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TEOLOGIA 2020.2
TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Docente: Pe. Ronny Santos de Abreu
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A FÉ, ENCONTRO COM DEUS

Pela Revelação Deus vem ao encontro dos homens, fala com eles, os
convida a participar de sua natureza divina e a ser seus amigos e filhos. Pela
fé o homem acolhe a Palavra divina e responde ao convite de Deus. Assim
como Deus se entrega sem reservas, o fiel se entrega a Deus com todo o seu
coração. Revelação e fé são conceitos que se correspondem mutuamente.
1. A fé e a inteligência
Há duas formas distintas de conhecer: o ver e o crer. Quando vemos algo
chegamos diretamente a uma verdade por demonstração, intuição ou
experimentação. Fala-se, então, de evidência intrínseca. Crer, porém,
significa um conhecimento ao qual se chega indiretamente, por evidência
extrínseca. Só se pode crer o que não se vê. Quem crê chega a conhecer
aquilo que crê, não porque seja experimentável ou demonstrável para ele,
mas porque o é para outro em quem se confia.
Quando creio, apoio-me no outro para chegar a uma verdade. A
testemunha, aquele em quem confio, deve ser digno de confiança, e exijo
também a credibilidade da mensagem, que não deve contradizer os
conhecimentos seguros que conquistei. Em sentido estrito: crer é muito mais
que opinar ou supor, é estar completamente convencido da verdade que não
se vê. A fé é conhecer com certeza o que não se vê.
Quando estamos dispostos a crer no outro, não somente numa situação
determinada, mas sempre, sem nenhum limite e condições, então, crê-se em
alguém. Não se pode crer em nenhum ser criado: ninguém está tão acima de
uma outra pessoa que possa constituir-se como autoridade de valor absoluto.
Só podemos crer em Deus. Num sentido menos radical, com as reservas
próprias de cada caso, podemos crer nas pessoas e confiar na certeza da
verdade de seu testemunho.
No campo sobrenatural também há um ver e um crer. Depois desta vida,
veremos a Deus face a face. Enquanto estamos na terra, só podemos crer
nele. Nós o conhecemos mediante o testemunho de outro. “Em iguais
condições, ver é mais do que ouvir. Mas se aquele pelo qual se sabe alguma
coisa está muito acima daquilo que o indivíduo é capaz de ver por si só, neste
caso ouvir é mais do que ver”1. A fé divina faz participar no conhecimento
próprio e exclusivo de Deus, nos põe em contato com o saber de Deus.

1
TOMÁS DE AQUINO, S Th II-II, q. 4, a. 8, ad 2.
2

No plano sobrenatural, o menor conhecimento transcende os


conhecimentos mais elevados que possamos alcançar no plano natural. Uma
centelha da fé cristã é muito mais perfeita que todo o saber humano. Uma
pobre pessoa que não sabe ler, nem escrever, mas que crê em Deus, tem uma
sabedoria mais completa que um catedrático ateu, pois sabe que existe um
Criador do mundo, que Deus é Uno e Trino, e que somos chamados a viver
eternamente felizes com Ele no Reino.
Crer é um modo de ter acesso a uma nova realidade: os mistérios divinos
que nos foram revelados. Ao aceitarmos a Revelação (crer), alcançamos um
conhecimento específico: o conhecimento da fé. Entretanto, não basta
acreditar em “algo”, pois só o podemos fazer se antes acreditarmos “em
alguém”. No caso da fé sobrenatural, a testemunha que traz a mensagem é o
próprio Jesus Cristo, o único que “viu” a Deus. A certeza da fé sobrenatural
se fundamenta na autoridade de Deus mesmo. Mas esta autoridade é, ao
mesmo tempo, objeto de fé. Jesus Cristo é uma testemunha verdadeiramente
excepcional e única. Não se trata apenas de uma testemunha, mas de crer que
esta é realmente Deus. Para poder acreditar no que me diz, devo primeiro
crer nele. O ato de fé, embora razoável, exige um “render-se” da razão, é
radical, chegando ao mais profundo do homem e exigindo todas as suas
forças.
2. A liberdade da fé
No caso da fé cristã, o papel da vontade é essencial. Por mais razoável que
seja a Boa Nova de Jesus Cristo, não há nada que me obrigue a acreditar.
Como a inteligência não chega nunca à evidência, diante da qual não poderia
resistir, então, a vontade deve tomar uma autêntica decisão. A fé não pode
ser senão o fruto de nossa liberdade, cuja expressão não acontece somente
na decisão. Decidir é um ato secundário da vontade. Seu ato principal é o
amor. O querer crer deve ser entendido no sentido de amar. Creio porque
amo. Cremos em Cristo porque o amamos. A fé, em certo sentido, é uma
declaração de amor a Deus.
A fé é correspondência ao amor, um encontro entre Deus e o homem. A
fé sobrenatural é um saber pessoal: eu sei que Deus é Pai porque Cristo diz.
Esta dimensão pessoal faz com que o ato de fé seja sempre misterioso. Não
podemos compreender as razões de nenhuma pessoa, nem mesmo as nossas.
Creio porque quero, e quero porque amo. Porém, por que amo? Por que há
pessoas que creem e outras que querem crer, mas não podem?
3. Um dom de Deus
Mais que a nossa correspondência, a fé “não vem de nós, é dom de Deus”
(Ef 2, 8). “O ato de crer certamente depende da vontade de quem crê, mas é
3

necessário que a graça de Deus prepare a vontade do homem para que seja
elevada às coisas que estão acima de sua natureza”2.
“Ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair” (Jo 6, 44). As insinuações
divinas se produzem no mais íntimo do ser humano para suscitar uma
resposta generosa. Trata-se de uma iluminação interior, mediante a qual o
conhecimento humano se põe em condições de perceber algo que não pode
alcançar por sua própria força. Ao “ascender” esta luz, o homem recebe a
graça da fé, alcança uma certeza da verdade da Revelação, maior que as
certezas humanas.
A “fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu
amor” (Lumen Fidei 4). Ao acolher o dom da fé, o crente acolhe a novidade
trazida por Jesus Cristo. Ele é o centro e a fonte da fé verdadeira que traz a
salvação. Deste modo, a fé é encontro, comunicação e amizade com Deus
em Cristo; através dela o homem é introduzido na “intimidade divina”,
passando, então, à vida de um filho de Deus: “sois filhos de Deus pela fé em
Cristo Jesus” (Gl 3, 26).
O dom da fé recebido pelo ser humano o leva a dar uma resposta ao
doador. Neste sentido, a fé, dom divino, se manifesta no homem por meio de
suas faculdades, dirigindo-se a Deus. Sob este ponto de vista, a fé é também
a resposta do homem à Revelação de Deus3. A iniciativa de nossa salvação
sempre está em Deus. É ele quem ama primeiro; é ele quem busca o homem
muito antes que o homem o procurasse. Deus convida, não obriga, quer que
o homem responda com plena liberdade. A nossa correspondência à graça já
é graça.
Segundo Santo Agostinho, o ato de fé consta de três elementos: 1)
Assentimento do entendimento: creio que Deus existe e se revelou a nós
(concordo, aceito); 2) Assentimento da vontade: confio em Deus; 3) Ajuda
divina que torna possível o abandono completo: creio em Deus.
4. A eclesialidade da fé
Devido à natureza comunitária do Cristianismo, a vida do fiel se torna
«existência eclesial»: “Pela fé, os discípulos formaram a primeira
comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na oração, na
celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir
às necessidades dos irmãos” (Porta Fidei 13).
A fé cristã conduz à comunhão. Abraçados por Cristo, os que creem são
inseridos no seu corpo, passando a ter relação com Cristo e com os irmãos
na fé. O que mantém a unidade do corpo é a fé dos crentes e sua vivência em
comunhão eclesial, no amor. Fora do corpo da Igreja, a fé perde seu

2
TOMÁS DE AQUINO, S Th II-II, q. 6, a. 1, ad 3.
3
Cf. D. VITALI, Sensus Fidelium: Una funzione ecclesiale di intelligenza della fede,
Brescia 1993, 441.
4

equilíbrio e espaço para se manter, sua profissão é vazia e sem brilho, pois a
fé possui uma forma necessariamente eclesial. Portanto, a luz da fé só pode
brilhar de forma plena e verdadeira a partir da comunhão eclesial:
É impossível crer sozinho. A fé não é só uma opção individual que se realiza na
interioridade do crente, não é uma relação isolada entre o «eu» do fiel e o «Tu»
divino, entre o sujeito autônomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao
«nós», verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja (LF 39).
Hoje, a fé como um “ato privado” se tornou uma moda preocupante entre
muitos cristãos. É como se não se sentissem pertencentes à comunidade, ao
corpo. Geralmente buscam os benefícios espirituais da fé, mas não se
dispõem a viver e anunciar esta fé recebida. No Cristianismo ninguém deve
caminhar sozinho, pois a luz da fé irradia na, e a partir da, comunidade dos
fiéis, a Igreja: “A fé é ato comunitário, ato da Igreja, e todo fiel participa
sempre e somente na comunhão eclesial. [...] A fé é sempre um ato realizado
pela Igreja e na Igreja: sem a Igreja não pode haver fé”4.
O fenômeno da religiosidade individualista não condiz com a natureza da
fé cristã. Vale lembrar que o Evangelho proclamado por Jesus não é um mero
conjunto de verdades a ser apenas admirado, ou um objeto de pura devoção,
mas trata-se de um «estilo de vida», isto é, ao proclamar o Evangelho, Jesus
estava ensinando ao ser humano uma nova forma de viver, baseada no amor,
alimentada pela fé e fazendo comunhão com Deus e com os irmãos. Portanto,
a fé trazida por Jesus é comunitária e eclesial:
Seguir Jesus na fé é caminhar com Ele na comunhão da Igreja. Não se pode
seguir Jesus sozinho. Quem cede à tentação de caminhar “por conta própria” ou
de viver a fé segundo a mentalidade individualista, que predomina na sociedade,
corre o risco de nunca encontrar Jesus Cristo, ou de terminar seguindo uma falsa
imagem dele5.
A fé é luz. Seu brilho alcança onde o sol não pode chegar: o interior do
ser humano. A fé irradia luz sobre toda a existência humana (cf. LF 1) e
dissipa as trevas que estão no seu caminho. Uma vida sem fé é como vagar
na escuridão das trevas, pois a ausência da fé escurece o horizonte da
existência do homem e a estrada da sua vida. Todavia, em Cristo, Deus sai
ao encontro dos homens, e através dele os homens têm acesso a Deus no
Espírito Santo. Por isso, Cristo é o centro da fé cristã, o núcleo que irradia
luz em todas as direções, e indica o seu lugar às outras verdades reveladas.

4
D. VITALI, Sensus Fidelium: Una funzione ecclesiale di intelligenza della fede, 290.
5
BENEDETTO XVI, Pensieri sulla fede, Vaticano 2012, 33.
5

Referências bibliográficas
ARENAS, O. R., Jesus, epifania do amor do Pai, São Paulo 1995.
BENEDETTO XVI, Pensieri sulla fede, Vaticano 2012.
BENTO XVI, Carta Apostólica Porta Fidei.
BURGGRAF, J., Teologia Fundamental – Manual de iniciação, Lisboa 2005.
CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II, Constituição Dogmática Dei Verbum - Sobre
a Revelação Divina. (18.11.1965), AAS 58 (1966) 817-836.
FRANCISCO, Carta Encíclica Lumen Fidei.
LATOURELLE, R. – FISICHELLA, R., Dicionário de Teologia Fundamental, Vozes,
Petrópolis 1994.
VITALI, D., Sensus Fidelium: Una funzione ecclesiale di intelligenza della fede, Brescia
1993.

Bibliografia complementar para leitura


JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Fides et Ratio.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 26-184.

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