e cumprir ativamente. A lei não se opõe à
liberdade, mas é a guia, possuída pelo homem, que o conduz a amar a Deus e aos
demais, e que é revelada na Escritura externamente.
A consciência, consequentemente, não se vê como uma faculdade criadora
de normas, mas como a capacidade que o Criador concedeu ao homem, ao lhe dar
a inteligência, para descobrir o plano de Deus inscrito em seu ser e discernir o
que é bom do que é mau para o homem.
As virtudes. Neste quadro, as virtudes não se apresentam como um conjunto
de atitudes que devem cultivar-se para melhor cumprir um conjunto de
mandamentos extrínsecos – que constituem o limite de nossa liberdade –, mas
como o aperfeiçoamento progressivo e interior do homem – em particular de
sua inteligência e sua vontade – enquanto permanece no tempo, como fruto de sua
boa conduta.
O pecado. Por último, a perfeição com a qual fomos criados e pela qual Deus
governa o homem e os destinos da humanidade, leva a entender a gravidade do
pecado, como tentativa – que apenas pode dar-se numa vontade livre – de
introduzir a desordem na ordem divina, com dano e destruição de si mesmo e
dificultando aos demais conseguir seu próprio bem; o modo desordenado de agir
nos mergulharia no desespero, se não fosse precedido pela misericórdia de Deus,
que nos abre à conversão.
41
Parte III: Elevação à ordem sobrenatural e moralidade
Deus elevou o homem a uma ordem sobrenatural – constituiu-o como filho,
divinizou-o –, tornando-o capaz de uma bondade que excede por completo às forças e
aspirações da natureza criada: a bondade sobrenatural.
O homem foi criado na graça e há uma continuidade entre natureza e graça, ainda
que não pertençam ao mesmo nível metafísico: seria um contrassenso.
Criação. Criar é dar o ser a partir do nada: criando, Deus comunica sua
bondade a outros, pondo de certo modo as criaturas fora de si ao dar-lhes sua
consistência própria, que não impede que continuem em permanente relação de
dependência com o Criador, de quem participam com todo o ser e a bondade que
possuem.
Elevação. Deus fez a criatura espiritual participante de sua vida íntima, de
sua vida divina, sem destruir sua natureza, mas elevando-a acima de suas
possibilidades e introduzindo-as em sua intimidade.
2. A bondade sobrenatural
Mediante a graça, o homem, que por sua natureza já é imagem de Deus, adquire
uma ulterior bondade primeira ou entitativa; já não é apenas uma criatura à imagem do
Criador, mas verdadeiro filho de Deus e possuidor de um título para gozar da visão
beatífica.
42
de Deus segundo sua Trindade: somos filhos de Deus em Cristo, o Verbo encarnado, por
obra do Espírito Santo.
A pessoa é regenerada e feita partícipe de uma vida nova, que não anula sua vida
humana nem se justapõe a ela, mas que a transforma intimamente, de modo não
observável diretamente – como também não se pode observar a alma – mas,
reconhecível pela novidade que opera na sua conduta, ou seja, pelas obras de fé,
esperança e caridade.
As ações boas, realizadas pelo homem na graça, possuem uma nova bondade moral:
Inicia-se nesta terra uma união com Deus muito mais perfeita e plena do
que a que corresponde ao mero agir natural, e nos faz credores da bem-
aventurança eterna.
Essa união se realiza através de todos os atos moralmente bons do homem
na graça e se manifesta na esfera temporal: a graça implica uma divinização de
toda a conduta terrena.
A vida da graça é muito mais perfeita que a vida natural, mas a possuímos mais
imperfeitamente. Ela não é parte de nossa natureza, mas é um dom gratuito que
transforma nossa natureza partindo do mais íntimo e onde só Deus pode agir. Daí as
peculiares características da dimensão sobrenatural da bondade de nossos atos.
Concretamente:
a) O início e o crescimento da bondade sobrenatural é sempre dom gratuito,
ou seja, não se obtém apenas com as próprias forças humanas, ainda que estas estejam
em jogo.
Não possuímos a vida da graça de um modo inato, por natureza;
Nem a adquirimos por nossa atividade,
Mas correspondendo à ação sobrenatural divina em nós.
Não se incrementa nem se aperfeiçoa diretamente através do bom
comportamento moral,
Mas – quando com livre cooperação correspondemos a ela – merecemos que
Deus nos conceda maior graça.
43
Na ordem sobrenatural, a perfeição é aumento da participação na vida da
graça.
As virtudes naturais ou adquiridas são atualização progressiva das
capacidades da natureza.
As sobrenaturais são incremento da capacidade de agir bem por obra de
Deus mesmo.
Isto explica o motivo pelo qual a moral cristã não teme pedir a santidade a
todos os homens; nem se assusta em anunciar exigências de conduta heroica a pessoas
ainda medíocres, pois se o homem se abre à graça, ela o transforma: a sublimidade moral
das bem-aventuranças ou do mandamento da caridade é proclamada por Cristo não para
um grupo reduzido e seleto, mas para todos os homens dispostos a empenhar-se em tais
horizontes com humildade e abandono filial em Deus.
Desde o pecado original, o homem nasce privado da graça e ferido também nas
forças de sua natureza, de modo que lhe é muito difícil viver conforme sua mera
dignidade natural.
Depois da queda e da Redenção, há dois novos aspectos no agir moral do
homem, que serão o objeto deste parágrafo:
Primeiro, o homem age com uma natureza ferida, que apenas a graça pode
sanar;
Segundo, que, em virtude da Revelação, toda a graça nos vem através da
Humanidade de Cristo, o que implica a missão da Igreja – continuadora da
presença visível do Verbo encarnado – na salvação dos homens.
Quando nossos primeiros país usaram mal de sua liberdade, o pecado original
produziu a perda imediata da graça – do bem sobrenatural – além de uma ferida na
natureza humana.
44
A origem desta situação de nossa natureza conhecemos apenas pela fé; mas o
que nos ensina «a Revelação divina coincide com a experiência. O homem, de fato,
quando examina seu coração, comprova sua inclinação ao mal e se sente circundado por
muitos males, que não podem ter origem em seu santo Criador»35.
O homem caído é incapaz, com suas forças apenas, de viver como filho de Deus
e também de cumprir integralmente a ordem natural.
A graça cura nossa natureza, ainda que sem apagar totalmente suas feridas.
Depois da queda e da redenção, toda a graça que chega aos homens provém de
Cristo (cf. Jo. 1,16). Isto significa que a divinização, que é união pela graça com Deus
Uno e Trino, seja através de Cristo, e pela progressiva identificação com Ele, que nos une
ao Pai e é obra do Espírito Santo. É a Trindade quem nos faz filhos de Deus.
A teologia explica tal afirmação com uma comparação que tem um claro
fundamento bíblico: assim como pela geração carnal participamos da natureza de Adão,
pela regeneração espiritual participamos – de um modo mais pleno ainda – da vida mesma
de Cristo que nos faz filhos de Deus.
Crescer na graça e santidade é, por conseguinte, identificar-se
progressivamente com Cristo, até ter seus próprios e mesmos sentimentos.
Cristo é o princípio e modelo da atividade moral do cristão, tanto na ordem
sobrenatural como na natural.
É o princípio, pois sua graça nos dá a vida sobrenatural e cura as vulnera
naturae.
É, também, nosso modelo. N’Ele a natureza humana foi assumida, não
absorvida, e mantém em inigualável plenitude todas suas perfeições.
46
Daí que o seguimento e imitação de Cristo não se pode reduzir a uma cópia
externa de seus gestos, mas há de ser o resultado de uma transformação íntima,
de um abrir-se à comunicação e infusão de sua vida, que deve refletir em toda
nossa conduta.
Para fazer referência às regras morais que o homem deve observar, é necessário
saber qual é o seu destino, o sentido de sua vida e o fim supremo ao qual deve aspirar. A
moral não se limita ao problema do permitido e do proibido. E não se pode responder a
esse problema se antes não conhecermos a meta a qual nos dirigimos. Deus nos revelou
que essa meta ou fim sobrenatural consiste no conhecimento e no amor da Trindade, um
fim que não podemos alcançar com nossas próprias forças, mas sim com a graça. Nessa
união eterna com Deus realizamos nossa aspiração à felicidade.
Introdução
Todo homem aspira à felicidade, entendida não como prazer ou bem-estar material,
mas como plenitude e perfeição da pessoa.
É um desejo natural que Deus colocou no coração de todo homem para atraí-lo
até Ele, o único que pode satisfazer esse desejo (cfr. CEC, n. 1716ss.).
Não há oposição entre bem e felicidade, entre dever moral e desejo de felicidade.
1. Deus, fim último do homem e de toda a criação
O último fim, com efeito, não é somente algo a se conseguir no futuro, mas a raíz
de todo dinamismo existente nas criaturas: sua inclinação radical e em sentido de sua
perfeição.
A fé católica ensina que «Deus criou o mundo por sua bondade e virtude
onipotente, não para aumentar sua bem-aventurança nem para adquiri-la, mas para
manifestar sua perfeição pelos bens que reparte às criaturas»43. Deus, ao criar não pode
ter outra finalidade que fazer a outros participantes de sua bondade e neste sentido fez
todas as coisas para sua glória.
Para melhor ilustrar o sentido do ensinamento bíblico sobre a glória de Deus
como fim último da criação, convém analisar as noções de fim, bem e último fim, e a
relação que existe entre a glória de Deus e o bem da criatura.
a) Em geral, fim é aquele bem pelo qual se faz algo, como por exemplo o fim
do médico é recuperar a saúde do paciente.
Qualquer bem criado deve querer-se sempre dentro da ordena da criação: alguns
por si mesmos – por exemplo, a pessoa e seus bens fundamentais – outros como meios
para um fim posterior; e todos em sua ordem ao último fim.
c) Fim último é aquele bem que se busca de tal maneira que não se refere a
nenhum outro bem, e todos os demais bens se referem a ele.
O único fim verdadeiro só pode ser o bem que é fundamento de todos os demais
bens, ou seja, Deus. Somente Ele é digno de ser amado com todo coração, com toda a
alma e com toda a mente (cf. Mt. 22, 37)
Os diversos bens criados: a ciência, a riqueza, etc., aperfeiçoam o homem se são
buscados ordenadamente segundo seu próprio valor, mas não quando se buscam como
meta que satisfaz todas as aspirações da vida.
51
2.1. Algumas consequências do modo de glorificar a Deus, próprio da pessoa humana
Quanto o homem mais conhece e ama a Deus, mais brilha nele a imagem de seu
Criador. Daí que quanto mais resplandece Deus, tanto mais reverbera a luz do homem;
quanto mais se exalta a Deus, tanto mais se exalta a dignidade humana.
«A glória do homem está radicalmente condicionada por sua relação com Deus:
somente consegue plenamente sua dignidade real realizando-se como imagem, e
unicamente é na verdade ele mesmo quando conhece a ama Àquele por quem
recebeu a inteligência e a liberdade»44.
O último fim do homem é o amor de amizade com Deus, que por sua vez é o
término a que aspira e o princípio de todo seu dinamismo.
É tarefa fundamental do apostolado cristão recordar que o homem foi criado por
Deus e para Deus. «A razão mais alta da dignidade humana consiste na vocação do
homem à união com Deus»47. Disso derivam consequências de suma importância para o
comportamento moral:
2. O amor de Deus comporta ao máximo empenho por amar e respeitar a sua obra:
e, portanto, leva a apreciar e praticar todos os valores criados.
Deus criou o homem para fazê-lo participante da sua vida íntima. «Desde a sua
concepção o homem está destinado à bem-aventurança eterna» (CEC, n. 1703).
47 Ibid., n. 19.
48 CONCILIO VATICANO I, Const. dogm. Dei Filius, cap. 2, DS 1786/3005.
49 Bula Laetentur caeli, DS 693/1305.
50 SAN AGUSTIN, De Trinitate, VIII, 17-18.
54
Por virtude da graça, o homem inicia nesta vida sua união sobrenatural com
Deus, mas a alcança plenamente só na Bem-Aventurança. O fim último
sobrenatural só é obtido como tal em sua vida perdurável para a visão beatífica (1
Jo. 3,2).
A bem-aventurança consistirá no conhecimento e amor à Divindade por si
mesma51, que nos outorgará uma perfeita felicidade; por isso, pode-se definir
como «a estável e interminável posse do bom perfeito, que satisfaz
completamente nossos desejos»52. Mas, teremos todos os outros bens humanos,
de modo conveniente.
O homem alcança seu fim sobrenatural por obra da graça. Conhecer e amar a
Trindade Beatíssima excede às forças de toda natureza criada ou criável55.
A beleza e a grandeza da doutrina moral cristã dão lugar a essa pregunta crucial:
É possível praticar uma exigência moral tão elevada? Não nos coloca ante o impossível,
ante um ideal, que excede ao comum dos mortais?
A dificuldade se torna insuperável quando se compreende a moral unicamente
como um conjunto de obrigações impostas.
O homem não pode imitar o amor de Cristo somente com suas forças; só
poderá chegar a uma plena imitação de Cristo em virtude de um dom de Deus.
Esse dom será precisamente a graça do Espírito de amor. Deus sempre dá,
qualquer que sejam as dificuldades e tentações, a possibilidade de observar
gozosamente seus mandamentos através do dom da graça, com a qual o homem
coopera mediante o exercício livre de sua resposta.
Portanto, não se podem apresentar as exigências da doutrina moral cristã sem
ter em conta a graça, reservando-lhe o papel principal que lhe corresponde no agir
moral da pessoa humana.
Além disso, a mesma experiência de nossa própria debilidade faz perceber a
necessidade da graça para responder convenientemente às exigências da condição
de cristão, e às próprias da vocação específica de cada um.
Isso implica, como recorda o Concílio Vaticano II, que o Espírito Santo oferece
«não só aos cristãos, mas a todos os homens de boa vontade», a possibilidade de que «de
uma forma só por Deus conhecida», recebam a graça e alcançarem a bem-aventurança
eterna57.
«Quem ignorar sem culpa o Evangelho de Cristo e sua Igreja, não obstante busque
a Deus com coração sincero e se esforça, sob a influência da graça, em cumprir com
obras de sua Vontade, conhecida mediante o juízo da consciência, pode conseguir a
salvação eterna»58.
Santo Tomás explica que «todo homem com uso de liberdade pode conseguir a
vida eterna, já que faz o que está de sua parte, Deus não lhe nega a graça, pela qual
merecerá a bem-aventurança»62. Por isso, ou se dirige ao fim sobrenatural, ou se afasta
de Deus, e se não se enraíza a graça nele, será porque não fez o que lhe correspondia63.
57
A Humanidade Santíssima de Cristo, é, em virtude da obra da redenção, o
instrumento da Divindade para outorgar toda graça (cfr. Jo 1, 16): somente «per Ipsum,
cum Ipso et in Ipso» entraremos na vida sobrenatural64.
A graça com que alcançamos o fim sobrenatural vem sempre através de Cristo:
«a graça e a verdade procedem de Jesus Cristo» (Jo 1, 17). Nele temos sempre a fonte de
vida (cfr. Jo 7, 37). Em Cristo, e somente nele, os homens recuperam a filiação divina,
porque Ele nos revela e encerra a misericórdia do Pai.
Aos cristãos a graça lhes chega em sua vida na Igreja e particularmente
através dos sacramentos. Os demais homens recebem a graça também do Senhor, mas
por canais que não nos foram revelados. Cristo é para todos o Sacramento Universal de
Salvação, dele que permanentemente manam os sete sacramentos de sua Igreja.
Por isso, a moral cristã é uma moral sacramental, e tem como seu centro e raiz o
Sacrifício da Missa.
64 O fato de que Cristo seja o único mediador, não impede que os que já gozam da bem-aventurança
possam ser mediadores precisamente em virtude da sua união com Cristo; e em modo particular isto ocorre
com a Santíssima Virgem.
65 Cf. C. CAFFARRA, Vida en Cristo, cit. p. 46; cf. Jn 1, 4 14, 11; 17, 1-5.
66 S.Th., I-II, q. 113 a. 9.
58
5. Glória de Deus e felicidade do homem
59
Mas este pode resistir a reconhecer que Deus é seu fim, e então, inevitavelmente
tende a deformar a inteira perspectiva da vida, produzindo um desajuste em seus ideais e
na sua conduta. Como disse Santo Tomás, a intenção é o que move todo o querer, e o
princípio de toda intenção é o fim último, seja o verdadeiro último fim, ou aquele que -
ao rejeitá-lo – o homem coloca em seu lugar67.
Ainda que nossa atividade moral em cada momento se dirija a objetos concretos
e variados, o fim último, verdadeiro ou falso, influi sempre no agir. Por isso, o que
casa um se propõe como fim supremo da vida configura a sua personalidade, seu
pensamento e sua atuação moral.
A liberdade comporta o poder de dirigir-se por si mesmo ao fim último. Por isso,
todos os atos livres estão relacionados explícita ou implicitamente com o fim último.
Aquela meta em que se põe o último fim determina toda nossa escala de valores.
6.2. Os dois fins últimos possíveis para o homem: o amor de Deus e o amor desordenado
pela própria excelência
62
Exercícios de auto comprovação
3. Por que é necessária a graça para que o homem alcance o seu fim último?
63
Tema 5: Liberdade, graça e agir humano
Parte I: Natureza e divisão dos atos humanos Noção do ato humano Natureza e defectibilidade da
liberdade criada Liberdade e responsabilidade pessoal Divisões do ato humano Parte II: Os princípios
intrínsecos do ato humano O conhecimento do ato humano O consentimento da vontade A unidade do ato
humano O papel da afetividade sensível As paixões em particular A intervenção da graça no agir livre Parte
III: Impedimentos da voluntariedade A violência A ignorância As paixões desordenadas O medo
As enfermidades mentais Parte IV: Elementos que determinam a moralidade dos atos humanos O objeto
moral ou “finis operis” O fim do ato moral ou “finis operantis” Regras morais sobre o objeto e o fim As
circunstâncias Alcance ou extensão da moralidade Parte V: O mérito sobrenatural dos atos humanos
Noção e classes de mérito.
Introdução
Uma vez estudado o fim último do homem, dedica-se este capítulo ao estudo dos
atos humanos, com os quais o homem se dirige ou separa-se do seu próprio fim.
Começaremos por analisar o ato livre e a liberdade, que a Revelação nos mostra
como capacidade de alcançar a própria perfeição segundo o plano de Deus; seguidamente,
os princípios intrínsecos do ato humano (ou seja, como intervém em nosso agir livre a
inteligência e a vontade, as paixões e a graça), e os impedimentos à liberdade da ação
(violência, ignorância, paixões desordenadas, medo, enfermidades mentais, ambiente
cultura e social etc.). Finalmente, veremos os elementos que determinam a bondade ou
maldade de nossas ações para encerrar com a análise do mérito ou relação de nossa
conduta com a vida eterna.
Parte I: Natureza e divisão dos atos humanos
Entende-se por ato humano ou livre aquele que surge da vontade ilustrada pela inteligência.
Somente dele se predicam o bem ou o mal moral.
64
Sempre que houver liberdade, o ato é moral.
Existe uma estreita correlação entre liberdade e moralidade:
a) A liberdade é o poder de dirigir os próprios atos ao bem próprio do homem, radicado no
amor de Deus e do próximo;
b) A moralidade é a proporção que esses atos guardam com esse bem. Portanto, qualquer
ato livre será necessariamente bom ou mal. O que se faz querendo, ainda que se trate de uma coisa
insignificante, é bom se está ordenado ao amor de Deus e do próximo, e mal em caso contrário.
Junto aos seus resultados ou consequências externas, todo ato livre imprime una marca no
sujeito, segundo sua bondade ou maldade moral (ou seja, pelo conteúdo objetivo de nossas obras e a
intenção que as valora).
O homem não só realiza ações boas ou más, como também, ao levá-las a cabo, torna-se bom
ou mau; em outras palavras, a pessoa, mentindo, torna-se mentirosa e, ao sacrificar-se pelos
outros, faz-se amiga sincera.
A moral ocupa-se deste aspecto imanente de nosso agir, em sua íntima relação com nossas ações
externas.
O ato livre, que procede da vontade deliberada, é na realidade o ato da pessoa enquanto tal. Toda
a pessoa está implicada nele, o que permite esclarecer sua estrutura essencial, assim como entender a
variedade de formas que pode revesti-lo e a complexidade que, às vezes, tende a apresentar-se.
65
A intervenção da inteligência e da vontade, com seu domínio sobre as tendências, deve-
se ao fato que – por sua espiritualidade – a alma humana está aberta à totalidade do ser e
do bem, de modo que o homem pode conhecer seu fim ou perfeição, e ordenar a ele todos
os seus atos.
Esta estrutura essencial – própria de toda ação voluntária – torna-se mais complexa nas
chamadas ações eletivas, nas quais a meta tendencial aparece em competência com
outras. O ato interior da vontade requer, então, todo um processo de ordem intelectual
(deliberação, consentimento) para determinar a meta que deve prevalecer, que termina
na eleição ou decisão voluntária da pessoa.
Interessa sublinhar que é livre não só aquele ato humano no qual se dá uma eleição entre várias
metas possíveis, senão também aquele pelo qual se aceita ou se rejeita a única possibilidade que se
apresenta como boa para ser elegida.
O próprio do ato livre é o autodomínio, com a qual o homem se realiza. Em contrário, não
é essencial à liberdade a indiferença da vontade ante o bem ou o mal, e muito menos a
possibilidade de tomar partido pelo mal. Isso somente é uma manifestação de que a liberdade que
possuímos é imperfeita70.
O que define a liberdade é o poder de dirigir os próprios atos: é a capacidade da
criatura espiritual de mover-se por si mesma ao fim, de buscar e construir o bem que
convém a sua natureza, crescendo assim em perfeição; reside no domínio com que o
homem, graças a suas potências espirituais, ordena suas ações.
O fato de que o homem seja livre, não exclui que o mesmo tenha necessidade moral de
fazer o bem em que reside sua perfeição. Pelo contrário, a liberdade lhe confere a
capacidade de encaminhar-se por si mesmo para o bem.
O livre e o necessário não são realidades contraditórias nem mesmo se excluem: o único
que se opõe à liberdade é a necessidade de coação. Um ato é fruto da coação quando se realiza
em virtude de uma força exterior, que violenta as obras da pessoa. Então esse ato não é seu, não
pertence ao sujeito, posto que não o tenha realizado com domínio, mas sim forçado. Porém, isso
é muito distinto à necessidade moral – intrínseca à liberdade – de tender ao bem em que consiste
a sua perfeição, sem a qual o homem não possuiria um dinamismo livre, mas sim uma autonomia
sem sentido, absurda.
A liberdade tem como fim que o homem possa amar ou, em outras palavras, que ele possa fazer a
vontade de Deus.
A liberdade é capacidade de dar-se, como se deu Cristo, ao amor do Pai e dos homens.
A liberdade não é indiferença da vontade, mas sim autodomínio do homem, com o qual
cultiva sua própria perfeição temporal e eterna. É um erro bastante difundido conceber a liberdade
como uma espécie de neutralismo da vontade entre quaisquer possibilidades.
Não há oposição entre a liberdade e o dever de realizar o bem; nem entre a liberdade e a presença
de inclinações para o bem.
Seria pouco humano pensar que onde há amor ou atração, não existe a liberdade, e que esta
somente é compatível com a insensibilidade ou a indiferença. A liberdade é o poder de fazer as
coisas porque se quer, e, portanto, por amor do bem. Esse amor voluntário está favorecido no
homem por suas inclinações naturais – espirituais, psíquicas e sensíveis – que fazem com que se
sinta atraído pelos bens concretos que se apresentam a ele.
Precisamente porque o autodomínio não exclui, senão que se baseia nas inclinações
naturais, as verdadeiras relações entre lei moral e liberdade não são de contraposição, mas de
mútua complementariedade: «A liberdade do homem e a lei de Deus não se opõem, pelo contrário,
complementam-se», porque «Deus conhece perfeitamente o que é bom para o homem e, em
virtude de seu mesmo amor, lhe propõe seus mandamentos. A lei de Deus, pois, não atenua nem
elimina a liberdade humana, ao contrário, garante e promove-a.» (VS, nn. 17 e 35).
2.3. A possibilidade de realizar o mal, sinal, mas não essência da liberdade humana
A liberdade do homem, enquanto está nesta vida, comporta o risco de eleger o bem aparente.
Somente nas ações retas a pessoa realiza a verdade do seu ser; em contraste, quando não age
retamente, atua seu próprio mal, destrói a ordem do próprio ser.
A verdadeira e mais profunda alienação do homem é a ação moralmente má: por ela, a
pessoa não perde aquilo que tem, mas perde aquilo que é, ou seja, perde-se a si mesma73.
Uma parte dessa autodestruição é o escravizar-se ao pecado: «Todo aquele que comete
pecado, é escravo do pecado». (Jo. 8,34).
Vejamos como se produz tal escravidão:
a) O essencial da liberdade, como vimos, é o domínio e não a ausência de inclinação ao
bem;
b) Pois bem, tanto o conhecimento da bondade que há nas coisas, como a atração que
exercem sobre a vontade, são aperfeiçoáveis, suscetíveis de incremento ou diminuição. Neste
sentido, a liberdade pode aumentar ou diminuir;
c) Ao comportar-se retamente, o homem cresce no conhecimento – ao menos
experimental – do bem, e reforça a tendência da sua vontade para ele. São fortalecidas as
disposições para agir com retidão; resulta mais fácil eleger esse bem, porque se vai tendo cada
vez mais clara a experiência do que nos aperfeiçoa. A liberdade, portanto, volta-se mais hábil;
d) Pelo contrário, a má eleição – o pecado – introduz um elemento de desorientação no
conhecimento e no querer. A inteligência fica confusa, debilitada a inclinação da vontade para o
bem, e o homem corre o risco de ver-se arrastado pelas paixões. Não perde certamente o domínio
sobre seus atos, porém é mais difícil que eleja aquilo que, verdadeiramente, conduz-lhe ao seu
fim e perfeição. A sua liberdade, a capacidade de decidir-se pelo Bem absoluto, fica constrangida
e dominada – escravizada – pelas tendências desordenadas a bens finitos, como o culto da própria
excelência, a ambição de possuir, a fuga do sacrifício, a ânsia de gozo sensível etc.
«A liberdade torna o homem responsável por seus atos, na medida em que estes são voluntários»
(CEC, 1734).
Todo ato livre é imputável ao sujeito que o realiza, que, portanto, responde a ele. Imputar
é atribuir algo a alguém, e, mais especificamente, consiste em reconhecer que tal fato foi causado
por essa determinada pessoa. Os atos livres são justamente imputados a seu agente: são seus,
pertencem-lhe, sem seu querer não se haveriam produzido. Daí que a cada um se reconheça o
mérito ou demérito que resulta do seu comportamento.
A imputabilidade, sem dúvida, é uma consideração mais jurídica do que moral: na moral,
antes da imputação, está a transformação mesma do sujeito pelos próprios atos. A
responsabilidade abarca antes de tudo a própria transformação, fruto do caráter imanente de
nossas ações e, em segundo lugar, os resultados externos de nossa conduta.
O agente livre é a causa da totalidade da sua conduta, quem determina o que faz e o fim
ao qual se ordena, e – com ele – em que tipo de pessoa ele mesmo se transforma
progressivamente. Por isso, deve não só dar razão de seus atos, senão reconhecer que é tal como
quis ser.
A liberdade segue a responsabilidade como assunção do próprio crescimento ou degradação
e como dever de dar conta de quanto resulta de nossas ações. Liberdade e responsabilidade são
conceitos correlativos e inseparáveis: tanto alcança a responsabilidade, quanto chega a liberdade;
e vice-versa.
Cada pessoa é responsável diante os demais e da sociedade, porém, em primeiro lugar, responde
perante Deus e a si mesmo.
Somos responsáveis diante dos demais na medida em que nossa conduta lhes afeta.
Porém, isso não deve obscurecer – porém, é o único modo de dar solidez às
responsabilidades humanas – nossa direta, total e primária responsabilidade perante Deus e
perante nós mesmos: a Escritura sublinha que o homem terá de prestar contas a Deus até da
palavra ociosa (cf. Mt. 12, 36).
Sem fundar, deste modo, a responsabilidade, é difícil entender a obrigatoriedade com que
se impõe o cumprimento de nossos deveres temporais, porque se não nos sentimos responsáveis
perante nós mesmos de quem somos, e a Deus se nega o direito a pedir-nos conta de nossa
conduta, quem poderá pretender uma autoridade semelhante? Evidentemente, ninguém.
À partir do ponto de vista de sua moralidade, o ato humano pode ser considerado sob
distintos aspectos. Os mais relevantes são os que examinamos a seguir:
69
a) Segundo se manifesta ou não ao exterior:
Os atos somente internos: são os que se desenvolvem somente no interior do sujeito,
como um pensamento, um desejo, um ato de fé etc.;
Os atos externos, que são levados a cabo com a intervenção – perceptível exteriormente
– dos órgãos externos; por exemplo, dar esmola, caminhar, roubar etc. Os atos externos
pressupõem sempre uma prévia decisão da vontade, ou seja, um ato interno; de outro
modo não seriam objeto da moral.
70
Não é possível querer senão o que previamente se conheceu, ainda que seja obscuramente,
por via intelectiva: «nihi volitum, nisi praecognitum», diziam os antigos; e ensina a Escritura: «o
princípio de toda obra é a razão, por isso antes de cada obra devemos refletir» (Eclo 37, 16).
O conhecimento ou advertência requeridos para o ato moral, não é mais que o juízo do
entendimento prático necessário para a ação livre.
a) Atual e virtual
Chama-se atual àquela advertência, sobre a ação e sua moralidade, presente no
momento em que se realiza.
Virtual é aquela que – sem que se torne explícita no momento de agir – influi no ato
em virtude de um juízo anterior da inteligência, cuja eficácia perdura no querer atual da
vontade.
Por exemplo, fixemo-nos em uma pessoa que escreve à máquina uma obra
caluniosa: realiza seu trabalho – que é uma ação imoral – sem necessidade de
considerar em cada página que está caluniando e infligindo as exigências da
veracidade. Se agora escreve é porque antes decidiu fazê-lo, e quando desejar
interromperá a sua atividade. Escreve com advertência virtual; não há dúvida de que
essa ação é livre e responsável. Provavelmente, quem digitaliza amiúde o faz sem
advertência atual da moralidade de sua ação; porém esta é boa ou má na função do
juízo anterior da inteligência, que advertiu se devia levá-la ou não a cabo, porque era
um meio lícito ou ilícito para conseguir um fim legítimo ou não etc.
b) Plena e semiplena
A advertência chama-se plena quando a pessoa conhece com substancial integridade o que
está fazendo e o seu valor moral;
Chama-se semiplena quando falta essa integridade substancial da mente no ato. Por
exemplo, esta última é a que tem uma pessoa sonolenta, ou sem uso completo da razão
etc.
71
c) Distinta e genérica (ou confusa)
Esta distinção não se funda na integridade, senão no detalhe com que se adverte o ato e a
sua moralidade.
Quando se percebe clara e detalhadamente, falamos de advertência distinta (ou
seja, que distingue). Por exemplo, quem satisfaz uma dúvida sabendo porquê e de que
modo lhe obriga a justiça e/ou a magnanimidade etc.
Na advertência genérica, o sujeito se dá conta de que tal ação é boa ou má, e
gravemente boa ou má, porém não distingue exatamente sua moralidade específica.
Por exemplo, quando alguém lê um livro de doutrina errônea e percebe que lhe traz danos;
adverte claramente que prosseguir a leitura não é bom, senão mal e, de algum modo,
grave, ainda que – pelo motivo que seja – não perceba como próprio dessa ação ser uma
ocasião próxima de pecar contra a fé.
A advertência genérica não deve se confundir com a consciência duvidosa: na primeira, a
pessoa não duvida sobre a maldade ou bondade da ação; simplesmente não concretiza com
precisão a espécie moral do ato.
1.2. Regras sobre a advertência
a) Para que um ato possa considerar-se humano e, portanto, moralmente responsável, é suficiente
a advertência virtual.
Outra coisa resultaria ilusória; assim, por exemplo, quem pensar que somente se reza uma
oração quando se tem advertência atual de todas as palavras se obrigaria a recomeçar
continuamente sua oração.
b) Para que um ato seja bom ou mal basta a advertência genérica de seu caráter moral.
Nossa inteligência nos dá a conhecê-las como são em si, e, portanto, em sua verdade e
bondade; conhecimento que se traduz na consciência daquilo que é bom ou mal.
A advertência genérica é suficiente para a imputabilidade moral de uma ação. Quem atua
nessas condições sabe se sua conduta está ordenada ou não, é boa ou má, grave ou leve. Se não
fosse assim, então teríamos que falar de inadvertência ou de advertência semiplena. Portanto, é
responsável da bondade ou malícia do que atua. Não saberá se aquilo cai no campo da caridade
ou da justiça, porém sim que atua reta ou distorcidamente, desde o ponto de vista moral.
c) Para o pecado mortal necessita-se sempre advertência plena, ainda que seja virtual e genérica.
O pecado mortal, ou conversão desordenada às criaturas que nos separa de Deus, requer o
uso substancialmente pleno da liberdade; e, portanto, da parte do conhecimento, uma advertência
plena74. Não é necessário, absolutamente, que a mente pense in actu no caráter gravemente
pecaminoso da ação (quer dizer, que tenha advertência atual), nem que distinga com precisão a
espécie moral do ato (ou seja, que a advertência seja distinta).
A advertência semiplena ainda que insuficiente para o pecado mortal, não suprime
totalmente a liberdade e a responsabilidade das próprias ações. Daí que uma ação que, em
condições de plena advertência, tivesse sido pecado grave, seja então culpa leve.
2. O consentimento da vontade
75 S.C.D.F. Decl. Persona humana, 29-XII-1975, n. 10. Doctrina reafirmada, frente a la reiteración
de errores al respecto, por el Santo Padre en la Exhort. apost. Reconciliatio et paenitentia, n. 17.
73
vontade mesma não acabou de querer plenamente o ato. Por exemplo: juízos temerários,
que não se combatem com fortaleza e tampouco se acabam de aceitar.
O ato que se realiza sem intervenção do conhecimento, ou por pura violência, é involuntário.
Portanto, se há alguma voluntariedade, há também moralidade e responsabilidade, mais ou menos
plena segundo o seja o consentimento.
Para o caráter moral de nossos atos basta o consentimento imperfeito, que segue
a advertência semiplena, ou a advertência plena com aquiescência incompleta da vontade.
Para o pecado mortal é preciso plenitude de consentimento, pois uma desordem
grave e com graves consequências somente pode considerar-se realmente querida por
quem goza do pleno uso de suas faculdades. Essa plenitude não significa uma especial
lucidez, uma advertência atual e detalhada; nem tampouco a malícia direta da vontade.
Basta que esta consinta sem mais, ou seja, que verdadeiramente queira o ato.
b) Se é responsável das próprias obras a menos que haja mediado um obstáculo à sua
voluntariedade.
Às vezes podem surgir dúvidas a respeito do consentimento. Nos atos externos, essa dúvida
costuma versar principalmente sobre a gravidade do obstáculo (medo, violência, ignorância),
porque uma vontade que chega ao ato externo é plena. Nos atos internos, a margem de dúvida é
maior porque não é tão fácil discernir até onde se chegou o império da vontade. Em qualquer
caso, haveremos de estudar os elementos de juízo disponíveis sobre a plenitude do conhecimento
e do assentimento da vontade.
Para ajudar a discerni-los, pode-se ter em conta as seguintes características:
Em pessoas de consciência delicada, ordinariamente, se há dúvida sobre a
plenitude do consentimento à ação gravemente desordenada, haverá pela presunção de
que não houve culpa mortal, ainda que não se exclua a culpa leve.
Em contrapartida, com as pessoas de consciência laxa ou endurecida, a presunção
é primeira. É a consequência de que o homem tende a advertir com clareza se consentiu
plenamente, quando se trata de uma mudança radical em suas disposições; porém, não o
adverte com igual facilidade quando se trata de algo que faz habitualmente, bem ou mal.
74
Além do mais, sempre que interfiram sinais de falta de plena advertência
(sonolência, embriaguez não culpável, perda parcial do uso da razão), há que presumir
que o consentimento foi imperfeito;
Se alguém se propõe realizar um ato que podia executar facilmente e não o faz,
se se trata de uma ação má, presume-se que não consentiu perfeitamente ao desejo, ainda
que possa haver consentimento imperfeito e, portanto, culpa venial; se se trata de um bem
proposital, mostra com isso que seu querer era imperfeito, porque o pleno – se não há
obstáculos – mostra-se em obras;
A respeito dos pecados de pensamento, é preciso compreender o modo com que
se lutou contra os mesmos: se não houve luta, haverá de presumir pleno consentimento,
como sucede quando alguém se abandona por completo a pensamentos ou imaginações
imorais, ainda que logo o lamente; se foram colocados meios para lutar, haverá de
presumir, ao contrário, que não houve consentimento pleno, ainda que fosse imperfeito.
Por último, e com caráter geral, quando não foram colocados meios facilmente
acessíveis se presume, ao menos, consentimento imperfeito.
O Magistério recordou sua perene doutrina: se um ato é grave pela matéria, ainda que se
tenha cometido sob influxo de um hábito ou por paixão, «não se pode presumir, como regra geral,
a ausência de uma responsabilidade grave. Seria desconhecer a capacidade moral das
pessoas»76.
O ato livre é propriamente ato de toda pessoa. Não somente intervém a inteligência e a vontade,
bem como todos os seus dinamismos somáticos e psíquicos.
76 S.C.D.F., Decl. Persona humana, n. 9; cf. también JUAN PABLO II, Exhort. apost.
Reconciliatio et paetitentia, nn. 17-18.
75
d) A partir do ponto de vista da moral, o que temos de sublinhar é que, no processo de
amadurecimento da pessoa e da sua liberdade, são decisivas a retidão de intenção, querer o fim
último verdadeiro, a humildade e a sinceridade na direção espiritual. Evita-se assim a
complexidade interior: o deixar-se levar por motivos menos conscientes ou pouco retos, que
entorpecem a alma.
O homem não atua somente com a inteligência e a vontade, mas também se move com o
concurso da sua afetividade sensível: desejos, reações emocionais...; entusiasmo, alegria,
tristeza. Daí a necessidade de dedicar-lhe um espaço no estudo da conduta moral e de não a ver
unicamente como possível obstáculo ao exercício da liberdade humana – isso ocorre somente
no caso da afetividade desordenada – pois em si mesma é uma ajuda que Deus concedeu ao
homem, para facilitar-lhe o bom exercício de sua liberdade, conforme a condição corpóreo-
espiritual que lhe é própria.
Tradicionalmente a ética e a moral ocuparam-se das comoções da afetividade sensível com o nome
de paixões, entendendo por tais qualquer movimento do apetite sensitivo para um bem conhecido
pelos sentidos e apreciado como conveniente ou inconveniente.
«As paixões não são, em si mesmas, boas nem más. Somente recebem qualificação
moral na medida em que dependem da razão e da vontade. As paixões são chamadas
voluntárias ou porque estão ordenadas pela vontade ou porque a vontade não se opõe a
76
elas. Pertence à perfeição do bem moral ou humano que as paixões estejam reguladas
pela razão» (CEC, n. 1767).
«Os sentimentos mais profundos não decidem nem a moralidade nem a santidade das
pessoas; são o depósito inesgotável das imagens e das afeições nas quais se expressa a
vida moral. As paixões são moralmente boas quando contribuem com uma ação boa, e
más no caso contrário. A vontade reta ordena ao bem e à bem-aventurança os movimentos
sensíveis que assume; a vontade má sucumbe às paixões desordenadas e as exacerba. As
emoções e os sentimentos podem ser assumidos nas virtudes, ou pervertidos nos vícios»
(CEC, n. 1768).
O homem há de ordenar, e inclusive dominar as paixões, ordená-las e fazer com que
sirvam para o bem total de cada pessoa; e com que lhe ajudem a lograr os fins que lhe são próprios,
sem permitir que as paixões tiranizem ao homem e lhe escravizem.
Em resumo, a moralidade das paixões será valorada em relação com o querer voluntário;
na medida em que a vontade as ordena ao bem moral do homem o permite que lhe apartem dele.
Ainda que na linguagem usual se costume dizer que deformam o juízo da inteligência, isto
é certo somente quando são descontroladas, ou seja, desordenadas. Ao contrário, as reações
afetivas ordenadas contribuem para a lucidez da mente e o bom comportamento moral.
Geralmente, pode se dizer que por si mesmas as paixões tendem a facilitar o ato voluntário,
e o reforçam e aperfeiçoam. A alegria, por exemplo, ajuda a trabalhar com mais intensidade e
cuidado. Se, às vezes, assim não ocorre, é devido à desarmonia introduzida pelo pecado original
e agravada pelos pecados pessoais. Somente as paixões desordenadas tendem a dificultar o
uso da razão e o exercício da liberdade; diminuindo, se não são culpáveis in causa, a
voluntariedade e a responsabilidade.
Definitivamente, o importante é procurar orienta-las ao serviço do bem integral da pessoa.
«A vontade reta ordenada ao bem e à bem-aventurança os momentos sensíveis que assume; a
vontade má sucumbe às paixões desordenadas e as exacerba. As emoções e os sentimentos podem
ser assumidos nas virtudes ou pervertidos nos vícios» (CEC, 1768).
5. As paixões
77
Uma tradição secular as agrupa segundo sua referência ao apetite concupiscível ou ao
apetite irascível. Com estes termos, indicam-se dois tipos de tendências do apetite sensitivo:
As que se referem ao gozo do bem: concupiscível;
E as que se referem à sua conquista, ou seja, à agressividade: irascível.
Consideraremos as paixões e estados de ânimo, em seu entrelaçamento com os afetos da
vontade. Frequentemente ambos levam idêntico nome e o mesmo ocorre com as virtudes que
lhes moderam.
Os movimentos passionais costumam seguir e, ainda, transformar-se em afetos voluntários.
As paixões estão submetidas à razão e à vontade, e ordinariamente não podem desenvolver-se
sem o seu consentimento.
Os afetos espirituais facilmente despertam uma reação no apetite sensível.
Daí que seja conveniente estudar simultaneamente a afetividade sensível e a espiritual,
porque no homem suas paixões estão penetradas pela espiritualidade da alma, e a maneira de
expô-las há de refletir a continuidade existente entre o somático, o psíquico e o espiritual.
a) Amor
Chama-se amor ao primeiro movimento de atração que o bem apreendido engendra no apetite:
é a inclinação atualizada do apetite ao bem e inclui em si os sentimentos de simpatia, estima, admiração.
Trata-se da primeira e mais radical das paixões. Todo movimento afetivo procede do amor
a algo ou a alguém. Quando se teme perder a vida, isso ocorre porque se ama; alguém se entristece
com a perda de um ente porque lhe ama; se alguém se alegra na companhia de um amigo, é porque
lhe quer bem.
Há um amor próprio do apetite sensitivo e outro próprio da vontade.
O primeiro, amor sensível, tem por objeto os bens que se conhecem através dos sentidos.
O segundo se refere especificamente aos bens espirituais (Deus, a verdade, a amizade, o
próximo etc.), e aos demais por referência a eles.
A causa do amor é o bem conhecido que atrai o apetite. Quando é conveniente ao homem
conforme o plano divino, dá lugar a um amor ordenador; se não, esse amor resulta desordenado.
Quanto mais perfeito é o bem e melhor o conhecemos, tanto maior tende a despertar.
O efeito do amor é a união com o amado. Por isso o amor dos bens verdadeiros aperfeiçoa
e o dos falsos bens avilta.
b) Ódio
É a reação de rejeição que o mal percebido, como tal, provoca no sujeito.
78
Há um ódio ordenado e outro desordenado. O amor dos bens verdadeiros gera o ódio ao
mal verdadeiro e, em primeiro lugar, o ódio ao pecado. Em contrapartida, o amor dos falsos bens
traz consigo a aversão ao autêntico bem.
c) Desejo e aversão
O amor facilita e produz o desejo, que leva à busca do bem. A moral atribui a esta paixão
um significado mais restrito e preciso que o da linguagem corrente.
Desejo não é simplesmente sentir atração ou aspirar alguma coisa, mas sim querer efetivamente
possuí-la e alcançá-la.
Por isso, o desejo costuma traduzir-se em ação. De outro modo, tratar-se-ia de desejos
ineficazes ou veleidades, que, na realidade, não são verdadeiros desejos.
O ódio leva por si a um desejo contrário, que denominamos aversão, posto que conduz à
fuga ou ao afastamento – e ainda à destruição – do objeto que provoca essa reação passional.
d) Gozo
É a complacência no bem amado e já possuído.
O gozo autêntico se dá nos verdadeiros bens, pois somente neles descansa o apetite: os
gozos nos bens desordenados – maus – são passageiros e enganosos, atrás de si deixam o vazio.
A função do gozo é facilitar a continuidade no bem. O homem tende com veemência e mais
diligentemente à ação quando é prazerosa.
O gozo sensível se chama prazer; o espiritual, alegria.
O prazer sensível origina-se no desfrutar dos bens materiais, porém pode acompanhar
também o desfrute dos bens espirituais. Se os bens sensíveis se amam ordenadamente, tal
prazer é bom. Pelo contrário, a busca desordenada do prazer é má e degrada o homem.
A alegria é o gozo que é gerado antes de tudo pelos bens espirituais, porém também
por bens materiais; neste último caso é um movimento do espírito que acompanha o gozo
sensível e nos move à gratidão. A verdadeira alegria segue à posse dos bens verdadeiros:
os aparentes, dão somente um gozo passageiro. A fonte de máxima alegria é Deus, que é
o Sumo Bem.
e) Tristeza e dor
A dor ou tristeza é a reação causada pela presença do mal ou privação do bem conveniente.
Para evitar mal-entendidos no estudo moral da dor e da tristeza, temos que distinguir a mera
sensação dolorosa – independente da vontade –, da reação ou “estado de ânimo” que pode lhe
seguir.
O juízo moral dessa paixão depende – como em toda paixão – do amor de que provém e do
modo com que reage à vontade. Há uma tristeza boa, que provém da aversão ao pecado como
mal absoluto e dos demais males dentro da ordem devida. E uma tristeza má que provém do
amor desordenado de si mesmo, que leva a julgar como mal tudo o que lhe contraria.
79
5.2. Paixões do irascível
a) Esperança e desespero
A esperança é o movimento que provoca no apetite o bem custoso, porém possível.
b) Temor
É a paixão que move a afastar um mal ameaçador que parece inevitável.
Como toda paixão, nasce do amor a algo: teme-se um perigo na medida em que ameaça um
bem amado. O temor modera a virtude da fortaleza e quando se apodera da alma, turba
especialmente a inteligência, dando lugar a um estado de ânimo, que se chama medo e influi
particularmente no uso da liberdade.
Com o temor se relaciona outro sentimento muito importante da pessoa: o pudor. É o
desassossego e certa repulsa que a pessoa sente por manifestar a própria intimidade e os próprios
valores, quando teme que não vão ser respeitados: um campo importante, embora não exclusivo,
refere-se à sexualidade.
O temor é ordenado ou desordenado segundo nasça do amor aos bens verdadeiros ou falsos.
O amor a Deus causa o temor de perdê-lo pelo pecado, e é uma grande ajuda para praticar o bem.
Por isso, é bom o temor ao pecado e também às penas eternas.
A causa do temor é a gravidade e iminência do perigo, e tudo o que diminui as forças para
rechaçá-lo. Por isso, a confiança exclusiva nas próprias forças – que sempre são limitadas –,
conduz, muitas vezes, a uma falsa esperança em triunfar contra o temor. O contrário ocorre com
quem confia em Deus e nos demais.
c) Audácia
É a paixão que leva a tentar superar os obstáculos que se opõem à execução do bem.
d) Ira
É o movimento de repulsa do apetite perante os obstáculos que impedem, aqui e agora, alcançar o
bem.
Quando o mal é causado voluntariamente por outro, a ira leva a responder procurando
corrigi-lo ou simplesmente tentando causar-lhe dano: se a ira é reta, move ao desejo de querer
retificar com fortaleza e, se for necessário, com sanções adequadas; quando não é reta, induz ao
afã imoderado de vingança.
A ira que nasce ordenadamente de um amor reto, é boa; é má a ira desordenada, que
nasce de um amor desordenado. A indignação diante do mal verdadeiro e, em especial, ante a
ofensa a Deus, é prova de selo e de amor a Ele. Em qualquer caso, a ira deve ser sempre moderada,
encaminhada somente à remediação do mal e guiada pela misericórdia.
Desde o princípio, vemos que sem a ajuda da graça, não é possível viver uma vida cristã, nem uma
vida digna do homem; é imprescindível para seguir a Cristo e cumprir seu mandamento novo: «Imitar e
reviver o amor de Cristo não é possível para o homem somente com suas forças. Torna-se capaz desse
amor somente graças a um dom recebido» (VS, 22).
81
6.1. A graça recria a pessoa e a sua liberdade
A graça é um novo princípio de vida que, se o homem consente com a sua ação, transforma
o dinamismo da liberdade.
No tratado da graça, analisa-se com detalhe o que o homem pode ou não fazer com suas
próprias forças.
O alcance das forças do homem caído, sem o auxílio da graça, pode resumir-se nos
seguintes pontos:
É capaz de conhecer a verdade inteligível que cabe alcançar a partir das coisas
percebidas pelos sentidos (inclusive a existência de Deus), mas não as verdades referentes
à vida íntima divina e a sua gratuita participação em nós.
Com respeito à mesma ordem da criação, encontra dificuldade para conhecê-lo na sua
integridade, sobretudo enquanto as verdades, cuja dimensão moral é mais direta
(imortalidade da alma, certas exigências de conduta, relação do homem com Deus etc.);
Quanto às obras, pode realizar o bem, porém não amar estavelmente a Deus sobre todas
as coisas, nem, certamente, com amor de caridade; não pode merecer a vida eterna;
Por outro lado, ainda que possa evitar cada pecado mortal, não é possível evitar todos.
82
Daí que, por uma parte, o homem possa resistir à graça já possuída e fazer o mal: «o
que recebe a graça, continua sendo homem, e como tal age, não por necessidade. Não
segue necessariamente o impulso da graça, como tampouco a reta ordem da natureza que
igualmente está ordenada ao bem -, mas age de acordo com a sua vontade livre»77.
Por isso, a transformação realizada pela graça na pessoa não é instantânea, mas conta
com o tempo; exige o abandono em Deus e o passar pela Cruz: esse morrer a si mesmo é
incompreensível para a carne, porém é a única raiz de segura fecundidade. Assim também
é compatível com o perdurar das debilidades, mas de modo que já não desanimam nem
se tenta dissimulá-las, e sim incitam a confiar mais e melhor, a lutar com maior amor.
Deste modo, pouco a pouco o coração do homem vai se alargando, crescem as ânsias de
amar a Deus e a todas as pessoas.
3) A caridade assume o papel do princípio motor da vida nova do homem. Por obra da
caridade, o conatural desejo de ser feliz se concretiza e transfigura no afã de unir-se a Cristo pelo
amor e de chegar, com Ele, por Ele e nele, ao trato íntimo com as três Pessoas divinas, guiados
pela fé e sustentados pela esperança.
4) Sob o império da caridade, toda a vida humana se diviniza: «As almas levadas pelo
Espírito Santo são iluminadas por Ele e se tornam também elas espirituais e enviam sua graça a
outras (...). Daí brota a alegria sem fim, a perseverança no Amor de Deus, a semelhança com Deus
e o mais sublime que se pode pedir: o endeusamento»78. É uma gozosa e total transformação da
pessoa.
1. A violência
1.1 Noção
Violência é a pressão externa que força a pessoa para que atue contra sua vontade.
b) Os atos exteriores podem ser impostos por violência física, dando lugar à ações total ou
parcialmente involuntárias.
Quando a resistência exterior e a interior, ou a rejeição íntima, são totais, trata-se de uma
ação completamente involuntária e não imputável, posto que a violência anula a liberdade.
Anula-se totalmente porque a vontade não coopera em absoluto; na medida que há cooperação.
Ainda que o ato seja induzido por outro, será parcialmente voluntário: terá algum efeito imanente
na pessoa e lhe fará responsável diante de Deus.
A violência, como a violência física imperfeita, gera uma mescla de voluntário e
involuntário semelhante ao que produz o medo: por isso, as regras sobre seu influxo na moralidade
podem ser tomadas da experiência moral cristã em relação ao que descreveu e individuou em
relação ao medo.
2. A ignorância
2.1 Noção
A ignorância é carência de ciência em quem deveria tê-la.
Difere da nesciência ou simples falta de um conhecimento, em quem não tem porque possuí-
lo; assim, para um médico é nesciência ignorar o cálculo integral, porém ignorância não saber
quanto requer o cuidado da saúde de seus enfermos.
Enquanto a seus efeitos sobre a liberdade do ato, à ignorância se equiparam o erro e a
inadvertência.
O erro acrescenta à ignorância a aprovação como verdadeiro de algo que é falso.
A inadvertência, em contrapartida, é a falta do conhecimento requerido para a
plenitude da liberdade, que se produz respeito de um ato concreto e determinado, devido
somente a uma falta de atenção da mente.
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O erro e a ignorância sobre as verdades éticas fundamentais procedem de culpa ou
negligência, não excluem de pecado, e são em si mesmos pecados.
Ante a verdade moral não cabe desentender-se, porque se trata de uma obrigação
que todos temos por natureza, estando ordenados ao conhecimento e ao amor de Deus
e do próximo. Ninguém pode legitimamente despreocupar-se de temas como o fim
último da vida, ou das exigências que dizem respeito ao amor de Deus e dos demais,
que dimanam da natureza humana. O homem pode sem culpa não chegar à verdade
moral em um ou mais aspectos, porém nunca se desentender de buscá-las sem incorrer
já – por isso mesmo – em uma desordem ética. Daí a gravidade do indiferentismo em
matéria moral e religiosa.
O pecado de ignorância tem graves repercussões morais, porque é causa de muitos outros
erros e culpas; e leva, além do mais, a não os valorar em sua real malícia. Daí que urja em
consciência a todo fiel cristão, o estudo das verdades principais da fé e da moral; e também o
difundi-las, de modo particular onde há confusão e, para muitos, resulta mais difícil sair de seus
erros.
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2.3 Regras sobre seu influxo
a) A ignorância, se é alheia à vontade do sujeito, pode diminuir ou anular sua responsabilidade moral,
porque priva o sujeito do conhecimento necessário para a plena liberdade e moralidade do ato.
Evidentemente o caráter inculpável cessa no momento em que a pessoa começa a descobrir que está
equivocada.
b) A ignorância culpável não anula a responsabilidade. Ainda que possa diminuí-la, exceto se está
sendo buscada de propósito. Podem-se distinguir três aspectos deste princípio:
3. As paixões desordenadas
Enquanto as paixões ordenadas, com suas emoções, sentimentos e estados de ânimo, facilitam a
atividade voluntária, as desordenadas constituem um obstáculo, enquanto diminuem a função reta da
razão.
Inclusive sob o ímpeto de uma paixão descontrolada, a pessoa pode chegar a perder o
domínio de seus atos: porém é raro que as paixões desordenadas cheguem a anular totalmente o
uso da razão, e por isso, os atos realizados sob esse impulso, são ordinariamente voluntários e, às
vezes, inclusive mais desejados.
Para entender melhor a influência das paixões desordenadas, convém recordar uma
distinção: as paixões que precedem o querer voluntário, chamam-se antecedentes; as que o
seguem, consequentes; as que o acompanham, concomitantes.
a) A paixão antecedente desordenada diminui a liberdade do ato e, portanto, sua
culpabilidade, enquanto obscurece a inteligência e diminui o conhecimento requerido
para o voluntário. Os pecados que se cometem sob seu influxo são menos graves,
comparados com os que se realizam friamente: costumam chamar-se pecados de
debilidade.
b) A paixão provocada voluntariamente aumenta a imputabilidade. A razão é óbvia: a
vontade que age sob uma paixão excitada propositadamente, não somente quer, mas quer
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de tal modo que move o apetite sensitivo para mais facilmente não reparar no mal que
comete.
c) A paixão que acompanha espontaneamente o ato voluntário não aumenta a
responsabilidade, senão que manifesta a intensidade do querer: torna patente que o
ato voluntário é veemente e redunda no apetite sensitivo.
Sabemos bem, em qualquer caso, que nem as ações humanas nem os ímpetos
passionais se dão isolados do conjunto da atitude e da conduta de cada homem, de
suas virtudes e de seus vícios, de suas eleições e disposições fundamentais. Daí que
as regras enunciadas se façam entender em uma perspectiva global e dinâmica do
comportamento: há paixões antecedentes a um ato que, atendida a história e
circunstâncias pessoais do sujeito, são na realidade consequentes ou voluntárias in
causa; por isso, nem sempre é fácil saber, nem se pode julgar rapidamente, se o
despertar descontrolado de uma paixão, que induz a pecar, era ou não culpável:
geralmente, não o são em quem vive na graça.
4. O medo
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A proporção em que o medo diminui a voluntariedade depende, em princípio da
gravidade – absoluta ou relativa – do dano que se teme, e a importância mesma bem que se lesiona
na ação má cometida por medo; e, em última instância, do grau de perturbação efetivamente
causado na pessoa:
Um medo leve somente alivia a responsabilidade;
Um medo grave pode diminui-la, fazer que um ato grave pela matéria seja culpa
subjetivamente leve, e inclusive suprimir a responsabilidade se priva do uso da razão.
No caso de ações intrínseca e gravemente ilícitas, nem sequer o medo grave – por si, e a
menos que chegue a privar do uso da razão – exclui de culpa inclusive mortal. Ainda que diminua
a gravidade do pecado.
O medo justamente inferido per se nunca induz ao mal, nem priva da liberdade, porque não
é mais que tornar patente o que nos exigirá a responsabilidade que nos compete por nossos atos.
b) As leis humanas não obrigam em caso de medo grave: mas, geralmente, não obrigam quando
há um motivo sério (grave incommodum).
Esse princípio se aplica a todas as leis positivas humanas, porque sua finalidade é o bem
comum na medida em que o discerne o legislador humano, que nunca pode conhecer todos os
particulares e entende que não quer – nem pode – obrigar em condições de dificuldade
desproporcionada.
5. As enfermidades mentais
5.1 Noção
A unidade substancial entre a alma e o corpo comporta que haja estreitas inter-relações entre
as potências espirituais da alma e dos dinamismos psíquico-somáticos, até o ponto de que
determinadas disfunções somáticas ou psíquicas impeçam total ou parcialmente o uso da razão
ou debilitam o autodomínio da vontade.
São as enfermidades da mente e da vontade, que diminuem a liberdade do ato, porque falta a
necessária luz da inteligência para que a pessoa possa tomar uma decisão responsável, ou se dá uma
situação de esgotamento psíquico que, ainda percebendo o que deveria fazer, falta energias para realizar
o correspondente.
88
haverá que ater-se às circunstâncias que concorram em cada caso para ver em que
medida esses distúrbios afetam sempre, ou em certos aspectos, a integridade do juízo
da pessoa aplicando por analogia as regras sobre a ignorância.
Mais delicado é o caso das enfermidades psíquicas que afetam à vontade: não
privam da possibilidade de resistir à tentações, ainda que a diminuam; porém, podem
produzir-se uma verdadeira incapacidade para cumprir positivamente certos deveres
ou fazer frente a algumas responsabilidades.
b) Pela inter-relação entre os aspectos médicos e espirituais, deve-se acudir nestes casos a um
médico de reto critério ético e, na medida do possível, com sólida formação cristã.
A moralidade dos atos humanos – quer dizer, sua ordenação a Deus - depende do que
fazemos e da intenção com que fazemos: dois elementos que vão sempre unidos: objeto moral
e fim ou intenção. A estes dois elementos deve-se acrescentar as circunstâncias. «O objeto, a
intenção e as circunstâncias formam as fontes ou elementos constitutivos da moralidade dos atos
humanos» (CEC, 1750).
É o fim próximo de uma eleição deliberada, que determina o ato de querer da pessoa que
age.
O objeto moral da ação não pode ser confundido com o objeto físico ou externo.
Não é a ação físicamente considerada.
Outorga ao ato a sua primeira e essencial moralidade. «A moralidade do ato
humano depende sobretudo e fundamentalmente do objeto escolhido racionalmente pela
vontade deliberada» (VS, 78).
Uma ação que é má por seu objeto moral, não se torna boa pela intenção. Dizer que uma
ação é má por seu objeto moral é dizer que o que quer a vontade é mal, ainda que com isso
busque um fim posterior bom.
a) Existem ações “intrinsecamente más” por seu objeto moral. Nelas, o que se
quer ou escolhe é mal e, portanto, estas ações nunca podem ser queridas ou
escolhidas, nem sequer como meios para conseguir algo bom: difamar,
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blasfemar, matar a um inocente, mentir etc. São obras que uma pessoa nunca
pode querer sem fazer o mal moral, sem pecar.
«As circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato
intrinsecamente desonesto por seu objeto em um ato “subjetivamente” honesto ou
justificável como eleição» (VS, 1).
Neste sentido diz o Catecismo: «O objeto da eleição pode por si só viciar o
conjunto de todo o ato. Há comportamentos concretos – como a fornicação – que
sempre é equivocado escolhe-los, porque a sua escolha comporta uma desordem
da vontade, ou seja, um mal moral» (CEC, 1755).
«Uma intenção boa (por exemplo: ajudar o próximo) não faz nem bom nem
justo um comportamento em si mesmo desordenado (como a mentira e a
maledicência). O fim não justifica os meios. Assim, não se pode justificar a
condena de um inocente como um meio legítimo para salvar ao povo» (CEC,
1753).
A Igreja sempre considerou como tais a morte direta do inocente, a mentira ou
engano, o adultério, o aborto, o roubo, a masturbação, a blasfêmia, a contracepção etc.
a) As normas que os proíbem são geralmente chamadas de normas absolutas ou
absolutos morais.
A postura do Magistério tanto em relação à existência de normas absolutas como
à possibilidade de ensina-las infalivelmente é e sempre foi inequívoca. O Papa João
Paulo II na Encíclica Veritatis Splendor, oferece, em síntese, estas afirmações: «A
razão testemunha que existem objetos do ato humano, que se configuram como não
ordenáveis a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, criada a sua
imagem. São os atos que na Tradição moral da Igreja foram denominados
“intrínsecamente maus”. E o são sempre e por si mesmos, por seu objeto
independentemente das ulteriores intenções de quem atua, e das circunstâncias (...). A
Igreja ao ensinar a existência de atos intrinsecamente maus, acolhe a doutrina da
agrada Escritura (...). As circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar
um ato intrinsecamente desonesto por seu objeto em um ato subjetivamente honesto,
ou justificável como eleição» (VS, nn. 79-82).
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«O elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objeto do ato
humano, o qual decide sobre seu “ordenamento” ao bem e ao fim último que é
Deus» (VS, 79);
«Existem objetos do ato humano que se configuram como “não-ordenáveis”
a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, criada a sua imagem.
São os atos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados “intrinsecamente
maus”» (VS, 80).
Quando dizemos que um ato é bom por seu objeto, assinalamos que se trata de uma
conduta ordenável a Deus como fim último.
É o objetivo ao qual o sujeito agente ordena seus atos, o que se propõe conseguir.
É a intenção principal do agente, sem a qual o ato não se realizaria. Não se pode
confundir, portanto, com os motivos ou intenções concomitantes, que são só
circunstâncias. As intenções concomitantes ou acidentais não levariam por si a realizar o
ato, nem a deixar de realiza-lo ante a impossibilidade de consegui-las.
«Diante do objeto, a intenção se situa do lado do sujeito que atua. A intenção, por
estar ligada à fonte voluntária da ação e por determina-la em razão do fim, é um elemento
essencial na qualificação moral da ação. O fim é o término primeiro da intenção e designa
o objetivo buscado na ação» (CEC, 1752).
O fim pode converter a ação boa por seu objeto em um ato moralmente mau.
«Uma intenção má acrescentada (como a vanglória) converte em mau um ato que, por si,
pode ser bom (como a esmola)» (CEC, 1753).
Quando dizemos que o fim de uma ação é bom, nos referimos a que a vontade do
sujeito está efetivamente ordenada segundo o querer de Deus, ou, em termos mais
especificamente cristãos, que surge da caridade.
O ato humano é bom segundo o seu objeto se é ordenável ao fim último, e alcança
sua perfeição última e decisiva quando a vontade o ordena efetivamente a Deus mediante
a caridade.
«Não basta realizar obras boas; mas é preciso faze-las bem. Para que nossas obras
sejam boas e perfeitas, é necessário faze-las com o fim puro de agradar a Deus» (VS, 78).
Não basta que alguém esteja convencido de ter boas intenções para que sua atuação
seja por isso mesmo moralmente boa: «É errôneo julgar a moralidade dos atos humanos
considerando somente a intenção que os inspira ou as circunstâncias que são o seu marco»
(CEC, 1756).
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3. Regras morais sobre o objeto e o fim
Para que um ato seja bom se requer que o sejam a intenção e o objeto; para que seja
mal, basta que sejam tais qualquer um dos dois. De aí se seguem os seguintes princípios:
As ações que por seu objeto são indiferentes, se tornam boas ou más pelo
fim;
Uma ação boa por seu objeto, se torna mais ou menos boa, ou também má,
pelo fim. Em primeiro lugar, um objeto bom, ao adequar-se a um fim bom,
segundo a qualidade do fim. Por sua vez, um objeto bom pode perseguir-se por
um fim mal, dando lugar a uma ação má;
Uma ação por seu objeto má, pode se tornar mais ou menos má pelo fim, mas
nunca boa. O objeto mal, paralelamente ao bom, pode ser querido por um fim
mais ou menos mal, e isto dá lugar a uma maior ou menor maldade da ação: assim,
comete maior pecado o que rouba para promover uma sociedade criminal, que o
que o faz por simples avareza.
c) O homem deve buscar em todas as suas ações um fim honesto que, pelo menos
implicitamente, se refira a Deus.
O conhecido princípio, segundo o qual não é lícito agir só por prazer deve ser
entendido corretamente. Não significa de forma alguma que o prazer seja em si
mesmo mal. É pecado buscar o prazer como finalidade última (como aconteceria
com a volição de qualquer outro bem criado, se é tomado como último fim), ou bem
busca-lo evitando positivamente a finalidade à que um determinado prazer está
naturalmente ordenado. Em definitiva, o prazer é um bem que, quando querido
ordenadamente, dá lugar a uma ação boa: por exemplo, o prazer de contemplar uma
obra de arte, uma bela paisagem; o que implica o uso do matrimônio, enquanto os
cônjuges não rompam – por própria iniciativa – a sua ordem à procriação etc.
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4. As circunstâncias
São aspectos acidentais do objeto ou da intenção do agente, que afetam de algum modo
à moralidade da ação, mas sem muda-la substancialmente. «Não podem fazer nem boa nem justa
uma ação que por si é má» (CEC, 1754).
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pecado ao do roubo: pecado contra a justiça e contra a religião. Ao roubo se acrescenta o
sacrilégio: em tal caso, são na verdade elementos do objeto moral ou do fim do
agente.
Certas circunstâncias mudam a espécie teológica (ou seja, o caráter grave ou leve
de um pecado da mesma espécie moral): por ex., a quantidade roubada faz que o roubo
seja pecado venial ou mortal; uma injúria, por suas circunstâncias, pode ser grave ou leve.
Todas as circunstâncias que mudam a espécie moral ou teológica do ato devem
declarar-se expressamente na confissão, porque podem afetar à gravidade moral do ato e
inclusive podem fazer que com um só ato se conectam vários pecados.
As ações humanas podem ser consideradas em uma destas duas direções: de uma
maneira específica, ou de um modo concreto e singular.
Segundo a sua espécie ou substância, existem atos humanos moralmente
indiferentes, posto que nem todo objeto primário de uma ação humana é, como
tal, conforme ou desconforme com a regra moral. Passear, sentar-se, estudar... não
são por si nem moralmente bons, nem moralmente maus.
Mas se são considerados os atos desde um ponto singular e concreto, deve-
se afirmar que não existem atos indiferentes. Toda ação realizada livremente por
uma pessoa necessariamente tende a um fim determinado, presente na pessoa que
o realiza, pelo que adquire uma relação à ordem moral, positiva ou negativa.
Nos atos moralmente indiferentes por seu objeto, a moralidade dependerá do fim ao
qual o agente ordena esses atos. Estas ações na verdade têm alguma qualificação moral
(se não fosse assim, seriam meros fatos físicos), ao menos remota. Trata-se de atos lícitos,
ordenáveis ao fim último. Para ser plenamente bons, o agente deve efetivamente ordená-
los.
Há outros atos, porém, que apenas por seu objeto, ou seja, ainda abstraídos da
intenção do agente, têm já uma positiva bondade ou maldade. São atos especificamente
bons, que produzem um efeito bom com independência da mais ou menos reta intenção
do agente. E há atos maus especificamente.
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Esta doutrina moral, ao afirmar que com todos nossos atos nos podemos unir a
Deus, é de grande estímulo para a boa conduta, e de uma grande transcendência no
comportamento moral. Quem procura fazer a vontade de Deus, se não segue seus
caprichos, ainda que nas mínimas ações faz o bem; mais ainda, pela caridade, até os
atos que parecem mais insignificantes são merecedores de graça nesta vida, e de glória
na outra.
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moral. Por exemplo, o que se embriaga, se sabe que normalmente esse estado
origina um mal comportamento é responsável in causa deles, e de suas
consequências.
Se os efeitos não previstos ocorrem só "per accidens" e excepcionalmente
("in paucioribus"), é fácil que não seriam previstos, e, por isso que não tenha culpa
em não tê-los previsto. Assim, o que conduz a velocidade normal e em um lugar
não dê passo alguém atravessa inesperadamente, de maneira que não consegue
frear a tempo e lhe produz lesões, não tem culpa moral.
Designa-se com estas duas expressões – e mais propriamente com a primeira – o caso de
uma ação que tem ao mesmo tempo efeitos bons e maus, e a possível licitude de realiza-la em
certas condições.
Portanto, quando há efeitos bons e maus, o primeiro que deve ser feito é analisar o
objeto moral da ação. Deve-se ter em conta que formam parte do objeto moral todos
os efeitos – previstos ou previsíveis – que lhe seguem necessariamente e tenham
relevância moral: ou seja, que suponham uma privação de bem contrária à razão. Por
isso, se um efeito imoral segue sempre à ação, esta nunca será lícita. Para que a ação
seja boa ou indiferente, o efeito mau não deve ser efeito per se da ação: só deve ser
um risco que se corre com justa causa e que não se está obrigado a evitar. A assegurar
isto, tende o segundo requisito do voluntário indireto.
Em uma palavra, o "segundo requisito" deve ser entendido como uma garantia de
que o efeito mau não entranha uma alteração do objeto moral do ato: não basta que o
efeito seja não desejado, se por si afeta ao objeto moral. Quando se interpreta de outra
maneira, pode dar origem ao proporcionalismo; quer dizer, à admissão de qualquer
mal com tal de que não seja desejado e se queira por uma causa proporcionada. A
moralidade da ação requer a bondade do objeto, e esta exige que o ato como tal seja
ordenável a Deus, ou seja não tenha em si mesma nem nos efeitos que lhe seguem
"per se", uma privação do bem contraria à razão. Em definitiva, trata-se de estudar o
caso concreto para ver se o efeito mal seja determinante ou não do objeto moral.
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3) O fim do agente deve ser honesto; quer dizer, deve querer unicamente o efeito
bom, e rejeitar de verdade o mal. Isto implica que deva por todos os meios devidos para
evitar que se produza o efeito mau.
Assim, por exemplo, o que examina publicações, espetáculos etc., para orientar
criticamente ao público, deve tomar as cautelas necessárias para que esse trabalho não
lhe faça dano; quer dizer, deve ter verdadeira vontade de evitar o efeito mau: só assim
se assegura que a intenção é reta.
Qualquer ato libre ou moral, por sê-lo, influí no bem ou mal de outras
pessoas: não só quando fazem referência a deveres com o próximo, mas todos
enquanto influem na própria abertura ou fechamento à comunhão com os demais,
ao dom sincero de si mediante o qual se edifica a comunidade humana.
Todos os atos livres que o homem realiza dizem necessariamente alguma relação com o
bem da sociedade.
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fraterno e a íntima efusão da graça que redunda de uns em outros, como
membros do Corpo místico de Cristo80.
O bem pessoal e o bem comum se requerem mutuamente: na base desta harmonia está
Deus, enquanto é o Criador e fim do universo e o fim pessoal de cada homem.
O influxo dos atos humanos na ordem social depende, por sua vez, da sua retidão objetiva
exterior e da retidão interior do sujeito que os causa.
Por outra parte, os atos humanos influenciam na ordem social não só por seu efeito imediato
mas sim pelas estruturas sociais que contribuem a criar.
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Há um primeiro aspecto, mais patente, constituído pelos deveres de justiça e
caridade para quem padece necessidades materiais83. É um tema sobre o que
sempre será necessário insistir: um mínimo de bem-estar material é muito
conveniente para o desenvolvimento da pessoa e o cultivo dos valores espirituais.
Portanto, deve fazer-se todo o possível para resolver essas situações, que afetam
– ainda nos países desenvolvidos– a inteiras faixas da sociedade e são a chaga dos
países do subdesenvolvimento sabendo que os obstáculos em ocasiões são sérios
e difíceis de superar, e precisam a contribuição de um esforço geral.
Entretanto, não cabe reduzir a isto só a exigente expressão do Senhor: «o que
não ama ao seu irmão, que vê, como poderá amar a Deus a quem não vê?» (Jo.
4,10). Quantos, por exemplo, se esquecem o dano grave que causam a outras
pessoas quando difundem doutrinas morais inseguras sobre a sexualidade, o
matrimônio, o aborto etc.; ou contribuem a que se aprovem leis contrárias à ordem
natural, como se isso não tivessem um influxo bem concreto na existência
dramática de muitas vidas, e na supressão de outras, em números comparáveis às
maiores chagas da humanidade.
Com o seu bem agir o homem se torna idôneo diante de Deus para receber outros dons e
favores. Esta expectativa de novos dons de Deus, como consequência dos atos bons, se conhece
com o termo mérito. É um dado muito importante no amplo campo da moral.
É verdade que Deus não se sente obrigado a dar ao homem seus dons e favores; ele
os dá gratuitamente. Mas na mesma medida em que reponde à graça, adquire agora um
aumento da graça, e da glória depois. Adquire uma espécie de direito diante de Deus;
torna-se merecedor de novas graças divinas.
1.1. Noção
Mérito é aquela propriedade dos nossos atos que os faz dignos de prêmio.
As ações, que não estão informadas pela caridade, nunca se ordenam ao fim
sobrenatural, mas podem manter a ordem da reta razão. O que carece da graça,
que é a raiz do mérito, pode ter outros dons de Deus – a fé ou a esperança
informes, e o que conserva de suas forças naturais –, e se age segundo eles, seus
atos são bons, ainda que não sejam meritórios. Esta bondade, sem ter razão de
mérito, possui uma certa semelhança com o ato meritório: não é um direito, mas
pode atrair a misericórdia de Deus.
Os atos desordenados relacionados ao amor de Deus e do próximo são maus, e são causa
de demérito.
Chama-se mérito "de condigno" a aquele que nasce da proporção de uma obra com sua
retribuição em justiça, ao menos em virtude de uma promessa feita.
O mérito "de congruo", por sua vez, não surge de uma restrita proporção do ato com o
prêmio, mas sim de uma certa conveniência, pela liberalidade do que premia.
Por exemplo, o trabalhador fiel cumpridor do seu dever merece de congruo que lhe
promovam ou lhe aumentem o salário, acima das previsões legais. Na ordem sobrenatural,
são objeto de mérito "de congruo" as graças que alguém pode merecer para outro. Ainda
que a perseverança final não seja objeto de mérito, nem de condigno nem de congruo –
posto que implica o bom exercício da nossa liberdade, e isso depende de nosso querer
100
(sabendo que Deus nunca nega a ninguém a graça necessária) –, costuma-se dizer que
cabe, em certo modo, o que se chama de mérito de congruo improprie dicto.
O sentido desta expressão é que a misericórdia de Deus não deixará – a aqueles
que lhe foram habitualmente fiéis – de agir com a sua Providência e com a influência
da sua graça para favorecer o arrependimento final, no caso de voltar a pecar
gravemente. Os atos bons, feitos por uma pessoa que não vive em graça, se diz – de
modo semelhante – que tem algo parecido, ainda que imperfeito, com o mérito de
congruo, em ordem a receber a graça que Deus concede por pura misericórdia ao
pecador que faz obras retas.
Os atos são meritórios na medida em que são bons e procedem da liberdade com a ajuda
da graça.
Em segundo lugar, o mérito exige que a vontade esteja informada pelo hábito
sobrenatural da caridade.
A liberdade é princípio do mérito só como condição, não como raiz da
eficácia meritória, porque nossas obras só têm mérito sobrenatural, quando
procedem da inabitação do Espírito Santo na alma pela caridade (cf. Rom. 8,17).
No homem em graça todas as obras retas são meritórias.
101
muitos casos vá unido ao aumento de mérito, porque implica intensidade da
vontade em seguir a moção da graça.
Como consequência os atos mais meritórios são os de caridade, e os demais,
na medida em que se reduzam mais ou menos imediatamente a ela. Isto não
significa que as outras virtudes sejam supérfluas para merecer: mas sim que são
úteis para aumentar o mérito, enquanto facilitam a intensidade do ato de caridade.
102
Tema 6: A lei moral
Parte I:Noção e divisão da lei Noção Divisão da lei Parte II: A Lei Eterna Noção
Propriedades da Lei Eterna A Lei Eterna, fundamento de toda lei Parte III: A Lei Natural
Noção Propriedades da Lei Natural O Conhecimento e o conteúdo da Lei Natural Parte IV: A
Nova Lei Natureza da Nova Lei Conteúdo da Nova Lei Propriedades da Nova Lei A
formulação do princípio personalista em termos especificamente cristãos Uma síntese da moral e o
ethos do cristianismo A antiga e a nova lei Parte V: As leis humanas Necessidade e noção da
lei humana Obrigatoriedade moral da lei humana A aplicação equitativa e a dispensa das leis
humanas Finalidade moral da lei civil
É necessário estudar agora o que seja a lei moral e os pontos essenciais do seu conteúdo. Os
atos que estão de acordo com a lei moral, são ordenados para alcançar o bem do homem e da sua
felicidade. Mas esta ordenação não é algo arbitrário ou extrínseco à pessoa, mas está inscrito na
mesma natureza humana, por ser feito à imagem de Deus. Essa lei moral foi confirmada,
completada e aperfeiçoada por Deus na Sagrada Escritura e na Tradição, guardadas pelo
Magistério da Igreja.
É especialmente importante compreender bem as relações entre lei e liberdade. As normas
justas não são obstáculos para viver a liberdade, mas uma ajuda para descobrir onde estão os
valores morais, para o qual temos de decidir e agir livremente.
Neste tema, é preciso que o aluno trate de assimilar os conceitos fundamentais: lei, lei
divina, lei natural, lei divino-positiva (veja lei e nova lei), lei humana etc.
Introdução
Há uma intima relação entre liberdade e lei moral, da mesma forma que entre liberdade e
verdade. A exigência da verdade no que se refere ao bem, longe de diminuir a liberdade, é
necessária para seu desenvolvimento. Do mesmo modo, a lei moral não é um obstáculo para a
liberdade, mas uma ajuda para descobrir onde estão os valores normais, pelos quais o homem
deve decidir e agir livremente.
Quando se contrapõe liberdade e lei, esta contradição se deve a um desenvolvimento da lei
em chave voluntarista.
Contudo, o homem é a imagem de Deus. Tudo o que vem de Deus não lhe é alheio ou
estranho, mas é o mais seu. Por isso, a lei moral não é heterônoma, mas o mais próprio do homem.
A moralidade é a propriedade dos atos humanos segundo o qual se ordenam ou
não à obtenção do bem do homem e da sua felicidade;
Esta ordenação a Deus não é algo arbitrariamente acrescentado ou extrínseco à
pessoa, mas está inscrito – como dinamismo seu – na mesma natureza humana
por ter sido feita à imagem de Deus, e em virtude da graça, que recria o homem
como filho do Altíssimo;
103
É aí que reside essencialmente a lei moral, que, além disso, encontra-se
externamente revelada na Sagrada Escritura e na Tradição, guardada pelo
Magistério da Igreja.
A autonomia do homem não deve ser entendida como autonomia absoluta, mas
como “Teonomia Participada”: a lei moral tem Deus como autor, e o homem,
mediante sua razão, participa dela (cf. VS,36,41-46)
***
1. Noção
A lei é uma ordenação racional da conduta humana, que guia o homem a sua perfeição.
As leis físicas e biológicas existem na natureza mesma das coisas, como dom do Criador,
que conduz ao seu fim o universo.
A lei moral é a ordenação intrínseca e dinâmica ordenada a sua própria perfeição. A criatura
humana a recebe como dom do Criador.
O peculiar das criaturas espirituais é que sua ordenação ao fim não implique nelas uma
necessidade física; mas livre, isto é, uma necessidade ética ou moral: a necessidade de seguir
livremente uma conduta para alcançar sua perfeição ou plenitude, à qual por sua vontade não pode
se subtrair, mas somente à custa de renunciar a tal perfeição e de degradar-se.
Por isso a lei moral é exclusivamente definida como ordenação racional dos atos humanos
ao fim devido:
É uma ordenação que assinala a direção e a medida dos atos para alcançar o fim
último;
É racional, porque foi sabiamente estabelecida pela Inteligência Divina, e é
reconhecida pela razão humana;
Afeta aos atos humanos, isto é, as ações livres;
Dirige os atos humanos ao fim devido: impõe assim uma necessidade moral ao
agir humano, uma obrigação ou dever, para que a pessoa alcance sua perfeição.
Como ordenação racional, toda lei pressupõe uma autoridade inteligente ou um legislador
que a estabelece. O supremo Legislador é Deus, que com sua Providência rege todas as criaturas,
com a mesma perfeição, domínio e plenitude com que as cria, de modo que nada se subtraia do
seu governo e senhorio.
2. Divisões da lei
A lei se divide em divina e humana: a lei divina se divide em natural e divino-positiva; a lei
humana, em civil e eclesiástica.
a) Por lei divina se entende, em geral, a que tem por autor Deus. Em sentido prévio
e mais amplo falamos de lei eterna para referirmos a própria Sabedoria de Deus, enquanto
originária de toda ordem e de toda lei.
Deus, ao criar, imprimiu na natureza das criaturas a ordem de sua Sabedoria. As
criaturas intelectuais participam dessa ordem de modo superior, enquanto
104
podem conhecê-lo e amá-lo e, assim, governar-se a si mesmo: é o que chamamos
lei moral natural ou simplesmente lei natural.
Além disso, Deus deu a conhecer ao homem a sua lei-eterna – sobretudo que se
refere ao fim sobrenatural – mediante a Revelação. É a lei divino-positiva,
preparada imperfeitamente na Antiga Lei (Antigo Testamento), e dada com
plenitude por Cristo na Nova Lei (Novo Testamento)
b) Por outra parte, Deus fez os homens participes de sua capacidade de governar e
de promulgar leis humanas na ordem do bem comum. Há dois tipos de leis humanas.
Lei civil, que emana da autoridade que se ocupa do bem temporal; e
A lei eclesiástica, que procede da Hierarquia da Igreja.
1. Noção
A lei eterna é a mesma Sabedoria Divina, enquanto dirige todas os movimentos das
criaturas.
Deus rege todas as causas com sua Providência, provendo os meios suficientes e
superabundantes para que as criaturas consigam seu fim. Na Providência Divina se podem, por
isso, distinguir dois aspectos: no primeiro, o plano de governo, que se identifica com a mesma
Sabedoria Divina; segundo, a efetiva execução desse plano.
A lei eterna é o primeiro aspecto da Providência, o plano amoroso de governo divino. Na
execução dos desígnios providenciais, no entanto, Deus se serve também das criaturas, como
causas segundas.
a) É necessária
Diz-se que é necessária porque toda perfeição da criatura só se realiza por causa da sua
adequação à lei eterna, e porque se cumpre sempre, de um modo ou de outro, em todos os seres.
b) Ordena ab intrinseco
A lei eterna ordena ab intrinseco porque, à diferença das leis dos homens, que governam
exteriormente os atos humanos, a lei de Deus os ordena interiormente, mediante os dinamismos
que imprimem em sua natureza – e na ordem sobrenatural pela graça –, com suas potências e
inclinações a agir em ordem para o fim.
O plano da Lei eterna está, pois, inscrito intrinsicamente na criatura, o que se manifesta
em que nos proporciona a inclinação e as forças para que nossos atos se conformem com ela,
tanto a ordem da criação ou participação natural na bondade divina (lei natural), como na recriação
ou participação sobrenatural (lei da graça).
Portanto, o que a Revelação divina ensina sobre a lei corresponde a mais profunda
inclinação do homem criado e redimido. Não cabe sequer pensar que Deus, infinita Bondade,
exija de alguém uma conduta sem dar os meios oportunos.
105
c) Alcança a toda criatura e a todas as suas ações
Uma vez que as penetra desde o seu ser, a ordem da Lei eterna alcança a toda criatura e
a cada uma de suas ações em sua singularidade. É um erro pensar que Deus ordena as coisas e
as ações somente de modo geral, como fazem as leis humanas.
Nada escapa à Lei eterna e por isso nunca pode haver causa real para não a cumprir em um
caso concreto.
No entanto, as leis humanas podem não ter previsto um caso particular específico, que não
se adequasse às necessidades concretas de determinada pessoa. Isto não ocorre nunca com a lei
eterna. Por isso, seu cumprimento é sempre possível e faz feliz todo homem em toda
circunstância. Isto não quer dizer que, em ocasiões, o homem custe a entender a conveniência e a
sabedoria das exigências divinas.
A lei eterna, como ordem divina, é a raiz e o fundamento de toda ordem: não é somente
modelo, mas a causa de que qualquer ordem, norma ou preceito alcance o seu caráter de
verdadeira lei, ou guia até a perfeição, e, portanto, tenha força de obrigar em consciência a uma
criatura livre.
106
4. É necessária uma reta consideração metafísica e teológica da natureza humana
para compreender a lei moral natural. Recordemos a este respeito duas declarações importantes:
A natureza humana não é uma natureza pura; mas uma natureza caída, que deve
converter-se em uma natureza curada e elevada à vida sobrenatural pela união
com Cristo.
Quando falamos das inclinações naturais da pessoa humana, não nos referimos
a todas as inclinações, mas às inclinações essenciais (a inclinação ao bem, à
verdade, à vida em sociedade, à procriação e educação dos filhos, à conservação
da vida). Nem tudo o que o homem se sente inclinado a fazer pode ser
considerado natural.
5. O Magistério da Igreja tem também a missão de interpretar a lei natural, porque
«Jesus Cristo, ao comunicar a Pedro e aos Apóstolos sua autoridade divina e ao envia-los a ensinar
a todas as pessoas seus mandamentos, os constituía guardiões e intérpretes de toda lei moral, quer
dizer: não somente da lei evangélica, mas também da lei natural, expressão da vontade de Deus,
cujo cumprimento fiel é igualmente necessário para salvar-se»84.
1. Noção
A lei moral natural «é a mesma Lei eterna gravada nas criaturas racionais»85.
«A lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os
inclina ao ato e ao fim que os convém; é a mesma razão eterna do Criador e
governador do universo» (VS, 44).
«A lei natural não é outra coisa que a luz da inteligência infundida em nós por
Deus. A lei deve considerar-se como uma expressão da sabedoria divina» (VS,
40).
«A Lei natural está inscrita e gravada na alma de todos e de cada um dos homens,
porque é a razão humana que ordena fazer o bem e proíbe pecar. Mas esta
prescrição da razão humana não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o
intérprete de uma razão mais alta, à qual o nosso espírito e nossa liberdade devem
estar submetidos» (CEC, 1954).
Em consequência, a lei natural poderia conhecer, como obrigatória, mediante a
lei natural da razão.
«Quando então os pagãos, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito
pela lei, eles, não tendo lei, para si mesmo são lei; eles mostram a obra da lei
gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus
pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem» (Rom. 2,14).
a) A lei moral natural inclina o homem a cumprir tudo aquilo que afeta a própria
perfeição, e a consecução da ordem exterior; ajuda a conhecer e amar o Criador e a ordem
que Ele imprimiu no universo, dirigindo toda sua vida a união com Deus.
Na criatura espiritual a lei natural é não somente a medida de seus atos, mas também o
princípio que a capacita para reger a si mesmo, dirigindo-se a sua própria perfeição e felicidade.
A lei natural tem um conteúdo objetivo, determinável, que pode ser anunciado e ensinado,
descoberto e conhecido.
Mas enquanto dinamismo livre ordenado à própria perfeição, a lei natural está em toda a
pessoa: no conjunto de suas inclinações naturais, reunidas e regidas pela inclinação da inteligência
à verdade e da vontade ao bem e, mais precisamente, pela inclinação ao bem absoluto, que confere
ao homem idoneidade e energia para viver o amor de Deus e do próximo.
c) O caráter livre do dinamismo da lei natural na pessoa, explica que o homem pode
prescindir da sua guia, mas a lei não deixa de atuar como medida. Quando o homem
obscurece e debilita voluntariamente o vigor da lei natural, como princípio ativo impresso
em seu ser, diminui sua capacidade de amar a Deus e ao próximo.
Isto explica que, em sua condição de dinamismo ativo, a lei natural se intensifica e se
desenvolve com o comportamento virtuoso, e é obscurecida pelo pecado. Por isso, a lei natural,
permanecendo em seus princípios em todos os homens, torna-se mais plenamente atualizada na
pessoa reta do que na pessoa desordenada.
A lei natural está impressa no coração humano, como dinamismo e medida intrínseca da
sua natureza, por isso, é comum a todos os homens, e não pode ser mudada pela autoridade
humana.
a) Universalidade
A Igreja tem ensinado sempre que a lei natural é «norma universal de retidão
moral»86; «é universal em seus preceitos; e sua autoridade se estende a todos os homens»
(CEC, 1956).
108
O fundamento desta universalidade é que «todos os homens, dotados de alma racional e
criados à imagem de Deus, têm a mesma natureza e a mesma origem»87 e, portanto, a mesma lex
indita (interior), ainda que não tenham a mesma lei escrita, nem a graça lhe chegue de igual modo
e grau.
Como as «obrigações fundamentais da lei moral estão baseadas na natureza do
homem e em suas relações essenciais», «valem, por conseguinte, em todas as
partes onde se encontre o homem»88.
Os homens não criam nem inventam a lei natural, como não criam a natureza: descobrem a
ordem da lei divina impressa por Deus em seu ser e no universo inteiro.
O conteúdo da lei natural não é medido pelo que faz a maioria dos homens, mas pelo que
devem fazer segundo a ordenação de Deus, que é cognoscível se há reta vontade: e desse
conhecimento nascem as justas leis escritas, tanto promulgadas pelos legisladores como ensinadas
pelos filósofos.
Em consequência, a vigência da lei natural não depende de aprovação ou promulgação
humana, mas da força divina do ato criador. «As leis escritas, assim como não dão vigor à lei
natural, tampouco podem trocar sua própria natureza»89. Qualquer vontade ou lei humana «é
impotente para fazer honesto o que contraria o Direito natural; mas o simples fato contraria-lo faz
que uma lei deixe de sê-lo»90.
«Esta universalidade não prescinde da singularidade dos seres
humanos, nem se opõe a unicidade e a irrepetibilidade de cada pessoa; ao
contrário, abarca basicamente cada um de seus atos livres, que devem
demostrar a universalidade do verdadeiro bem. Nossos atos, ao submeter-se
à lei comum, edificam a verdadeira comunhão das pessoas e, com a graça de
Deus, exercitam a caridade, “que é o vínculo da perfeição” (Col 3,14). No
entanto, quando nossos atos desconhecem ou ignoram a lei, de maneira
imputável ou não, prejudicam à comunhão das pessoas, causando danos»
(VS, 51).
Por esta universalidade, a lei guia e está presente na consciência de toda pessoa humana.
Assim a lei natural promove a colaboração entre todos os homens.
b) Imutabilidade
Em seu conteúdo essencial, a lei natural é imutável e válida para todos os tempos:
109
Isto é assim porque a natureza humana é a mesma não somente em todos os homens de
cada época, mas também em todos os homens de todas as épocas. As mudanças histórico-sociais,
as diversidades de cultura, etc., não podem afetar nunca a sua essência: se limitam a dar o
panorama concreto no qual o homem deve desenvolver sua vida de acordo com o desígnio divino.
A imutabilidade da lei natural não é a de uma “forma abstrata” mas a de um princípio
intrínseco e dinâmico que «não exclui a historicidade; ao contrário, a reclama, visto que conota a
pluralidade e diversidade das circunstâncias históricas na ordem da determinação do que em cada
momento hoje e agora, deve realizar-se»91.
«As normas morais absolutas nunca mudaram»92. As condutas dos que nos
precederam na fé reconhecidas como intrinsicamente contrárias à dignidade da
pessoa, seguem sendo agora e serão sempre. Em tudo o que é essencial a nossa
natureza, o único que os homens podem fazer é progredir em seu conhecimento
ou perder a sabedoria que haviam adquirido a respeito, especialmente como
sequela de uma conduta desviada.
A imutabilidade da natureza humana e da lei natural não se opõem a que o homem
intervenha na história e tenha ele mesmo uma história93. A historicidade da pessoa consiste em
que, mediante sua liberdade, vá configurando sua própria vida e, em última instância, seu destino
eterno.
Não se deve confundir a condição histórica do homem com a historicidade de sua
natureza. Imaginar que o homem carece de natureza em sentido metafísico,
levaria a considerar a pessoa como um “projeto aberto”, nas suas próprias mãos.
A lei natural e a cultura. A natureza humana é «a medida da cultura e da condição para
que o homem não caia prisioneiro de nenhuma de suas culturas, mas que defenda sua dignidade
pessoal vivendo de acordo com a verdade profunda de seu ser» (VS,53).
Não é argumento em favor da mutabilidade da lei natural, o fato, invocado por
alguns, de que determinadas sociedades abandonam às vezes a prática de alguns
de seus preceitos. Quando em uma comunidade humana se generaliza um
comportamento contrário à ordem moral natural, não é porque ela tenha mudado,
mas porque em tal aspecto essa sociedade se degenerou: não responde já à
grandeza da vocação do homem.
A condição histórica do homem explica que, nos costumes das distintas épocas e
de cada cultura, e ainda na mesma época, haja modos diversos de viver as
exigências substanciais, comuns e permanentes da lei natural. Os elementos
mutáveis dos costumes ou os usos morais não são exigências necessárias da
natureza humana, mas aspectos que, em circunstâncias determinadas,
acompanham e concretizam o cumprimento da lei moral natural.
91 Cf. J.L. ILLANES, continuidade y discontinuidad del Magisterio sobre cuestiones Morales.
Trasfondo de un debate, en Persona, verità e morale, cit, pp. 260-261.
92 JOÃO PAULO II, Discurso, 12-XI-1988, n. 5. Sobre os atos intrinsecamente maus, foi tratado no
Tema 5.
93 Cf. JOÃO PAULO II, Enc. Redemptor hominis, n. 14.
110
estes aspectos sejam em si mesmo mutáveis, a medida em que o aqui e agora
sejam de fato necessários para viver conforme às exigências da lei natural, nessa
mesma medida caem também sob a sua jurisdição.
É importante distinguir entre as exigências da lei natural e as formulações dessas
exigências imutáveis:
«É necessário buscar e encontrar a formulação das normas morais universais e
permanentes mais adequadas aos diversos contextos culturais, mas capaz de
expressar incessantemente sua atualidade histórica e fazer compreender e
interpretar autenticamente a verdade. Esta verdade da lei moral – como todo o
“depósito da fé” –desenvolve-se através dos séculos. As normas que expressam
seguem sendo substancialmente válidas, e devem ser precisadas e determinadas
eodem sensu eademque setentia94, segundo as circunstâncias históricas, pelo
Magistério da Igreja, cujas decisões estão precedidas e acompanhadas pelo
esforço da leitura e formulação própria da razão dos crentes e da reflexão
teológica» (VS, 53).
Como consequência da perfeição da lei natural e do caráter intrínseco com que ordena a
natureza humana, segue-se que não pode haver nem dispensa nem epiqueya em relação à lei
natural. Estes conceitos são aplicáveis somente às leis humanas, para salvar sua possível
imperfeição: buscar dispensas em um caso da lei natural, seria dispensar a dignidade de sua
natureza; e aplica-la com epiqueya, uma pretensão de corrigir o plano de Deus inscrito no ser
mesmo de cada homem.
O homem pode, por suas próprias forças, conhecer os princípios fundamentais da lei natural;
mas no estado atual, de natureza caída, o conhecimento da lei natural está tão debilitado que é
moralmente necessário o auxílio da Revelação divina, para ser adquirido por todos, com
facilidade, firmemente e sem erro.
Por isso a Igreja, encarregada de guardar o depósito da Revelação, não somente tem plena
autoridade para especificar os preceitos da lei natural contidos nesta Revelação, mas também para
especificar o conjunto da lei natural.
A pessoa humana, sempre que deseja e busca a verdade, capta como evidente algumas
primeiras verdades sobre o bem e o ser, que chamamos primeiros princípios, e que são evidentes
por si mesmas.
1. O homem deve amar a Deus sobre todas as criaturas, e a estas segundo a ordem
estabelecidas por Ele.
Não querer para os demais o mal que não queremos para nós mesmos (aqui se encontra
a maioria dos absolutos morais: não matar, não roubar, não mentir, não adulterar etc.);
Desejar e promover para os demais o bem que desejamos para nós mesmos.
A obrigação de amar a Deus sobre todas as coisas determina o reto amor das pessoas e dos
demais bens, e assim o conteúdo da lei natural: aquela atitude diante das pessoas e aquele uso dos
Sob a luz dos primeiros princípios, e pela experiência ética e reflexão sobre os vários bens
humanos, se alcançam os preceitos ou princípios secundários, chamados também conclusões
imediatas, as que se admitem por fáceis raciocínios.
Quando para alcançar a norma, ou a exigência de um bem humano, se requer uma reflexão
mais completa e difícil, fala-se então de conclusões mediatas da lei natural.
A lei, com seus preceitos, pressupõe e promove as virtudes. Na realidade,
somente graças às virtudes se consegue cumprir sempre o mandato do amor – e
os que o concretizam –, e somente mediante as virtudes chega-se a conhecer bem
suas exigências.
O conteúdo da lei natural, que a razão pode alcançar, foi também revelado no Decálogo.
Deste modo, o crente conhece seu conteúdo também mediante um elemento externo ou escrito,
não somente pela tradição dos homens, mas outorgado pela mesma Sabedoria de Deus. O
Decálogo contém a totalidade dos preceitos da lei natural:
Em primeiro lugar, como princípio explícito que compreende em sua raiz todos
os demais, está o amor a Deus e ao próximo99.
De modo também explícito, em cada um dos dez mandamentos se promulgam as
conclusões imediatas da lei natural: nossas obrigações para com Deus e para
com o próximo.
De modo implícito, no Decálogo se contém as conclusões mediatas, que a Igreja
foi sancionando expressamente com sua autoridade: obrigação de buscar a
verdadeira fé e direito à liberdade religiosa; indissolubilidade do matrimônio;
obrigação de não fechar as fontes da vida; deveres e direitos dos pais na educação
dos filhos; direito de todas à propriedade privada etc.
99 O Senhor quis ensinar com claridade que todos os mandamentos se conduzem ao duplo preceito
da caridade: «Amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente.
Este é o maior e primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: amarás a teu próximo como a ti
mesmo. Nestes dois mandamentos está baseada toda a Lei e os Profetas» (Mt 22, 37-40; cf. Mc 12, 19-31).
114
3.3. A ignorância da lei natural e seus limites
A lei natural está inscrita no coração dos homens com tal vigor que todos, se tem boas
disposições, chegam a conhecê-la ao menos em seus princípios e em suas conclusões imediatas,
com a ajuda da graça que Deus nunca nega a quem tenta cumpri-la: está impressa «nas tábuas do
coração humano, pelo dedo do mesmo Criador (cf. Rom. 2,14-15, e a sã razão humana, não
obscurecida pelo pecado e pelas paixões, é capaz de descobri-la»100.
Não obstante, quando um meio social está cheio de ideias confusas e errôneas
sobre o homem e seu fim, os erros sobre a lei natural aparecem em cadeia. Por
isso o homem pode chegar a agir notavelmente contra à lei natural, ou a não
captar o grave rompimento que umas condutas supõem à dignidade humana,
mediante a manipulação ideológica.
Todos conhecem a lei natural somente pelo fato de ter o uso da razão, já que sua
promulgação coincide com a aquisição do uso da razão. Todos os homens possuem a capacidade
de elevar-se ao conhecimento da lei natural na medida em que é necessária para sua salvação101.
Supondo a vontade salvífica universal de Deus, e que o cumprimento da lei
natural é necessário para salvar-se, é evidente que todo homem é capaz de
conhecê-la, ainda que com as forças de sua natureza ferida, com a ajuda que em
seu momento receberá da graça. A explicação corrobora que nenhuma pessoa
com reta disposição carece do conhecimento necessário para agir bem e distingui-
lo do mal. Não há falta que chegue a esse conhecimento por via do rigoroso
raciocínio: basta que haja por redução espontânea aos primeiros princípios
morais, ou o conhecimento por conaturalidade.
Todo homem pode alcançar as principais normas morais.
Assim, por exemplo, a respeito das normas negativas, ensina o Magistério «Das
relações essenciais entre o homem e Deus, entre o homem e o homem, entre os
cônjuges, entre os pais e os filhos; as relações essenciais em cada comunidade –
na família, na Igreja, no Estado resulta entre outras coisas o ódio a Deus, a
blasfêmia, a idolatria, a deserção da verdadeira fé, a negação da fé, o perjúrio, o
homicídio, o falso testemunho, o abuso do matrimônio, o pecado solitário, o
roubo e a rapina, a subtração do que é necessário à vida, a fraude do salário justo,
o reter os bens de primeiras necessidade, e o aumento injustificado dos preços, a
falência fraudulenta, as injustas manobras de especulação, tudo isto está
gravemente proibido pelo divino Legislador. Não há motivos para duvidar»102.
Isto não implica que seja sempre imediatamente acessível este conhecimento, mas sim
que todo homem que se esforça por consegui-lo, com a diligência que qualquer um põe nos
assuntos que verdadeiramente lhe interessam, alcança a resolver retamente o que deve fazer em
cada caso particular (pelo menos, dando conta de que tem necessidade de pedir conselho).
Pode dar-se, entretanto, uma ignorância invencível de alguns preceitos da lei natural, nas
condições que veremos a seguir:
100 PIO XI, Enc. Mit brennender Sorge, 14-III-1937, AAS 29 (1937), p. 159.
101 Cf. PIO XII, Enc. Humani generis, 12-VIII-1950, Ds 3875/2305.
102 PIO XII, Alloc, 18-IV-1952; AAS 44 (1952), pp. 418, ss.
115
Não cabe ignorância inculpável dos primeiros princípios da lei natural. O
primeiro princípio da razão prática, e – mais cedo ou mais tarde, o duplo preceito
de amar a Deus e ao próximo, se conhecem de modo indefectível de forma que
não cabe erro inculpável acerca deles103.
A razão é que a marca do Criador está de tal modo na estrutura da pessoa que,
enquanto o homem toma consciência de sua liberdade, percebe de algum modo –
ainda que seja no véu do mistério – que essa liberdade faz referência a Deus e que
essa mesma relação se dá em todo homem. Errar acerca deste princípio fundante
do agir moral nunca é natural ao homem, nem a sua inteligência, nem a sua
vontade. Para errar neste ponto, a vontade há de desordenar e escurecer a luz
natural da inteligência.
Ainda que não seja uma opinião unanimemente aceitada, as teses mais comuns
e mais conforme com a experiência é que, em circunstâncias particulares, cabe
ignorância inculpável por um certo tempo, mas não durante toda a vida, de
alguns, mas não de todos104: a ignorância inculpável sobre alguns preceitos do
Decálogo, cedo ou tarde desparece ou se torna culpável. Esta opinião é, também,
a mais coerente com a realidade da Providência divina. No princípio, não aparece
que – em questões tão importantes – Deus deixe de dar aos homens os meios para
conhecer o caminho que os conduzem a sua perfeição e felicidade. Entre esses
meios, está o exemplo e a palavra das pessoas retas, especialmente os cristãos105.
116
Somente Cristo revelou ao homem sua própria dignidade, o valor transcendente de sua
humanidade, o sentido último de sua existência106. A Igreja tem, portanto, a inteira verdade sobre
o homem: por isso, «recordando as prescrições da lei natural, o Magistério eclesiástico exerce
uma parte essencial de sua função profética de anunciar aos homens o que são de verdade e de
recordar-lhes o que devem ser diante de Deus (cf. Dignitatis humanae, 14)» (CEC, 2036). Daí
que o Magistério da Igreja seja interprete autêntico da lei natural.
Os cristãos contam com esta grandíssima ajuda, que reforça com garanta divina seu
conhecimento da ordem moral natural. Isto comporta uma séria responsabilidade: a de
esforçar-se porque «a lei divina fique gravada na cidade terrena»107. A este propósito, o Concílio
Vaticano II quis ressaltar especialmente a responsabilidade dos leigos: «O Senhor deseja dilatar
também seu reino por mediação dos fiéis leigos. Devem, pois, os fiéis conhecer a natureza íntima
de todas as criaturas, seu valor e sua ordenação à glória de Deus»108.
Ao ensinar e defender a lei natural, os cristãos não impõem aos demais suas próprias
opiniões ou crenças religiosas, mas cumprem um sagrado dever de mostrar a todos os
homens o caminho de sua própria dignidade e felicidade.
É necessário que os cristãos estejam prevenidos contra os sofismas que pretende inibi-los
da defesa da ordem moral da criação, por exemplo, argumentando que de outro modo não
respeitam a pluralidade de opiniões na sociedade. Ante questões como o divórcio, o aborto, a
justiça social, a moralidade pública etc., não cabe abster-se por um falso respeito às opiniões dos
demais: seria uma fraude ante essas mesmas pessoas109. Certamente, há que defender a verdade
em modo positivo, respeitando os demais, vivendo a caridade; mas ela deve ser proclamada sem
medo.
A Nova Lei consiste principalmente na graça do Espírito Santo, que nos chega
através de Cristo, e nos move a agir segundo a luz da fé que opera pela caridade.
106 Cf. JOÃO PAULO II, Enc. Redemptor hominis, n. 11; cf. CONCILIO VATICANO II, Const.
past. Gaudium et spes, n. 22.
107 CONCILIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes, n. 43.
108 CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n.36.
109 Cf. CONCILIO VATICANO II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 36; Const. past. Gaudium et
spes, nn. 16, 26, 43; etc.
117
Seu elemento primeiro e principal é a presença operante do Espírito Santo, que a graça
outorga a cada crente, mediante a fé e a caridade, unidas ao conjunto das demais virtudes infusas
e dons.
Se a lei natural está inscrita no homem como luz de sua inteligência e inclinação de sua
vontade ao bem, a lei de Cristo é luz sobrenatural da fé e força operante da caridade.
«O Espírito escreve em vossos corações a lei de Deus... Não está inscrita somente no
exterior: na Sagrada Escritura, nos documentos da Tradição e do Magistério da Igreja.
Está escrita também dentro de vós»110. E por isso Cristo não é um modelo externo, e seu
surgimento não é uma simples imitação exterior.
A Nova Lei é, portanto, uma guia intrínseca e ativa de nossos atos: não somente
mando o que devemos fazer, mas dá a luz para conhecê-lo e força para cumpri-lo:
«Foi-nos doado o Espírito Santo, afim de que nos mova desde dentro a agir em Cristo e
como Cristo. A lei de Cristo está inscrita em nossos corações mediante o Espírito
Santo»111.
Estes ensinamentos e preceitos escritos, ainda que sejam secundários em relação à graça,
são muito importantes, porque nos dispõem a recebê-la e a seu reto uso.
Convém considerar, também, que a letra da Nova Lei possui uma perfeição muito superior
à das leis humanas, porque seu autor é Deus mesmo, que não está sujeito às limitações dos
homens.
c) Finalmente, a Nova Lei ensina e ratifica todo o conteúdo da lei natural, já que
aclara e interpreta autenticamente seu sentido.
O Senhor insistiu que não havia vindo invalidar o Decálogo, mas dar-lhe seu perfeito
cumprimento (Mat. 5,17); e aclarou os pontos que haviam sido mal interpretados pelos doutores
da lei: por exemplo, o alcance da proibição do adultério e do homicídio, que estavam referindo
somente ao caso exterior e não ao desejo interior; o mesmo com o perjúrio e o juramento:
pensavam que o primeiro estava proibido e o segundo era desejável, mas o Senhor ensinou que
se devia jurar somente quando fosse necessário.
«Seguir a Cristo é o fundamento essencial e original da moral cristã (...). Não se trata
somente da escuta de um ensinamento e de cumprir alguns mandamentos, mas de algo muito
mais radical: aderir à pessoa mesma de Jesus, compartilhar sua vida e seu destino, participar
de sua obediência livre e amorosa à vontade do Pai (...). Jesus pede que lhe sigam e imitem o
caminho do amor, de um amor que se dá totalmente a os irmãos pelo amor a Deus: “Este é o
meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu os tenho amado” (Jo. 15,12)» (VS,
19,29).
Diz o catecismo que esta nova lei, ou lei evangélica, se chama «Lei do amor,
porque faz agir por amor, que infunde o Espírito Santo, mais que por temor... Lei
da Graça, porque confere a força da graça para agir mediante a fé e os
119
sacramentos... Lei da liberdade, porque nos liberta das obrigações rituais e
jurídicas da lei antiga. Nos inclina a agir espontaneamente sob o impulso da
caridade e nos faz passar da condição de servo, à de amigo de Cristo; ou também
à condição de filho herdeiro» (CEC, 45).
A Antiga Lei foi chamada “lei do temor”, porque levava a maioria do povo a agir mais
por medo da sanção, do que por amor.
Ao contrário, a Nova Lei reside essencialmente na caridade, que leva a amar a Deus
e ao próximo com amor sobrenatural, fazendo do amor a regra e o princípio de todos os atos (Jo.
13, 34).
Toda a Nova Lei é fruto do amor divino, do amor paterno de Deus, que o levou a
entregar por nós seu próprio Filho, quando ainda éramos pecadores: «Nós amamos, por Ele nos
amou primeiro» (1 Jo 4,19).
O mandamento novo (mandatum novum) não se limita a exigir o amor a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, segundo o primeiro preceito da lei natural,
recordado pela lei de Moisés; pede amar a Deus Uno e Trino, em cada uma de suas Pessoas e com
a força que Ele nos dá, e aos outros em Deus, com essa nova força sobrenatural da caridade, que
se estende ao próximo e o transforma.
Pelo pecado, a liberdade se encontra escravizada a falsos bens que afastam de Deus, o
bem verdadeiro. A escravidão mais radical é a escravidão do pecado.
Mas o homem continua também escravizado, de alguma maneira, quando faz o bem
principalmente por temor.
De ambas servidões nos livra a graça, unindo-nos de novo a Deus, e movendo-nos a
cumprir sua lei por amor.
Ademais, a Nova Lei é lei de perfeita liberdade porque, ao conferir a caridade, não
necessita manda mais que o estritamente requerido para a união com Deus: se alguém se dirige
voluntariamente ao fim, basta mandar-lhe o necessário para que o alcance. Por isso, a Nova Lei
manda ou proíbe somente o diretamente necessário ou contrário à nossa identificação com Ele;
no demais deixa a concretização das obras à ação sempre original do Espírito Santo e à
correspondência singular e irrepetível a cada um, sob a guia da legítima autoridade.
Esta máxima liberdade da Nova Lei não significa menor exigência, nem ausência de
dificuldades, mas perfeição da virtude que outorga para cumprir seus mandatos: a caridade não é
a negação da lei, mas sua plenitude.
A lei da graça nos faz partícipes da vida divina, já neste mundo, e assim de algum modo
nos introduz no fim verdadeiro da vida humana, que é a união com a Trindade. Por isso, não
admite ulterior perfeição.
Este caráter definitivo e, portanto, não sujeito a mutações, não significa que não haja no
conteúdo da Escritura indicações ou mandatos que dependam em certa medida das circunstâncias
históricas.
No entanto, nunca mudaram seus princípios, em particular o duplo preceito da
caridade, ao nível superior de santidade em que revelou Cristo. Tampouco as exigências que de
um modo ou de outro são diretas expressões suas.
120
Sem variar em absoluto, cabe uma compreensão sempre nova e criativa do tesouro da
Revelação: não porque antes não se entendera – o que equivaleria a pensar que Cristo se revelou
insuficientemente –, mas por sua infinita riqueza, que faz inesgotável o progresso em sua
inteligência. Isto é o que sempre entendeu a Igreja, falando da custódia do depósito.
Esta formulação parte de que, segundo expressamente afirma Santo Agostinho e Santo
Tomás, e definitivamente cada homem sabe por experiência, nada move tanto a amar como
saber-se previamente amado.
a) A doutrina da imitação: «Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados» (Ef. 5,1);
b) A observância dos mandamentos como manifestação do amor: «se me amas guardareis
meus mandamentos» (Jo. 14,13);
c) A Cruz e a submissão às provas: «Deus os trata como filhos, e que filho não é corrido por
seu pai? Se os privasse da correção que todos receberam, seriam bastardos e não filhos» (Heb.
12, 4-8);
d) O reconhecimento das próprias culpas e a conversão (cf. Lc 15, 13-20).
Na Antiga Lei, Deus atuou como pedagogo (cf. Gal. 3,24): tinha em comum com as leis
humanas seu caráter extrínseco; não sanava à natureza, mas instruía e mandava o povo de Israel
observar a lei natural, para que se dispusesse a receber a graça, conservasse a fé no Messias e
cumprisse com sua missão de povo eleito.
Esta missão de pedagogo, que tinha a lei mosaica, a cumpre agora a Igreja de um modo
mais perfeito: com os ensinamentos de seu Magistério ajuda a batizados e não batizados a
reconhecer a lei natural; e em sua pregação todos encontram facilidade para reconhecer a
verdadeira dignidade da pessoa e seu chamamento a participar na vida divina.
121
Trata-se de uma ordenação ou ditame da razão. Não se funda em um simples
capricho, ou no afã do poder, mas no descobrimento – que compete à razão – daquilo que é mais
conveniente para o bem comum.
Ademais, a lei humana é ordenação imperativa da conduta: não somente ensina
o que se deve fazer mas manda fazê-lo pelo mandato, dado com intenção de obrigar;
Por isso, toda lei humana deve ser promulgada, ou seja, deve-se comunicar
externamente aos sujeitos que vão obedecê-la.
A lei humana somente pode ser estabelecida pela autoridade legítima, não um
particular, porque somente à autoridade incumbe determinar as concreções do bem comum.
O fim da lei humana é sempre facilitar o conhecimento e concretizar as
exigências do bem comum, que consiste no «conjunto daquelas condições da vida social que
permitem aos grupos e a cada um de seus membros conseguir mais plena e facilmente sua própria
perfeição»112 (Gaudium et spes,26).
As leis humanas participam e imitam, na medida de suas possibilidades, a lei divina. Regem
o homem ilustrando sua inteligência para que conheçam o caminho do bem, e movendo sua
vontade a recorrê-lo com a força do mandato.
a) Sua forma primária e mais universalmente eficaz de participar na Lei eterna é
sua “vis directiva”.
Ensinam e mandam cumprir a ordem justa. São, deste modo, uma participação da luz da Lei
divina, que nos chega extrinsecamente, através de uma autoridade humana. Por isso:
Devem recordar, embora não os estabeleçam, os preceitos da lei natural com mais
diretas repercussões sociais, especialmente se são conclusões cujo conhecimento
e observância são mais difíceis a grande número de homens;
b) Em segundo lugar, as leis humanas participam da Lei eterna por sua “vis
coactiva”.
123
ordenam os atos externos, mas também o interno: podem mandar atos interiores, dentro do poder
concedido por Cristo. Ainda que sobrenatural por sua origem, por seu fim e seus meios, como se
compõe de homens, a Igreja utiliza também meios humanos. Neste caso, leis, quer dizer: as leis
eclesiásticas, destinadas a guiar os fiéis para a salvação eterna.
A força de obrigar das leis humanas não radica no poder dos homens, na pura força
coercitiva, mas em sua participação na Lei eterna: ou seja, na medida que são justas.
As leis humanas são justas e legítimas na medida em que derivam da lei eterna. Esta
derivação é dupla:
Algumas vezes, é direta, quando se limitam a assinalar o que estabelece a lei
divina;
Outras, é através de determinação de algumas conclusões da Lei divina,
convenientes segundo as circunstâncias concretas de cada sociedade: por
exemplo, exigências de salários justos etc.
Naturalmente, as leis humanas não têm em um e outro caso o mesmo valor:
A lei humana que recolhe a lei natural simpliciter, rege com a força desta última,
de modo que quando indica um preceito, esse passa a ser vigente para a
consciência, ainda quando a lei humana não a recolhesse.
Ao contrário, no segundo caso a lei humana rege somente no âmbito do mandato
e a promulgação da legítima autoridade;
b) As leis injustas não são propriamente leis, e não obrigam por si mesmas em
consciência.
De todos modos, a atitude devida diante da lei injusta varia segundo o modo em que
contraria o bem comum:
124
Se a lei injusta ordena algo diretamente contrário à lei divina, não somente não
obriga em consciência, mas que a consciência reta obriga a desobedecê-la. Em
tal caso «a resistência é um dever: a obediência, um pecado»117;
Se a lei injusta não se opõe diretamente ao bem divino, ainda que não obrigue
por si mesmo em consciência, tampouco a consciência obriga a desobedecê-la e
per accidens pode vincular a conduta: se não a seguir produz um maior dano ao
bem comum, por escândalo ou por algum outro motivo. Assim, por exemplo, as
disposições que estabelecem algum monopólio ou taxa injusta por si não obrigam
em consciência; mas na medida em que a desobedecer provocará uma
desnecessária desordem social, seriam obrigatórias per accidens.
A participação da lei humana na lei eterna é imperfeita, pois tem os limites próprios da
inteligência e da vontade humana. As leis dos homens sofrem do fato de que a inteligência do
legislador não alcança todos os casos singulares, e da possível falta de retidão em sua vontade.
Daí seu duplo risco de deficiência:
Seu caráter geral, que há de remediar-se com a equidade;
A possibilidade de que sejam injustas.
3.1. A equidade
É a interpretação adequada da lei em um caso particular, por cima de sua letra,
para seguir o seu espírito.
O legislador, ao ditar suas leis, observa o que ocorre na maioria das vezes, porque é
impossível contemplar a totalidade dos casos contingentes sobre os que podem versar os atos
humanos. Por isso, quando as circunstâncias que concorrem em um suposto concreto não tenham
sido levadas em conta, e o que manda a lei resulta ocasionalmente contrário ao bem comum, a
letra de tal lei não obriga: a razão e a justiça exigem que se aplique com equidade, por cima do
sentido literal, seguindo seu espírito.
Toda a autoridade humana está dentro dos planos da Providência, para cooperar com eles,
nunca para tentar suplantá-los: existe para contribuir a que se viva a justiça. Daí que as leis que
emanam de qualquer autoridade humana tenham irrecusavelmente uma relação com a ética. Esta
dimensão ética das leis se faz presente considerando que o fim da sociedade é o bem das pessoas,
que é um bem moral119.
Portanto, a lei, se quer verdadeiramente ordenar ao bem comum, deve promover a honra
pessoal dos cidadãos: o legislador não se deve limitar a manter uma ordem externa destinando
somente a garantir que nada interfira na autonomia alheia, mas que tenha de preocupar-se por
tutelar os princípios éticos, no âmbito de sua competência. Se não atendesse a este dever, a
autoridade civil agiria com desordem e não lograria o bem comum120.
O respeito da ordem moral e em particular das normas morais absolutas constitui o único
fundamento sólido de uma convivência humana estável.
Alguns autores falam da existe de leis mere poenales, que se caracterizariam por não
vincular a consciência do sujeito, obrigando somente a satisfazer eventualmente a pena: deixar de
as observar não seria culpa, mas o sujeito estaria moralmente obrigado a cumprir a sanção
estabelecida, em caso de ser descoberta sua infração (aplicam-no, geralmente, a leis de tráfico,
contrabando em pequena escala, caça e pesca etc.)121. Talvez seja mais preciso, no entanto,
afirmar que toda lei justa envolve alguma obrigação moral, e somente segundo as normas da
equidade – ou se é injusta – deixa de obrigar.
As leis humanas permitem, às vezes, condutas contrárias à lei moral. Não se trata, contudo,
de uma realidade necessariamente oposta ao bom governo: o legislador humano pode «tolerar
alguns males em razão de algum bem amor maior que deles provenha, ou para evitar piores
males»122.
A tolerância não é positiva autorização do mal, mas ausência de sua repreensão.
Ao modo que Deus permite o mal moral sem aprová-lo, a autoridade humana pode tolerar,
sem aprová-la, uma conduta contrária à lei divina. No entanto, «nenhum estado, nenhuma
comunidade de estados, quaisquer que sejam sua condição religiosa, pode dar um mandato
126
positivo ou outorgar uma positiva autorização para ensinar a fazer o que é contrário à verdade e
ao bem moral. Um tal mandato ou autorização careceria da força de obrigar»123.
Nem sempre a autoridade tem «o dever de reprimir positivamente» todas as condutas
imorais124. Assim o legislador justo tolera às vezes abusos como, por exemplo, certo grau de
imoralidade nos negócios; mas nunca aprovando essas condutas e declarando-as retas, mas
unicamente quando se considera impotente para endireitá-las. Não é o mesmo, portanto, uma lei
tolerante e uma lei que autoriza positivamente o mal, ou seja, permissiva.
Para que uma lei tolerante seja justa se requer:
Que exista uma causa proporcionalmente grave;
Que a lei não autorize positivamente o mal.
O legislador não pode tolerar o mal moral, a não ser quando, às medidas mais graves que
deveriam ser tomadas, se opõe una causa suficientemente grave. O mal moral gera sempre uma
desordem social, contrária ao bem comum. Somente resulta legítimo tolerar essa desordem
quando a reprimir for origem, na prática, de um mal claramente maior, ou impedir um bem mais
alto125.
Como não é o mesmo tolerar e aprovar, a lei tolerante se faz com o objetivo de regularizar
o ato desordenado somente no sentido de limitar sua comissão; mas não pode outorgar direito
a cometê-lo, nem o facilitar, porque em tal caso o legislador cooperaria formalmente no mal: em
geral a despenalização, sempre que esteja em jogo direitos de terceiros, comporta
permissivismos, é uma garantia de que a vítima não será protegida. Pode, ao contrário, proteger
os direitos para terceiros que surjam do ato desordenado, deixando a salvo os direitos preferentes
dos prejudicados.
Não podem, portanto, chamar-se tolerantes normas diretamente contrarias à lei divina: ex.
uma lei que outorgue direito ao divórcio. Essas leis não são tolerantes, mas permissivas e
injustas. Por isso, participar em sua aprovação será sempre uma cooperação ao mal, somente
legítima dentro dos limites que estabelecem a moral nesta difícil matéria, precariamente
resolvido com o voluntário indireto.
Uma importante consequência da finalidade ética das leis civis, e os delicados problemas
que este levante, é a exigência de que os legisladores sejam pessoalmente justos e conheçam
a ordem moral. Se o legislador se esforça por conhecer a lei divina, buscará o verdadeiro bem
da sociedade. Quando a autoridade humana se esquece desta dependência, suas leis perdem
progressivamente a eficácia ordenadora ao bem comum. A eficácia diretiva da justiça tende a
substituir então à mera planificação externa do bem-estar material, frequentemente levada de
modo crescentemente invasor da esfera privada, e abrindo caminhos para a desordem moral.
Parece importante ressaltar aqui, ainda que sejam temas aos quais se haja brevemente
aludido, o delineado dos instrumentos jurídicos-morais muito importante para assegurar a
presença e o influxo dos cristãos na progressiva evangelização da sociedade, segundo critérios
verdadeiramente humanos, e apesar das não poucas dificuldades reais do ambiente:
a) Em primeiro lugar, as chamadas leis imperfeitas, expressamente acolhidas pela
Encíclica Evangelium vitae, que marcam o critério para intervir na progressiva
«Quando não seja possível evitar ou revogar completamente uma lei abortista, um
parlamento, cuja absoluta oposição pessoal ao aborto seja clara e notória a todos,
pode licitamente oferecer seu apoio a propostas encaminhadas a limitar os danos
dessa lei e diminuir assim os efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade
pública. Com efeito, agindo deste modo não se presta uma colaboração ilícita a uma
lei injusta; antes bem se realiza uma tentativa legitima e forçada de limitar seus
aspectos iníquos»126.
Conhecida a lei moral, a pessoa pode realizar com a sua inteligência um juízo
sobre a bondade ou maldade dos atos concretos que pensa fazer, está fazendo ou já fez.
Esse juízo sobre a moralidade da ação se chama consciência moral. A consciência leva o
homem a atuar de um modo determinado: indica-lhe o bem que deve fazer e o mal que
deve evitar; ela não é o fundamento último do bem e do mal, mas sim a lei de Deus; ela
é o fundamento imediato do agir. Como a consciência não é infalível, é preciso formá-la,
educa-la. A este respeito é importante saber quando se pode e se deve seguir a própria
consciência, e quando não. A consciência pode também se deformar, e por isso é
necessário saber como devemos atuar para evitar suas deformações. Por último, ante
determinadas ações nossa consciência pode duvidar sobre sua bondade ou maldade: de aí
vem a importância de saber como sair da dúvida para poder agir com certeza.
Introdução
129
Parte I: Noção, propriedades, e divisões da consciência
1. Noção
É “o juízo moral sobre a retidão, sobre a moralidade dos nossos atos”127. “A consciência
moral é um juízo da razão, pelo qual a pessoa humana reconhece a qualidade moral de um ato
concreto que pensa fazer, está fazendo ou já fez” (CEC, n. 1778).
A consciência moral é o juízo que a pessoa emite à luz da sindéresis, sobre o ato singular;
juízo facilitado pelos hábitos da ciência e prudência.
A consciência constitui a mais importante luz na vida do homem, a que lhe ensina
a viver como tal. Entretanto, neste mundo imperfeito e não raramente com ambientes
sociais mais ou menos corrompidos, aos que se acrescenta a cumplicidade de nossa
natureza caída, não é sempre fácil encontrar e reconhecer qual seja a verdade sobre o
bem e o mal moral. Por isso, Deus quis vir em ajuda da fragilidade da natureza humana
com a presença visível da Igreja e do seu Magistério, que continuam esse socorro em
forma perceptível a nossos olhos como quando Cristo ensinava às multidões e curava
os enfermos.
131
4. Propriedades da consciência
b) A consciência não obriga por virtude própria, mas pela força do preceito divino.
132
É errônea a ética da situação134, segundo a qual a consciência situada nas diversas
circunstâncias culturais, sociais etc., vai produzindo normas morais diversas ao longo da
história. O seu erro depende de uma filosofia que não admite verdades perenes e eternas
– historicismo – de cuja crítica nos ocupamos ao tratar da lei.
Na atualidade, o modo mais frequente de apresentar esta tese é afirmar que nem a
natureza – seja entendida desde o ponto de vista biológico ou desde o ponto de vista
metafísico – nem a Revelação podem conter normas irreversíveis e que só uma razão
não submetida aos esquemas da natureza, a metafísica e a fé, pode dar resposta aos
novos interrogantes sobre o homem que a ciência e o progresso apresentam.
Segundo a ética da situação, o homem é lançado à existência e carece – para suas
decisões morais – de todo apoio em leis ou normas gerais, devendo, portanto, estar aberto
ao que, em cada situação, reclame dele qualquer sugestão pessoal, circunstancial ou
inspiração do Espírito Santo. Esta ética da situação conduz inevitavelmente a um
subjetivismo.
Em uma linha semelhante outros se limitam a afirmar que, se a própria consciência
não a recrimina, pode se praticar uma conduta ainda que tenha sido condenada pelo
Magistério: de aqui a insistência só na “autenticidade” da consciência e não na sua
formação, no empenho para que seja verdadeira.
Quando surja um conflito real entre a consciência própria e as disposições do
Magistério, será preciso distinguir cuidadosamente se se trata de uma lei divina,
contida no Novo Testamento, ou de uma lei eclesiástica ou civil, julgando em cada
caso o valor da dita lei ou disposição, com o fim de discernir a obrigação em
consciência que surge da mesma. Mas é totalmente inadmissível o suposto de que a
consciência esteja sempre por cima da norma; ao contrário, no caso de que se trate de
una lei justa ou de uma disposição autorizada, a consciência está obrigada a aceitar a
norma.
Por último, o fato de que a consciência no crie a norma moral, não se opõe a que
possua uma própria função criadora. Afirmar que o homem não cria a “norma ética” –
como não cria também as leis biológicas ou as da matéria – não significa afirmar que a
pessoa tenha de carecer de iniciativa, de empenho, de audácia e imaginação em descobrir
e realizar o bem moral. Certamente, a inteligência é capaz de descobrir engenhosamente
o bem a realizar só enquanto se deixa guiar pelos princípios semeados por Deus em seu
coração: mede a bondade ou malícia dos atos humanos só se se reviste da medida da lei
divina. Então deve empregar todo seu engenho em realiza-lo: “A consciência é algo vivo
e não estático. Caminha em direção a um conhecimento cada vez mais perfeito dos
valores”135.
134 De la “ética de situación” ha dicho el Magisterio que sus tesis son «contrarias a la verdad y a los
dictados de la sana razón, siguen las huellas del relativismo y del modernismo, y se apartan mucho de la
doctrina católica sostenida a través de los siglos»: Inst. Sto. Of., 2-II-1956, DS 3921.
135 JUAN PABLO II, Discurso, 12-V-1985, n. 5.
133
c) A consciência pode errar e se obscurecer, mas a sua luz nunca se extingue totalmente.
Trata-se de duas propriedades da consciência – que possa errar e que a sua luz seja
inextinguível – ligadas ao caráter limitado da inteligência humana e a sua natural
inclinação à verdade.
Por ser um juízo da inteligência, a consciência pode se equivocar, segundo o modo
em que o erro se dá na mente humana: culpável ou sem culpa. A consciência não é
infalível.
O Concílio Vaticano II afirmou que “a consciência se torna quase cega por causa
do hábito de pecar”136. Por isso, «não é suficiente dizer ao homem: “segue sempre tua
consciência”. É necessário acrescentar imediatamente e sempre: “pergunta-te se a tua
consciência diz a verdade ou algo falso, e busca incansavelmente conhecer a verdade”.
Se fosse omitida esta advertência necessária, o homem arriscaria converter a sua
consciência em uma força destruidora da própria humanidade, em vez do lugar santo
onde Deus lhe dá a conhecer qual é o seu verdadeiro bem»137.
A consciência é uma luz inextinguível, porque nos é dada com a mesma
natureza. Enquanto tiver uso da razão, todo homem discerne – em modo mais ou menos
claro – o bem do mal, em virtude do hábito dos primeiros princípios morais. Assim como
ninguém pode despojar-se da sua inteligência, não se pode eliminar esta luz.
d) A consciência está chamada a acolher livremente a verdade: mas não goza de arbítrio
sobre ela.
A dignidade da pessoa exige que se respeite sempre a liberdade com que deve buscar
a verdade: neste sentido, se fala reta e devidamente de liberdade das consciências.
Liberdade, portanto, para alcançar a verdade: nunca em relação a ela, única fonte real de
liberdade: «a verdade vos fará livres» (Jo 8,32).
A liberdade das consciências é exigência do respeito à liberdade da pessoa diante
da coação externa: nunca independência da verdade.
Portanto, cada homem tem o dever, e não só o direito, de buscar a verdade em
matéria religiosa para formar, com os meios apropriados, juízos de consciência retos e
verdadeiros138.
Aplicações práticas
1. Sempre há juízo de consciência. Ninguém está abandonado até tal ponto que
não saiba de nenhuma maneira se faz o bem ou o mal. Inclusive as pessoas mais
pervertidas conservam essa luz de Deus, e este é precisamente o ponto desde o que lhes
pode atrair de novo ao bem.
5. Divisões da consciência
a) Em relação com o ato, se diz antecedente a consciência que julga o que vai se realizar.
Seu ditado específico consiste em mandar ou proibir, em permitir ou aconselhar. Também poderia
falar-se de uma consciência “concomitante” ao ato, que se reduz à antecedente e a manifesta
durante o agir.
b) A consciência consequente julga o ato já realizado: pode aprová-lo, se é bom, ou
reprová-los como mal, e nesse caso produz uma dor ou inquietação, que se costuma
chamar remorso. De todos modos, a consciência é juízo, ato de conhecimento, e não se
confunde com os sentimentos que costumam acompanhá-lo.
A consciência moral funda-se no juízo da razão; não nos sentimentos de culpa. Tais
sentimentos costumar ser uma ajuda para reconhecer – levando a reconsiderar – o
verdadeiro valor moral das nossas ações.
135
5.3. Consciência certa, provável e duvidosa
Esta divisão se faz em razão da força com que o sujeito consente com o juízo da
consciência.
a) A consciência certa é a que se possui quando o juízo se dá sem temor a errar. A
certeza da consciência per se corresponde à consciência verdadeira; per accidens, cabe
uma consciência certa e equivocada, no caso da consciência invencível ou
inculpavelmente errônea.
b) A consciência provável e a duvidosa não possuem segurança em seu juízo, e são
acompanhadas do temor de errar, seja inclinando-se para uma das possibilidades
(provável), ou suspendendo um juízo definitivo (duvidosa).
Toda pessoa está obrigada a procurar com séria solicitude ter sempre uma consciência
verdadeira e certa.
A obrigação de formar a própria consciência exige pôr os meios necessários para que a
consciência seja sempre reta.
Fundamentalmente são: ciência devida e cultivo das virtudes.
Algumas pessoas têm afirmado que a consciência deve mover-se somente enquanto
a convençam os argumentos racionais, de modo que o Magistério só poderia ser aceito na
medida em que convencesse racionalmente.
Neste caso as afirmações do Magistério seriam somadas ao número das distintas
opiniões particulares, sem que tivessem a autoridade recebida de Deus.
Deve se advertir que Deus concedeu à Igreja o dom do Magistério para que os fiéis
– e os homens de boa vontade – pudessem alcançar mais facilmente e sem mescla de erro
as verdades por si acessíveis à razão.
Um juízo definitivo do Magistério ordinário, por mais que não seja infalível,
vincula a consciência.
O Evangelho, a Tradição e o Magistério representam uma ajuda à consciência cristã.
«Os cristãos, na formação da sua consciência, devem prestar diligente atenção à
doutrina sagrada e certa da Igreja, pois por vontade de Cristo a Igreja Católica é a
mestra da verdade, e a sua missão é expor e ensinar autenticamente a verdade, que é
Cristo, e ao mesmo tempo declarar e confirmar com a sua autoridade os princípios da
ordem moral que fluem da mesma natureza humana»142.
Houve também autores que consideraram a norma como um ideal ao que se deve
tender, e cujo mandato deve-se aplicar segundo distintos graus: seria a aplicação gradual
da lei.
Implicações da gradualidade da lei:
c) A “lei da gradualidade”
d) A objeção de consciência
«Julgai por vós mesmos se é justo diante de Deus que os obedeçamos a vós mais
que a Ele, porque nós não podemos deixar de dizer o que vimos e ouvimos» (At. 4, 19-
20).
Às vezes ocorrem discrepâncias entre as leis civis e as convicções da consciência
pessoal.
«Não se pode forçar a ninguém a agir contra a sua consciência. Nem mesmo pode-
se impedir que age de acordo com ela, principalmente em matéria religiosa»144.
143 CONSEJO PONTIFICIO PARA LA FAMILIA, Vademécum para los confesores sobre algunos
temas de moral conyugal, 9.
144 CONCILIO VATICANO II, Decl. Dignitatis humanae, 3.
139
Não se pode identificar, em princípio, objeção de consciência e desobediência civil.
O conflito entre consciência e lei divina não é possível. Unicamente pode surgir
quando se trata de leis humanas, que são “falíveis”.
A objeção de consciência se deve à tentativa de defender uns valores que a
disposição legal não contempla.
«As leis – quando não defendem direitos fundamentais relacionados com a vida
humana – não só não criam nenhuma obrigação de consciência, mas, ao contrário,
estabelecem uma grave e precisa obrigação de se opor a elas mediante a objeção de
consciência»145.
A consciência que procede de uma vontade reta obriga sempre, tanto se é verdadeira como
se é invencivelmente errônea.
Sempre que o homem põe os meios devidos para conhecer a vontade de Deus, o
juízo da consciência é vinculante.
O ditame da inteligência que nasce de uma vontade reta é o guia que Deus lhe deu
para realizar livre e responsavelmente o bem: por isso cada um «está obrigado a segui-la
fielmente em todas as suas ações, para alcançar a Deus que é o seu fim»146. Isto vale tanto
quando a consciência é verdadeira como quando em boa fé se equivoca.
A consciência inculpável ou invencivelmente errônea, por sua vez, obriga só “per accidens”
e enquanto se mantém em boa fé.
Observações práticas
A obrigatoriedade que possui a consciência inculpavelmente errônea,
implica um grave dever para os confessores e, em geral, para os que se ocupam
da formação das almas, de não impor como mandatos de Deus o que são apenas
bons conselhos ou piedosas costumes; ainda que saudavelmente recomendem
com zelo essas práticas, devem advertir ao mesmo tempo que omiti-las não
constitui pecado.
De forma semelhante, deve se evitar tratar como culpa grave, o que não o es,
insinuando para uma ação una gravidade que não possui. Santo Tomás afirma:
«Toda afirmação sobre o que é pecado mortal, se não se conhece expressamente
a sua verdade, resulta perigosa»149.
147 CONFERENCIA EPISCOPAL ESPAÑOLA, Instrucción pastoral La verdad os hará libres, 39.
148 S.Th., I-II, q. 19.
149 Quodl., IX, a. 15.
141
3. A consciência culpável ou vencivelmente errônea não pode ser seguida
Só pode ser regra de conduta a consciência certa: nunca é lícito agir com dúvida
prática e positiva de consciência.
Analisemos as duas partes desta proposição:
Para agir bem, deve-se ter certeza ou segurança de juízo – ao menos, a que nasce
do ter posto os meios ao nosso alcance para eliminar a dúvida –, pois está em jogo o
cumprimento da vontade divina: de outro modo, o sujeito se exporia imprudentemente a
fazer o contrário do que Deus quer e é o seu bem verdadeiro, o que constitui já um ato
contrário à reta razão e, portanto, pecaminoso.
Recordemos agora os principais tipos de certeza. Em concreto, por seu fundamento,
se costuma distinguir:
142
Certeza metafísica (fundada diretamente nos princípios do ser): por
exemplo, que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo;
Certeza física (fundada no conhecimento certo das leis da natureza): por
exemplo, que todos os homens morrem, que quem perdeu o uso da razão, não é
responsável dos seus atos etc.;
E certeza moral (fundada em um juízo de prudência e caracterizada pela
ausência de temor razoável de errar): é a que se tem, por exemplo, sobre a boa
vontade de um amigo e, em geral, a que se exige para as decisões ordinárias da
vida;
A estas se acrescenta a certeza de fé, que é sobrenatural, e se funda na
Revelação divina, na graça e na nossa correspondência a ela.
A consciência se diz certa quando julga o valor de um ato sem razoável temor de
errar.
Entretanto, não se requer o ter chegado a uma certeza absoluta, metafísica nem
física: basta uma certeza moral prática; a que ordinariamente alcança quem pôs a normal
diligência para conhecer o que deve fazer, manifestada pela ausência de um temor
razoável de errar.
A experiência mostra que não é difícil obter esta certeza, quando se pôs os meios
adequados. Por outro lado, a busca de uma certeza absoluta, que elimine toda dúvida
possível, não seria razoável e se opõe à prudência: se quiséssemos este tipo de certeza
em nossos atos, quase nunca agiríamos.
A certeza moral, portanto, não excluí em modo necessário uma certa dúvida: a
contingência do agir humano torna impossível eliminar toda ansiedade150. Exclui motivos
graves contrários, mas não toda possível incerteza.
1. Quando se trata de uma dúvida positiva, ou seja, quando se tem um fundado medo
de errar: por exemplo, a de quem não sabe com segurança se determinada afirmação é
caluniosa, porque se trata de uma conduta insólita na pessoa a quem é atribuída a dita
afirmação.
Se os motivos são fúteis, temos a dúvida negativa: por exemplo, a de quem sendo
habitualmente delicado com os demais, teme ter faltado com a caridade, porque
observa a outra pessoa triste. As dúvidas negativas se devem desprezar, porque são
inconsistentes e facilmente poderiam degenerar em escrúpulos, fazendo antipática a
prática do bem.
Não é lícito agir com dúvida positiva, tanto se esta é de direito como de fato.
2. De mesmo modo, quando se trata de uma dúvida prática, ou seja, que se refere
ao modo concreto de agir e não a controvérsias doutrinais, que constituem o que se chama
dúvida especulativa: por exemplo, a dúvida sobre se as leis de alfândenga são ou não e
sempre “mere poenales”; por outro lado, é prática a de quem não está certo se no seu dia
declarou à alfândega uma mercadoria pela qual não sabia se devia pagar taxas.
Para a “devida” certeza de consciência contam as dúvidas práticas, porque só estas
afetam ao juízo moral sobre a própria ação. Por outra parte, eliminar as dúvidas
especulativas – sobretudo tendo em conta que duvidam os mesmos teólogos e a Igreja
não se pronunciou – seria impossível para muitos.
Os critérios enunciados se referem, como é óbvio, às dúvidas sobre a licitude do ato,
mas o se deve fazer quando a dúvida diz respeito ao melhor modo de cumprir a
vontade de Deus?
Os manuais, em geral, não tratam deste tema, por sua tendência a se limitar à licitude
dos atos sem abordar a perfeição da pessoa. Entretanto, todos temos experiência deste
tipo de dúvidas e da importância de resolvê-las bem. É claro que, não estando em jogo
um perigo de pecar, o sujeito pode licitamente decidir no modo em que considere mais
oportuno. Mas a Revelação divina não se limitou a nos dizer o que é pecado: Cristo chama
a todos à santidade, e não só a evitar o mal. Ante tais dúvidas, pois, deve-se recorrer
igualmente aos meios tradicionais para eliminar as dúvidas: oração, pedido de conselho
etc.
Deve-se pôr, antes de tudo, os meios diretos; em caso de que não as dissipem se recorre
aos chamados princípios reflexos.
A ninguém é lícito realizar, com dúvidas práticas de consciência, uma ação que
implique a possibilidade de pecar. Quem se encontra em tal estado deve sair da dúvida,
eleger uma opção sem esse risco ou abster-se de agir.
Se, apesar disso, não se consegue eliminar a dúvida, deve-se recorrer aos chamados
meios ou princípios reflexos, que proporcionam uma certeza não sobre a verdade da
bondade moral do ato, mas sim sobre a retidão com que se age nesse estado.
É evidente que se pode agir quando se escolhe uma opção que exclua o perigo de
pecar: o que duvida se está obrigado a jejuar, pode sempre jejuar; o que não sabe qual
quantia deve reparar, pode fazê-lo pela soma maior possível.
144
2.1. Os meios diretos
Os meios diretos para eliminar a dúvida são a oração, o estudo e o pedido de conselhos.
Ainda que estes critérios podem ser classificados e divididos de muitos modos, por
razões de claridade, cabe resumi-los em dois:
a) Quando estão em jogo questões graves, deve-se escolher a parte mais segura, ou
seja, deve-se ter a máxima segurança possível de que a solução adotada seja correta.
152 Es importante no confundir nunca las reglas, las formulaciones generales sobre la conducta que
debe seguirse normalmente, válidas ut in pluribus, con las exigencias intrínsecas de la ley moral.
146
Quando se age sem retidão, o juízo da consciência tende a obscurecer-se de modo
progressivo: tanto a razão, como a fé, se nublam pelo pecado. O Magistério não duvida
em afirmar que «a consciência, pelo costume de pecar, chega paulatinamente quase a
cegar-se»153.
De todos modos, a vontade não possui um domínio absoluto sobre a consciência até
chegar a suprimi-la: por isso se diz que a cala, ou seja, luta por silenciá-la.
A consciência laxa é a que, por uma razão insuficiente, julga que os atos maus não são
pecado ou, pelo menos, diminui a sua gravidade.
É a situação daquelas pessoas que fazem o mal com pouco remorso de consciência (pessoas
sem escrúpulos, se costuma dizer popularmente). Julgam que os seus atos maus não são
pecaminosos ou que, pelo menos, não possuem a gravidade moral que realmente têm.
Existem graus extremos de consciência laxa: a chamada consciência cauterizada
que, pelo hábito constante de pecar, quase não adverte já a sua culpa. Ocorre em
c) Remédios
É importante, quando se descobre um estado de relaxamento de consciência, tratar
com benignidade à pessoa, ao mesmo tempo que se deve instruí-la com fortaleza: a alma
deve perceber a gravidade do mal ao mesmo tempo que entende a misericórdia de Deus
com o pecador, e adquire a convicção de que a correspondência à graça lhe fará vencer.
Deve-se pôr os meios para remover as causas que produziram a consciência laxa.
Se esta provinha, sobretudo, de uma defeituosa educação, se deverá prover a oportuna
formação doutrinal e prática; se dependeu de maus costumes ou companhias, deverá se
ajudar à pessoa a desembaraçar-se dessas situações.
Assim há pessoas que com frequência se torturam pensando, sem razões para isso,
se as suas confissões foram bem feitas ou não; ou se inquietam quando se esquecem
alguma prática de piedade, ou omitido por erro o cumprimento de uma lei eclesiástica
148
(jejum, cerimônias litúrgicas) etc. Este estado se transforma as vezes em verdadeiro peso
para a alma, que se vê dificultada para o trato com Deus; por isso, deve-se combater tais
ansiedades.
Os escrúpulos não devem ser confundidos com a delicadeza de consciência, que
leva a evitar até o mais leve perigo de ofender a Deus, mas não pelo afã de estar “seguro”
por ter agido bem, mas por amor156.
Deve-se ter prudência para julgar se uma pessoa é realmente escrupulosa: o fato de
que qualifique a si mesmo como tal, não significa simplesmente que o seja; às vezes, uma
alma pode se complicar em um ponto concreto ou durante uma temporada etc., por
diversas razões. Para determinar retamente, deve-se observar os sinais próprios do
escrúpulo, que acabamos de enumerar.
156 Ph. DELHAYE, La conciencia moral del cristiano, Herder, Barcelona 1963, pp. 150-169.
149
de não ser culpáveis que a dor de amor. «Com frequência os escrúpulos – diz Santo
Afonso – nascem do vício da soberba»157.
c) Remédios
Entende-se por tal a situação dos que não se decidem a agir por temor ao pecado,
tanto se realizam o ato como se o omitem. São diversos os graus e modos em que isto
pode dar-se: em geral costuma tratar-se de casos de consciência duvidosa, aos que se
acrescentam temores próprios do escrúpulo.
1. O que é a consciência?
3. Divisões da consciência.
151
Tema 8: As Virtudes Humanas e
Sobrenaturais
Introdução
As virtudes são disposições habituais e firmes de fazer o bem. Com todas as suas
forças, a pessoa virtuosa tende a fazer o bem, o busca e o exige em ações concretas. Umas
virtudes são adquiridas por meio das forças humanas, e podem ser morais ou intelectuais;
outras são infundidas por Deus em nossa alma junto com a Graça. A vida cristã não se
reduz ao cumprimento de umas normas éticas, mas consiste em viver segundo as virtudes
teologais e as virtudes morais. É importante saber qual é o objeto de cada uma delas e
como se relacionam entre si. Os dons do Espírito Santo aperfeiçoam as virtudes; a
perfeição da vida moral exige a docilidade ao Espírito Santo.
Também a este tema interessa, sobretudo, que o aluno assimile as noções
fundamentais: hábito, virtude, virtude intelectual, virtude moral, prudência, justiça,
fortaleza, temperança, humildade, penitência, virtude teologal, fé, esperança, caridade,
dom do Espírito Santo etc. De modo especial interessa compreender a conexão das
virtudes humanas entre si com a sobrenaturais.
152
Parte I: As Virtudes em Geral
1. Noção
As virtudes são hábitos operativos que inclinam as potências ao bem; ou, melhor, os hábitos
operativos bons.
O termo “virtude” (de virtus) indica uma força ou energia que orienta as potências a operar
numa forma adequada para a realização de seu fim.
São, pois, qualidades que aperfeiçoam as potências operativas do homem, e na raiz do
homem mesmo, dando-o uma maior habilidade e energia em ordem aos seus atos.
Provavelmente, a definição que fez renome é a de Santo Agostinho, comentada por Santo
Tomás, que sem embargo, se refere plena e propriamente, somente às virtudes sobrenaturais:
“A virtude é uma boa qualidade da alma, pela qual o homem vive retamente, nada usa mal, e que
Deus opera em nós sem nós”.
153
1.2 A virtude é um hábito, mas não um automatismo
Tudo isto tem importância para a educação e aquisição da virtude: evita confundi-la
com um simples condicionamento impulsivo ou um estoico domínio de si mesmo.
A palavra grega areté e a latina virtus tiveram sempre o sentido de força ou energia
que caracteriza a pessoa; e tal sentido tem sido aprofundado e incrementado na tradição
cristã.
A confusão entre “hábitos” e “costumes”, difundida na linguagem e na cultura, tem
influenciado o descrédito da noção de virtude, entendida como submissão a umas regras
mais ou menos formalistas e mecânicas.
Toda virtude é um crescimento na liberdade, e depende do desenvolvimento das
forças da alma através não somente do empenho ascético pessoal, senão da oração e dos
sacramentos; a aceitação das provas, e das mesmas derrotas, frequentemente mais
importante que as vitorias; enfim, do afeto e amor que se recebe dos demais e, sobretudo,
do Amor e do perdão de Deus.
O vício, por sua vez, sendo um hábito, tem em maior medida a estrutura do
costume, porque a liberdade do vicioso – pela desordem causada pelo pecado – não
consegue colocar a seu serviço as paixões, sim que está escravizado por elas: na pessoa
“dominada” pelo vício, sua força para dirigir-se ao bem desordenadamente amado
procede, não tanto do autodomínio quanto da mobilização do espírito ao serviço da
paixão.
2. O sujeito da virtude
O sujeito da virtude é a pessoa, através das potências pelas quais opera livremente, quer dizer
a inteligência e a vontade, com o concurso das paixões.
Todo hábito pertence ao sujeito, que é quem atua; as virtudes são qualidades da
pessoa, pelas quais se dispõe a operar bem: propriamente, não é justa a vontade, mas sim
154
o homem, que mobiliza todas suas forças, para operar de modo justo. Sem dúvida, as
virtudes afetam o sujeito em suas potências, sempre de modo conjunto.
Nas potências sensitivas e corporais as virtudes se encontram participativamente,
enquanto o apetite sensível do homem é racional por participação. Estão como
disposições para obedecer às potências espirituais: e é neste sentido que se diz que a
temperança está no apetite concupiscível. Tais disposições são virtuosas porque acentuam
o senhorio da pessoa sobre seus atos, e a ajudam a refletir também externamente.
As virtudes humanas ou adquiridas são as que dispõe o homem ao realizar o bem próprio de
sua natureza.
São chamadas humanas não somente porque inclinam ao fim próprio da natureza
humana, senão porque estão incoadamente depositadas pelo Criador na mesma natureza
de todo o homem – a modo de uma semente: semina virtutum – e cada indivíduo as
desenvolve com seus atos; por este motivo se chamam também adquiridas.
As virtudes adquiridas se dividem em:
Intelectuais, que aperfeiçoam o homem enquanto ao conhecimento da
verdade, seja especulativa (entendimento, sabedoria, ciência), seja prática
(sindéresis, prudência e artes);
Morais, que aperfeiçoam o homem para agir retamente com respeito à
eleição do bem (justiça, fortaleza e temperança)
As virtudes sobrenaturais e dons são os hábitos que Deus gratuitamente dá junto com a vida da
graça e que capacitam ao homem para agir em ordem ao seu fim sobrenatural.
Assim como na natureza humana está o princípio de todas as virtudes humanas que inclinam
o homem a agir como tal, assim da graça fluem os hábitos sobrenaturais, princípios de um modo
de entender e agir na Terra conforme a nova condição de filhos de Deus. São:
As virtudes teologais (fé, esperança e caridade),
As chamadas pela escolástica morais infusas, e
Os dons do Espírito Santo.
A distinção entre virtudes adquiridas e sobrenaturais deve-se entendê-la bem: não
se trata de forças de dois organismos autônomos e sobrepostos – natureza e graça –; sim
155
que faz referência aos aspectos entrelaçados da energia operativa que a pessoa possui por
natureza e graça.
Todo o mistério das relações entre ambas incide aqui: quer dizer, o mistério da ação
do Espírito Santo e da correspondência da criatura no desenvolvimento da vida cristã.
Nenhuma virtude moral é perfeita – no homem histórico – se não está sanada e
aperfeiçoada pela graça. A caridade é a mãe e a forma de todas as virtudes, também
humanas, precisamente porque a graça sana a natureza e recria o homem em filho de
Deus.
156
Parte II: A Classificação ou Esquema Geral das Virtudes
157
não perde de vista a novidade irredutível do Evangelho em seu contraste com a moral do
“mundo”, porém apresenta a fé apoiando-se solidamente no que a razão humana havia
alcançado.
Para Tomás de Aquino, a virtude é um dos princípios interiores pelos quais o homem
se move até Deus e alcança a própria perfeição. A moral se estrutura em torno a distintas
virtudes, analisando junto a elas os dons e frutos do Espírito Santo, os preceitos da lei e
as bem-aventuranças correspondentes. Serve de núcleo aglutinante as virtudes centrais da
tradição cristã (fé, esperança e caridade) e da tradição clássica (prudência, justiça,
fortaleza e temperança).
A sua originalidade maior radica na insistência sobre o fato de que as virtudes
constituem um organismo vivo, presidido pela caridade, forma das demais. O seu
esquema oferece, não obstante, alguma dificuldade para enquadrar duas virtudes
fundamentais no cristianismo e em sua própria visão, e hoje envolvida em uma
obscuridade semelhante a que teve no paganismo: a humildade e a penitência.
A propósito da relação entre lei e virtudes, para Santo Tomás, a virtudes constituem
o desenvolvimento e a progressiva atualização do dinamismo da Lex indita (a lei natural
e o elemento interno da Nova lei: A graça):
As virtudes adquiridas ou humanas desenvolvem a sindéresis e os semina
virtutum, pelos quais a lei eterna se encontra participada na criatura racional;
As virtudes gratuitas ou infusas e os dons do Espírito Santo desenvolvem a
participação na vida divina, que a graça criada instaura de modo imanente ao
homem.
A virtude é uma noção que, desvalorizada por algumas das éticas dos últimos
séculos, tende a recuperar hoje sua secular importância. Basta recordar a corrente dos
pensadores anglo-saxões que está advogando pelo retorno a uma ética da virtude
(MacIntyre), e que considera que tal retorno é o único modo de recuperar o fator subjetivo
e estimulante da conduta, que a ética deontológica ou centrada no dever havia
obscurecido.
Trata-se de uma reação muito significativa: embora não cabe ignorar a importância
básica da ideia do dever. Quando se perde – como na ética moderna – a relação entre
dever e obrigação, e natureza e fim do homem, a mesma noção de dever termina por
esvaziar-se de sentido.
A sugestão fundamental que se desprende da análise dos ditos autores é a urgência
de recuperar a consciência da riqueza de energias com as quais conta a pessoa ao serviço
de suas ações concretas. A redução da bondade moral a somente uma atitude básica de
obediência as leis (a ideia de obrigação, de imperativo categórico) tem se demonstrado
empobrecedora.
158
Parte III: As Virtudes Humanas ou Adquiridas e suas
Características
1. As Virtudes Intelectuais
São as que aperfeiçoam o homem no conhecimento da verdade. A saber: hábitos do
primeiros princípios especulativos e práticos, sabedoria, ciência, prudência e artes.
159
O hábito dos primeiros princípios especulativos ou entendimento (nous,
intellectus). Graças a ele a razão percebe de modo imediato as verdades evidentes
por si mesmas, sobre as que se assentam todos os demais conhecimentos.
A sabedoria (sophia, sapientia): é a virtude que aperfeiçoa a razão para
conhecer e contemplar a verdade sobre as causas últimas de todas as coisas; a
verdade que responde aos problemas mais profundos que a pessoa, enquanto tal,
se coloca. É, em último termo, o conhecimento de Deus como causa primeira e
fim último de toda a realidade.
A ciência (episteme, scientia): é o conhecimento da verdade sobre os
diversos campos da realidade observada.
Afirma-se que são hábitos naturais, porque sempre que queremos conhecer a verdade e o
bem, os primeiros princípios do ser e da bondade, esses nos aparecem como auto evidentes (ao
menos, no modo pré-reflexivo e sem explícita formulação).
Porém são também virtudes, enquanto esse conhecimento afirma-se e torna-se mais ou
menos lúcido por obra do sujeito, a quem lhe cabe também o obscurecer.
São uma luz intelectual, uma perfeição da inteligência, que facilita julgar o que
experimentamos pelos sentidos e de nossos raciocínios, distinguindo quando são verdadeiros ou
falsos. A função dos hábitos dos primeiros princípios é muito importante na vida humana: guiam
todo nosso saber e com sua luz não nos afastamos da verdade e do bem.
São particularmente perigosas as doutrinas que chegam à negação dos mesmos
primeiros princípios, pois seu erro já não é removível por verdades mais evidentes.
Especial importância para a vida moral tem a sindéresis.
160
A importância da sindéresis radica em que constitui no começo e, por sua
vez, o guia natural de toda a vida moral da pessoa.
É um hábito que aperfeiçoa à razão prática. Graças a ele, a razão, de modo
natural, assinala e estipula o bem e rechaça o mal. Por isso, o homem não é
indiferente ante o bem e o mal, mas experimenta de modo natural que deve amar
o bem e evitar o mal.
A sindéresis pode julgar e mandar o bem porque conhece de modo natural e
habitual os fins virtuosos que a pessoa deve perseguir e, portanto, os primeiros
princípios da lei moral.
É um hábito natural da nossa mente. Isto quer dizer que o homem é dotado
deste hábito naturalmente, de modo imediato, pelo Criador.
Uma consequência do anterior é que a sindéresis é uma luz inextinguível:
permanece sempre no homem, ainda que este a obscurece à força de não seguir
suas indicações. Neste sentido, a sindéresis representa um ponto de esperança,
porque sempre está aí para fazer ouvir sua voz a quem quer encaminhar sua vida
moral.
1.2. Sabedoria
Este é o hábito que leva a conhecer as causas últimas do universo visível, isto é, a conhecer a
Deus como causa Primeira de todas as criaturas, e a estas em relação com Ele.
Leva a ver que o universo inteiro tem como fim a Deus: “É próprio do sábio, ver a
Deus como fim das coisas criadas, e buscá-lo como tal”158. O verdadeiro sábio não só
conhece que o universo tem como fim a Deus, senão que o busca em todas suas ações. A
sabedoria é, neste sentido, virtude moral, e por isso, para poder alcançá-la, se requer que
a vontade tenha boas disposições morais. A Bíblia tem um livro dedicado à sabedoria, e
são contínuos seus elogios a esta virtude, que nasce da humildade e do amor a Deus, e
nos faz poderosos para servir.
1.3. Ciência
A virtude da ciência aperfeiçoa o entendimento para conhecer as coisas em razão de suas
causas particulares.
158 S. BERNARDO, Sermo III de Pentec., n. 4, Obras de San Bernardo, BAC, Madrid, p. 575.
161
1.4. A Prudência
A prudência aperfeiçoa a inteligência para o conhecimento da dimensão moral dos atos
humanos, ou seja, em sua ordem ao fim último.
Dirige o agir moral do homem; por isso, se costuma chamar recta ratio agibilium: reto
conhecimento do que se deve obrar moralmente (agere, no sentido aristotélico e clássico da
palavra).
Ensina os caminhos (os meios) até o fim último da vida e o modo operativo e imediato,
agudizando a mente da pessoa para averiguar em todo o momento qual seja a vontade de Deus.
Por isso, é virtude moral: aperfeiçoa o entendimento para orientar bem à vontade.
A prudência é uma virtude fundamental no homem, pois o guia, iluminando e
impulsionando as boas obras, até sua plena realização como pessoa e filho de Deus. A prudência
exige ponderação da realidade e das exigências morais universais nas circunstâncias concretas,
e, portanto, retidão de critério, docilidade e impulso.
1.5. Artes
São os hábitos que aperfeiçoam o entendimento para que ordene o fazer humano (facere)
segundo seus fins próximos.
A arte é a recta ratio factibilium, a reta razão do fazer ou produzir (facere, no sentido
aristotélico e clássico da palavra).
As artes são múltiplas, tantas como variedades do humano querer. Sem dúvida, a bondade
moral do artista, e em algum modo da arte mesma, procede de sua ordenabilidade e efetiva
ordenação ao fim último.
Hoje em dia a palavra arte se reserva melhor para as belas artes. Para as demais artes, se
costuma utilizar o nome de técnicas ou habilidades profissionais etc.
2. As virtudes morais
São as que aperfeiçoam o homem na prática do bem moral próprio de sua natureza humana.
As virtudes morais, enquanto dispõem ao bem moral, não podem ser usadas para
o mal, pelo que convém estritamente a clássica definição de Santo Agostinho: “A virtude
é uma boa qualidade do espírito, pela qual se vive retamente, e de nada usa mal”159.
Como se distinguem por seu objeto, o número das virtudes morais se multiplica segundo as
distintas classes de boas obras necessárias ou convenientes ao homem, quer dizer, segundo os
bens que integram sua perfeição.
Não convém, contudo, tomar de maneira rígida este esquema e parece útil destacar
junto as quatro virtudes cardeais, algumas outras virtudes fundamentais na tradição
cristã, como a humildade, o amor de amizade (que é assumido e aperfeiçoado pela
caridade), a laboriosidade e a penitência. Serão descritas brevemente na
continuação, salvo a prudência (vista já com as virtudes intelectuais).
2.1. A humildade
É a virtude que modera o afã da própria excelência e leva a saber quem somos, facilitando-
nos o conhecimento simultaneamente de nossa miséria e de nossa grandeza.
163
dizia S. Agostinho, é a ordo amoris, e as demais virtudes são um desenvolvimento seu161
.
São virtudes que acompanham o amor de amizade: a compreensão, a capacidade de
desculpar, a abertura aos demais, o saber escutar, a delicadeza no trato, a disponibilidade
etc. E, convém colocá-lo particularmente de relevo hoje – precisamente porque muitos
não compreendem – a castidade, que não é simples continência, senão uma das condições
do amor: “a energia espiritual que sabe defender o amor dos perigos do egoísmo e da
agressividade, e promove-lo a sua plena realização”162.
Não se restringe, pois, à mera justiça comutativa – que rege o intercâmbio entre
iguais – senão que leva a orientar toda a vida retamente ao bem comum e, portanto, a
Deus163. Por isso, disse Santo Tomás que “a justiça tende a que o homem, na medida de
suas forças, dê tudo a Deus, submetendo-lhe totalmente sua alma”164.
Na Sagrada Escritura o justo é aquele que tem sua vontade totalmente posta em
Deus. “Esta é a regra da vida que a justiça prescreve à alma enamorada: que sirva de boa
vontade e gostosamente a Deus de seus amores, que é o Sumo Bem, Suma Sabedoria e
Suma Paz; e governe todas as demais coisas, umas como sujeitas a si e outras como
prevendo que algum dia estarão. Está regra de vida a confirma, como dissemos, o
testemunho dos dois testamentos”165. O justo por excelência é Deus: “Deus fiel, e justo e
reto”166.
Assim entendida a justiça, denomina-se justiça geral, porque abarca a integridade
do trato com Deus e com os demais, e compreende:
A religião, que nos leva a adorar a Deus e a dar-lhe o culto devido;
A piedade, pela qual damos honra e assistência aos pais e à pátria;
A solidariedade, que nos leva a reconhecer em todos os homens – e nos
grupos humanos – sua condição de pessoas, com sua singular e irrepetível
dignidade;
A justiça particular (comutativa ou distributiva), pela qual damos o que é
seu a cada homem.
2.4. A fortaleza
É a virtude que nos vigoriza para praticar o bem, apesar das dificuldades, com constância e
paciência.
2.5. A Temperança
É a virtude que modera o amor aos bens da terra e ajuda a por o coração no céu, donde
“estão os verdadeiros bens” e donde “não roubam os ladrões e nem rói a traça” (Luc. 12,33).
167 SAN GREGORIO MAGNO, Moralia in Job, VII, c. 21: ML 75, 778.
168 JUAN PABLO II, Audiencia General, 15-XI-1978.
169 SAN AGUSTÍN, De patientia, 2.
165
Promete-nos, disse Santo Agostinho, “a pureza e incorruptibilidade do amor que nos
une a Deus” 170. A temperança é medida do agir e do amor das criaturas, quer dizer
“senhorio”.
O homem temperante sabe prescindir de quanto entrava seu amor a Deus e aos
demais, sacrificando-se com prazer, “porque o viver assim – com sacrifício – se livra de
muitas escravidões e alcança, no íntimo de seu coração, saborear todo o amor de Deus”171.
Os Padres descobriram na temperança, virtude aplaudida pelos pagãos, um dos
pilares da vida cristã:
“O homem moderado encontra nos dois testamentos uma regra de vida, que lhe
ajuda a comportar-se ante a multidão de bens caducos e passageiros, que lhe envolvem
e ameaçam a cegá-lo. É o seguinte: não amar nenhum desses bens nem desejá-los por
si mesmos, senão servir-se deles unicamente segundo as necessidades e deveres da
vida, com a moderação de quem os usa, e não de quem lhes dá valor demasiado e se
vê arrastado por eles”172.
2.6. A Laboriosidade
É a virtude que “leva a colocar o empenho em fazer bom uso dos talentos que cada um
recebeu de Deus (…). O que é laborioso aproveita o tempo, que não é somente ouro, é gloria de
Deus! Faz o que deve e está no que faz, não por rotina nem por ocupar as horas, senão como
fruto de uma reflexão atenta e ponderada. Por isso é diligente. O uso normal desta palavra –
diligente – nos evoca a sua origem latina. Diligente vem do verbo diligo, que é amar”173.
Trata-se de uma virtude humana central, embora pouco analisada nos tratados de
moral dos últimos séculos, na medida mesma em que o trabalho humano não era sempre
apreciado em sua realidade santificadora174.
Sem embargo, de acordo com a experiência e o ensinamento da Sagrada Escritura,
a laboriosidade é uma virtude fundamental: “vós sabeis bem que deveis imitar-nos,
porque entre vós não fomos desordenados, nem comemos de graça o pão de ninguém,
senão trabalhamos dia e noite com cansaço e fadiga, para não ser pesado a ninguém (…);
2.7. A penitência
É a virtude que impulsiona a doer-se dos próprios pecados, principalmente enquanto ofensa
a Deus, e a fazer quanto seja possível para removê-los e voltar à amizade divina.
Virtude, sem dúvida, muito necessária ao homem que, de outra maneira, diante as
repetidas experiências de seus fracassos morais, podia desesperar.
A penitência, como o perdão, era quase desconhecida na cultura pré-cristã. O mundo
antigo tendia a considerar que a reação apropriada para os que infringem as regras da
comunidade é a punição.
O ideal do amor pelos pecadores, que dá sentido ao perdão e leva ao arrependimento
e à penitência, é uma ideia bíblica, sobretudo do Novo Testamento, que supõe um
desenvolvimento ulterior e mais rico da noção de justiça – cujas exigências o perdão não
nega, senão que afirma, num modo superior – por obra da caridade176.
Porém a virtude da penitência supõe também a percepção – com a radical
profundidade e novidade – da espiritualidade do homem e sua relação com Deus; em
virtude do amor paternal de Deus, o homem pode cancelar mediante a próprio dor,
As virtudes morais estão determinadas por seu fim próximo e, em certo modo, são
independentes. Como sua orientação é um fim sempre geral, e os atos em troca são sempre
concretos, é preciso que a prudência determine sempre a reta medida de seu exercício
em cada caso particular.
Uma vida verdadeiramente virtuosa supõe a aquisição de todas as virtudes. Sem
dúvida, a falta de alguma virtude em particular não priva de seu caráter moral as restantes.
Inclusive num mesmo homem as virtudes podem ter diversos graus ao longo de
distintas épocas de sua vida, até o ponto que é possível viver as virtudes de um modo
ordinário, ou de maneira extraordinária e heroicamente; desde uma vivência incipiente,
até crescer progressivamente. Podem diminuir, inclusive podem se perder. Cada pecado
debilita a virtude, e a repetição frequente de pecados termina extinguindo plenamente as
virtudes adquiridas.
Se a diversidade de atos com que o homem se dirige a seu fim último implica a
multiplicidade e distinção entre as virtudes, a unidade da pessoa e o fim da vida humana
exige sua conexão.
Esta conexão entre as virtudes não se opõe a que possam existir independentes
umas das outras, como imperfeitas: ou seja, como hábitos perfeitamente arraigados e
estáveis.
Devem possuir as virtudes em graus diversos: nascem do crescente conhecimento
e amor do bem de cada virtude e comportam um exercício de atos adequados a ele, e uma
pessoa pode exercitar-se mais em uns do que em outros atos de virtude, incluindo estar
naturalmente melhor disposto a uns do que a outros.
Ocorre uma tendencial inclinação a possui-las em grau semelhante, pois cada
virtude, em último termo, diz ordenada a Deus, e, na medida em que amamos mais, todas
se enraízam progressivamente. Daí que quem se exercita em uma, tende a crescer nas
demais.
A conexão entre as virtudes, manifestação e exigência da unidade da pessoa e de
seu fim, se desenvolve no que é chamado, com fórmula sugestiva e de profunda raiz
metafísica, a unidade de vida. Esta unidade alcança um novo e mais alto grau no
cristianismo, pela graça que faz o homem participante da mesma vida divina, donde a
unidade se dá em única e irrepetível plenitude.
168
3.2. Relação entre as virtudes naturais ou adquiridas e as gratuitas ou infusas
As virtudes adquiridas condicionam o exercício das infusas, porque a graça supõe a
natureza.
Nenhuma virtude é perfeita sem a graça, porque, desprovido dela, o homem caído
não alcança manter a reta ordem habitual de sua vontade. Por sua vez, as virtudes
sobrenaturais, recebidas com a graça, facilitam a aquisição e crescimento das virtudes
naturais. Por isso, crescer na graça é o modo mais eficaz para crescer também em virtudes
humanas.
Considera-se a graça como uma elevação e uma divinização da alma. A graça
santificante concede ao homem uma nova vida em Cristo; as virtudes são como as
faculdades vitais próprias desta nova vida sobrenatural.
As diferenças entre as virtudes adquiridas e as infusas são as seguintes:
1. Ao falar das virtudes infusas, a palavra “virtude” não significa uma disposição
moral, no sentido de uma orientação pessoal. Esta disposição não existe, por
exemplo nos bebes sem uso da razão que recebem o batismo, juntamente com a
graça santificante, as virtudes infusas. Porém, para seu normal desenvolvimento,
são necessários os meios naturais; Ex.: as vivências da fé requerem a transmissão
das correspondentes verdades religiosas, mediante a instrução humana.
2. O termo “hábito” tem um sentido diferente ao falar das virtudes adquiridas e ao
referir-se às sobrenaturais. As adquiridas seguem uma facilidade e satisfação no
agir virtuoso; as infusas fazem referência à capacidade de realizar atos morais
sobrenaturais.
3. A virtude natural é adquirida pelo constante exercício moral. A virtude
sobrenatural é obra imediata de Deus; o homem com suas boas obras coopera no
desenvolvimento das virtudes infusas, como causa dispositiva e meritória. As
virtudes naturais aumentam com o exercício das mesmas; as sobrenaturais só
podem ser acrescentadas por Deus.
4. A condição sobrenatural das virtudes infusas não se funda nos motivos morais
de seus atos; mas sim na elevação entitativa das faculdades da alma.
169
3.3. O justo meio da virtude
Se a virtude dispõe o homem para alcançar seu fim, este há de ser o critério para
medi-la. A expressão in medio virtus significa precisamente isto: exata adequação à
medida que dita a razão, na ordem do fim.
“É um equívoco pensar que as expressões termo médio ou justo meio, como algo
característico das virtudes morais, significam mediocridade: algo assim como a
metade do que é possível realizar. Este meio entre o excesso e o defeito é um cume,
um ponto alto: o melhor que a prudência indica. Por outra parte, para as virtudes
teologais não se admitem equilíbrios: não se podem crer, esperar ou amar
demasiado”177.
178 Cf. G. ABBÀ, Felicidad, vida buena y virtud, Eunsa, Barcelona 1992, pp. 226ss.
179 Cf. por exemplo o célebre livro de A. MAcINTYRE, Tras la virtud, Barcelona 1987.
171
A análise das virtudes na ordem da natureza, antes realizado, facilita entender agora
como se entrelaçam virtudes naturais e sobrenaturais.
Toda virtude está cheia de conhecimento e amor de um bem humano – uma
dimensão integrante da perfeição da pessoa – que adquire sua plenitude de sentido no
conhecimento e amor de Deus.
A vida da graça prolonga esse conhecimento e esse amor mais além das forças
naturais do homem: as virtudes teologais levam a pessoa ao conhecimento e ao amor de
Deus em sua intimidade, participando daquele conhecimento e amor com que Ele mesmo
se conhece e ama, e se desdobra na caridade para com o próximo, que se sustenta no
esquecimento e no dom de si, na vida de infância espiritual e abandono.
Esse amor sana intrinsecamente, aperfeiçoa e prolonga todos os demais amores.
Toda a vida do homem – todo seu agir no tempo e no mundo, segundo o modo próprio
das virtudes naturais – requer ser elevado à dimensão de um filho de Deus.
Em suma, as virtudes são elementos – sempre unidos – de uma vida
2. As virtudes teologais
Junto com a graça santificante são infundidas no homem as virtudes teologais – fé,
esperança e caridade – pelas quais ele une-se a Deus em sua vida íntima.
Toda a vida cristã deve ser sustentada por estas três virtudes, que constituem como sua
essência e fundamento.
2.1. A fé
A fé é a “virtude teologal pela qual cremos em Deus e em tudo o que Ele nos revelou, que a
Santa Igreja nos propõe, porque Ele é a verdade mesma” (CEC, 1418).
173
O Catecismo ensina que “pela fé o homem se entrega inteira e livremente a Deus”
(DV). Por isso, o crente se esforça por conhecer e fazer a vontade de Deus. “O justo
viverá pela fé” (Rom. 1, 17). A fé viva “atua pela caridade” (Gal. 5, 6) (CEC, 1814).
Interessa sublinhar que a fé não compete com a razão: não são duas luzes em
contraste, e não há duas verdades. Pelo contrário, a fé fortifica a luz da razão, ratifica-a
quando é necessário, e a ultrapassa na linha da perfeição do homem como filho de Deus.
Faz assim os crentes capazes de um juízo moral que, aberto aos descobrimentos da ciência
e às orientações culturais do próprio tempo, saibam iluminá-los com as riquezas da
Sabedoria Divina e o sincero amor e respeito por cada pessoa.
2.2. A esperança
A esperança sobrenatural é a virtude infusa pela qual, apoiados no auxílio da onipotência
divina, confiamos viver como filhos de Deus e alcançar a bem-aventurança182.
A virtude teologal da esperança responde “ao desejo de felicidade posto por Deus
no coração de todo homem; assume as esperanças que inspiram às atividades dos homens,
purifica-as para ordená-las ao Reino dos céus; protege do desalento; sustenta em todo
desfalecimento, dilata o coração na espera da bem-aventurança eterna. O impulso da
esperança preserva do egoísmo e conduz à vitória da caridade” (CEC, 1818).
O objeto primordial da esperança é a bem-aventurança, mas indissociavelmente
unida à confiança de aprender a viver como filhos de Deus, pois só vivendo como tal,
amando como tal, caminhamos em união com Ele até à eterna bem-aventurança, segundo
a sugestiva expressão de Agostinho: «os que amam, caminham, pois em direção a Deus
não se corre com passos, mas sim com o afeto »183. Sem esta esperança das coisas futuras,
deixam de manter-se em pé as mesmas coisas presentes.
A esperança cristã dirige-se também ao logro dos meios necessários, não somente
para nossa própria santidade, mas para difundir e ajudar nosso próximo: tantos problemas
dos homens que devemos ajudar a resolver. Empurra o Cristianismo a não ser tímido na
ação social e em sua tarefa apostólica, e fazer com atrevimento grandes obras por amor
de Deus e esperar de sua ajuda os meios oportunos, inclusive quando não há nenhuma
garantia prévia de alcançá-los. Pede-se ao crente uma esperança muito concreta e realista,
que chega até estes aspectos e lhe abra à esperança dos bens espirituais e eternos.
174
2.3. 2.3. A caridade
A caridade, diz Santo Tomás, é certo amor de amizade entre o homem e Deus184, que
constitui a fonte e o motor de toda a vida cristã185.
Por isso temos vindo tratando, inevitavelmente, desta virtude ao longo de todo o
curso: para explicar qual seja o sentido da vida humana, o dinamismo da lei divina, o
princípio da perfeição e plenitude dos atos humanos etc. Aqui queremos somente
sublinhar alguns pontos.
a) Em primeiro lugar, que sempre os cristãos a consideraram como a mais
importante e portentosa das virtudes.
b) Em segundo lugar, é interessante a noção de amor de amizade para explicar
a natureza de caridade. Santo Tomás, para definir a caridade serve-se da
noção aristotélica de amor de amizade, como o amor característico do ser
de natureza espiritual, fundado na capacidade de tal natureza –
exclusivamente sua – de abrir-se aos outros e acolhê-los como são,
permitindo amá-los por si mesmos. É próprio do amor de amizade superar
o amor egoísta e estático, cumprindo a “maravilha de que cada um dos
sujeitos em comunhão reconhece o outro como digno de ser amado por ele
mesmo e quer eficazmente seu bem”, mas sem auto anular-se, porque com
isso traria danos ao amigo, para quem nosso bem é algo propriamente seu186.
c) O Catecismo acolheu explicitamente a doutrina da caridade como princípio
e forma de todas as virtudes: “o exercício de todas as virtudes está
animado e inspirado pela caridade. Esta é o ‘vínculo da perfeição’ (Col. 3,
14); é a forma das virtudes; articula-as e as ordena entre si, é fonte e término
da prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa faculdade humana de
amar. E eleva a perfeição sobrenatural do amor divino (CEC, 1827).
d) Nós não construímos a caridade; ela nos invade com a graça de Deus: porque
Ele nos amou primeiro (cf. 1 Jo. 4, 10). Convém que nos encharquemos bem desta
verdade bela: se podemos amar a Deus, é porque fomos amados por Ele.
Um dom divino que dá frutos divinos, não somente de união com o Amor – que leva
a não querer mais do que Ele quer, como quer e quando quer – mas também de amor ao
próximo. Dilata o coração para amar com um amor universal.
De fato, a existência das virtudes morais infusas, ou elevação das virtudes morais
pela graça é uma doutrina comum entre os Padres e teólogos.
Como argumento de razão em prol de sua existência, costuma-se utilizar a
analogia entre a ordem natural e sobrenatural, pois a graça não corrompe, mas sim
aperfeiçoa a natureza. Na ordem natural, para agir reta, pronta e deliberadamente, o
homem necessita das virtudes morais, quer dizer, um crescimento no conhecimento e
no amor dos vários bens; paralelamente, na ordem sobrenatural, para realizar atos
conforme a sua nova condição de filho de Deus, ordená-los ao fim sobrenatural,
precisa desse novo e sobrenatural conhecimento conhecimento e amor de cada bem,
que constitui o conteúdo das virtudes morais infusas187.
Mover-se por amor de caridade excede de tal maneira às forças do homem que, ainda
contando com as virtudes teologais e morais infusas, necessita, para viver como filho de
Deus, da guia contínua do Espírito Santo, que ilustra sua inteligência e sustenta sua
vontade. Os dons o dispõe a seguir essa guia, segundo ensina a Escritura: “Todos os que
seguem a guia do Espírito Santo, esses sãos os filhos de Deus” (Rom. 18, 14).
176
“Em ordem ao seu fim último sobrenatural, ao qual a razão move na medida em
que de algum modo imperfeito e conformado com as virtudes teologais, não basta seu
impulso, mas sim se acrescenta o instinto e a moção do Espírito Santo (…). Por isso,
para conseguir tal fim é necessário ao homem possuir os dons do Espírito Santo189.
Não está nas mãos da criatura nem a aquisição nem o aumento das virtudes infusas
e dons que, por ser sobrenaturais, excedem a sua potência operativa. Somente nascem e
crescem pelo dom gratuito da graça e pelos meios que Deus dispôs para seu aumento: a
oração, a recepção frutuosa dos sacramentos, as obras boas que o homem – em graça
– realiza e lhe merecem seu aumento de graça e por conseguinte das virtudes.
c) Os hábitos sobrenaturais, embora não aumentam, tampouco diminuem por nossos atos,
porém se perdem pelo pecado mortal.
d) Para o desenvolvimento das virtudes infusas e dos dons, importa particularmente cultivar
a humildade e a docilidade.
O fato de que os hábitos infusos cresçam com o aumento da graça implica que, desde
o ponto de vista da cooperação humana, as disposições fundamentais a cultivar sejam
181