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SÍNTESE
TEOLÓGICA
Professor:
Pe. Nathanael Thanner ORC
2o Semestre de 2014
Síntese teológica / 1
Esta “síntese teológica” pretende oferecer uma visão de conjunto da teologia, tendo como princípio
iluminador e unificador o mistério de Deus Trindade, que é a fonte e o fim de todos os outros mistérios
da fé e a luz que os ilumina.1
I. A Teologia
1. A essência da teologia2
A teologia é “fides quærens intellectum”, isto é, a fé em busca de entendimento. Desde a Idade
Média, a teologia é também definida “ciência da fé”. Mas, ciência não é o contrário de fé? A fé não
deixa de ser fé, quando se torna ciência? E a ciência não deixa de ser ciência, quando se ordena ou até
mesmo subordina à fé? Por causa da dificuldade desta questão, a teologia não deve
retirar-se primariamente ao campo da história (pesquisa histórica; aconteceu amplamente na Idade
moderna) para aí demonstrar sua séria cientificidade (= retirada para o passado);
concentrar-se sobre a praxe, para mostrar como a teologia, em conexão com a psicologia e a
sociologia, pode ser uma ciência útil que fornece indicações concretas para a vida.
Estas vias são insuficientes. Precisa enfrentar a verdadeira questão, a qual é esta: É verdade aquilo
em que cremos ou não?
Tertuliano escreveu que Cristo não disse: «Eu sou o costume», mas: «Eu sou a verdade» (non
consuetudo sed veritas – Virg. 1,1). O conceito “consuetudo” pode significar as religiões pagãs que,
segundo a sua essência, não eram fé, mas “consuetudo”, costume: faz-se o que sempre se tem feito (as
tradicionais formas de culto). Eis o aspecto revolucionário do cristianismo na antiguidade: a ruptura com
o “costume” por amor da verdade.
Assim se entende que a fé cristã, por sua essência, deve suscitar a teologia, isto é,
a reflexão sistemática sobre as razões por que crer e sobre aquilo que cremos.
Quanto à conexão entre razão e fé, verdade e fé, eis uma indicação dada por São Boaventura, no
prólogo ao seu comentário às Sentenças de Pedro Lombardo: existe um duplo uso da razão;
♦ um é inconciliável com a natureza da fé;
♦ o outro, ao invés, pertence propriamente à natureza da fé.
1) O primeiro uso é a “violentia rationis”, o despotismo da razão, que se faz juiz supremo e último
de tudo. Este tipo de uso da razão certamente é impossível no âmbito da fé. De que uso se trata? Uma
expressão do Salmo 95,9 pode mostrar-nos isso. Deus diz: “No deserto … vossos pais me tentaram,
puseram-me à prova, apesar de terem visto as minhas obras”. Aqui se aponta para um duplo encontro
com Deus: eles “viram”. Mas isto não lhes basta. Querem pô-l’O “à prova”. Querem submetê-l’O ao
experimento. Ele é, por assim dizer, submetido a um interrogatório e deve submeter-Se a uma prova
experimental. Esta modalidade de uso da razão atingiu na Idade moderna o cume do seu
desenvolvimento no âmbito das ciências naturais. A razão experimental parece hoje amplamente como a
única forma de racionalidade declarada “científica”. Aquilo que cientificamente não pode ser verificado
(no sentido de a teoria estar certa ou errada) cai fora do âmbito científico. Com esta impostação têm sido
realizadas grandes obras, sem dúvida. Existe, porém, um limite para este uso da razão: Deus não é um
objeto da experimentação humana. Ele é Sujeito e Se manifesta somente na relação de pessoa a pessoa,
e isto faz parte da essência da pessoa.
1
Cf. Catecismo da Igreja Católica (abreviado: Cat.), n. 234.
2
Apresentamos em seguida o pensamento do Papa Bento XVI (Discurso na entrega do “Prêmio Ratzinger” em
30.06.2011).
Síntese teológica / 2
2) Nesta perspectiva, São Boaventura indica um segundo uso da razão, o qual vale para o âmbito do
que é “pessoal”; vale para as grandes questões do homem mesmo.
“A fé é a resposta do homem a Deus que se revela e a Ele se doa, trazendo ao mesmo tempo uma luz
superabundante ao homem em busca do sentido último de sua vida” (Cat. 26).
Sem a fé, a revelação divina seria apenas uma oferta de autocomunicação por parte de Deus. É preciso
que o homem acolha esta comunicação divina. E esta acolhida é a fé.
A “obediência da fé”: Este ato de acolhida é um ato de submeter-se, ato de obediência: “Pela fé, o
homem submete completamente sua inteligência e sua vontade a Deus. Com todo o seu ser, o homem dá
seu assentimento a Deus revelador (cf. DV 5). A Sagrada Escritura denomina "obediência da fé" esta
resposta do homem ao Deus que revela (cf. Rm 1,5; 16,26)” (Cat. 143). A Virgem Maria é a mais
perfeita ou mais pura realização dessa obediência da fé: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim
segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
Fé em Deus, Pai, Filho, Espírito Santo:
“A fé é primeiramente
uma adesão pessoal do homem a Deus;
é, ao mesmo tempo e inseparavelmente,
o assentimento livre a toda a verdade que Deus revelou.
Como adesão pessoal a Deus e assentimento à verdade que ele revelou, a fé cristã é diferente da fé em
uma pessoa humana. É justo e bom entregar-se totalmente a Deus e crer absolutamente no que ele diz.
Seria vão e falso pôr tal fé em uma criatura [Cf. Jr 17,5-6; Sl 40,5; 146,3-4]” (Cat. 150).
As características da fé
Para reconhecer as características da fé, é preciso tomar consciência de que há três fatores
absolutamente necessários para a realização do ato de fé: inteligência, vontade e graça.
A fé é uma graça: “Quando S. Pedro confessa que Jesus é o Cristo, Filho do Deus vivo, Jesus lhe
declara que esta revelação não lhe veio «da carne e do sangue, mas de meu Pai que está nos céus». A fé é um
dom de Deus, uma virtude sobrenatural infundida por Ele. «Para que se preste esta fé, exigem-se a graça
Síntese teológica / 3
prévia e adjuvante de Deus e os auxílios internos do Espírito Santo, que move o coração e o converte a Deus,
abre os olhos da mente e dá a todos suavidade no consentir e crer na verdade.»” (Cat. 153).
A fé é um ato humano: “Crer só é possível pela graça e pelos auxílios interiores do Espírito Santo.
Mas não é menos verdade que crer é um ato autenticamente humano. Não contraria nem a liberdade nem a
inteligência do homem confiar em Deus e aderir às verdades por Ele reveladas. Já no campo das relações
humanas, não é contrário à nossa própria dignidade crer no que outras pessoas nos dizem sobre si mesmas e
sobre suas intenções e confiar nas promessas delas (como, por exemplo, quando um homem e uma mulher se
casam), para entrar assim em comunhão recíproca. Por isso, é ainda menos contrário à nossa dignidade
«prestar, pela fé, à revelação de Deus plena adesão do intelecto e da vontade» e entrar, assim, em comunhão
íntima com ele” (Cat. 154).
“Na fé, a inteligência e a vontade humanas cooperam com a graça divina: «Credere est actus
intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis a Deo motae per gratiam –
A fé e a inteligência :
♦ “O motivo de crer não é o fato de as verdades reveladas aparecerem como verdadeiras e inteligíveis à
luz de nossa razão natural. Cremos «por causa da autoridade de Deus que revela e que não pode nem enganar-
se nem enganar-nos». «Todavia, para que o obséquio de nossa fé fosse conforme à razão, Deus quis que os
auxílios interiores do Espírito Santo fossem acompanhados das provas exteriores de sua Revelação». Por isso,
os milagres de Cristo e dos santos, as profecias, a propagação e a santidade da Igreja, sua fecundidade e
estabilidade «constituem sinais certíssimos da Revelação, adaptados à inteligência de todos», «motivos de
credibilidade» que mostram que o assentimento da fé não é «de modo algum um movimento cego do
espírito»” (Cat. 156).
♦ “A fé é certa, mais certa que qualquer conhecimento humano, porque se funda na própria Palavra de
Deus, que não pode mentir. Sem dúvida, as verdades reveladas podem parecer obscuras à razão e à
experiência humanas, mas «a certeza dada pela luz divina é maior que a que é dada pela luz da razão natural».
«Dez mil dificuldades não fazem uma única dúvida.»” (Cat. 157).
♦ “«A fé procura compreender»: é característico da fé o crente desejar conhecer melhor Aquele em
quem pôs sua fé e compreender melhor o que Ele revelou; um conhecimento mais penetrante despertará por
sua vez uma fé maior, cada vez mais ardente de amor. A graça da fé abre «os olhos do coração» (Ef 1,18) para
uma compreensão viva dos conteúdos da Revelação, isto é, do conjunto do projeto de Deus e dos mistérios da
fé, do nexo deles entre si e com Cristo, centro do Mistério revelado. Ora, para «tomar cada vez mais profunda
a compreensão da Revelação, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa continuamente a fé por meio de seus dons»
(DV 5). Assim, segundo o adágio de Sto. Agostinho «eu creio para compreender, e compreendo para melhor
crer»” (Cat. 158).
♦ Fé e ciência. «Porém, ainda que a fé esteja acima da razão, não poderá jamais haver verdadeira
desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e infunde a fé dotou o espírito
humano da luz da razão; e Deus não poderia negar-se a si mesmo, nem a verdade jamais contradizer a
verdade.» «Portanto, se a pesquisa metódica, em todas as ciências, proceder de maneira verdadeiramente
científica, segundo as leis morais, na realidade nunca será oposta à fé: tanto as realidades profanas quanto as
da fé originam-se do mesmo Deus. Mais ainda: quem tenta perscrutar com humildade e perseverança os
segredos das coisas, ainda que disso não tome consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que
sustenta todas as coisas, fazendo com que elas sejam o que são.» (GS 36, 2)” (Cat. 159).
A liberdade da fé: “Para que o ato de fé seja humano, «o homem deve responder a Deus, crendo por
livre vontade. Por conseguinte, ninguém deve ser forçado contra sua vontade a abraçar a fé. Pois o ato de fé é
por sua natureza voluntário». «Deus de fato chama os homens para servi-lo em espírito e verdade. Com isso
os homens são obrigados em consciência, mas não são forçados... Foi o que se patenteou em grau máximo em
Jesus Cristo» (DH 11). Com efeito, Cristo convidou à fé e à conversão, mas de modo algum coagiu. «Deu
testemunho da verdade, mas não quis impô-la pela força aos que a ela resistiam. Seu reino... se estende graças
ao amor com que Cristo, exaltado na cruz, atrai a si os homens» (DH 11)” (Cat. 160).
3
Sto. Tomás de Aquino, S. Th. II-II,2,9; cf. Conc. Vaticano I: DS 3010.
Síntese teológica / 4
A necessidade da fé: “É necessário, para obter esta salvação, crer em Jesus Cristo e naquele que o
enviou para nossa salvação4. «Como, porém, "sem fé é impossível agradar a Deus" (Hb 11,6) e chegar ao
consórcio dos seus filhos, ninguém jamais pode ser justificado sem ela, nem conseguir a vida eterna, se nela
não "permanecer até o fim" (Mt 10,22; 24,13).»” (Cat. 161).
A perseverança na fé: “A fé é um dom gratuito que Deus concede ao homem. Podemos perder este
dom inestimável; S. Paulo alerta Timóteo sobre isso: «Combate... o bom combate, com fé e boa consciência;
pois alguns, rejeitando a boa consciência, vieram a naufragar na fé» (1 Tm 1,18-19). Para viver, crescer e
perseverar até o fim na fé, devemos alimentá-la com a Palavra de Deus; devemos implorar ao Senhor que a
aumente5; ela deve «agir pela caridade» (Gl 5,6; cf. Tg 2,14-26), ser carregada pela esperança (cf. Rm 15,13) e
estar enraizada na fé da Igreja” (Cat. 162).
A fé – começo da vida eterna : “A fé nos faz degustar como por antecipação a alegria e a luz da
visão beatífica, meta de nossa caminhada na terra. Veremos então a Deus «face a face» (1Cor 13,12), «tal
como Ele é» (1Jo 3,2). A fé já é, portanto, o começo da vida eterna: Enquanto desde já contemplamos as
bênçãos da fé, como um reflexo no espelho, é como se já possuíssemos as coisas maravilhosas que um dia
desfrutaremos, conforme nos garante nossa fé6.” (Cat. 163).
“Por ora, todavia, «caminhamos pela fé, não pela visão» (2Cor 5,7), e conhecemos a Deus «como que em
um espelho, de uma forma confusa..., imperfeita» (1Cor 13,12). Luminosa em virtude daquele em que ela crê,
a fé é muitas vezes vivida na obscuridade. A fé pode ser posta à prova. O mundo em que vivemos muitas
vezes parece estar bem longe daquilo que a fé nos assegura; as experiências do mal e do sofrimento, das
injustiças e da morte parecem contradizer a Boa Nova; podem abalar a fé e tornar-se para ela uma tentação”
(Cat. 164).
“É então que devemos nos voltar para as testemunhas da fé: Abraão, que creu, «esperando contra toda
esperança» (Rm 4,18); a Virgem Maria, que na «peregrinação da fé» (LG 58) foi até a «noite da fé»,
comungando com o sofrimento de seu Filho e com a noite de seu túmulo; e tantas outras testemunhas da fé:
«Com tal nuvem de testemunhas ao nosso redor, rejeitando todo fardo e o pecado que nos envolve, corramos
com perseverança para o certame que nos é proposto, com os olhos fixos naquele que é autor e realizador da
fé, Jesus» (Hb12,12)” (Cat. 165).
Ora, Deus, o ser em sua perfeição infinita, é também um mistério feliz e insondável de
amor e, portanto, de união. Ele é o mistério de amor, a realização infinitamente perfeita do
que é “amor”. Deus é o mistério da
união perfeita entre três pessoas realmente distintas entre Si,
uma união que é c o m u n h ã o t o t a l entre as pessoas.
Esta comunhão total se explica por duas ações de a u t o c o m u n i c a ç ã o i n t e g r a l .
Antes de entrar nesta explicação, consideremos o seguinte. Deus é um só. É impossível que
haja dois ou três Deuses. Mas este único Deus é Pai, é Filho e é Espírito Santo. Deus Pai é
perfeitamente Deus; é Pessoa de natureza divina; identifica-Se com o infinito ser divino (ato de
ser, ato de conhecer, ato de amar), com a divindade. Também o Filho é perfeitamente Deus,
4
Cf. Mc 16,16; Jo 3,36; 6,40 e.o.
5
Cf. Mc 9,24; Lc 17,5; 22,32.
6
S. Basílio, Liber de Spiritu Sancto, 15,36: PG 32,132; cf. Sto. Tomás de Aquino, S. Th. II-II, 4,1.
Síntese teológica / 5
Pessoa da mesma e idêntica natureza divina (não pode haver duas naturezas ou substâncias
divinas); é “consubstancial ao Pai”. O mesmo vale da Pessoa do Espírito Santo. Assim existem
Três que são o único Deus, três Pessoas da única e mesma natureza divina. A divindade não é
dividida, é absolutamente uma só e mesma. Entre as três Pessoas há, portanto, uma comunhão
total, sendo exatamente assim o único Deus.
Ora, o Pai e o Filho e o Espírito Santo não são apenas perfeitamente um, mas também
perfeitamente distintos um do outro. A distinção entre eles é claríssima, não havendo, portanto,
nenhuma possibilidade de “confusão”, pois elas se distinguem pela oposição das relações de
origem. Estas relações de origem são as seguintes:
paternidade7 – filiação
(relação de origem: de Pai a Filho) (relação de origem: de Filho a Pai)
8
espiração ativa – espiração passiva
(relação de Pai e Filho a Espírito Santo) (relação de Espírito Santo a Pai e Filho
A única possibilidade de distinção real na divindade é esta oposição das relações de origem.
Estas relações opostas não apenas distinguem as Pessoas divinas entre Si,
mas também as constituem,
enquanto estas relações (de paternidade, filiação e espiração passiva),
elas mesmas, são subsistentes
(identificando-se com a substância divina).
A relação de “espiração ativa” não constitui uma outra pessoa, pois não existe uma oposição
entre esta relação e a relação da paternidade ou, respectivamente, da filiação. Por conseguinte,
não existe uma distinção real entre a relação da paternidade (que constitui a Pessoa do Pai) e a
relação de origem do Pai ao Espírito Santo, bem como entre a relação da filiação (que constitui a
Pessoa do Filho) e a relação de origem do Filho ao Espírito Santo.
Assim, a Pessoa divina do Pai é a relação subsistente de paternidade,
a Pessoa do Filho é a relação subsistente de filiação, e
a Pessoa do Espírito Santo é a relação subsistente de espiração passiva.
A definição de “Pessoa divina” é, portanto, a seguinte:
subsistens distinctum in natura divina,
ou seja, um ser subsistente distinto (unicamente pela oposição das relações de origem) na
natureza divina. A pessoa, em geral, é um ser subsistente, distinto dos outros seres, mas para ser
pessoa tem de ser um ser subsistente numa natureza intelectual. E quando essa natureza
intelectual é a natureza divina, a distinção entre os seres subsistentes nesta natureza é
unicamente a da oposição de relação de origem: a paternidade se distingue claramente da
filiação, pois é a relação oposta à filiação. Ao mesmo tempo, existe entre o Pai e o Filho a mais
perfeita união: comunhão total.
7
“Paternidade” ou “filiação” é o nome da relação. “Pai” ou “Filho” é o nome da pessoa. Os nomes “pai” e
“filho” são nomes relativos; exprimem, portanto, uma relação e são absolutamente simultâneos, pois não se pode
pensar “pai” sem pensar ao mesmo tempo “filho”, pois não existe um pai se não há um filho.
8
“Espiração” é nome de uma ação, não de uma relação. Porém, falamos deste modo porque nos falta uma
palavra para designar essa relação de origem, bem como a relação do Pai e do Filho ao Espírito Santo.
Síntese teológica / 6
Pode-se explicar esta comunhão total quando, na relação que é a Pessoa divina, se
considera o aspecto de “ato”, “ação”.
♦ Sob este aspecto, a relação de paternidade é ato de gerar o Filho, e a relação de origem do
Pai (e do Filho) ao Espírito Santo é o ato de “espirar” o Espírito Santo.
♦ A relação de filiação e de espiração passiva são esses atos sob forma “passiva”, ou seja, de
ativa recepção (“ser gerado” e “ser espirado”).
Uma vez que a realidade que age, sempre é um sujeito (“actiones sunt suppositorum”) –
tratando-se de um sujeito de natureza intelectual, é uma pessoa –, a pessoa divina é
logicamente9 anterior à ação. Assim, a primeira Pessoa divina gera, porque é Pai. Por ser
relação de “paternidade”, o seu ato é “gerar”.
É a “geração” eterna do Filho por parte do Pai e a “espiração” do Espírito Santo por parte do Pai
e do Filho (ou do Pai pelo Filho), sendo Pai e Filho um só princípio de espiração. O ato eterno
de gerar o Filho é, por parte do Pai, um ato de comunicação de todo o ser divino, de tudo que o
Pai tem, isto é, de tudo o que Ele é. É autocomunicação integral do Pai ao Filho, de modo que o
Filho é tão perfeitamente Deus como o Pai, isto é, Ele é a única e indivisa divindade infinita, um
só Deus com o Pai. O mesmo vale do ato do Pai e do Filho, do qual procede eternamente o
Espírito Santo: a espiração do Espírito Santo é a comunicação de todo o ser divino ao Espírito
Santo, isto é: o Espírito Santo procede do Pai e do Filho como sendo tão perfeitamente Deus, o
único Deus, como o Pai e o Filho.
Uma vez que a autocomunicação é integral, a união entre as três Pessoas divinas
(diretamente, entre a Pessoa que gera e a Pessoa gerada e entre as Pessoas que espiram e a
Pessoa que procede deste ato de espiração) é uma comunhão total entre três Pessoas realmente
distintas entre Si. Trata-se, portanto, de uma realização perfeita – além daquilo que podemos
entender com a nossa limitada inteligência humana – do que deseja quem ama ardentemente
outra pessoa: tornar-se um com ela, o quanto for possível. Em Deus é possível como não o é
entre pessoas criadas. Assim, Deus é o mistério perfeito do amor; “Deus é amor” (1 Jo 4,8).
Voltemos para a distinção na união. A distinção entre Pai e Filho é a distinção originária
de toda outra distinção. Por isso, podemos dizer, com toda a razão: O mistério de Deus Trindade
nos manifesta que a distinção é uma coisa boa, muito boa.10 O fato de haver duas Pessoas
distintas uma da outra, e mais uma terceira, distinta das duas primeiras, não provém de alguma
imperfeição nem é algo imperfeito, mas é máxima perfeição. Com efeito, a pessoa é o que há de
mais perfeito na natureza, e para existirem pessoas deve haver distinção. Porém, se houvesse
apenas distinção e não união, haveria uma imperfeição nesse fato. Pois
Em Deus, isso está realizado de modo absolutamente perfeito: três pessoas realmente e
claramente distintas uma das outras e, ao mesmo tempo, perfeitamente unidas: em comunhão
9
Evidentemente, trata-se apenas de uma anterioridade lógica. Na realidade divina, a relação – isto é, a Pessoa
divina que é esta determinada relação subsistente – e a ação são perfeitamente simultâneas, ou seja, eternas.
10
Isto vale também para a distinção entre Deus Criador e as criaturas.
Síntese teológica / 7
total entre si. Elas não são três Deuses, mas um só Deus, o Deus-Amor, Deus-Comunhão, Deus-
Comunidade-perfeita. Assim, o Pai não Se distingue do Filho como Deus, mas como Pai; o
Filho não Se distingue do Pai como Deus, mas como Filho. E o mesmo vale para o Espírito
Santo: Ele não Se distingue das outras duas Pessoas como Deus, mas como Espírito Santo.
Ainda precisamos esclarecer a distinção entre as duas autocomunicações em Deus. Esta
distinção pode ser indicada de duas maneiras:
1) por uma distinção – apenas conceitual, não real! – entre os atos de “gerar” e de “espirar”, ou
seja, entre os atos de conhecer e de amar;
2) por uma distinção na “posição” quanto à ordem das processões intradivinas (processão do
Filho e processão do Espírito Santo).
1) Vejamos a primeira maneira de indicar a distinção. A “geração” (ato do Pai) é, segundo o
aspecto determinante (“formalmente”), um ato do entendimento (intelecção) do Pai; por isso, o
“Filho” (= o que procede do ato de “gerar”) é também a “Palavra” (= o que procede do ato de
conhecer intelectualmente11) e, portanto, a “Imagem” perfeita do Pai. Eis, portanto, os nomes
próprios da segunda Pessoa divina: FILHO, PALAVRA, IMAGEM.
O Espírito Santo, por Sua vez, não procede por “geração”; não é “Filho”. Por isso, Ele não
procede, sob o aspecto determinante (formalmente), do ato de conhecer, mas do ato de amar
(do Pai e do Filho). Com efeito, existe uma característica comum entre o ato de conhecer e o ato
de gerar. E esta é uma característica que não existe no ato de amar.
Trata-se do seguinte: “produzir” uma semelhança (uma imagem) é essencial tanto para o ato
de conhecer como para o ato de gerar. A geração pode definir-se como sendo “a origem de um
ser vivente a partir de um princípio vivente conjunto (no ponto de partida), numa semelhança
específica”. Este elemento da “semelhança” (ao menos específica) faz parte essencial da
definição de geração, bem como faz parte da essência do ato de conhecer, que sempre produz
uma “imagem” da realidade conhecida (um “conceito”, no conhecimento intelectual). Este não é
o caso do ato de amar. A “impressão do amado no amante” (São Tomás) não é a semelhança, a
imagem do ser amado, mas é uma tendência, uma inclinação, um impulso rumo ao amado.12 Tal
“produto” do ato de amar (logo no início do ato), produto esse que (por falta de um nome
próprio, distinto) chamamos de “amor”, é a base da união de amor (união afetiva) entre o
amante e o amado.
Portanto, o Espírito Santo não procede por geração ou como Filho, porque procede do ato
de amor do Pai e do Filho. Por que não somente do ato de amor do Pai? Porque ao ato de amor
precede logicamente o ato de entendimento, e assim a processão do Filho (geração como ato de
entendimento do Pai) precede logicamente à processão do Espírito Santo. A Pessoa de quem o
11
Trata-se da “palavra da mente”, ou seja, do “conceito” (cf. o verbo “conceber”, para indicar o ato de
entendimento), da “imagem” intelectual da realidade conhecida. Por isso mesmo, o Filho é também a “Imagem”
perfeita do Pai.
12
Eis aqui a exposição concisa de S. Tomás: “A processão de amor, em Deus, não deve ser chamada de
geração. Para prová-lo, deve-se saber que há uma diferença entre o intelecto e a vontade. O intelecto torna-se ato
quando a coisa por ele conhecida está no intelecto segundo sua semelhança. A vontade, porém, torna-se ato, não
pelo fato de alguma semelhança do que é querido estar na vontade, mas porque a vontade tem certa inclinação para
o bem que quer. Por conseguinte, a processão que corresponde à razão de intelecto é tal segundo a razão de
semelhança; e por isso pode ter a razão de geração, pois todo aquele que gera gera um semelhante a si. Mas a
processão que corresponde à razão de vontade não é considerada segundo a razão de semelhança, mas segundo a
razão do que impele e move para algo. Assim, o que procede em Deus por modo de amor não procede como algo
gerado, ou como filho, mas mais propriamente como um espírito. Por esse nome se designa uma certa moção vital e
um impulso, no sentido em que se diz que o amor move e impele a fazer alguma coisa” (S.Th. I, q. 27, a. 4).
Síntese teológica / 8
Espírito Santo procede é, portanto, a Pessoa constituída pela relação subsistente de paternidade,
a Pessoa do Pai. Isto significa que Ele procede da Pessoa que tem um Filho. E a este Filho o
Pai Se comunica integralmente. Entre o Pai e o Filho existe comunhão total; existe, portanto,
também comunhão no ato de amar, no ato, portanto, de espirar o Espírito Santo. No entanto, o
Filho é como Filho princípio do Espírito Santo (sendo um só princípio com o Pai); portanto, Ele
o é como Aquele que tem tudo do Pai (também o ato de amor), sendo o Pai princípio sem
princípio. Assim, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho ou do Pai pelo Filho (enquanto o
Filho tem tudo do Pai), ou seja,
o Espírito Santo procede do ato de amor comum e recíproco do Pai e do Filho.
Como nomes próprios são reconhecidos tradicionalmente:
ESPÍRITO SANTO, AMOR (procedente), DOM.
2) Vejamos agora a segunda maneira de indicar a distinção entre as duas processões divinas
na Divindade. O Filho procede do Pai. Assim há distinção e reciprocidade: relação de
paternidade e filiação, relações opostas uma à outra, e sendo estas relações verdadeiramente
pessoas, há a reciprocidade entre “Eu” e “Tu”, entre dois “Eu”. No entanto, o segundo “Eu” (o
Filho) é o “Tu” do primeiro (do Pai), já que este é a origem eterna do segundo “Eu”.
Mas, como dissemos, a distinção (nessa reciprocidade) é para a união. Daí é que dessa
reciprocidade, que é a reciprocidade do amor (o amor mútuo), procede a terceira Pessoa divina,
como a Pessoa-Amor, a Pessoa-Comunhão, a Pessoa-Dom. O Espírito Santo procede do amor do
Pai para com Seu Filho e do amor do Filho para com o Pai – amor comum e mútuo ao mesmo
tempo, pois o Filho tem o amor divino do Pai, pela “geração”; o Filho é amor divino como o
Gerado pelo Pai, como Filho. Por isso, Seu amor eterno ao Pai é como uma “resposta” de amor
ao amor do Pai por Ele. E deste amor comum (um só e mesmo amor divino) e recíproco do Pai e
do Filho procede o Espírito Santo, como o “Amor procedente”, como a Pessoa que é o “fruto”
(é o que procede) desse amor mútuo entre o Pai e o Filho.
Assim, o Espírito Santo é, como Pessoa, a união de amor entre o Pai e o Filho, a Sua
comunhão. Exprimindo-o em pronomes pessoais, podemos dizer:
Se o Pai é o “ E U ” divino, e
o Filho é o “ T U ” (como o segundo “Eu”),
o Espírito Santo é o “ N Ó S ” de Pai e Filho, a expressão pessoal da
união ou comunhão (unio amoris) entre as duas Pessoas.13
13
Todo relacionamento interpessoal reduz-se a dois tipos originários de relacionamento, os quais têm
estrutura fundamentalmente diversa: a relação interpessoal “eu-tu” e a relação “nós”. Todo outro relacionamento
interpessoal é uma extensão ou variação desses dois tipos originários ou fundamentais.
A relação de união interpessoal “eu-tu” pressupõe, como a expressão já indica, duas pessoas distintas uma da
outra. O distintivo particular deste relacionamento é justamente a referência mútua de duas pessoas: uma se
encontra defronte da outra, uma está voltada para a outra, e vice-versa. Quando as duas pessoas se amam,
reconhecem e aprovam a sua distinção de pessoas, mas desejam ao mesmo tempo a união. Podemos dizer: num
primeiro passo, o amor age segundo o lema “a cada um o que é seu” (justiça); num segundo passo, o amor é um sair
de si mesmo para a entrega do que é próprio ao outro, segundo o lema “o meu é teu”.
A relação de união “nós”, ao invés, apresenta uma estrutura diferente, enquanto está marcada pela
característica do “comum”: um junto com o outro, um ao lado do outro, dois olham (agem) juntamente na mesma
direção, enquanto na união “eu-tu” um olha para o outro. É só juntamente que duas pessoas podem dizer: “nós”;
não é possível que digam “nós” uma à outra. Os dois “eu” (“eu”, “tu”) querem tornar-se um, sem, no entanto, deixar
de serem dois “eu”. Mas não querem ficar simplesmente um “eu” e “tu”; querem ser um só, formar um “nós”. No
encontro de amor entre “eu” e “tu”, a outra pessoa é reconhecida e confirmada em sua singularidade e distinção em
vista da união intencionada desde o começo, e tal união “nós” é a consumação da união “eu-tu”.
Um exemplo em que se pode elucidar a diferença e, ao mesmo tempo, a unidade real de união “eu-tu” e “nós”
é a conclusão da aliança, como p. ex. a aliança matrimonial: o consentimento matrimonial é um recíproco dizer “tu”
Síntese teológica / 9
Vemos, portanto, que o Filho e o Espírito Santo têm uma posição distinta na ordem das
processões.
Uma característica própria da processão do Filho
é de Ele proceder de u m a s ó pessoa, isto é, do Pai,
enquanto o Espírito Santo procede de d u a s pessoas ao mesmo tempo.
Considerando também o fato da “pericorese” das Pessoas divinas em virtude das processões, ou
seja, das relações de origem opostas, podemos caracterizar a Pessoa do Espírito Santo como
“Duas Pessoas (Pai e Filho) em uma Pessoa” (sob o ponto de vista da processão) ou “Uma
Pessoa em duas Pessoas (Pai e Filho)” (sob o ponto de vista das relações).14
Em Deus há, portanto, uma só Pessoa que não procede de nenhuma outra pessoa (o Pai, que,
portanto, é “princípio sem princípio”, “origem sem origem”), e há duas Pessoas que procedem
de outra(s) Pessoa(s). Mas há também, como acabamos de ver, uma clara distinção entre as duas
Pessoas procedentes. De fato, o Filho e o Espírito Santo têm uma posição bem diferente na vida
intratrinitária:
O Filho é a Pessoa que procede de outra Pessoa (do Pai) e é, com o Pai, origem de outra
Pessoa divina (do Espírito Santo);
O Espírito Santo é a Pessoa divina que procede de outra Pessoa – exatamente de duas
Pessoas –, mas d’Ele não procede nenhuma outra Pessoa divina.
Assim, as duas Pessoas divinas procedentes também terão certamente uma posição
diferente na vida extratrinitária ou extradivina, quer dizer, na autocomunicação de Deus
Trindade às Suas criaturas, ou seja, no “prolongamento” das processões intradivinas a efeitos
temporais, fazendo participar as criaturas, de alguma maneira, dessas processões.
Ainda quanto à Pessoa do Pai, pode-se reconhecer que Ele é a primeira origem de toda
autoridade no mundo criado, pois a ordem das processões em Deus não pode ser invertida: O
Pai – e não o Filho nem o Espírito Santo – é a Pessoa que é a “origem e fonte de toda a
divindade”, isto é, a origem tanto do Filho como do Espírito Santo. As duas Pessoas procedentes
são da mesma dignidade, majestade e perfeição divina como o Pai (a mesma natureza divina),
mas o Pai, e somente o Pai, é a origem tanto do Filho quanto do Espírito Santo. No mundo
criado, os pais, por serem origem dos seus filhos (por geração), têm autoridade sobre eles,
embora estes tenham a mesma dignidade de pessoas humanas (a mesma natureza humana,
especificamente a mesma natureza).
(dizer “sim” à outra pessoa, entregar-se a ela e aceitar a entrega dela) que, ao mesmo tempo, estabelece a aliança
matrimonial entre as duas pessoas. Ora, o dizer “sim” é, de modo exclusivo, próprio a cada uma das duas pessoas,
enquanto a aliança não é “minha” aliança, mas sempre “nossa” aliança. Deste modo, no recíproco dizer “tu” realiza-
se, ao mesmo tempo, um comum dizer “nós”. Portanto, não se deve separar os dois tipos de relacionamento, mas
distingui-las. A aliança é expressão e sinal do íntimo “nós”. E como tal ela é o pressuposto para a realização de atos
comuns, nos quais as duas pessoas se voltam a um terceiro, precisamente ao filho. “O filho é um fruto e uma
concretização da união ‘eu-tu’ dos pais, enquanto esta contém, ao mesmo tempo, uma união ‘nós’” (H. Mühlen). O
filho é a expressão visível do “nós” dos pais.
14
É evidente que o Pai está no Filho e também no Espírito Santo, bem como o Filho está no Pai e também no
Espírito Santo, mas em virtude da geração e das correspondentes relações de origem o Pai está somente no Filho e
o Filho está somente no Pai. Em virtude da espiração comum e da correspondente relação comum ao Espírito Santo,
o Pai está, com o Filho, também no Espírito Santo. O Espírito Santo, porém, está no Pai e no Filho em virtude da
Sua processão e correspondente relação de origem ao Pai e ao Filho ao mesmo tempo.
Síntese teológica / 10
Com efeito, Deus que Se revelou no Antigo Testamento e concluiu uma aliança com o povo
de Israel, aliança que se compara à aliança entre o homem e a mulher no matrimônio, jamais Se
apresentou no papel da esposa, mas sempre e unicamente no de esposo. Esta é a estrutura da
aliança: Deus = o esposo; o povo de Israel = a esposa. Assim é também na Nova Aliança: Jesus
Cristo, o Filho de Deus encarnado = o esposo; a Igreja = a esposa. Jamais Jesus chamou Deus de
“Mãe”; sempre Se dirigia a Deus como a Seu “Pai” (“Abba”). Deus comparou Seu amor
(ternura, compaixão) com o amor de uma mãe, isto sim. Pois a força, intimidade, ternura,
fidelidade e profundidade do amor de uma mãe para com o fruto de suas entranhas podem servir
de base para Deus nos fazer entender – na medida do possível – a perfeição do Seu amor por
nós.
A Igreja, ao chamar a primeira Pessoa da Ss. Trindade sempre e unicamente de “Pai”, não
de “Mãe”, simplesmente tem seguido fielmente os dados da Revelação divina. Esta é a norma
da oração cristã.
Uma vez que Deus nunca age arbitrariamente, mas sempre de acordo com Sua sabedoria,
pode-se encontrar também uma r a z ã o p o r q u e Ele Se revelou do modo indicado. Eis, em
síntese, a razão que se pode encontrar.
Para manifestar o mistério da “geração” em Deus de um modo que não induza a uma
concepção errada, a primeira Pessoa divina (a Pessoa que “gera”) não podia revelar-Se ou ser
revelada como “Mãe”, mas, sim, como “Pai”, embora a Pessoa divina não seja nem homem nem
mulher, não seja nem masculina nem feminina; sendo puríssimo espírito, não tem sexo.
A razão disso é o papel diferente do homem (pai) e da mulher (mãe) na geração de um filho.
Quanto a esta geração, constatamos o seguinte fato:
A santíssima Virgem é o modelo perfeito e singular da criatura em relação a Deus, sendo que ela
foi fecundada não por um homem, mas diretamente por Deus. O papel do homem na geração
humana é ativo: fecundar a mulher, gerar fecundando a sua esposa.
Síntese teológica / 11
Se, portanto, a primeira Pessoa divina devia autodenominar-Se a partir da realidade humana
da geração (pois devia usar os conceitos humanos que são formados a partir da realidade
conhecida por nós; no caso, a geração humana), não podia denominar-Se com o nome de “mãe”,
mas somente com o nome de “pai”. Pois o “pai” é quem tem o papel ativo na geração humana.
O homem (varão), na verdade, também é criatura, e por isso não pode gerar de si mesmo e por
si mesmo, mas apenas pela união com a mulher, fecundando-a. Isso, no entanto, não abole o fato
que ele, em contraposição ao papel da mulher, é ativo na geração. Por isso, Deus, que é ativo,
pura atividade (ato puro), também na geração, Se chama de “Pai” e não de “Mãe”, ou seja, a
primeira Pessoa divina é “DEUS PAI”; não é “deusa”, nem é “mãe”, mas nos ama com um amor
comparável à ternura e intimidade do amor de uma mãe, ou melhor, com um amor muito mais,
infinitamente mais terno e íntimo e fiel... do que o de uma mãe pode ser. A expressão “Deus
Pai” sugere também a transcendência divina (“Pai nosso que estais nos Céus”, “Senhor do Céu
e da terra”), enquanto falamos naturalmente da “mãe terra”, e as religiões que cultuam deusas
costumam não salvaguardar a absoluta transcendência divina (imanentismo, panteísmo).
Conhecemos o mistério trinitário de Deus através do envio do Filho pelo Pai e do envio do
Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho encarnado. De fato, através dessas duas missões divinas
chegamos a conhecer características próprias das três Pessoas divinas, distinguindo-as umas das
outras. São as seguintes:
Pai: não é enviado e envia;
Filho: é enviado e envia;
Espírito Santo: é enviado e não envia.
Daí conhecemos aquelas características das três Pessoas divinas que são o fundamento ou a
“raiz” dessas características, a saber: as características relacionadas às processões intradivinas:
Pai: não procede de ninguém (é origem sem origem) d’Ele procedem duas Pessoas divinas;
Filho: procede do Pai e d’Ele procede o Espírito Santo;
Espírito Santo: procede do Pai e do Filho e d’Ele não procede ninguém.
Através das duas missões divinas no tempo chegamos a conhecer as duas processões eternas
em Deus: a geração do Filho e a espiração do Espírito Santo. A “processão” divina é a origem
eterna de uma pessoa divina de outra pessoa. Conhecemos esta origem intradivina do Filho e do
Espírito Santo através da missão (do envio) destas duas Pessoas, a qual é um certo “vir”, “sair”
de outra pessoa, a saber, da pessoa (ou das pessoas) que envia(m).
Síntese teológica / 12
O envio do Filho por parte do Pai é um certo prolongamento da geração eterna por parte do
Pai; o envio é esta geração, acrescentando, porém, um termo temporal desta processão, ou seja,
um efeito no mundo das criaturas, uma nova presença da Pessoa procedente no mundo criado.
Assim, a geração do Filho é a origem do Filho da parte do Pai “para ser Deus”, quer dizer: o
termo desta processão é eterno, é a Pessoa divina do Filho na Divindade, enquanto o termo da
geração “prolongada” para dentro do mundo criado é a Pessoa divina do Filho entre os homens
ou, mais diretamente, a Pessoa do Filho como pessoa (portadora) de uma natureza humana
individual: o Filho é enviado para ser – não apenas Pessoa de natureza divina, mas também –
Pessoa de natureza humana, para ser homem.
Também para o envio do Espírito Santo vale que é a Sua processão do Pai e do (ou: pelo)
Filho, mas com um termo temporal: a Sua presença nas pessoas criadas (homens, anjos).
existência, à Pessoa de Deus Filho.15 Pois o Filho não é enviado para, simplesmente, estar entre
os homens ou nos homens, mas para ser homem e, então, como homem, estabelecer as relações
interpessoais com os outros homens e para, por fim, também estar nos homens, o que se
realizará pelo sacramento da Santíssima Eucaristia.
Por conseguinte, constatamos:
“Quando o Pai envia seu Verbo, envia sempre seu Sopro: missão conjunta em que o Filho e o
Espírito Santo são distintos, mas inseparáveis. Sem dúvida, é Cristo que aparece, ele, a Imagem
visível do Deus invisível; mas é o Espírito Santo que o revela” (Cat. 689).
“O que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus” (1Cor 2,11). Ora, seu Espírito
que o revela nos dá a conhecer Cristo, seu Verbo, sua Palavra viva, mas não se revela a si mesmo.
Aquele que “falou pelos profetas” faz-nos ouvir a Palavra do Pai. Mas, ele mesmo, nós não o
ouvimos. Só o conhecemos no momento em que nos revela o Verbo e nos dispõe a acolhê-lo na fé.
O Espírito de Verdade que nos “desvenda” o Cristo “não fala de si mesmo” 17. Tal apagamento,
propriamente divino, explica por que “o mundo não pode acolhê-lo, porque não o vê nem o
conhece”, enquanto os que crêem em Cristo o conhecem, porque ele permanece com eles (Jo
14,17). (Cat. 687)
Pensando na caracterização das Pessoas divinas como “EU”, “TU” e “NÓS”, podemos dizer
que a missão do Filho é o dizer-“TU”, por parte do Pai, para dentro do mundo criado: Jesus é a
própria Pessoa divina (“TU” do Pai) que, ao mesmo tempo, é homem, possuidora de uma
natureza humana individual. Jesus não é Pessoa divina unida a uma pessoa humana, mas um
único “TU” do Pai; também como homem, Ele é o “TU” do Pai.
O Espírito Santo – o “NÓS” do Pai e do Filho ou “uma Pessoa em duas Pessoas” – por Sua
missão Se torna “uma Pessoa em muitas pessoas”: Ele é, como Pessoa, a comunhão entre a
Pessoa de Jesus, enquanto homem, e o Pai, bem como entre Jesus e os homens e dos homens
entre si, e igualmente, em relação aos santos Anjos.
Pode-se também explicar a diferença entre a missão do Filho e a do Espírito Santo, partindo
das características específicas e claramente distintas entre a processão do ato de conhecer
(formar em si uma semelhança da realidade conhecida) e a processão do ato de amar (a do
Espírito Santo; no amar não se trata de formar uma imagem da realidade amada em si, mas da
tendência ao estar com a pessoa amada; a união de amor entre o amante e o amado).
15
Trata-se, portanto, do ato de fazer existir a natureza humana individual e, ao mesmo tempo, de uni-la à
Pessoa divina do Filho, de modo que não comece a existir uma nova pessoa humana, mas sim, que a Pessoa divina
do Filho comece a ser a pessoa desta natureza humana individual, isto é, um homem.
16
Cat. 485: “A missão do Espírito Santo está sempre conjugada e ordenada à do Filho (cf. Jo 16,14-15).”
17
Cf. Jo 16,13.
Síntese teológica / 14
Toda a teologia pode ser resumida no mistério de Deus Uno e Trino, o mistério de Deus em
Si, e nas duas missões divinas do Filho e do Espírito Santo. Quanto a isso, tem quem fale de
“Trindade imanente” (Deus em Si) e “Trindade econômica” (as duas missões divinas).
Podemos, com os Padres da Igreja, falar de theología e de oikonomía.
Os Padres da Igreja distinguem entre a “Theologia” e a “Oikonomia”, designando com o primeiro
termo o mistério da vida íntima do Deus Trindade e com o segundo todas as obras de Deus por
meio das quais ele se revela e comunica sua vida. É mediante a “Oikonomia” que nos é revelada
a “Theologia”; mas, inversamente, é a “Theologia” que ilumina toda a “Oikonomia”. As obras de
Deus revelam quem Ele é em si mesmo e, inversamente, o mistério de seu Ser íntimo ilumina a
compreensão de todas as suas obras. Acontece o mesmo, analogicamente, entre as pessoas
humanas. A pessoa mostra-se em seu agir e, quanto melhor conhecermos uma pessoa, tanto melhor
compreenderemos seu agir. (Cat. 236)
Vejamos brevemente as diversas disciplinas teológicas, sob esse aspecto.
Theología: Deus em Si, Uno e Trino, comunhão total de três Pessoas distintas
Oikonomía:
Teologia Fundamental: as duas missões divinas como automanifestação e autodoação
(revelação) de Deus, credenciada, fielmente transmitida e acolhida pela fé;
S. Escritura: estudo do meio privilegiado de transmissão da Revelação divina na história;
Patrologia-Patrística: estudo dos Padres da Igreja como testemunhas particulares da
S. Tradição, o meio fundamental de transmissão da Revelação divina na história;
Criação: Deus Criador (conexão entre as processões eternas e a processão das criaturas);
a criação como fundamento (condição) para a missão do Filho e do Espírito Santo;
Angelologia: a missão do Filho e do Espírito Santo em relação às criaturas espirituais
Antropologia teológica: a missão do Filho e do Espírito Santo como dom original
à criatura espiritual e material (ser humano), rejeitado pelo pecado;
Cristologia: reflexão sobre a missão do Filho e do Espírito Santo:
Jesus (envio do Filho, Encarnação) Cristo (o Espírito Santo na alma de Jesus);
Soteriologia: missão do Filho e do Espírito Santo (missão-obra de Jesus Cristo,
cooperando o Espírito Santo);
Mariologia: “a obra-prima da missão do Filho e do Espírito na plenitude do tempo” (Cat. 721);
Graça: a autocomunicação de Deus Trindade às criaturas e todos os dons divinos gratuitos
relacionados a esta autocomunicação;
Eclesiologia: Igreja como sacramento (sinal, resultado e instrumento) da missão conjunta
do Filho e do Espírito Santo18;
Missiologia: a realização da natureza missionária da Igreja;
Ecumenismo: plena unidade visível dos cristãos a ser restabelecida;
Direito Canônico: o mistério de comunhão (pela missão do Filho e do Espírito Santo)
numa sociedade presente neste mundo;
18
Cat. 738: “Assim, a missão da Igreja não é acrescentada à de Cristo e do Espírito Santo, senão que é o
Sacramento dela: por todo o seu ser e em todos os seus membros, a Igreja é enviada a anunciar e testemunhar,
atualizar e difundir o mistério da comunhão da Santíssima Trindade”.
Síntese teológica / 15
Teologia Pastoral:como a Igreja tem de agir concretamente para realizar, com relação
aos membros da Igreja, a sua missão de sacramento da missão de Cristo e
do Espírito Santo (ilustrar os princípios teológicos da ação pela qual a vontade salvífica
de Deus pode, hoje em dia, ser efetuada na Igreja por meio de diversos ministérios e instituições) ;
as vicissitudes históricas do sacramento da missão conjunta do Filho
História da Igreja:
e do Espírito Santo;
Liturgia: obra da Santíssima Trindade; exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo,
por parte da Cabeça e dos membros;
a cooperação mais íntima entre o Espírito Santo e a Igreja;
Sacramentos: obra de Cristo, do Espírito Santo e da Igreja;
Teologia Moral: a vida “em Cristo” e “no Espírito”, aqui na terra; como caminhar (atos,
“a fé que opera pela caridade”) para atingir a meta para a qual Cristo nos precedeu;
Teologia Espiritual: complementa a doutrina moral: como desenvolver a vida “no Espírito”
(segundo as diversas vocações, estados de vida e situações concretas);
Escatologia: a consumação da missão conjunta do Filho e do Espírito Santo.
V. O trajeto da criação:
de Deus Trindade para Deus Trindade
Do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, procedem as criaturas, pelo ato criador,
“na diversidade da essência”.
A este respeito, São Tomás diz que as processões intradivinas (geração e espiração) são
“causa” e “ratio”, causa e razão das processões extradivinas, isto é, da processão das criaturas da
mão criadora de Deus.19 De fato, as criaturas procedem do ato divino de conhecer e querer
(amar), e as duas Pessoas procedentes em Deus procedem igualmente do ato de conhecer do Pai
(isto é, enquanto é do Pai, enquanto este ato de conhecer si identifica com a relação de
paternidade) e do ato de amar do Pai e do Filho (isto é, enquanto é do Pai e do Filho, quer dizer:
o ato de amor, enquanto se identifica com a relação de paternidade e com a relação de filiação).
Em outras palavras: as processões extratrinitárias aparecem à razão iluminada pela fé como o
“prolongamento” e a “exteriorização” das processões intratrinitárias, isto é:
19
S.Th. I, q. 45, a. 7, ad 3: “as processões das Pessoas são, de certa forma, causa e razão da criação (causa et
ratio creationis aliquo modo)”; cf. S.Th. I, q. 45, a. 6, ad 1. Igualmente: In I Sent. d. 2, q. 1, prooemium: “Exitus
enim personarum in unitate essentiae est causa exitus creaturarum in essentiae diversitate”. “Postquam determinavit
Magister de processione divinarum personarum in unitate essentiae, quae est principium creaturarum et causa” (In I
Sent., d. 35, q. 1, prooemium).
Síntese teológica / 16
Existe, portanto, certa continuidade entre as processões eternas e a processão das criaturas
de Deus. Para entendermos esta continuidade é preciso levar em consideração o caráter
necessário das processões intratrinitárias. A “dicção” do Verbo e a “espiração” do Espírito
Santo não são acidentais à intelecção e ao querer divino; identificam-se com estes. Constituem,
portanto, o “modo infinito” da intelecção e do querer “criadores”. As processões intratrinitárias
são necessárias, enquanto a processão das criaturas é contingente.
Mas, se é assim, não existe uma ruptura entre esses dois tipos de processões? Uma ruptura
que contradiz a continuidade que acabamos de descobrir? Não devemos, então, admitir que a
processão das criaturas, longe de prolongar as processões intratrinitárias, se acrescenta a estas
“de fora”, e por isso deve ser entendida independentemente delas?
A resposta a esta dificuldade encontra-se num outro aspecto do mistério de Deus: a
liberdade do ato criador (e de todos os atos que dele dependem). É uma liberdade sem sombra
de contingência; a contingência está toda nos objetos deste ato. As criaturas, em seu conjunto e
cada uma em particular, são objetos contingentes da vontade, porque poderiam também não ser
queridos. Não poderiam ser queridos, se não fossem bons (são bons na medida em que existem),
mas a sua bondade não é e não pode ser pensada a não ser como consecutiva ao ato divino de
querê-los e de amá-los, não como se aquela bondade precedesse a esse ato divino e fosse
independente do mesmo.
O ato divino, porém, não é contingente. Não é um segundo ato, acrescentado àquele pelo
qual Deus ama a Si mesmo e amando-Se “espira” o Espírito Santo. É o mesmo ato, considerado
em relação aos objetos contingentes.
20
Toda esta questão faz pensar também na questão das r e l a ç õ e s d e D e u s à s c r i a t u r a s . Falamos de
“relações” no sentido de relação ontológica, como é a relação de origem, e não no sentido de “relacionamento”,
isto é, de relacionar-se com outrem através de atos de conhecimento e amor. É evidente que o “relacionamento” de
Deus conosco é real: Ele nos conhece e ama realmente. As relações de Deus às criaturas no sentido de relações
ontológicas (de origem), porém, não são reais, mas “de razão”. Isto significa: se existem as criaturas, em Deus não
existem mais relações reais do que as quatro relações de origem na vida intratrinitária. Do contrário, se não
houvesse criaturas, não existiriam certas relações em Deus que existiriam se houvesse criaturas (haveria uma
mudança real em Deus, pois uma relação real tem um fundamento real na realidade referida a outra); o que é
impossível. Por isso, a relação de Deus Pai às criaturas não é uma relação diferente da Sua relação de origem ao
Filho e ao Espírito Santo. E a relação de Deus Filho às criaturas não é uma relação diferente da Sua relação de
origem ao Espírito Santo. O Espírito Santo, por Sua vez, não tem, ou seja, não é na vida intratrinitária uma relação
de origem a um originado, mas somente relação de originado à Sua origem. Por isso, a relação de origem do
Espírito Santo às criaturas não se identifica com esta relação real (a “espiração passiva”). De fato, na vida
intratrinitária, os atos de conhecer e de amar, enquanto se identificam com a relação da “espiração passiva”, isto é,
com a Pessoa do Espírito Santo, não estão na origem de outra Pessoa divina, mas, sim, das criaturas.
Síntese teológica / 17
Deus Trindade,
na alegria de Sua comunhão total por autocomunicação integral,
em absoluta liberdade,
quer estender esta maravilha de comunhão e autocomunicação a outros seres.
Para isso, em primeiro lugar, os faz existir, por um ato Seu de conhecimento e vontade; é a
criação “do nada”.
Com a existência de criaturas, começa a existir outro tipo de distinção e união. Agora a
distinção é de essência: as criaturas não têm a essência divina, mas outra essência totalmente
diferente, bem como entre elas existe diferença de essência. Existe, portanto, distinção vertical:
entre Deus-Criador e as criaturas, e distinção horizontal: entre criatura e criatura ou também
entre um tipo de criatura e outros tipos de criatura (ser criado meramente espiritual: os anjos; ser
criado meramente material: o cosmo material; ser criado ao mesmo tempo espiritual e material:
o homem)21.
Mas, também aqui vale:
“A distinção é para a união”.
Ora, a distinção fundamental é a distinção entre a criatura e Deus; esta é a fundamental e a
maior. Mas Deus criou as criaturas para a união consigo; criou as criaturas-pessoas para uma
participação na Sua própria união-comunhão trinitária. Assim, Ele criou as criaturas também
para uma união entre elas, em Deus.
Podemos constatar: quanto mais perfeita for a criatura (segundo a sua essência, natureza),
mais perfeitamente ela se distingue das outras criaturas: um animal se distingue mais
perfeitamente de outro animal, inclusive da mesma espécie, do que uma planta se distingue de
outra planta; uma pessoa humana se distingue mais perfeitamente de outra, do que um animal de
outro animal; um anjo (pessoa puramente espiritual) se distingue mais perfeitamente de outro
anjo do que um homem de outro homem.
Podemos igualmente constatar: quanto mais clara for a distinção, tanto maior é também a
possibilidade de união, de autocomunicação e comunhão. Por exemplo, a união que pode existir
entre animais é menos perfeita do que a união-comunhão que as pessoas humanas podem
realizar entre si. Porém, a união fundamental para qualquer outra união perfeita é a união da
criatura com Deus.
21
Neste nível da distinção “horizontal” (distinção entre as criaturas, em contraposição à distinção entre criatura
e Deus) existem também distinções “verticais” entre as criaturas: os diversos níveis de perfeição, pela diversidade
de essência, de natureza.
Síntese teológica / 18
última a ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou. Chamamos de divina providência as
disposições pelas quais Deus conduz sua criação para esta perfeição. (Cat. 302)
Por que Deus as criou assim que elas precisem, através de uma atividade própria (é o
“caminhar”), voltar para Deus, ou seja, alcançar sua perfeição última, a saber, a união perfeita
com Deus? Para as criaturas que são pessoas, isso significa também que elas se encontram em
e s t a d o d e p r o v a ç ã o , podendo e devendo-se decidir livremente por ou contra Deus e o
caminho escolhido por Ele para aquela perfeição última.
É somente pela liberdade que eu posso oferecer a Deus, como algo meu,
o amor que é puro dom divino.
A liberdade caracteriza os atos propriamente humanos. Torna o ser humano responsável pelos atos
dos quais é voluntariamente autor. Seu agir deliberado é algo propriamente seu. (Cat. 1745)
Se eu posso amar a Deus livremente, posso oferecer a Deus, como algo verdadeiramente
meu, o amor que é puro dom divino. Deste modo, este amor também pode ser meritório.
Mas, como é que este amor pode ser livre? Somente pode ser amor livre se a pessoa criada
estiver “em estado de caminhada”, o que significa: se ela sofrer, de alguma maneira. Trata-se do
tipo de sofrimento que está implicado no “estado de caminhada”. Com efeito, se a pessoa criada
já se encontrasse na união perfeita com Deus, pela visão imediata de Deus mesmo, não teria
Síntese teológica / 19
mais algum desejo não satisfeito; portanto, não teria sofrimento algum; estaria plenamente feliz.
Porém, também não poderia amar a Deus livremente. Ela O amaria com uma necessidade
absoluta provinda da própria natureza da vontade, que é a faculdade de aderir ao bem. Por
conseguinte, a vontade está, por sua própria natureza, determinada a aderir (querer) ao bem por
essência, que é o fim último do homem: Deus. Diante de Deus, isto é, se o intelecto ver a Deus
(visão imediata; absoluta evidência), o homem não se pode, por seu livre arbítrio, auto-
determinar; ele está determinado de antemão (pela própria natureza da vontade) a amar a Deus;
ele O ama necessariamente. Certamente, ele não O amará forçadamente, como por uma
imposição de fora, mas espontaneamente, de dentro. Porém, amá-l’O-á necessariamente, isto é,
não por autodeterminação, sendo determinado pela natureza da vontade.
Sendo assim, podemos concluir: Se Deus criasse o homem (qualquer pessoa criada) e logo
lhe concedesse a visão imediata de Deus (não o criasse no estado de caminhada), o homem não
poderia amar a Deus com o amor com que Deus o ama (participação do amor divino), dando a
Deus esta resposta de amor como um amor propriamente seu, à semelhança da resposta de
amor do Filho eterno ao Pai. Pois, como vimos, se o homem não se encontrasse no estado de
caminhada (sofrimento), sua resposta de amor não seria livre; por conseguinte, essa resposta de
amor, ele não a poderia oferecer a Deus como algo propriamente seu.
A razão de ser por que Deus nos criou em estado de caminhada – dando-nos a “cruz da
provação”22 – é, portanto, o Seu amor a nós, um amor maior, um amor que quer o nosso bem
maior, um amor que se pode chamar de “sóbrio”, visando, na verdade, à nossa maior dignidade
e felicidade.
Deus não é determinado por algo ou alguém que não seja Ele mesmo.
22
O estado de caminhada é estado de provação, pois neste estado a pessoa criada pode e deve decidir-se
livremente diante de Deus e de Seu plano (o caminho pelo qual quer levar as pessoas criadas à perfeita união
consigo).
23
Pode-se defini-la como sendo “o poder, baseado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou
aquilo, portanto, de praticar atos deliberados” (Cat. 1731). Por este “livre-arbítrio”, “cada qual dispõe sobre si
mesmo” (ibid.).
24
Cf. S.Th. I, q. 18, a. 3: “Embora o nosso intelecto se determine a certas coisas, entretanto, outras lhe são
estabelecidas pela natureza, como os primeiros princípios, a respeito dos quais não se pode pensar diversamente, e
o fim último, que é impossível não querer. Por isso, ainda que se mova em relação a algo, contudo, é necessário
que, em relação a outras coisas, o intelecto seja movido por outro.”
Síntese teológica / 20
N’Ele, o próprio ser não é determinado por nada; não é determinado por alguma essência limitada, uma
vez que a Sua essência é o próprio ser (Ele é o próprio ser subsistente, ipsum esse subsistens). Sua
essência é simplesmente ser, um ser ilimitado. N’Ele, ser (infinito) e essência se identificam, como
também o agir se identifica com o ser divino. Portanto, a essência, a natureza de Deus não é limitada e
não é determinada por outrem25.
Por isso, só Deus é perfeitamente livre. Em primeiro lugar, é evidente que n’Ele existe a total
liberdade de coação, não existindo n’Ele nada de necessidade condicional, nem no Seu amor a Si
mesmo nem no amor às criaturas.
E a liberdade no sentido de livre arbítrio? Neste sentido, o amor de Deus é livre em relação às
criaturas. A Si mesmo, porém, Ele quer (ama) com a mesma necessidade absoluta com que Ele é. Ele
não pode não amar-Se como não pode não existir; seria contra a Sua essência ou natureza. Não amar-Se
seria contradizer-Se a Si mesmo, que é o amor e o bem supremo (bem-por-essência). Neste sentido, a
Sua vontade é determinada, por Sua natureza, a amar, ou seja, Deus é o objeto necessário do Seu amor.
Esta determinação, porém, não é uma heterodeterminação, pois Deus (em Seu ser, em Sua natureza)
não está determinado (a amar) por alguém ou algo que não seja Ele mesmo. Por isso, chegamos à
conclusão:
O Seu amor a Si mesmo pode ser livre sem ser a liberdade no sentido do livre arbítrio .
É verdade, portanto, que, de um lado, no amor de Deus que tem a Ele mesmo por objeto não existe a
liberdade da escolha, mas sim, uma necessidade absoluta. Por outro lado, essa necessidade não faz com
que este Seu amor não seja ao mesmo tempo livre, pois não existe a este respeito uma
heterodeterminação. Assim, em Deus, o amar necessariamente a Si mesmo é compatível com a
liberdade, com a autodeterminação, embora não se trate do livre arbítrio, ou seja, da liberdade de
escolha, isto é, de uma decisão (a tomar). Com efeito, o amor de Deus para consigo mesmo é
simplesmente o eterno “Sim!” a Si mesmo, a concordância consigo mesmo, a eterna adesão total ao
sumo bem, que é Ele mesmo. E este ato eterno de amor é de cada uma das Pessoas divinas como sendo
Seu próprio ato, uma vez que a Pessoa divina Se identifica realmente com este ato, enquanto Ela é,
respectivamente, a relação subsistente (identificando-se com a substância divina, com o ato de ser, de
conhecer, de amar divinos) de paternidade ou filiação ou espiração passiva.
A liberdade divina compatível com a necessidade absoluta (por não se tratar de uma
heterodeterminação) é diferente quando se trata do ato da vontade divina (do Seu amor) que tem as
criaturas por objeto. No Seu querer (amar) as criaturas, não existe em Deus aquela necessidade em
virtude da natureza. Neste caso, Deus tem, portanto, a liberdade do livre arbítrio: as criaturas são
contingentes; Deus podia querê-las ou não, bem como podia querer não estas, mas outras criaturas. Com
efeito, aquilo cujo princípio é a vontade como tal, aquilo que depende do querer como tal – não de um
querer “natural”26, isto é, determinado pela própria natureza – pode existir ou não, pode ser de um ou
outro modo, pode existir agora ou antes ou depois.
2) A liberdade d a s c r i a t u r a s
Considerando a liberdade das criaturas, é evidente que a situação delas é bem diferente da de Deus.
Todas elas têm uma essência (natureza) limitada, determinada por Deus. Apesar disso, existe nelas certa
indeterminação e, portanto, possibilidade de autodeterminação. Nas criaturas mais perfeitas, tal
indeterminação e consequente autodeterminação são maiores do que nas criaturas menos perfeitas.
Quanto menos perfeitas forem, tanto maior será certo determinismo.
Falamos propriamente de “liberdade” a partir das criaturas que são pessoas: homens e anjos. As
criaturas abaixo deles têm certa “liberdade” no sentido da existência de certa indeterminação, a qual vai
até aos átomos (compare-se tal indeterminação, p. ex., numa planta com aquela num animal e, então,
com aquela de um homem, o qual não é verdadeiramente “determinado” por seus instintos).
Nas pessoas criadas, a autodeterminação não pode ser total; sempre existe alguma hetero-
determinação. Portanto, a sua liberdade não pode ser total, como, ao invés, é em Deus.
25
Cf. S.Th. I, q. 18, a. 3: “não é determinado por outro quanto ao que lhe é natural”.
26
Cf. S.Th. I, q. 41, a. 2, ad 3.
Síntese teológica / 21
(não apenas pela liberdade de coação, liberdade esta que é compatível com a força atrativa infinita de
Deus sobre a vontade criada, ou seja, com a necessidade absoluta). Do contrário, ama-O
necessariamente, provindo esta necessidade, em última análise, da própria natureza da pessoa criada,
natureza esta que é determinada por Deus, determinada “de fora”.
Quanto ao livre arbítrio com relação ao querer os bens criados, existe também uma diferença entre a
liberdade de Deus e a das criaturas. Deus os quer com absoluta liberdade, pois se Ele os quer não é por
necessidade alguma, pois Ele não precisa, absolutamente, de um bem criado para realizar-Se
perfeitamente, visto que esta perfeita “realização” já existe pela adesão plena e eterna ao bem-por-
essência, que é Ele mesmo. A pessoa criada, ao invés, não tem essa liberdade absoluta com relação aos
bens criados, uma vez que, em geral, precisa deles em vista do bem infinito a alcançar.
27
Cf. ID., De veritate, q. 24, a. 6.
28
Como já vimos, somente com esta liberdade a pessoa criada pode amar a Deus com o amor divino
(participação do ato de amor divino, dom gratuito de Deus) como sendo seu próprio amor com o qual responde ao
amor de Deus por ela.
Síntese teológica / 22
Resumindo:
As criaturas procedem de Deus Trindade, “na diversidade da essência”: distintas de Deus,
bem como distintas umas das outras, e em “estado de caminhada” para a união perfeita com
Deus e, em Deus, entre si. A distinção é para a união, uma união a exemplo da união divina
trinitária (união do Filho com o Pai no Espírito Santo).
As criaturas que são pessoas voltam para Deus pelos atos livres de amor a Ele, podendo
assim participar verdadeiramente do amor eterno do Filho ao Pai, que é a resposta ao amor do
Pai para com Ele. Pois esse amor livre da pessoa criada para com Deus, exatamente por ser
livre, é o amor divino (por participação) que a pessoa criada pode oferecer a Deus, em resposta
ao Seu amor e como um amor propriamente seu, embora seja dom gratuito de Deus à pessoa
criada.
Falando de modo genérico, devemos reconhecer que uma pessoa em sua singularidade
não se conhece por meio de conceitos, mas pela experiência.
29
Reproduzimos em seguida o que expõe J.-H. NICOLAS, Sintesi dogmática, vol. I, Città del Vaticano 1991,
279ss.
30
A visão imediata é uma perfeita experiência das Pessoas divinas. Com efeito, nessa visão se une a mais
totalizante união intencional (conhecendo e amando) com a mais realística união real.
Síntese teológica / 24
O Pai age como Pai, o Filho como Filho, e o Espírito Santo como Espírito Santo.
Não é a essência ou natureza divina como tal que age, mas são as Pessoas que agem em virtude
da mesma natureza divina. Assim,
– a natureza divina do Pai é aquilo pelo qual (ut quo) Ele age,
– enquanto Sua propriedade relacional (paternidade) é o modo como Ele age
divinamente.
O ato divino de conhecer e querer não é, deste modo, dividido nem é distinto em si, mas o modo
de agir das três Pessoas divinas é distinto, enquanto,
♦ na Pessoa do Pai, esse ato se identifica com a relação de paternidade,
31
O principium quo é o princípio através do qual o sujeito age; o sujeito é o principium quod, isto é: o que age
ou quem age.
Síntese teológica / 25
todos os três inseparavelmente – o Pai, de fato, Se manifesta como Pai deste Filho e, com Ele,
princípio do Espírito –, mas ao mesmo tempo distintamente.
32
Pai, Filho e Espírito Santo possuem (identificam-Se com) a mesma onipotência, sabedoria e bondade, mas
“com outra relação” (S.Th. I, q. 42, a.6, ad 3). São Tomás dá este interessante e importante esclarecimento: “assim
como a mesma essência que no Pai é a paternidade, no Filho é a filiação, é a mesma potência pela qual o Pai gera,
e o Filho é gerado. Portanto, fica claro que, tudo o que o Pai pode, o Filho pode. Daí não se deduz, entretanto, que o
Filho possa gerar: seria ainda passar indevidamente do absoluto (quid) para o relativo (ad aliquid), pois em Deus a
geração significa relação. Portanto, o Filho possui a mesma onipotência que o Pai, com uma relação diferente: o
Pai a possui como aquele que dá; o que se manifesta nas palavras: Ele pode gerar. De seu lado, o Filho a possui
como quem recebe: e isto é expresso nos termos: Ele pode ser gerado.” Assim também vale: o Pai possui a força de
criar (virtus creandi) como princípio sem princípio (o Pai não procede de ninguém), o Filho a possui como princípio
que procede do princípio sem princípio (o Filho procede do Pai), e o Espírito Santo, como princípio que procede de
ambos (o Espírito Santo procede de ambas as Pessoas, isto é, do Pai e do Filho). Portanto, as Pessoas divinas agem
em conformidade com Suas propriedades pessoais e Sua distinção pessoal. O principium quod das obras “ad extra”
são as Pessoas divinas, enquanto possuem a essência divina – em conformidade com a ordem das Suas
processões – de um modo distinto.
Síntese teológica / 26
Deste ponto de vista, existe uma diferença fundamental – no que diz respeito à teologia trinitária
– entre os efeitos “naturais” e os “sobrenaturais”.
Cada Pessoa divina pode ser conhecida e amada em Sua propriedade pessoal, mas não
separadamente das outras duas, uma vez que estas estão nela inseparavelmente, em virtude da
pericorese.
Os eventos “salvíficos” se caracterizam por essas novas relações. Estas relações, porém,
não seriam nada de real se não tivessem seu fundamento em transformações (mudanças)
ontológicas reais causadas eficazmente por Deus35 (Pai e Filho e Espírito Santo); vejam-se as
transformações acima indicadas em conexão com a nova presença das Pessoas do Filho e do
Espírito Santo (as duas missões divinas).
Tais transformações são efetuadas pelas três Pessoas, não separadamente nem com três
ações diversas, mas com um só e mesmo ato, porém – como já vimos – de modo próprio de cada
uma das Pessoas divinas. Reflitamos ainda sobre isso.
33
A graça (criada) é o efeito desta ação.
34
A humanidade considerada em sua totalidade ou em cada uma das pessoas que fazem parte dela.
35
Deus é quem realiza a salvação, quem une as pessoas humanas consigo. Se não houvesse essas
transformações realizadas por Deus, a salvação não seria realizada por Deus, mas cada um se salvaria, se libertaria
a si mesmo, propondo-se objetivos superiores e efetivamente tendendo a eles somente com suas próprias forças, um
tanto assim como se diria que Fulano se libertou do vício ou da angústia, etc., através da ciência, da arte ou do
amor.
36
Deve-se aqui pensar no que foi dito acima: certa continuidade entre as processões intratrinitárias e as
extratrinitárias.
Quando se diz: “Deus Pai cria”, aponta-se para a propriedade do Pai de Ele, na Divindade, ser princípio das
outras duas Pessoas divinas, sendo Ele mesmo sem princípio (princípio sem princípio, origem sem origem). Por
isso se atribui a Ele simplesmente o ato de criar (“o Pai cria”).
Quando se diz que o Pai cria “pelo Filho (Verbo)”, aponta-se para a propriedade do Filho de ser princípio do
princípio ou origem da origem: Ele é origem de outra Pessoa divina, isto é, do Espírito Santo, mas é isso como a
Pessoa divina (o “Filho”) que tem origem no Pai: é origem da origem. Por isso, Ele tem do Pai o ser origem. Daí: se
o Pai cria, Ele cria “pelo” Filho.
Síntese teológica / 27
Pode-se recordar a imagem usada por Sto. Irineu: o Filho e o Espírito Santo são “as duas mãos
de Deus”.
Mas, o que significa a atribuição diversificada do ato criador às três Pessoas divinas (o Pai
cria por meio do Filho, no Espírito Santo)? São três que agem, mas os três são um só agente. No
entanto, Deus cria com Sua inteligência e Sua vontade. São atos que pertencem conjuntamente
às três Pessoas. Porém, a dicção contida na infinita intelecção divina e a espiração contida no
infinito querer distinguem as Pessoas entre Si. Por esta razão – digamo-lo já – todos os atributos
divinos que dizem respeito ao poder são referidos ao Pai; aqueles atributos que dizem respeito à
intelecção, são atribuídos ao Filho (Verbo), enquanto os atributos a respeito da vontade (amor),
ao Espírito Santo.
A imagem da Ss. Trindade nas criaturas
Se a ação criadora tem por princípio as três Pessoas divinas em Sua distinção, a criatura
como tal deve referir-se a Deus que é Trindade, e isto não apenas na linha da causalidade
eficiente, mas também naquela da causalidade formal, que depende estreitamente da causalidade
eficiente.
Não é possível que a Ss. Trindade não tenha imprimido o Seu selo na criatura.
Disso resulta que o conhecimento, por revelação, do mistério de Deus repercute sobre o
nosso conhecimento da criatura, fazendo-nos descobrir nela um aspecto insuspeitado que a
assemelha a Deus não apenas na linha do ser, do bem e do uno (os transcendentais), mas
também naquilo que esconde no Seu mistério a respeito das processões intratrinitárias, portanto
da Sua tri-personalidade.37 Este mistério é o do ser no ponto infinito de perfeição.
Quando se diz que o Pai cria “no Espírito Santo”, aponta-se para a propriedade do Espírito Santo de Ele, na
Divindade, não ser origem de outra Pessoa divina. Por isso, embora o Espírito Santo seja também origem das
criaturas (cf. o hino “Veni Creator Spiritus”), não se diz que o Pai cria “pelo” Espírito Santo, mas “no” Espírito
Santo. A posição do Espírito Santo na vida intratrinitária é diferente da do Filho, sendo caracterizada exatamente
pelo fato de que d’Ele não procede outra Pessoa divina, mas – suposta a vontade divina de criar – procedem as
criaturas.
37
Quanto a esse selo da Ss. Trindade nas criaturas, São Tomás escreve: “em todas as criaturas encontra-se uma
representação da Trindade à maneira de vestígio, na medida em que se encontra nelas alguma coisa que se deve
necessariamente referir às Pessoas divinas como à sua causa” (S.Th. I, q. 45, a. 7). A seguir, São Tomás indica
estas tríades na criação: ser, forma, referência a algo distinto (ordem); número, peso, medida; “o que é
constituído”, “o que é distinguido”, “o que é condizente”. E a explicação: “De fato, toda criatura subsiste em seu
ser, possui uma forma que determina sua espécie e está ordenada a algo distinto [relação].
Enquanto substância criada, ela representa sua causa e seu princípio, e assim mostra a pessoa do Pai que é
um princípio que não tem princípio.
Enquanto ela tem certa forma e espécie, representa o Verbo, pois a forma da obra de arte provém da
concepção do artífice.
Enquanto ordenado a outros, representa o Espírito Santo enquanto Amor, pois a ordenação de um efeito a
algo distinto provém da vontade do Criador.
Por isso Agostinho diz que se encontra algum vestígio da Trindade em cada criatura, na medida em que ela é
algo uno, tem a forma de uma espécie e certa ordem.
É também a isso que se reduz a tríade número, peso e medida, da qual fala o livro da Sabedoria, pois a medida
se refere à substância de uma coisa limitada por seus princípios, o número à espécie, o peso à ordem.
A isso também se reduz outra tríade proposta por Agostinho: ... O que é constituído, o que é distinguido e o
que é condizente. De fato, uma coisa é constituída por sua substância, é distinguida por sua forma e é condizente
por sua ordem.”
De um modo diferente, pode-se pensar em certo reflexo do mistério trinitário de Deus ao considerar o fato que
o universo das criaturas consta de três diferentes tipos de criaturas: criação puramente material, homens, anjos
(puros espíritos). Igualmente, existe um reflexo do mistério trinitário de Deus no mundo dos santos Anjos. É o que
se reconhece quando se considera as três hierarquias, das quais cada uma é constituída por três coros, de modo que
são nove coros (cf. particularmente a doutrina de São Boaventura a este respeito).
Síntese teológica / 28
Uma vez que os conceitos que usamos para conhecer Deus se referem aos atributos
essenciais, os quais são comuns às três Pessoas, não podemos usá-los – e, antes disso, Deus
revelador não os pode usar – para designar e de alguma maneira exprimir a propriedade de uma
Pessoa, a não ser “apropriando”-os a esta Pessoa; quer dizer: aplicando-os a esta Pessoa em
Sua singularidade de modo que o conceito assim atribuído se torne “próprio”. É uma operação
38
Aqui, porém, se trata realmente de algo de próprio, uma vez que somente o Filho Se encarnou, e na obra da
salvação existe o que é próprio do Filho encarnado.
Síntese teológica / 29
lógica39. Ora, para que ela não seja arbitrária (e, portanto, puramente verbal, sem algum alcance
real) é necessário que de alguma maneira tenha como base a propriedade real, que distingue uma
Pessoa das outras duas, – que, portanto, se baseie no que é realmente próprio da Pessoa.
Esta propriedade é desconhecida em si mesma, mas nos é indicada suficientemente pelo
modo da processão da Pessoa40 à qual é feita a atribuição – ou, se se trata da primeira Pessoa
divina, pelo fato que ela não procede de nenhuma outra Pessoa, enquanto as outras duas
procedem dela – para justificar a “apropriação” e conferir-lhe um valor noético, isto é, a
capacidade de nos dar a conhecer algo.
Deste modo, me dá certo conhecimento do que é cada Pessoa em Sua distinção, e assim posso
exprimi-lo, embora de uma maneira muito imperfeita.
Os conceitos que designam o poder divino, a sua característica de ser fonte do ser e da
vida, são atribuídos ao Pai, por causa da semelhança misteriosa que existe entre essa
característica mais manifesta – que, porém, pertence às três Pessoas – e a característica pessoal
do Pai de ser princípio das outras Pessoas, de ser “plenitudo fontalis”.41
Todos os conceitos que se referem aos atributos intelectuais são atribuídos à segunda
Pessoa divina, não porque lhe sejam próprios, mas porque evocam, em virtude da semelhança, a
característica escondida desta Pessoa que procede segundo a intelecção.
39
É a designação “por antonomásia”, como quando se diz: “o orador romano” para indicar Cícero.
40
Os nomes próprios das Pessoas divinas são nomes relativos , nomes que indicam, de alguma maneira, uma
relação de origem: “pai” (paternidade), “filho” (filiação), “palavra” (daí: relação a quem “diz” esta palavra),
“imagem” (daí: relação àquilo de que é a representação intelectual, ou seja, relação de origem àquele que produz
esta imagem [conceito]), “espírito” (no sentido: “o que é soprado, espirado”, o “sopro”; daí: relação de origem ao
que sopra), “amor procedente” (somente como amor “procedente” o nome “amor” é nome próprio do Espírito
Santo; daí a relação de origem à pessoa (às pessoas) da qual procede), “dom” (relação de origem a quem dá este
dom, à pessoa da qual procede o dom).
Tais nomes relativos, porém, nos indicam que o Pai não é o Filho, e que o Espírito Santo não é o Pai nem o
Filho, como nos indicam que tal pessoa é origem da outra, mas não nos dizem o que é a pessoa (“pai” indica
simplesmente que tal indivíduo – que também pode ser um animal – é, por geração, origem de outro ser vivo da
mesma natureza).
41
Na apropriação não se trata de um simples jogo de palavras, mas de um meio para atingir conceitualmente
o que é próprio de cada uma das três Pessoas. Assim, o único ato criador, enquanto procede do poder divino é
atribuído ao Pai; enquanto procede da intelecção divina, ao Filho, e enquanto procede do querer divino (do amor),
ao Espírito Santo. Isto, no entanto, não significa que as Pessoas dêem três contribuições distintas para esse ato (o
ato não é dividido entre as três Pessoas), mas se trata de um meio para apreender na origem deste único ato as três
Pessoas distintas.
De modo particular, a criação é atribuída à primeira Pessoa divina, o Pai. Com efeito, se o Filho e o Espírito
Santo são com o Pai o único Criador, eles têm do Pai a natureza divina indivisível, pela qual são “o Criador”. De um
modo análogo, pode-se dizer que o Espírito Santo procede do Pai por meio do Filho, e o sentido desta afirmação é este: se o Pai
e o Filho são juntos o único “spirator” (“soprador”), o Filho tem do Pai, com a natureza divina, a propriedade em virtude da
qual é princípio do Espírito Santo.
A primeira Pessoa divina, o Pai, é chamado “o Criador” como é chamado “Deus” (ho Theós), não para
reservar este título unicamente a Ele – pois segundo a Revelação divina também se pode e deve aplicar às outras
duas Pessoas –, mas porque a Revelação não poderia ser feita a não ser partindo da primeira Pessoa, princípio sem
princípio, à qual o título deve ser dado antes das outras duas Pessoas, enquanto não o tem de outrem, mas o
comunica às outras duas Pessoas por meio das processões.
Síntese teológica / 30
O mesmo vale da terceira Pessoa quanto aos conceitos que se referem aos atributos de
bondade, de amor, de santidade, uma vez que o Espírito Santo procede do ato de amor.42
Trata-se, portanto, de “apropriação” e não de atribuir um atributo exclusivamente a uma das
Pessoas divinas. Por exemplo, não posso atribuir a santidade ao Espírito Santo, como somente
Ele fosse santo, e o Pai e o Filho não o fossem. A questão teológica da apropriação não é tanto
aquela de conciliar o conceito bíblico de Deus com os conceitos da nossa razão, mas antes de
ver como a revelação de Jesus Cristo não contradiz a revelação feita a Moisés, mas, antes, a
completa e a leva a consumação. Haveria contradição se um dos atributos de JHWH pertencesse
como próprio a uma só das três Pessoas divinas.
Mas com a apropriação se pode realmente chegar a ter um conhecimento conceitual do que
é próprio das Pessoas divinas? Não se trata simplesmente de um modo de se exprimir?
Para entender que não é isso, é preciso considerar o seguinte: entre as palavras (e as
proposições, formadas de palavras) e a realidade existe a mediação dos conceitos. Na realidade
divina, sem dúvida, todos os atributos se identificam entre si na transcendente substância divina,
e esta substância se identifica com cada uma das Pessoas. Os conceitos, porém, com os quais
atingimos os diversos atributos (muito imperfeitamente, mas verdadeiramente) não são idênticos
e não podem ser trocados entre si. É no nível dos conceitos que vale aquela “semelhança” ou,
para exprimirmo-nos melhor, aquela “afinidade” devido à qual conseguimos aproximar-nos,
mediante os conceitos essências, das propriedades pessoais.
O trajeto para chegarmos a isso é este:
1) passagem das perfeições criadas aos atributos divinos essenciais;
2) passagem dos atributos essenciais ao que é próprio das Pessoas divinas.
Quanto a este segundo passo: O conceito atribuído a uma determinada Pessoa divina não
exprime o que esta Pessoa tem de próprio e distinto, mas orienta o espírito para esta
propriedade misteriosa, pela qual esta Pessoa Se distingue das outras duas. Essas atribuições
não são vazias e suas expressões verbais não são de alguma maneira intercambiáveis.
Conclusão
As três Pessoas divinas Se manifestam e Se doam a nós para uma comunhão (nossa
comunhão com as três Pessoas juntas e com cada uma singularmente, conforme a
inseparabilidade e distinção das Pessoas). São relações interpessoais, conhecendo e amando
cada uma das Pessoas em Sua singularidade. O modo deste conhecimento é a contemplação
mística (na expectativa da visão na eternidade).
42
Acrescentamos aqui as considerações que São Tomás oferece a respeito das apropriações (cf. S.Th. I, q. 39,
a. 8). “Nosso intelecto é levado ao conhecimento de Deus a partir das criaturas. É preciso, pois, que considere Deus
segundo o modo que assume a partir das criaturas. Ora, quando consideramos uma criatura, quatro coisas nos
ocorrem sucessivamente:
1) primeiro, considera-se a coisa em si mesma, e absolutamente, como um certo ente.
2) Depois, ela é considerada como una.
3) Em seguida, considera-se o seu poder de agir e de causar;
4) finalmente, considera-se segundo a relação que tem com seus efeitos.
Essa quádrupla consideração, portanto, nos ocorre a respeito de Deus.
Eis, portanto, as apropriações segundo essa quádrupla consideração: 1) eternidade, beleza, gozo; 2) unidade,
igualdade, harmonia (ou união); 3) poder, sabedoria, bondade; 4) d’Ele, por Ele, n’Ele.
Síntese teológica / 31
Mas a própria contemplação mística, que é um ato de fé, pressupõe quer o ensinamento
divino que é a Revelação, quer esse conhecimento conceitual do mistério que é a f é . Ora,
podemos constatar:
Trata-se apenas de uma aproximação noética, é verdade, mas ela abre o acesso ao mistério de
cada uma das três Pessoas, que se desvela na contemplação.
Reflitamos ainda sobre essa nossa união com cada uma das três Pessoas divinas, ou seja,
em outras palavras, sobre a inabitação das três Pessoas em nós, que ainda nos encontramos na
caminhada da fé, não já na visão. Esta é uma ulterior reflexão sobre a missão (invisível) do
Espírito Santo e uma reflexão sobre a graça (criada).
Somente o amor pode fazer com que o conhecimento se torne experimental, e o pode fazer
penetrando-o. O amor, de fato, torna a pessoa amante conatural à pessoa amada; o amor divino
(participação do amor com que Deus ama) torna conatural o espírito criado com Deus, sem
abolir a infinita distância ontológica que os separa, mas estabelecendo uma comunhão no bem43
(tendo como base o fato de que o homem é criado à imagem de Deus).
Por isso, na pessoa que crê e ama Deus, é possível que a sua consciência de si se torne
uma experiência das Pessoas divinas, isto é, portanto, uma experiência mediata, no sentido de
que aquilo que é diretamente experimentado é o próprio espírito criado, mas nele e por meio
dele o conhecimento desemboca nas Pessoas divinas, presentes por Sua ação (como causa da
graça).
Assim, as três Pessoas Se doam à pessoa criada: o Pai Se doa enviando o Filho e o Espírito
Santo ou: através do Filho, no Espírito Santo; o Filho Se doa como enviado pelo Pai e enviando
43
Comunhão no bem, falando em geral, significa que dois seres são um na ordem do bem, porque o bem lhes é
comum, buscado em comum para ser possuído em comum.
Síntese teológica / 32
o Espírito Santo; e o Espírito Santo Se doa como enviado pelo Pai e pelo Filho. No Espírito
Santo Se doam, portanto, também o Filho e o Pai.
Como pode ser isso? Ora, se a “vinda” das Pessoas divinas à pessoa criada se realiza através
da conaturalidade do amor (a criatura que experimenta as Pessoas divinas através da
experiência do efeito conatural a Elas), procurar a maneira como cada Pessoa divina em Sua
distinção venha à pessoa criada, significa ver
como o espírito criado possa ser feito semelhante a cada Pessoa divina
naquilo que Ela tem de próprio.
Ora, a natureza divina é certamente simples e uma só e, por isso, a graça como participação
da natureza divina também é, em si, uma só. Na alma humana, porém, pode-se distinguir
(distinção real!)
♦ entre o ser (actus primus, actus essendi) e o agir (actus secundus, actus operandi);
♦ entre a substância e as potências (potentiae activae);
♦ e, nas potências, entre o intelecto e a vontade.
Assim, a mencionada transformação da alma tem também três efeitos distintos entre si:
a transformação do ser (substância, vida): é a graça santificante (em sentido estrito);
a transformação da potência cognoscitiva (intelecto, razão): é o conhecimento
sapiencial;
a transformação da potência volitiva (vontade): é o amor.45
significa, portanto, o actus vivendi, como “ser” significa o actus essendi. O ser de um vivente é
vida, e, exatamente, não apenas e antes de tudo como actus secundus (operationes vitæ, atos
vitais), mas propriamente como actus primus (vita, actus essendi como actus vivendi). A graça
santificante é, por conseguinte, uma transformação divinizante da minha v i d a .
Esta transformação fundamental de minha vida, que me faz um vivente de vida divina (por
participação), dá-me uma semelhança com a Pessoa do PAI, enquanto Ele é a origem eterna do
FILHO, do VERBO (como “fruto” da intelecção do Pai), bem como a origem do ESPÍRITO SANTO,
o AMOR (como a Pessoa que procede do ato de amor do Pai e do Filho).
Assimilação ao FILHO, à PALAVRA, através da transformação da potência cognoscitiva
A transformação divinizante da minha potência cognoscitiva me dá uma semelhança com a
Pessoa do FILHO, enquanto Ele é a PALAVRA do Pai, a expressão pessoal da intelecção do Pai.
Mas, uma vez que a PALAVRA eterna é a PALAVRA que espira o AMOR (Espírito Santo) e é um
com este AMOR, essa transformação da minha potência cognoscitiva não pode ser um
conhecimento sem amor; deve, portanto ser um conhecimento sapiencial.47
Uma vez que o conhecimento intelectual (de anjos e homens) se realiza com conceitos, e o
conceito é no homem a “palavra da mente” (verbum mentis), podemos falar de uma assimilação
da minha palavra à PALAVRA eterna.
Assimilação ao ESPÍRITO SANTO, ao AMOR, através da transformação da potência
volitiva (amor)
A transformação divinizante da minha potência volitiva (de amar) dá-me uma semelhança
com a Pessoa do ESPÍRITO SANTO, enquanto Ele é o AMOR procedente do Pai e do Filho, isto é,
a expressão pessoal do amor do Pai e do Filho. Meu amor é assim divinizado, assemelhado ao
divino AMOR-em-Pessoa.48
Esta tríplice assimilação é realmente uma assimilação à Pessoa divina em Sua distinção
pessoal das outras duas Pessoas. Trata-se de uma semelhança com aquilo que é próprio da
respectiva Pessoa divina. Na teologia escolástica, a causalidade sob o aspecto da semelhança é
chamada “causalitas exemplaris”, a causalidade do protótipo, do modelo.
O PAI é a causa exemplaris da graça, enquanto esta é em mim princípio de atividade vital
divina (“participação da natureza divina” como “habitus entitativus”, como
transformação do meu ser, da minha vida, no sentido que esta recebe uma qualidade
divinizante).49
A PALAVRA é a causa exemplaris da graça, enquanto esta é iluminadora.
O ESPÍRITO SANTO é a causa exemplaris da graça, enquanto esta é inflamadora,
acendendo o amor.
No que diz respeito à causalitas exemplaris encontramo-nos, por conseguinte, além da
apropriação. “Assemelhada” a Deus dinamicamente pela graça que a capacita a essas operações
das quais são objeto as Pessoas divinas em Sua distinção, a pessoa criada está assemelhada a
47
Neste sentido podemos ler a afirmação do Apóstolo João: quem não ama Deus não O conhece (cf. 1 Jo 4,8).
48
São Tomás (S.Th. I, q. 43, a. 5, ad 2) diz: “a graça torna a alma conforme a Deus. Assim, para que uma
Pessoa divina seja enviada a alguém pela graça, é preciso que a alma seja assimilada à Pessoa que é enviada por
algum dom da graça. E porque o Espírito Santo é Amor, é o dom da caridade que assimila a alma ao Espírito Santo.
Por isso, é pelo dom da caridade que se considera a missão do Espírito Santo.”
49
“Existe, portanto, uma assimilação da alma ao Pai por meio da graça. A graça a opera sob aquele aspecto em
que ela é, na fonte de todas as operações espirituais, o princípio vital que faz brotar estas operações das
profundezas da pessoa da qual toma posse, fazendo assim que estas sejam suas: enquanto ela é este habitus
entitativus onde têm suas raízes os habitus de fé, de esperança e de caridade, pelos quais se realizam a iluminação
do intelecto e o fervor do coração” (NICOLAS, Sintesi dogmatica, 324).
Síntese teológica / 34
cada uma das Pessoas divinas, uma vez que foi capacitada a conhecê-la e amá-la naquilo que Ela
tem de próprio.
Pelo amor sobrenatural, a alma é feita conatural, realmente configurada, assemelhada
distintamente a cada Pessoa divina. Experimentando-se assim configurada (experiência não
natural, mas mística) em seu espírito, a pessoa criada pode colher como objeto de experiência as
Pessoas naquilo que cada uma tem de próprio.
É diferente quando se trata do ato de efetuar (causalitas efficiens) a tríplice semelhança.
Este ato é apropriado ao Espírito Santo, e isto certamente com muita razão, sendo Ele o divino
AMOR-em-Pessoa. A razão da atribuição é, portanto, esta “propriedade pessoal” da terceira
Pessoa divina.
Conclusão
Deus Uno e Trino comunica-Se a Si mesmo à pessoa criada, e exatamente não apenas no
mistério da Sua unidade indivisível, mas também e propriamente no mistério da Sua distinção
em três Pessoas, de modo que se faz possível uma comunhão interpessoal da pessoa com
cada uma das três Pessoas divinas (cada uma em Sua distinção pessoal e ao mesmo tempo
unidade indivisível com as outras duas), uma relação de conhecimento e amor, um
“experimentar a Pessoa divina”, como diz São Tomás50. Isto se faz através do amor divino,
que transforma o ser do espírito criado, segundo a explicação dada, e esta transformação, ou
seja, o resultado do ato de transformar chama-se a “graça divina”.
50
S.Th. I, q. 43, a. 3: “potestatem fruendi divina persona”; ibid., ad 1: “ut ipsa divina persona fruatur”.
51
Como exemplo pode servir a Oração do dia do quarto domingo de Advento: “Gratiam tuam, quæsumus,
Domine, mentibus nostris infunde...”. Fala-se também de virtudes “infusas” (cf. Cat. 1813).
52
O agir è transformado através da transformação sobrenatural dos princípios da ação, isto é, das potências
ativas.
Síntese teológica / 35
criaturas, recebemos de Deus continuamente o nosso ser (esse, actus essendi).53 Quando falamos
de corrente de graça, é óbvio que falamos da graça habitual.
Quando prestamos atenção à unidade e unicidade do ato pelo qual Deus Uno e Trino efetua
a graça em nós, falamos de uma só corrente de graça. Porém, também nesta perspectiva não
devemos esquecer a verdade que o Pai é este ato divino como Pai (o ato com a relação de
paternidade), o Filho como Filho, e o Espírito Santo como Espírito Santo, sem que o ato seja
modificado em si mesmo. Por isso mesmo, podemos melhor falar de uma tríplice corrente de
graça.
Quanto ao Espírito Santo, em particular: Ele causa a graça como o Amor (procedente) do
Pai e do Filho, como o Dom d’Eles, em conformidade, portanto, da Sua posição na vida
intratrinitária. Ora, o primeiro dom que se doa, quando se faz um presente (dom gratuito) a
alguém, é o amor, e é o amor que nos faz doar-nos a outra pessoa ou dar-lhe um presente. Por
conseguinte, devido ao modo próprio como o Espírito Santo – sendo na Divindade a Pessoa-
Amor, Pessoa-Dom – causa em nós a transformação sobrenatural da graça, apropria-se a Ele
este ato, que não é exclusivamente d’Ele. É exclusivamente d’Ele o modo próprio da Pessoa-
Amor.
Quando consideramos a transformação sobrenatural da nossa alma sob o aspecto da
assimilação, falamos de três correntes de graça distintas uma da outra, uma vez que a
causalidade exemplar de cada uma das Pessoas divinas é própria. Quanto à causalidade
exemplar, o Pai é a causa da graça como transformação da vida, o Filho é a causa da graça como
transformação da potência do intelecto ou do seu “produto”, a palavra da mente, e o Espírito
Santo é a causa da graça, enquanto esta é a transformação da vontade, do amor.
PAI PALAVRA (VERBO) ESPÍRITO SANTO
Até agora falamos da graça apenas no sentido de graça habitual. Agora podemos passar à
consideração das graças atuais. Sabemos que a graça habitual são os “habitus” sobrenaturais da
53
Cf. S.Th. I, q. 104; Summa contra Gentiles, lib. III, cap. 65. Também São Tomás fala a este respeito de uma
corrente contínua do ser da parte de Deus às criaturas, quando p. ex. diz: “ eis [rebus] continue influit esse“ (S.Th. I,
q. 104, a. 3; ver também ibid., a. 4, ad 2). O Doutor angélico também utiliza sempre de novo a imagem da luz solar
no ar ou num recipiente transparente: quando o sol não brilha mais, logo não tem mais luz no ar ou no recipiente.
54
Pensando na conexão da “força” com a Palavra de Deus (cf. 1 Cor 1,24; 1,18; Rm 1,16; Hb 1,3; Sb 7,25-26;
cf. CONC. VAT. II, Dei verbum, 17; 21; 24), poderíamos denominar a corrente de graça da “palavra” também
“corrente da força” ou “corrente da força da palavra”.
Síntese teológica / 36
alma: a transformação permanente do ser (habitus entitativus) e das potências ativas (habitus
operativi), transformação esta que somente por causa do pecado pode ser perdida. Por esta
transformação interior permanente podemos viver uma vida divina a partir do nosso íntimo – em
conformidade com a definição de vida como auto-movimento –, não apenas sendo movidos de
fora.
Ora, para a realização dos atos vitais desta vida divina, sempre temos necessidade das
graças “atuais”. Estas graças podem ser transmitidas por pessoas criadas a outras pessoas. Os
santos Anjos nos transmitem tais graças atuais. Por isso, São Tomás pode afirmar que os santos
Anjos cooperam em todas as nossas boas obras, isto é, em toda atuação dos dons habituais de
graça. O Catecismo da Igreja Católica (n. 350) cita e confirma esta afirmação de São Tomás.55
Dado que essas graças atuais se referem às graças habituais, e estas podem ser diferenciadas
em graças da “vida”, da “palavra” e do “amor”, também a supramencionada transmissão de
graças por parte dos santos Anjos se pode realizar numa tríplice corrente de graça (da vida, da
palavra, do amor), enquanto as graças atuais podem referir-se a um ou outro dos aspectos
mencionados da graça habitual.56
4) Divisões da “graça”
No que precede, apresentamos diversos aspectos da “graça”, divisões dentro daquilo que é
“graça”. Nisso, falamos da “graça” como um “dom gratuito” sobrenatural. Esta é a acepção
costumeira de graça na teologia. No entanto, é claro que também os dons naturais, em primeiro
lugar o dom da nossa existência, da nossa vida, é um dom gratuito. A diferença está em ser dom
natural ou sobrenatural.
Dentro da acepção da graça como dom sobrenatural, a primeira e fundamental distinção é
aquela entre graça incriada (Deus mesmo, as Pessoas divinas) e
graça criada (todas as outras graças).
Quanto à graça criada, pode-se fazer a seguinte distinção:
♦ graça habitual,
♦ graça atual ou graças atuais.
O Catecismo diz a respeito desta distinção o seguinte:
A graça santificante é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural para aperfeiçoar a
própria alma e torná-la capaz de viver com Deus, agir por seu amor. Deve-se distinguir a graça
habitual, disposição permanente para viver e agir conforme o chamado divino, e as graças atuais, que
designam as intervenções divinas, quer na origem da conversão, quer no decorrer da obra da
santificação. (Cat. 2000)57
Pode-se e deve-se dizer que, em geral, a graça habitual é uma transformação sobrenatural
duradoura da criatura, ou seja, o efeito estável de uma ação transformadora divina. Pelo pecado,
no entanto, pode ser perdida. A graça habitual é, assim, a graça “santificante”58. Nela, como
55
S.Th. I, q. 114, a. 3, ad 3. Ele responde aqui à pergunta se todos os pecados provêm das tentações do diabo, e
sua resposta é que não é necessário que seja assim. Mas não vale o mesmo no caso da ajuda dos santos Anjos para
as nossas boas obras: “o homem pode por si mesmo cair em pecado, mas não pode chegar a ter merecimento sem o
auxílio divino, a ele proporcionado pela mediação dos anjos. Por isso, os anjos colaboram em tudo o que fazemos
de bom, enquanto nem todos os nossos pecados procedem da sugestão do demônio.” O terceiro argumento
(objeção), ao qual responde, é este: “... Ora, tudo o que fazemos de bom é sugerido por anjos bons, pois os dons de
Deus nos chegam por seu intermédio. Logo, assim também, tudo o que fazemos de mal é sugerido pelo diabo.”
56
São Tomás, quando fala do coro angélico dos Serafins e, por conseguinte, se refere ao amor, escreve: “Os
Serafins não se chamam «os que incendeiam» (incendentes) como se infundissem o habitus da caridade, mas
porque iluminam a respeito do que pertence ao amor de caridade” (In II Sent., d. 9, q. 1, a. 4, ad 5).
57
Cf. S.Th. I-II, q. 109, a. 6; a. 9 (necessidade da graça atual para o justificado); a. 10; q. 111, a. 2; q. 112, a. 2.
58
Cf. Cat. Comp. 423: “É chamada graça habitual ou santificante ou deificante, pois nos santifica e
diviniza.”
Síntese teológica / 37
59
Sta. Catarina de Sena, Diál., 7 (citado em: Cat. 1937).
Síntese teológica / 38
“JESUS” designa a Pessoa do Filho eterno de Deus feita homem: o VERBO encarnado.
“CRISTO” indica a plenitude absoluta do Espírito Santo em Jesus (missão do Espírito).
1. “JESUS”
“Jesus” é a Pessoa divina do Filho que assumiu uma natureza humana individual. Ele é a
Pessoa divina que, além de ser Pessoa de natureza divina, Se fez também Pessoa de natureza
humana. A natureza humana individual de Jesus é a natureza humana da Pessoa divina do Filho.
Jesus é Deus, exatamente Deus Filho. Assim se realizou
a maior união possível entre Deus e uma realidade criada, a união hipostática:
a união da natureza divina com a natureza humana na única Pessoa de Deus Filho.
A união da natureza humana individual com a Pessoa divina é uma relação ontológica de
pertença desta natureza humana à Pessoa do Filho60. É uma relação real. Por isso, a Pessoa
divina é agora realmente um homem; é a pessoa desta natureza humana individual, embora a
Pessoa divina não tenha mudado (por isso: relação “de razão” da Pessoa divina à natureza
humana).
A “transformação” que se realiza para que Deus Filho esteja presente, de um modo
totalmente novo, no mundo criado, é verdadeiramente uma mudança “substancial”. Não se trata
apenas de aperfeiçoar sobrenaturalmente uma realidade criada (“graça santificante”). Essa
mudança é efetuada pelo ato divino
♦ de fazer existir a natureza humana individual no seio de Maria (ato de fecundar a
santíssima Virgem e de criar a alma como princípio vital do corpo) e
♦ de, ao fazê-la existir, uni-la à Pessoa do FILHO (fazê-la existir como pertencente à
Pessoa divina).
Para a natureza humana de Jesus é uma “graça” (dom gratuito) ser a natureza humana do
próprio Deus Filho. Esta graça chama-se, na teologia, “graça da união (hipostática)”. É a maior
graça possível: é o próprio ser pessoal do Verbo, ou seja, a própria personalidade do Verbo
(ipsum esse personale Verbi) que é doada à natureza humana. Trata-se do ápice absoluto da
graça, e que é fonte de todas as outras graças para toda e qualquer criatura.
2. “CRISTO”
Em primeiro lugar, a união hipostática necessariamente traz consigo a plenitude absoluta
das graças criadas na alma de Jesus (graça santificante e tudo que a acompanha; participação da
natureza divina; transformação divinizante do espírito criado). Isto significa que a missão do
Filho (a Encarnação) traz consigo a missão do Espírito Santo (neste caso, ainda como “missão
invisível”), duas missões distintas, mas inseparáveis. Pois a graça santificante é exatamente
aquela mudança no espírito criado que é necessária para que nele haja a presença totalmente
nova da Pessoa do Espírito Santo. É assim que acontece a missão do Espírito Santo (missão
60
Também quando se trata de qualquer homem, este pode dizer: “É meu corpo, é minha alma, é meu intelecto,
é minha vontade, etc.”
Síntese teológica / 39
invisível). Com efeito, Jesus é “o Cristo”, quer dizer, “o Ungido” pelo Espírito Santo: Ele é a
plenitude absoluta da presença do Espírito Santo em um espírito criado.
ou seja, da presença santificante do Espírito Santo numa pessoa de uma natureza criada.
♦ Comparando as duas uniões, designadas pelos nomes de “Jesus” e “Cristo”, podemos
dizer que a união que caracteriza Jesus, a união hipostática, é uma união ontológica de
natureza com natureza, substância com substância, a saber, da natureza-substância divina com
a natureza-substância humana, na Pessoa do Verbo. Dá-se uma verdadeira “pericorese”: uma
natureza-substância está na outra. Não é uma simples justaposição, como também não é uma
união que se realiza através de atos de conhecer e amar.
♦ A união que se realiza pela missão do Espírito Santo é exatamente esta: a união
interpessoal (chamada também “intencional”) que não se realiza sem os atos de conhecer e
amar a outra pessoa. Em Jesus, que é o “Cristo”, essa união é entre Ele e o Pai, no Espírito
Santo. Pela presença do Espírito Santo em Sua alma com e através da graça santificante, Jesus
pode viver, como homem, a Sua comunhão com o Pai, conhecendo e amando o Pai.61 Essa
presença do Espírito Santo na alma de Jesus decorre necessariamente da união hipostática, isto
é, do fato de esta alma (formando com o corpo uma única substância) ser a alma da Pessoa do
Filho eterno. De fato, sem essa presença do Espírito Santo, isto é, sem a graça santificante, Jesus
não poderia viver verdadeiramente, como homem, a Sua relação filial a Deus Pai. Não poderia
viver como homem aquilo que Ele é: FILHO de Deus Pai, relação subsistente de filiação a Deus
Pai. Ele teria um conhecimento e um amor apenas natural: aquilo de que a natureza humana
como tal é capaz.
Ora, na alma humana de Jesus, as duas formas de união acima mencionadas (união
hipostática, ontológica; união interpessoal) estão de tal modo ligadas, na unidade da Pessoa
divina do Filho, que a união interpessoal recebe uma infinitude relativa “na ordem da
graça”62, pelo fato que
Jesus, sendo o FILHO, por Suas operações humanas (conhecer, amar) está unido a Deus Pai
de uma maneira digna da pessoa do FILHO eterno de DEUS,
isto é, a tal grau que transcende tudo aquilo a que é elevado pelo Espírito Santo qualquer pessoa
criada. Isto Lhe confere uma espécie de absoluto dentro da ordem da graça que Deus ideou e
realizou. Deste modo,
Assim podemos reconhecer a santidade de Jesus Cristo: pela união hipostática, a santidade
de Jesus é aquela mesma da divindade (chamada também de “santidade substancial”), uma vez
que santo é Deus e quem está unido a Deus e na medida em que está unido a Ele. Ora, Jesus é o
próprio Deus encarnado, a Pessoa divina do Filho feita homem. Além disso, ou
consequentemente, Jesus é também santo como “Cristo”, isto é, pela união interpessoal com o
61
Além disso, deste modo Ele pode também ter a clara e certa consciência humana de Sua identidade divina de
Filho de Deus. É claro, ademais, que, deste modo, Jesus pode viver também, como homem, a união com a Pessoa
divina do Espírito Santo.
62
É claro que a graça criada não pode, em absoluto, ser infinita: sendo criada, é, por essência, finita, pois é
uma transformação sobrenatural de algo criado, finito. Mas dentro daquilo que é a graça criada, a graça de Jesus é
infinita, é o máximo possível; não poderia ser maior.
Síntese teológica / 40
Pai no Espírito Santo, através da graça criada, isto é, através daquela transformação sobrenatural
que capacita o espírito criado à comunhão com a Pessoa divina.
Por tudo isso se vê que Jesus Cristo é realmente
o sol da máxima presença de Deus no universo criado,
o ápice absoluto da autocomunicação de Deus ao criado e
da união-comunhão do criado com Deus.
Santíssima Trindade:
Em Deus, o ser e o agir (actus primus e actus secundus; ato de ser e ato de conhecer ou
querer), o ontológico e o intencional ou interpessoal (pelos atos de conhecer e querer-amar) não
se distinguem realmente; identificam-se. Deus é “ato puro”: é o ser subsistente e, ao mesmo
tempo, ação pura; é conhecimento subsistente e amor subsistente. Em Deus, o ato é ao mesmo
tempo constitutivo e operativo; é “dinamismo puro”. Deste modo, a distinção entre ser e agir
não apenas não é real, mas nem virtual ou conceitual. Isto nos faz ver em conjunto a questão da
distinção em Deus:
Há distinção real entre as relações de origem que se opõem uma à outra (paternidade –
filiação, espiração ativa – espiração passiva);
há distinção apenas virtual ou conceitual entre o ato de entender (intelecção) e o ato de
querer (amar), bem como entre os diversos atributos divinos como amor, justiça, sabedoria, ...
Trata-se de perfeições expressas com conceitos de conteúdo realmente diverso. Em outras
palavras: são perfeições irreduzíveis uma à outra no nível da representação conceitual.
não há distinção nem real nem virtual entre o ser e o entender ou entre o ser e o amar.
Esta distinção não pode ser concebida a não ser como a distinção entre o ato primeiro (o Ser
inteligente, capaz de amar) e o ato segundo (este mesmo Ser em ato de conhecer e de amar).
Não se trata, por conseguinte, de duas perfeições, mas de dois estados da mesma perfeição,
dualidade esta que a própria noção de Ato puro abole.
Síntese teológica / 41
Por exemplo, a relação de paternidade é relação ontológica de pai a filho, relação que se
identifica com o ser divino (daí: relação subsistente). Ora, o ser divino identifica-se realmente
com o agir divino, com o ato de conhecer e de amar. Por isso, a relação ontológica de
paternidade é também relação intencional: é conhecer e amar subsistentes; é inteiramente (por
parte do Pai) conhecimento do Filho e amor ao Filho. Uma Pessoa divina está presente à(s)
outra(s) ontologicamente e intencionalmente, sem haver distinção real entre um e outro.
Esta é a assim chamada “pericorese” (perichóresis, circumincessio) trinitária: esta palavra
grega se tornou termo técnico para designar a característica essencial das Pessoas divinas
segundo a qual cada uma inclui as outras duas, isto é, não são externas uma à outra; uma está na
outra, conforme a palavra de Jesus: “Eu estou no Pai, e o Pai está em mim” (Jo 14,10). A
comunhão das Pessoas divinas é perfeita. Assim, as três Pessoas divinas são, cada uma e juntas,
o único Deus concreto, e elas vivem em perfeita comunhão interpessoal, numa “amizade”
infinita.
A união entre as Pessoas divinas é uma união substancial, sob o aspecto tanto ontológico
quanto intencional (o conhecer e o amor se identificam com o ser, com a substância divina); é
união substancial no sentido de ser união (comunhão) na substância. A “incomunicabilidade”
não se refere à substância; entre as Pessoas divinas não há distinção na substância; apenas entre
as relações de origem opostas.
Jesus Cristo:
Em Jesus Cristo podemos distinguir realmente entre união ontológica e união intencional,
sendo a união intencional (interpessoal) uma consequência da união ontológica. A união
ontológica é a união hipostática (realizada no seio virginal de Maria): a união entre a natureza
divina e a humana, na Pessoa divina do Filho ou a união da natureza humana com a Pessoa
divina do Filho.
A união hipostática é uma união substancial, no sentido de ser
uma união de substância (divina) com substância (humana),
numa única pessoa,
não uma união interpessoal, isto é, entre pessoas, mas união de duas substâncias em uma só
pessoa: um único sujeito de duas naturezas, duas substâncias (essências realizadas). Não é
chamada união “substancial” no sentido de ser união “na substância”, formando, portanto, uma
só substância, mas no sentido de não ser apenas união “acidental”, ou seja, união que se realiza
por uma transformação “acidental” (enquanto se distingue o “acidente” da “substância”). É
verdadeira união ontológica: não se realiza em atos de conhecer e amar nem depende destes. É
união entre substâncias naquela realidade que se chama “pessoa”. “Pessoa”, por sua vez, é o
princípio de subsistência de uma natureza intelectual individual. Por essa união substancial se
dá a presença mais perfeita possível de Deus no criado, uma união ontológica entre Deus e
homem. Do ponto de vista da união entre a natureza humana individual e a Pessoa divina do
Filho, trata-se de uma relação ontológica de pertença da natureza humana à Pessoa divina.
Síntese teológica / 42
A mais íntima união interpessoal entre Jesus (homem) e o Pai, no Espírito Santo,
é consequência da união ontológica (união hipostática) e
se distingue claramente dela.
Tal união interpessoal realiza-se então, embora com menor perfeição, também na Igreja, quando
Jesus envia o Seu Espírito, o Espírito Santo.
A maternidade divina é
uma relação ontológica à Pessoa de Deus Filho,
enquanto Ele, por meio de Maria, Se tornou Pessoa de natureza humana (homem).
Esta maternidade divina de Maria implica as graças de santidade (Maria como sacrário do
Espírito Santo); eis o aspecto de relação interpessoal. Em geral, a maternidade envolve
normalmente a mulher de um modo total em relação a seu filho: conhecimento, amor, dom de si.
Isto vale muito mais para a maternidade divina. Neste caso, com efeito, o Filho é uma pessoa
preexistente e perfeita, que pode ser amada em tudo desde o primeiro momento; os seus
sentimentos não mudarão jamais. Além disso, a maternidade de Maria é maternidade virginal,
que dá ao amor materno o caráter singular de ser o primeiro amor da mãe e um amor exclusivo.
Este amor, porém, tem por objeto a Pessoa de Deus Filho. Por isso não pode ser um amor
materno meramente natural. Tem que ser o amor com que a criatura divinizada ama o seu Deus.
Como a relação fundamental de maternidade (relação ontológica), o amor materno de Maria e
todas as relações interpessoais entre ela e seu Filho são ao mesmo tempo naturais e
sobrenaturais. É pelas graças de santidade que Maria é capacitada a elevar o próprio coração e o
espírito ao nível da sua singular maternidade.
Se Deus chama uma mulher a tornar-se Sua mãe, não pode não enriquecê-la dos dons da graça,
sem as quais poderia ser Sua mãe apenas corporalmente, isto é, de um modo não-pessoal, não
humano. Segundo a expressão de Sto. Agostinho: “Ela concebeu o Verbo de Deus antes em seu
espírito que em seu seio”. Só assim Maria é plenamente e pessoalmente Mãe de Deus; assim
temos o conceito integral da maternidade divina.
As relações entre a graça da divina maternidade e as graças de santidade podem ser
comparadas com a relação, em Cristo, entre a graça da união e a plenitude da graça criada que
põe Sua alma no nível da Sua personalidade divina.
Síntese teológica / 43
Santíssima Eucaristia:
No mistério da Ss. Eucaristia, o aspecto ontológico se encontra naquilo que chamamos a
“presença real, substancial” de Jesus sob as aparências de pão e vinho. Aqui se trata de
Assim, esta presença substancial é independente das relações interpessoais das pessoas
humanas com Jesus: Ele está presente com toda a Sua “realidade física”, quer que haja pessoas
que acreditem nesta presença, quer que não haja. A realidade substancial desta presença se dá
pelo fato de uma transformação radical : a conversão de toda a substância do pão e do
vinho na substância humana de Jesus, permanecendo apenas as aparências (“espécies” ou
“acidentes”) de pão e vinho.
Sendo união interpessoal, é claro que requer a presença do Espírito Santo na alma do
comungante (é certa “participação do Espírito Santo”). Mas esta união interpessoal (pelo amor)
é uma união que abrange toda a substância humana de Jesus (unida hipostaticamente com a
substância divina) e toda a substância do comungante: uma união “segundo a substância”
(“secundum substantiam coniungi”, segundo uma expressão de São Tomás). Esta união se
realiza pela presença substancial de Jesus no comungante e uma transformação do
comungante (da alma diretamente, mas também do corpo) que se pode chamar uma
“participação do Corpo (e Sangue) de Cristo”, atuada através do próprio Corpo de Cristo
presente no comungante; é a “graça sacramental” própria e específica da recepção do
sacramento da Eucaristia.
“Nós corremos no caminho que é Ele e corremos para a meta que é Ele e n’Ele encontramos o
repouso … Ele veio até nós como médico para os doentes, como caminho aberto para os
peregrinos” (Sto. AGOSTINHO, In Io. ep., tr. 10, 1).
As missões do Filho e do Espírito Santo são inseparáveis, mas distintas. Ora, uma grande
diferença entre a missão do Filho e a do Espírito Santo está no fato de que o Filho não apenas Se
fez presente aos homens, mas fez Sua uma natureza humana individual: Ele Se fez
verdadeiramente homem, “um de nós”, alguém do gênero humano, um “filho de Adão”; o F ILHO
de DEUS Se fez “Filho do Homem”, isto é, o “FILHO (eterno de Deus Pai) que é homem”.
E há mais, ou seja, isso comporta outras coisas, a saber: fazendo-Se “um de nós”, fez-Se
solidário conosco, e esta solidariedade tem duas dimensões:
Esta é uma solidariedade que Ele poderia realizar também com uma humanidade na qual
não houvesse acontecido o pecado. Seria simplesmente a solidariedade com a situação dos
primeiros homens antes do pecado; é a situação do “estado de caminhada”, ou seja, do estado de
provação, no qual se pode dar uma resposta livre de amor a Deus, decidindo-se por Deus e Sua
santíssima vontade.
No entanto, o Filho de Deus Se fez solidário com a humanidade pecadora. Empregando
palavras do Apóstolo Paulo, podemos dizer:
Isto significa que Ele tomou sobre Si as consequências do “pecado do mundo” (cf. Jo 1,29), ou
seja, de todos os pecados de todos os homens de todos os tempos.
Fazendo-Se homem, o Filho de Deus uniu-Se, de alguma maneira misteriosa, mas real, a
todo homem.64 Ele Se fez solidário com a humanidade pecadora tanto quanto a Sua absoluta
santidade permitia e Seu amor exigia, a saber: o amor justo e o amor compassivo de Deus. De
fato, “ao enviar seu próprio Filho na condição de escravo (cf. Fl 2,7), condição de uma
humanidade decaída e fadada à morte por causa do pecado (cf. Rm 8,3), «Aquele que não
conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos
justiça de Deus» (2Cor 5,21)” (Cat. 602).
Para poder salvar a humanidade pecadora, Ele não devia, de modo algum, ser pecador, mas
viver com perfeição o amor a Deus e ao próximo, cumprindo, portanto, perfeitamente o
mandamento do amor, vivendo assim em união com Deus. 65 Do contrário, isto é, se fosse
63
Cf. Rm 8,3: Deus “enviou Seu próprio Filho solidário (em estado de solidariedade) com a carne de pecado
e, em vista do pecado, condenou o pecado na carne” (tradução da Bíblia de Edições Loyola).
64
“Por sua Encarnação, o Filho de Deus, de certo modo, se uniu a todo homem” (GS 22,2).
65
Além disso, para Deus Filho encarnado, pecar seria contradizer-Se a Si mesmo como Deus. É impensável.
Síntese teológica / 45
O Filho de Deus, por Sua encarnação, tornou-Se o mediador perfeito entre Deus e os
homens, sendo ao mesmo tempo e perfeitamente Deus e homem. Deste modo,
Ele tornou-Se não apenas o representante d e D e u s diante da humanidade, mas
também o representante d a h u m a n i d a d e (pecadora) diante de Deus.
Ele não apenas veio de Deus a t é n ó s , mas
também Se colocou totalmente do nosso lado defronte de Deus e andou
do nosso lado r u m o a D e u s .
“Saí do Pai e vim ao mundo” (Jo 16,28; cf. 8,14.42; 16,27; 17,8).
“Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai” (Jo 16,28; cf. 8,14; 14,12.28; 16,10.16;
17,11.13).
Em Sua vida de Filho encarnado (a vida como homem) manifesta-se a personalidade
própria de Deus Filho
não apenas no que diz respeito à Sua p r o c e s s ã o do Pai (“saí do Pai”)
e à Sua relação de origem ao Espírito Santo (espiração ativa;
daí: Jo 15,26: “o Paráclito, que Eu vos enviarei da parte do Pai”), mas
também à Sua relação de f i l i a ç ã o ao Pai.
Deste modo, todo o exercício da Sua mediação entre Deus e o homem era uma caminhada
para o Pai. “Todo o exercício” significa o exercício da mediação em ambas as direções: de
Deus para o homem, do homem para Deus. É assim porque os “passos” pelos quais o homem
caminha para (a comunhão perfeita com) Deus, são os atos de amor, ou seja, os atos de amor e
todos os outros atos virtuosos, contanto que estejam animados pelo amor (amor sábio, paciente,
obediente, corajoso, perseverante e assim por diante; cf. 1 Cor 13). Ora, Jesus fez de toda a Sua
vida e até aos mínimos detalhes de Sua vida (também do exercício da Sua mediação na direção
de Deus para o homem) um grande ato de amor: amor ao Pai antes e acima de tudo e com todas
as forças do Seu coração humano, e amor aos homens por amor do Pai.
Síntese teológica / 46
Mas, retornemos à consideração da mediação exercida por Jesus, mediação que Ele realizou
como um grande ato de amor ao Pai e aos homens. Fala-se (a partir do século XVI) de um
tríplice múnus (= ofício ou tarefa ou missão) de Jesus:
1) o de profeta ou mestre,
2) o de sacerdote ,
3) o de p a s t o r .
1) O múnus de profeta ou mestre, o múnus, portanto, de ensinar os homens, se exerce na
direção “de Deus a o h o m e m ” .
2) O múnus de pastor, o de dirigir, conduzir, com autoridade, também está na linha “de
Deus a o h o m e m ” , enquanto se refere aos homens a serem conduzidos para Deus. Por outro
lado, o pastor dirige não apenas com a autoridade (governar, determinar, dar ordens), mas
também com o bom exemplo.66
3) O múnus de sacerdote é o múnus central de Jesus.
O ofício de mestre está totalmente o r i e n t a d o ao múnus sacerdotal. Para ilustrar isso,
consideremos um só aspecto: Jesus ensina que Deus está pronto a perdoar aos homens os
pecados e fazê-los entrar no Seu Reino de salvação e, afinal, de felicidade eterna. Mas é por Seu
múnus sacerdotal que Ele obtém para os homens estes dons de perdão, salvação e vida eterna
que lhes anuncia.
O múnus de pastor p r e s s u p õ e o múnus de sacerdote, pois o pastor só pode apascentar
(conduzir ao pasto, proteger) as ovelhas vivas. E para que tenham a vida, Ele deve entregar a
Sua vida por elas. Ora, esta entrega da vida se realiza propriamente como um exercício do Seu
sacerdócio, isto é, pelo sacrifício da cruz. Sem este não haveria ovelhas a pastorear. Por isso, o
múnus de sacerdote está no centro.
Está no centro também por outra razão:
No exercício do múnus sacerdotal,
a ação de Jesus vai em ambas as direções:
do homem para Deus e de Deus para o homem.
isto é, aquela relação eterna na Divindade que O constitui como a Pessoa divina do Filho,
enquanto esta relação é subsistente (identificando-se com a substância divina).
Sob o ponto de vista determinante, portanto, Jesus faz de toda a Sua vida humana na terra
uma caminhada para o Pai exatamente enquanto vive, como homem, Sua identidade de Filho
66
É significativo que o pastor de ovelhas não vai atrás das ovelhas, tangendo-as como se faz com o gado em
geral, mas vai à frente delas. É assim que ele as dirige.
Síntese teológica / 47
do Pai, isto é, Sua relação de Filho ao Pai. É, ao mesmo tempo, o exercício do Seu múnus
sacerdotal na direção ascendente.
O ponto culminante dessa vivência da relação de Filho ao Pai é a “Páscoa” de Jesus, isto é, a
Sua passagem deste mundo ao Pai (cf. Jo 13,1). A vida anterior era caminhar para o Pai neste
mundo; a paixão e morte e a consequente glorificação (ressurreição, ascensão) de Jesus, porém,
é passar deste mundo ao Pai.
Todas as criaturas não podem realizar a sua volta para Deus (a caminhada para a perfeição
última em Deus) a não ser por uma participação na Páscoa do Senhor Jesus.
Jesus é “o caminho”, porque é o fundamento ou a fonte das graças sem as quais ninguém pode
caminhar e alcançar a sua meta final, que é Deus (Pai). Isto vale para todas as criaturas; não
somente para os homens, mas também para os anjos e até mesmo para a criação material.
Para os homens, Jesus devia abrir o caminho, obstruído pelo pecado de Adão para toda a
humanidade e pelos pecados individuais para cada um individualmente. Aos anjos, Jesus
merecia, por Sua volta ao Pai, a força necessária (as graças) para eles realizarem a sua passagem
do estado de caminhada (estado de provação) para a união perfeita e integral com Deus e em
Deus. O caminho da criação material, por sua vez, está ligado inseparavelmente ao caminho dos
homens e também dos anjos.
Para a humanidade pecadora, a Páscoa de Jesus – como também, em geral, toda a Sua vida
na terra – é um mistério de redenção, isto é, de libertação por um preço de resgate; é
“libertação do amor”: o amor de Jesus liberta e, nos homens pecadores, o amor é libertado.
Nisso, o amor de Jesus é amor expiador, é o ápice de Seu amor ao Pai e aos homens na maior
e mais profunda miséria deles.
1) Mistério de redenção
Por toda a Sua vida, mas sobretudo por Seu sacrifício da cruz, Jesus realizou a obra da
redenção da humanidade pecadora. “Redimir” significa libertar de uma escravidão pagando um
preço de resgate; é, portanto, uma libertação com um particular empenho. Jesus, de fato, veio
“para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mt 20,28; Mc 10,45; cf. 1Tm 2,6; Is 53,12). O
“preço” de resgate foi a Sua “vida”, o Seu “sangue” (cf. 1Cor 6,20; 7,23; Cl 1,20; 1Pt 1,18-19;
Ap 5,9). A quem Jesus pagou este preço de resgate? Não ao diabo 67, mas a Deus (Pai). O que
significa isso?
É o valor que este Seu supremo ato de amor, que é Seu sacrifício da cruz, tem diante do Pai e,
portanto, o tem verdadeira e realmente. Outro nome para o “valor” é “mérito”. Através desse
67
Jesus veio para “destruir” o diabo (cf. Hb 2,14), ou seja, “as obras do diabo” (cf. 1Jo 3,8).
Síntese teológica / 48
ato supremo de amor, Jesus merece para Si a glorificação como nosso Redentor e Salvador e,
portanto, para nós, o dom da salvação, da comunhão filial com Deus.68
E qual é a escravidão da qual Jesus nos libertou? A escravidão fundamental e essencial, isto
é, aquela que é diretamente consequência do pecado (cf. Jo 8,34): a situação de pecador,
privado da vida divina, da filiação divina, a “condição de uma humanidade decaída e fadada à
morte por causa do pecado” (Cat. 602; cf. Hb 2,14s). De fato, o pecado diz essencialmente
respeito à relação do homem com Deus69 e causa, em primeiro lugar e sobretudo, a ruptura da
aliança com Deus, da relação de filho – no FILHO – com Deus como Pai, a perda da comunhão
filial com Ele. Disso derivam então outras rupturas: a ruptura dentro do homem mesmo (perda
da paz e harmonia consigo mesmo; consequência “antropológica”), a ruptura nas relações com
as outras pessoas humanas (consequência “sociológica” e “eclesiológica”) e, enfim, com a
criação material (consequência “cosmológica”; cf. a respeito dessas rupturas: Cat. 1469). A
libertação da escravidão do pecado traz consigo – embora nem sempre ou nem imediatamente,
porque dependendo da colaboração dos homens e num processo de libertação – a libertação
dessas outras rupturas ou escravidões.
2) Libertação do amor
Jesus nos libertou da escravidão do pecado através do Seu sacrifício da cruz. Isto significa
que não nos libertou por outro meio a não ser por Seu amor.
Deste modo, o sacrifício da cruz de Jesus foi um ato de amor ao Pai (entrega a Ele), bem
como aos homens pecadores, enquanto Jesus Se entregou assim ao Pai para a nossa redenção e
comunhão perfeita com o Pai.
Oferecendo-Se assim ao Pai, Ele oferece o preço de resgate para a nossa libertação. A redenção
efetuada por Jesus é, portanto, uma “libertação do amor” no sentido de que é Seu amor que nos
liberta da escravidão (“libertação do amor” como genitivo subjetivo: o amor é o sujeito da ação
libertadora).
Se perguntarmos em que consiste esta libertação, poderemos reconhecer que se trata
também da “libertação do amor” no sentido de que aquilo que é libertado é o amor: o objeto da
ação libertadora é o amor (“libertação do amor” como genitivo objetivo: o amor é o objeto da
ação libertadora). Sendo uma libertação da escravidão causada pelo pecado – escravidão,
portanto, que contrasta com a liberdade dos filhos de Deus, eliminando a comunhão filial com
Ele –, é uma libertação que “liberta” em nós o amor divino, no sentido de que somos de novo
capacitados a amar a Deus como filhos e a amar os outros homens como irmãos. Jesus nos
obtém o dom do Espírito Santo, o Seu Espírito, que nos faz clamar “ABBA, PAI”, como explica
68
Na S. Escritura, em grego, a expressão correspondente é “ser digno”. Jesus é digno de receber a glória, de
ser a fonte da salvação para todos.
69
Quem não reconhece isso, não reconhece a verdadeira natureza do pecado; não sabe o que é
verdadeiramente o pecado.
Síntese teológica / 49
São Paulo: “Vós não recebestes espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes o
Espírito que, por adoção, vos torna filhos, e no qual clamamos: «Abbá, Pai!»” (Rm 8,15).
a) O que é expiação?
71
Cf. Cat. 1451: A contrição “consiste «numa dor da alma e detestação do pecado cometido, com a resolução
de não mais pecar no futuro»”.
Síntese teológica / 51
c) O sofrimento na expiação v i c á r i a
Até agora consideramos a expiação do pecador por seus próprios pecados. Porém, o
pecador não é capaz de expiar seus pecados, a não ser que Deus lhe dê de novo o dom do amor
divino em seu coração, dom que perdeu pecando. Isto não significa outra coisa senão que Deus
lhe perdoa. Só assim o pecador pode ter o amor expiador de que falamos.
Ora, Jesus, o Filho de Deus feito homem, Se fez a vítima de expiação pelos pecados de
todos os homens:
Esta é a expiação “vicária”. Através desta expiação, os pecadores recebem de novo o dom
divino do amor73, e então, sim, poderão realizar o amor expiador. Sua expiação se baseia
inteiramente na expiação de Jesus e não pode ser outra coisa senão: poder participar da
expiação de Jesus.
Já dissemos que o Filho de Deus, através do fato de ser homem e pelo Seu amor divino-
humano, Se fez solidário com todos os homens. Isto significa que Se colocou no lugar deles, fez
Sua a situação deles, para, em lugar e em favor deles, reparar a ofensa do Pai, curar a “ferida” do
Seu coração amoroso de pai. Com efeito, a expiação deve ser feita por aquele que pecou. Mas,
uma vez que este era incapaz disso, o Filho de Deus Se tornou um membro do gênero humano
(ver Hb 2,14-15.17) – “um de nós” –, a fim de realizar a expiação “vicária”.
Para poder expiar, Ele devia, portanto, fazer Sua a situação dos pecadores, sem, porém, Ele
mesmo tornar-Se pecador. Pois, neste caso, nem poderia expiar. É que o pecador, por sua culpa,
está privado do dom do amor divino, e sem este amor é impossível expiar. E como Jesus pode,
de fato, concretamente, existencialmente, tornar-Se solidário com os pecadores e, ao mesmo
tempo, ser um com o Pai no amor? Como pode, em nome dos pecadores, dar ao Pai a resposta
de amor que cura a “ferida” do Seu coração amoroso de pai, repara a ofensa divina causada pelo
pecado?
72
A renúncia a um bem criado pode se realizar de duas maneiras:
a) como eliminação da desordem com a qual o bem foi amado (de modo que não haja mais um apego
desordenado ao bem);
b) como renúncia a um bem que o homem poderia possuir (um prazer que poderia ter) sem que prejudicasse o
amor que deve a Deus.
73
Aqui se levanta a questão se teria sido possível que Deus simplesmente perdoasse ao homem o pecado sem
haver uma reparação da ofensa divina por parte dele. Pelo mínimo, se deve dizer que isso teria sido muito
inconveniente.
Síntese teológica / 52
Só o pode fazer pelo amor sofredor, pelo amor que sofre por causa do pecado. Uma vez
que Ele mesmo não pecou, este sofrimento não pode ser a dor do arrependimento, como
também, para amar o Pai de todo o coração, Ele não precisa desprender-Se de um bem criado
que tenha amado de um modo desordenado. Nada de tudo isso é necessário, nem é possível,
porque Seu amor é verdadeiramente perfeito (sem qualquer apego a uma criatura que pudesse
prejudicar Seu amor ao Pai). Seu amor é absolutamente perfeito, ordenado, puro. Como, então,
pode assumir em Si a situação dos pecadores, tornar-Se solidário com eles?
São estas consequências que Ele pode tomar sobre Si e não, por ventura, as “penas” do pecado
(pena eterna e temporal74).
De acordo com isso, Jesus sofreu física e moralmente por causa dos pecados dos homens. O
ponto culminante do Seu sofrimento físico foi o martírio até a morte na cruz. O cume do Seu
sofrimento moral foi o sofrimento no Getsêmani e então a experiência do abandono de Deus na
cruz. Este amor sofredor é certamente o ápice absoluto da Sua resposta de amor, como homem,
ao Pai Celeste.
74
A pena eterna é a eterna privação da comunhão com Deus; a assim chamada “pena temporal” é a privação
daquela perfeição da comunhão com Deus que o homem poderia ter se não tivesse pecado ou se sua conversão
fosse total. Depois da morte, a pena temporal é a privação da bem-aventurança em Deus (visão beatífica) até que a
alma seja de tal modo purificada que possa amar a Deus verdadeiramente de todo o coração.
Síntese teológica / 53
Consequentemente, é preciso um empenho maior da minha parte, uma decisão mais profunda
da minha vontade, para amar Deus. Amar Deus neste sofrimento é muito mais difícil. Por outro
lado, este amor tem também uma grandeza especial. O exemplo de Jó, no Antigo Testamento,
nos manifesta isso de uma maneira impressionante (cf. Jó 1,8-11.21; 2,5.9-11). Mas o exemplo
supremo é nosso Senhor Jesus Cristo na cruz, amando o Pai com todas as “fibras” do Seu
coração humano, embora Se sinta abandonado por Ele (cf. Mt 27,46; Mc 16,34). Aqui se nos
apresenta a admirável grandeza da liberdade do amor, a maior liberdade possível, juntamente
com a máxima intensidade do amor. É verdadeiramente o ápice absoluto do amor do Coração
de Jesus ao Seu Pai celeste.
No amor expiador existe, portanto, um especial empenho próprio do homem ao amar a Deus.
Síntese teológica / 54
Para que o amor seja um amor expiador não basta, portanto, que o homem ame Deus com
uma intensidade maior. Pois também quando não pecou, o homem está obrigado a amar a Deus
com toda a intensidade que lhe é possível (“de todo o coração, com todas as forças”), e na
intensidade sobressai o aspecto do dom de Deus. Na expiação, porém, o acento está sobre o
homem, sobre algo que este dá a Deus como sua própria contribuição; o acento está, portanto,
sobre a liberdade. E vimos que é exatamente o sofrimento que aumenta a liberdade e, assim, o
empenho próprio do homem.
Pelo que vimos até agora – particularmente falando da volta de Jesus ao Pai como um
grande ato de amor –, está claro que Jesus realizou a Sua volta ao Pai, do início à chegada junto
do Pai, “no Espírito Santo” (presença do Espírito Santo em Sua alma humana), que é na
Divindade mesma a unidade de amor entre o Pai e o Filho. Também sob este aspecto, as missões
Síntese teológica / 55
do Filho e do Espírito Santo são uma missão conjunta, inseparável. “Em virtude do Espírito
eterno, Cristo Se ofereceu a Si mesmo a Deus como vítima sem mancha” (Hb 9,14).75 Tendo
assim voltado para o Pai, Jesus Cristo pode enviar o Espírito Santo para unir os homens a Si e,
em Si, ao Pai, para comunicar-lhes a (fazendo-os participar da) Sua comunhão com o Pai no
Espírito Santo.
Isto vale também para os anjos, quer dizer:
É para eles a fonte da comunhão com Deus Trindade e da graça de poder superar a prova e
entrar na comunhão gloriosa com a Ss. Trindade (na visão beatífica).
No entanto, existe uma grande diferença:
A “volta” ao Pai, com a qual Jesus mereceu aos anjos o Espírito Santo,
não é aquela que se realizou pelos atos do amor expiador, redentor.
Jesus não morreu pelos anjos.76
Porém, Ele não realizou uns atos especiais em benefício dos anjos: merecendo aos homens o
Espírito Santo, mereceu-O também aos anjos. Mas estes atos, sobretudo a Sua Páscoa, com
relação aos anjos tiveram simplesmente a qualidade meritória, ou seja, enquanto feitos no
estado de caminhada. Portanto, a fim de merecer para eles a graça e a glória, não era necessário
aquele sofrimento que é consequência do pecado (enfim, a morte).
Em Sua Páscoa, Jesus Cristo é também para os santos anjos fonte do Espírito Santo ou o
“caminho” para a sua união perfeita com Deus e em Deus. Porém, não o é enquanto a Sua
Páscoa é ato de amor expiador, redentor, mas simplesmente como ato livre, meritório.
75
No Rito Romano, uma oração do sacerdote em preparação para a S. Comunhão diz: “... cumprindo a vontade
do Pai e agindo com o Espírito Santo (cooperante Spiritu Sancto), pela vossa morte destes vida ao mundo”.
76
Cf. Hb 2,16: “Pois, afinal, Ele não veio em auxílio de anjos, mas da descendência de Abraão”. Esta frase se
encontra num contexto imediato em que se fala da solidariedade de Cristo com os homens, solidariedade esta que é
a condição para poder “expiar os pecados do povo” (v. 17).
Síntese teológica / 56
Maria está indissoluvelmente ligada à missão do Filho.77 Esta se realiza através dela,
através do seu ato de fé e de amor que abraça a vontade divina de o Filho Se fazer homem por
meio dela, a mulher virginal. No desígnio divino da Encarnação do Filho, da salvação da
humanidade, da união de todas as coisas nos Céus e na terra no Filho encarnado, das “núpcias
do Cordeiro”, neste desígnio divino Maria tem uma posição central e necessária como Mãe do
Filho.
A singularidade não está em ela ser “filha do Pai”, mas em ser a filha de tal modo eleita. Pois
esta filha foi eleita para ser verdadeiramente a genetriz de Deus Filho segundo a natureza
humana. Deus Pai é o genitor do Filho segundo a natureza divina; Maria, a virgem-mãe, é a
genetriz da mesma Pessoa, mas segundo a natureza humana (como homem, como “Filho do
Homem”, isto é, como o FILHO que é homem).78 Vê-se, portanto, que Maria participa de alguma
maneira da relação do PAI ao FILHO, enquanto ela é Mãe deste mesmo FILHO.
Maria é a Mãe de Deus Filho, é a origem de Deus Filho enquanto homem; esta maternidade
divina é o centro em todo o mistério de sua pessoa e ação.
77
Esta ligação se manifesta também na ligação que existe entre aquilo que a Igreja crê a respeito de Jesus
Cristo e a respeito de Sua Mãe: “O que a fé católica crê acerca de Maria funda-se no que ela crê acerca de Cristo,
mas o que a fé ensina sobre Maria ilumina, por sua vez, sua fé em Cristo” (Cat. 487).
78
Conc. de Friuli em 796 (DS 619): “por natureza, Filho de seu Pai, segundo a divindade; por natureza, Filho
de sua Mãe, segundo a humanidade; mas propriamente Filho de Deus em suas duas naturezas”.
79
Cf. Jo 1,14: “E a PALAVRA Se fez carne (= “para ser homem”) e veio morar entre nós” (= “para estar entre
nós, relacionando-Se conosco”).
80
Cf. Jo 1,14 em conexão com o “Pão da vida” que é Jesus, e o “pão” que Ele dá, isto é, Sua carne ( Jo 6,32-
51): a PALAVRA que Se fez carne é o PÃO da vida que desceu do Céu. Ele dá então aos homens fiéis a Sua própria
carne como alimento para Ele estar neles e eles n’Ele (cf. Jo 6,56: “... permanece em mim, e eu nele”).
Síntese teológica / 57
capacitada a elevar o próprio coração e o espírito ao nível da sua singular maternidade. Assim
vemos o seguinte:
Depois de Jesus, “o Ungido” pelo Espírito Santo, a Virgem imaculada e Mãe de Deus é o
ponto culminante da missão do Espírito Santo. A sua união com o Espírito Santo é inefável,
ela, “a toda santa”, a “plasmada pelo Espírito Santo” 81. Por isso é chamada de “sacrário” e
“esposa”82 do Espírito Santo. Assim também é possível a mais íntima cooperação de Maria com
o Espírito Santo.
Notemos que, na divindade, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, mas d’Ele não
procede nenhuma Pessoa divina. Por conseguinte, a Sua personalidade é constituída unicamente
pela relação de espiração passiva; não é constituída ou caracterizada por alguma relação de
origem (sendo Ele a origem) ao que é originado, como é o caso da Pessoa do Filho (que é a
relação subsistente de filiação, mas também de espiração ativa). Na divindade, o Espírito Santo
é, por conseguinte, “Aquele que recebe” (é somente o termo de uma processão intradivina, não
a origem de uma processão), mas o é como quem é Deus, perfeitamente Deus como o Pai e o
Filho.
Ora, a criatura é, por essência, “aquela que recebe”; tudo que ela é, tudo que nela há de
bom, ela o recebeu e recebe de Deus; a criatura recebe, acolhe o dom divino; só assim pode agir
e produzir fruto. A característica própria da criatura como criatura é, portanto, a receptividade,
enquanto a característica própria de Deus como Criador é a bondade que doa.
Maria é a criatura por excelência, a criatura que mais perfeitamente realiza a essência de
criatura em toda a sua vida, seu pensar e agir. Por isso, ela é perfeita receptividade, com a
consciência clara do seu “nada” de criatura (nada por si mesma, de si mesma), da sua condição
de que, para poder ser e agir, tem de receber, acolher o que lhe vem de Deus. Esta sua
consciência é mais clara e profunda do que a de qualquer outra criatura.
81
Expressões dos Padres da tradição oriental (cf. Cat. 493).
82
A palavra “esposa” quer exprimir a íntima união entre Maria e a Pessoa do Espírito Santo.
83
Uma plenitude que, durante a sua vida, cresceu sempre mais.
Síntese teológica / 58
A Pessoa do Espírito Santo – “Aquele que recebe”, Aquele que é relação de origem ao Filho e
ao Pai –, doando-Se a ela, fazendo-Se presente nela (de um modo totalmente novo, como já
explicado), une-a ao Filho e ao Pai numa atitude de receptividade total. Tendo em si, desde o
primeiro instante da sua existência, o Dom divino em Pessoa (o Espírito Santo), ela é preparada
para acolher o máximo dom que o Pai e o Filho lhe podem e querem fazer: o dom da Pessoa do
Filho eterno como seu próprio filho, como o fruto das suas entranhas, isto é: ela concebe o Filho
eterno do Pai como homem. Aqui, a relação da criatura a Deus é levada ao máximo da sua
perfeição, em plena conformidade com a essência da criatura: uma relação de abertura a Deus,
ao dom que Deus lhe faz, um consentimento com a vontade divina, um receber que se torna
concretamente um conceber, uma concepção, um ser fecundada para produzir o fruto divino.
É uma concepção virginal, porque não se realiza por ação de outra criatura, isto é, de um
homem, mas diretamente por ação do Espírito Santo (o Dom do Pai e do Filho) e do Filho que
doa a Si mesmos e do Pai que doa Seu Filho. A virgindade perpétua de Maria – antes da
concepção, na concepção, no parto e, depois do parto, durante toda a sua vida na terra – é
vivência plena e radical da sua união perfeita com o Espírito Santo. Este, com efeito, sendo
relação subsistente ao Filho e ao Pai, faz Maria viver, de um modo total e exclusivo, a relação de
amor à Pessoa do Filho e do Pai. “O sentido esponsal da vocação humana em relação a Deus (cf.
2Cor 11,2) é realizado perfeitamente na maternidade virginal de Maria” (Cat. 505). Como
virgem, ela é a criatura aberta, com a totalidade do seu ser, à ação de Deus.
O papel de Maria para com a Igreja decorre diretamente da sua união com seu Filho e,
portanto, com o Espírito Santo; é inseparável desta união. Ela se dedicou totalmente ao seu Filho
e à Sua obra de salvação. “Ao pronunciar o «fiat» (faça-se) da Anunciação e ao dar seu
consentimento ao Mistério da Encarnação, Maria já colabora para toda a obra que seu Filho
deverá realizar. Ela é Mãe onde Ele é Salvador e Cabeça do Corpo Místico” (Cat. 973).85
A relação de Maria com a Igreja pode-se sintetizar da seguinte maneira:
Ela é membro da Igreja, mas “membro supereminente e absolutamente único” (LG 53);
84
É a posição de quem deve tudo a Deus; e quanto mais deve a Deus, isto é, quanto maiores dons tiver
recebido de Deus, tanto mais humilde será.
85
LG 58: “A bem-aventurada Virgem avançou em sua peregrinação de fé, manteve fielmente sua união com o
Filho até a cruz, onde esteve de pé não sem desígnio divino, sofreu intensamente junto com seu unigênito. E com
ânimo materno se associou a seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima por ela gerada.
Finalmente, pelo próprio Jesus moribundo na cruz, foi dada como mãe ao discípulo com estas palavras: "Mulher,
eis aí teu filho" (Jo 19,26-27).”
Síntese teológica / 59
Ela é a “realização exemplar (typus)” da Igreja (LG 63), portanto modelo perfeito da
Igreja86 e, por conseguinte, também “ícone escatológico da Igreja” (Cat. 972 [título]).
Ela é a Mãe de todos os fiéis;
Ela é a Mãe da Igreja.
Maria é verdadeiramente “Mãe dos membros [de Cristo] (...), porque cooperou pela
caridade para que na Igreja nascessem os fiéis que são os membros desta Cabeça” 87. “De modo
inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela cooperou na obra do
Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas. Por este motivo ela se tornou para
nós mãe na ordem da graça” (LG 61). Assim, pela perfeita presença atuante do Espírito Santo
nela, “Maria torna-se a «Mulher», nova Eva, «mãe dos viventes», «Mãe do Cristo total»” (Cat.
726). “Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura ininterruptamente, a partir do
consentimento que ela fielmente prestou na anunciação, que sob a cruz resolutamente manteve,
até a perpétua consumação de todos os eleitos. Assunta aos céus, não abandonou este múnus
salvífico, mas, por sua múltipla intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna.
(...) Por isso, a bem-aventurada Virgem Maria é invocada na Igreja sob os títulos de advogada,
auxiliadora, protetora, medianeira” (LG 62). “Cremos que a Santíssima Mãe de Deus, nova Eva,
Mãe da Igreja, continua no Céu sua função materna em relação aos membros de Cristo.” 88
Maria, de fato, não é somente Mãe de todos os fiéis, mas também Mãe da Igreja. O que
significa isso? Significa que a função de Maria, expressa com o conceito de maternidade
(“mãe”), é referida ao próprio nascimento da Igreja. Isto, porque se reconhece que Maria tem
um papel na própria obra da Redenção realizada por Seu Filho (na “redenção objetiva”). Com
efeito, no momento em que se realiza a obra da salvação, a Igreja ainda não existe, mas está para
nascer do lado de Cristo.89
Contra esta doutrina foi levantada a seguinte objeção: Maria não pode ser Mãe da Igreja,
porque é um membro da Igreja. Esta objeção só pode fazer quem faz de uma metáfora um uso
unívoco e rígido. No entanto, é evidente que Maria não é mãe física, biológica da Igreja, ou seja,
dos membros da Igreja.
Quanto à “maternidade de Maria na economia da graça”, isto é, a mediação de Maria, o
Concílio Vaticano II já esclareceu o seguinte: “A missão materna de Maria em favor dos
homens de modo algum obscurece nem diminui a mediação única de Cristo; pelo contrário, até
ostenta sua potência, pois todo o salutar influxo da bem-aventurada Virgem (...) deriva dos
superabundantes méritos de Cristo, estriba-se em sua mediação, dela depende inteiramente e
dela aufere toda a sua força” (LG 60). A “única mediação do Redentor não exclui, antes suscita
nas criaturas uma variegada cooperação que participa de uma única fonte” (LG 62).90 Para
entendermos isso, basta pensarmos no fato de que o Espírito Santo no coração imaculado de
Maria – capacitando-a a realizar aqueles atos de fé, amor, obediência etc., com os quais
colaborou na obra redentora de seu Filho divino –, ela O tem d’Ele; ela O recebeu, já no
86
“Por sua adesão total à vontade do Pai, à obra redentora de seu Filho, a cada moção do Espírito Santo, a
Virgem Maria é para a Igreja o modelo da fé e da caridade. Com isso, ela é «membro supereminente e
absolutamente único da Igreja», sendo até a «realização exemplar (typus)» da Igreja” (Cat. 967).
87
LG 53, citando Sto. Agostinho, virg. 6: PL 40,399 (cf. Cat. 963).
88
PAULO VI, Solene Profissão de Fé, 15.
89
Recordemo-nos de que a efusão do Espírito Santo no Pentecostes é o “fruto” do sacrifício da cruz de Cristo.
90
“Com efeito, nenhuma criatura jamais pode ser equiparada ao Verbo encarnado e Redentor. Mas, da mesma
forma que o sacerdócio de Cristo é participado de vários modos, seja pelos ministros, seja pelo povo fiel, e da
mesma forma que a indivisa bondade de Deus é realmente difundida nas criaturas de modos diversos, assim
também a única mediação do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas uma variegada cooperação que
participa de uma única fonte” (LG 62).
Síntese teológica / 60
primeiro instante da sua existência, “em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero
humano”91.
“Mãe da Igreja”, este título é significativo, pois mostra que a ação de Maria se estende – não
somente a todos os fiéis, mas – à Igreja mesma, à Igreja-pessoa.
Portanto, em Maria podemos e devemos contemplar “o que é a Igreja em seu mistério, em
sua «peregrinação da fé», e o que ela (Igreja) será na pátria ao termo final de sua caminhada,
onde a espera, "«na glória da Santíssima e indivisível Trindade», «na comunhão de todos os
santos», aquela que a Igreja venera como a Mãe de seu Senhor e como sua própria Mãe” (Cat.
972).
A Revelação divina é
a a u t o c o m u n i c a ç ã o de Deus aos homens:
Sua automanifestação e autodoação.
Uma pessoa só pode ser conhecida, no seu núcleo mais íntimo, se se exprimir livremente, se
comunicar aos outros os seus sentimentos e as suas intenções, os seus pensamentos e as suas
decisões, num diálogo feito de palavras e de atos, isto é, numa história concreta. Enquanto os
segredos da natureza são conhecidos a partir de fora através da observação científica, o segredo
próprio de um sujeito consciente e livre abre-se a partir do interior, pela via do autotestemunho.
Algo semelhante acontece na revelação que Deus faz de Si próprio e do Seu desígnio de
amor para com o homem. Deus não pode ser conhecido na Sua vida pessoal íntima através do
caminho da intuição ou da reflexão humana, mas apenas por Sua livre iniciativa. Por isso, “na
riqueza do Seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e
admitir à comunhão com Ele”, embora permanecendo invisível, fala e doa-Se “por meio de
ações e palavras intimamente relacionadas entre si” (Dei verbum, 2) e complementares, isto é,
por meio de uma história.
Os atos contêm a realidade significada pelas palavras. Confirmam e verificam as
palavras. Dão-se “de uma vez por todas” (Hb 9,12), isto é, num tempo preciso e irrepetível, mas
91
Papa Pio IX, Proclamação do dogma da Imaculada Conceição de Maria (DS 2803).
92
Transcrevemos aqui e em seguida, quase literalmente, a explicação dada em: CONFERÊNCIA EPISCOPAL
ITALIANA, A verdade vos tornará livres. Catecismo para adultos, Coimbra (sem ano), n. 43ss.
Síntese teológica / 61
com valor perene e universal. O significado e a conexão profunda dos acontecimentos são
indicados por Deus aos Seus mensageiros, através de uma comunicação interior, clara e
indubitável, que em seguida se traduz em palavras pronunciadas e finalmente escritas.
As palavras interpretam os atos como sendo obra de Deus e, por vezes, provocam-nos
de um modo eficaz. Chamam, prometem e orientam, para que os atos se realizem; narram-nos e
explicam-nos, para que voltem a acontecer.
É através das ações e das palavras que se desenrola a trama de uma história terrena concreta,
na qual o próprio Deus livremente conduz o Seu diálogo com os homens para lhes dar esperança
e futuro. Progressivamente, Ele dá-Se a conhecer e doa-Se até Se comunicar plenamente em
Jesus Cristo. Torna os homens capazes de Lhe responder, de acolher a Sua presença e de
participar na Sua vida.
A revelação histórica de Deus era orientada desde o início para uma meta, que alcança o seu
cumprimento em Jesus Cristo: “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos
pais pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2).
A missão conjunta
do Filho, a Palavra do Pai, e do Espírito Santo, o Amor do Pai e do Filho,
é a automanifestação e autodoação das três Pessoas divinas aos homens:
O Filho do Pai, enviado por Ele, cooperando sempre o Espírito Santo,
comunica a Si mesmo integralmente aos homens:
faz-Se presente como homem entre os homens e
comunica-lhes a Sua comunhão com o Pai no Espírito Santo,
♦ comunicando-lhes o Espírito Santo (a Sua graça santificante, o Seu conhecimento
– através da Palavra de Jesus, acolhida com fé – e o amor divino) e, enfim,
♦ doando a Si mesmo, com Sua própria substância humana,
aos Seus (Comunhão eucarística).
A Tradição apostólica
Jesus Cristo aceita a tradição de Israel, contida nos livros sagrados (cf. Mt 5,17). Por Sua
vez, Ele inicia a Sua própria tradição de ensinamentos e gestos, que os discípulos recebem e
transmitem (cf. Mt 28,19s; 1Cor 11,23; 15,3; Fl 4,9; 1Ts 4,2). A comunhão de vida comporta,
acima de tudo, a transmissão oral, instrumento privilegiado e seguro da memória naquele
tempo. Os apóstolos, “na pregação oral, por exemplos e instituições, transmitiram aquelas coisas
que ou receberam das palavras, da convivência e das obras de Cristo ou aprenderam das
sugestões do Espírito Santo” (DV 7). Desenvolve-se, assim, a “Tradição apostólica”, numa
variedade de formas: narrações, profissões de fé, hinos, fórmulas e ritos litúrgicos, exemplos e
regras de vida, regulamentos e instituições. Também esta tradição bem cedo se deposita em
textos escritos (cf. Lc 1,1-4; 2Ts 2,15), redigidos por autores divinamente inspirados, no seio da
comunidade cristã das origens.
93
Ver nota de rodapé 95 (Catecismo para adultos, n. 55ss).
Síntese teológica / 63
“Promanando ambas da mesma fonte divina, formam de certo modo um só todo e tendem para o
mesmo fim” (DV 9).
“Tanto uma como outra tornam presente e fecundo na Igreja o mistério de Cristo, que
prometeu permanecer com os seus «todos os dias, até a consumação dos séculos» (Mt 28,20)”
(Cat. 80). “Assim, a comunicação que o Pai fez de si mesmo por seu Verbo no Espírito Santo
permanece presente e atuante na Igreja: «O Deus que outrora falou mantém um permanente
diálogo com a esposa de seu dileto Filho, e o Espírito Santo, pelo qual a voz viva do Evangelho
ressoa na Igreja e através dela no mundo, leva os crentes à verdade toda e faz habitar neles
abundantemente a palavra de Cristo» (DV 8)” (Cat. 79).
doutrina dos apóstolos e na comunhão, na fração do pão e nas orações, de sorte que na
conservação, no exercício (na prática) e na profissão da fé transmitida se crie uma singular
unidade de espírito entre os bispos e os fiéis»” (Cat. 84). É uma estreita colaboração.
Este Magistério viva da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo, não pode
ensinar senão “o que foi transmitido, no sentido de que, por mandato divino, com a assistência
do Espírito Santo, ouve com piedade aquela palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe, e
deste único depósito de fé tira o que nos propõe para ser crido como divinamente revelado” ( DV
10).
“Fica, portanto, claro que segundo o sapientíssimo plano divino, a Sagrada Tradição, a
Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal modo entrelaçados e unidos que um
não tem consistência sem os outros, e que juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo
Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas” (DV 10).
Prestemos atenção ao fato que na Revelação divina e na sua transmissão encontramos
unidades de três97, as quais, de alguma maneira, são um reflexo da Trindade divina que Se
revela (o Pai comunica a Si mesmo por seu Verbo no Espírito Santo).
A relação da Igreja com a missão conjunta do Filho e do Espírito Santo pode-se indicar com
a palavra “sacramento”, isto é, sinal e instrumento. Não é sinal vazio, mas o sinal que traz em si
a realidade significada. Neste caso, esta realidade significada pelo sinal é “a missão de Cristo
e do Espírito Santo”; é, portanto, o mistério de comunhão com Deus Trindade.
Com efeito, a “missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se n a Igreja” (Cat. 737). O
resultado da missão de Cristo e do Espírito Santo é o mistério de comunhão que se realiza
concretamente na Igreja como um organismo social (sociedade, comunidade) visível,
perceptível. Por isso, a Igreja é “sacramento”, portanto “sinal”, dessa comunhão.
Aqui temos, sobretudo e especialmente, mas não unicamente, os sacramentos na Igreja. Vale em
geral: “assim como a natureza assumida pelo Verbo divino lhe serve de órgão vivo de salvação,
a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao
Espírito de Cristo, que a vivifica, para fazer progredir o seu corpo místico (cf. Ef 4, 16)” (LG
8).98
Ora, este último aspecto se exprime pela expressão “Mãe Igreja”: a Igreja é mãe que gera
filhos (pense-se sobretudo no Batismo), e nós somos “filhos da Igreja”. O primeiro aspecto se
exprime dizendo que “somos Igreja”, fazemos parte dela, somos membros da Igreja. Podemos
exprimir os dois aspectos, falando da “graça”: “A Igreja contém, portanto, e comunica a graça
invisível que ela significa” (Cat. 774).
Perguntamos agora: como é que surge a Igreja? Como é que a Igreja se realiza? Já sabemo-
lo: pela realização da missão de Cristo e do Espírito Santo (Encarnação, vida de Cristo, Sua
“Páscoa”, Pentecostes). Em outras palavras:
Esta autocomunicação começou na vida terrena de Jesus Cristo, sendo consumada com
Sua “Páscoa” e a instituição da santíssima Eucaristia e pelo envio do Espírito Santo no
Pentecostes. Daí em diante é prolongada na Igreja e através dela, até a vinda final de Jesus.
Tal autocomunicação do Filho encarnado realiza-se de um modo sensível, isto é, perceptível
pelos sentidos. Perceptível era Sua presença humana (física), as palavras da Sua boca, os
gestos, as ações e os sofrimentos (manifestações do Seu amor), bem como o dom do Espírito
Santo no Pentecostes. Assim, também o prolongamento da Sua autocomunicação depois de
Pentecostes é perceptível, e igualmente o resultado dessa autocomunicação não é somente uma
realidade invisível, imperceptível. Este resultado é exatamente a Igreja, uma realidade na qual
os elementos invisíveis, espirituais, divinos e os elementos visíveis, materiais ou corporais,
humanos formam uma admirável unidade.99
98
Cf. Cat. 783, acima citado: “por todo o seu ser e em todos os seus membros, a Igreja é enviada a ...”.
99
Cf. LG 8: “... uma realidade única e complexa, em que se fundem dois elementos, o humano e o divino”.
Síntese teológica / 66
100
Cf. Jo 15,12; 17,26.
101
Cf. Cat. 331, 333, 334, 336.
Síntese teológica / 67
Em estreita conexão com isso, podemos ver também os múltiplos dons, chamados
“carismas” (cf. 1Cor 12,1), que, pelo Espírito Santo, Jesus dá aos membros da Igreja para que
sejam capazes a darem a sua colaboração pessoal para a edificação da Igreja, o cumprimento da
missão da Igreja, a salvação dos outros.
a Igreja
como comunhão de v i d a , de v e r d a d e e de a m o r ,
como comunidade de f é , de e s p e r a n ç a e de c a r i d a d e ,
como o povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
É o que diz o Concílio Vaticano II, ao afirmar: “Constituído por Cristo numa comunhão de vida,
de caridade e de verdade, é assumido por ele para ser instrumento da redenção universal, e como
luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16), é enviado ao mundo inteiro” (LG 9,2).102 “Cristo,
Mediador único, constituiu e sustenta ... a sua Igreja santa, comunidade de fé, de esperança e de
caridade” (LG 8). “Assim a Igreja universal aparece como o «povo congregado na unidade do
Pai e do Filho e do Espírito Santo»” (LG 4). Ela é – eis outra tríade! –
♦ o P o v o de Deus (Pai),
♦ o C o r p o e a E s p o s a de Cristo (Filho encarnado) e
♦ o T e m p l o do Espírito Santo.
A missão do Filho e do Espírito Santo faz do povo de Deus da Antiga Aliança o Templo do
Espírito Santo, o Corpo de Cristo e a Esposa de Cristo (é uma característica nova e específica
do novo Povo de Deus!). Esta Igreja é a forma definitiva do povo de Deus na história e o
início do Reino de Deus e de Cristo, a caminho da sua consumação.103
É pela santíssima Eucaristia – pela Sagrada Comunhão eucarística como uma certa
antecipação do “banquete das núpcias do Cordeiro” (cf. Ap 19,9) – que a Igreja é o Corpo de
Cristo (cf., especialmente, 1 Cor 10,17) e a Esposa de Cristo, já inicialmente unido ao seu
Esposo. Como já dissemos, o envio do Filho por parte do Pai não se restringe ao envio para Ele
Se fazer homem entre os homens, mas é, além disso, para Ele, como homem (como o “pão
descido do Céu”), dar Sua carne e Seu sangue (Sua substância humana) aos homens a Ele unidos
pelo Espírito Santo, para Ele estar nos homens (cf. Jo 1,14 e cap. 6). É deste modo que a Igreja é
o que é. De fato, “sem a Eucaristia, a Igreja simplesmente não existiria” 104.
102
“Comunhão de vida” pode ter três significados, intimamente conexos entre si: a) participação da vida divina
(cf. a “corrente da vida”); b) participação da “vida” de Cristo, isto é, do Seu ser (substância), do Seu Corpo e
Sangue, pela santíssima Eucaristia; c) convivência dos fiéis.
103
LG 9: “Este povo tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita
o Espírito Santo como em seu templo. Tem por lei o mandamento novo, de amar como Cristo nos amou (cf. Jo 13,
34); e finalmente tem como finalidade, o reino de Deus, começado já na terra pelo próprio Deus e que deve ser
continuamente desenvolvido até que no fim dos séculos seja por ele completado, quando Cristo, nossa vida,
aparecerá (cf. Cl 3, 4), e toda a criação «também ser libertada da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade
da glória dos filhos de Deus» (Rm 8, 21).”
104
BENTO XVI, Angelus, 26.6.2011.
Síntese teológica / 68
105
Quanto ao ministério apostólico na Igreja pós-apostólica, eis a doutrina católica: “«O ministério
eclesiástico, divinamente instituído, é exercido em diversas ordens pelos que desde a antigüidade são chamados
bispos, presbíteros e diáconos» (LG 28). A doutrina católica, expressa na liturgia, no magistério e na prática
constante da Igreja, reconhece que existem dois graus de participação ministerial no sacerdócio de Cristo: o
episcopado e o presbiterado. O diaconado se destina a ajudá-los e a servi-los. Por isso, o termo «sacerdos»
designa, na prática atual, os bispos e os sacerdotes, mas não os diáconos. Não obstante, ensina a doutrina católica
que os graus de participação s a c e r d o t a l (episcopado e presbiterado) e o de s e r v i ç o (diaconado) são
conferidos por um ato sacramental chamado «ordenação», isto é, pelo sacramento da Ordem” (Cat. 1554).
106
O Catecismo da Igreja Católica explica (n. 875): “Ninguém pode dar a si mesmo o mandato e a missão de
anunciar o Evangelho. O enviado do Senhor fala e age não por autoridade própria, mas em virtude da autoridade de
Cristo; não como membro da comunidade, mas falando a ela em nome de Cristo. Ninguém pode conferir a si
mesmo a graça; ela precisa ser dada e oferecida. Isto supõe ministros da graça autorizados e habilitados da parte
de Cristo. Dele, os bispos e os presbíteros recebem a missão e a faculdade (o «poder sagrado») de agir «na pessoa
de Cristo-Cabeça», os diáconos, a força de servir o Povo de Deus na «diaconia» da liturgia, da palavra e da
caridade, em comunhão com o bispo e seu presbitério. A tradição da Igreja chama de «sacramento» este ministério,
pelo qual os enviados de Cristo fazem e dão, por dom de Deus, o que não podem fazer nem dar por si mesmos. O
ministério da Igreja é conferido por um sacramento específico.”
Síntese teológica / 69
De fato, para o caráter impresso pelos sacramentos do Batismo e da Crisma vale o mesmo
que já vimos ao considerar o caráter sacramental da Ordem. Por isso, para constatar quem é
membro da Igreja, não é necessário poder constatar quem se encontra em estado de graça, mas
basta saber que estas pessoas foram batizadas. Quem não está em estado de graça (está sem a
presença santificante do Espírito Santo), encontra-se numa situação paradoxal (membro
“morto” da Igreja, estando privado do que podemos chamar a “alma” ou “princípio vital” da
Igreja, isto é, a comunhão vital com Deus Trindade), mas não deixa de ser um membro da Igreja
na terra, situação esta que só é possível na vida terrena, não na eternidade, na qual, aliás,
também aqueles que nunca receberam o caráter sacramental, mas, sim, o dom da comunhão com
Deus Trindade, pertencem perfeitamente à Igreja. Com efeito, o caráter, embora seja indelével, é
para a vida nesta terra, é necessário para a pertença à Igreja visível neste mundo.
Esta Igreja, por todo o seu ser e em todos os seus membros, é enviada a anunciar e
testemunhar, atualizar e difundir o mistério da comunhão da Santíssima Trindade (cf. Cat. 738).
Nisto, no entanto, existe uma diferença, devida aos dois modos diferentes da participação no
único sacerdócio profético e régio de Jesus Cristo: a participação que constitui os representantes
de Cristo-Cabeça (Cristo em relação à Sua Igreja) e a participação que constitui os membros da
Igreja como tal (Corpo de Cristo, Esposa de Cristo). No segundo caso vale: para que eles, com
107
A Tradição viva se compõe essencialmente de três elementos: doutrina, culto, vida (prática) da Igreja, ou
seja, a fé proclamada, confessada, a fé celebrada e a fé vivida.
108
Todos se ordenam à santíssima Eucaristia.
Síntese teológica / 70
sua vida, suas ações, sejam “sacramento” da missão do Filho e do Espírito Santo (Cristo, no e
pelo Espírito Santo, agindo neles e através deles), requer-se a comunhão vital com Cristo
(amor), pois aí eles agem
– como pessoas distintas de Cristo, embora em união com Ele (a Igreja como Esposa de
Cristo), enquanto os representantes sacramentais de Cristo em relação à Igreja agem
(plena e mais fortemente na dimensão central de seu ministério: no múnus de
santificação e de culto a Deus)
– como meros instrumentos de Cristo, que com sua ação, tornam perceptível a própria
ação de Cristo.
A unidade da Igreja, mistério de comunhão dos homens com a Ss. Trindade e entre si, é
realizada e garantida por Jesus Cristo, que envia o Espírito Santo de junto do Pai e dá aos
Apóstolos, com Pedro como cabeça, uma missão especial de continuação da Sua própria missão.
Portanto, “Jesus Cristo quer que seu povo cresça sob a ação do Espírito Santo, através da
fiel pregação do Evangelho e da administração dos sacramentos, e mediante um governo
amoroso, realizado pelos Apóstolos e seus sucessores – os Bispos – e o sucessor de Pedro como
chefe. E Ele próprio, através de tudo isso e por obra do mesmo Espírito, realiza a comunhão na
unidade: na confissão de uma única fé, na comum celebração do culto divino e na fraterna
concórdia da família de Deus” (UR 2).
Eis aqui, num esquema, estes elementos constitutivos da unidade (visível e espiritual) da
Igreja:
Síntese teológica / 71
109
Esta ação do Espírito Santo não se refere apenas ao ministério apostólico (estes ministros representam
sacramentalmente a Cristo como Cabeça da Igreja, no Seu tríplice múnus), mas também a todos os membros da Igreja,
que participam do tríplice múnus de Cristo (= sacerdócio comum, profético e régio). Assim, além da vida de fé, esperança
e caridade e das outras virtudes, vivificadas divinamente pela caridade (= o exercício do sacerdócio comum, de um modo
particular mas não exclusivamente na liturgia), o Espírito Santo opera a edificação da Igreja também “pelas múltiplas
graças especiais (chamadas de ‘carismas’), por meio das quais ‘torna os fiéis aptos e prontos a tomarem sobre si os vários
trabalhos e ofícios que contribuem para a renovação e maior incremento da Igreja’” (Cat. 798).
110
“O que Cristo confiou aos apóstolos, estes o transmitiram por sua pregação [daí: a S. Tradição] e por escrito, sob
a inspiração do Espírito [S. Escritura], a todas as gerações, até a volta gloriosa de Cristo” (Cat. 96). “A Sagrada Tradição
e a Sagrada Escritura constituem um só sagrado depósito da Palavra de Deus confiado à Igreja” (DV 10).
111
“Mas para que o Evangelho sempre se conservasse inalterado e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram como
sucessores os bispos, a eles ‘transmitindo o seu próprio encargo de Magistério’ (S. Irineu). ... a Sagrada Tradição, a
Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem
os outros, e que juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a
salvação das almas” (DV 10).
Síntese teológica / 72
Este mistério é constituído pela missão do Filho e do Espírito Santo: “o Pai realiza o ‘mistério
de sua vontade’ entregando seu Filho bem-amado e seu Espírito para a salvação do mundo e
para a glória de seu nome” (Cat. 1066). “É este mistério de Cristo que a Igreja anuncia e
celebra em sua liturgia, a fim de que os fiéis vivam e dêem testemunho dele no mundo” (Cat.
1068).
Vê-se, portanto, que “a liturgia não esgota toda a ação da Igreja” (SC 9): “ela tem de ser
precedida pela evangelização, pela fé e pela conversão; pode então produzir seus frutos na vida
dos fiéis: a vida nova segundo o Espírito, o compromisso com a missão da Igreja e o serviço de
sua unidade” (Cat. 1072; cf. também Cat. 1109).
1. O que é a “liturgia”?
“Na tradição cristã, ela [a palavra “liturgia”] quer significar que o povo de Deus toma parte
na ‘obra de Deus’” (Cat. 1069). No Novo Testamento, a palavra “liturgia” é empregada para
designar
o anúncio do Evangelho (cf. Rm 15,16; Fl 2,14-17.30);
a celebração do culto divino (At 13,2; Lc 1,23);
a caridade em ato (cf. Rm 15,27; 2Cor 9,12; Fl 2,25).
Em todas essas situações trata-se do serviço prestado a Deus e aos homens. “Na celebração
litúrgica, a Igreja é serva à imagem do seu Senhor, o único ‘liturgo’ (cf. Hb 8,2.6), participando
de seu sacerdócio (culto) profético (anúncio) e régio (serviço de caridade)” (Cat. 1070).
Daí, a definição descritiva da liturgia:
Sendo assim, “toda a celebração litúrgica, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo que
é a Igreja, é ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo título e grau, não é igualada
por nenhuma outra ação da Igreja” (ibid.).
A liturgia é caracterizada
pelo diálogo entre Deus e o homem,
pela aliança entre Deus e o homem,
uma vez que é o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo,
o mediador entre Deus e os homens.
Síntese teológica / 73
Deste modo, encontra-se na liturgia uma “dupla dimensão” (cf. Cat. 1083), ou seja, a direção ♦
descendente e a direção ♦ ascendente: de Deus para o homem, do homem para Deus, a
santificação do homem e o culto de adoração prestado a Deus.
São as duas direções da “bênção”: “Abençoar é uma ação divina que dá a vida e da qual o
Pai é a fonte. Sua bênção é ao mesmo tempo palavra e dom (benedictio, eulogia, pronuncie
«euloguia»). Aplicado ao homem, esse termo significará a adoração e a entrega a seu criador, na
ação de graças” (Cat. 1078). Na dimensão ascendente, a “liturgia é também participação da
oração de Cristo, dirigida ao Pai no Espírito Santo. Nela, toda oração cristã encontra sua fonte e
seu termo” (Cat. 1073). Esta dupla dimensão, presente em toda a liturgia 112, manifesta-se, de um
modo particularmente claro e forte, na Santíssima Eucaristia: “Nela está o clímax tanto
♦ da ação pela qual, em Cristo, Deus s a n t i f i c a o mundo, como
♦ do c u l t o que no Espírito Santo os homens prestam a Cristo
e, por ele, ao Pai” (Cat. 1325).
Na Celebração Eucarística, a dimensão ascendente da liturgia é participação no sacrifício da
cruz de Cristo.
Na verdade, a liturgia realiza e manifesta a Igreja como sinal visível da comunhão entre
Deus e os homens por meio de Jesus Cristo. Em outras palavras: na liturgia e por ela, a Igreja é
de modo mais eficaz e intenso “o sacramento da salvação, o sinal e o instrumento da
comunhão de Deus e dos homens” (Cat. 780)
A liturgia não é, de modo algum, apenas ação da Igreja. Ela é ação de Cristo e da Igreja,
ação do Espírito Santo e da Igreja, mas também é obra do Pai. Ela é obra da Santíssima
Trindade.
Dissemos, num capítulo anterior, que o caminho das criaturas é “de Deus Trindade a Deus
Trindade”. Podemos também dizer que o caminho vai:
É o que vale de um modo especial para a liturgia, onde se realiza, com a maior eficácia e
intensidade,
♦ a autocomunicação de Deus (do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo) e
♦ a resposta da Igreja, Sua autodoação a Deus (no Espírito Santo, pelo Filho, ao Pai),
prestando o culto de adoração pela oração e, sobretudo, pela oferta sacramental do sacrifício da
cruz. Pensando no mistério da vida divina trinitária, podemos reconhecer claramente as duas
direções na direções opostas das relações reais (de origem) na Divindade:
112
Também na celebração dos demais sacramentos, que parecem destinar-se unicamente à santificação do
homem, está presente a dimensão ascendente, ou seja, de culto prestado a Deus. É evidente que, se o homem é
santificado, Deus é glorificado. “A glória de Deus é o homem vivo” (Sto. Irineu). Mas não é apenas isso. Na
verdade, para participar da liturgia, inclusive para receber a santificação (vida divina, comunhão com a Santíssima
Trindade), portanto para receber os sacramentos, o homem precisa ser capacitado ao culto divino prestado por
Cristo (capacitado a participar deste culto); ele tem de ser uma pessoa consagrada, isto é, uma pessoa que é
configurada a Cristo Sacerdote, alguém, portanto, que participa do sacerdócio de Cristo. Essa consagração é o
caráter sacramental do Batismo, bem como da Crisma. Este caráter é, de fato, uma consagração a Deus, uma
destinação e capacitação ao culto divino, sendo uma participação do sacerdócio (profético e régio) de Cristo.
Quanto ao primeiro dos sacramentos, o Batismo, o caráter é o primeiro efeito da ação sacramental (res et
sacramentum), que, por sua vez, é ainda sinal eficaz (só não é eficaz se a pessoa que recebe o Batismo opõe um
obstáculo moral) da graça do Batismo.
Síntese teológica / 74
Doando o Espírito Santo aos Apóstolos, concedeu-lhes a eles e aos seus sucessores o poder de
realizar a obra da salvação (comunicar os frutos do Seu mistério pascal 114) por meio do
Sacrifício eucarístico e dos sacramentos (em torno dos quais gravita toda a vida litúrgica), nos
quais Ele próprio age agora para comunicar a sua graça aos fiéis de todos os tempos e em todo o
mundo.
Assim, Cristo está presente na liturgia da Igreja sobre a terra (nas espécies eucarísticas, nos
sacramentos, no ministro ordenado, por Sua palavra, na assembleia em oração; cf. SC 7), pois
“na realização de tão grande obra, por meio da qual Deus é perfeitamente glorificado e os
homens são santificados, Cristo sempre associa a Si a Igreja, Sua esposa diletíssima, que o
invoca como seu Senhor e por ele presta culto ao eterno Pai” (SC 7).
Cristo presente na liturgia da Igreja na terra é o mesmo presente na liturgia celeste, unindo
assim liturgia terrestre e celeste (cf. Cat. 1090; SC 8). A assembleia litúrgica é “liturgo” (cf. Cat.
1144) pela participação do único sacerdócio de Cristo.
113
Cf. Cat. 1077ss; Cat. Comp. 221-223.
114
Jesus Cristo enviou os Apóstolos não só para anunciarem que Ele é o único Salvador através da Sua morte e
ressurreição, mas também para levarem a efeito o que anunciavam: a obra da salvação por Cristo (cf. SC 6).
Síntese teológica / 75
O centro da liturgia são os sacramentos. O centro deste centro é a santíssima Eucaristia, que
é, por excelência, o sacramento da “Páscoa” do Senhor Jesus Cristo. Na celebração da
santíssima Eucaristia manifesta-se da maneira mais clara a essência da liturgia e sua íntima
conexão com o mistério de Deus Trindade, isto é, o mistério da mais perfeita comunicação e
comunhão.
Ver e ler: Sapientia Crucis 6 (2005) 70-89 (“O Dinamismo intrínseco da Celebração
eucarística e sua Expressão externa”).
O mistério de Cristo
1) é acreditado e confessado: o Credo
2) é celebrado e comunicado: a Sagrada Liturgia
3) está presente para iluminar e amparar
os filhos de Deus em seu agir: o agir cristão
4) fundamenta a nossa oração e
constitui o objeto de nosso louvor,
ação de graças e súplica (intercessão); a oração cristã
115
“Na liturgia da nova aliança, toda ação litúrgica, especialmente a celebração da Eucaristia e dos
sacramentos, é um encontro entre Cristo e a Igreja” (Cat. 1097).
116
“Segundo a natureza das ações litúrgicas e as tradições rituais das Igrejas, uma celebração «faz memória»
das maravilhas de Deus em uma anamnese mais ou menos desenvolvida. O Espírito Santo, que desperta assim a
memória da Igreja, suscita então a ação de graças e o louvor (doxologia)” (Cat. 1103).
117
“O mistério pascal de Cristo é celebrado, não é repetido; o que se repete são as celebrações; em cada uma
delas sobrevém a efusão do Espírito Santo que atualiza o único mistério” (Cat. 1104).
118
“O fruto do Espírito na liturgia é inseparavelmente comunhão com a Santíssima Trindade e comunhão
fraterna entre os irmãos” (Cat. 1108).
Síntese teológica / 76
119
Cf. Cat. 1692: “O Símbolo da fé professou a grandeza dos dons de Deus ao homem na obra de sua criação
e, mais ainda, pela redenção e santificação. O que a fé confessa os sacramentos comunicam: pelos "sacramentos
que os fizeram renascer", os cristãos se tornaram "filhos de Deus" ? (1Jo 3,1), "participantes da natureza divina"
(2Pd 1,4). Reconhecendo na fé sua nova dignidade, os cristãos são chamados a levar a partir de então uma "vida
digna do Evangelho de Cristo" (Fl 1,27). Pelos sacramentos e pela oração, recebem a graça de Cristo os dons de seu
Espírito, que os tornam capazes disso.”
120
Cf. Cat. 1693: “Jesus Cristo sempre fez o que era do agrado do Pai (cf. Jo 8,29). Sempre viveu perfeita
comunhão com Ele. Também os discípulos são convidados a viver sob o olhar do Pai, "que vê o que está oculto"
(Mt 6,6), para se tornarem "perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5,48).”
121
Cf. Cat. 1694: “Incorporados a Cristo pelo Batismo (cf. Rm 6,5), os cristãos estão «mortos para o pecado e
vivos para Deus em Cristo Jesus» (cf. Rm 6,11), participando assim da vida do Ressuscitado (cf. Cl 2,12). Seguindo
a Cristo e em união com ele (cf. Jo 15,5), podem procurar «tornar-se imitadores de Deus como filhos amados e
andar no amor» (cf. Ef 5,1-2), conformando seus pensamentos, palavras e ações aos «sentimentos de Cristo Jesus»
(cf. Fl 2,5) e seguindo seus exemplos (cf. Jo 13,12-16).”
Síntese teológica / 77
O Espírito do Filho nos faz andar nesse caminho, nos faz agir, produzir “os frutos do
Espírito” (Gl 5,22) pela caridade operante.122
“Jesus diz: «Eu sou a videira, e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele
produz muito fruto, porque, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15,5). O fruto indicado nesta
palavra é a santidade de uma vida fecundada pela união a Cristo.
«Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei» (Jo 15,12)” (Cat.
2074). Por isso: “Para mim, viver é Cristo” (Fl 1,21).
Peço que considereis que Jesus Cristo nosso Senhor é vossa verdadeira Cabeça e que vós sois um de
seus membros. Ele é para vós o que a Cabeça é para os membros; tudo o que é dele é vosso, seu
espírito, coração, corpo, alma e todas as suas faculdades, e deveis fazer uso disso como coisa vossa
para servir, louvar, amar e glorificar a Deus. Vós sois em relação a Ele o que os membros são em
relação à cabeça. Assim, Ele deseja ardentemente fazer uso de tudo o que está em vós para o serviço e
a glória de seu Pai, como coisa sua123.
A comunhão nos mistérios da vida de Jesus se realiza, sobretudo, no amor: “o Salvador
mesmo vem amar em nós seu Pai e seus irmãos”. Jesus faz aos membros de Seu Corpo o dom
de participar do ápice do Seu amor ao Pai e aos homens: o amor expiador e redentor. A
participação perfeita é o amor expiador em favor de outros (cf. 1 Jo 3,16; 4,10; 2 Cor 5,15). O
outro modo de participar é o amor penitente (pelos próprios pecados).
A união com Cristo e o conformar-se a Ele como regra viva e interior de nosso agir
realiza-se, na base da f é , p e l o a m o r .
122
Cf. Cat. 1695: “«Justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus» (1Cor 6,11),
«santificados... chamados a ser santos» (cf. 1Cor 1,2), os cristãos se tornaram «templo do Espírito Santo» (1Cor
6,19). Esse «Espírito do Filho» os ensina a orar ao Pai (cf. Gl 4,6) e, tendo-se tornado vida deles, os faz agir (cf. Gl
5,25) para carregarem em si «os frutos do Espírito» (cf. Gl 5,22) pela caridade operante. Curando as feridas do
pecado, o Espírito Santo nos «renova pela transformação espiritual de nossa mente» (cf. Ef 4,23), ele nos ilumina e
fortifica para vivermos como «filhos da luz» (Ef 5,8), na «bondade, justiça e verdade» em todas as coisas (Ef 5,9).”
123
S. João Eudes, Cord., 1,5.
Síntese teológica / 78
Pelo amor somos transformados à imagem do Filho único do Pai (cf. Cat. 1877).
O duplo mandamento do amor, mas a única virtude teologal do amor:
amar a Deus acima de tudo, por Ele mesmo e com todas as forças;
amar o próximo como a si mesmo, por amor de Deus.
A unidade do amor provém do fato que, cumprindo o mandamento do amor, amamos o
próximo “por amor de Deus”.
Além disso, o amor une intimamente as diversas virtudes, pois o amor realiza todos os atos
virtuosos; cf. 1 Cor 13,4-7: “A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A
caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não busca os seus próprios
interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a
verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”
O amor (“caridade”) dá forma a toda a ordem moral: penetra o ato mesmo (de outras
virtudes, p. ex. da justiça), dando-lhe um novo modo de ser. Faz desse ato, de alguma maneira,
um ato de amor. A virtude da religião (pertencendo à virtude cardeal da justiça: justiça com
relação a Deus) apenas pode reger toda a atividade humana, dando um novo motivo à ação (para
a glória de Deus, para prestar culto a Deus).
Se, portanto, perguntarmos: como chegamos à comunhão perfeita com a Santíssima
Trindade? Como chegamos à perfeita participação da comunhão de Jesus Cristo com o Pai
no Espírito Santo, que é o fim da caminhada?
A resposta é: pelos a t o s ; não apenas ou simplesmente por possuirmos as virtudes. É
preciso praticá-las! Os “passos” pelos quais andamos até Deus são os atos de amor (amor que
realiza todos os atos virtuosos).
Assim, há dois caminhos, entre os quais é preciso escolher: um caminho para a vida e o
outro para a perdição. Esta linguagem dos “dois caminhos” intenciona mostrar a importância
das decisões morais para nossa salvação.124
124
Cf. Cat. 1696: “O caminho de Cristo «conduz à vida» (Mt 7,14), um caminho contrário «leva à perdição»
(Mt 7,13; cf. Dt 30,15-20). A parábola evangélica dos dois caminhos ... significa a importância das decisões morais
para nossa salvação. «Há dois caminhos, um da vida e outro da morte; mas entre os dois há grande diferença»
(Didaché, 1,1).”
Síntese teológica / 79
Não é, portanto, apenas uma vida baseada na dignidade e nas possibilidades (faculdades) da
natureza humana. Com efeito, desde o início, o homem é chamado por Deus à bem-
aventurança divina, ou seja, a participar da bem-aventurada comunhão das Pessoas divinas.
Eis a grandeza plena da dignidade humana.
A dignidade humana
♦ se fundamenta em sua criação à imagem e semelhança de Deus, mas
♦ realiza-se em sua vocação à bem-aventurança divina.
a) A lei moral:
“A lei é uma ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele a quem cabe o
governo da comunidade.”125 “Segundo a Escritura, a lei é uma instrução paterna de Deus que
125
S.Th. I-II, q. 90, a. 4.
Síntese teológica / 80
A Nova Lei é operante pela caridade, serve-se do Sermão do Senhor para nos ensinar o que é
preciso fazer e dos sacramentos para nos comunicar a graça de fazê-lo (cf. Cat. 1965, 1966).
A Lei evangélica leva a pleno cumprimento, ultrapassa e conduz à perfeição a Antiga Lei:
♦ suas promessas, por meio das bem-aventuranças do Reino dos Céus;
♦ seus mandamentos, por meio da transformação da fonte de suas ações, ou seja, o coração.
A Nova Lei é uma lei de ♦ amor, uma lei de ♦ graça, uma lei de ♦ liberdade (cf. 2 Cor 3,17:
“onde se acha o Espírito do Senhor, aí existe a liberdade”).
Além de seus preceitos, a Nova Lei comporta os conselhos evangélicos (cf. Cat. 1984-
1986).
b) A graça e a justificação
Já refletimos sobre a graça em conexão com a missão do Filho e do Espírito Santo, bem
como em conexão com a reflexão sobre a nossa comunhão pessoal com cada uma das três
Pessoas divinas. Aí vimos também diversos tipos de graça.
A graça do Espírito Santo nos dá a justiça de Deus. Unindo-nos pela fé e pelo Batismo à
Paixão e à Ressurreição de Cristo, o Espírito nos faz participar da vida de Cristo (cf. Cat. 2017).
126
Sto. Agostinho, Serm. Dom. 1,1,1: CCL 35,1-2 (PL 34,1229-1231): “Aquele que quiser meditar com
piedade e perspicácia o Sermão que Nosso Senhor pronunciou no monte, tal como o lemos no Evangelho de São
Mateus, aí encontrará, sem sombra de dúvida, a carta magna da vida cristã. (...) Este Sermão contém todos os
preceitos apropriados para guiar a vida cristã.”
127
“Concluirei com a casa de Israel uma nova aliança. (...) Colocarei minhas leis em sua mente e as inscreverei
em seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Hb 8,8.10; cf. Jr 31,31-34).
Síntese teológica / 81
Importa também reconhecer e entender bem uma consequência da graça e da ação livre do
homem: o m é r i t o .
Com efeito, “o mérito do homem diante de Deus, na vida cristã, provém do fato de que Deus
livremente determinou associar o homem à obra de sua graça. A ação paternal de Deus vem
em primeiro lugar por seu impulso, e o livre agir do homem, em segundo lugar, colaborando
com Ele, de sorte que os méritos das boas obras devem ser atribuídos à graça de Deus,
primeiramente, e só em segundo lugar ao fiel. O próprio mérito do homem cabe, aliás, a Deus,
pois suas boas ações procedem, em Cristo, das inspirações e do auxílio do Espírito Santo” (Cat.
2008).
“A adoção filial, tornando-nos participantes, por graça, da natureza divina, pode conferir-
nos, segundo a justiça gratuita de Deus, um verdadeiro mérito. Trata-se de um direito por
graça, o pleno direito do amor, que nos torna «co-herdeiros» de Cristo e dignos de obter «a
herança prometida da vida eterna»130. Os méritos de nossas boas obras são dons da bondade
divina131” (Cat. 2009).
“Como a iniciativa pertence a Deus na ordem da graça, ninguém pode merecer a graça
primeira, na origem da conversão, do perdão e da justificação. Sob a moção do Espírito Santo e
da caridade, podemos em seguida merecer para nós mesmos e para os outros as graças úteis à
nossa santificação, ao crescimento da graça e da caridade, e também para ganhar a vida eterna.
Os próprios bens temporais, como a saúde, a amizade, podem ser merecidos segundo a
sabedoria divina” (Cat. 2010).
A alma só pode entrar livremente na comunhão do amor. Deus toca imediatamente e move
diretamente o coração do homem. Ele colocou no homem uma aspiração à verdade e ao bem
que somente Ele pode satisfazer plenamente. As promessas da “vida eterna” respondem, além de
a toda a nossa esperança, a esta aspiração (cf. Cat. 2002).
128
É nossa “participação do Espírito Santo”, o Espírito de Cristo, Espírito-Amor; a caridade de Cristo em nós
constitui a fonte de todos os nossos méritos diante de Deus.
129
Cf. Cat. Comp. 426; Cat. 2007, 2011.
130
Conc. de Trento: DS 1546.
131
Cf. Conc. de Trento: DS 1548.
Síntese teológica / 82
Expliquemo-lo brevemente: quem peca coloca sua vontade num estado de escravidão, enquanto
ela adere a um falso bem, um bem apenas aparente; não adere, portanto, ao que é realmente e
propriamente o objeto da vontade. No pecado grave, o homem adere com sua vontade a um
bem particular (= bem criado) como se este fosse seu fim último, isto é, o bem como tal, Deus,
que é o bem-por-essência. Isto significa submeter-se a uma criatura como só se pode submeter
a Deus: é escravidão. Cristo, com Seu Espírito que nos doa, liberta-nos desta escravidão pela
graça da conversão e do perdão. Além disso, o Espírito de Cristo nos torna livres enquanto nos
faz agir por amor, fazendo assim que façamos o bem espontaneamente, movidos a partir de
dentro, não por alguma imposição de fora, não por medo, não por alguma coação ou
constrangimento. O Espírito de Cristo, do Filho de Deus, nos dá a liberdade dos filhos de Deus
(cf. Rm 8,21): fazer a vontade do Pai por amor. “O progresso na virtude, o conhecimento do
bem e a ascese aumentam o domínio da vontade sobre seus atos” (Cat. 1734).
“Ato humano” é um ato livremente escolhido após um juízo da consciência (cf. Cat. 1749).
132
Cf. Cat. 1742: “A graça de Cristo não entra em concorrência com nossa liberdade quando esta corresponde
ao sentido da verdade e do bem que Deus colocou no coração do homem. Ao contrário, como a experiência cristã o
atesta, sobretudo na oração, quanto mais dóceis formos aos impulsos da graça, tanto mais crescem nossa liberdade
íntima e nossa segurança nas provações e diante das pressões e coações do mundo externo.”
133
“Recusando o projeto do amor de Deus, enganou-se a si mesmo, tornou-se escravo do pecado. Esta primeira
alienação gerou outras, em grande número. Desde suas origens, a história comprova os infortúnios e opressões
nascidos do coração do homem por causa do mau uso da liberdade” (Cat. 1739).
Síntese teológica / 83
como fim nem como meio de ação, como poderia ser o caso de morte sofrida por alguém
quando tentava socorrer uma pessoa em perigo. Para que o efeito ruim seja imputável, é preciso
que seja previsível e que o agente tenha a possibilidade de evitá-lo, como, por exemplo, no caso
de um homicídio cometido por motorista embriagado” (Cat. 1737).
O ato moralmente bom supõe, ao mesmo tempo, a bondade do objeto, da finalidade e das
circunstâncias.
Para que o ato seja moralmente bom, todos os três elementos devem ser bons.
É errado julgar a moralidade dos atos humanos considerando só a intenção que os inspira ou as
circunstâncias (meio ambiente, pressão social, constrangimento ou necessidade de agir etc.) que
compõem o quadro. As circunstâncias podem atenuar ou aumentar a responsabilidade de quem
age, mas não podem modificar a qualidade moral dos próprios atos, não tornam nunca boa uma
ação que, em si, é má.
As “paixões” são
os afetos, as emoções ou os movimentos da sensibilidade (sentimentos)
– componentes naturais da psicologia humana –
que inclinam a agir ou a não agir
em vista do que se percebeu como bom ou como mau.
“Na vida cristã, o próprio Espírito Santo realiza sua obra mobilizando o ser inteiro,
inclusive suas dores, medos e tristezas, como aparece na Agonia e Paixão do Senhor. Em Cristo,
os sentimentos humanos podem receber sua consumação na caridade e na bem-aventurança
divina” (Cat. 1769).
d) A consciência moral
Por seus atos deliberados (“energizados” pelas paixões), a pessoa humana vai ao encontro
da comunhão consumada com Deus Trindade (bem-aventurança em Deus) ou não vai. São “atos
humanos, isto é, livremente escolhidos após um juízo da consciência” (Cat. 1749).
Lembremo-nos que Deus vem ao socorro do homem através da lei que o dirige. Mas, como
esta lei é reconhecida pelo homem? Como é “interiorizada”? Por aquilo que chamamos de
“consciência moral”.
Em tudo o que diz e faz, o homem é obrigado a seguir fielmente o que sabe ser justo e correto.
É pelo julgamento de sua consciência que o homem percebe e reconhece as prescrições da lei
134
Outras “paixões”: aversão-fuga (com relação ao mal futuro), esperança e desespero (com relação a um bem
ainda não alcançado, um bem árduo, difícil de obter), audácia (com relação a um mal ainda futuro; a audácia
provém da esperança da vitória, enquanto o medo provém do desespero da vitória).
135
S.Th. II-II, q. 24, a. 1.
136
S.Th. I-II, q. 24, a. 3.
137
Cf. Cat. 1775; cf. Sl 84,3.
Síntese teológica / 85
divina (cf. Cat. 1778). De fato, por sua razão o homem conhece a voz de Deus, que o insta a
“fazer o bem e a evitar o mal” (GS 16). Esta lei ressoa na consciência do homem e se cumpre no
amor a Deus e ao próximo (cf. Cat. 1706).
Colocada diante de uma escolha moral, a consciência pode emitir um julgamento correto
de acordo com a razão e a lei divina ou, ao contrário, um julgamento errôneo, que se afasta da
razão e da lei divina.
“A Palavra de Deus é luz para nossos passos. É preciso que a assimilemos na fé e na oração
e a coloquemos em prática. Assim se forma a consciência moral” (Cat. 1802).
e) As virtudes
A pessoa humana caminha rumo à comunhão perfeita com Deus através dos atos virtuosos,
ou seja, através dos atos da virtude teologal do amor e de todas as outras virtudes, contanto que
tais atos estejam animados pelo amor.
A virtude, em geral, permite à pessoa não só praticar atos bons, mas dar o melhor de si.
Com todas as suas forças sensíveis e espirituais, a pessoa virtuosa tende ao bem, procura-o e
escolhe-o na prática.
1) As virtudes humanas
138
A graça santificante é um “habitus entitativus”, pois aperfeiçoa diretamente a própria substância da alma,
não apenas as suas faculdades ou potências. Os habitus operativi referem-se seja à atividade técnica (mediante um
aprendizado), seja à intelectual (mediante a aquisição das ciências), seja à atividade moral.
Síntese teológica / 86
2) As virtudes teologais
As virtudes teologais são infundidas por Deus na alma dos fiéis para torná-los capazes de
agir como Seus filhos e merecer a vida eterna (cf. Cat. 1813).
“As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão” (Cat.
1813). Elas dão forma e vida a todas as virtudes morais. Assim, existem as virtudes morais
infusas. Elas existem na alma por certa redundância das virtudes teologais (sobretudo da
caridade) sobre ações que, de per si, competem às virtudes morais. Assim, a temperança
inspirada pela fé e pela caridade busca um meio certo, diferente daquele determinado pela
virtude natural: a virtude sobrenatural da temperança visa à sabedoria da Cruz e se aproxima
mais da renúncia do que do prazer moderado (cf. S.Th. I-II, q. 63, a. 4).
♦ A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus mesmo e em tudo o que nos disse e
revelou, e que a Santa Igreja nos propõe para crer, porque Ele é a própria verdade (cf. Cat.
1814).
♦ “A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos
Céus e a Vida Eterna, pondo nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em
nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo” (Cat. 1817). Ela “assume as
esperanças que inspiram as atividades dos homens; purifica-as, para ordená-las ao Reino dos
Céus” (Cat. 1818).
139
São virtudes que têm o papel de “dobradiça” (= em latim: cardo, cardinis).
140
Sto. Agostinho, Mor. eccl. 1,25,46: PL 32,1330-1331.
Síntese teológica / 87
“A esperança é a "âncora da alma", segura e firme, "penetrando... onde Jesus entrou por
nós, como precursor" (Hb 6,19-20). Também é uma arma que nos protege no combate da
salvação: "Revestidos da couraça da fé e da caridade e do capacete da esperança da salvação" (l
Ts 5,8). Ela nos traz alegria mesmo na provação: "alegrando-vos na esperança, perseverando na
tribulação" (Rm 12,12). Ela se exprime e se alimenta na oração, especialmente no Pai-Nosso,
resumo de tudo o que a esperança nos faz desejar” (Cat. 1820).
♦ “A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por si
mesmo, e a nosso próximo como a nós mesmos, por amor de Deus” (Cat. 1822).
Tudo o que é privilégio, serviço e mesmo virtude, “se não tivesse a caridade, isso nada me
adiantaria” (cf. 1 Cor 13,1-3). A caridade é superior a todas as virtudes.
“O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o "vínculo da
perfeição" (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e
termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar,
elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino” (Cat. 1827).
Os sete dons do Espírito Santo são: sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência,
piedade e temor de Deus. Em plenitude, pertencem a Cristo, Filho de Davi (cf. Is 11,1-2). Eles
derivam da caridade; completam e levam à perfeição as virtudes daqueles que os recebem.
“Os frutos do Espírito são perfeições que o Espírito Santo forma em nós como primícias da
glória eterna” (Cat. 1832).
A Tradição da Igreja enumera doze: “caridade, alegria, paz, paciência, longanimidade,
bondade, benignidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência e castidade” (Gl 5,22-23
vulg.).
Pecado mortal:
Escolher, com pleno conhecimento e pleno consentimento, uma coisa gravemente contrária
à lei divina e ao fim último do homem é cometer pecado mortal. Este pecado destrói no pecador
a caridade e, portanto, a comunhão com Deus (presença do Espírito Santo enquanto enviado
pelo Pai e Filho), sem a qual é impossível a bem-aventurança eterna. A pena do pecado mortal é,
se não houver arrependimento, a exclusão eterna da comunhão com Deus.
Pecado venial:
O pecado venial constitui uma desordem moral reparável pela caridade, que ele deixa
subsistir no pecador. No entanto, o pecado venial ofende e fere a caridade e enfraquece-a (cf.
Cat. 1855, 1863, 1875). A pena do pecado venial é a assim chamada “pena temporal”. Esta é a
privação temporal daquela perfeição da comunhão com Deus que o cristão, no momento
presente, poderia ter e, de fato, teria se não estivesse com um apego desordenado a um bem
criado. Este apego é consequência do pecado142 e impede a pessoa de fazer atos de amor
verdadeiramente perfeito. Depois da morte, essa comunhão perfeita será aquela que se tem na
visão beatífica de Deus. Durante a vida terrena, é aquela comunhão que o cristão tem se ele
cumpre perfeitamente o mandamento do amor (“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o coração,
de toda a alma e de todo o entendimento” – Mt 22,37).
“A ignorância involuntária pode diminuir ou até escusar a imputabilidade de uma falta
grave, mas supõe-se que ninguém ignora os princípios da lei moral inscritos na consciência de
todo ser humano. Os impulsos da sensibilidade, as paixões podem igualmente reduzir o
caráter voluntário e livre da falta, como também pressões exteriores e perturbações
patológicas. O pecado por malícia, por opção deliberada do mal, é o mais grave” (Cat. 1860).
O pecado é um ato pessoal. Além disso, temos responsabilidade nos pecados cometidos por
outros, quando neles cooperamos: ♦ participando neles direta e voluntariamente; ♦
mandando, aconselhando, louvando ou aprovando esses pecados; ♦ não os revelando ou não os
impedindo, quando a isso somos obrigados; ♦ protegendo os que fazem o mal (cf. Cat. 1868).
“Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à bondade divina. As
«estruturas de pecado» são a expressão e o efeito dos pecados pessoais. Induzem suas vítimas a
cometer, por sua vez, o mal. Em sentido analógico, constituem um «pecado social»” (Cat.
1869).
141
Sto. Agostinho, Faust. 22: PL 42, 418; Sto. Tomás de Aquino, S. Th., I-II,71,6.
142
De fato, em todo e qualquer pecado, o pecador quer, de um modo mais ou menos desordenado, um bem
inferior a Deus.
Síntese teológica / 89
143
S. Gregório de Nissa, V. Mos: PG 44,300D.
144
Cf. Charles André BERNARD, Teologia spirituale, Ed. San Paolo, Milano 62002, 21-28.
Síntese teológica / 90
3) A comunidade humana147
a) A pessoa e a sociedade
“A vocação da humanidade consiste em manifestar a imagem de Deus e ser transformada à
imagem do Filho único do Pai” (Cat. 1877). Uma vez que Deus é o mistério de uma comunhão
perfeita entre três Pessoas distintas entre si, sendo assim comunidade, a comunidade humana
tem na comunidade divina, isto é, em Deus Trindade, seu modelo supremo a imitar. Por isso:
Inspira uma vida de autodoação: «Quem procurar ganhar sua vida vai perdê-la, e quem a perder
vai conservá-la» (Lc 17,33)” (Cat. 1889).
145
Por exemplo, espiritualidade beneditina, inaciana, carmelitana.
146
Estados de vida, vocações, situações concretas; daí se fala de espiritualidade sacerdotal, laical, da vida
consagrada, etc.
147
Cf. Cat. 1877-1948 (seguem citações destes números do Catecismo).
148
Cf. GS 24, 3.
Síntese teológica / 91
O bem comum comporta três elementos essenciais: 1) o respeito e a promoção dos direitos
fundamentais da pessoa; 2) a prosperidade ou o desenvolvimento dos bens espirituais e
temporais da sociedade; 3) a paz e a segurança do grupo e de seus membros.
A autoridade só será exercida legitimamente se procurar o bem comum do grupo em questão
e se, para atingi-lo, empregar meios moralmente lícitos. Se acontecer de os dirigentes
promulgarem leis injustas ou tomarem medidas contrárias à ordem moral, estas disposições não
poderão obrigar as consciências. Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando
em abuso do poder.
O bem comum está sempre orientado ao progresso das pessoas: a organização das coisas
deve subordinar-se à ordem das pessoas e não ao contrário. Esta ordem tem por base a verdade,
edifica-se na justiça, é vivificada pelo amor.
c) A justiça social
A sociedade garante a justiça social quando realiza as condições que permitem às
associações e a cada membro seu obter o que lhes é devido conforme sua natureza e sua
vocação. A justiça social está ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade.
O respeito pela pessoa humana considera o outro como um “outro eu mesmo”. Supõe o
respeito pelos direitos fundamentais que decorrem da dignidade intrínseca da pessoa.
A igualdade entre os homens assenta sobre sua dignidade pessoal e sobre os direitos que daí
decorrem.
As diferenças entre as pessoas pertencem ao plano de Deus, o qual quer que todos nós
tenhamos necessidade uns dos outros. Essas diferenças devem estimular a caridade.149
A dignidade igual das pessoas humanas exige o esforço para reduzir as desigualdades
sociais e econômicas excessivas e leva ao desaparecimento das desigualdades iníquas.
A solidariedade é uma virtude eminentemente cristã 150 que pratica a partilha dos bens
espirituais mais ainda que dos materiais. Difundindo os bens espirituais da fé, a Igreja
favoreceu também o desenvolvimento dos bens temporais, aos quais muitas vezes abriu novos
caminhos. Assim foi-se verificando, ao longo dos séculos, a palavra do Senhor: “Buscai, em
primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt
6,33).
Assim, a vida moral está ligada à vida litúrgica e dela se alimenta (cf. Cat. 2041).
“A vida moral é um culto espiritual. «Oferecemos nossos corpos como hóstia viva, santa e
agradável a Deus» (cf. Rm 12,1), no seio do corpo de Cristo que formamos, e em comunhão
com a oferta de sua Eucaristia. Na Liturgia e na celebração dos sacramentos, oração e doutrina
se conjugam com a graça de Cristo, para iluminar e alimentar o agir cristão.
De fato, como resposta à iniciativa divina, todo o agir espiritual do homem pode ser
reconduzida a duas atitudes fundamentais, que correspondem à dupla relação do homem a
Deus, isto é, à ♦ relação de criatura e à ♦ relação de aliança, vividas concretamente pelos atos
da virtude da ♦ religião e do ♦ amor (virtude teologal).
♦ Como criatura (em seu ser e agir totalmente dependente do Criador), o homem deve fazer
da própria vida uma homenagem ao seu Criador; eis o sentido da virtude da religião. Esta se
pratica de dois modos:
1) com atos que ordenam o homem somente a Deus, isto é, atos que têm seu sentido somente
no culto prestado a Deus (adoração, oração, oferta dum sacrifício, ...);
2) com atos de outras virtudes, feitos para louvor e glória de Deus (o motivo é da virtude da
religião; neste sentido a virtude da religião “rege” os atos das outras virtudes)151.
♦ Como pessoa com quem Deus (Pai), em Cristo e no Espírito Santo, concluiu uma aliança
de amor, sendo filho no FILHO bem-amado, todo o agir do homem pode ser uma resposta de
amor ao Deus de amor. Como o diálogo fundamental entre Deus e o homem é diálogo de amor,
assim toda a vida concreta do homem pode ser vivida no amor (cf. Rm 13,8-10: toda a Lei se
resume no amor), fazendo da sua vida uma sucessão de atos de amor.
Existencialmente, não se pode separar o amor (e as outras duas virtudes teologais, a fé e a
esperança) da religião. Prestar culto a Deus, reconhecer a própria condição de criatura, faz parte
do amor, como uma propriedade essencial dele. Por isso, se no ato da virtude da religião (p. ex.,
na oração – dizer: “Senhor, Senhor,...”; cf. Mt 7,21-23) pode faltar o amor, no verdadeiro amor
não pode faltar essa sua propriedade essencial. Daí se segue:
Quando existe o a m o r ,
toda a atividade do homem pode adquirir o caráter religioso
e tornar-se ato de culto a Deus (cf. Tg 1,26-27).
151
Cf. S.Th. II-II, q. 81, a. 1, ad 1.
Síntese teológica / 93
exterior.152 Os atos destas virtudes, sobretudo o amor, produzem imediatamente a união com
Deus, que é o fim último do culto.
O fim da missão conjunta do Filho e do Espírito Santo nos é indicado pela Sagrada
Escritura. Este fim é o objeto do desígnio eterno de Deus Trindade com relação às Suas
criaturas, a todo o universo criado. Eis alguns trechos a este respeito:
“(Deus Pai) nos fez conhecer o mistério da Sua vontade, segundo o Seu desígnio que de
antemão determinou n’Ele [Cristo], para a dispensação 153 da plenitude dos tempos: unir154
em Cristo todas as coisas, as que estão nos Céus e as que estão na terra” (Ef 1,9-10).
“Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os Céus, a fim de encher todas as
coisas” (Ef 4,10).
“Quando Eu for elevado da terra, atrairei todos (ou: tudo) a Mim” (Jo 12,32).
“... a fim de que todos sejam um. [...] para que sejam um, como Nós somos um: Eu neles e
Tu em Mim, para que sejam perfeitos na unidade” (Jo 17,21.22s).
“Alegremo-nos [...], porque estão para realizar-se as núpcias do Cordeiro, e Sua esposa já
está pronta. [...] Felizes aqueles que foram convidados para o banquete das núpcias do
Cordeiro” (Ap 19,7.9).
Os trechos da S. Escritura acima citados introduzem-nos na realização plena do desígnio
que Deus tem com o universo das Suas criaturas, com “todas as coisas nos Céus e na terra”.
O Apóstolo Paulo fala, a este respeito, do “mistério da Sua vontade” (isto é, da vontade de
Deus) ou simplesmente do “mistério” ou, então, do “mistério de Deus”, mas que é “o mistério
de Cristo”;155 e é o mistério de Cristo crucificado, como a sabedoria escondida de Deus. 156 É o
mistério de
Jesus Cristo, em quem todo o universo criado deverá ser unido (Ef 1,10).
152
Cf. S.Th. I-II, q. 101, a. 2; q. 99, a. 3.
153
oi1konomiva (oikonomía), dispensação, administração, realização ordenada (segundo um plano).
154
ajnakefalaiwvsasqai taV pavnta: recapitular, unir, dar um princípio de unidade; eventualmente: encabeçar;
cf. N. THANNER, Was bedeutet die „Anakephalaiosis“ der gesamten Schöpfung in Eph 1,10?, em: Sapientia Crucis
5 (2004) 5-67.
155
Cf. Ef 1,9; 3,3.4; Cl 1,26s; 2,2; 4,3; Rm 16,25.
156
Cf. 1Cor 2,1s.7s.
Síntese teológica / 94
Ora, a esposa do Cordeiro, como é descrita a partir de Ap 21,9, não é apenas a Igreja
composta de homens (as pessoas humanas salvas pelo Cordeiro), mas também de anjos.157 Além
disso, a própria criação material é apresentada como participante desse mistério das núpcias: ela
pertence àquela realidade que é chamada a “esposa do Cordeiro”. 158 As “núpcias” significam
uma realidade de amor e de união; não qualquer união, mas uma união caracterizada pelo amor
entre pessoas, a qual tem em Deus-Trindade seu modelo absolutamente perfeito.
No “mistério de Cristo” ou “mistério de Deus” (Apc) pode haver uma realização inicial e
fundamental e uma realização final e consumada, bem como um processo de crescimento ou
amadurecimento até chegar àquela realização absolutamente perfeita que será o reflexo
perfeito, na medida do possível, do modelo divino trinitário. De fato, no livro do Apocalipse, a
consumação do “mistério de Deus” é apresentada não como o simples cessar de um movimento
rumo a uma meta (uma vez que se chegou a essa meta), mas como
o final conclusivo de um processo dinâmico,
cujo fim é ao mesmo tempo a realização do seu sentido
e das intencionalidades e virtualidades nele presentes desde o começo.
Este final conclusivo do processo – as “núpcias do Cordeiro”, a “união de tudo nos Céus e
na terra em Cristo” – é a perfeita realização do fim da missão conjunta do Filho e do Espírito
Santo, sendo a missão do Espírito Santo ordenada à do Filho.
De fato, se essas duas missões divinas são, de alguma maneira, uma “extensão” do mistério
de Deus Trindade às criaturas159, o fim delas não pode ser senão,
O centro desta união das criaturas é o Senhor Jesus Cristo, o Filho feito homem, com a
máxima presença do Espírito Santo n’Ele, sendo Ele mesmo o vínculo máximo de união entre
criatura e Deus (pela união hipostática da natureza humana com a natureza divina) e estando Ele
todo no Pai.
157
Cf. Ap 21,12.14: nas portas: os nomes das doze tribos de Israel (AT), e os nomes dos doze Apóstolos (NT),
bem como doze anjos.
158
Cf. também Ap 21,5, que descreve a nova situação – a consumação do mistério de Deus – com as palavras
de Deus: “Eis que Eu faço novas todas as coisas”. Portanto, tudo é renovado.
159
Veja o capítulo III: “As duas missões divinas como transição da vida intradivina à extradivina”.
160
Veja o capítulo II.
Síntese teológica / 95
A imagem divina está presente em cada pessoa. Mas, ela resplandece na comunhão das
pessoas, à semelhança da unidade das pessoas divinas entre si (cf. Cat. 1702).
Síntese teológica / 96
ÍNDICE
I. A TEOLOGIA..............................................................................................................................1
1. A essência da teologia .............................................................1
2. A fé como resposta adequada à Revelação divina .............................................................2
II. O MISTÉRIO DE DEUS UNO E TRINO...............................................................................4
1. Mistério de amor: união e distinção .............................................................4
2. As Pessoas divinas como relações subsistentes .............................................................5
3. Comunhão total por autocomunicação integral .............................................................6
4. Distinção e união – As duas processões e as características próprias das Pessoas divinas.........6
5. Uma questão particular: Por que “D E U S P A I ” e não “Deusa Mãe”?..................................10
III. AS DUAS MISSÕES DIVINAS COMO TRANSIÇÃO DA VIDA INTRADIVINA À
EXTRADIVINA...........................................................................................................................11
IV. VISÃO DE CONJUNTO DAS DIVERSAS DISCIPLINAS DA CIÊNCIA TEOLÓGICA,
VISTAS SOB O ASPECTO UNIFICADOR DA AUTOCOMUNICAÇÃO DE DEUS ÀS
SUAS CRIATURAS PELA MISSÃO CONJUNTA DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO..14
V. O TRAJETO DA CRIAÇÃO: DE DEUS TRINDADE PARA DEUS TRINDADE.............15
1. O proceder das criaturas de Deus Trindade ...........................................................15
2. A volta das criaturas para Deus Trindade – o “estado de caminhada”......................................18
Uma reflexão geral sobre a liberdade............................................................................................19
3. O abuso da liberdade: a criatura afasta-se de Deus ...........................................................22
VI. A NOSSA RELAÇÃO (COMUNHÃO) PESSOAL COM CADA UMA DAS TRÊS
PESSOAS DIVINAS....................................................................................................................23
1. O conhecimento experimental e conceitual das Pessoas divinas..................................................23
1) O conhecimento experimental das Pessoas divinas.......................................................................23
2) O conhecimento conceitual das Pessoas divinas...........................................................................24
2. A revelação do mistério trinitário de Deus na realidade criada e na história humana..............24
1) As manifestações das Pessoas divinas na história.........................................................................24
2) A manifestação das Pessoas divinas nos efeitos “naturais”.........................................................25
3) O que é característico dos efeitos “sobrenaturais”.......................................................................26
4) Aprofundamento da reflexão sobre a manifestação de Deus Trindade na criação.......................27
3. A “apropriação” dos atributos como meio de conhecer conceitualmente as Pessoas divinas. .28
4. A nossa união com cada uma das três Pessoas divinas: as três “correntes” de graça...............31
1) A união com cada uma das Pessoas divinas..................................................................................31
2) As três “correntes de graça”.........................................................................................................35
3) Conclusão: as “correntes de graça” da vida, da palavra e do amor............................................35
4) Divisões da “graça”......................................................................................................................37
VII. JESUS CRISTO COMO CENTRO E ÁPICE ABSOLUTO DA AUTOCOMUNICAÇÃO
DE DEUS “PARA FORA”..........................................................................................................38
1. “JESUS” ...........................................................38
2. “CRISTO” ...........................................................39
3. União ontológica e união interpessoal (intencional) nos principais mistérios da fé...................41
Santíssima Trindade:..........................................................................................................................41
Jesus Cristo:.......................................................................................................................................42
Maria, Mãe de Deus Filho:................................................................................................................42
Santíssima Eucaristia:........................................................................................................................43
Síntese teológica / 97
3. A vida “em Cristo” e “no Espírito”, realização da vocação do homem à comunhão com Deus
Trindade ................................79
1) A salvação de Deus: a lei e a graça...............................................................................................80
a) A lei moral:.................................................................................................................................................81
b) A graça e a justificação..............................................................................................................................81
2) O caminhar do homem rumo à perfeição da caridade..................................................................82
a) A liberdade do homem...............................................................................................................................82
b) O homem como sujeito moral: a moralidade dos atos humanos................................................................84
c) As “paixões”: forças para o bem ou para o mal.........................................................................................85
d) A consciência moral...................................................................................................................................85
e) As virtudes..................................................................................................................................................86
f) O pecado e a conversão pela misericórdia divina.......................................................................................89
g) A santidade na perfeição da caridade.........................................................................................................90
3) A comunidade humana...................................................................................................................91
a) A pessoa e a sociedade...............................................................................................................................91
b) A participação na vida social.....................................................................................................................92
c) A justiça social...........................................................................................................................................92
4) A vida moral: um culto espiritual...................................................................................................93
XIV. A CONSUMAÇÃO DE TODA A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO PELA PERFEITA
REALIZAÇÃO DO FIM DA MISSÃO CONJUNTA DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO
......................................................................................................................................................94
1. O fim da missão do Filho e do Espírito Santo ...........................................................94
2. A realização inicial e fundamental ...........................................................96
3. A realização final e consumada ...........................................................96
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