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O CONCEITO DE REVELAÇÃO: UM COTEJO ENTRE A CONSTITUIÇÃO

DOGMÁTICA DEI VERBUM E A TEOLOGIA PROTESTANTE DE PAUL


TILLICH*
EL CONCEPTO DE LA REVELACIÓN: UNO COTEJO ENTRE LA
CONSTITUICIÓN DOGMATICA DEI VERBUM Y LA TEOLOGÍA PROSTESTANTE DE
PAUL TILLICH

Gustavo Orlandin Ferreira1


Pe. Ronny Santos Abreu2

RESUMO
Neste artigo, pretendemos apresentar, a partir de pesquisa bibliográfica e estudo da
constituição Dogmática Dei Verbum e da obra teológica do pensador alemão Paul Tillich, um
cotejo sobre o conceito de Revelação em ambas obras. Abordaremos, de maneira objetiva, os
principais pontos referentes aos métodos utilizados e dos principais pontos de baliza para as
teorias utilizadas. Não se pretende, aqui, fazer uma grande explanação, muito menos uma
avaliação dos sistemas de pensamentos seguidos tanto pelo Concílio Vaticano II quanto pelo
autor estudado, mas fazer, de maneira abrangente e simples, a apresentação dos pontos que
dão base a tais conceitos, como as fontes da Revelação, o meio com o qual Deus se revela, e
outros aspectos específicos de cada obra.

Palavras-chave: Dei Verbum; Revelação; Paul Tillich.

RESUMEN
En este artículo, pretendemos presentar, a partir de la investigación bibliográfica y el estudio
de la Constitución Dogmática Dei Verbum y la obra teológica del pensador alemán Paul
Tillich, una comparación sobre el concepto de Revelación en ambas obras. Abordaremos, de
forma objetiva, los puntos principales referentes a los métodos utilizados y los principales
objetivos de las teorías empleadas. No se pretende, aquí, hacer una gran explicación y mucho
menos una valoración de los sistemas de pensamiento seguidos tanto por el Concilio Vaticano
II como por el autor estudiado, sino hacer, de forma comprensiva y sencilla, la presentación
de los puntos que sustentan estos conceptos, como las fuentes de la Revelación, el medio por
el cual Dios se revela, y otros aspectos específicos de cada obra.

1
* Artigo apresentado como requisito avaliativo obrigatório para conclusão da disciplina de Teologia
Fundamental.
Acadêmico do Curso de Bacharelado em Teologia pela Faculdade Católica de Rondônia. E-mail:
orlandinferreira@hotmail.com
2
Possui Mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (2019), Graduação em
Teologia pela Universidade Católica de Salvador (2017), Curso Livre de Teologia pelo Seminário Maior São
João XXIII de Porto Velho (2005-2008), e Curso Livre de Filosofia pelo Seminário Maior São João XXIII de
Porto Velho (2003-2004). Atualmente é professor na Faculdade Católica, na disciplina de Teologia
Fundamental. E-mail: radsjk@yahoo.com.br
2

Palabras-clave: Dei Verbum; Revelación; Paul Tillich.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem a intenção de fazer uma explanação sobre os mais diversos
aspectos do conceito de Revelação na Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio
Vaticano II e na teologia do autor alemão Paul Tillich. Para chegar a tal fim, conduziremos
uma pesquisa bibliográfica utilizando o documento oficial da Dei Verbum, além de
comentários e estudos a respeito dela, e obras e artigos de e sobre Paul Tillich.
Este estudo não tem por objetivo classificar entre certo e errado as definições
encontradas tanto em um quanto em outro conceito. Para tanto, preservaremos as citações e
levaremos a cabo todas as explicações dos aspectos abordados. Nas considerações finais,
faremos algumas comparações de temas abordados ao longo do artigo.
O conceito de Revelação é um dos pilares da teologia, tanto protestante quanto
católica. Não raro, encontramos estudos que tem por objetivo discorrer acerca da Revelação
de Deus na história. Esta Revelação pode ser vista por vários ângulos, variando de acordo
com a linha metodológica e doutrinal.
Na teologia católica, a Revelação é vista como um caminho que Deus faz com seu
Povo (pedagogia), a fim de manter, no fio da história, essa relação de amor. Mesmo com o
pecado do homem, Deus leva a cabo seu plano de Salvação, transmitindo sua
autocomunicação antes mesmo de o homem pecar. Essa ação se plenifica em Jesus Cristo,
através do Mistério Pascal, que é o cume da Revelação de Deus Uno e Trino (o Pai ressuscita
o Filho pela ação do Espírito).
Na teologia protestante, o tema da Revelação é mais amplo e complexo, nas várias
linhas que seguem rumos de reflexões opostos ou paralelos. Existem alguns com espírito
reformado, dentre estes aqueles que são mais ortodoxos ou liberais, outros de linha
pentecostal ou neopentescostal. Entre tantos, definimos o teólogo Paul Tillich para seguirmos
a pesquisa, visto que este autor é amplamente conhecido na linhagem luterana e calvinista.
Em sua linha teológica, a Revelação é vista não somente como a Revelação do Pai na História
da Salvação, mas é contínua e recorrente no cotidiano do ser humano. Entra aqui o aspecto
existencialista de sua teologia, que dialoga com a filosofia (e por isso é acusado de
“ontologizar” a teologia).
Dentre tantos aspectos a serem observados, colocaremos em evidência o modo como
ambas as obras conceituam a Revelação, quais as fontes que cada uma considera como
3

autêntica para a Revelação, como Deus se comunica com o ser Humano e outros aspectos
específicos. Vale recordar que as perspectivas iniciais de cada uma das obras são diferentes,
portanto, ao compará-las o leitor deve ter em conta o prisma pelo qual é vista a realidade de
Deus e de sua Divina Revelação.

2. O CONCEITO DE REVELAÇÃO PARA A CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA


DEI VERBUM

Ao longo da história da Igreja Católica Apostólica Romana, antes e depois da Reforma


Protestante, discutiu-se acerca da Revelação Divina e suas fontes. Não raro encontram-se, nos
documentos de antigos concílios, proposições e respostas dadas por teólogos acerca desta
questão. A história continua, e a Igreja, sob a assistência do Espírito, tem confirmado, passo a
passo e de forma segura a sua busca por assegurar a Verdade sobre a Revelação.
Em meados do século XX, convocado pelo Papa João XXIII e continuado por Paulo
VI, aconteceu o Concílio Vaticano II. Com o intuito de estar em diálogo com a modernidade,
esta reunião mudou os rumos da Igreja, em seus mais diversos campos. A Teologia
Fundamental foi uma das atingidas pelas decisões conciliares, e o estudo desta disciplina é
cada vez mais frequente e necessário. Os avanços a respeito dos mais diversos temas da
teologia fundamental são graduais e, ao longo da história, aceitos pelo Magistério de maneira
oficial.
Uma das Constituições Dogmáticas promulgadas pelo Concílio é a Dei Verbum, que
tem como temática a Revelação Divina. Neste importante documento, a Igreja, de acordo com
o Espírito e com a intenção dos padres conciliares, deseja explanar os mais diversos temas
concernentes à Revelação para que “todo mundo creia; acreditando, espere e, esperando, ame”
(DV 1).
Neste capítulo, iremos trabalhar as principais conclusões a que o Concílio, após
discussões teológicas e pastorais, chegou acerca do tema da Revelação, inseridas na Dei
Verbum e que são tidas pela Igreja, como Verdade de Fé. Procuraremos, de maneira
referenciada, dar foco nas temáticas da autocomunicação, das fontes da Revelação e em como
a Revelação continua para a citada Constituição Dogmática.

2.1 Revelação como autocomunicação


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A História da Salvação mostra que a Revelação por si só é um grande ato de amor de


Deus que quer revelar a Si próprio para os homens para que, assim, as criaturas pudessem
amar o criador “como Bem supremo de sua vida”. (LOPES, 2012, p.39)
Este diálogo entre Deus e o homem teve início desde o princípio, com a criação do
gênero humano. Desta forma, permanece na história um grande rastro que perpassa os
acontecimentos e estreitam este laço de amizade contidos na Palavra. A Dei Verbum deixa
clara esta relação de amistosa:

Quis Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e manifestar o


mistério de sua vontade (cf. Ef 1,9): os homens têm acesso ao Pai e se tornam
participantes da natureza divina por Cristo, Verbo encarnado, no Espírito Santo (cf.
Ef 2,18; 2Pd 1,4) Deus invisível, revela-se por causa do seu muito amor, falando aos
homens como amigos e conversando com eles, para convidá-los a estarem com ele
no seu convívio. (DV2)

O cuidado de Deus através da história, que faz o salmista se perguntar “que é o


homem, para dele te lembrares, e um filho de Adão, para vires visitá-lo?” (Sl 8) é percebido
de maneira concreta na relação pessoal com que Deus se dá a conhecer “desde o início, a
nossos primeiros pais” (DV 3) e se coloca na história como este “”Deus vivo e verdadeiro, pai
providente e justo juiz” (DV 3).
Não obstante, o ápice da Revelação do Pai por amor se dá no Filho, de maneira a
completar a obra da Salvação através da Encarnação. Na pessoa de Jesus, a relação dialógica
de Deus com a humanidade se plenifica em comunhão de vida, com a intenção de tornar o
gênero humano íntimo desse Projeto de ágape de Deus. Para a Dei Verbum, a dimensão
dialógica tem uma proporção maior, conforme afirma Geraldo Lopes:

Esta palavra atinge o ápice do amor quando o Filho de Deus se encarna e assume a
linguagem humana. Esta dimensão coloquial e dialógica não pode ser banalizada,
com a intenção de reduzir o inefável [...] Deus se revela para convidar os seres
humanos para uma comunhão de vida. (LOPES, 2012, p.90)

Uma relação de amor e amizade é destacada nesta constituição, de forma que a


concepção católica de Revelação nasce diretamente de uma reflexão que considera o Amor de
Deus o grande motor para uma comunhão entre os homens e dos homens com Deus que se dá
na história da Salvação.
O Concílio Vaticano II, em sua intenção primeira de se abrir à modernidade, elabora a
Dei Verbum nestes moldes. Portando, percebe-se nela uma grande sensibilidade em relação ao
5

Amor de Deus e a sua misericórdia, que precisam ser anunciados e vividos nos tempos atuais.
Conforme afirma João Batista Libanio:

Acentuam-se a dimensão trinitária da Revelação de Deus, a participação da natureza


divina, o grande amor do Deus invisível a conversar conosco como amigos, o
convite à comunhão, a mútua relação dos atos e das palavras, das obras e dos
ensinamentos. Afirmam-se, primeiro, os “acontecimentos” (gestis) para só depois
mencionar as “palavras” (verbis) para proclamar e elucidar os mistérios neles
contidos. E, fechando a bela definição de revelação, apresenta-se o Cristo como
mediador e plenitude de toda a revelação. (LIBANIO, 2014, p. 168)

Este belo caminho feito pela Dei Verbum visa compreender a relação de amor presente
na autocomunicação de Deus com a humanidade através de Seu Filho Jesus Cristo na ação do
Espírito Santo e como essa relação é perpetuada na história da humanidade nas mais diversas
formas e aspectos do mistério contido na Revelação.
A dimensão da autocomunicação de Deus é presente na Igreja como manifestação do
Seu amor para com a humanidade e integra um diálogo que passa pelos séculos e acontece a
partir de um depósito da fé preservado no coração da Igreja, tendo duas principais formas de
transmissão.

2.2 Uma Revelação e dois modos de transmissão

O Dom de Deus continua ativo na história, e sua vontade em Se revelar ao gênero


humano é sinal disso. Para tanto, é preciso considerar como primordial o papel das Sagradas
Escrituras e da Tradição neste processo. Elas são consideradas, pelo Concílio Vaticano II, na
Dei Verbum, como instrumentos de transmissão da Revelação aos homens do nosso tempo,
sempre em diálogo com eles.
É sabido que a maior diferença entre os conceitos de Revelação para a teologia
católica e protestante é a consideração da Tradição como forma de transmissão da Revelação
de Deus aos homens. Neste sentido, a Dei Verbum apregoa e reafirma a Sagrada Tradição dos
Apóstolos como um tesouro onde se fez possível que a revelação fosse mantida até os dias
atuais. A constituição dogmática em questão é muita clara quando expõe:

Por isso, o Cristo Senhor, em quem se completou toda a revelação de Deus altíssimo
(cf. 2Cor 1,20) comunicou aos apóstolos os dons divinos e os encarregou de pregar a
todos o Evangelho [...] Esta disposição foi fielmente cumprida. Primeiro pelos
apóstolos que haviam aprendido diretamente com as palavras, o convívio e a atuação
de Cristo e pela ação do Espírito Santo o transmitiram pela pregação, pelo exemplo
6

e pelas instituições que criaram. Depois, pelos apóstolos e homens apostólicos que,
sob inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação. (DV
7)

Unindo a Tradição às Sagradas Escrituras como formas de transmissão da mesma


Fonte Divina, constata-se cada vez mais a importância da unificação das duas como um
tesouro no coração da Igreja. Neste sentido, é fundamental, para uma teologia católica, que se
leve em conta tanto uma quanto a outra no fazer teológico, sem dar maior destaque a nenhuma
das duas. Nesse caso, é necessária uma interpretação condizente com o que de fato são as
duas, ou seja, conforme a sua inseparabilidade. Acerca deste círculo hermenêutico formado
pela Tradição e pela Palavra, afirma Amaury Begasse:

Tradição e Escritura provêm desta única fonte como em um virtuoso círculo


hermenêutico, onde cada uma, por sua vez, parece preceder a outra e proceder a
outra. De fato, de um lado, a Escritura nasce da tradição oral (judaica ou apostólica,
colocada depois por escrito, e é a Tradição que determina o cânon, ou seja, o que é
Escritura inspirada e o que não é. Por esse ponto de vista, a Tradição precede a
Escritura, que procede dela. Mas, por outro lado, da Escritura nasce a Tradição
eclesial que a interpreta. Sob este ângulo, ao invés, é a Escritura que precede a
Tradição, que procede dela. Esta inseparabilidade significa que uma e outra “são
como um espelho no qual a Igreja peregrina na terra contempla a Deus” (BEGASSE,
A. 2018, in GREGORIANUM 99, 2, p.250)

A Tradição, como tesouro da humanidade, revela-se um instrumento primordial de


transmissão da Revelação na Dei Verbum. Como já visto acima, a Sagrada Tradição, na
concepção católica, não é simplesmente um aspecto cultural do homem, mas na relação pura
com o Cristo, a humanidade consegue encontrar a raiz de uma história e desse presente de
Deus, que é a sua Revelação. No “depósito da fé” está também a Palavra de Deus que, em sua
unidade, apresenta-se inspirada para os homens de todos os tempos como forma de linguagem
humano do Verbo Eterno do Pai, que tomou a fraqueza humana e se tornou semelhante aos
homens (DV 13).
Esta relação, com efeito, é prioritária para a elaboração da constituição dogmática Dei
Verbum, já que esta busca o diálogo com a modernidade e, através da Escritura e a Tradição
como formas de transmissão, a Revelação chegou e continua a chegar aos homens de todos os
tempos.

2.3 Revelação continuada


7

Conforme reafirmado pela Dei Verbum, a Revelação se dá na história e diretamente


aos homens. Para a progressão desta Revelação, a Igreja considera duas formas de
transmissão: a Tradição e as Sagradas Escrituras. É factível que o número 4 da constituição
dogmática afirma “A verdade profunda a respeito de Deus e da salvação humana brilha em
Cristo, que é, ao mesmo tempo, mediador e plenitude da revelação” (DV 4). Considerando
isso, a igreja não propõe que se encerre toda a reflexão teológica tão somente nas palavras do
Antigo e do Novo Testamento, mas que se leve a conduzir ao centro e plenitude da revelação,
que é o Cristo ainda hoje em nosso meio.
Neste sentido, tanto a Tradição quanto as Sagradas Escrituras seguem sempre uma
dinâmica Trinitária quando, ao falar do Pai, pelo Filho, através da ação do Espírito, gera, no
decorrer da história da salvação, uma relação da Trindade com os homens. Segunda afirma a
Dei Verbum:

Amplia-se a percepção das realidades e das palavras, quer pela contemplação e pelo
estudo dos fiéis, que as guardam em seu coração (cf. Lc 2,19.51), quer pela
compreensão que provém da experiência das coisas espirituais, quer ainda pela
pregação daqueles que, sucedendo aos apóstolos, receberam o carisma de certificar a
verdade. (DV 8)

Nesta mesma linha de raciocínio, o teólogo Valério Manucci ratifica a reflexão de que
o mistério de Cristo nunca deixa de iluminar as situações mutáveis da história dos homens:

A Tradição não é a guarda de um depósito passado em forma de museu, nem a


contemplação intemporal da verdade revelada, mas confronto constantes da Verdade
revelada com os acontecimentos do mundo por vir, com as diversas culturas dos
povos; é verificação do poder explícito das verdades de fé no contexto mutável da
história; é compreensão do homem, da sua natureza, do seu destino e da sua história
nas situações mais diversas, à luz da indefectível história salutis revelada por Deus.
(MANUCCI, 1985, p.58)

Sendo assim, a dimensão trinitária se dá na história enquanto o Santo Espírito continua


assistindo aos sucessores dos apóstolos que, em sintonia com o Povo de Deus, perscrutam os
sinais dos tempos e interpretam-nos à luz do Evangelho (GS 4). Seria pretensão humana tentar
deter o Espírito, que sopra onde quer (cf. Jo 3,8), portanto, a Igreja, dotada de uma
catolicidade ímpar, vê que a Revelação, uma vez plenificada em Jesus e transmitida aos
homens pela Palavra e pela Tradição continua surtindo efeitos ao longo da história da
humanidade. Portanto, é preciso uma unicidade na interpretação dos sinais do tempo para ser
levado a cabo o projeto salvífico do Pai.
8

3. O CONCEITO DE REVELAÇÃO NA TEOLOGIA PROTESTANTE DE PAUL


TILLICH

A teologia protestante como um todo, e em relação à teologia católica, tem uma maior
gama de linhas de pensamentos em seu seio. Não raro, encontramos autores que seguem
vieses diferentes ou opostos uns dos outros. Para a maioria dos autores, a teologia protestante
está dividida em cinco grandes períodos, são eles: Fundadores; Ortodoxia ou Escolástica;
Aufklärung ou Iluminismo; Liberalismo e Neo-ortodoxia (MONDIN, 2003, p.19)
Considerado como um dos maiores teólogos do século vinte, Paul Tillich, que é de
origem alemã, tem sua obra baseada na filosofia existencial. Passando pelo período da
primeira guerra mundial como capelão do exército alemão, teve suas bases de pensamento
profundamente abaladas naquele processo de confronto e teve a oportunidade de repensar seu
fazer teológico com marcas de novas percepções da vida e do humano (CUNHA, 2015,
p.103).
Sua obra, dentro do campo protestante, situa-se no espectro entre o protestantismo
liberal e a neo-ortodoxa barthiana, fazendo uma teologia voltada para a dimensão da relação
do homem com Deus e uma metodologia chamada de correlação. Battista Mondin define a
teologia de Tillich da seguinte maneira:

[..] não é difícil identificar os temas dominantes em seu pensamento [de Tillich].
Estes podem ser reduzidos a dois: um, metodológico; o outro, de conteúdo. O
primeiro é constituído pelo princípio da correlação, o segundo pelos problemas do
homem e as respostas de Deus. [...] No entanto, é possível reduzi-lo a três pontos
principais, na medida em que três são os maiores problemas que angustiam o
homem: o ser das coisas, a própria existência e a história. (MONDIN, 2003, p.115)

Como já explicitado, o tema da correlação marca toda a teologia de Paul Tillich. Para
a temática da Revelação, de interesse do nosso artigo, não seria diferente. O caminho feito por
Tillich em seu conceito de Revelação é marcado por uma reflexão que, como já exposto, é
integrada com elementos da filosofia existencialista. Não à toa, Tillich é alvo de críticas no
que se refere à sua “ontologização” da teologia, correndo risco de leva-la a um panteísmo
(MONDIN, 2003, p.130).
Sem apegar-nos a tentativa de sermos juízes de sua teologia, ou de subestimar em
detrimento de outro tipo de teologia (mais especificamente, neste artigo, da teologia católica),
faremos uma breve explanação acerca do conceito de revelação na obra teológica de Paul
9

Tillich, perpassando os caminhos da correlação, das fontes da revelação e a relação entre a


revelação e a razão.

3.1 Revelação e correlação

Como já exposto anteriormente, a teologia de Paul Tillich é marcada pelo princípio da


correlação, contrapondo a neo-ortodoxia e o liberalismo teológico. Para Carlos Cunha, em sua
tese doutoral, nesta tentativa de superação, Tillich desenvolve o princípio da correlação com a
seguinte metodologia:

O princípio da correlação afirma a necessidade de pensar qualquer realidade


juntamente com outra realidade, na medida em que elas se encontram em relação de
dependência recíproca. Essa relação de dependência recíproca Tillich chama de
correlação, exatamente porque implica uma subordinação recíproca. Esta é a
novidade de seu método. Interpretações do real por meio da correlação entre dois ou
mais elementos criam entre eles um vínculo de modo que os elementos relacionados
só podem existir juntos, razão pela qual é impossível que um aniquile a existência
do outro. (CUNHA, 2015, p.144)

Nesta noção de correlação, se encaixam as mais variadas formas de existência e, para


Tillich, é a melhor maneira de se entender o mundo e de se fazer teologia, pois não deixa de
lado nenhum aspecto da vida. Na era da modernidade, não se deve deixar passar nenhuma
dúvida recorrente de novos estilos de vida e, seguindo a tarefa de teólogo, deve-se responde-
las de acordo com a mensagem cristã original, sem pôr em risco a Revelação. Conforme
Tillich, citado por Cunha:

“Método da correlação” como uma forma de unir mensagem e situação. Ele tenta
correlacionar as perguntas implícitas na situação com as respostas implícitas na
mensagem. Não deriva as respostas das perguntas, como o faz uma teologia
apologética autossuficiente, mas tampouco elabora respostas sem relacioná-las com
as perguntas, como o faz uma teologia querigmática autossuficiente. Ele
correlaciona perguntas e respostas, situação e mensagem, existência humana e
manifestação divina. (TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5.ed.rev. São
Leopoldo: Ed. Sinodal, 2005. p.25 apud CUNHA, 2015, p. 142)

Para tal tarefa, o teólogo deve, primeiramente, apropriar-se do papel de filósofo,


fazendo perguntas pertinentes à existência humana para, em seguida, assumir o seu papel
original – o de teólogo – para descobrir as respostas de Deus nos sinais da Revelação. Forma-
se, assim, um método dialogal, de perguntas e respostas. Este caminho proposto por Tillich,
revela uma grandeza de perspectivas, pois coloca em xeque as principais angústias do ser
humano, em seu sentido existencial.
10

Desta maneira, o princípio da revelação assertivamente coloca em prática uma


interdependência proveniente de uma pergunta do humano e uma resposta de Deus (um ser
para nós – e não um ser para si, como na filosofia existencialista pura). Assim sendo, a
Revelação assume um papel contínuo na história quando, através da ação do Espírito, entra
nesse círculo de interdependência entre o ser humano e Deus e, através da pessoa do teólogo e
de sua fé, abrangem o círculo teológico de maneira a superar toda forma de “empirismo
teológico”. Sobre isto, afirma Tillich:

O teólogo, em resumo, é determinado por sua fé. Toda teologia pressupõe que o
teólogo se encontra no círculo teológico. Isso contradiz o caráter aberto, infinito e
mutável da verdade filosófica. Difere também da forma na qual o filósofo é
dependente da pesquisa científica. O teólogo não tem relação direta com o cientista
(incluindo o historiador, sociólogo, psicólogo). Lida com ele só na medida em que
estão em jogo implicações filosóficas. Se ele abandona a atitude existencial, como o
fizeram alguns teólogos “empíricos”, será levado a afirmações cuja realidade não
será reconhecida por ninguém que não participe das pressuposições existenciais do
teólogo pretensamente empírico. A teologia é necessariamente existencial, e
nenhuma teologia pode escapar do círculo teológico (TILLICH apud CUNHA,
2015, p.144)

O princípio da correlação, portanto, leva o teólogo a sempre estar em constante


diálogo com Deus e com as perguntas que surgem na história, levando em conta que o círculo
teológico nunca acaba, e esta interdependência é de suma importância para a continuação da
Revelação de Deus na vida da humanidade. Esta revelação parte de Deus, mas é introduzida à
humanidade de acordo com a estrutura de pensamento humano. O autor, para conceber isto,
elenca algumas fontes desta revelação.

3.2 Fontes da Revelação

A teologia protestante como um todo vê na Bíblia a grande fonte da Revelação de


Deus (cumprindo à risca o princípio da sola scriptura da Reforma de Lutero). No caso de
Paul Tillich, seria esperado que ele fizesse o mesmo caminho, porém, o mesmo fez objeções a
este estilo de teologia, propondo uma nova forma de ver as fontes da teologia. Em sua obra
Teologia Sistemática (1951), afirma que a Bíblia é, de fato, um grande instrumento
documental para se conhecer a Jesus, a quem não nega ser o Filho de Deus e a plenitude da
Revelação, através daqueles que participaram dos eventos reveladores, porém, para ele, é
impossível se chegar à Revelação somente através dela. Sobre isso, afirma:
11

Se a “Palavra de Deus” ou o “ato de revelação” é considerado a fonte da teologia


sistemática, devemos enfatizar que a “Palavra de Deus” não está limitada às palavras
de um livro e que o ato de revelação não se identifica com a “inspiração” de um
“livro de revelações”, mesmo que esse livro seja o documento da “Palavra de Deus”
final, plenitude a critério de todas as revelações. (TILLICH, 2005, p.51)

Seguindo o caminho já visto no ponto anterior e utilizando o princípio da correlação,


Tillich propõe que se considere uma interpretação com Ênfase no âmbito existencial, e não no
fato real. Utilizando somente a Bíblia como fonte, a interpretação poderia ficar pobre, já que
“a letra da Bíblia e a doutrina da igreja permanecem letra e lei se o Espírito não as interpreta
no indivíduo cristão. A experiência como presença inspiradora do Espírito seria a fonte última
da teologia” (TILLICH, 2005, p. 60)
Neste sentido, feita a explanação acerca dos princípios básicos para a interpretação da
revelação – objeto da teologia sistemática de Paul Tillich – o autor faz a tentativa de resumir
as fontes da teologia em quatro: “Esse exame das fontes da teologia sistemática mostrou sua
riqueza quase ilimitada: Bíblia, história da Igreja, história da religião e da cultura” (TILLICH,
2005, p.55). Tendo em vista esses quatro elementos, não se pode afirmar, de acordo com o
teólogo estudado, que a revelação se fecha neste sistema. Para ele, a Revelação de Deus
também precisa passar pela experiência humana e recebe uma dose de “ontologização”, pois
em tudo se revela a experiência e a razão.
Considerando que “a razão, portanto, é naturalmente aberta à Revelação, aliás, é
correlata a ela, porque só a Revelação está em condições de dar uma resposta plenamente
satisfatória às suas questões” (MONDIN, 2003, p.118), percebe-se que, para Tillich, a razão
humana é aberta à fé, que também precisa de esforço humano para acontecer, apesar de estar
implícita em todo o gênero humano.

3.1 Revelação e razão

Não é necessário muito esforço para encontrar na obra de Tillich e nos estudos a
respeito dela a estreita relação que o autor dá para a Razão e a Revelação. Para ele, A
Revelação só é possível para o ser humano por que existe a Razão, que permeia toda a
realidade. Conforme afirma Battista Mondin:

Deus vem ao encontro do homem com a luz da Revelação. Esta, segundo o nosso
autor, representa o momento em que o sujeito humano é aferrado pelo poder do Ser
(ou seja, de Deus) e imerso no milagre de sua automanifestação. O arrebatamento
que se segue descobre o significado último das coisas, isto é, aquele que não é
12

deduzido de sua finitude e determinação posicional, mas sim de sua radical


correlação com Deus. Então, as coisas, fatos e acontecimentos tornam-se símbolos
da realidade divina: uma iluminação que alcança a realidade e o homem, ao qual
revela o próprio fundamento ontológico e o de cada coisa em particular (MONDIN,
2003, p.118)

Visto isso, se torna mais fácil entender a relação existente entre razão e Revelação para
Tillich. Entendemos, através do exposto acima, que a fé é intrínseca ao ser humano e que a
capacidade de se correlacionar com o infinito faz da fé uma capacidade intrinsecamente
humana. Deus se revela diretamente à razão humana, superando o que já está dado no
cotidiano, já que segundoTillich:

A revelação daquilo que é essencial e necessariamente misterioso significa a


manifestação, no contexto da experiência comum, de algo que transcende o contexto
habitual da experiência. Sabemos algo mais do mistério depois que se manifesta na
revelação. Em primeiro lugar, sua realidade se tornou uma questão de experiência.
Em segundo lugar, nossa relação com o mistério também se tomou uma questão de
experiência. (TILLICH, 2005, p.122)

Não se deve, porém, abranger todo o tipo de experiência como Revelação de Deus. É
necessário o cuidado quando se interpreta o termo “razão” como conhecimento. Porém, para
Tillich, a Palavra de Deus ao encontrar-se com a Igreja, torna-se revelação (não por si só, mas
em contato com a comunidade espiritual) e transforma a pergunta mais profunda do ser
humano (o que é o Ser?), fazendo com que aconteça o que ele chama de “choque ontológico”,
resultando em um processo de êxtase e de milagre:

Na revelação e na experiência extática em que é recebida, o choque ontológico é


preservado e superado ao mesmo tempo. Ele é preservado no poder aniquilador da
presença divina (mysterium tremendum) e é superado no poder fascinante da
presença divina (mysterium fascinosum) (TILLICH, 2005, p.126)

Portanto, para o autor, a Revelação de Deus se dá através da razão das coisas (e do


humano) que se abre para o mistério e recepciona a Graça Dele em seu interior, fazendo com
que a transcendência própria do Ser adentre a vida humana num processo correlacional, que
marca a teologia tillichiana, superando o estrito colocado para delimitar somente algumas
fontes com as quais a Revelação chega ao ser humano. Isso rendeu ao teólogo acusações de
heresias e de apostasia, mas também muitos adeptos no decorrer do tempo ao redor do mundo.
Sua teologia é ensinada até os dias atuais nas universidades e seminários protestantes.
13

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que o presente artigo teve por objetivo fazer uma comparação entre os
conceitos de Revelação para a Constituição Dogmática Dei Verbum e a teologia protestante de
Paul Tillich, percorremos um itinerário que leva em consideração os principais aspectos neste
conceito em cada uma delas.
Observamos que ambas as obras têm concepções muito diferentes no conceito de
Revelação. Para a teologia católica da Dei Verbum, a Revelação é concluída com a morte do
último apóstolo, que gera o depósito da fé deixado para a humanidade até os dias atuais; já
para Tillich, a Revelação nunca se conclui, de forma que se ela estivesse presa à letra da
bíblia, nunca surtiria os efeitos em todos os espaços e épocas da humanidade.
Já nos aspectos da transmissão deste Revelação, a Dei Verbum considera que existe
uma única fonte, que é o próprio Deus, mas duas formas de transmissão ao decorrer do tempo,
que é a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição. Já para o teólogo protestante, vimos que não é
possível que a Revelação seja transmitida por elementos que não sejam existenciais (tanto que
nega, a despeito dos reformadores, o princípio da sola scriptura, tendo por argumento que a
Bíblia por si só não pode falar aos homens de todos os tempos – negando, inclusive, os
círculos hermenêuticos, sobrepondo-os com o princípio da correlação), sobre a Sagrada
Tradição, não refere palavra alguma, já que parte de uma visão reformada.
Na Constituição Dogmática, a Revelação não é totalmente estática no passado. Com
um grande processo de evolução na discussão da temática, o Concílio Vaticano considerou a
Deus fala aos seus filhos através da Bíblia e da Tradição, que são interpretadas pelo
Magistério da Igreja. Este, por sua vez, com a assistência do Espírito, tem a primazia na
confirmação da Verdade implícita na história, ao longo do tempo. Já na teologia de Tillich, a
Revelação continua se dando na experiência humana, muitas vezes extática (de êxtase), em
que o Ser se abre de tal maneira ao Ser que, sem suspender as faculdades da razão, se torna
capaz de vislumbrar realidades de mistério, pouco a pouco revelada aos homens de todos os
tempos. Para isso, ele se utiliza do argumento de que não é possível para os homens de hoje,
por exemplo, contemplarem piamente todas as verdades contempladas há dois mil anos.
Ao longo deste artigo, percebemos que as teologias contidas nas obras estudadas têm
vieses muito diferentes e particularidades que não seguem o mesmo parâmetro de análise.
Neste sentido, concluímos que a Revelação é um tesouro que os cristãos precisam guardar e
viver, de forma que atinjam os objetivos deste caminho traçado pelo Pai, em seu Filho e pelo
Espírito.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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teólogo ao teólogo-exegeta. Tradução de Ronny Santos Abreu. In GREGORIANUM 99, 2
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BÍBLIA SAGRADA DE JERUSALÉM. 1ª edição, 13ª reimpressão. São Paulo: Paulus,


2019.

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Paulinas, 2007.

CUNHA, Carlos Alberto Motta. O contributo do método da correlação de Paul Tillich à


epistemologia da Teologia Pública no Brasil no contexto do pensamento complexo e
transdisciplinar. Belo Horizonte: FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2015.

LIBANIO. J. B. Introdução à Teologia Fundamental. São Paulo: Paulus, 2014

LOPES, Geraldo. Dei Verbum: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012.

MANUCCI, Valério. Biblia, palavra de Deus; curso de introdução à Sagrada Escritura.


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MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Teológica, 2003.

TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

XIMENES, Luciano. Revelação em Paul Tillich. FIDES REFORMATA XII, Nº 2 (2007):


63-77.

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