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INSTITUTUM SAPIENTIAE

ORDINIS CANONICORUM REGULARIUM SANCTAE CRUCIS

SÍNTESE

TEOLÓGICA

Professor:
Pe. Nathanael Thanner ORC

2o Semestre de 2014
Síntese teológica / 1

Esta “síntese teológica” pretende oferecer uma visão de conjunto da teologia, tendo como princípio
iluminador e unificador o mistério de Deus Trindade, que é a fonte e o fim de todos os outros mistérios
da fé e a luz que os ilumina.1

I. A Teologia
1. A essência da teologia2
A teologia é “fides quærens intellectum”, isto é, a fé em busca de entendimento. Desde a Idade
Média, a teologia é também definida “ciência da fé”. Mas, ciência não é o contrário de fé? A fé não
deixa de ser fé, quando se torna ciência? E a ciência não deixa de ser ciência, quando se ordena ou até
mesmo subordina à fé? Por causa da dificuldade desta questão, a teologia não deve
 retirar-se primariamente ao campo da história (pesquisa histórica; aconteceu amplamente na Idade
moderna) para aí demonstrar sua séria cientificidade (= retirada para o passado);
 concentrar-se sobre a praxe, para mostrar como a teologia, em conexão com a psicologia e a
sociologia, pode ser uma ciência útil que fornece indicações concretas para a vida.
Estas vias são insuficientes. Precisa enfrentar a verdadeira questão, a qual é esta: É verdade aquilo
em que cremos ou não?

“Na teologia está em jogo a questão a respeito da verdade;


esta é o seu fundamento último e essencial” (Bento XVI).

Tertuliano escreveu que Cristo não disse: «Eu sou o costume», mas: «Eu sou a verdade» (non
consuetudo sed veritas – Virg. 1,1). O conceito “consuetudo” pode significar as religiões pagãs que,
segundo a sua essência, não eram fé, mas “consuetudo”, costume: faz-se o que sempre se tem feito (as
tradicionais formas de culto). Eis o aspecto revolucionário do cristianismo na antiguidade: a ruptura com
o “costume” por amor da verdade.
Assim se entende que a fé cristã, por sua essência, deve suscitar a teologia, isto é,

a reflexão sistemática sobre as razões por que crer e sobre aquilo que cremos.

Quanto à conexão entre razão e fé, verdade e fé, eis uma indicação dada por São Boaventura, no
prólogo ao seu comentário às Sentenças de Pedro Lombardo: existe um duplo uso da razão;
♦ um é inconciliável com a natureza da fé;
♦ o outro, ao invés, pertence propriamente à natureza da fé.
1) O primeiro uso é a “violentia rationis”, o despotismo da razão, que se faz juiz supremo e último
de tudo. Este tipo de uso da razão certamente é impossível no âmbito da fé. De que uso se trata? Uma
expressão do Salmo 95,9 pode mostrar-nos isso. Deus diz: “No deserto … vossos pais me tentaram,
puseram-me à prova, apesar de terem visto as minhas obras”. Aqui se aponta para um duplo encontro
com Deus: eles “viram”. Mas isto não lhes basta. Querem pô-l’O “à prova”. Querem submetê-l’O ao
experimento. Ele é, por assim dizer, submetido a um interrogatório e deve submeter-Se a uma prova
experimental. Esta modalidade de uso da razão atingiu na Idade moderna o cume do seu
desenvolvimento no âmbito das ciências naturais. A razão experimental parece hoje amplamente como a
única forma de racionalidade declarada “científica”. Aquilo que cientificamente não pode ser verificado
(no sentido de a teoria estar certa ou errada) cai fora do âmbito científico. Com esta impostação têm sido
realizadas grandes obras, sem dúvida. Existe, porém, um limite para este uso da razão: Deus não é um
objeto da experimentação humana. Ele é Sujeito e Se manifesta somente na relação de pessoa a pessoa,
e isto faz parte da essência da pessoa.

1
Cf. Catecismo da Igreja Católica (abreviado: Cat.), n. 234.
2
Apresentamos em seguida o pensamento do Papa Bento XVI (Discurso na entrega do “Prêmio Ratzinger” em
30.06.2011).
Síntese teológica / 2

2) Nesta perspectiva, São Boaventura indica um segundo uso da razão, o qual vale para o âmbito do
que é “pessoal”; vale para as grandes questões do homem mesmo.

O amor quer conhecer melhor aquele que ama.


O amor, o verdadeiro amor, não faz cego, mas faz ver.

Pertence ao amor a sede de conhecimento, de um verdadeiro conhecimento da outra pessoa. Por


isso, os Padres da Igreja encontraram como precursores do cristianismo – fora do mundo da revelação de
Israel – os “filósofos”, homens em busca da verdade, pessoas sedentas da verdade e que, portanto,
estavam no caminho para Deus.
Quando não existe este uso da razão, as grandes questões da humanidade caem fora do âmbito da
razão e são abandonadas à irracionalidade. Por isso, uma autêntica teologia é tão importante. A fé reta
orienta a razão a abrir-se ao divino, para que, guiada pelo amor à verdade, ela possa conhecer Deus mais
de perto. A iniciativa para este caminho está com Deus, que pôs no coração do homem a busca da Sua
face. Portanto, faz parte da teologia,
 de um lado, a humildade que se deixa “tocar” por Deus,
 por outro lado, a disciplina que se liga à ordem da razão, a qual preserva o amor da cegueira e
ajuda a desenvolver a sua capacidade cognoscitiva.
A razão que caminha na estrada traçada pela fé não é, portanto, uma razão alienada; é, na verdade, a
razão que corresponde à sua altíssima vocação.

2. A fé como resposta adequada à Revelação divina

“A fé é a resposta do homem a Deus que se revela e a Ele se doa, trazendo ao mesmo tempo uma luz
superabundante ao homem em busca do sentido último de sua vida” (Cat. 26).

De fato, a fé é a única resposta adequada à manifestação e autocomunicação de Deus ao homem.

Sem a fé, a revelação divina seria apenas uma oferta de autocomunicação por parte de Deus. É preciso
que o homem acolha esta comunicação divina. E esta acolhida é a fé.
A “obediência da fé”: Este ato de acolhida é um ato de submeter-se, ato de obediência: “Pela fé, o
homem submete completamente sua inteligência e sua vontade a Deus. Com todo o seu ser, o homem dá
seu assentimento a Deus revelador (cf. DV 5). A Sagrada Escritura denomina "obediência da fé" esta
resposta do homem ao Deus que revela (cf. Rm 1,5; 16,26)” (Cat. 143). A Virgem Maria é a mais
perfeita ou mais pura realização dessa obediência da fé: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim
segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
Fé em Deus, Pai, Filho, Espírito Santo:

“A fé é primeiramente
 uma adesão pessoal do homem a Deus;
é, ao mesmo tempo e inseparavelmente,
 o assentimento livre a toda a verdade que Deus revelou.

Como adesão pessoal a Deus e assentimento à verdade que ele revelou, a fé cristã é diferente da fé em
uma pessoa humana. É justo e bom entregar-se totalmente a Deus e crer absolutamente no que ele diz.
Seria vão e falso pôr tal fé em uma criatura [Cf. Jr 17,5-6; Sl 40,5; 146,3-4]” (Cat. 150).
As características da fé
Para reconhecer as características da fé, é preciso tomar consciência de que há três fatores
absolutamente necessários para a realização do ato de fé: inteligência, vontade e graça.
 A fé é uma graça: “Quando S. Pedro confessa que Jesus é o Cristo, Filho do Deus vivo, Jesus lhe
declara que esta revelação não lhe veio «da carne e do sangue, mas de meu Pai que está nos céus». A fé é um
dom de Deus, uma virtude sobrenatural infundida por Ele. «Para que se preste esta fé, exigem-se a graça
Síntese teológica / 3

prévia e adjuvante de Deus e os auxílios internos do Espírito Santo, que move o coração e o converte a Deus,
abre os olhos da mente e dá a todos suavidade no consentir e crer na verdade.»” (Cat. 153).
 A fé é um ato humano: “Crer só é possível pela graça e pelos auxílios interiores do Espírito Santo.
Mas não é menos verdade que crer é um ato autenticamente humano. Não contraria nem a liberdade nem a
inteligência do homem confiar em Deus e aderir às verdades por Ele reveladas. Já no campo das relações
humanas, não é contrário à nossa própria dignidade crer no que outras pessoas nos dizem sobre si mesmas e
sobre suas intenções e confiar nas promessas delas (como, por exemplo, quando um homem e uma mulher se
casam), para entrar assim em comunhão recíproca. Por isso, é ainda menos contrário à nossa dignidade
«prestar, pela fé, à revelação de Deus plena adesão do intelecto e da vontade» e entrar, assim, em comunhão
íntima com ele” (Cat. 154).
“Na fé, a inteligência e a vontade humanas cooperam com a graça divina: «Credere est actus
intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis a Deo motae per gratiam –

Crer é um ato da i n t e l i g ê n c i a que assente à verdade divina


a mando da v o n t a d e
movida por Deus através da g r a ç a » 3 (Cat. 155).

 A fé e a inteligência :
♦ “O motivo de crer não é o fato de as verdades reveladas aparecerem como verdadeiras e inteligíveis à
luz de nossa razão natural. Cremos «por causa da autoridade de Deus que revela e que não pode nem enganar-
se nem enganar-nos». «Todavia, para que o obséquio de nossa fé fosse conforme à razão, Deus quis que os
auxílios interiores do Espírito Santo fossem acompanhados das provas exteriores de sua Revelação». Por isso,
os milagres de Cristo e dos santos, as profecias, a propagação e a santidade da Igreja, sua fecundidade e
estabilidade «constituem sinais certíssimos da Revelação, adaptados à inteligência de todos», «motivos de
credibilidade» que mostram que o assentimento da fé não é «de modo algum um movimento cego do
espírito»” (Cat. 156).
♦ “A fé é certa, mais certa que qualquer conhecimento humano, porque se funda na própria Palavra de
Deus, que não pode mentir. Sem dúvida, as verdades reveladas podem parecer obscuras à razão e à
experiência humanas, mas «a certeza dada pela luz divina é maior que a que é dada pela luz da razão natural».
«Dez mil dificuldades não fazem uma única dúvida.»” (Cat. 157).
♦ “«A fé procura compreender»: é característico da fé o crente desejar conhecer melhor Aquele em
quem pôs sua fé e compreender melhor o que Ele revelou; um conhecimento mais penetrante despertará por
sua vez uma fé maior, cada vez mais ardente de amor. A graça da fé abre «os olhos do coração» (Ef 1,18) para
uma compreensão viva dos conteúdos da Revelação, isto é, do conjunto do projeto de Deus e dos mistérios da
fé, do nexo deles entre si e com Cristo, centro do Mistério revelado. Ora, para «tomar cada vez mais profunda
a compreensão da Revelação, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa continuamente a fé por meio de seus dons»
(DV 5). Assim, segundo o adágio de Sto. Agostinho «eu creio para compreender, e compreendo para melhor
crer»” (Cat. 158).
♦ Fé e ciência. «Porém, ainda que a fé esteja acima da razão, não poderá jamais haver verdadeira
desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e infunde a fé dotou o espírito
humano da luz da razão; e Deus não poderia negar-se a si mesmo, nem a verdade jamais contradizer a
verdade.» «Portanto, se a pesquisa metódica, em todas as ciências, proceder de maneira verdadeiramente
científica, segundo as leis morais, na realidade nunca será oposta à fé: tanto as realidades profanas quanto as
da fé originam-se do mesmo Deus. Mais ainda: quem tenta perscrutar com humildade e perseverança os
segredos das coisas, ainda que disso não tome consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que
sustenta todas as coisas, fazendo com que elas sejam o que são.» (GS 36, 2)” (Cat. 159).
 A liberdade da fé: “Para que o ato de fé seja humano, «o homem deve responder a Deus, crendo por
livre vontade. Por conseguinte, ninguém deve ser forçado contra sua vontade a abraçar a fé. Pois o ato de fé é
por sua natureza voluntário». «Deus de fato chama os homens para servi-lo em espírito e verdade. Com isso
os homens são obrigados em consciência, mas não são forçados... Foi o que se patenteou em grau máximo em
Jesus Cristo» (DH 11). Com efeito, Cristo convidou à fé e à conversão, mas de modo algum coagiu. «Deu
testemunho da verdade, mas não quis impô-la pela força aos que a ela resistiam. Seu reino... se estende graças
ao amor com que Cristo, exaltado na cruz, atrai a si os homens» (DH 11)” (Cat. 160).

3
Sto. Tomás de Aquino, S. Th. II-II,2,9; cf. Conc. Vaticano I: DS 3010.
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 A necessidade da fé: “É necessário, para obter esta salvação, crer em Jesus Cristo e naquele que o
enviou para nossa salvação4. «Como, porém, "sem fé é impossível agradar a Deus" (Hb 11,6) e chegar ao
consórcio dos seus filhos, ninguém jamais pode ser justificado sem ela, nem conseguir a vida eterna, se nela
não "permanecer até o fim" (Mt 10,22; 24,13).»” (Cat. 161).
 A perseverança na fé: “A fé é um dom gratuito que Deus concede ao homem. Podemos perder este
dom inestimável; S. Paulo alerta Timóteo sobre isso: «Combate... o bom combate, com fé e boa consciência;
pois alguns, rejeitando a boa consciência, vieram a naufragar na fé» (1 Tm 1,18-19). Para viver, crescer e
perseverar até o fim na fé, devemos alimentá-la com a Palavra de Deus; devemos implorar ao Senhor que a
aumente5; ela deve «agir pela caridade» (Gl 5,6; cf. Tg 2,14-26), ser carregada pela esperança (cf. Rm 15,13) e
estar enraizada na fé da Igreja” (Cat. 162).
 A fé – começo da vida eterna : “A fé nos faz degustar como por antecipação a alegria e a luz da
visão beatífica, meta de nossa caminhada na terra. Veremos então a Deus «face a face» (1Cor 13,12), «tal
como Ele é» (1Jo 3,2). A fé já é, portanto, o começo da vida eterna: Enquanto desde já contemplamos as
bênçãos da fé, como um reflexo no espelho, é como se já possuíssemos as coisas maravilhosas que um dia
desfrutaremos, conforme nos garante nossa fé6.” (Cat. 163).
“Por ora, todavia, «caminhamos pela fé, não pela visão» (2Cor 5,7), e conhecemos a Deus «como que em
um espelho, de uma forma confusa..., imperfeita» (1Cor 13,12). Luminosa em virtude daquele em que ela crê,
a fé é muitas vezes vivida na obscuridade. A fé pode ser posta à prova. O mundo em que vivemos muitas
vezes parece estar bem longe daquilo que a fé nos assegura; as experiências do mal e do sofrimento, das
injustiças e da morte parecem contradizer a Boa Nova; podem abalar a fé e tornar-se para ela uma tentação”
(Cat. 164).
“É então que devemos nos voltar para as testemunhas da fé: Abraão, que creu, «esperando contra toda
esperança» (Rm 4,18); a Virgem Maria, que na «peregrinação da fé» (LG 58) foi até a «noite da fé»,
comungando com o sofrimento de seu Filho e com a noite de seu túmulo; e tantas outras testemunhas da fé:
«Com tal nuvem de testemunhas ao nosso redor, rejeitando todo fardo e o pecado que nos envolve, corramos
com perseverança para o certame que nos é proposto, com os olhos fixos naquele que é autor e realizador da
fé, Jesus» (Hb12,12)” (Cat. 165).

II. O mistério de Deus Uno e Trino


O mistério do Deus vivo e verdadeiro é certamente o mistério d’«Aquele que É» (Ex
3,14s), aquele cuja essência é ser; Ele é o próprio Ser subsistente (ipsum esse subsistens). N’Ele,
essência e ser não se distinguem; o ser não é limitado por alguma essência que não fosse o
próprio ser.

1. Mistério de amor: união e distinção

Ora, Deus, o ser em sua perfeição infinita, é também um mistério feliz e insondável de
amor e, portanto, de união. Ele é o mistério de amor, a realização infinitamente perfeita do
que é “amor”. Deus é o mistério da
união perfeita entre três pessoas realmente distintas entre Si,
uma união que é c o m u n h ã o t o t a l entre as pessoas.
Esta comunhão total se explica por duas ações de a u t o c o m u n i c a ç ã o i n t e g r a l .

Antes de entrar nesta explicação, consideremos o seguinte. Deus é um só. É impossível que
haja dois ou três Deuses. Mas este único Deus é Pai, é Filho e é Espírito Santo. Deus Pai é
perfeitamente Deus; é Pessoa de natureza divina; identifica-Se com o infinito ser divino (ato de
ser, ato de conhecer, ato de amar), com a divindade. Também o Filho é perfeitamente Deus,
4
Cf. Mc 16,16; Jo 3,36; 6,40 e.o.
5
Cf. Mc 9,24; Lc 17,5; 22,32.
6
S. Basílio, Liber de Spiritu Sancto, 15,36: PG 32,132; cf. Sto. Tomás de Aquino, S. Th. II-II, 4,1.
Síntese teológica / 5

Pessoa da mesma e idêntica natureza divina (não pode haver duas naturezas ou substâncias
divinas); é “consubstancial ao Pai”. O mesmo vale da Pessoa do Espírito Santo. Assim existem
Três que são o único Deus, três Pessoas da única e mesma natureza divina. A divindade não é
dividida, é absolutamente uma só e mesma. Entre as três Pessoas há, portanto, uma comunhão
total, sendo exatamente assim o único Deus.
Ora, o Pai e o Filho e o Espírito Santo não são apenas perfeitamente um, mas também
perfeitamente distintos um do outro. A distinção entre eles é claríssima, não havendo, portanto,
nenhuma possibilidade de “confusão”, pois elas se distinguem pela oposição das relações de
origem. Estas relações de origem são as seguintes:
paternidade7 – filiação
(relação de origem: de Pai a Filho) (relação de origem: de Filho a Pai)
8
espiração ativa – espiração passiva
(relação de Pai e Filho a Espírito Santo) (relação de Espírito Santo a Pai e Filho
A única possibilidade de distinção real na divindade é esta oposição das relações de origem.

2. As Pessoas divinas como relações subsistentes

Estas relações opostas não apenas distinguem as Pessoas divinas entre Si,
mas também as constituem,
enquanto estas relações (de paternidade, filiação e espiração passiva),
elas mesmas, são subsistentes
(identificando-se com a substância divina).

A relação de “espiração ativa” não constitui uma outra pessoa, pois não existe uma oposição
entre esta relação e a relação da paternidade ou, respectivamente, da filiação. Por conseguinte,
não existe uma distinção real entre a relação da paternidade (que constitui a Pessoa do Pai) e a
relação de origem do Pai ao Espírito Santo, bem como entre a relação da filiação (que constitui a
Pessoa do Filho) e a relação de origem do Filho ao Espírito Santo.
Assim, a Pessoa divina do Pai é a relação subsistente de paternidade,
a Pessoa do Filho é a relação subsistente de filiação, e
a Pessoa do Espírito Santo é a relação subsistente de espiração passiva.
A definição de “Pessoa divina” é, portanto, a seguinte:
subsistens distinctum in natura divina,
ou seja, um ser subsistente distinto (unicamente pela oposição das relações de origem) na
natureza divina. A pessoa, em geral, é um ser subsistente, distinto dos outros seres, mas para ser
pessoa tem de ser um ser subsistente numa natureza intelectual. E quando essa natureza
intelectual é a natureza divina, a distinção entre os seres subsistentes nesta natureza é
unicamente a da oposição de relação de origem: a paternidade se distingue claramente da
filiação, pois é a relação oposta à filiação. Ao mesmo tempo, existe entre o Pai e o Filho a mais
perfeita união: comunhão total.

7
“Paternidade” ou “filiação” é o nome da relação. “Pai” ou “Filho” é o nome da pessoa. Os nomes “pai” e
“filho” são nomes relativos; exprimem, portanto, uma relação e são absolutamente simultâneos, pois não se pode
pensar “pai” sem pensar ao mesmo tempo “filho”, pois não existe um pai se não há um filho.
8
“Espiração” é nome de uma ação, não de uma relação. Porém, falamos deste modo porque nos falta uma
palavra para designar essa relação de origem, bem como a relação do Pai e do Filho ao Espírito Santo.
Síntese teológica / 6

3. Comunhão total por autocomunicação integral

Pode-se explicar esta comunhão total quando, na relação que é a Pessoa divina, se
considera o aspecto de “ato”, “ação”.
♦ Sob este aspecto, a relação de paternidade é ato de gerar o Filho, e a relação de origem do
Pai (e do Filho) ao Espírito Santo é o ato de “espirar” o Espírito Santo.
♦ A relação de filiação e de espiração passiva são esses atos sob forma “passiva”, ou seja, de
ativa recepção (“ser gerado” e “ser espirado”).
Uma vez que a realidade que age, sempre é um sujeito (“actiones sunt suppositorum”) –
tratando-se de um sujeito de natureza intelectual, é uma pessoa –, a pessoa divina é
logicamente9 anterior à ação. Assim, a primeira Pessoa divina gera, porque é Pai. Por ser
relação de “paternidade”, o seu ato é “gerar”.

Os atos de geração e espiração são ações de a u t o c o m u n i c a ç ã o i n t e g r a l .

É a “geração” eterna do Filho por parte do Pai e a “espiração” do Espírito Santo por parte do Pai
e do Filho (ou do Pai pelo Filho), sendo Pai e Filho um só princípio de espiração. O ato eterno
de gerar o Filho é, por parte do Pai, um ato de comunicação de todo o ser divino, de tudo que o
Pai tem, isto é, de tudo o que Ele é. É autocomunicação integral do Pai ao Filho, de modo que o
Filho é tão perfeitamente Deus como o Pai, isto é, Ele é a única e indivisa divindade infinita, um
só Deus com o Pai. O mesmo vale do ato do Pai e do Filho, do qual procede eternamente o
Espírito Santo: a espiração do Espírito Santo é a comunicação de todo o ser divino ao Espírito
Santo, isto é: o Espírito Santo procede do Pai e do Filho como sendo tão perfeitamente Deus, o
único Deus, como o Pai e o Filho.
Uma vez que a autocomunicação é integral, a união entre as três Pessoas divinas
(diretamente, entre a Pessoa que gera e a Pessoa gerada e entre as Pessoas que espiram e a
Pessoa que procede deste ato de espiração) é uma comunhão total entre três Pessoas realmente
distintas entre Si. Trata-se, portanto, de uma realização perfeita – além daquilo que podemos
entender com a nossa limitada inteligência humana – do que deseja quem ama ardentemente
outra pessoa: tornar-se um com ela, o quanto for possível. Em Deus é possível como não o é
entre pessoas criadas. Assim, Deus é o mistério perfeito do amor; “Deus é amor” (1 Jo 4,8).

4. Distinção e união – As duas processões e


as características próprias das Pessoas divinas

Voltemos para a distinção na união. A distinção entre Pai e Filho é a distinção originária
de toda outra distinção. Por isso, podemos dizer, com toda a razão: O mistério de Deus Trindade
nos manifesta que a distinção é uma coisa boa, muito boa.10 O fato de haver duas Pessoas
distintas uma da outra, e mais uma terceira, distinta das duas primeiras, não provém de alguma
imperfeição nem é algo imperfeito, mas é máxima perfeição. Com efeito, a pessoa é o que há de
mais perfeito na natureza, e para existirem pessoas deve haver distinção. Porém, se houvesse
apenas distinção e não união, haveria uma imperfeição nesse fato. Pois

“a distinção é para a união”.

Em Deus, isso está realizado de modo absolutamente perfeito: três pessoas realmente e
claramente distintas uma das outras e, ao mesmo tempo, perfeitamente unidas: em comunhão

9
Evidentemente, trata-se apenas de uma anterioridade lógica. Na realidade divina, a relação – isto é, a Pessoa
divina que é esta determinada relação subsistente – e a ação são perfeitamente simultâneas, ou seja, eternas.
10
Isto vale também para a distinção entre Deus Criador e as criaturas.
Síntese teológica / 7

total entre si. Elas não são três Deuses, mas um só Deus, o Deus-Amor, Deus-Comunhão, Deus-
Comunidade-perfeita. Assim, o Pai não Se distingue do Filho como Deus, mas como Pai; o
Filho não Se distingue do Pai como Deus, mas como Filho. E o mesmo vale para o Espírito
Santo: Ele não Se distingue das outras duas Pessoas como Deus, mas como Espírito Santo.
Ainda precisamos esclarecer a distinção entre as duas autocomunicações em Deus. Esta
distinção pode ser indicada de duas maneiras:
1) por uma distinção – apenas conceitual, não real! – entre os atos de “gerar” e de “espirar”, ou
seja, entre os atos de conhecer e de amar;
2) por uma distinção na “posição” quanto à ordem das processões intradivinas (processão do
Filho e processão do Espírito Santo).
1) Vejamos a primeira maneira de indicar a distinção. A “geração” (ato do Pai) é, segundo o
aspecto determinante (“formalmente”), um ato do entendimento (intelecção) do Pai; por isso, o
“Filho” (= o que procede do ato de “gerar”) é também a “Palavra” (= o que procede do ato de
conhecer intelectualmente11) e, portanto, a “Imagem” perfeita do Pai. Eis, portanto, os nomes
próprios da segunda Pessoa divina: FILHO, PALAVRA, IMAGEM.

O Filho procede do ato de conhecer (= “gerar”) do Pai.


Seus nomes próprios são: FILHO, PALAVRA, IMAGEM

O Espírito Santo, por Sua vez, não procede por “geração”; não é “Filho”. Por isso, Ele não
procede, sob o aspecto determinante (formalmente), do ato de conhecer, mas do ato de amar
(do Pai e do Filho). Com efeito, existe uma característica comum entre o ato de conhecer e o ato
de gerar. E esta é uma característica que não existe no ato de amar.
Trata-se do seguinte: “produzir” uma semelhança (uma imagem) é essencial tanto para o ato
de conhecer como para o ato de gerar. A geração pode definir-se como sendo “a origem de um
ser vivente a partir de um princípio vivente conjunto (no ponto de partida), numa semelhança
específica”. Este elemento da “semelhança” (ao menos específica) faz parte essencial da
definição de geração, bem como faz parte da essência do ato de conhecer, que sempre produz
uma “imagem” da realidade conhecida (um “conceito”, no conhecimento intelectual). Este não é
o caso do ato de amar. A “impressão do amado no amante” (São Tomás) não é a semelhança, a
imagem do ser amado, mas é uma tendência, uma inclinação, um impulso rumo ao amado.12 Tal
“produto” do ato de amar (logo no início do ato), produto esse que (por falta de um nome
próprio, distinto) chamamos de “amor”, é a base da união de amor (união afetiva) entre o
amante e o amado.
Portanto, o Espírito Santo não procede por geração ou como Filho, porque procede do ato
de amor do Pai e do Filho. Por que não somente do ato de amor do Pai? Porque ao ato de amor
precede logicamente o ato de entendimento, e assim a processão do Filho (geração como ato de
entendimento do Pai) precede logicamente à processão do Espírito Santo. A Pessoa de quem o
11
Trata-se da “palavra da mente”, ou seja, do “conceito” (cf. o verbo “conceber”, para indicar o ato de
entendimento), da “imagem” intelectual da realidade conhecida. Por isso mesmo, o Filho é também a “Imagem”
perfeita do Pai.
12
Eis aqui a exposição concisa de S. Tomás: “A processão de amor, em Deus, não deve ser chamada de
geração. Para prová-lo, deve-se saber que há uma diferença entre o intelecto e a vontade. O intelecto torna-se ato
quando a coisa por ele conhecida está no intelecto segundo sua semelhança. A vontade, porém, torna-se ato, não
pelo fato de alguma semelhança do que é querido estar na vontade, mas porque a vontade tem certa inclinação para
o bem que quer. Por conseguinte, a processão que corresponde à razão de intelecto é tal segundo a razão de
semelhança; e por isso pode ter a razão de geração, pois todo aquele que gera gera um semelhante a si. Mas a
processão que corresponde à razão de vontade não é considerada segundo a razão de semelhança, mas segundo a
razão do que impele e move para algo. Assim, o que procede em Deus por modo de amor não procede como algo
gerado, ou como filho, mas mais propriamente como um espírito. Por esse nome se designa uma certa moção vital e
um impulso, no sentido em que se diz que o amor move e impele a fazer alguma coisa” (S.Th. I, q. 27, a. 4).
Síntese teológica / 8

Espírito Santo procede é, portanto, a Pessoa constituída pela relação subsistente de paternidade,
a Pessoa do Pai. Isto significa que Ele procede da Pessoa que tem um Filho. E a este Filho o
Pai Se comunica integralmente. Entre o Pai e o Filho existe comunhão total; existe, portanto,
também comunhão no ato de amar, no ato, portanto, de espirar o Espírito Santo. No entanto, o
Filho é como Filho princípio do Espírito Santo (sendo um só princípio com o Pai); portanto, Ele
o é como Aquele que tem tudo do Pai (também o ato de amor), sendo o Pai princípio sem
princípio. Assim, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho ou do Pai pelo Filho (enquanto o
Filho tem tudo do Pai), ou seja,
o Espírito Santo procede do ato de amor comum e recíproco do Pai e do Filho.
Como nomes próprios são reconhecidos tradicionalmente:
ESPÍRITO SANTO, AMOR (procedente), DOM.

2) Vejamos agora a segunda maneira de indicar a distinção entre as duas processões divinas
na Divindade. O Filho procede do Pai. Assim há distinção e reciprocidade: relação de
paternidade e filiação, relações opostas uma à outra, e sendo estas relações verdadeiramente
pessoas, há a reciprocidade entre “Eu” e “Tu”, entre dois “Eu”. No entanto, o segundo “Eu” (o
Filho) é o “Tu” do primeiro (do Pai), já que este é a origem eterna do segundo “Eu”.
Mas, como dissemos, a distinção (nessa reciprocidade) é para a união. Daí é que dessa
reciprocidade, que é a reciprocidade do amor (o amor mútuo), procede a terceira Pessoa divina,
como a Pessoa-Amor, a Pessoa-Comunhão, a Pessoa-Dom. O Espírito Santo procede do amor do
Pai para com Seu Filho e do amor do Filho para com o Pai – amor comum e mútuo ao mesmo
tempo, pois o Filho tem o amor divino do Pai, pela “geração”; o Filho é amor divino como o
Gerado pelo Pai, como Filho. Por isso, Seu amor eterno ao Pai é como uma “resposta” de amor
ao amor do Pai por Ele. E deste amor comum (um só e mesmo amor divino) e recíproco do Pai e
do Filho procede o Espírito Santo, como o “Amor procedente”, como a Pessoa que é o “fruto”
(é o que procede) desse amor mútuo entre o Pai e o Filho.
Assim, o Espírito Santo é, como Pessoa, a união de amor entre o Pai e o Filho, a Sua
comunhão. Exprimindo-o em pronomes pessoais, podemos dizer:

Se o Pai é o “ E U ” divino, e
o Filho é o “ T U ” (como o segundo “Eu”),
o Espírito Santo é o “ N Ó S ” de Pai e Filho, a expressão pessoal da
união ou comunhão (unio amoris) entre as duas Pessoas.13

13
Todo relacionamento interpessoal reduz-se a dois tipos originários de relacionamento, os quais têm
estrutura fundamentalmente diversa: a relação interpessoal “eu-tu” e a relação “nós”. Todo outro relacionamento
interpessoal é uma extensão ou variação desses dois tipos originários ou fundamentais.
A relação de união interpessoal “eu-tu” pressupõe, como a expressão já indica, duas pessoas distintas uma da
outra. O distintivo particular deste relacionamento é justamente a referência mútua de duas pessoas: uma se
encontra defronte da outra, uma está voltada para a outra, e vice-versa. Quando as duas pessoas se amam,
reconhecem e aprovam a sua distinção de pessoas, mas desejam ao mesmo tempo a união. Podemos dizer: num
primeiro passo, o amor age segundo o lema “a cada um o que é seu” (justiça); num segundo passo, o amor é um sair
de si mesmo para a entrega do que é próprio ao outro, segundo o lema “o meu é teu”.
A relação de união “nós”, ao invés, apresenta uma estrutura diferente, enquanto está marcada pela
característica do “comum”: um junto com o outro, um ao lado do outro, dois olham (agem) juntamente na mesma
direção, enquanto na união “eu-tu” um olha para o outro. É só juntamente que duas pessoas podem dizer: “nós”;
não é possível que digam “nós” uma à outra. Os dois “eu” (“eu”, “tu”) querem tornar-se um, sem, no entanto, deixar
de serem dois “eu”. Mas não querem ficar simplesmente um “eu” e “tu”; querem ser um só, formar um “nós”. No
encontro de amor entre “eu” e “tu”, a outra pessoa é reconhecida e confirmada em sua singularidade e distinção em
vista da união intencionada desde o começo, e tal união “nós” é a consumação da união “eu-tu”.
Um exemplo em que se pode elucidar a diferença e, ao mesmo tempo, a unidade real de união “eu-tu” e “nós”
é a conclusão da aliança, como p. ex. a aliança matrimonial: o consentimento matrimonial é um recíproco dizer “tu”
Síntese teológica / 9

Vemos, portanto, que o Filho e o Espírito Santo têm uma posição distinta na ordem das
processões.
Uma característica própria da processão do Filho
é de Ele proceder de u m a s ó pessoa, isto é, do Pai,
enquanto o Espírito Santo procede de d u a s pessoas ao mesmo tempo.

Considerando também o fato da “pericorese” das Pessoas divinas em virtude das processões, ou
seja, das relações de origem opostas, podemos caracterizar a Pessoa do Espírito Santo como
“Duas Pessoas (Pai e Filho) em uma Pessoa” (sob o ponto de vista da processão) ou “Uma
Pessoa em duas Pessoas (Pai e Filho)” (sob o ponto de vista das relações).14

Uma característica da Pessoa do Espírito Santo é de ser


“uma Pessoa e m d u a s Pessoas”.
Ele é a união de amor entre o Pai e o Filho, o “NÓS” das duas Pessoas.

Em Deus há, portanto, uma só Pessoa que não procede de nenhuma outra pessoa (o Pai, que,
portanto, é “princípio sem princípio”, “origem sem origem”), e há duas Pessoas que procedem
de outra(s) Pessoa(s). Mas há também, como acabamos de ver, uma clara distinção entre as duas
Pessoas procedentes. De fato, o Filho e o Espírito Santo têm uma posição bem diferente na vida
intratrinitária:
 O Filho é a Pessoa que procede de outra Pessoa (do Pai) e é, com o Pai, origem de outra
Pessoa divina (do Espírito Santo);
 O Espírito Santo é a Pessoa divina que procede de outra Pessoa – exatamente de duas
Pessoas –, mas d’Ele não procede nenhuma outra Pessoa divina.
Assim, as duas Pessoas divinas procedentes também terão certamente uma posição
diferente na vida extratrinitária ou extradivina, quer dizer, na autocomunicação de Deus
Trindade às Suas criaturas, ou seja, no “prolongamento” das processões intradivinas a efeitos
temporais, fazendo participar as criaturas, de alguma maneira, dessas processões.
Ainda quanto à Pessoa do Pai, pode-se reconhecer que Ele é a primeira origem de toda
autoridade no mundo criado, pois a ordem das processões em Deus não pode ser invertida: O
Pai – e não o Filho nem o Espírito Santo – é a Pessoa que é a “origem e fonte de toda a
divindade”, isto é, a origem tanto do Filho como do Espírito Santo. As duas Pessoas procedentes
são da mesma dignidade, majestade e perfeição divina como o Pai (a mesma natureza divina),
mas o Pai, e somente o Pai, é a origem tanto do Filho quanto do Espírito Santo. No mundo
criado, os pais, por serem origem dos seus filhos (por geração), têm autoridade sobre eles,
embora estes tenham a mesma dignidade de pessoas humanas (a mesma natureza humana,
especificamente a mesma natureza).

(dizer “sim” à outra pessoa, entregar-se a ela e aceitar a entrega dela) que, ao mesmo tempo, estabelece a aliança
matrimonial entre as duas pessoas. Ora, o dizer “sim” é, de modo exclusivo, próprio a cada uma das duas pessoas,
enquanto a aliança não é “minha” aliança, mas sempre “nossa” aliança. Deste modo, no recíproco dizer “tu” realiza-
se, ao mesmo tempo, um comum dizer “nós”. Portanto, não se deve separar os dois tipos de relacionamento, mas
distingui-las. A aliança é expressão e sinal do íntimo “nós”. E como tal ela é o pressuposto para a realização de atos
comuns, nos quais as duas pessoas se voltam a um terceiro, precisamente ao filho. “O filho é um fruto e uma
concretização da união ‘eu-tu’ dos pais, enquanto esta contém, ao mesmo tempo, uma união ‘nós’” (H. Mühlen). O
filho é a expressão visível do “nós” dos pais.
14
É evidente que o Pai está no Filho e também no Espírito Santo, bem como o Filho está no Pai e também no
Espírito Santo, mas em virtude da geração e das correspondentes relações de origem o Pai está somente no Filho e
o Filho está somente no Pai. Em virtude da espiração comum e da correspondente relação comum ao Espírito Santo,
o Pai está, com o Filho, também no Espírito Santo. O Espírito Santo, porém, está no Pai e no Filho em virtude da
Sua processão e correspondente relação de origem ao Pai e ao Filho ao mesmo tempo.
Síntese teológica / 10

5. Uma questão particular: Por que “D E U S P A I ” e não “Deusa Mãe”?

A esta questão pode-se responder:


 Porque assim Ele mesmo Se revelou; assim no-l’O revelou Jesus Cristo, sem exceção
alguma (jamais “Deusa Mãe”).
 Porque assim a Igreja, fiel à Revelação divina, sempre se tem dirigido a Ele, sem exceção
alguma.
 Porque somente assim se chega a ter uma idéia certa (sem causar confusão) do mistério da
“geração” em Deus, bem como da relação entre Deus e a criatura.

Quem começa a chamar a primeira Pessoa divina


de “Mãe” em vez de “Pai” ou de “Pai” e “Mãe”,
torna-se infiel à Revelação divina.

Com efeito, Deus que Se revelou no Antigo Testamento e concluiu uma aliança com o povo
de Israel, aliança que se compara à aliança entre o homem e a mulher no matrimônio, jamais Se
apresentou no papel da esposa, mas sempre e unicamente no de esposo. Esta é a estrutura da
aliança: Deus = o esposo; o povo de Israel = a esposa. Assim é também na Nova Aliança: Jesus
Cristo, o Filho de Deus encarnado = o esposo; a Igreja = a esposa. Jamais Jesus chamou Deus de
“Mãe”; sempre Se dirigia a Deus como a Seu “Pai” (“Abba”). Deus comparou Seu amor
(ternura, compaixão) com o amor de uma mãe, isto sim. Pois a força, intimidade, ternura,
fidelidade e profundidade do amor de uma mãe para com o fruto de suas entranhas podem servir
de base para Deus nos fazer entender – na medida do possível – a perfeição do Seu amor por
nós.
A Igreja, ao chamar a primeira Pessoa da Ss. Trindade sempre e unicamente de “Pai”, não
de “Mãe”, simplesmente tem seguido fielmente os dados da Revelação divina. Esta é a norma
da oração cristã.
Uma vez que Deus nunca age arbitrariamente, mas sempre de acordo com Sua sabedoria,
pode-se encontrar também uma r a z ã o p o r q u e Ele Se revelou do modo indicado. Eis, em
síntese, a razão que se pode encontrar.
Para manifestar o mistério da “geração” em Deus de um modo que não induza a uma
concepção errada, a primeira Pessoa divina (a Pessoa que “gera”) não podia revelar-Se ou ser
revelada como “Mãe”, mas, sim, como “Pai”, embora a Pessoa divina não seja nem homem nem
mulher, não seja nem masculina nem feminina; sendo puríssimo espírito, não tem sexo.
A razão disso é o papel diferente do homem (pai) e da mulher (mãe) na geração de um filho.
Quanto a esta geração, constatamos o seguinte fato:

A mulher tem o papel que corresponde ao


papel da criatura em relação a Deus :
passiva, acolhendo, recebendo, concebendo, ser fecundada,
para, assim e então, produzir “fruto”, agir ativamente.

A santíssima Virgem é o modelo perfeito e singular da criatura em relação a Deus, sendo que ela
foi fecundada não por um homem, mas diretamente por Deus. O papel do homem na geração
humana é ativo: fecundar a mulher, gerar fecundando a sua esposa.
Síntese teológica / 11

Ora, no que diz respeito à primeira Pessoa divina, constatamos:

A primeira Pessoa divina, ao gerar a segunda Pessoa divina, é


inteiramente e exclusivamente a t i v a , de modo algum passiva;
para gerar, não recebe nada de ninguém, absolutamente.

Se, portanto, a primeira Pessoa divina devia autodenominar-Se a partir da realidade humana
da geração (pois devia usar os conceitos humanos que são formados a partir da realidade
conhecida por nós; no caso, a geração humana), não podia denominar-Se com o nome de “mãe”,
mas somente com o nome de “pai”. Pois o “pai” é quem tem o papel ativo na geração humana.
O homem (varão), na verdade, também é criatura, e por isso não pode gerar de si mesmo e por
si mesmo, mas apenas pela união com a mulher, fecundando-a. Isso, no entanto, não abole o fato
que ele, em contraposição ao papel da mulher, é ativo na geração. Por isso, Deus, que é ativo,
pura atividade (ato puro), também na geração, Se chama de “Pai” e não de “Mãe”, ou seja, a
primeira Pessoa divina é “DEUS PAI”; não é “deusa”, nem é “mãe”, mas nos ama com um amor
comparável à ternura e intimidade do amor de uma mãe, ou melhor, com um amor muito mais,
infinitamente mais terno e íntimo e fiel... do que o de uma mãe pode ser. A expressão “Deus
Pai” sugere também a transcendência divina (“Pai nosso que estais nos Céus”, “Senhor do Céu
e da terra”), enquanto falamos naturalmente da “mãe terra”, e as religiões que cultuam deusas
costumam não salvaguardar a absoluta transcendência divina (imanentismo, panteísmo).

Nós cristãos dirigimo-nos a DEUS como nosso “PAI” amado,


enquanto Maria, a criatura, é nossa querida “Mãe”.

III. As duas missões divinas como transição


da vida intradivina à extradivina

Conhecemos o mistério trinitário de Deus através do envio do Filho pelo Pai e do envio do
Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho encarnado. De fato, através dessas duas missões divinas
chegamos a conhecer características próprias das três Pessoas divinas, distinguindo-as umas das
outras. São as seguintes:
 Pai: não é enviado e envia;
 Filho: é enviado e envia;
 Espírito Santo: é enviado e não envia.
Daí conhecemos aquelas características das três Pessoas divinas que são o fundamento ou a
“raiz” dessas características, a saber: as características relacionadas às processões intradivinas:
 Pai: não procede de ninguém (é origem sem origem) d’Ele procedem duas Pessoas divinas;
 Filho: procede do Pai e d’Ele procede o Espírito Santo;
 Espírito Santo: procede do Pai e do Filho e d’Ele não procede ninguém.
Através das duas missões divinas no tempo chegamos a conhecer as duas processões eternas
em Deus: a geração do Filho e a espiração do Espírito Santo. A “processão” divina é a origem
eterna de uma pessoa divina de outra pessoa. Conhecemos esta origem intradivina do Filho e do
Espírito Santo através da missão (do envio) destas duas Pessoas, a qual é um certo “vir”, “sair”
de outra pessoa, a saber, da pessoa (ou das pessoas) que envia(m).
Síntese teológica / 12

Ora, a missão de uma Pessoa divina é, justamente,


um certo prolongamento da processão eterna desta Pessoa.

O envio do Filho por parte do Pai é um certo prolongamento da geração eterna por parte do
Pai; o envio é esta geração, acrescentando, porém, um termo temporal desta processão, ou seja,
um efeito no mundo das criaturas, uma nova presença da Pessoa procedente no mundo criado.
Assim, a geração do Filho é a origem do Filho da parte do Pai “para ser Deus”, quer dizer: o
termo desta processão é eterno, é a Pessoa divina do Filho na Divindade, enquanto o termo da
geração “prolongada” para dentro do mundo criado é a Pessoa divina do Filho entre os homens
ou, mais diretamente, a Pessoa do Filho como pessoa (portadora) de uma natureza humana
individual: o Filho é enviado para ser – não apenas Pessoa de natureza divina, mas também –
Pessoa de natureza humana, para ser homem.
Também para o envio do Espírito Santo vale que é a Sua processão do Pai e do (ou: pelo)
Filho, mas com um termo temporal: a Sua presença nas pessoas criadas (homens, anjos).

Pai Filho (termo eterno) Jesus (Filho encarnado) (termo temporal)


geração – envio
A “missão” de uma pessoa pressupõe
 a sua origem de outra pessoa, isto é, da pessoa que a envia; portanto, uma relação de
origem, bem como
 a sua “vinda”, ou seja, sua “presença” (nova, já havendo antes uma presença) no lugar
aonde é enviada (ou junto à pessoa ou às pessoas às quais é enviada): relação de presença.
 A origem: Ao se tratar do envio de uma Pessoa divina por outra Pessoa divina, a origem
não pode ser uma ordem (relação de superior a inferior, relação de comando), mas somente pode
ser aquela origem eterna que chamamos de “processão”: a geração do Filho por parte do Pai e a
espiração do Espírito Santo por parte do Pai e do Filho.
 A vinda (presença): Quanto à vinda ou presença, somente pode tratar-se de uma nova
presença, um modo totalmente novo de a Pessoa divina estar presente no criado, uma vez que a
Pessoa divina está presente, como Criador, em toda parte (onipresença divina).
Como se realiza esta nova presença da Pessoa divina no criado? Certamente, por alguma
mudança. Que mudança e em quê ou em quem? Sem dúvida, não é a Pessoa divina que muda,
mas a realidade criada. Podemos, portanto, estabelecer como um princípio válido de explicação:

A nova presença da Pessoa divina (enviada) se realiza


por uma determinada mudança na realidade criada, causada pela ação divina.

No caso da missão do Espírito Santo, essa mudança é


 uma transformação sobrenatural, divinizante do espírito criado (anjo, alma espiritual do
homem), que chamamos de “graça santificante” (em sentido amplo, ou então, em sentido estrito,
mas com tudo que a acompanha, isto é, as virtudes infusas e os sete dons do Espírito Santo). Por
esta transformação divinizante, a pessoa criada é capaz de “possuir”, de “degustar” em si a
própria Pessoa divina (São Tomás: “frui ipsa persona divina”) do Espírito Santo e, com Ele,
também do Filho e do Pai. Com efeito, a Pessoa que envia está na Pessoa enviada.

No caso da missão do Filho, a “mudança” é mais profunda, mais radical: é


 o vir-a-ser da natureza humana individual (pela fecundação da Virgem Maria e pela
criação da alma humana), enquanto pertencente, desde o primeiro instante de sua
Síntese teológica / 13

existência, à Pessoa de Deus Filho.15 Pois o Filho não é enviado para, simplesmente, estar entre
os homens ou nos homens, mas para ser homem e, então, como homem, estabelecer as relações
interpessoais com os outros homens e para, por fim, também estar nos homens, o que se
realizará pelo sacramento da Santíssima Eucaristia.
Por conseguinte, constatamos:

A missão do Filho e a do Espírito Santo se distinguem claramente,


como se distinguem as duas processões, ou melhor, as duas relações de origem que constituem
as duas Pessoas. Com efeito, é exatamente pela missão que se nos manifestaram as
características das Pessoas eternas do Filho e do Espírito Santo.
Mas, como as duas processões são inseparáveis, assim também o são as duas missões
divinas:
As duas missões divinas são a missão conjunta do Filho e do Espírito Santo.
A missão do Espírito Santo está sempre conjugada e ordenada à do Filho.16

“Quando o Pai envia seu Verbo, envia sempre seu Sopro: missão conjunta em que o Filho e o
Espírito Santo são distintos, mas inseparáveis. Sem dúvida, é Cristo que aparece, ele, a Imagem
visível do Deus invisível; mas é o Espírito Santo que o revela” (Cat. 689).
“O que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus” (1Cor 2,11). Ora, seu Espírito
que o revela nos dá a conhecer Cristo, seu Verbo, sua Palavra viva, mas não se revela a si mesmo.
Aquele que “falou pelos profetas” faz-nos ouvir a Palavra do Pai. Mas, ele mesmo, nós não o
ouvimos. Só o conhecemos no momento em que nos revela o Verbo e nos dispõe a acolhê-lo na fé.
O Espírito de Verdade que nos “desvenda” o Cristo “não fala de si mesmo” 17. Tal apagamento,
propriamente divino, explica por que “o mundo não pode acolhê-lo, porque não o vê nem o
conhece”, enquanto os que crêem em Cristo o conhecem, porque ele permanece com eles (Jo
14,17). (Cat. 687)
Pensando na caracterização das Pessoas divinas como “EU”, “TU” e “NÓS”, podemos dizer
que a missão do Filho é o dizer-“TU”, por parte do Pai, para dentro do mundo criado: Jesus é a
própria Pessoa divina (“TU” do Pai) que, ao mesmo tempo, é homem, possuidora de uma
natureza humana individual. Jesus não é Pessoa divina unida a uma pessoa humana, mas um
único “TU” do Pai; também como homem, Ele é o “TU” do Pai.
O Espírito Santo – o “NÓS” do Pai e do Filho ou “uma Pessoa em duas Pessoas” – por Sua
missão Se torna “uma Pessoa em muitas pessoas”: Ele é, como Pessoa, a comunhão entre a
Pessoa de Jesus, enquanto homem, e o Pai, bem como entre Jesus e os homens e dos homens
entre si, e igualmente, em relação aos santos Anjos.
Pode-se também explicar a diferença entre a missão do Filho e a do Espírito Santo, partindo
das características específicas e claramente distintas entre a processão do ato de conhecer
(formar em si uma semelhança da realidade conhecida) e a processão do ato de amar (a do
Espírito Santo; no amar não se trata de formar uma imagem da realidade amada em si, mas da
tendência ao estar com a pessoa amada; a união de amor entre o amante e o amado).

15
Trata-se, portanto, do ato de fazer existir a natureza humana individual e, ao mesmo tempo, de uni-la à
Pessoa divina do Filho, de modo que não comece a existir uma nova pessoa humana, mas sim, que a Pessoa divina
do Filho comece a ser a pessoa desta natureza humana individual, isto é, um homem.
16
Cat. 485: “A missão do Espírito Santo está sempre conjugada e ordenada à do Filho (cf. Jo 16,14-15).”
17
Cf. Jo 16,13.
Síntese teológica / 14

IV. Visão de conjunto das diversas disciplinas da ciência teológica,


vistas sob o aspecto unificador
da autocomunicação de Deus às Suas criaturas
pela missão conjunta do Filho e do Espírito Santo

Toda a teologia pode ser resumida no mistério de Deus Uno e Trino, o mistério de Deus em
Si, e nas duas missões divinas do Filho e do Espírito Santo. Quanto a isso, tem quem fale de
“Trindade imanente” (Deus em Si) e “Trindade econômica” (as duas missões divinas).
Podemos, com os Padres da Igreja, falar de theología e de oikonomía.
Os Padres da Igreja distinguem entre a “Theologia” e a “Oikonomia”, designando com o primeiro
termo o mistério da vida íntima do Deus Trindade e com o segundo todas as obras de Deus por
meio das quais ele se revela e comunica sua vida. É mediante a “Oikonomia” que nos é revelada
a “Theologia”; mas, inversamente, é a “Theologia” que ilumina toda a “Oikonomia”. As obras de
Deus revelam quem Ele é em si mesmo e, inversamente, o mistério de seu Ser íntimo ilumina a
compreensão de todas as suas obras. Acontece o mesmo, analogicamente, entre as pessoas
humanas. A pessoa mostra-se em seu agir e, quanto melhor conhecermos uma pessoa, tanto melhor
compreenderemos seu agir. (Cat. 236)
Vejamos brevemente as diversas disciplinas teológicas, sob esse aspecto.
 Theología: Deus em Si, Uno e Trino, comunhão total de três Pessoas distintas
 Oikonomía:
 Teologia Fundamental: as duas missões divinas como automanifestação e autodoação
(revelação) de Deus, credenciada, fielmente transmitida e acolhida pela fé;
 S. Escritura: estudo do meio privilegiado de transmissão da Revelação divina na história;
 Patrologia-Patrística: estudo dos Padres da Igreja como testemunhas particulares da
S. Tradição, o meio fundamental de transmissão da Revelação divina na história;
 Criação: Deus Criador (conexão entre as processões eternas e a processão das criaturas);
a criação como fundamento (condição) para a missão do Filho e do Espírito Santo;
 Angelologia: a missão do Filho e do Espírito Santo em relação às criaturas espirituais
 Antropologia teológica: a missão do Filho e do Espírito Santo como dom original
à criatura espiritual e material (ser humano), rejeitado pelo pecado;
 Cristologia: reflexão sobre a missão do Filho e do Espírito Santo:
Jesus (envio do Filho, Encarnação) Cristo (o Espírito Santo na alma de Jesus);
 Soteriologia: missão do Filho e do Espírito Santo (missão-obra de Jesus Cristo,
cooperando o Espírito Santo);
 Mariologia: “a obra-prima da missão do Filho e do Espírito na plenitude do tempo” (Cat. 721);
 Graça: a autocomunicação de Deus Trindade às criaturas e todos os dons divinos gratuitos
relacionados a esta autocomunicação;
 Eclesiologia: Igreja como sacramento (sinal, resultado e instrumento) da missão conjunta
do Filho e do Espírito Santo18;
Missiologia: a realização da natureza missionária da Igreja;
Ecumenismo: plena unidade visível dos cristãos a ser restabelecida;
Direito Canônico: o mistério de comunhão (pela missão do Filho e do Espírito Santo)
numa sociedade presente neste mundo;

18
Cat. 738: “Assim, a missão da Igreja não é acrescentada à de Cristo e do Espírito Santo, senão que é o
Sacramento dela: por todo o seu ser e em todos os seus membros, a Igreja é enviada a anunciar e testemunhar,
atualizar e difundir o mistério da comunhão da Santíssima Trindade”.
Síntese teológica / 15

Teologia Pastoral:como a Igreja tem de agir concretamente para realizar, com relação
aos membros da Igreja, a sua missão de sacramento da missão de Cristo e
do Espírito Santo (ilustrar os princípios teológicos da ação pela qual a vontade salvífica
de Deus pode, hoje em dia, ser efetuada na Igreja por meio de diversos ministérios e instituições) ;
as vicissitudes históricas do sacramento da missão conjunta do Filho
História da Igreja:
e do Espírito Santo;
 Liturgia: obra da Santíssima Trindade; exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo,
por parte da Cabeça e dos membros;
a cooperação mais íntima entre o Espírito Santo e a Igreja;
 Sacramentos: obra de Cristo, do Espírito Santo e da Igreja;
 Teologia Moral: a vida “em Cristo” e “no Espírito”, aqui na terra; como caminhar (atos,
“a fé que opera pela caridade”) para atingir a meta para a qual Cristo nos precedeu;
 Teologia Espiritual: complementa a doutrina moral: como desenvolver a vida “no Espírito”
(segundo as diversas vocações, estados de vida e situações concretas);
 Escatologia: a consumação da missão conjunta do Filho e do Espírito Santo.

V. O trajeto da criação:
de Deus Trindade para Deus Trindade

As Pessoas do Filho e do Espírito Santo procedem – na eternidade divina – do Pai e,


respectivamente, do Pai e do Filho, “na unidade da essência”. Do Espírito Santo não procede
outra Pessoa divina, mas pessoas criadas.

1. O proceder das criaturas de Deus Trindade

Do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, procedem as criaturas, pelo ato criador,
“na diversidade da essência”.

A este respeito, São Tomás diz que as processões intradivinas (geração e espiração) são
“causa” e “ratio”, causa e razão das processões extradivinas, isto é, da processão das criaturas da
mão criadora de Deus.19 De fato, as criaturas procedem do ato divino de conhecer e querer
(amar), e as duas Pessoas procedentes em Deus procedem igualmente do ato de conhecer do Pai
(isto é, enquanto é do Pai, enquanto este ato de conhecer si identifica com a relação de
paternidade) e do ato de amar do Pai e do Filho (isto é, enquanto é do Pai e do Filho, quer dizer:
o ato de amor, enquanto se identifica com a relação de paternidade e com a relação de filiação).
Em outras palavras: as processões extratrinitárias aparecem à razão iluminada pela fé como o
“prolongamento” e a “exteriorização” das processões intratrinitárias, isto é:

O entender e o querer divinos,


antes de estarem na origem da criação e do governo das criaturas,
estão em Deus na origem do V E R B O e do E S P Í R I T O S A N T O .

19
S.Th. I, q. 45, a. 7, ad 3: “as processões das Pessoas são, de certa forma, causa e razão da criação (causa et
ratio creationis aliquo modo)”; cf. S.Th. I, q. 45, a. 6, ad 1. Igualmente: In I Sent. d. 2, q. 1, prooemium: “Exitus
enim personarum in unitate essentiae est causa exitus creaturarum in essentiae diversitate”. “Postquam determinavit
Magister de processione divinarum personarum in unitate essentiae, quae est principium creaturarum et causa” (In I
Sent., d. 35, q. 1, prooemium).
Síntese teológica / 16

Existe, portanto, certa continuidade entre as processões eternas e a processão das criaturas
de Deus. Para entendermos esta continuidade é preciso levar em consideração o caráter
necessário das processões intratrinitárias. A “dicção” do Verbo e a “espiração” do Espírito
Santo não são acidentais à intelecção e ao querer divino; identificam-se com estes. Constituem,
portanto, o “modo infinito” da intelecção e do querer “criadores”. As processões intratrinitárias
são necessárias, enquanto a processão das criaturas é contingente.
Mas, se é assim, não existe uma ruptura entre esses dois tipos de processões? Uma ruptura
que contradiz a continuidade que acabamos de descobrir? Não devemos, então, admitir que a
processão das criaturas, longe de prolongar as processões intratrinitárias, se acrescenta a estas
“de fora”, e por isso deve ser entendida independentemente delas?
A resposta a esta dificuldade encontra-se num outro aspecto do mistério de Deus: a
liberdade do ato criador (e de todos os atos que dele dependem). É uma liberdade sem sombra
de contingência; a contingência está toda nos objetos deste ato. As criaturas, em seu conjunto e
cada uma em particular, são objetos contingentes da vontade, porque poderiam também não ser
queridos. Não poderiam ser queridos, se não fossem bons (são bons na medida em que existem),
mas a sua bondade não é e não pode ser pensada a não ser como consecutiva ao ato divino de
querê-los e de amá-los, não como se aquela bondade precedesse a esse ato divino e fosse
independente do mesmo.
O ato divino, porém, não é contingente. Não é um segundo ato, acrescentado àquele pelo
qual Deus ama a Si mesmo e amando-Se “espira” o Espírito Santo. É o mesmo ato, considerado
em relação aos objetos contingentes.

Desde toda a eternidade,


Deus pensa o universo criado n o V e r b o ,
quer este universo n o E s p í r i t o ,
com um ato que n’Ele é necessário, enquanto não é necessário o seu objeto.

Esta combinação de necessário e de contingente constitui a necessidade de fato da criação


(que a criação existe, é um fato inegável que exclui a não-existência), que faz tão difícil pensar e
exprimir a sua contingência. Podemos fazê-lo apenas à maneira de uma hipótese: o universo
criado (ou este determinado ser concreto) poderia também não existir. Isto, porém, não deve ser
aplicado ao ato divino de criar – como se Deus Se tivesse encontrado realmente diante da
simples possibilidade do universo e tivesse realizado esta possibilidade com uma escolha Sua.
Com essa maneira hipotética de pensar e se exprimir exprime-se simplesmente, de um modo
irreal (evocando aquilo que não aconteceu: a não-criação), uma real característica estrutural do
ser criado, isto é, a sua contingência.20

20
Toda esta questão faz pensar também na questão das r e l a ç õ e s d e D e u s à s c r i a t u r a s . Falamos de
“relações” no sentido de relação ontológica, como é a relação de origem, e não no sentido de “relacionamento”,
isto é, de relacionar-se com outrem através de atos de conhecimento e amor. É evidente que o “relacionamento” de
Deus conosco é real: Ele nos conhece e ama realmente. As relações de Deus às criaturas no sentido de relações
ontológicas (de origem), porém, não são reais, mas “de razão”. Isto significa: se existem as criaturas, em Deus não
existem mais relações reais do que as quatro relações de origem na vida intratrinitária. Do contrário, se não
houvesse criaturas, não existiriam certas relações em Deus que existiriam se houvesse criaturas (haveria uma
mudança real em Deus, pois uma relação real tem um fundamento real na realidade referida a outra); o que é
impossível. Por isso, a relação de Deus Pai às criaturas não é uma relação diferente da Sua relação de origem ao
Filho e ao Espírito Santo. E a relação de Deus Filho às criaturas não é uma relação diferente da Sua relação de
origem ao Espírito Santo. O Espírito Santo, por Sua vez, não tem, ou seja, não é na vida intratrinitária uma relação
de origem a um originado, mas somente relação de originado à Sua origem. Por isso, a relação de origem do
Espírito Santo às criaturas não se identifica com esta relação real (a “espiração passiva”). De fato, na vida
intratrinitária, os atos de conhecer e de amar, enquanto se identificam com a relação da “espiração passiva”, isto é,
com a Pessoa do Espírito Santo, não estão na origem de outra Pessoa divina, mas, sim, das criaturas.
Síntese teológica / 17

Deus Trindade,
na alegria de Sua comunhão total por autocomunicação integral,
em absoluta liberdade,
quer estender esta maravilha de comunhão e autocomunicação a outros seres.

Para isso, em primeiro lugar, os faz existir, por um ato Seu de conhecimento e vontade; é a
criação “do nada”.
Com a existência de criaturas, começa a existir outro tipo de distinção e união. Agora a
distinção é de essência: as criaturas não têm a essência divina, mas outra essência totalmente
diferente, bem como entre elas existe diferença de essência. Existe, portanto, distinção vertical:
entre Deus-Criador e as criaturas, e distinção horizontal: entre criatura e criatura ou também
entre um tipo de criatura e outros tipos de criatura (ser criado meramente espiritual: os anjos; ser
criado meramente material: o cosmo material; ser criado ao mesmo tempo espiritual e material:
o homem)21.
Mas, também aqui vale:
“A distinção é para a união”.
Ora, a distinção fundamental é a distinção entre a criatura e Deus; esta é a fundamental e a
maior. Mas Deus criou as criaturas para a união consigo; criou as criaturas-pessoas para uma
participação na Sua própria união-comunhão trinitária. Assim, Ele criou as criaturas também
para uma união entre elas, em Deus.
Podemos constatar: quanto mais perfeita for a criatura (segundo a sua essência, natureza),
mais perfeitamente ela se distingue das outras criaturas: um animal se distingue mais
perfeitamente de outro animal, inclusive da mesma espécie, do que uma planta se distingue de
outra planta; uma pessoa humana se distingue mais perfeitamente de outra, do que um animal de
outro animal; um anjo (pessoa puramente espiritual) se distingue mais perfeitamente de outro
anjo do que um homem de outro homem.
Podemos igualmente constatar: quanto mais clara for a distinção, tanto maior é também a
possibilidade de união, de autocomunicação e comunhão. Por exemplo, a união que pode existir
entre animais é menos perfeita do que a união-comunhão que as pessoas humanas podem
realizar entre si. Porém, a união fundamental para qualquer outra união perfeita é a união da
criatura com Deus.

2. A volta das criaturas para Deus Trindade – o “estado de caminhada”

Portanto, a criatura “sai” de Deus (“exitus” da criatura) – e assim há a distinção entre


criatura e Deus –, mas é para “voltar” para Deus (“reditus”), e com esta volta se realiza a união
perfeita da criatura com Ele e, n’Ele, entre as criaturas.

Esta volta é a razão de ser, o sentido de toda a história das criaturas.


E esta volta das criaturas para Deus realiza-se exatamente através da missão conjunta do Filho
e do Espírito Santo.
A criação tem sua bondade e sua perfeição próprias, mas não saiu completamente acabada das
mãos do Criador. Ela é criada “em estado de caminhada” (“in statu viae”) para uma perfeição

21
Neste nível da distinção “horizontal” (distinção entre as criaturas, em contraposição à distinção entre criatura
e Deus) existem também distinções “verticais” entre as criaturas: os diversos níveis de perfeição, pela diversidade
de essência, de natureza.
Síntese teológica / 18

última a ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou. Chamamos de divina providência as
disposições pelas quais Deus conduz sua criação para esta perfeição. (Cat. 302)

Aqui podemos perguntar:

Por que Deus criou as criaturas “em estado de caminhada”?

Por que Deus as criou assim que elas precisem, através de uma atividade própria (é o
“caminhar”), voltar para Deus, ou seja, alcançar sua perfeição última, a saber, a união perfeita
com Deus? Para as criaturas que são pessoas, isso significa também que elas se encontram em
e s t a d o d e p r o v a ç ã o , podendo e devendo-se decidir livremente por ou contra Deus e o
caminho escolhido por Ele para aquela perfeição última.

A razão que podemos encontrar é, em última análise,


o reflexo do mistério trinitário de Deus nas criaturas.
De fato, o Pai – pelo Filho, no Espírito Santo – nos quis como filhos no FILHO.
O FILHO procede do Pai, tem tudo do Pai, isto é, o ato de ser, de conhecer, de amar, tudo
que Ele é. Assim, Ele ama o Pai com aquele mesmo amor com que Ele é amado pelo Pai e que
Ele tem do Pai. Por Ele ter este amor do Pai (pela geração), Seu amor ao Pai é como uma
“resposta” ao amor do Pai por Ele. Observemos mais uma vez, que esta resposta de amor é o
mesmo e idêntico ato de amor divino com que Ele mesmo é amado pelo Pai. E deste amor
comum e mútuo procede o Espírito Santo como a Pessoa que é a união de amor entre o Pai e o
Filho.
Ora, se Deus nos quer como filhos no FILHO, Ele quer que participemos da relação filial e
da união do FILHO com Deus Pai. Pelo ato criador, procedemos de Deus – em certa semelhança
com a processão eterna do Filho da parte do Pai – através de um ato de conhecimento e amor de
Deus. Deus nos ama com Seu infinito amor divino, e nós? Podemos dar a resposta de amor a
Deus amando-O com o mesmo amor com que Ele nos ama? Na verdade, nós não recebemos –
pelo ato criador – o mesmo ato divino de ser, de conhecer e de amar; somos criaturas, não
pessoas divinas. Porém, Deus nos elevou a uma verdadeira participação da natureza divina (cf.
2Pd 1,4), do amor divino. Deste modo, podemos realmente dar a Deus uma autêntica resposta
de amor, amando-O com o mesmo amor com que Ele nos ama: o mesmo amor, no sentido de
um amor que é participação do amor com que Deus nos ama; é “participação”, sim, mas
participação do próprio amor divino.
No entanto, este amor ou esta capacidade de amar é um puro dom de Deus para nós. Como,
então, podemos oferecer algo a Deus que, na verdade, recebemos, como dom gratuito, do
próprio Deus? Como posso amar a Deus com o Seu amor, sendo ao mesmo tempo meu amor,
isto é, o amor que eu Lhe ofereço como meu amor, como resposta ao Seu amor para comigo?

É somente pela liberdade que eu posso oferecer a Deus, como algo meu,
o amor que é puro dom divino.

A liberdade caracteriza os atos propriamente humanos. Torna o ser humano responsável pelos atos
dos quais é voluntariamente autor. Seu agir deliberado é algo propriamente seu. (Cat. 1745)
Se eu posso amar a Deus livremente, posso oferecer a Deus, como algo verdadeiramente
meu, o amor que é puro dom divino. Deste modo, este amor também pode ser meritório.
Mas, como é que este amor pode ser livre? Somente pode ser amor livre se a pessoa criada
estiver “em estado de caminhada”, o que significa: se ela sofrer, de alguma maneira. Trata-se do
tipo de sofrimento que está implicado no “estado de caminhada”. Com efeito, se a pessoa criada
já se encontrasse na união perfeita com Deus, pela visão imediata de Deus mesmo, não teria
Síntese teológica / 19

mais algum desejo não satisfeito; portanto, não teria sofrimento algum; estaria plenamente feliz.
Porém, também não poderia amar a Deus livremente. Ela O amaria com uma necessidade
absoluta provinda da própria natureza da vontade, que é a faculdade de aderir ao bem. Por
conseguinte, a vontade está, por sua própria natureza, determinada a aderir (querer) ao bem por
essência, que é o fim último do homem: Deus. Diante de Deus, isto é, se o intelecto ver a Deus
(visão imediata; absoluta evidência), o homem não se pode, por seu livre arbítrio, auto-
determinar; ele está determinado de antemão (pela própria natureza da vontade) a amar a Deus;
ele O ama necessariamente. Certamente, ele não O amará forçadamente, como por uma
imposição de fora, mas espontaneamente, de dentro. Porém, amá-l’O-á necessariamente, isto é,
não por autodeterminação, sendo determinado pela natureza da vontade.
Sendo assim, podemos concluir: Se Deus criasse o homem (qualquer pessoa criada) e logo
lhe concedesse a visão imediata de Deus (não o criasse no estado de caminhada), o homem não
poderia amar a Deus com o amor com que Deus o ama (participação do amor divino), dando a
Deus esta resposta de amor como um amor propriamente seu, à semelhança da resposta de
amor do Filho eterno ao Pai. Pois, como vimos, se o homem não se encontrasse no estado de
caminhada (sofrimento), sua resposta de amor não seria livre; por conseguinte, essa resposta de
amor, ele não a poderia oferecer a Deus como algo propriamente seu.
A razão de ser por que Deus nos criou em estado de caminhada – dando-nos a “cruz da
provação”22 – é, portanto, o Seu amor a nós, um amor maior, um amor que quer o nosso bem
maior, um amor que se pode chamar de “sóbrio”, visando, na verdade, à nossa maior dignidade
e felicidade.

Uma reflexão geral sobre a liberdade


A liberdade significa autodeterminação. O contrário da liberdade está em estar determinado por
algo ou alguém, não havendo, portanto, autodeterminação, mas heterodeterminação.
Falando de “liberdade”, pode e deve-se distinguir entre liberdade no sentido de
 livre arbítrio (liberum arbitrium)23 e de
 ser livre de coação (libertas a coactione).
 O contrário da liberdade no sentido do livre arbítrio é a necessidade absoluta, ou seja,
necessidade em virtude da natureza (essência)24.
 O contrário da liberdade de coação é a necessidade condicional (necessitas condicionalis), isto é,
a necessidade que exclui a “espontaneidade” do querer, o querer “de dentro”, por si mesmo, não
por alguma imposição provinda de determinadas circunstâncias, condições.
Portanto, “livre” significa, em geral, “não-necessário” e “não-heterodeterminado”, isto é,
autodeterminado.
1) A perfeita liberdade d e D e u s
A maior perfeição da liberdade encontra-se em DEUS. N’Ele há liberdade plena, pois

Deus não é determinado por algo ou alguém que não seja Ele mesmo.

22
O estado de caminhada é estado de provação, pois neste estado a pessoa criada pode e deve decidir-se
livremente diante de Deus e de Seu plano (o caminho pelo qual quer levar as pessoas criadas à perfeita união
consigo).
23
Pode-se defini-la como sendo “o poder, baseado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou
aquilo, portanto, de praticar atos deliberados” (Cat. 1731). Por este “livre-arbítrio”, “cada qual dispõe sobre si
mesmo” (ibid.).
24
Cf. S.Th. I, q. 18, a. 3: “Embora o nosso intelecto se determine a certas coisas, entretanto, outras lhe são
estabelecidas pela natureza, como os primeiros princípios, a respeito dos quais não se pode pensar diversamente, e
o fim último, que é impossível não querer. Por isso, ainda que se mova em relação a algo, contudo, é necessário
que, em relação a outras coisas, o intelecto seja movido por outro.”
Síntese teológica / 20

N’Ele, o próprio ser não é determinado por nada; não é determinado por alguma essência limitada, uma
vez que a Sua essência é o próprio ser (Ele é o próprio ser subsistente, ipsum esse subsistens). Sua
essência é simplesmente ser, um ser ilimitado. N’Ele, ser (infinito) e essência se identificam, como
também o agir se identifica com o ser divino. Portanto, a essência, a natureza de Deus não é limitada e
não é determinada por outrem25.
Por isso, só Deus é perfeitamente livre. Em primeiro lugar, é evidente que n’Ele existe a total
liberdade de coação, não existindo n’Ele nada de necessidade condicional, nem no Seu amor a Si
mesmo nem no amor às criaturas.
E a liberdade no sentido de livre arbítrio? Neste sentido, o amor de Deus é livre em relação às
criaturas. A Si mesmo, porém, Ele quer (ama) com a mesma necessidade absoluta com que Ele é. Ele
não pode não amar-Se como não pode não existir; seria contra a Sua essência ou natureza. Não amar-Se
seria contradizer-Se a Si mesmo, que é o amor e o bem supremo (bem-por-essência). Neste sentido, a
Sua vontade é determinada, por Sua natureza, a amar, ou seja, Deus é o objeto necessário do Seu amor.
Esta determinação, porém, não é uma heterodeterminação, pois Deus (em Seu ser, em Sua natureza)
não está determinado (a amar) por alguém ou algo que não seja Ele mesmo. Por isso, chegamos à
conclusão:

O Seu amor a Si mesmo pode ser livre sem ser a liberdade no sentido do livre arbítrio .

É verdade, portanto, que, de um lado, no amor de Deus que tem a Ele mesmo por objeto não existe a
liberdade da escolha, mas sim, uma necessidade absoluta. Por outro lado, essa necessidade não faz com
que este Seu amor não seja ao mesmo tempo livre, pois não existe a este respeito uma
heterodeterminação. Assim, em Deus, o amar necessariamente a Si mesmo é compatível com a
liberdade, com a autodeterminação, embora não se trate do livre arbítrio, ou seja, da liberdade de
escolha, isto é, de uma decisão (a tomar). Com efeito, o amor de Deus para consigo mesmo é
simplesmente o eterno “Sim!” a Si mesmo, a concordância consigo mesmo, a eterna adesão total ao
sumo bem, que é Ele mesmo. E este ato eterno de amor é de cada uma das Pessoas divinas como sendo
Seu próprio ato, uma vez que a Pessoa divina Se identifica realmente com este ato, enquanto Ela é,
respectivamente, a relação subsistente (identificando-se com a substância divina, com o ato de ser, de
conhecer, de amar divinos) de paternidade ou filiação ou espiração passiva.
A liberdade divina compatível com a necessidade absoluta (por não se tratar de uma
heterodeterminação) é diferente quando se trata do ato da vontade divina (do Seu amor) que tem as
criaturas por objeto. No Seu querer (amar) as criaturas, não existe em Deus aquela necessidade em
virtude da natureza. Neste caso, Deus tem, portanto, a liberdade do livre arbítrio: as criaturas são
contingentes; Deus podia querê-las ou não, bem como podia querer não estas, mas outras criaturas. Com
efeito, aquilo cujo princípio é a vontade como tal, aquilo que depende do querer como tal – não de um
querer “natural”26, isto é, determinado pela própria natureza – pode existir ou não, pode ser de um ou
outro modo, pode existir agora ou antes ou depois.
2) A liberdade d a s c r i a t u r a s
Considerando a liberdade das criaturas, é evidente que a situação delas é bem diferente da de Deus.
Todas elas têm uma essência (natureza) limitada, determinada por Deus. Apesar disso, existe nelas certa
indeterminação e, portanto, possibilidade de autodeterminação. Nas criaturas mais perfeitas, tal
indeterminação e consequente autodeterminação são maiores do que nas criaturas menos perfeitas.
Quanto menos perfeitas forem, tanto maior será certo determinismo.
Falamos propriamente de “liberdade” a partir das criaturas que são pessoas: homens e anjos. As
criaturas abaixo deles têm certa “liberdade” no sentido da existência de certa indeterminação, a qual vai
até aos átomos (compare-se tal indeterminação, p. ex., numa planta com aquela num animal e, então,
com aquela de um homem, o qual não é verdadeiramente “determinado” por seus instintos).
Nas pessoas criadas, a autodeterminação não pode ser total; sempre existe alguma hetero-
determinação. Portanto, a sua liberdade não pode ser total, como, ao invés, é em Deus.

25
Cf. S.Th. I, q. 18, a. 3: “não é determinado por outro quanto ao que lhe é natural”.
26
Cf. S.Th. I, q. 41, a. 2, ad 3.
Síntese teológica / 21

Como em Deus, também nas pessoas criadas existe


 a necessidade absoluta do amor para com Deus, ou seja, para com o bem-por-essência, o bem
como tal (que é o fim último da pessoa criada), e
 o livre arbítrio em relação às criaturas, isto é, aos bens particulares.
Deste modo, uma pessoa criada que tem a evidência imediata de Deus (visão imediata) ama-O
necessariamente, isto é, por determinação da natureza da sua vontade, que, afinal, é a determinação de
Deus Criador, por quem ela é causada (criada). Vendo a Deus, a pessoa criada pode, sim, amar a Deus
com a liberdade de coação, isto é, amá-l’O “espontaneamente”, “a partir de dentro”, em conformidade
com a natureza da sua vontade, não determinada “de fora” no sentido de não amar por alguma coação,
por uma imposição de fora. No entanto, como dissemos, a própria natureza da vontade criada (do anjo e
do homem) é determinada “de fora”, isto é, por Deus. Por conseguinte, também neste caso não se trata de
autodeterminação perfeita da pessoa criada.

As pessoas criadas são, portanto,


determinadas em sua vontade , pela própria natureza desta,
a querer o bem como tal (bem-por-essência), que, de fato, é Deus.

Querem-no necessariamente, pela necessidade absoluta ou necessidade em virtude da natureza; não se


podem autodeterminar quanto à adesão ao bem como tal. Quanto a isso não pode haver o livre arbítrio,
– a não ser que este bem não se lhes apresente com plena evidência, ou seja,
– a não ser que exista a “liberdade do juízo” a respeito do fim último, que é o bem como tal.27
Esta “liberdade do juízo” significa que o juízo não está necessariamente determinado a uma só coisa, ou
seja, que o juízo não é necessariamente este: “Deus é o meu fim, o bem que é meu fim último”. Este é o
caso, quando a pessoa vive ainda em “estado de caminhada” rumo à união perfeita com Deus na visão
imediata. É o caso de Deus “esconder”, em certa medida, a Sua bondade infinita, de modo que a Sua
força atrativa, como o bem infinito, sobre a vontade da pessoa criada não é tão forte que exista aquela
necessidade absoluta ou necessidade em virtude da própria natureza da vontade.

Quando a pessoa criada não vê com evidência a Deus (visão imediata),


ela pode, com sua vontade, escolher Deus,
pode autodeterminar-se a amar a Deus:
pode e deve decidir-se a amar a Deus;
pode amar a Deus com um amor formalmente livre28

(não apenas pela liberdade de coação, liberdade esta que é compatível com a força atrativa infinita de
Deus sobre a vontade criada, ou seja, com a necessidade absoluta). Do contrário, ama-O
necessariamente, provindo esta necessidade, em última análise, da própria natureza da pessoa criada,
natureza esta que é determinada por Deus, determinada “de fora”.
Quanto ao livre arbítrio com relação ao querer os bens criados, existe também uma diferença entre a
liberdade de Deus e a das criaturas. Deus os quer com absoluta liberdade, pois se Ele os quer não é por
necessidade alguma, pois Ele não precisa, absolutamente, de um bem criado para realizar-Se
perfeitamente, visto que esta perfeita “realização” já existe pela adesão plena e eterna ao bem-por-
essência, que é Ele mesmo. A pessoa criada, ao invés, não tem essa liberdade absoluta com relação aos
bens criados, uma vez que, em geral, precisa deles em vista do bem infinito a alcançar.

27
Cf. ID., De veritate, q. 24, a. 6.
28
Como já vimos, somente com esta liberdade a pessoa criada pode amar a Deus com o amor divino
(participação do ato de amor divino, dom gratuito de Deus) como sendo seu próprio amor com o qual responde ao
amor de Deus por ela.
Síntese teológica / 22

Resumindo:
As criaturas procedem de Deus Trindade, “na diversidade da essência”: distintas de Deus,
bem como distintas umas das outras, e em “estado de caminhada” para a união perfeita com
Deus e, em Deus, entre si. A distinção é para a união, uma união a exemplo da união divina
trinitária (união do Filho com o Pai no Espírito Santo).

Assim, o “caminho” das criaturas é


de Deus Trindade para Deus Trindade ,
e esse caminho lhes é aberto e se realiza concretamente
pela missão conjunta do Filho e do Espírito Santo.

As criaturas que são pessoas voltam para Deus pelos atos livres de amor a Ele, podendo
assim participar verdadeiramente do amor eterno do Filho ao Pai, que é a resposta ao amor do
Pai para com Ele. Pois esse amor livre da pessoa criada para com Deus, exatamente por ser
livre, é o amor divino (por participação) que a pessoa criada pode oferecer a Deus, em resposta
ao Seu amor e como um amor propriamente seu, embora seja dom gratuito de Deus à pessoa
criada.

3. O abuso da liberdade: a criatura afasta-se de Deus

O “estado de caminhada” é para as criaturas de natureza intelectual (pessoas) uma situação


de provação, com a possibilidade de abusar da liberdade, pecando.
Entre as criaturas puramente espirituais, os anjos, muitos pecaram (cf. Ap 12,4), rejeitando
o plano de Deus a respeito do caminho pelo qual os anjos deveriam alcançar a perfeição última
em Deus; rebelaram-se contra Ele. Esse caminho é a missão do Filho (encarnação) e do Espírito
Santo. O efeito do pecado dos anjos foi seu eterno afastamento de Deus, sendo eternamente (por
vontade própria) privados da comunhão com Deus, com a impossibilidade de realizarem a volta
para Deus.
Quando, então, Deus criou o homem (varão e mulher), este também abusou da sua
liberdade, sendo seduzido pelo anjo rebelde a duvidar da bondade de Deus e, por isso, a
apoderar-se por própria conta do bem que Deus parecia – assim foi a sugestão do espírito
tentador – não lhe querer dar. Este pecado trouxe consigo a privação da comunhão com Deus,
mas com a possibilidade de os homens (Adão e Eva e seus descendentes) alcançarem – pela
missão do Filho (encarnação redentora) – a perfeição última, isto é, sua união com Deus e em
Deus. Para isso era e é necessário que o homem, pelo arrependimento, se abra ao dom do
perdão divino. Deste modo, ao homem pecador é oferecida a possibilidade de “voltar” para
Deus; porém, é a partir de uma situação que não é meramente o estado de caminhada, mas do
estado de pecado, de afastamento de Deus.
Síntese teológica / 23

VI. A nossa relação pessoal (comunhão) com


cada uma das três Pessoas divinas

1. O conhecimento experimental e conceitual das Pessoas divinas 29


Através da revelação divina em e por Jesus Cristo e o envio do Espírito Santo, cada uma das
três Pessoas divinas – cada uma tendo uma personalidade própria, única, insubstituível – pode
ser conhecida por nós, em Sua distinção das outras duas Pessoas. Nós podemos relacionar-nos,
ter comunhão – relações interpessoais de conhecimento e amor – com cada uma das três pessoas
divinas. Como?

1) O conhecimento experimental das Pessoas divinas

Falando de modo genérico, devemos reconhecer que uma pessoa em sua singularidade
não se conhece por meio de conceitos, mas pela experiência.

Temos o conhecimento experimental de pessoas humanas. Esta experiência de outra pessoa


podemos traduzir num conjunto de conceitos, que, embora permanecendo inadequados com
relação à singularidade da pessoa, delineiam-na e exprimem uma parte talvez considerável dela.
Para fazer isso, é preciso partir do conhecimento conceitual que se pode ter da natureza humana
e também de muitas condições existenciais (o caráter, a psicogênese, etc.), bem como do
conhecimento de si mesmo.
Mas, tratando-se de uma Pessoa divina, pode-se fazer o mesmo? Em resposta à questão,
podemos dizer que a fé nos faz reconhecer que há duas possibilidades: 1) na vida futura, eterna;
2) na nossa vida terrena.
1) Estamos na expectativa de, após esta vida na terra, poder fazer a experiência perfeita que
um espírito criado pode ter da Pessoa divina: o conhecimento experimental que é a visão
imediata, na qual se unem, numa altura vertiginosa, o realismo do contato e a luminosidade do
olhar.30 Como experiência perfeita de um objeto totalmente transparente, a visão é plenamente
consciente, mas também totalmente inexprimível em conceitos (não é um conhecimento
conceitual), uma vez que o único “conceito” que poderia exprimi-la é o VERBO (2ª Pessoa
divina).
2) Na nossa vida terrena, vida na fé, não na visão, existe a possibilidade da experiência
mística das Pessoas divinas. Quanto a esta experiência mística, porém, existe uma separação
radical entre
 este conhecimento sublime, mas obscuro, num contato intensamente experimentado, mas
inexprimível,
 e a expressão verbal, conceitual, que o místico dela dá (quando consegue dá-la).
Certamente, as Pessoas divinas assim “tocadas” são aquelas mesmas das quais falam as
fórmulas da fé que orientaram o espírito do místico para Elas. Porém, nem as fórmulas da fé
nem as expressões teológicas elaboradas a partir das mesmas traduzem a própria experiência,
que se encontra além do seu âmbito. Quanto aos símbolos poéticos, eles evocam a experiência
mesma do místico sem fazer conhecer a realidade experimentada no que ela tem de próprio.

29
Reproduzimos em seguida o que expõe J.-H. NICOLAS, Sintesi dogmática, vol. I, Città del Vaticano 1991,
279ss.
30
A visão imediata é uma perfeita experiência das Pessoas divinas. Com efeito, nessa visão se une a mais
totalizante união intencional (conhecendo e amando) com a mais realística união real.
Síntese teológica / 24

2) O conhecimento conceitual das Pessoas divinas

Impõe-se a necessidade de poder


conhecer também conceitualmente as Pessoas divinas em Sua singularidade.

Esta necessidade vale tanto no nível da fé como também da reflexão teológica : as


características próprias das Pessoas divinas devem poder ser propostas em conceitos e expressas
em palavras e também em imagens. A própria experiência mística pressupõe a fé e, por
conseguinte, uma formulação pelo menos possível da fé, ou seja, um conhecimento intelectual
da verdade acreditada. A fé, por sua vez, como sabemos, é a acolhida da manifestação de Deus
aos homens (Revelação divina).
Daí se levanta a pergunta como as três Pessoas divinas Se manifestaram (ou puderam
manifestar-Se) de tal modo que pudéssemos ter um conhecimento conceitual d’Elas (o
conhecimento da fé). A esta pergunta está ligada a seguinte: como se formam os conceitos pelos
quais – tendo fé – conhecemos as Pessoas divinas, e qual é seu valor cognoscitivo? Para
entender isso, devemos saber que todos os nossos conceitos são formados a partir da
experiência da realidade criada. Por conseguinte, deve-se procurar nessa mesma realidade
criada o ponto de partida da elaboração de um conceito do que é próprio de cada uma das
Pessoas divinas.

2. A revelação do mistério trinitário de Deus na realidade criada e


na história humana

1) As manifestações das Pessoas divinas na história


Ora, a S. Escritura nos faz conhecer “manifestações” (missões) das Pessoas divinas e nos
fala de cada uma d’Elas em Sua singularidade, partindo exatamente destas manifestações.
Devemos, portanto, verificar se
entre as realidades criadas há e f e i t o s que podemos chamar “sobrenaturais” e
que nos permitem atingir as propriedades das Pessoas divinas.

Nesta altura da reflexão se levanta uma dificuldade ou objeção:


tais efeitos não são efetuados por uma ação própria de uma determinada Pessoa divina; é ação
comum às três Pessoas. As Pessoas agem sobre a realidade criada com uma só e mesma ação,
com um só e mesmo ato de conhecer e de querer.
Por outro lado, a consideração da unidade do principium quo31 da ação divina não deve
fazer-nos esquecer a distinção das Pessoas entre Si:

O Pai age como Pai, o Filho como Filho, e o Espírito Santo como Espírito Santo.

Não é a essência ou natureza divina como tal que age, mas são as Pessoas que agem em virtude
da mesma natureza divina. Assim,
– a natureza divina do Pai é aquilo pelo qual (ut quo) Ele age,
– enquanto Sua propriedade relacional (paternidade) é o modo como Ele age
divinamente.
O ato divino de conhecer e querer não é, deste modo, dividido nem é distinto em si, mas o modo
de agir das três Pessoas divinas é distinto, enquanto,
♦ na Pessoa do Pai, esse ato se identifica com a relação de paternidade,
31
O principium quo é o princípio através do qual o sujeito age; o sujeito é o principium quod, isto é: o que age
ou quem age.
Síntese teológica / 25

♦ na Pessoa do Filho, com a relação de filiação, e


♦ no Espírito Santo, com a relação de espiração passiva.32
Isto significa que, como em geral uma pessoa se manifesta pela sua ação, assim também

por essa única ação (ação comum)


o Pai, o Filho e o Espírito Santo Se manifestam,
cada um segundo a Sua propriedade pessoal,

todos os três inseparavelmente – o Pai, de fato, Se manifesta como Pai deste Filho e, com Ele,
princípio do Espírito –, mas ao mesmo tempo distintamente.

2) A manifestação das Pessoas divinas nos efeitos “naturais”


Ora, isto vale para todas as ações de Deus com relação às criaturas, ou seja, para todos os
efeitos, não apenas para os efeitos “sobrenaturais”; também a ação criadora e todas as ações que
estão estreitamente conexas a ela (a conservação, a moção) têm como princípio as três Pessoas
divinas.
Em que consiste então a distinção entre os dois tipos de efeitos? Por que os efeitos
“sobrenaturais” na história da salvação revelam as três Pessoas divinas e não o fazem os efeitos
“naturais”?
Para esclarecer isso, é preciso reconhecer que “manifestação” comporta uma dupla relação:
 ao mistério escondido que se manifesta;
 ao intelecto criado capaz de deixar-se conduzir ao mistério através do efeito que o
manifesta.
Ora, a primeira relação se encontra sempre nos efeitos da ação divina, uma vez que o princípio
eficiente destes efeitos é a Ss. Trindade. A segunda relação, ao invés, falta nos efeitos “naturais”
que não fazem o intelecto criado atingir Deus em Sua tripersonalidade; não colocam a pessoa
criada em comunicação com as Pessoas em Sua distinção.
No entanto, como tal, o efeito natural é capaz de manifestar as Pessoas divinas. O que falta
é a agudeza da inteligência criada para reconhecer esse valor manifestador. Se, por conseguinte,
o intelecto criado é capacitado, mediante a revelação e a fé, a conhecer o mistério das Pessoas
divinas, pode, retornando aos efeitos “naturais”, colher neles esse valor manifestador do mistério
divino trinitário.

32
Pai, Filho e Espírito Santo possuem (identificam-Se com) a mesma onipotência, sabedoria e bondade, mas
“com outra relação” (S.Th. I, q. 42, a.6, ad 3). São Tomás dá este interessante e importante esclarecimento: “assim
como a mesma essência que no Pai é a paternidade, no Filho é a filiação, é a mesma potência pela qual o Pai gera,
e o Filho é gerado. Portanto, fica claro que, tudo o que o Pai pode, o Filho pode. Daí não se deduz, entretanto, que o
Filho possa gerar: seria ainda passar indevidamente do absoluto (quid) para o relativo (ad aliquid), pois em Deus a
geração significa relação. Portanto, o Filho possui a mesma onipotência que o Pai, com uma relação diferente: o
Pai a possui como aquele que dá; o que se manifesta nas palavras: Ele pode gerar. De seu lado, o Filho a possui
como quem recebe: e isto é expresso nos termos: Ele pode ser gerado.” Assim também vale: o Pai possui a força de
criar (virtus creandi) como princípio sem princípio (o Pai não procede de ninguém), o Filho a possui como princípio
que procede do princípio sem princípio (o Filho procede do Pai), e o Espírito Santo, como princípio que procede de
ambos (o Espírito Santo procede de ambas as Pessoas, isto é, do Pai e do Filho). Portanto, as Pessoas divinas agem
em conformidade com Suas propriedades pessoais e Sua distinção pessoal. O principium quod das obras “ad extra”
são as Pessoas divinas, enquanto possuem a essência divina – em conformidade com a ordem das Suas
processões – de um modo distinto.
Síntese teológica / 26

3) O que é característico dos efeitos “sobrenaturais”


Retornemos, então, àqueles efeitos “sobrenaturais”, manifestadores das Pessoas divinas.
Quanto a eles, podemos constatar o seguinte:

Aquilo que caracteriza os “efeitos sobrenaturais” é


o conjunto de novas relações que a divina ação transformadora33
estabelece entre a humanidade34 e Deus Trindade.

Deste ponto de vista, existe uma diferença fundamental – no que diz respeito à teologia trinitária
– entre os efeitos “naturais” e os “sobrenaturais”.

Pelos efeitos sobrenaturais, as pessoas humanas são colocadas


em relação com cada uma das Pessoas divinas em Sua própria distinção,
embora não separadamente.

Cada Pessoa divina pode ser conhecida e amada em Sua propriedade pessoal, mas não
separadamente das outras duas, uma vez que estas estão nela inseparavelmente, em virtude da
pericorese.
Os eventos “salvíficos” se caracterizam por essas novas relações. Estas relações, porém,
não seriam nada de real se não tivessem seu fundamento em transformações (mudanças)
ontológicas reais causadas eficazmente por Deus35 (Pai e Filho e Espírito Santo); vejam-se as
transformações acima indicadas em conexão com a nova presença das Pessoas do Filho e do
Espírito Santo (as duas missões divinas).
Tais transformações são efetuadas pelas três Pessoas, não separadamente nem com três
ações diversas, mas com um só e mesmo ato, porém – como já vimos – de modo próprio de cada
uma das Pessoas divinas. Reflitamos ainda sobre isso.

4) Aprofundamento da reflexão sobre a manifestação de Deus Trindade na criação


Deus Uno e Trino como Criador
O princípio de “um só e mesmo ato, mas de modo próprio da Pessoa”, vale já para a criação
e conservação das criaturas (não apenas para os efeitos sobrenaturais) e se exprime com a
fórmula tradicional:

Deus Pai cria por meio do Filho (Verbo), no Espírito Santo.36

33
A graça (criada) é o efeito desta ação.
34
A humanidade considerada em sua totalidade ou em cada uma das pessoas que fazem parte dela.
35
Deus é quem realiza a salvação, quem une as pessoas humanas consigo. Se não houvesse essas
transformações realizadas por Deus, a salvação não seria realizada por Deus, mas cada um se salvaria, se libertaria
a si mesmo, propondo-se objetivos superiores e efetivamente tendendo a eles somente com suas próprias forças, um
tanto assim como se diria que Fulano se libertou do vício ou da angústia, etc., através da ciência, da arte ou do
amor.
36
Deve-se aqui pensar no que foi dito acima: certa continuidade entre as processões intratrinitárias e as
extratrinitárias.
Quando se diz: “Deus Pai cria”, aponta-se para a propriedade do Pai de Ele, na Divindade, ser princípio das
outras duas Pessoas divinas, sendo Ele mesmo sem princípio (princípio sem princípio, origem sem origem). Por
isso se atribui a Ele simplesmente o ato de criar (“o Pai cria”).
Quando se diz que o Pai cria “pelo Filho (Verbo)”, aponta-se para a propriedade do Filho de ser princípio do
princípio ou origem da origem: Ele é origem de outra Pessoa divina, isto é, do Espírito Santo, mas é isso como a
Pessoa divina (o “Filho”) que tem origem no Pai: é origem da origem. Por isso, Ele tem do Pai o ser origem. Daí: se
o Pai cria, Ele cria “pelo” Filho.
Síntese teológica / 27

Pode-se recordar a imagem usada por Sto. Irineu: o Filho e o Espírito Santo são “as duas mãos
de Deus”.
Mas, o que significa a atribuição diversificada do ato criador às três Pessoas divinas (o Pai
cria por meio do Filho, no Espírito Santo)? São três que agem, mas os três são um só agente. No
entanto, Deus cria com Sua inteligência e Sua vontade. São atos que pertencem conjuntamente
às três Pessoas. Porém, a dicção contida na infinita intelecção divina e a espiração contida no
infinito querer distinguem as Pessoas entre Si. Por esta razão – digamo-lo já – todos os atributos
divinos que dizem respeito ao poder são referidos ao Pai; aqueles atributos que dizem respeito à
intelecção, são atribuídos ao Filho (Verbo), enquanto os atributos a respeito da vontade (amor),
ao Espírito Santo.
A imagem da Ss. Trindade nas criaturas
Se a ação criadora tem por princípio as três Pessoas divinas em Sua distinção, a criatura
como tal deve referir-se a Deus que é Trindade, e isto não apenas na linha da causalidade
eficiente, mas também naquela da causalidade formal, que depende estreitamente da causalidade
eficiente.

Não é possível que a Ss. Trindade não tenha imprimido o Seu selo na criatura.
Disso resulta que o conhecimento, por revelação, do mistério de Deus repercute sobre o
nosso conhecimento da criatura, fazendo-nos descobrir nela um aspecto insuspeitado que a
assemelha a Deus não apenas na linha do ser, do bem e do uno (os transcendentais), mas
também naquilo que esconde no Seu mistério a respeito das processões intratrinitárias, portanto
da Sua tri-personalidade.37 Este mistério é o do ser no ponto infinito de perfeição.

Quando se diz que o Pai cria “no Espírito Santo”, aponta-se para a propriedade do Espírito Santo de Ele, na
Divindade, não ser origem de outra Pessoa divina. Por isso, embora o Espírito Santo seja também origem das
criaturas (cf. o hino “Veni Creator Spiritus”), não se diz que o Pai cria “pelo” Espírito Santo, mas “no” Espírito
Santo. A posição do Espírito Santo na vida intratrinitária é diferente da do Filho, sendo caracterizada exatamente
pelo fato de que d’Ele não procede outra Pessoa divina, mas – suposta a vontade divina de criar – procedem as
criaturas.
37
Quanto a esse selo da Ss. Trindade nas criaturas, São Tomás escreve: “em todas as criaturas encontra-se uma
representação da Trindade à maneira de vestígio, na medida em que se encontra nelas alguma coisa que se deve
necessariamente referir às Pessoas divinas como à sua causa” (S.Th. I, q. 45, a. 7). A seguir, São Tomás indica
estas tríades na criação: ser, forma, referência a algo distinto (ordem); número, peso, medida; “o que é
constituído”, “o que é distinguido”, “o que é condizente”. E a explicação: “De fato, toda criatura subsiste em seu
ser, possui uma forma que determina sua espécie e está ordenada a algo distinto [relação].
Enquanto  substância criada, ela representa sua causa e seu princípio, e assim mostra a pessoa do Pai que é
um princípio que não tem princípio.
Enquanto ela tem certa  forma e espécie, representa o Verbo, pois a forma da obra de arte provém da
concepção do artífice.
Enquanto  ordenado a outros, representa o Espírito Santo enquanto Amor, pois a ordenação de um efeito a
algo distinto provém da vontade do Criador.
Por isso Agostinho diz que se encontra algum vestígio da Trindade em cada criatura, na medida em que ela é
algo uno, tem a forma de uma espécie e certa ordem.
É também a isso que se reduz a tríade número, peso e medida, da qual fala o livro da Sabedoria, pois a medida
se refere à substância de uma coisa limitada por seus princípios, o número à espécie, o peso à ordem.
A isso também se reduz outra tríade proposta por Agostinho: ... O que é constituído, o que é distinguido e o
que é condizente. De fato, uma coisa é constituída por sua substância, é distinguida por sua forma e é condizente
por sua ordem.”
De um modo diferente, pode-se pensar em certo reflexo do mistério trinitário de Deus ao considerar o fato que
o universo das criaturas consta de três diferentes tipos de criaturas: criação puramente material, homens, anjos
(puros espíritos). Igualmente, existe um reflexo do mistério trinitário de Deus no mundo dos santos Anjos. É o que
se reconhece quando se considera as três hierarquias, das quais cada uma é constituída por três coros, de modo que
são nove coros (cf. particularmente a doutrina de São Boaventura a este respeito).
Síntese teológica / 28

A criação, portanto, traz em si um segredo de semelhança com Deus Trindade. Pode-se


dizer, por conseguinte, que Deus, revelando-Se, revela ao homem o universo criado e,
sobretudo, a si mesmo.
Quanto à manifestação do mistério divino trinitário na criatura, devemos dizer: sem a
revelação, o selo da Ss. Trindade no universo criado, e especialmente no homem, não pode
aparecer e, por conseguinte, não pode servir de ponto de partida para a razão, de modo que
possa ser levada a descobrir o mistério de Deus (a Trindade). Igualmente se pode dizer que,
revelando-Se ao homem, Deus lhe revelou o que é ele mesmo em profundidade e o que é “ser
criado” (ser criatura).
Pode-se, então, perguntar: que interesse tem para nós descobrir esse selo depois que o
mistério da Ss. Trindade nos foi revelado de modo muito mais completo do que é manifestado
pelas criaturas? Na verdade, este “interesse” é imenso. De fato, essa semelhança da Santíssima
Trindade, impressa nos seres com o próprio ato criador, é a condição que torna possível a
revelação. Isto se vê claramente considerando o seguinte: se os conceitos que elaboramos a
partir das criaturas não tivessem alguma abertura ao mistério trinitário, não seriam utilizáveis
por parte de Deus revelador; e esta revelação divina não pode ser feita a não ser por meio
daqueles conceitos (e das palavras que os exprimem).
Deste modo, é claro que a revelação sobrenatural na história está em continuidade com
aquela “revelação” ou “manifestação” de Deus que é a criação.
Reconhecemos, portanto, que, em virtude do ato criador, as três Pessoas divinas estão
presentes no íntimo do ser criado e especialmente do espírito criado. É uma presença latente que
não permite descobrir o mistério das processões intratrinitárias a partir da sua exteriorização nas
criaturas, mas que torna possível uma linguagem inteligível para o homem, na qual e por meio
da qual lhe será revelado esse mistério, segundo o beneplácito de Deus.

3. A “apropriação” dos atributos como meio de conhecer conceitualmente


as Pessoas divinas

Na Sagrada Escritura e depois nos Símbolos de fé, na Tradição, constantemente alguns


atributos divinos ou certas obras particulares são atribuídos a uma Pessoa divina singularmente:
 a criação é atribuída ao Pai, bem como o poder e a glória;
 a obra da salvação, ao Filho38; d’Ele se diz também que sustenta o mundo com Sua palavra
(Hb 1,3);
 a santidade e a santificação, a “divinização”, é atribuída ao Espírito Santo.
Esta atribuição não pode significar que, p. ex., o poder é só do Pai e não das outras Pessoas
divinas.

A “apropriação” significa o procedimento lógico de


atribuir como próprio a uma Pessoa
aquilo que, na realidade, não é somente desta Pessoa, mas de todas as três.

Uma vez que os conceitos que usamos para conhecer Deus se referem aos atributos
essenciais, os quais são comuns às três Pessoas, não podemos usá-los – e, antes disso, Deus
revelador não os pode usar – para designar e de alguma maneira exprimir a propriedade de uma
Pessoa, a não ser “apropriando”-os a esta Pessoa; quer dizer: aplicando-os a esta Pessoa em
Sua singularidade de modo que o conceito assim atribuído se torne “próprio”. É uma operação

38
Aqui, porém, se trata realmente de algo de próprio, uma vez que somente o Filho Se encarnou, e na obra da
salvação existe o que é próprio do Filho encarnado.
Síntese teológica / 29

lógica39. Ora, para que ela não seja arbitrária (e, portanto, puramente verbal, sem algum alcance
real) é necessário que de alguma maneira tenha como base a propriedade real, que distingue uma
Pessoa das outras duas, – que, portanto, se baseie no que é realmente próprio da Pessoa.
Esta propriedade é desconhecida em si mesma, mas nos é indicada suficientemente pelo
modo da processão da Pessoa40 à qual é feita a atribuição – ou, se se trata da primeira Pessoa
divina, pelo fato que ela não procede de nenhuma outra Pessoa, enquanto as outras duas
procedem dela – para justificar a “apropriação” e conferir-lhe um valor noético, isto é, a
capacidade de nos dar a conhecer algo.

Graças a esta apropriação,


se não posso conhecer diretamente o que é próprio da Pessoa,
posso conhecê-lo i n d i r e t a m e n t e
através do atributo essencial empregado na apropriação.

Deste modo, me dá certo conhecimento do que é cada Pessoa em Sua distinção, e assim posso
exprimi-lo, embora de uma maneira muito imperfeita.
 Os conceitos que designam o poder divino, a sua característica de ser fonte do ser e da
vida, são atribuídos ao Pai, por causa da semelhança misteriosa que existe entre essa
característica mais manifesta – que, porém, pertence às três Pessoas – e a característica pessoal
do Pai de ser princípio das outras Pessoas, de ser “plenitudo fontalis”.41
 Todos os conceitos que se referem aos atributos intelectuais são atribuídos à segunda
Pessoa divina, não porque lhe sejam próprios, mas porque evocam, em virtude da semelhança, a
característica escondida desta Pessoa que procede segundo a intelecção.

39
É a designação “por antonomásia”, como quando se diz: “o orador romano” para indicar Cícero.
40
Os nomes próprios das Pessoas divinas são nomes relativos , nomes que indicam, de alguma maneira, uma
relação de origem: “pai” (paternidade), “filho” (filiação), “palavra” (daí: relação a quem “diz” esta palavra),
“imagem” (daí: relação àquilo de que é a representação intelectual, ou seja, relação de origem àquele que produz
esta imagem [conceito]), “espírito” (no sentido: “o que é soprado, espirado”, o “sopro”; daí: relação de origem ao
que sopra), “amor procedente” (somente como amor “procedente” o nome “amor” é nome próprio do Espírito
Santo; daí a relação de origem à pessoa (às pessoas) da qual procede), “dom” (relação de origem a quem dá este
dom, à pessoa da qual procede o dom).
Tais nomes relativos, porém, nos indicam que o Pai não é o Filho, e que o Espírito Santo não é o Pai nem o
Filho, como nos indicam que tal pessoa é origem da outra, mas não nos dizem o que é a pessoa (“pai” indica
simplesmente que tal indivíduo – que também pode ser um animal – é, por geração, origem de outro ser vivo da
mesma natureza).
41
Na apropriação não se trata de um simples jogo de palavras, mas de um meio para atingir conceitualmente
o que é próprio de cada uma das três Pessoas. Assim, o único ato criador, enquanto procede do poder divino é
atribuído ao Pai; enquanto procede da intelecção divina, ao Filho, e enquanto procede do querer divino (do amor),
ao Espírito Santo. Isto, no entanto, não significa que as Pessoas dêem três contribuições distintas para esse ato (o
ato não é dividido entre as três Pessoas), mas se trata de um meio para apreender na origem deste único ato as três
Pessoas distintas.
De modo particular, a criação é atribuída à primeira Pessoa divina, o Pai. Com efeito, se o Filho e o Espírito
Santo são com o Pai o único Criador, eles têm do Pai a natureza divina indivisível, pela qual são “o Criador”. De um
modo análogo, pode-se dizer que o Espírito Santo procede do Pai por meio do Filho, e o sentido desta afirmação é este: se o Pai
e o Filho são juntos o único “spirator” (“soprador”), o Filho tem do Pai, com a natureza divina, a propriedade em virtude da
qual é princípio do Espírito Santo.
A primeira Pessoa divina, o Pai, é chamado “o Criador” como é chamado “Deus” (ho Theós), não para
reservar este título unicamente a Ele – pois segundo a Revelação divina também se pode e deve aplicar às outras
duas Pessoas –, mas porque a Revelação não poderia ser feita a não ser partindo da primeira Pessoa, princípio sem
princípio, à qual o título deve ser dado antes das outras duas Pessoas, enquanto não o tem de outrem, mas o
comunica às outras duas Pessoas por meio das processões.
Síntese teológica / 30

 O mesmo vale da terceira Pessoa quanto aos conceitos que se referem aos atributos de
bondade, de amor, de santidade, uma vez que o Espírito Santo procede do ato de amor.42
Trata-se, portanto, de “apropriação” e não de atribuir um atributo exclusivamente a uma das
Pessoas divinas. Por exemplo, não posso atribuir a santidade ao Espírito Santo, como somente
Ele fosse santo, e o Pai e o Filho não o fossem. A questão teológica da apropriação não é tanto
aquela de conciliar o conceito bíblico de Deus com os conceitos da nossa razão, mas antes de
ver como a revelação de Jesus Cristo não contradiz a revelação feita a Moisés, mas, antes, a
completa e a leva a consumação. Haveria contradição se um dos atributos de JHWH pertencesse
como próprio a uma só das três Pessoas divinas.
Mas com a apropriação se pode realmente chegar a ter um conhecimento conceitual do que
é próprio das Pessoas divinas? Não se trata simplesmente de um modo de se exprimir?
Para entender que não é isso, é preciso considerar o seguinte: entre as palavras (e as
proposições, formadas de palavras) e a realidade existe a mediação dos conceitos. Na realidade
divina, sem dúvida, todos os atributos se identificam entre si na transcendente substância divina,
e esta substância se identifica com cada uma das Pessoas. Os conceitos, porém, com os quais
atingimos os diversos atributos (muito imperfeitamente, mas verdadeiramente) não são idênticos
e não podem ser trocados entre si. É no nível dos conceitos que vale aquela “semelhança” ou,
para exprimirmo-nos melhor, aquela “afinidade” devido à qual conseguimos aproximar-nos,
mediante os conceitos essências, das propriedades pessoais.
O trajeto para chegarmos a isso é este:
1) passagem das perfeições criadas aos atributos divinos essenciais;
2) passagem dos atributos essenciais ao que é próprio das Pessoas divinas.
Quanto a este segundo passo: O conceito atribuído a uma determinada Pessoa divina não
exprime o que esta Pessoa tem de próprio e distinto, mas orienta o espírito para esta
propriedade misteriosa, pela qual esta Pessoa Se distingue das outras duas. Essas atribuições
não são vazias e suas expressões verbais não são de alguma maneira intercambiáveis.

A afinidade entre os atributos essenciais e as propriedades das Pessoas,


afinidade sobre a qual as atribuições se baseiam,
é objetiva, embora se encontre no nível dos conceitos.

Conclusão
As três Pessoas divinas Se manifestam e Se doam a nós para uma comunhão (nossa
comunhão com as três Pessoas juntas e com cada uma singularmente, conforme a
inseparabilidade e distinção das Pessoas). São relações interpessoais, conhecendo e amando
cada uma das Pessoas em Sua singularidade. O modo deste conhecimento é a contemplação
mística (na expectativa da visão na eternidade).

42
Acrescentamos aqui as considerações que São Tomás oferece a respeito das apropriações (cf. S.Th. I, q. 39,
a. 8). “Nosso intelecto é levado ao conhecimento de Deus a partir das criaturas. É preciso, pois, que considere Deus
segundo o modo que assume a partir das criaturas. Ora, quando consideramos uma criatura, quatro coisas nos
ocorrem sucessivamente:
1) primeiro, considera-se a coisa  em si mesma, e absolutamente, como um certo ente.
2) Depois, ela é considerada como  una.
3) Em seguida, considera-se o seu  poder de agir e de causar;
4) finalmente, considera-se segundo  a relação que tem com seus efeitos.
Essa quádrupla consideração, portanto, nos ocorre a respeito de Deus.
Eis, portanto, as apropriações segundo essa quádrupla consideração: 1) eternidade, beleza, gozo; 2) unidade,
igualdade, harmonia (ou união); 3) poder, sabedoria, bondade; 4) d’Ele, por Ele, n’Ele.
Síntese teológica / 31

Mas a própria contemplação mística, que é um ato de fé, pressupõe quer o ensinamento
divino que é a Revelação, quer esse conhecimento conceitual do mistério que é a f é . Ora,
podemos constatar:

A apropriação é o único meio que pode ser usado


seja pelo ensinamento divino ao homem, seja no conhecimento conceitual humano.

Trata-se apenas de uma aproximação noética, é verdade, mas ela abre o acesso ao mistério de
cada uma das três Pessoas, que se desvela na contemplação.

4. A nossa união com cada uma das três Pessoas divinas:


as três “correntes” de graça

Reflitamos ainda sobre essa nossa união com cada uma das três Pessoas divinas, ou seja,
em outras palavras, sobre a inabitação das três Pessoas em nós, que ainda nos encontramos na
caminhada da fé, não já na visão. Esta é uma ulterior reflexão sobre a missão (invisível) do
Espírito Santo e uma reflexão sobre a graça (criada).

1) A união com cada uma das Pessoas divinas


Sabemos que as Pessoas divinas estão presentes na pessoa criada (e em todos os seres
criados) pela onipresença divina (presença ontológica; relação ontológica da criatura ao
Criador), isto é, como causa da existência das criaturas e da sua conservação na existência.
Mas as Pessoas divinas podem estar presentes também como causa da graça santificante, e
assim é que Se nos doam para uma comunhão interpessoal (presença espiritual, isto é, de
conhecimento e amor) com cada uma delas singularmente (em Sua distinção, portanto, das
outras duas, embora nunca separada das outras). Deste modo, portanto, a Pessoa divina está em
nós como o conhecido naquele que conhece e o amado naquele que ama.

Nas condições da fé e não da visão imediata,


é somente através do amor
que a Pessoa divina pode estar em nós como o conhecido naquele que conhece,
sendo este um conhecimento que comporta uma união r e a l ,
isto é, um conhecimento e x p e r i m e n t a l (experiência da Pessoa divina).

Somente o amor pode fazer com que o conhecimento se torne experimental, e o pode fazer
penetrando-o. O amor, de fato, torna a pessoa amante conatural à pessoa amada; o amor divino
(participação do amor com que Deus ama) torna conatural o espírito criado com Deus, sem
abolir a infinita distância ontológica que os separa, mas estabelecendo uma comunhão no bem43
(tendo como base o fato de que o homem é criado à imagem de Deus).
Por isso, na pessoa que crê e ama Deus, é possível que a sua consciência de si se torne
uma experiência das Pessoas divinas, isto é, portanto, uma experiência mediata, no sentido de
que aquilo que é diretamente experimentado é o próprio espírito criado, mas nele e por meio
dele o conhecimento desemboca nas Pessoas divinas, presentes por Sua ação (como causa da
graça).
Assim, as três Pessoas Se doam à pessoa criada: o Pai Se doa enviando o Filho e o Espírito
Santo ou: através do Filho, no Espírito Santo; o Filho Se doa como enviado pelo Pai e enviando

43
Comunhão no bem, falando em geral, significa que dois seres são um na ordem do bem, porque o bem lhes é
comum, buscado em comum para ser possuído em comum.
Síntese teológica / 32

o Espírito Santo; e o Espírito Santo Se doa como enviado pelo Pai e pelo Filho. No Espírito
Santo Se doam, portanto, também o Filho e o Pai.
Como pode ser isso? Ora, se a “vinda” das Pessoas divinas à pessoa criada se realiza através
da conaturalidade do amor (a criatura que experimenta as Pessoas divinas através da
experiência do efeito conatural a Elas), procurar a maneira como cada Pessoa divina em Sua
distinção venha à pessoa criada, significa ver
como o espírito criado possa ser feito semelhante a cada Pessoa divina
naquilo que Ela tem de próprio.

Ser assemelhado à Pessoa divina significa uma transformação. A transformação44 na pessoa


criada que, para isso, é causada pelo Espírito Santo (ação comum às três Pessoas, mas agindo
cada uma do modo próprio Seu – a mesma ação “com outra relação), chamamos de
“graça santificante” ou também
“participação da natureza divina” (cf. 2 Pd 1,4: theías koinōnoì phýseōs).

Ora, a natureza divina é certamente simples e uma só e, por isso, a graça como participação
da natureza divina também é, em si, uma só. Na alma humana, porém, pode-se distinguir
(distinção real!)
♦ entre o ser (actus primus, actus essendi) e o agir (actus secundus, actus operandi);
♦ entre a substância e as potências (potentiae activae);
♦ e, nas potências, entre o intelecto e a vontade.
Assim, a mencionada transformação da alma tem também três efeitos distintos entre si:
 a transformação do ser (substância, vida): é a graça santificante (em sentido estrito);
 a transformação da potência cognoscitiva (intelecto, razão): é o conhecimento
sapiencial;
 a transformação da potência volitiva (vontade): é o amor.45

 Assimilação ao PAI através da transformação do ser como vida


A transformação fundamental é aquela do ser da alma. Aqui precisa considerar que o ser
pode ser entendido como aquela realidade que constitui um determinado ser como tal, isto é, em
sua distinção dos outros seres como p. ex. a substância humana, entendida como a essência
realizada do homem em sua distinção dos animais ou dos anjos ou também de Deus. A
participação da natureza divina não é a transformação do ser neste sentido, uma vez que o
homem fica homem, não se torna Deus, mas é “divinizado”, e isso não apenas em suas
potências.
O ser é realmente transformado, e o é exatamente enquanto é o princípio de atos vitais,
enquanto, portanto, é vida. De fato, como esclarece São Tomás, o conceito e a palavra “vida” se
referem primariamente e fundamentalmente a esse ser, isto é, ao ser de um vivente. 46 “Vida”
44
Quanto à “transformação”, deve-se dizer que esta palavra pode significar tanto o ato de transformar quanto
também o efeito deste ato. A graça habitual é a transformação divinizante da alma como resultado do ato
transformador. Mas, falando de “graça”, pode-se também ter em mente o ato divino. “Graça” – como algo
sobrenatural – é, portanto, sempre de alguma maneira uma “transformação”.
45
Na terminologia escolástica, a graça santificante é um “habitus entitativus”, enquanto o aperfeiçoamento
divinizante da potência cognoscitiva e volitiva é “habitus operativus”.
46
Cf. S.Th. I, q. 18, a. 2 c: “vitae nomen ... est impositum ... ad significandam substantiam cui convenit
secundum suam naturam movere seipsam, vel agere se quocumque modo ad operationem. Et secundum hoc, vivere
nihil aliud est quam esse in tali natura ... Quandoque tamen vita sumitur minus proprie pro operationibus vitae, a
quibus nomen vitae assumitur”.
Síntese teológica / 33

significa, portanto, o actus vivendi, como “ser” significa o actus essendi. O ser de um vivente é
vida, e, exatamente, não apenas e antes de tudo como actus secundus (operationes vitæ, atos
vitais), mas propriamente como actus primus (vita, actus essendi como actus vivendi). A graça
santificante é, por conseguinte, uma transformação divinizante da minha v i d a .
Esta transformação fundamental de minha vida, que me faz um vivente de vida divina (por
participação), dá-me uma semelhança com a Pessoa do PAI, enquanto Ele é a origem eterna do
FILHO, do VERBO (como “fruto” da intelecção do Pai), bem como a origem do ESPÍRITO SANTO,
o AMOR (como a Pessoa que procede do ato de amor do Pai e do Filho).
 Assimilação ao FILHO, à PALAVRA, através da transformação da potência cognoscitiva
A transformação divinizante da minha potência cognoscitiva me dá uma semelhança com a
Pessoa do FILHO, enquanto Ele é a PALAVRA do Pai, a expressão pessoal da intelecção do Pai.
Mas, uma vez que a PALAVRA eterna é a PALAVRA que espira o AMOR (Espírito Santo) e é um
com este AMOR, essa transformação da minha potência cognoscitiva não pode ser um
conhecimento sem amor; deve, portanto ser um conhecimento sapiencial.47
Uma vez que o conhecimento intelectual (de anjos e homens) se realiza com conceitos, e o
conceito é no homem a “palavra da mente” (verbum mentis), podemos falar de uma assimilação
da minha palavra à PALAVRA eterna.
 Assimilação ao ESPÍRITO SANTO, ao AMOR, através da transformação da potência
volitiva (amor)
A transformação divinizante da minha potência volitiva (de amar) dá-me uma semelhança
com a Pessoa do ESPÍRITO SANTO, enquanto Ele é o AMOR procedente do Pai e do Filho, isto é,
a expressão pessoal do amor do Pai e do Filho. Meu amor é assim divinizado, assemelhado ao
divino AMOR-em-Pessoa.48

Esta tríplice assimilação é realmente uma assimilação à Pessoa divina em Sua distinção
pessoal das outras duas Pessoas. Trata-se de uma semelhança com aquilo que é próprio da
respectiva Pessoa divina. Na teologia escolástica, a causalidade sob o aspecto da semelhança é
chamada “causalitas exemplaris”, a causalidade do protótipo, do modelo.
 O PAI é a causa exemplaris da graça, enquanto esta é em mim princípio de atividade vital
divina (“participação da natureza divina” como “habitus entitativus”, como
transformação do meu ser, da minha vida, no sentido que esta recebe uma qualidade
divinizante).49
 A PALAVRA é a causa exemplaris da graça, enquanto esta é iluminadora.
 O ESPÍRITO SANTO é a causa exemplaris da graça, enquanto esta é inflamadora,
acendendo o amor.
No que diz respeito à causalitas exemplaris encontramo-nos, por conseguinte, além da
apropriação. “Assemelhada” a Deus dinamicamente pela graça que a capacita a essas operações
das quais são objeto as Pessoas divinas em Sua distinção, a pessoa criada está assemelhada a
47
Neste sentido podemos ler a afirmação do Apóstolo João: quem não ama Deus não O conhece (cf. 1 Jo 4,8).
48
São Tomás (S.Th. I, q. 43, a. 5, ad 2) diz: “a graça torna a alma conforme a Deus. Assim, para que uma
Pessoa divina seja enviada a alguém pela graça, é preciso que a alma seja assimilada à Pessoa que é enviada por
algum dom da graça. E porque o Espírito Santo é Amor, é o dom da caridade que assimila a alma ao Espírito Santo.
Por isso, é pelo dom da caridade que se considera a missão do Espírito Santo.”
49
“Existe, portanto, uma assimilação da alma ao Pai por meio da graça. A graça a opera sob aquele aspecto em
que ela é, na fonte de todas as operações espirituais, o princípio vital que faz brotar estas operações das
profundezas da pessoa da qual toma posse, fazendo assim que estas sejam suas: enquanto ela é este habitus
entitativus onde têm suas raízes os habitus de fé, de esperança e de caridade, pelos quais se realizam a iluminação
do intelecto e o fervor do coração” (NICOLAS, Sintesi dogmatica, 324).
Síntese teológica / 34

cada uma das Pessoas divinas, uma vez que foi capacitada a conhecê-la e amá-la naquilo que Ela
tem de próprio.
Pelo amor sobrenatural, a alma é feita conatural, realmente configurada, assemelhada
distintamente a cada Pessoa divina. Experimentando-se assim configurada (experiência não
natural, mas mística) em seu espírito, a pessoa criada pode colher como objeto de experiência as
Pessoas naquilo que cada uma tem de próprio.
É diferente quando se trata do ato de efetuar (causalitas efficiens) a tríplice semelhança.
Este ato é apropriado ao Espírito Santo, e isto certamente com muita razão, sendo Ele o divino
AMOR-em-Pessoa. A razão da atribuição é, portanto, esta “propriedade pessoal” da terceira
Pessoa divina.
Conclusão
Deus Uno e Trino comunica-Se a Si mesmo à pessoa criada, e exatamente não apenas no
mistério da Sua unidade indivisível, mas também e propriamente no mistério da Sua distinção
em três Pessoas, de modo que se faz possível uma comunhão interpessoal da pessoa com
cada uma das três Pessoas divinas (cada uma em Sua distinção pessoal e ao mesmo tempo
unidade indivisível com as outras duas), uma relação de conhecimento e amor, um
“experimentar a Pessoa divina”, como diz São Tomás50. Isto se faz através do amor divino,
que transforma o ser do espírito criado, segundo a explicação dada, e esta transformação, ou
seja, o resultado do ato de transformar chama-se a “graça divina”.

2) As três “correntes de graça”


Nas orações da Igreja sempre de novo se fala de uma “efusão” ou “infusão” da graça.51 Isto
mostra bem que a graça não se deve entender apenas como o dom que é Deus mesmo (graça
incriada), nem apenas como o amor benevolente de Deus, mas também como uma realidade
distinta de Deus e do Seu agir, realidade esta que nos é doada por Ele: Deus é a origem da graça,
e a graça está em nós como uma realidade criada (graça criada).
Sem dúvida, a metáfora da “efusão” ou “infusão” e, por conseguinte, da “corrente” de graça
tem também seu lado fraco, enquanto poderia eventualmente induzir a imaginar-se a graça como
algo consistente em si (uma “coisa”, como a água ou outro líquido) que provém de Deus e chega
até nós. Este perigo, porém, pode facilmente ser evitado; não é tão grande que pudesse
desaconselhar essa linguagem de “efundir”, “infundir” ou “corrente de graça”. Apenas deve-se
ter a consciência de que a graça é causada por Deus na nossa alma como uma transformação
divinizante do meu ser e agir.52
Neste modo figurativo de falar, a expressão “corrente” ou “correntes” é verdadeiramente
uma expressão idônea. Ela indica, com efeito, que o ato de dar a graça – o causar a
transformação divinizante – é algo contínuo. Certamente não é assim que Deus “infunde” a
graça como se derrama água num recipiente e, então, este recipiente está cheio de água e não é
preciso fazer nada para que água continue a estar no recipiente. Com efeito, a transformação
sobrenatural da nossa alma precisa continuamente ser mantida por Deus, assim como nós como

50
S.Th. I, q. 43, a. 3: “potestatem fruendi divina persona”; ibid., ad 1: “ut ipsa divina persona fruatur”.
51
Como exemplo pode servir a Oração do dia do quarto domingo de Advento: “Gratiam tuam, quæsumus,
Domine, mentibus nostris infunde...”. Fala-se também de virtudes “infusas” (cf. Cat. 1813).
52
O agir è transformado através da transformação sobrenatural dos princípios da ação, isto é, das potências
ativas.
Síntese teológica / 35

criaturas, recebemos de Deus continuamente o nosso ser (esse, actus essendi).53 Quando falamos
de corrente de graça, é óbvio que falamos da graça habitual.

3) Conclusão: as “correntes de graça” da vida, da palavra e do amor


Daquilo que vimos até agora podemos concluir que, com razão e de um modo idôneo, se
pode falar de uma tríplice corrente de graça ou de três correntes de graça:

a corrente da vida – a corrente da palavra – a corrente do amor.

Quando prestamos atenção à unidade e unicidade do ato pelo qual Deus Uno e Trino efetua
a graça em nós, falamos de uma só corrente de graça. Porém, também nesta perspectiva não
devemos esquecer a verdade que o Pai é este ato divino como Pai (o ato com a relação de
paternidade), o Filho como Filho, e o Espírito Santo como Espírito Santo, sem que o ato seja
modificado em si mesmo. Por isso mesmo, podemos melhor falar de uma tríplice corrente de
graça.
Quanto ao Espírito Santo, em particular: Ele causa a graça como o Amor (procedente) do
Pai e do Filho, como o Dom d’Eles, em conformidade, portanto, da Sua posição na vida
intratrinitária. Ora, o primeiro dom que se doa, quando se faz um presente (dom gratuito) a
alguém, é o amor, e é o amor que nos faz doar-nos a outra pessoa ou dar-lhe um presente. Por
conseguinte, devido ao modo próprio como o Espírito Santo – sendo na Divindade a Pessoa-
Amor, Pessoa-Dom – causa em nós a transformação sobrenatural da graça, apropria-se a Ele
este ato, que não é exclusivamente d’Ele. É exclusivamente d’Ele o modo próprio da Pessoa-
Amor.
Quando consideramos a transformação sobrenatural da nossa alma sob o aspecto da
assimilação, falamos de três correntes de graça distintas uma da outra, uma vez que a
causalidade exemplar de cada uma das Pessoas divinas é própria. Quanto à causalidade
exemplar, o Pai é a causa da graça como transformação da vida, o Filho é a causa da graça como
transformação da potência do intelecto ou do seu “produto”, a palavra da mente, e o Espírito
Santo é a causa da graça, enquanto esta é a transformação da vontade, do amor.
PAI PALAVRA (VERBO) ESPÍRITO SANTO

vida palavra amor


graça santificante conhecimento sapiencial deiforme amor deiforme
Numa corrente tríplice, Deus Uno e Trino doa-Se a nós. O Pai Se nos doa na “corrente da
vida”, o Filho, a PALAVRA, na “corrente da palavra”54, e o Espírito Santo na “corrente do amor”.
Com efeito, experimentando-se em seu espírito configurada e assimilada distintamente a cada
uma das Pessoas divinas, a pessoa humana pode colher como objeto de experiência as Pessoas
divinas naquilo que cada uma tem de próprio.

Até agora falamos da graça apenas no sentido de graça habitual. Agora podemos passar à
consideração das graças atuais. Sabemos que a graça habitual são os “habitus” sobrenaturais da
53
Cf. S.Th. I, q. 104; Summa contra Gentiles, lib. III, cap. 65. Também São Tomás fala a este respeito de uma
corrente contínua do ser da parte de Deus às criaturas, quando p. ex. diz: “ eis [rebus] continue influit esse“ (S.Th. I,
q. 104, a. 3; ver também ibid., a. 4, ad 2). O Doutor angélico também utiliza sempre de novo a imagem da luz solar
no ar ou num recipiente transparente: quando o sol não brilha mais, logo não tem mais luz no ar ou no recipiente.
54
Pensando na conexão da “força” com a Palavra de Deus (cf. 1 Cor 1,24; 1,18; Rm 1,16; Hb 1,3; Sb 7,25-26;
cf. CONC. VAT. II, Dei verbum, 17; 21; 24), poderíamos denominar a corrente de graça da “palavra” também
“corrente da força” ou “corrente da força da palavra”.
Síntese teológica / 36

alma: a transformação permanente do ser (habitus entitativus) e das potências ativas (habitus
operativi), transformação esta que somente por causa do pecado pode ser perdida. Por esta
transformação interior permanente podemos viver uma vida divina a partir do nosso íntimo – em
conformidade com a definição de vida como auto-movimento –, não apenas sendo movidos de
fora.
Ora, para a realização dos atos vitais desta vida divina, sempre temos necessidade das
graças “atuais”. Estas graças podem ser transmitidas por pessoas criadas a outras pessoas. Os
santos Anjos nos transmitem tais graças atuais. Por isso, São Tomás pode afirmar que os santos
Anjos cooperam em todas as nossas boas obras, isto é, em toda atuação dos dons habituais de
graça. O Catecismo da Igreja Católica (n. 350) cita e confirma esta afirmação de São Tomás.55
Dado que essas graças atuais se referem às graças habituais, e estas podem ser diferenciadas
em graças da “vida”, da “palavra” e do “amor”, também a supramencionada transmissão de
graças por parte dos santos Anjos se pode realizar numa tríplice corrente de graça (da vida, da
palavra, do amor), enquanto as graças atuais podem referir-se a um ou outro dos aspectos
mencionados da graça habitual.56

4) Divisões da “graça”
No que precede, apresentamos diversos aspectos da “graça”, divisões dentro daquilo que é
“graça”. Nisso, falamos da “graça” como um “dom gratuito” sobrenatural. Esta é a acepção
costumeira de graça na teologia. No entanto, é claro que também os dons naturais, em primeiro
lugar o dom da nossa existência, da nossa vida, é um dom gratuito. A diferença está em ser dom
natural ou sobrenatural.
Dentro da acepção da graça como dom sobrenatural, a primeira e fundamental distinção é
aquela entre  graça incriada (Deus mesmo, as Pessoas divinas) e
 graça criada (todas as outras graças).
Quanto à graça criada, pode-se fazer a seguinte distinção:
♦ graça habitual,
♦ graça atual ou graças atuais.
O Catecismo diz a respeito desta distinção o seguinte:
A graça santificante é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural para aperfeiçoar a
própria alma e torná-la capaz de viver com Deus, agir por seu amor. Deve-se distinguir a graça
habitual, disposição permanente para viver e agir conforme o chamado divino, e as graças atuais, que
designam as intervenções divinas, quer na origem da conversão, quer no decorrer da obra da
santificação. (Cat. 2000)57
Pode-se e deve-se dizer que, em geral, a graça habitual é uma transformação sobrenatural
duradoura da criatura, ou seja, o efeito estável de uma ação transformadora divina. Pelo pecado,
no entanto, pode ser perdida. A graça habitual é, assim, a graça “santificante”58. Nela, como
55
S.Th. I, q. 114, a. 3, ad 3. Ele responde aqui à pergunta se todos os pecados provêm das tentações do diabo, e
sua resposta é que não é necessário que seja assim. Mas não vale o mesmo no caso da ajuda dos santos Anjos para
as nossas boas obras: “o homem pode por si mesmo cair em pecado, mas não pode chegar a ter merecimento sem o
auxílio divino, a ele proporcionado pela mediação dos anjos. Por isso, os anjos colaboram em tudo o que fazemos
de bom, enquanto nem todos os nossos pecados procedem da sugestão do demônio.” O terceiro argumento
(objeção), ao qual responde, é este: “... Ora, tudo o que fazemos de bom é sugerido por anjos bons, pois os dons de
Deus nos chegam por seu intermédio. Logo, assim também, tudo o que fazemos de mal é sugerido pelo diabo.”
56
São Tomás, quando fala do coro angélico dos Serafins e, por conseguinte, se refere ao amor, escreve: “Os
Serafins não se chamam «os que incendeiam» (incendentes) como se infundissem o habitus da caridade, mas
porque iluminam a respeito do que pertence ao amor de caridade” (In II Sent., d. 9, q. 1, a. 4, ad 5).
57
Cf. S.Th. I-II, q. 109, a. 6; a. 9 (necessidade da graça atual para o justificado); a. 10; q. 111, a. 2; q. 112, a. 2.
58
Cf. Cat. Comp. 423: “É chamada graça habitual ou santificante ou deificante, pois nos santifica e
diviniza.”
Síntese teológica / 37

vimos, a distinção naquilo que é transformado – a distinção entre a substância e as potências da


alma humana, bem como entre as potências do intelecto e da vontade – estabelece uma tríplice
distinção.
As graças atuais são um auxílio divino – Deus pode dá-lo e dá através de pessoas criadas –
para o momento: uma luz, uma inspiração, um impulso, a força necessária para realizar um ato,
para conhecer e cumprir a vontade de Deus.
Outra distinção é – na terminologia escolástica – aquela entre
♦ a “graça que torna agradável a Deus” (gratia gratum faciens) e
♦ a “graça dada gratuitamente” (gratia gratis data).
Neste caso, o critério de distinção é a finalidade (primária) da graça:
♦ a própria santificação (salvação) daquele que recebe a graça
(por isso: “graça que torna agradável a Deus”)
♦ a santificação (salvação) de outros através da ação daquele que recebe a graça.
A “graça dada gratuitamente” não é mais gratuita do que o outro tipo de graça. A
gratuidade, elas a têm em comum. Mas a gratia gratum faciens tem, além de sua gratuidade, a
preciosa propriedade de tornar agradável a Deus aquele que é agraciado.
Eis a exposição de São Tomás a este respeito:
O Apóstolo diz na Carta aos Romanos: “O que vem de Deus é ordenado” (Rm 13,1). A ordem das
coisas consiste em que algumas coisas sejam levadas a Deus por outras, como mostra Dionísio. E
como a graça se ordena a levar o homem para Deus, age com uma certa ordem, de tal maneira que
alguns são levados a Deus por outros.
De acordo com isso, portanto, duas são as graças:
a primeira que une o homem a Deus, e é a graça que torna agradável a Deus [cf. Cat. 2024];
e a segunda que faz com que alguém ajude o outro a chegar a Deus. Este dom chama-se graça
dada gratuitamente, porque é concedida ao homem acima do poder de sua natureza e de seus méritos
pessoais. Ela não é dada para que aquele que a recebe seja justificado, mas para que coopere na
justificação de um outro; por isso ela não tem o nome de graça que torna agradável.
As “graças dadas gratuitamente” são, portanto, segundo a palavra usada por São Paulo, os
carismas (cf. 1 Cor 12,1-7). São as “múltiplas graças especiais (chamadas de «carismas»), por
meio das quais «torna os fiéis aptos e prontos a tomarem sobre si os vários trabalhos e ofícios
que contribuem para a renovação e maior incremento da Igreja»” (Cat. 798). São “graças do
Espírito Santo que, direta ou indiretamente, têm uma utilidade eclesial, pois são ordenados à
edificação da Igreja, ao bem dos homens e às necessidades do mundo” (Cat. 799). “Entre as
graças especiais, convém mencionar as graças de estado, que acompanham o exercício das
responsabilidades da vida cristã e dos ministérios no seio da Igreja” (Cat. 2004; cf. Rm 12,6-8).
“Seja qual for seu caráter, às vezes extraordinário, como o dom dos milagres ou das línguas,
os carismas se ordenam à graça santificante e têm como meta o bem comum da Igreja. Acham-
se a serviço da caridade, que edifica a Igreja” (Cat. 2003).
Os carismas devem, portanto, ser vistos na perspectiva da caridade, ou seja, da ajuda
prestada aos outros. Eis, a este respeito, uma palavra de Santa Catarina (é Deus quem fala):
Eu não dou todas as virtudes na mesma medida a cada um. (...) Existem virtudes que eu distribuo
desta maneira, ora a um ora a outro. (...) A este a caridade; a outro a justiça; a este a humildade,
àquele uma fé viva. (...) Distribuí muitas graças e virtudes, espirituais e temporais, com tal
diversidade que a ninguém por si só concedi todo o necessário, para serdes obrigados a usar de
caridade uns para com os outros. (...) Quis que todos tivessem necessidade uns dos outros e fossem
meus ministros na distribuição das graças e liberalidades que de mim receberam. 59

59
Sta. Catarina de Sena, Diál., 7 (citado em: Cat. 1937).
Síntese teológica / 38

VII. Jesus Cristo como centro e ápice absoluto


da autocomunicação de Deus “para fora”
JESUS CRISTO é o centro e o ápice absoluto da autocomunicação de Deus “para fora”. Ele é a
realização da missão tanto do Filho como também do Espírito Santo.

“JESUS” designa a Pessoa do Filho eterno de Deus feita homem: o VERBO encarnado.
“CRISTO” indica a plenitude absoluta do Espírito Santo em Jesus (missão do Espírito).

1. “JESUS”
“Jesus” é a Pessoa divina do Filho que assumiu uma natureza humana individual. Ele é a
Pessoa divina que, além de ser Pessoa de natureza divina, Se fez também Pessoa de natureza
humana. A natureza humana individual de Jesus é a natureza humana da Pessoa divina do Filho.
Jesus é Deus, exatamente Deus Filho. Assim se realizou

a maior união possível entre Deus e uma realidade criada, a união hipostática:
a união da natureza divina com a natureza humana na única Pessoa de Deus Filho.

A união da natureza humana individual com a Pessoa divina é uma relação ontológica de
pertença desta natureza humana à Pessoa do Filho60. É uma relação real. Por isso, a Pessoa
divina é agora realmente um homem; é a pessoa desta natureza humana individual, embora a
Pessoa divina não tenha mudado (por isso: relação “de razão” da Pessoa divina à natureza
humana).
A “transformação” que se realiza para que Deus Filho esteja presente, de um modo
totalmente novo, no mundo criado, é verdadeiramente uma mudança “substancial”. Não se trata
apenas de aperfeiçoar sobrenaturalmente uma realidade criada (“graça santificante”). Essa
mudança é efetuada pelo ato divino
♦ de fazer existir a natureza humana individual no seio de Maria (ato de fecundar a
santíssima Virgem e de criar a alma como princípio vital do corpo) e
♦ de, ao fazê-la existir, uni-la à Pessoa do FILHO (fazê-la existir como pertencente à
Pessoa divina).
Para a natureza humana de Jesus é uma “graça” (dom gratuito) ser a natureza humana do
próprio Deus Filho. Esta graça chama-se, na teologia, “graça da união (hipostática)”. É a maior
graça possível: é o próprio ser pessoal do Verbo, ou seja, a própria personalidade do Verbo
(ipsum esse personale Verbi) que é doada à natureza humana. Trata-se do ápice absoluto da
graça, e que é fonte de todas as outras graças para toda e qualquer criatura.

2. “CRISTO”
Em primeiro lugar, a união hipostática necessariamente traz consigo a plenitude absoluta
das graças criadas na alma de Jesus (graça santificante e tudo que a acompanha; participação da
natureza divina; transformação divinizante do espírito criado). Isto significa que a missão do
Filho (a Encarnação) traz consigo a missão do Espírito Santo (neste caso, ainda como “missão
invisível”), duas missões distintas, mas inseparáveis. Pois a graça santificante é exatamente
aquela mudança no espírito criado que é necessária para que nele haja a presença totalmente
nova da Pessoa do Espírito Santo. É assim que acontece a missão do Espírito Santo (missão

60
Também quando se trata de qualquer homem, este pode dizer: “É meu corpo, é minha alma, é meu intelecto,
é minha vontade, etc.”
Síntese teológica / 39

invisível). Com efeito, Jesus é “o Cristo”, quer dizer, “o Ungido” pelo Espírito Santo: Ele é a
plenitude absoluta da presença do Espírito Santo em um espírito criado.

Na alma de Jesus Cristo acontece o ápice absoluto da missão do Espírito Santo,

ou seja, da presença santificante do Espírito Santo numa pessoa de uma natureza criada.
♦ Comparando as duas uniões, designadas pelos nomes de “Jesus” e “Cristo”, podemos
dizer que a união que caracteriza Jesus, a união hipostática, é uma união ontológica de
natureza com natureza, substância com substância, a saber, da natureza-substância divina com
a natureza-substância humana, na Pessoa do Verbo. Dá-se uma verdadeira “pericorese”: uma
natureza-substância está na outra. Não é uma simples justaposição, como também não é uma
união que se realiza através de atos de conhecer e amar.
♦ A união que se realiza pela missão do Espírito Santo é exatamente esta: a união
interpessoal (chamada também “intencional”) que não se realiza sem os atos de conhecer e
amar a outra pessoa. Em Jesus, que é o “Cristo”, essa união é entre Ele e o Pai, no Espírito
Santo. Pela presença do Espírito Santo em Sua alma com e através da graça santificante, Jesus
pode viver, como homem, a Sua comunhão com o Pai, conhecendo e amando o Pai.61 Essa
presença do Espírito Santo na alma de Jesus decorre necessariamente da união hipostática, isto
é, do fato de esta alma (formando com o corpo uma única substância) ser a alma da Pessoa do
Filho eterno. De fato, sem essa presença do Espírito Santo, isto é, sem a graça santificante, Jesus
não poderia viver verdadeiramente, como homem, a Sua relação filial a Deus Pai. Não poderia
viver como homem aquilo que Ele é: FILHO de Deus Pai, relação subsistente de filiação a Deus
Pai. Ele teria um conhecimento e um amor apenas natural: aquilo de que a natureza humana
como tal é capaz.
Ora, na alma humana de Jesus, as duas formas de união acima mencionadas (união
hipostática, ontológica; união interpessoal) estão de tal modo ligadas, na unidade da Pessoa
divina do Filho, que a união interpessoal recebe uma infinitude relativa “na ordem da
graça”62, pelo fato que

Jesus, sendo o FILHO, por Suas operações humanas (conhecer, amar) está unido a Deus Pai
de uma maneira digna da pessoa do FILHO eterno de DEUS,

isto é, a tal grau que transcende tudo aquilo a que é elevado pelo Espírito Santo qualquer pessoa
criada. Isto Lhe confere uma espécie de absoluto dentro da ordem da graça que Deus ideou e
realizou. Deste modo,

toda outra graça é uma participação da graça de Cristo,


mede-se com referência a esta graça.

Assim podemos reconhecer a santidade de Jesus Cristo: pela união hipostática, a santidade
de Jesus é aquela mesma da divindade (chamada também de “santidade substancial”), uma vez
que santo é Deus e quem está unido a Deus e na medida em que está unido a Ele. Ora, Jesus é o
próprio Deus encarnado, a Pessoa divina do Filho feita homem. Além disso, ou
consequentemente, Jesus é também santo como “Cristo”, isto é, pela união interpessoal com o

61
Além disso, deste modo Ele pode também ter a clara e certa consciência humana de Sua identidade divina de
Filho de Deus. É claro, ademais, que, deste modo, Jesus pode viver também, como homem, a união com a Pessoa
divina do Espírito Santo.
62
É claro que a graça criada não pode, em absoluto, ser infinita: sendo criada, é, por essência, finita, pois é
uma transformação sobrenatural de algo criado, finito. Mas dentro daquilo que é a graça criada, a graça de Jesus é
infinita, é o máximo possível; não poderia ser maior.
Síntese teológica / 40

Pai no Espírito Santo, através da graça criada, isto é, através daquela transformação sobrenatural
que capacita o espírito criado à comunhão com a Pessoa divina.
Por tudo isso se vê que Jesus Cristo é realmente
o sol da máxima presença de Deus no universo criado,
o ápice absoluto da autocomunicação de Deus ao criado e
da união-comunhão do criado com Deus.

Todas as criaturas recebem de Jesus Cristo a luz da presença, do amor, da autocomunicação de


Deus. Esta comunicação às outras criaturas (como a emissão dos raios do sol) realiza-se pela
missão do Espírito Santo: Jesus Cristo envia-lhes o Seu Espírito. Toda graça, toda união de uma
criatura com Deus, é participação da graça de Jesus Cristo.

3. União ontológica e união interpessoal (intencional)


nos principais mistérios da fé

Vejamos ainda o aspecto ontológico e o interpessoal ou intencional nos principais mistérios


de fé, que são sempre mistérios de união:
 Santíssima Trindade;
 Encarnação do Filho (missão do Filho – união hipostática; missão do Espírito Santo –
união pela graça criada);
 Maria, Mãe de Deus Filho.
 Eucaristia (meta final, na história, da missão do Filho e do Espírito Santo, na Igreja);
Sob o ponto de vista da Pessoa do Filho de Deus, podemos dizer que se trata do FILHO
♦ no seio do PAI (Ss. Trindade),
♦ no seio de Maria (Encarnação) e
♦ no seio da Igreja (Eucaristia).

Santíssima Trindade:
Em Deus, o ser e o agir (actus primus e actus secundus; ato de ser e ato de conhecer ou
querer), o ontológico e o intencional ou interpessoal (pelos atos de conhecer e querer-amar) não
se distinguem realmente; identificam-se. Deus é “ato puro”: é o ser subsistente e, ao mesmo
tempo, ação pura; é conhecimento subsistente e amor subsistente. Em Deus, o ato é ao mesmo
tempo constitutivo e operativo; é “dinamismo puro”. Deste modo, a distinção entre ser e agir
não apenas não é real, mas nem virtual ou conceitual. Isto nos faz ver em conjunto a questão da
distinção em Deus:
 Há distinção real entre as relações de origem que se opõem uma à outra (paternidade –
filiação, espiração ativa – espiração passiva);
 há distinção apenas virtual ou conceitual entre o ato de entender (intelecção) e o ato de
querer (amar), bem como entre os diversos atributos divinos como amor, justiça, sabedoria, ...
Trata-se de perfeições expressas com conceitos de conteúdo realmente diverso. Em outras
palavras: são perfeições irreduzíveis uma à outra no nível da representação conceitual.
 não há distinção nem real nem virtual entre o ser e o entender ou entre o ser e o amar.
Esta distinção não pode ser concebida a não ser como a distinção entre o ato primeiro (o Ser
inteligente, capaz de amar) e o ato segundo (este mesmo Ser em ato de conhecer e de amar).
Não se trata, por conseguinte, de duas perfeições, mas de dois estados da mesma perfeição,
dualidade esta que a própria noção de Ato puro abole.
Síntese teológica / 41

Sendo assim, podemos constatar:


As relações ontológicas
(relações de origem: paternidade, filiação, espiração passiva), que constituem as Pessoas divinas,
não se distinguem realmente das relações interpessoais;
as relações ontológicas são ao mesmo tempo relações interpessoais.

Por exemplo, a relação de paternidade é relação ontológica de pai a filho, relação que se
identifica com o ser divino (daí: relação subsistente). Ora, o ser divino identifica-se realmente
com o agir divino, com o ato de conhecer e de amar. Por isso, a relação ontológica de
paternidade é também relação intencional: é conhecer e amar subsistentes; é inteiramente (por
parte do Pai) conhecimento do Filho e amor ao Filho. Uma Pessoa divina está presente à(s)
outra(s) ontologicamente e intencionalmente, sem haver distinção real entre um e outro.
Esta é a assim chamada “pericorese” (perichóresis, circumincessio) trinitária: esta palavra
grega se tornou termo técnico para designar a característica essencial das Pessoas divinas
segundo a qual cada uma inclui as outras duas, isto é, não são externas uma à outra; uma está na
outra, conforme a palavra de Jesus: “Eu estou no Pai, e o Pai está em mim” (Jo 14,10). A
comunhão das Pessoas divinas é perfeita. Assim, as três Pessoas divinas são, cada uma e juntas,
o único Deus concreto, e elas vivem em perfeita comunhão interpessoal, numa “amizade”
infinita.
A união entre as Pessoas divinas é uma união substancial, sob o aspecto tanto ontológico
quanto intencional (o conhecer e o amor se identificam com o ser, com a substância divina); é
união substancial no sentido de ser união (comunhão) na substância. A “incomunicabilidade”
não se refere à substância; entre as Pessoas divinas não há distinção na substância; apenas entre
as relações de origem opostas.

Jesus Cristo:
Em Jesus Cristo podemos distinguir realmente entre união ontológica e união intencional,
sendo a união intencional (interpessoal) uma consequência da união ontológica. A união
ontológica é a união hipostática (realizada no seio virginal de Maria): a união entre a natureza
divina e a humana, na Pessoa divina do Filho ou a união da natureza humana com a Pessoa
divina do Filho.
A união hipostática é uma união substancial, no sentido de ser
uma união de substância (divina) com substância (humana),
numa única pessoa,
não uma união interpessoal, isto é, entre pessoas, mas união de duas substâncias em uma só
pessoa: um único sujeito de duas naturezas, duas substâncias (essências realizadas). Não é
chamada união “substancial” no sentido de ser união “na substância”, formando, portanto, uma
só substância, mas no sentido de não ser apenas união “acidental”, ou seja, união que se realiza
por uma transformação “acidental” (enquanto se distingue o “acidente” da “substância”). É
verdadeira união ontológica: não se realiza em atos de conhecer e amar nem depende destes. É
união entre substâncias naquela realidade que se chama “pessoa”. “Pessoa”, por sua vez, é o
princípio de subsistência de uma natureza intelectual individual. Por essa união substancial se
dá a presença mais perfeita possível de Deus no criado, uma união ontológica entre Deus e
homem. Do ponto de vista da união entre a natureza humana individual e a Pessoa divina do
Filho, trata-se de uma relação ontológica de pertença da natureza humana à Pessoa divina.
Síntese teológica / 42

A mais íntima união interpessoal entre Jesus (homem) e o Pai, no Espírito Santo,
é consequência da união ontológica (união hipostática) e
se distingue claramente dela.

Tal união interpessoal realiza-se então, embora com menor perfeição, também na Igreja, quando
Jesus envia o Seu Espírito, o Espírito Santo.

Maria, Mãe de Deus Filho:


O aspecto ontológico no mistério da maternidade divina da santíssima Virgem é a relação
ontológica de maternidade: Maria é perfeitamente mãe (genetriz) de Jesus, que é o próprio Deus
Filho encarnado. O fato de ela conceber Jesus sem intervenção de um homem, mas pelo poder
do Espírito Santo, não faz com que ela seja menos verdadeira “genetriz” de seu Filho. O fato de
seu Filho já antes da Sua concepção em seu seio virginal ter existido como Pessoa de natureza
divina não diminui em nada a autenticidade ou perfeição de sua maternidade. Quanto à alma
espiritual, esta sempre é criada diretamente por Deus, também, portanto, na geração de um filho
pela via normal (união de homem e mulher).

A maternidade divina é
uma relação ontológica à Pessoa de Deus Filho,
enquanto Ele, por meio de Maria, Se tornou Pessoa de natureza humana (homem).

Esta maternidade divina de Maria implica as graças de santidade (Maria como sacrário do
Espírito Santo); eis o aspecto de relação interpessoal. Em geral, a maternidade envolve
normalmente a mulher de um modo total em relação a seu filho: conhecimento, amor, dom de si.
Isto vale muito mais para a maternidade divina. Neste caso, com efeito, o Filho é uma pessoa
preexistente e perfeita, que pode ser amada em tudo desde o primeiro momento; os seus
sentimentos não mudarão jamais. Além disso, a maternidade de Maria é maternidade virginal,
que dá ao amor materno o caráter singular de ser o primeiro amor da mãe e um amor exclusivo.
Este amor, porém, tem por objeto a Pessoa de Deus Filho. Por isso não pode ser um amor
materno meramente natural. Tem que ser o amor com que a criatura divinizada ama o seu Deus.
Como a relação fundamental de maternidade (relação ontológica), o amor materno de Maria e
todas as relações interpessoais entre ela e seu Filho são ao mesmo tempo naturais e
sobrenaturais. É pelas graças de santidade que Maria é capacitada a elevar o próprio coração e o
espírito ao nível da sua singular maternidade.

A graça da maternidade divina implica os dons de santidade,


sem os quais Maria seria uma mãe inconsciente e estranha à própria maternidade.

Se Deus chama uma mulher a tornar-se Sua mãe, não pode não enriquecê-la dos dons da graça,
sem as quais poderia ser Sua mãe apenas corporalmente, isto é, de um modo não-pessoal, não
humano. Segundo a expressão de Sto. Agostinho: “Ela concebeu o Verbo de Deus antes em seu
espírito que em seu seio”. Só assim Maria é plenamente e pessoalmente Mãe de Deus; assim
temos o conceito integral da maternidade divina.
As relações entre a graça da divina maternidade e as graças de santidade podem ser
comparadas com a relação, em Cristo, entre a graça da união e a plenitude da graça criada que
põe Sua alma no nível da Sua personalidade divina.
Síntese teológica / 43

Santíssima Eucaristia:
No mistério da Ss. Eucaristia, o aspecto ontológico se encontra naquilo que chamamos a
“presença real, substancial” de Jesus sob as aparências de pão e vinho. Aqui se trata de

uma relação ontológica do pão e do vinho (aparências)


à substância humana de Jesus,
sob o aspecto, respectivamente, de esta ser corpo ou sangue.

Assim, esta presença substancial é independente das relações interpessoais das pessoas
humanas com Jesus: Ele está presente com toda a Sua “realidade física”, quer que haja pessoas
que acreditem nesta presença, quer que não haja. A realidade substancial desta presença se dá
pelo fato de uma transformação radical : a conversão de toda a substância do pão e do
vinho na substância humana de Jesus, permanecendo apenas as aparências (“espécies” ou
“acidentes”) de pão e vinho.

A presença substancial é para uma união interpessoal “substancial”


de Jesus com os fiéis pelo banquete eucarístico (“Sagrada Comunhão”).

Sendo união interpessoal, é claro que requer a presença do Espírito Santo na alma do
comungante (é certa “participação do Espírito Santo”). Mas esta união interpessoal (pelo amor)
é uma união que abrange toda a substância humana de Jesus (unida hipostaticamente com a
substância divina) e toda a substância do comungante: uma união “segundo a substância”
(“secundum substantiam coniungi”, segundo uma expressão de São Tomás). Esta união se
realiza pela presença substancial de Jesus no comungante e uma transformação do
comungante (da alma diretamente, mas também do corpo) que se pode chamar uma
“participação do Corpo (e Sangue) de Cristo”, atuada através do próprio Corpo de Cristo
presente no comungante; é a “graça sacramental” própria e específica da recepção do
sacramento da Eucaristia.

Com exceção do mistério da Santíssima Trindade, em todos esses mistérios a união se


realiza através de alguma “transformação” (mudança), efetuada por Deus:
♦ Jesus Cristo:
 A união hipostática: pelo fazer existir a natureza humana individual (fecundação da
santíssima Virgem e criação da alma espiritual) como pertencente à Pessoa divina do
Filho.
 A união interpessoal: pela plenitude da graça criada (graça santificante, …) na alma de
Jesus (presença do Espírito Santo).
♦ Maria, Mãe de Deus Filho:
 Relação de maternidade (relação de origem): ver acima, a respeito da união hipostática.
 Maternidade como relação interpessoal entre mãe e filho: pela graça (presença do
Espírito Santo).
♦ Santíssima Eucaristia:
 Presença substancial: mudança de toda a substância do pão e do vinho na substância
humana de Jesus, permanecendo apenas as aparências de pão e vinho.
 Transformação do comungante, como uma participação do Corpo e Sangue de Cristo
(graça sacramental da Sagrada Comunhão).
Síntese teológica / 44

VIII. Jesus Cristo em Sua “volta” para o Pai:


o “caminho” da volta de todas as criaturas para Deus

“Nós corremos no caminho que é Ele e corremos para a meta que é Ele e n’Ele encontramos o
repouso … Ele veio até nós como médico para os doentes, como caminho aberto para os
peregrinos” (Sto. AGOSTINHO, In Io. ep., tr. 10, 1).

1. O FILHO encarnado: homem em “estado de caminhada”,


solidário com a humanidade pecadora

As missões do Filho e do Espírito Santo são inseparáveis, mas distintas. Ora, uma grande
diferença entre a missão do Filho e a do Espírito Santo está no fato de que o Filho não apenas Se
fez presente aos homens, mas fez Sua uma natureza humana individual: Ele Se fez
verdadeiramente homem, “um de nós”, alguém do gênero humano, um “filho de Adão”; o F ILHO
de DEUS Se fez “Filho do Homem”, isto é, o “FILHO (eterno de Deus Pai) que é homem”.
E há mais, ou seja, isso comporta outras coisas, a saber: fazendo-Se “um de nós”, fez-Se
solidário conosco, e esta solidariedade tem duas dimensões:

1) Deus Filho Se fez solidário conosco,


fazendo-Se homem em “estado de caminhada” (“viajor”)
para a comunhão consumada, gloriosa com Deus Pai.

Esta é uma solidariedade que Ele poderia realizar também com uma humanidade na qual
não houvesse acontecido o pecado. Seria simplesmente a solidariedade com a situação dos
primeiros homens antes do pecado; é a situação do “estado de caminhada”, ou seja, do estado de
provação, no qual se pode dar uma resposta livre de amor a Deus, decidindo-se por Deus e Sua
santíssima vontade.
No entanto, o Filho de Deus Se fez solidário com a humanidade pecadora. Empregando
palavras do Apóstolo Paulo, podemos dizer:

2) Ele Se fez solidário conosco, fazendo-Se homem


em “estado de solidariedade com a carne de pecado”63.

Isto significa que Ele tomou sobre Si as consequências do “pecado do mundo” (cf. Jo 1,29), ou
seja, de todos os pecados de todos os homens de todos os tempos.
Fazendo-Se homem, o Filho de Deus uniu-Se, de alguma maneira misteriosa, mas real, a
todo homem.64 Ele Se fez solidário com a humanidade pecadora tanto quanto a Sua absoluta
santidade permitia e Seu amor exigia, a saber: o amor justo e o amor compassivo de Deus. De
fato, “ao enviar seu próprio Filho na condição de escravo (cf. Fl 2,7), condição de uma
humanidade decaída e fadada à morte por causa do pecado (cf. Rm 8,3), «Aquele que não
conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos
justiça de Deus» (2Cor 5,21)” (Cat. 602).
Para poder salvar a humanidade pecadora, Ele não devia, de modo algum, ser pecador, mas
viver com perfeição o amor a Deus e ao próximo, cumprindo, portanto, perfeitamente o
mandamento do amor, vivendo assim em união com Deus. 65 Do contrário, isto é, se fosse

63
Cf. Rm 8,3: Deus “enviou Seu próprio Filho solidário (em estado de solidariedade) com a carne de pecado
e, em vista do pecado, condenou o pecado na carne” (tradução da Bíblia de Edições Loyola).
64
“Por sua Encarnação, o Filho de Deus, de certo modo, se uniu a todo homem” (GS 22,2).
65
Além disso, para Deus Filho encarnado, pecar seria contradizer-Se a Si mesmo como Deus. É impensável.
Síntese teológica / 45

solidariedade no pecado, o que adiantaria esta solidariedade? Apenas haveria um miserável a


mais, e isto não aliviaria a miséria dos miseráveis. Ele, porém, como diz a Carta aos Hebreus,
“foi tentado em tudo como nós o somos, mas não cometeu pecado” (Hb 4,15). Ele “devia ser
solidário em tudo com Seus irmãos, para tornar-se um sumo sacerdote misericordioso e fiel nas
coisas referentes a Deus, a fim de expiar os pecados do povo” (Hb 2,17). Ele veio para expiar os
pecados “do mundo inteiro” (cf. 1Jo 2,2; 4,10)! Ele podia fazer isso por ser o mediador entre
Deus e os homens (cf. Hb 8,6; 9,15; 12,24; 1Tm 2,5).

2. O FILHO encarnado: o mediador perfeito


entre Deus e os homens

O Filho de Deus, por Sua encarnação, tornou-Se o mediador perfeito entre Deus e os
homens, sendo ao mesmo tempo e perfeitamente Deus e homem. Deste modo,
 Ele tornou-Se não apenas o representante d e D e u s diante da humanidade, mas
 também o representante d a h u m a n i d a d e (pecadora) diante de Deus.
 Ele não apenas veio de Deus a t é n ó s , mas
 também Se colocou totalmente do nosso lado defronte de Deus e andou
do nosso lado r u m o a D e u s .
 “Saí do Pai e vim ao mundo” (Jo 16,28; cf. 8,14.42; 16,27; 17,8).
 “Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai” (Jo 16,28; cf. 8,14; 14,12.28; 16,10.16;
17,11.13).
Em Sua vida de Filho encarnado (a vida como homem) manifesta-se a personalidade
própria de Deus Filho
 não apenas no que diz respeito à Sua p r o c e s s ã o do Pai (“saí do Pai”)
e à Sua relação de origem ao Espírito Santo (espiração ativa;
daí: Jo 15,26: “o Paráclito, que Eu vos enviarei da parte do Pai”), mas
 também à Sua relação de f i l i a ç ã o ao Pai.

3. Jesus exerce a Sua tríplice mediação fazendo de toda a Sua vida


uma “volta para o Pai”

Fazendo-Se homem em estado de solidariedade conosco, o Filho de Deus começou a existir


como homem – desde o primeiro instante da Sua existência humana – numa situação de quem
está a caminho da comunhão consumada, gloriosa com Deus Pai. Isto significa que

toda a vida de Jesus, do começo ao fim, era


“caminhar” para o Pai, “voltar para o Pai”.

Deste modo, todo o exercício da Sua mediação entre Deus e o homem era uma caminhada
para o Pai. “Todo o exercício” significa o exercício da mediação em ambas as direções: de
Deus para o homem, do homem para Deus. É assim porque os “passos” pelos quais o homem
caminha para (a comunhão perfeita com) Deus, são os atos de amor, ou seja, os atos de amor e
todos os outros atos virtuosos, contanto que estejam animados pelo amor (amor sábio, paciente,
obediente, corajoso, perseverante e assim por diante; cf. 1 Cor 13). Ora, Jesus fez de toda a Sua
vida e até aos mínimos detalhes de Sua vida (também do exercício da Sua mediação na direção
de Deus para o homem) um grande ato de amor: amor ao Pai antes e acima de tudo e com todas
as forças do Seu coração humano, e amor aos homens por amor do Pai.
Síntese teológica / 46

Assim cumpre perfeitamente o mandamento do amor e


faz de toda a Sua vida uma constante caminhada para o Pai.

Mas, retornemos à consideração da mediação exercida por Jesus, mediação que Ele realizou
como um grande ato de amor ao Pai e aos homens. Fala-se (a partir do século XVI) de um
tríplice múnus (= ofício ou tarefa ou missão) de Jesus:
1) o de profeta ou mestre,
2) o de sacerdote ,
3) o de p a s t o r .
1) O múnus de profeta ou mestre, o múnus, portanto, de ensinar os homens, se exerce na
direção “de Deus a o h o m e m ” .
2) O múnus de pastor, o de dirigir, conduzir, com autoridade, também está na linha “de
Deus a o h o m e m ” , enquanto se refere aos homens a serem conduzidos para Deus. Por outro
lado, o pastor dirige não apenas com a autoridade (governar, determinar, dar ordens), mas
também com o bom exemplo.66
3) O múnus de sacerdote é o múnus central de Jesus.
O ofício de mestre está totalmente o r i e n t a d o ao múnus sacerdotal. Para ilustrar isso,
consideremos um só aspecto: Jesus ensina que Deus está pronto a perdoar aos homens os
pecados e fazê-los entrar no Seu Reino de salvação e, afinal, de felicidade eterna. Mas é por Seu
múnus sacerdotal que Ele obtém para os homens estes dons de perdão, salvação e vida eterna
que lhes anuncia.
O múnus de pastor p r e s s u p õ e o múnus de sacerdote, pois o pastor só pode apascentar
(conduzir ao pasto, proteger) as ovelhas vivas. E para que tenham a vida, Ele deve entregar a
Sua vida por elas. Ora, esta entrega da vida se realiza propriamente como um exercício do Seu
sacerdócio, isto é, pelo sacrifício da cruz. Sem este não haveria ovelhas a pastorear. Por isso, o
múnus de sacerdote está no centro.
Está no centro também por outra razão:
No exercício do múnus sacerdotal,
a ação de Jesus vai em ambas as direções:
do homem para Deus e de Deus para o homem.

No caso de Jesus, a direção ascendente – do homem para Deus – é fundamental; é o ato de


culto a Deus ou, na perspectiva do hino da caridade (1Cor 13), o ato de amor adorador.
A direção descendente (de Deus para o homem; a ação de santificar) pressupõe o exercício
do múnus sacerdotal na direção ascendente, pois a santificação (salvação, libertação, redenção)
do homem pressupõe o sacrifício de Cristo.

É no exercício do múnus sacerdotal em direção ascendente (oração, sacrifício da cruz)


que Jesus vive, como homem, exatamente e explicitamente,
a Sua relação d e F i l h o a o P a i ,

isto é, aquela relação eterna na Divindade que O constitui como a Pessoa divina do Filho,
enquanto esta relação é subsistente (identificando-se com a substância divina).
Sob o ponto de vista determinante, portanto, Jesus faz de toda a Sua vida humana na terra
uma caminhada para o Pai exatamente enquanto vive, como homem, Sua identidade de Filho

66
É significativo que o pastor de ovelhas não vai atrás das ovelhas, tangendo-as como se faz com o gado em
geral, mas vai à frente delas. É assim que ele as dirige.
Síntese teológica / 47

do Pai, isto é, Sua relação de Filho ao Pai. É, ao mesmo tempo, o exercício do Seu múnus
sacerdotal na direção ascendente.

4. A “Páscoa” de Jesus: o caminho das criaturas de volta para Deus

O ponto culminante dessa vivência da relação de Filho ao Pai é a “Páscoa” de Jesus, isto é, a
Sua passagem deste mundo ao Pai (cf. Jo 13,1). A vida anterior era caminhar para o Pai neste
mundo; a paixão e morte e a consequente glorificação (ressurreição, ascensão) de Jesus, porém,
é passar deste mundo ao Pai.
Todas as criaturas não podem realizar a sua volta para Deus (a caminhada para a perfeição
última em Deus) a não ser por uma participação na Páscoa do Senhor Jesus.

Jesus disse (Jo 14,6): “Eu sou o caminho, a verdade e a vida;


ninguém vem ao Pai senão por mim”.

Jesus é “o caminho”, porque é o fundamento ou a fonte das graças sem as quais ninguém pode
caminhar e alcançar a sua meta final, que é Deus (Pai). Isto vale para todas as criaturas; não
somente para os homens, mas também para os anjos e até mesmo para a criação material.
Para os homens, Jesus devia abrir o caminho, obstruído pelo pecado de Adão para toda a
humanidade e pelos pecados individuais para cada um individualmente. Aos anjos, Jesus
merecia, por Sua volta ao Pai, a força necessária (as graças) para eles realizarem a sua passagem
do estado de caminhada (estado de provação) para a união perfeita e integral com Deus e em
Deus. O caminho da criação material, por sua vez, está ligado inseparavelmente ao caminho dos
homens e também dos anjos.

5. A volta de Jesus ao Pai como mistério de amor redentor, expiador

Para a humanidade pecadora, a Páscoa de Jesus – como também, em geral, toda a Sua vida
na terra – é um mistério de redenção, isto é, de libertação por um preço de resgate; é
“libertação do amor”: o amor de Jesus liberta e, nos homens pecadores, o amor é libertado.
Nisso, o amor de Jesus é amor expiador, é o ápice de Seu amor ao Pai e aos homens na maior
e mais profunda miséria deles.

1) Mistério de redenção
Por toda a Sua vida, mas sobretudo por Seu sacrifício da cruz, Jesus realizou a obra da
redenção da humanidade pecadora. “Redimir” significa libertar de uma escravidão pagando um
preço de resgate; é, portanto, uma libertação com um particular empenho. Jesus, de fato, veio
“para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mt 20,28; Mc 10,45; cf. 1Tm 2,6; Is 53,12). O
“preço” de resgate foi a Sua “vida”, o Seu “sangue” (cf. 1Cor 6,20; 7,23; Cl 1,20; 1Pt 1,18-19;
Ap 5,9). A quem Jesus pagou este preço de resgate? Não ao diabo 67, mas a Deus (Pai). O que
significa isso?

O “preço de resgate” oferecido por Jesus ao Pai significa


o v a l o r do Seu ato supremo de amor
com que Se ofereceu, Se entregou a Si mesmo ao Pai, em adoração e obediência.

É o valor que este Seu supremo ato de amor, que é Seu sacrifício da cruz, tem diante do Pai e,
portanto, o tem verdadeira e realmente. Outro nome para o “valor” é “mérito”. Através desse
67
Jesus veio para “destruir” o diabo (cf. Hb 2,14), ou seja, “as obras do diabo” (cf. 1Jo 3,8).
Síntese teológica / 48

ato supremo de amor, Jesus merece para Si a glorificação como nosso Redentor e Salvador e,
portanto, para nós, o dom da salvação, da comunhão filial com Deus.68
E qual é a escravidão da qual Jesus nos libertou? A escravidão fundamental e essencial, isto
é, aquela que é diretamente consequência do pecado (cf. Jo 8,34): a situação de pecador,
privado da vida divina, da filiação divina, a “condição de uma humanidade decaída e fadada à
morte por causa do pecado” (Cat. 602; cf. Hb 2,14s). De fato, o pecado diz essencialmente
respeito à relação do homem com Deus69 e causa, em primeiro lugar e sobretudo, a ruptura da
aliança com Deus, da relação de filho – no FILHO – com Deus como Pai, a perda da comunhão
filial com Ele. Disso derivam então outras rupturas: a ruptura dentro do homem mesmo (perda
da paz e harmonia consigo mesmo; consequência “antropológica”), a ruptura nas relações com
as outras pessoas humanas (consequência “sociológica” e “eclesiológica”) e, enfim, com a
criação material (consequência “cosmológica”; cf. a respeito dessas rupturas: Cat. 1469). A
libertação da escravidão do pecado traz consigo – embora nem sempre ou nem imediatamente,
porque dependendo da colaboração dos homens e num processo de libertação – a libertação
dessas outras rupturas ou escravidões.

2) Libertação do amor
Jesus nos libertou da escravidão do pecado através do Seu sacrifício da cruz. Isto significa
que não nos libertou por outro meio a não ser por Seu amor.

Seu sacrifício da cruz foi realmente


um ato de amor a Deus Pai
com o qual Se entregou a Si mesmo, em adoração, a Ele,
sendo o dom oferecido a Sua própria substância (corpo e alma), Sua “vida”,
para entrar na comunhão consumada, gloriosa com o Pai
e, assim, abrir-nos o caminho, obstruído pelo pecado, para esta mesma meta.

Deste modo, o sacrifício da cruz de Jesus foi um ato de amor ao Pai (entrega a Ele), bem
como aos homens pecadores, enquanto Jesus Se entregou assim ao Pai para a nossa redenção e
comunhão perfeita com o Pai.

A obra da redenção é, por conseguinte, uma obra do a m o r s a c r i f i c a l de Jesus.

Oferecendo-Se assim ao Pai, Ele oferece o preço de resgate para a nossa libertação. A redenção
efetuada por Jesus é, portanto, uma “libertação do amor” no sentido de que é Seu amor que nos
liberta da escravidão (“libertação do amor” como genitivo subjetivo: o amor é o sujeito da ação
libertadora).
Se perguntarmos em que consiste esta libertação, poderemos reconhecer que se trata
também da “libertação do amor” no sentido de que aquilo que é libertado é o amor: o objeto da
ação libertadora é o amor (“libertação do amor” como genitivo objetivo: o amor é o objeto da
ação libertadora). Sendo uma libertação da escravidão causada pelo pecado – escravidão,
portanto, que contrasta com a liberdade dos filhos de Deus, eliminando a comunhão filial com
Ele –, é uma libertação que “liberta” em nós o amor divino, no sentido de que somos de novo
capacitados a amar a Deus como filhos e a amar os outros homens como irmãos. Jesus nos
obtém o dom do Espírito Santo, o Seu Espírito, que nos faz clamar “ABBA, PAI”, como explica

68
Na S. Escritura, em grego, a expressão correspondente é “ser digno”. Jesus é digno de receber a glória, de
ser a fonte da salvação para todos.
69
Quem não reconhece isso, não reconhece a verdadeira natureza do pecado; não sabe o que é
verdadeiramente o pecado.
Síntese teológica / 49

São Paulo: “Vós não recebestes espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes o
Espírito que, por adoção, vos torna filhos, e no qual clamamos: «Abbá, Pai!»” (Rm 8,15).

A redenção, como “libertação do amor”,


nos capacita a amar como filhos do Pai Celeste.
Somos libertados para
viver, na verdade e no amor, a relação filial com Deus,
participando da filiação divina de Jesus (cf. Jo 8,31-36).

3) O amor e x p i a d o r de Jesus, ápice de Seu amor


Não se explica verdadeiramente o mistério da redenção de Cristo, sendo libertação através
de “preço de resgate”, se não se reflete seriamente sobre o amor de Jesus como amor expiador:
o mistério da expiação como ápice absoluto do amor de Jesus.
Como explicar que Jesus oferece ao Pai um “preço de resgate” para libertar os homens da
escravidão do pecado? Como explicar que Jesus liberta os homens pecadores através do Seu
sacrifício da cruz, através da Sua entrega dolorosa ao Pai, em amor e obediência? A resposta
está na realidade da expiação.
Pela expiação, o pecado é eliminado. Naturalmente não é o fato ou ato do pecado que é
eliminado, mas a situação desastrosa na relação entre Deus e o homem, causada pelo pecado.
Como podemos definir o que é “expiação”, no sentido do Novo Testamento?

a) O que é expiação?

Expiação é a m o r s o f r e d o r do homem a D e u s , pelo qual


 a ofensa de Deus é reparada e
 a comunhão do homem pecador com Deus é restabelecida
ou plenamente restabelecida.

Consideremos, um por um, os elementos desta definição.


♦ “amor do homem a Deus”: Uma vez que o pecado se dirige contra Deus, a expiação deve
ser amor a Deus. Somente o amor pode reparar a ofensa feita a Deus pelo pecado. Por isso, cada
ato de virtude, seja um ato de humildade ou de fé, seja de obediência ou de outras virtudes, deve
estar motivado, penetrado ou animado do amor. Do contrário, não pode ter a qualidade
expiadora. Conforme a perspectiva do Apóstolo Paulo (1Cor 13), podemos dizer simplesmente:
é o amor humilde ou o amor obediente etc.
A expiação vicária, isto é, a expiação pela salvação do próximo, é também um ato do amor
ao próximo; é o ponto culminante do amor e a maior obra de misericórdia, pois liberta da mais
profunda miséria. Neste sentido, Jesus diz: “Amai-vos uns aos outros, assim como Eu vos amei.
Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13; cf. Mt
20,28).
A expiação tem dois objetivos:
♦ “a ofensa de Deus é reparada”: o primeiro objetivo do amor expiador é a reparação da
ofensa de Deus ou da “ferida” da Sua honra e do Seu amor70.
70
Cf. Cat. 1487: “Quem peca fere a honra de Deus e seu amor”. Neste sentido, o Anjo de Portugal ensinou aos
pastorinhos de Fátima esta oração: “Santíssima TRINDADE, PAI, FILHO, ESPÍRITO SANTO, adoro-Vos profundamente
e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de JESUS CRISTO, presente em todos os sacrários
da terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças, com que Ele mesmo é ofendido”.
Síntese teológica / 50

♦ “a comunhão do homem pecador com Deus é restabelecida ou plenamente


restabelecida”: o segundo objetivo da expiação se encontra no homem que pecou. De fato, o
efeito da expiação não é completo se não se alcançam os dois objetivos. Estes, na verdade, estão
tão intimamente unidos – são, por assim dizer, frente e verso da medalha – que, se se alcança
um, alcança-se também o outro. O único caso em que se pode alcançar o primeiro objetivo
(reparação da ofensa divina) sem alcançar também o outro (comunhão do homem pecador com
Deus) pode ser o seguinte: alguém expia por outra pessoa, e esta resiste obstinadamente até o
fim à graça de Deus.
♦ “amor sofredor”: o amor expiador é necessariamente um amor sofredor.

b) Por que a expiação é necessariamente amor s o f r e d o r ?


Para entendermos esta exigência (amor sofredor), consideremos que a expiação tem a ver
com a relação de amor entre Deus e o homem. Pensemos nas relações entre pessoas humanas:
se feri uma pessoa que realmente amo ou de novo amo, eu mesmo vou sentir uma dor no meu
coração por causa da minha falta e da dor que causei a esta pessoa. Porque amo esta pessoa, a
sua dor (que lhe causei) não me é indiferente; pelo contrário, sofro por isso, sofro com a pessoa.
Motivado por esta dor de amor, empenho-me por consolá-la e fazê-la esquecer a dor através de
uma prova maior de amor a ela.
Apliquemos isso à relação de amor entre Deus e mim. Se pelo pecado ofendi a Deus, feri o
Seu amor, só posso amá-l’O verdadeiramente ou de novo, se O amo com um amor sofredor.
Pois, se O amo, me dói – ou, como se diz, “tenho pena” – de ter O ter ofendido, de O ter ferido
em Sua honra e Seu amor; sinto dor pelo meu pecado. É o “arrependimento por amor”
(contrição). Vê-se, portanto:

Sem a dor do arrependimento71


não posso amar Deus de novo ou novamente de todo o coração.

Esta dor do arrependimento traz em si a vontade de reparar a ofensa infligida a Deus, de


“curar” a “ferida” do amor de Deus, de restabelecer a honra divina. Ora, uma vez que Deus
conhece tudo que está em mim e uma vez que – como ainda veremos – o amor sofredor é o
amor maior, o amor que padece a dor do arrependimento já é a prova especial ou maior de amor
da qual falamos ao dar um exemplo tomado das relações interpessoais humanas.
Para manifestar a verdade desta afirmação, basta levar em consideração a seguinte
constatação do Catecismo da Igreja Católica: “Uma conversão que procede de uma ardente
caridade pode chegar à total purificação do pecador, de tal modo que não haja mais nenhuma
pena” (Cat. 1472). Com a purificação completa do pecador, também a ofensa de Deus ou Sua
“dor” por causa do pecado é reparada, uma vez que são como os dois lados da mesma realidade.
Ora, é evidente o seguinte: quanto mais ardente for o amor, tanto maior será também a dor
do arrependimento, tanto mais esse amor é, portanto, amor sofredor. Por conseguinte, amor mais
ardente e sofrimento maior vão juntos, e disso resulta uma maior força de expiação.
Deste modo, chegamos, com clareza, a esta conclusão:

Exatamente como sofredor, o amor é expiador,


isto é, aquele amor maior pelo qual a ofensa divina é reparada.

71
Cf. Cat. 1451: A contrição “consiste «numa dor da alma e detestação do pecado cometido, com a resolução
de não mais pecar no futuro»”.
Síntese teológica / 51

A necessidade do sofrimento para a expiação – como eliminação da situação desastrosa,


causada pelo pecado, nas relações entre Deus e o homem – pode-se reconhecer também sob
outro ponto de vista.
O pecado é um “não” a Deus, um “não” que está presente no “sim” desordenado a um bem
criado. Para transformar esse “não” em um “sim” (amor) a Deus, o pecador deve dizer “não” ao
bem criado, que lhe proporcionou prazer ou ainda lhe proporciona. Este “não” significa,
portanto, renúncia, desprendimento de um bem que dá prazer. É, portanto, um sofrimento, pois
sofrimento é sempre a privação de um bem, sendo percebida. É claro que esse “não” ao bem
criado (no fundo, a si mesmo), no fundo, traz vantagem ao homem, é para o seu bem. É assim,
pois somente deste modo ele pode dizer “sim” ao bem que é infinitamente maior, isto é, a Deus.
E só Deus pode satisfazer seu desejo da felicidade plena. Jesus o diz com as seguintes palavras:
“Quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do
Evangelho, a salvará” (Mc 8,35).72

c) O sofrimento na expiação v i c á r i a
Até agora consideramos a expiação do pecador por seus próprios pecados. Porém, o
pecador não é capaz de expiar seus pecados, a não ser que Deus lhe dê de novo o dom do amor
divino em seu coração, dom que perdeu pecando. Isto não significa outra coisa senão que Deus
lhe perdoa. Só assim o pecador pode ter o amor expiador de que falamos.
Ora, Jesus, o Filho de Deus feito homem, Se fez a vítima de expiação pelos pecados de
todos os homens:

“Ele é a expiação pelos nossos pecados,


e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2).

Esta é a expiação “vicária”. Através desta expiação, os pecadores recebem de novo o dom
divino do amor73, e então, sim, poderão realizar o amor expiador. Sua expiação se baseia
inteiramente na expiação de Jesus e não pode ser outra coisa senão: poder participar da
expiação de Jesus.
Já dissemos que o Filho de Deus, através do fato de ser homem e pelo Seu amor divino-
humano, Se fez solidário com todos os homens. Isto significa que Se colocou no lugar deles, fez
Sua a situação deles, para, em lugar e em favor deles, reparar a ofensa do Pai, curar a “ferida” do
Seu coração amoroso de pai. Com efeito, a expiação deve ser feita por aquele que pecou. Mas,
uma vez que este era incapaz disso, o Filho de Deus Se tornou um membro do gênero humano
(ver Hb 2,14-15.17) – “um de nós” –, a fim de realizar a expiação “vicária”.
Para poder expiar, Ele devia, portanto, fazer Sua a situação dos pecadores, sem, porém, Ele
mesmo tornar-Se pecador. Pois, neste caso, nem poderia expiar. É que o pecador, por sua culpa,
está privado do dom do amor divino, e sem este amor é impossível expiar. E como Jesus pode,
de fato, concretamente, existencialmente, tornar-Se solidário com os pecadores e, ao mesmo
tempo, ser um com o Pai no amor? Como pode, em nome dos pecadores, dar ao Pai a resposta
de amor que cura a “ferida” do Seu coração amoroso de pai, repara a ofensa divina causada pelo
pecado?

72
A renúncia a um bem criado pode se realizar de duas maneiras:
a) como eliminação da desordem com a qual o bem foi amado (de modo que não haja mais um apego
desordenado ao bem);
b) como renúncia a um bem que o homem poderia possuir (um prazer que poderia ter) sem que prejudicasse o
amor que deve a Deus.
73
Aqui se levanta a questão se teria sido possível que Deus simplesmente perdoasse ao homem o pecado sem
haver uma reparação da ofensa divina por parte dele. Pelo mínimo, se deve dizer que isso teria sido muito
inconveniente.
Síntese teológica / 52

Só o pode fazer pelo amor sofredor, pelo amor que sofre por causa do pecado. Uma vez
que Ele mesmo não pecou, este sofrimento não pode ser a dor do arrependimento, como
também, para amar o Pai de todo o coração, Ele não precisa desprender-Se de um bem criado
que tenha amado de um modo desordenado. Nada de tudo isso é necessário, nem é possível,
porque Seu amor é verdadeiramente perfeito (sem qualquer apego a uma criatura que pudesse
prejudicar Seu amor ao Pai). Seu amor é absolutamente perfeito, ordenado, puro. Como, então,
pode assumir em Si a situação dos pecadores, tornar-Se solidário com eles?

Jesus pode tornar-Se solidário com os pecadores,


sofrendo aquelas consequências do pecado
que são compatíveis com o amor perfeito de Deus (e do próximo):
o sofrimento físico e moral que os homens têm de suportar por causa do pecado
(pecado original e pecados pessoais).

São estas consequências que Ele pode tomar sobre Si e não, por ventura, as “penas” do pecado
(pena eterna e temporal74).
De acordo com isso, Jesus sofreu física e moralmente por causa dos pecados dos homens. O
ponto culminante do Seu sofrimento físico foi o martírio até a morte na cruz. O cume do Seu
sofrimento moral foi o sofrimento no Getsêmani e então a experiência do abandono de Deus na
cruz. Este amor sofredor é certamente o ápice absoluto da Sua resposta de amor, como homem,
ao Pai Celeste.

d) Por que o amor sofredor é tão grande?


Por que o amor sofredor é tão grande é, até mesmo, o ápice do amor? Podemos entendê-lo
de alguma maneira, se tomarmos consciência de que a perfeição do amor pode consistir:
♦ na i n t e n s i d a d e (é, por assim dizer, o grau do calor do fogo do amor);
♦ na l i b e r d a d e deste amor. Em vez de “liberdade”, podemos também dizer: o fato que o
ato de amor é algo próprio desta determinada pessoa.
Ambas as perfeições podem ser menores ou maiores.
A intensidade do amor
Qualquer amor pode ser medido pela sua intensidade. Esta é independente da grandeza do
ato que se realiza. Jesus fez tudo, também os atos mais insignificantes, com toda a intensidade
de Seu amor ao Pai e a nós. Também nós, na verdade, temos de esforçar-nos por fazer tudo com
toda a intensidade do amor de que atualmente somos capazes.
Ora, a virtude teologal do amor em nossos corações, bem como o crescimento no grau deste
amor – na intensidade, portanto, com a qual podemos amar – é um dom de Deus. No entanto,
podemos também merecer esse crescimento através dos nossos atos de amor (e de outras
virtudes, com amor). Porém, para que estes atos sejam meritórios, devem ser livres. De fato, são
dois os fatores necessários e que determinam a grandeza do mérito: a intensidade e a liberdade
do amor.
A liberdade do amor
Quando consideramos a grandeza do amor sob o ponto de vista da intensidade, sobressai o
aspecto do dom de Deus: o amor e seu crescimento sempre nos precisam ser dados por Deus.

74
A pena eterna é a eterna privação da comunhão com Deus; a assim chamada “pena temporal” é a privação
daquela perfeição da comunhão com Deus que o homem poderia ter se não tivesse pecado ou se sua conversão
fosse total. Depois da morte, a pena temporal é a privação da bem-aventurança em Deus (visão beatífica) até que a
alma seja de tal modo purificada que possa amar a Deus verdadeiramente de todo o coração.
Síntese teológica / 53

Considerando a liberdade, sobressai o aspecto da nossa ação, do nosso empenho.


Evidentemente, também a liberdade é para nós um dom de Deus: somos livres, porque Deus nos
criou como pessoas (sujeitos conscientes e livres) e nos colocou naquela situação em que
livremente podemos dar a resposta de nosso amor ao Seu amor. No entanto, como já vimos, a
liberdade faz com que seja meu o que é dom recebido de Deus, isto é, o amor divino “derramado
em nossos corações” (cf. Rm 5,5).
Ora, como já vimos igualmente, para que haja essa liberdade na nossa resposta de amor a
Deus, é necessário o “estado de caminhada”, o que implica certo tipo de sofrimento.

Se ao estado de caminhada se acrescenta


o s o f r i m e n t o que é consequência do pecado,
a l i b e r d a d e do amor a u m e n t a m u i t o ,
pois Deus, como bondade infinita, está bem mais “escondido” à nossa experiência;
a Sua força de atração sobre a nossa vontade é bem menor.

Consequentemente, é preciso um empenho maior da minha parte, uma decisão mais profunda
da minha vontade, para amar Deus. Amar Deus neste sofrimento é muito mais difícil. Por outro
lado, este amor tem também uma grandeza especial. O exemplo de Jó, no Antigo Testamento,
nos manifesta isso de uma maneira impressionante (cf. Jó 1,8-11.21; 2,5.9-11). Mas o exemplo
supremo é nosso Senhor Jesus Cristo na cruz, amando o Pai com todas as “fibras” do Seu
coração humano, embora Se sinta abandonado por Ele (cf. Mt 27,46; Mc 16,34). Aqui se nos
apresenta a admirável grandeza da liberdade do amor, a maior liberdade possível, juntamente
com a máxima intensidade do amor. É verdadeiramente o ápice absoluto do amor do Coração
de Jesus ao Seu Pai celeste.

e) Por que é exatamente o amor s o f r e d o r aquele amor que e x p i a ?


Vimos a grandeza especial do amor sofredor. Vimos igualmente que o amor expiador,
também na expiação vicária, necessariamente tem de ser amor sofredor. Agora podemos
perguntar-nos mais uma vez por que exatamente o amor sofredor tem a qualidade de ser
expiador.
Devemos levar em consideração que expiar é e deve ser exatamente o oposto de pecar. Ora,
no ato de pecar, a liberdade tem um papel decisivo. Sem a liberdade não seria, de modo algum,
possível pecar. O papel da liberdade no ato de pecar se evidencia particularmente no fato que no
pecado alguma coisa provém somente de mim, não de Deus. Aí há algo que, de modo algum,
provém de Deus como origem. É claro que é algo negativo, ou seja, algo que deve haver, mas
não há: eu, somente eu, sou a origem de uma desordem no meu agir ou deixar de agir. Portanto,
vê-se com clareza que no pecar a liberdade entra em ação de um modo decisivo, embora
negativo.
Sendo assim, também no expiar a liberdade deverá entrar em ação de um modo decisivo.
Agora, porém, de uma maneira positiva. Com efeito, expiar é exatamente o oposto ao pecar!
No expiar, porém, não se trata de algo que provenha somente de mim, não de Deus, pois isto
só poderia ser algo negativo (contra Deus e prejudicial a mim mesmo). Trata-se do seguinte
fato:

Ao expiar, a resposta de amor ao amor de Deus é dada


com um empenho maior da parte do homem que expia.

No amor expiador existe, portanto, um especial empenho próprio do homem ao amar a Deus.
Síntese teológica / 54

Isso é possível pelo sofrimento que é consequência do pecado,


pois por este sofrimento a liberdade do amor a Deus aumenta.

Para que o amor seja um amor expiador não basta, portanto, que o homem ame Deus com
uma intensidade maior. Pois também quando não pecou, o homem está obrigado a amar a Deus
com toda a intensidade que lhe é possível (“de todo o coração, com todas as forças”), e na
intensidade sobressai o aspecto do dom de Deus. Na expiação, porém, o acento está sobre o
homem, sobre algo que este dá a Deus como sua própria contribuição; o acento está, portanto,
sobre a liberdade. E vimos que é exatamente o sofrimento que aumenta a liberdade e, assim, o
empenho próprio do homem.

4) O amor misericordioso de Jesus Cristo e de Deus Pai


“Deus, que é rico em misericórdia, impulsionado pelo grande amor com que nos amou,
quando estávamos mortos em consequência de nossos pecados, deu-nos a vida juntamente com
Cristo – é por graça que fostes salvos!” (Ef 2,4-5).
A obra da redenção ou salvação é uma obra do amor misericordioso de Deus. É o amor
misericordioso de Deus Pai (e, com Ele, do Filho e do Espírito Santo, que têm do Pai este amor
divino) que está na origem da obra da redenção da humanidade e, portanto, na origem da missão
do Filho e do Espírito Santo. O amor compassivo do Pai levou-O a doar à humanidade Seu
próprio Filho como Redentor, como Aquele que, em nome de todos os homens, deveria dar a
resposta de amor expiador ao amor divino ferido pelo pecado, reparando assim a ofensa divina e
obtendo o dom do perdão, ou seja, obtendo, de novo, o dom do Espírito Santo para os corações
humanos (cf. 1 Jo 4,8-11).
Deste modo, Jesus Cristo é – por Seu sacrifício da cruz – verdadeiramente a “causa” da
salvação dos homens (cf. Hb 5,9: “... causa de salvação eterna para todos quantos Lhe
obedecem”). Ele não apenas manifesta o perdão do Pai, mas realmente obtém este perdão para
os homens pecadores.
Nem por isso, porém, a salvação deixa de ser um dom gratuito de Deus aos homens
pecadores (“é por graça que fostes salvos!”), pois é o próprio Pai, é Seu amor misericordioso,
que dá aos homens Seu próprio Filho como vítima de expiação pelos pecados deles (cf. 1 Jo
4,10). O Filho como homem, como redentor, como expiação dos pecados dos homens, é dom
gratuito do Pai para toda a humanidade.
Na obra redentora de Jesus Cristo manifesta-se, de um modo insuperável, esse amor
misericordioso de Deus Pai. De fato, no amor expiador de Jesus, enquanto amor aos homens
pecadores, se realiza a misericórdia de uma maneira tão profunda e perfeita que só se tornou
possível pela encarnação do Filho de Deus: Jesus assume realmente o sofrimento dos homens
pecadores; Ele o faz Seu não apenas pela união afetiva, mas por uma união real. É a
solidariedade levada ao extremo. E esta solidariedade, esta misericórdia é, como vimos, um
pressuposto para Jesus poder oferecer o sacrifício expiatório ao Pai (cf. Mt 26,28). O amor
expiador de Jesus é, por isso, amor misericordioso aos homens pecadores, manifestação
suprema de Deus que é amor misericordioso, amor compassivo com a maior miséria que pode
atingir o homem, isto é, a do pecador, privado da comunhão com Deus-amor.

6. A relação da Páscoa de Jesus aos santos anjos

Pelo que vimos até agora – particularmente falando da volta de Jesus ao Pai como um
grande ato de amor –, está claro que Jesus realizou a Sua volta ao Pai, do início à chegada junto
do Pai, “no Espírito Santo” (presença do Espírito Santo em Sua alma humana), que é na
Divindade mesma a unidade de amor entre o Pai e o Filho. Também sob este aspecto, as missões
Síntese teológica / 55

do Filho e do Espírito Santo são uma missão conjunta, inseparável. “Em virtude do Espírito
eterno, Cristo Se ofereceu a Si mesmo a Deus como vítima sem mancha” (Hb 9,14).75 Tendo
assim voltado para o Pai, Jesus Cristo pode enviar o Espírito Santo para unir os homens a Si e,
em Si, ao Pai, para comunicar-lhes a (fazendo-os participar da) Sua comunhão com o Pai no
Espírito Santo.
Isto vale também para os anjos, quer dizer:

Jesus Cristo, o Redentor dos homens,


é também para os anjos a “fonte” do Espírito Santo.

É para eles a fonte da comunhão com Deus Trindade e da graça de poder superar a prova e
entrar na comunhão gloriosa com a Ss. Trindade (na visão beatífica).
No entanto, existe uma grande diferença:

A “volta” ao Pai, com a qual Jesus mereceu aos anjos o Espírito Santo,
não é aquela que se realizou pelos atos do amor expiador, redentor.
Jesus não morreu pelos anjos.76

Porém, Ele não realizou uns atos especiais em benefício dos anjos: merecendo aos homens o
Espírito Santo, mereceu-O também aos anjos. Mas estes atos, sobretudo a Sua Páscoa, com
relação aos anjos tiveram simplesmente a qualidade meritória, ou seja, enquanto feitos no
estado de caminhada. Portanto, a fim de merecer para eles a graça e a glória, não era necessário
aquele sofrimento que é consequência do pecado (enfim, a morte).
Em Sua Páscoa, Jesus Cristo é também para os santos anjos fonte do Espírito Santo ou o
“caminho” para a sua união perfeita com Deus e em Deus. Porém, não o é enquanto a Sua
Páscoa é ato de amor expiador, redentor, mas simplesmente como ato livre, meritório.

IX. O mistério de Maria, “a obra-prima da missão do Filho e do


Espírito na plenitude do tempo”

1. Maria no mistério de Cristo e do Espírito Santo

A relação, portanto a comunhão, da Virgem Maria com a Ss. Trindade é estreitíssima; é a


mais estreita e profunda de todas as pessoas criadas. Entre todas as criaturas foi a ela que as
Pessoas divinas Se doaram mais perfeitamente. Ela é
a filha eleita do Pai,
a Mãe do Filho e
o sacrário (ou a “esposa”) do Espírito Santo.
Ora, se Deus Trindade Se comunica às criaturas através da missão conjunta do Filho e do
Espírito Santo, com razão se pode dizer que “Maria, a Mãe de Deus toda santa, sempre Virgem,
é a obra-prima da missão do Filho e do Espírito na plenitude do tempo” (Cat. 721).
Reflitamos, portanto, sobre Maria na missão do Filho e na do Espírito Santo; assim vemos
também sua singular relação com Deus Pai.

75
No Rito Romano, uma oração do sacerdote em preparação para a S. Comunhão diz: “... cumprindo a vontade
do Pai e agindo com o Espírito Santo (cooperante Spiritu Sancto), pela vossa morte destes vida ao mundo”.
76
Cf. Hb 2,16: “Pois, afinal, Ele não veio em auxílio de anjos, mas da descendência de Abraão”. Esta frase se
encontra num contexto imediato em que se fala da solidariedade de Cristo com os homens, solidariedade esta que é
a condição para poder “expiar os pecados do povo” (v. 17).
Síntese teológica / 56

Maria está indissoluvelmente ligada à missão do Filho.77 Esta se realiza através dela,
através do seu ato de fé e de amor que abraça a vontade divina de o Filho Se fazer homem por
meio dela, a mulher virginal. No desígnio divino da Encarnação do Filho, da salvação da
humanidade, da união de todas as coisas nos Céus e na terra no Filho encarnado, das “núpcias
do Cordeiro”, neste desígnio divino Maria tem uma posição central e necessária como Mãe do
Filho.

Eleita para ser a Mãe do Filho de Deus,


ela é a filha eleita do Pai, eleita de um modo totalmente singular.

A singularidade não está em ela ser “filha do Pai”, mas em ser a filha de tal modo eleita. Pois
esta filha foi eleita para ser verdadeiramente a genetriz de Deus Filho segundo a natureza
humana. Deus Pai é o genitor do Filho segundo a natureza divina; Maria, a virgem-mãe, é a
genetriz da mesma Pessoa, mas segundo a natureza humana (como homem, como “Filho do
Homem”, isto é, como o FILHO que é homem).78 Vê-se, portanto, que Maria participa de alguma
maneira da relação do PAI ao FILHO, enquanto ela é Mãe deste mesmo FILHO.
Maria é a Mãe de Deus Filho, é a origem de Deus Filho enquanto homem; esta maternidade
divina é o centro em todo o mistério de sua pessoa e ação.

Ser “Mãe do Filho” é uma


relação absolutamente singular e exclusiva de Maria à segunda Pessoa divina.

É exclusiva em dois sentidos:


♦ nenhuma das outras pessoas criadas tem esta relação;
♦ esta relação tem por termo exclusivamente a Pessoa do Filho, não a Pessoa do Pai, nem a
do Espírito Santo.
A maternidade divina de Maria é propriamente o centro em todo o mistério da sua pessoa e
ação na economia da salvação. Por ela se realiza a missão do Filho “para ser homem” e “para
estar entre os homens”, estabelecendo relações de comunhão com eles, 79 bem como para, afinal,
estar “nos homens”, pelo mistério da santíssima Eucaristia. 80 Em primeiro lugar, porém, Ele está
em Maria como o Filho em Sua mãe, como então estará nela também, com a maior perfeição,
pela Comunhão eucarística.
Ora, a missão do Filho se realiza em inseparável conexão com a missão do Espírito Santo.
“A missão do Espírito Santo está sempre conjugada e ordenada à do Filho (cf. Jo 16,14-15)”
(Cat. 485). “O Espírito Santo é enviado para santificar o seio da Virgem Maria e fecundá-la
divinamente” (ibid.).
No cap. VII já apresentamos o “conceito integral da maternidade divina”, reconhecendo que
a graça da maternidade divina (relação de origem da mãe ao Filho) implica os dons de santidade
(para viver a comunhão interpessoal com o Filho), sem os quais Maria seria uma mãe
inconsciente e estranha à própria maternidade. É pelas graças de santidade que Maria é

77
Esta ligação se manifesta também na ligação que existe entre aquilo que a Igreja crê a respeito de Jesus
Cristo e a respeito de Sua Mãe: “O que a fé católica crê acerca de Maria funda-se no que ela crê acerca de Cristo,
mas o que a fé ensina sobre Maria ilumina, por sua vez, sua fé em Cristo” (Cat. 487).
78
Conc. de Friuli em 796 (DS 619): “por natureza, Filho de seu Pai, segundo a divindade; por natureza, Filho
de sua Mãe, segundo a humanidade; mas propriamente Filho de Deus em suas duas naturezas”.
79
Cf. Jo 1,14: “E a PALAVRA Se fez carne (= “para ser homem”) e veio morar entre nós” (= “para estar entre
nós, relacionando-Se conosco”).
80
Cf. Jo 1,14 em conexão com o “Pão da vida” que é Jesus, e o “pão” que Ele dá, isto é, Sua carne ( Jo 6,32-
51): a PALAVRA que Se fez carne é o PÃO da vida que desceu do Céu. Ele dá então aos homens fiéis a Sua própria
carne como alimento para Ele estar neles e eles n’Ele (cf. Jo 6,56: “... permanece em mim, e eu nele”).
Síntese teológica / 57

capacitada a elevar o próprio coração e o espírito ao nível da sua singular maternidade. Assim
vemos o seguinte:

A relação de maternidade da santíssima Virgem ao seu Filho


implica a sua relação ao Espírito Santo.

Em vista da sua maternidade divina, realizou-se em Maria, já no primeiro instante da sua


existência, a missão invisível do Espírito Santo: ela começa a existir com a presença do
Espírito Santo nela, portanto com a graça santificante, participação da natureza divina, da vida
divina. É a sua “imaculada conceição”, sendo assim preservada imune de toda mancha do
pecado original e enriquecida de uma “santidade resplandecente, absolutamente única” (LG 56),
que lhe vem inteiramente de Cristo: “Em vista dos méritos de seu Filho, foi redimida de um
modo mais sublime” (LG 53). “Convinha que fosse «cheia de graça» a mãe daquele em quem
«habita corporalmente a Plenitude da Divindade» (Cl 2,9).

Por pura graça, ela foi concebida sem pecado


como a mais humilde das criaturas,
a mais capaz de acolher o Dom inefável do Todo-Poderoso” (Cat. 722).

Depois de Jesus, “o Ungido” pelo Espírito Santo, a Virgem imaculada e Mãe de Deus é o
ponto culminante da missão do Espírito Santo. A sua união com o Espírito Santo é inefável,
ela, “a toda santa”, a “plasmada pelo Espírito Santo” 81. Por isso é chamada de “sacrário” e
“esposa”82 do Espírito Santo. Assim também é possível a mais íntima cooperação de Maria com
o Espírito Santo.
Notemos que, na divindade, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, mas d’Ele não
procede nenhuma Pessoa divina. Por conseguinte, a Sua personalidade é constituída unicamente
pela relação de espiração passiva; não é constituída ou caracterizada por alguma relação de
origem (sendo Ele a origem) ao que é originado, como é o caso da Pessoa do Filho (que é a
relação subsistente de filiação, mas também de espiração ativa). Na divindade, o Espírito Santo
é, por conseguinte, “Aquele que recebe” (é somente o termo de uma processão intradivina, não
a origem de uma processão), mas o é como quem é Deus, perfeitamente Deus como o Pai e o
Filho.
Ora, a criatura é, por essência, “aquela que recebe”; tudo que ela é, tudo que nela há de
bom, ela o recebeu e recebe de Deus; a criatura recebe, acolhe o dom divino; só assim pode agir
e produzir fruto. A característica própria da criatura como criatura é, portanto, a receptividade,
enquanto a característica própria de Deus como Criador é a bondade que doa.
Maria é a criatura por excelência, a criatura que mais perfeitamente realiza a essência de
criatura em toda a sua vida, seu pensar e agir. Por isso, ela é perfeita receptividade, com a
consciência clara do seu “nada” de criatura (nada por si mesma, de si mesma), da sua condição
de que, para poder ser e agir, tem de receber, acolher o que lhe vem de Deus. Esta sua
consciência é mais clara e profunda do que a de qualquer outra criatura.

É exatamente a plenitude83 do dom (presença atuante) do Espírito Santo em Maria


♦ que faz dela a criatura mais capaz de acolher o Dom inefável do Todo-Poderoso,
♦ que faz com que ela seja toda receptividade e
e a criatura mais humilde (mais consciente da sua posição diante de Deus84).

81
Expressões dos Padres da tradição oriental (cf. Cat. 493).
82
A palavra “esposa” quer exprimir a íntima união entre Maria e a Pessoa do Espírito Santo.
83
Uma plenitude que, durante a sua vida, cresceu sempre mais.
Síntese teológica / 58

A Pessoa do Espírito Santo – “Aquele que recebe”, Aquele que é relação de origem ao Filho e
ao Pai –, doando-Se a ela, fazendo-Se presente nela (de um modo totalmente novo, como já
explicado), une-a ao Filho e ao Pai numa atitude de receptividade total. Tendo em si, desde o
primeiro instante da sua existência, o Dom divino em Pessoa (o Espírito Santo), ela é preparada
para acolher o máximo dom que o Pai e o Filho lhe podem e querem fazer: o dom da Pessoa do
Filho eterno como seu próprio filho, como o fruto das suas entranhas, isto é: ela concebe o Filho
eterno do Pai como homem. Aqui, a relação da criatura a Deus é levada ao máximo da sua
perfeição, em plena conformidade com a essência da criatura: uma relação de abertura a Deus,
ao dom que Deus lhe faz, um consentimento com a vontade divina, um receber que se torna
concretamente um conceber, uma concepção, um ser fecundada para produzir o fruto divino.
É uma concepção virginal, porque não se realiza por ação de outra criatura, isto é, de um
homem, mas diretamente por ação do Espírito Santo (o Dom do Pai e do Filho) e do Filho que
doa a Si mesmos e do Pai que doa Seu Filho. A virgindade perpétua de Maria – antes da
concepção, na concepção, no parto e, depois do parto, durante toda a sua vida na terra – é
vivência plena e radical da sua união perfeita com o Espírito Santo. Este, com efeito, sendo
relação subsistente ao Filho e ao Pai, faz Maria viver, de um modo total e exclusivo, a relação de
amor à Pessoa do Filho e do Pai. “O sentido esponsal da vocação humana em relação a Deus (cf.
2Cor 11,2) é realizado perfeitamente na maternidade virginal de Maria” (Cat. 505). Como
virgem, ela é a criatura aberta, com a totalidade do seu ser, à ação de Deus.

Maria, a Virgem Mãe


– como “aquela que r e c e b e ( c o n c e b e ) d e D e u s ”,
repleta do Dom divino, o Espírito Santo, a Pessoa divina cuja característica é de ser
“Aquele que r e c e b e ” (espiração passiva) –
é a criatura mais perfeita, capaz de, com um ato de fé e amor,
a c o l h e r , em nome de todas as criaturas,
a máxima autodoação divina às criaturas,
que consiste no fato de
o Filho eterno do PAI, segundo a divindade, Se fazer
o Filho da Virgem Maria, segundo a humanidade.

2. Maria no mistério da Igreja

O papel de Maria para com a Igreja decorre diretamente da sua união com seu Filho e,
portanto, com o Espírito Santo; é inseparável desta união. Ela se dedicou totalmente ao seu Filho
e à Sua obra de salvação. “Ao pronunciar o «fiat» (faça-se) da Anunciação e ao dar seu
consentimento ao Mistério da Encarnação, Maria já colabora para toda a obra que seu Filho
deverá realizar. Ela é Mãe onde Ele é Salvador e Cabeça do Corpo Místico” (Cat. 973).85
A relação de Maria com a Igreja pode-se sintetizar da seguinte maneira:
 Ela é membro da Igreja, mas “membro supereminente e absolutamente único” (LG 53);

84
É a posição de quem deve tudo a Deus; e quanto mais deve a Deus, isto é, quanto maiores dons tiver
recebido de Deus, tanto mais humilde será.
85
LG 58: “A bem-aventurada Virgem avançou em sua peregrinação de fé, manteve fielmente sua união com o
Filho até a cruz, onde esteve de pé não sem desígnio divino, sofreu intensamente junto com seu unigênito. E com
ânimo materno se associou a seu sacrifício, consentindo com amor na imolação da vítima por ela gerada.
Finalmente, pelo próprio Jesus moribundo na cruz, foi dada como mãe ao discípulo com estas palavras: "Mulher,
eis aí teu filho" (Jo 19,26-27).”
Síntese teológica / 59

 Ela é a “realização exemplar (typus)” da Igreja (LG 63), portanto modelo perfeito da
Igreja86 e, por conseguinte, também “ícone escatológico da Igreja” (Cat. 972 [título]).
 Ela é a Mãe de todos os fiéis;
 Ela é a Mãe da Igreja.
Maria é verdadeiramente “Mãe dos membros [de Cristo] (...), porque cooperou pela
caridade para que na Igreja nascessem os fiéis que são os membros desta Cabeça” 87. “De modo
inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela cooperou na obra do
Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas. Por este motivo ela se tornou para
nós mãe na ordem da graça” (LG 61). Assim, pela perfeita presença atuante do Espírito Santo
nela, “Maria torna-se a «Mulher», nova Eva, «mãe dos viventes», «Mãe do Cristo total»” (Cat.
726). “Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura ininterruptamente, a partir do
consentimento que ela fielmente prestou na anunciação, que sob a cruz resolutamente manteve,
até a perpétua consumação de todos os eleitos. Assunta aos céus, não abandonou este múnus
salvífico, mas, por sua múltipla intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna.
(...) Por isso, a bem-aventurada Virgem Maria é invocada na Igreja sob os títulos de advogada,
auxiliadora, protetora, medianeira” (LG 62). “Cremos que a Santíssima Mãe de Deus, nova Eva,
Mãe da Igreja, continua no Céu sua função materna em relação aos membros de Cristo.” 88
Maria, de fato, não é somente Mãe de todos os fiéis, mas também Mãe da Igreja. O que
significa isso? Significa que a função de Maria, expressa com o conceito de maternidade
(“mãe”), é referida ao próprio nascimento da Igreja. Isto, porque se reconhece que Maria tem
um papel na própria obra da Redenção realizada por Seu Filho (na “redenção objetiva”). Com
efeito, no momento em que se realiza a obra da salvação, a Igreja ainda não existe, mas está para
nascer do lado de Cristo.89
Contra esta doutrina foi levantada a seguinte objeção: Maria não pode ser Mãe da Igreja,
porque é um membro da Igreja. Esta objeção só pode fazer quem faz de uma metáfora um uso
unívoco e rígido. No entanto, é evidente que Maria não é mãe física, biológica da Igreja, ou seja,
dos membros da Igreja.
Quanto à “maternidade de Maria na economia da graça”, isto é, a mediação de Maria, o
Concílio Vaticano II já esclareceu o seguinte: “A missão materna de Maria em favor dos
homens de modo algum obscurece nem diminui a mediação única de Cristo; pelo contrário, até
ostenta sua potência, pois todo o salutar influxo da bem-aventurada Virgem (...) deriva dos
superabundantes méritos de Cristo, estriba-se em sua mediação, dela depende inteiramente e
dela aufere toda a sua força” (LG 60). A “única mediação do Redentor não exclui, antes suscita
nas criaturas uma variegada cooperação que participa de uma única fonte” (LG 62).90 Para
entendermos isso, basta pensarmos no fato de que o Espírito Santo no coração imaculado de
Maria – capacitando-a a realizar aqueles atos de fé, amor, obediência etc., com os quais
colaborou na obra redentora de seu Filho divino –, ela O tem d’Ele; ela O recebeu, já no

86
“Por sua adesão total à vontade do Pai, à obra redentora de seu Filho, a cada moção do Espírito Santo, a
Virgem Maria é para a Igreja o modelo da fé e da caridade. Com isso, ela é «membro supereminente e
absolutamente único da Igreja», sendo até a «realização exemplar (typus)» da Igreja” (Cat. 967).
87
LG 53, citando Sto. Agostinho, virg. 6: PL 40,399 (cf. Cat. 963).
88
PAULO VI, Solene Profissão de Fé, 15.
89
Recordemo-nos de que a efusão do Espírito Santo no Pentecostes é o “fruto” do sacrifício da cruz de Cristo.
90
“Com efeito, nenhuma criatura jamais pode ser equiparada ao Verbo encarnado e Redentor. Mas, da mesma
forma que o sacerdócio de Cristo é participado de vários modos, seja pelos ministros, seja pelo povo fiel, e da
mesma forma que a indivisa bondade de Deus é realmente difundida nas criaturas de modos diversos, assim
também a única mediação do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas uma variegada cooperação que
participa de uma única fonte” (LG 62).
Síntese teológica / 60

primeiro instante da sua existência, “em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero
humano”91.
“Mãe da Igreja”, este título é significativo, pois mostra que a ação de Maria se estende – não
somente a todos os fiéis, mas – à Igreja mesma, à Igreja-pessoa.
Portanto, em Maria podemos e devemos contemplar “o que é a Igreja em seu mistério, em
sua «peregrinação da fé», e o que ela (Igreja) será na pátria ao termo final de sua caminhada,
onde a espera, "«na glória da Santíssima e indivisível Trindade», «na comunhão de todos os
santos», aquela que a Igreja venera como a Mãe de seu Senhor e como sua própria Mãe” (Cat.
972).

X. A Revelação divina na história e


sua transmissão na e através da Igreja
1. A Revelação divina na história
O centro e o ápice da Revelação divina na história é certamente a missão conjunta do Filho
e do Espírito Santo. “Por uma decisão totalmente livre, Deus se revela e se doa ao homem. Fá-lo
revelando seu mistério, seu projeto benevolente, que concebeu desde toda a eternidade em
Cristo em prol de todos os homens. Revela plenamente seu projeto enviando seu Filho bem-
amado, nosso Senhor Jesus Cristo, e o Espírito Santo” (Cat. 50). Esta é “a comunicação que o
Pai fez de si mesmo por seu Verbo no Espírito Santo” (Cat. 79).
Como entender a “Revelação divina”? A Revelação divina é uma iniciativa especial de
Deus. Num âmbito histórico singular, Ele sai livremente do silêncio e abre um diálogo explícito
e direto. Coloca-Se diante do homem como interlocutor pessoal, vai ao seu encontro, dirige-lhe
a palavra, chama-o abertamente a Si e manifesta-lhe progressivamente o Seu projeto de
salvação, centrado em Jesus Cristo.92

A Revelação divina é
a a u t o c o m u n i c a ç ã o de Deus aos homens:
Sua automanifestação e autodoação.

Uma pessoa só pode ser conhecida, no seu núcleo mais íntimo, se se exprimir livremente, se
comunicar aos outros os seus sentimentos e as suas intenções, os seus pensamentos e as suas
decisões, num diálogo feito de palavras e de atos, isto é, numa história concreta. Enquanto os
segredos da natureza são conhecidos a partir de fora através da observação científica, o segredo
próprio de um sujeito consciente e livre abre-se a partir do interior, pela via do autotestemunho.
Algo semelhante acontece na revelação que Deus faz de Si próprio e do Seu desígnio de
amor para com o homem. Deus não pode ser conhecido na Sua vida pessoal íntima através do
caminho da intuição ou da reflexão humana, mas apenas por Sua livre iniciativa. Por isso, “na
riqueza do Seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e
admitir à comunhão com Ele”, embora permanecendo invisível, fala e doa-Se “por meio de
ações e palavras intimamente relacionadas entre si” (Dei verbum, 2) e complementares, isto é,
por meio de uma história.
Os atos contêm a realidade significada pelas palavras. Confirmam e verificam as
palavras. Dão-se “de uma vez por todas” (Hb 9,12), isto é, num tempo preciso e irrepetível, mas

91
Papa Pio IX, Proclamação do dogma da Imaculada Conceição de Maria (DS 2803).
92
Transcrevemos aqui e em seguida, quase literalmente, a explicação dada em: CONFERÊNCIA EPISCOPAL
ITALIANA, A verdade vos tornará livres. Catecismo para adultos, Coimbra (sem ano), n. 43ss.
Síntese teológica / 61

com valor perene e universal. O significado e a conexão profunda dos acontecimentos são
indicados por Deus aos Seus mensageiros, através de uma comunicação interior, clara e
indubitável, que em seguida se traduz em palavras pronunciadas e finalmente escritas.
As palavras interpretam os atos como sendo obra de Deus e, por vezes, provocam-nos
de um modo eficaz. Chamam, prometem e orientam, para que os atos se realizem; narram-nos e
explicam-nos, para que voltem a acontecer.
É através das ações e das palavras que se desenrola a trama de uma história terrena concreta,
na qual o próprio Deus livremente conduz o Seu diálogo com os homens para lhes dar esperança
e futuro. Progressivamente, Ele dá-Se a conhecer e doa-Se até Se comunicar plenamente em
Jesus Cristo. Torna os homens capazes de Lhe responder, de acolher a Sua presença e de
participar na Sua vida.
A revelação histórica de Deus era orientada desde o início para uma meta, que alcança o seu
cumprimento em Jesus Cristo: “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos
pais pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2).

Jesus Cristo é o mediador e a plenitude de toda a Revelação divina (cf. DV 2).


Ele é a verdadeira e perfeita “encarnação”
da presença, da palavra e da ação divinas,
isto é, das três maneiras como uma pessoa se manifesta e se doa a outras pessoas.

N’Ele, a tendência de encarnação no Antigo Testamento (tendência de Deus Se colocar ao


nível dos homens para se relacionar com eles neste nível) se cumpre perfeitamente:
♦ A segunda Pessoa divina, isto é, o Filho, enviado pelo Pai, em inseparável união com a
Pessoa do Espírito Santo nele presente, Se faz presente com uma presença humana (cf. Jo 1,14).
♦ Ele, a Palavra única, perfeita e insuperável do Pai, Se comunica aos homens como
homem, falando com palavras humanas.
♦ As Suas ações humanas são ações da Pessoa divina do Filho, sempre cooperando o
Espírito Santo; são manifestações do amor divino.
Em Jesus, Deus Se tornou visível, sendo Ele “a imagem de Deus invisível” (Cl 1,15; cf.
2Cor 4,4). A Sua humanidade é o “sacramento”, isto é, o sinal (manifestação) e instrumento da
divindade, diretamente da Pessoa divina do Filho e, assim, também do Pai.
“Desde os paninhos de sua natividade até o vinagre de sua Paixão e o sudário de sua
Ressurreição, tudo na vida de Jesus é sinal de seu Mistério. Por meio de seus gestos, de seus
milagres, de suas palavras, foi revelado que «nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade» (Cl 2,9). Sua humanidade aparece, assim, como o «sacramento», isto é, o sinal e o
instrumento de sua divindade e da salvação que ele traz: o que havia de visível em sua vida
terrestre apontava para o mistério invisível de sua filiação divina e de sua missão redentora”
(Cat. 515).
“Toda a vida de Cristo é Revelação do Pai: suas palavras e seus atos, seus silêncios e seus
sofrimentos, sua maneira de ser e de falar. Jesus pode dizer: «Quem me vê, vê o Pai» (Jo
14,9); ... Tendo Nosso Senhor se feito homem para cumprir a vontade do Pai, os mínimos traços
de seus mistérios nos manifestam «o amor de Deus por nós» (cf. 1Jo 4,9)” (Cat. 516).
Como já vimos, a missão do Filho é inseparável da do Espírito Santo, que também tem uma
missão visível (manifestação), que é sobretudo o Pentecostes. A missão do Espírito está
conjugada e ordenada à do Filho. É a missão de quem recebe d’Ele e o comunica aos homens
(cf. Jo 16,14), missão, portanto, de pôr em comunhão com Cristo os homens, levando-os à fé
em Cristo, dando testemunho d’Ele (com, em e através do testemunho dos discípulos) ou, para
dizê-lo com uma só expressão, fazer os homens participar da comunhão de Jesus Cristo com o
Pai, que Ele tem justamente “no Espírito Santo” (cf. Cat. 725, 735).
Síntese teológica / 62

A missão conjunta
do Filho, a Palavra do Pai, e do Espírito Santo, o Amor do Pai e do Filho,
é a automanifestação e autodoação das três Pessoas divinas aos homens:
O Filho do Pai, enviado por Ele, cooperando sempre o Espírito Santo,
comunica a Si mesmo integralmente aos homens:
 faz-Se presente como homem entre os homens e
 comunica-lhes a Sua comunhão com o Pai no Espírito Santo,
♦ comunicando-lhes o Espírito Santo (a Sua graça santificante, o Seu conhecimento
– através da Palavra de Jesus, acolhida com fé – e o amor divino) e, enfim,
♦ doando a Si mesmo, com Sua própria substância humana,
aos Seus (Comunhão eucarística).

2. A transmissão da Revelação divina na e através da Igreja

“Deus dispôs com suma benignidade que


aquelas coisas que revelara para a salvação de todos os povos
permanecessem sempre íntegras e fossem transmitidas a todas as gerações” (DV 7).

Tradição e Escritura em Israel93


A Revelação de Deus é comunicação viva, numa história tecida por acontecimentos,
pessoais e coletivos, e por palavras confiadas originariamente aos Seus enviados. A mensagem,
trazida por estes, entra a fazer parte de uma tradição comunitária. Cada civilização é tradição
que passa de uma geração a outra. Cada religião é tradição. O povo de Deus não constitui
exceção. Em Israel transmitem-se recordações históricas, convicções religiosas, ritos, cantos,
orações, leis, sentenças sapienciais. É um patrimônio considerado sagrado, porque na sua
origem se encontra a Revelação entregue por Deus aos Seus enviados. É ciosamente guardado e
aumenta à medida que o tempo passa, com a progressão da Revelação. A fim de assegurar que a
sua transmissão fosse mais fácil e fiel foi também posta por escrito. As Sagradas Escrituras
tornam-se preceito de fé e de vida, são acolhidas como inspiradas pelo próprio Deus.

A Tradição apostólica
Jesus Cristo aceita a tradição de Israel, contida nos livros sagrados (cf. Mt 5,17). Por Sua
vez, Ele inicia a Sua própria tradição de ensinamentos e gestos, que os discípulos recebem e
transmitem (cf. Mt 28,19s; 1Cor 11,23; 15,3; Fl 4,9; 1Ts 4,2). A comunhão de vida comporta,
acima de tudo, a transmissão oral, instrumento privilegiado e seguro da memória naquele
tempo. Os apóstolos, “na pregação oral, por exemplos e instituições, transmitiram aquelas coisas
que ou receberam das palavras, da convivência e das obras de Cristo ou aprenderam das
sugestões do Espírito Santo” (DV 7). Desenvolve-se, assim, a “Tradição apostólica”, numa
variedade de formas: narrações, profissões de fé, hinos, fórmulas e ritos litúrgicos, exemplos e
regras de vida, regulamentos e instituições. Também esta tradição bem cedo se deposita em
textos escritos (cf. Lc 1,1-4; 2Ts 2,15), redigidos por autores divinamente inspirados, no seio da
comunidade cristã das origens.

93
Ver nota de rodapé 95 (Catecismo para adultos, n. 55ss).
Síntese teológica / 63

Permanente presença atuante


Os apóstolos deixam em herança, às sucessivas gerações cristãs, o seu testemunho, vivo e
escrito, como um sagrado depósito a ser guardado fielmente e revivido em situações sempre
novas (cf. 1Tm 6,20; 2Tm 1,12-14).

A Tradição apostólica originária, que compreende a Sagrada Escritura,


prolonga-se na T r a d i ç ã o e c l e s i a l p o s t e r i o r ,
com o auxílio perene do “Espírito da verdade” (Jo 14,17) prometido por Jesus (cf. Jo 14,16-17.26).

A Revelação é objeto de comunicação, explicitação e atualização. A luz da divina


Revelação propaga-se através da d o u t r i n a , o c u l t o e a v i d a da Igreja, servindo-se de
vários canais concretos:
♦ ensino do Papa e dos bispos,
♦ pregação e catequese,
♦ liturgia e arte,
♦ comportamento exemplar dos cristãos, sobretudo dos santos.
Na fé da Igreja, p r o c l a m a d a , c e l e b r a d a e v i v i d a , exprime-se em obras e palavras a
Revelação de Deus em Cristo, sem acréscimos, nem subtrações, mas sempre viva e operante. De
uma geração a outra é transmitida e recebida a experiência dos apóstolos, que são os primeiros a
encontrar o Senhor. Só nos tornamos cristãos revivendo esta experiência originária. 94 Para aderir
ao Senhor e participar na Sua vida, é necessário recordar o que Ele fez e ensinou, guardar
fielmente a Sua memória e conformar a ela as nossas atitudes.

Tradição e Sagrada Escritura

A Revelação divina, acontecida na história, transmite-se de duas maneiras:


oralmente e por escrito.
A Tradição viva95 e a Sagrada Escritura são, portanto,
duas modalidades distintas da transmissão da única e mesma Revelação divina.

“Promanando ambas da mesma fonte divina, formam de certo modo um só todo e tendem para o
mesmo fim” (DV 9).
“Tanto uma como outra tornam presente e fecundo na Igreja o mistério de Cristo, que
prometeu permanecer com os seus «todos os dias, até a consumação dos séculos» (Mt 28,20)”
(Cat. 80). “Assim, a comunicação que o Pai fez de si mesmo por seu Verbo no Espírito Santo
permanece presente e atuante na Igreja: «O Deus que outrora falou mantém um permanente
diálogo com a esposa de seu dileto Filho, e o Espírito Santo, pelo qual a voz viva do Evangelho
ressoa na Igreja e através dela no mundo, leva os crentes à verdade toda e faz habitar neles
abundantemente a palavra de Cristo» (DV 8)” (Cat. 79).

O papel do Magistério na Tradição


“«O patrimônio sagrado»96 da fé («depositum fidei»), contido na Sagrada Tradição e na
Sagrada Escritura, foi confiado pelos apóstolos à totalidade da Igreja. «Apegando-se
firmemente ao mesmo, o povo santo todo, unido a seus Pastores, persevera continuamente na
94
Cf. 1Cor 3,5-7; Ef 2,19-22; Hb 13,7-9; Jd 3.
95
O Catecismo da Igreja Católica chama-a também de “grande Tradição”. É aquela que vem dos apóstolos e
transmite o que estes receberam do ensinamento e do exemplo de Jesus o que receberam por meio do Espírito Santo
(cf. Cat. 83).
96
Cf. 1Tm 6,20; 2Tm 1,12-14.
Síntese teológica / 64

doutrina dos apóstolos e na comunhão, na fração do pão e nas orações, de sorte que na
conservação, no exercício (na prática) e na profissão da fé transmitida se crie uma singular
unidade de espírito entre os bispos e os fiéis»” (Cat. 84). É uma estreita colaboração.

O Senhor colocou o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele


a serviço da Palavra de Deus escrita ou transmitida,
tendo a função de i n t e r p r e t á - l a a u t e n t i c a m e n t e .

Este Magistério viva da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo, não pode
ensinar senão “o que foi transmitido, no sentido de que, por mandato divino, com a assistência
do Espírito Santo, ouve com piedade aquela palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe, e
deste único depósito de fé tira o que nos propõe para ser crido como divinamente revelado” ( DV
10).
“Fica, portanto, claro que segundo o sapientíssimo plano divino, a Sagrada Tradição, a
Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal modo entrelaçados e unidos que um
não tem consistência sem os outros, e que juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo
Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas” (DV 10).
Prestemos atenção ao fato que na Revelação divina e na sua transmissão encontramos
unidades de três97, as quais, de alguma maneira, são um reflexo da Trindade divina que Se
revela (o Pai comunica a Si mesmo por seu Verbo no Espírito Santo).

XI. A Igreja, sacramento da missão conjunta


do Filho e do Espírito Santo e
reflexo de Deus Trindade no mundo criado

1. O sacramento da missão do Filho e do Espírito Santo

O Catecismo da Igreja Católica diz: “A missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se na


Igreja, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo” (Cat. 737). E em seguida (Cat. 738)
esclarece:
“A missão da Igreja não é acrescentada à de Cristo e do Espírito Santo, senão que
é o Sacramento dela:
por todo o seu ser e em todos os seus membros,
a Igreja é enviada a anunciar e testemunhar, atualizar e difundir
o mistério da comunhão da Santíssima Trindade.”

O Catecismo também diz: “A Igreja é no mundo presente o sacramento da salvação, o sinal


e o instrumento da comunhão de Deus e dos homens” (Cat. 780). Igualmente: “a Igreja é o
grande sacramento da Comunhão divina que congrega os filhos de Deus dispersos” (Cat.
1108). Ora, vimos que a missão conjunta do Filho e do Espírito Santo é o modo como a
“comunhão da Santíssima Trindade” é comunicada aos homens para dela participarem: uma
certa “extensão” desse divino mistério de comunhão às pessoas criadas. Mais exatamente, se
trata da participação na comunhão de Jesus Cristo com o Pai no Espírito Santo. Nisso, “a
missão do Espírito Santo está sempre conjugada e ordenada à do Filho (cf. Jo 16,14-15)” (Cat.
485).
97
Cf. “encarnação” da presença, da palavra e da ação divinas; a luz da Revelação propaga-se através da
doutrina, o culto e a vida da Igreja; a fé da Igreja é proclamada (= doutrina), celebrada (= culto) e vivida (= vida);
S. Tradição, S. Escritura, Magistério vivo da Igreja.
Síntese teológica / 65

A relação da Igreja com a missão conjunta do Filho e do Espírito Santo pode-se indicar com
a palavra “sacramento”, isto é, sinal e instrumento. Não é sinal vazio, mas o sinal que traz em si
a realidade significada. Neste caso, esta realidade significada pelo sinal é “a missão de Cristo
e do Espírito Santo”; é, portanto, o mistério de comunhão com Deus Trindade.

 A Igreja é, deste modo, o r e s u l t a d o da missão conjunta do Filho e do Espírito Santo.

Com efeito, a “missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se n a Igreja” (Cat. 737). O
resultado da missão de Cristo e do Espírito Santo é o mistério de comunhão que se realiza
concretamente na Igreja como um organismo social (sociedade, comunidade) visível,
perceptível. Por isso, a Igreja é “sacramento”, portanto “sinal”, dessa comunhão.

 A Igreja é também o i n s t r u m e n t o da realização dessa comunhão no mundo.

Aqui temos, sobretudo e especialmente, mas não unicamente, os sacramentos na Igreja. Vale em
geral: “assim como a natureza assumida pelo Verbo divino lhe serve de órgão vivo de salvação,
a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao
Espírito de Cristo, que a vivifica, para fazer progredir o seu corpo místico (cf. Ef 4, 16)” (LG
8).98
Ora, este último aspecto se exprime pela expressão “Mãe Igreja”: a Igreja é mãe que gera
filhos (pense-se sobretudo no Batismo), e nós somos “filhos da Igreja”. O primeiro aspecto se
exprime dizendo que “somos Igreja”, fazemos parte dela, somos membros da Igreja. Podemos
exprimir os dois aspectos, falando da “graça”: “A Igreja contém, portanto, e comunica a graça
invisível que ela significa” (Cat. 774).

2. A existência e edificação da Igreja pela autocomunicação


de Jesus Cristo, no Espírito Santo, aos homens

Perguntamos agora: como é que surge a Igreja? Como é que a Igreja se realiza? Já sabemo-
lo: pela realização da missão de Cristo e do Espírito Santo (Encarnação, vida de Cristo, Sua
“Páscoa”, Pentecostes). Em outras palavras:

A Igreja surge e se edifica


pela a u t o c o m u n i c a ç ã o que
o Filho encarnado faz de S i m e s m o ,
de t u d o q u e t e m , aos homens.

Esta autocomunicação começou na vida terrena de Jesus Cristo, sendo consumada com
Sua “Páscoa” e a instituição da santíssima Eucaristia e pelo envio do Espírito Santo no
Pentecostes. Daí em diante é prolongada na Igreja e através dela, até a vinda final de Jesus.
Tal autocomunicação do Filho encarnado realiza-se de um modo sensível, isto é, perceptível
pelos sentidos. Perceptível era Sua presença humana (física), as palavras da Sua boca, os
gestos, as ações e os sofrimentos (manifestações do Seu amor), bem como o dom do Espírito
Santo no Pentecostes. Assim, também o prolongamento da Sua autocomunicação depois de
Pentecostes é perceptível, e igualmente o resultado dessa autocomunicação não é somente uma
realidade invisível, imperceptível. Este resultado é exatamente a Igreja, uma realidade na qual
os elementos invisíveis, espirituais, divinos e os elementos visíveis, materiais ou corporais,
humanos formam uma admirável unidade.99
98
Cf. Cat. 783, acima citado: “por todo o seu ser e em todos os seus membros, a Igreja é enviada a ...”.
99
Cf. LG 8: “... uma realidade única e complexa, em que se fundem dois elementos, o humano e o divino”.
Síntese teológica / 66

1) O que Jesus comunica?


No entanto, vejamos em primeiro lugar o objeto da comunicação que Jesus faz aos homens.
O que comunica aos homens? A resposta é:
Jesus comunica tudo, tudo o que Ele é, tudo que tem.

 Ele comunica a S u a c o m u n h ã o c o m o P a i n o E s p í r i t o S a n t o , ou seja,


comunica o S e u E s p í r i t o , o E s p í r i t o S a n t o . Essa comunhão se compõe de vários
elementos. É uma comunhão interpessoal de conhecimento e amor.
♦ Ele comunica-nos, portanto, o S e u c o n h e c i m e n t o que tem do Pai, do mistério de
Deus Trindade e do projeto divino em relação ao universo das criaturas, particularmente da
humanidade. Este conhecimento no-lo comunica através das Suas palavras, ensinando, bem
como através da manifestação da Sua relação filial com o Pai em Suas atitudes. A visão
imediata do Pai, Ele também a comunica aos homens, mas esta comunicação é reservada à
perfeição última da comunhão com Deus, que não é compatível com o estado de caminhada, de
fé, de provação. Esta comunicação, como também as outras, sempre se faz “no Espírito Santo”
ou “cooperando o Espírito Santo”. Trata-se da realização da missão conjunta do Filho e do
Espírito Santo, sendo que a missão do Espírito Santo está sempre ordenada à do Filho.
♦ Jesus comunica-nos o a m o r d i v i n o em Seu coração, concedendo-nos de poder amar
como Ele amou e ama e com Seu amor (especificamente o mesmo amor com que Jesus ama) 100 e
o faz enviando-nos (doando-nos) o Seu Espírito, o Espírito Santo (cf. Rm 5,5: “o amor de Deus
foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”).
Comunicar-nos o amor significa comunicar-nos o Espírito Santo, significa, portanto,
comunicar-nos aquela transformação divinizante que chamamos “participação da vida
divina” ou “graça santificante”, com as virtudes infusas e os sete dons do Espírito Santo. Deste
modo, podemos, no Espírito Santo (pela presença atuante do Espírito Santo em nós), viver como
filhos de Deus Pai, participando, portanto, da própria relação filial de Jesus com o Pai, ou seja,
da Sua comunhão, como Filho, com o Pai.
 Jesus comunica-nos a S i m e s m o : Ele Se nos doa com t o d o o S e u s e r , com toda
a Sua substância, corpo e alma, unidos hipostaticamente à divindade. Ele o fez, ainda na Sua
vida terrena, no Cenáculo de Jerusalém, instituindo a santíssima Eucaristia e continua a fazê-lo
através deste sacramento dos sacramentos.
 Comunicando-nos a Sua comunhão com Deus como Seu PAI (participação na Sua filiação
divina), Jesus nos dá Seu próprio Pai como nosso Pai. Ora, além disso, Ele nos dá também S u a
M ã e como nossa Mãe (cf. Jo 19,27).
 Igualmente, nos faz o dom dos Seus servos, os s a n t o s a n j o s . Eles, que servem a
Jesus, sendo os “anjos do Filho do Homem” (cf. Mt 25,31), servem também a nós, membros do
Seu Corpo na terra (cf. Hb 1,14).101
 Jesus nos comunica também a S u a t r í p l i c e m i s s ã o . Comunica-a a toda a Sua
Igreja. É uma participação do Seu sacerdócio profético e régio que é própria da Igreja como tal,
como Seu corpo e Sua esposa. Além disso, comunica a Sua tríplice missão de um modo
diferente a alguns homens, fazendo-os Seus representantes enquanto Ele é a Cabeça da Igreja
como Seu corpo, o mestre da Igreja como comunidade dos Seus discípulos, o pastor da Igreja
como Seu rebanho, o sumo sacerdote (do sacrifício redentor) da Igreja como Seu povo
sacerdotal, o esposo da Igreja como Sua esposa.

100
Cf. Jo 15,12; 17,26.
101
Cf. Cat. 331, 333, 334, 336.
Síntese teológica / 67

Em estreita conexão com isso, podemos ver também os múltiplos dons, chamados
“carismas” (cf. 1Cor 12,1), que, pelo Espírito Santo, Jesus dá aos membros da Igreja para que
sejam capazes a darem a sua colaboração pessoal para a edificação da Igreja, o cumprimento da
missão da Igreja, a salvação dos outros.

2) O resultado da autocomunicação de Jesus


O resultado dessa autocomunicação de Jesus, no e pelo Espírito Santo, aos homens é

a Igreja
como comunhão de v i d a , de v e r d a d e e de a m o r ,
como comunidade de f é , de e s p e r a n ç a e de c a r i d a d e ,
como o povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

É o que diz o Concílio Vaticano II, ao afirmar: “Constituído por Cristo numa comunhão de vida,
de caridade e de verdade, é assumido por ele para ser instrumento da redenção universal, e como
luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13-16), é enviado ao mundo inteiro” (LG 9,2).102 “Cristo,
Mediador único, constituiu e sustenta ... a sua Igreja santa, comunidade de fé, de esperança e de
caridade” (LG 8). “Assim a Igreja universal aparece como o «povo congregado na unidade do
Pai e do Filho e do Espírito Santo»” (LG 4). Ela é – eis outra tríade! –

♦ o P o v o de Deus (Pai),
♦ o C o r p o e a E s p o s a de Cristo (Filho encarnado) e
♦ o T e m p l o do Espírito Santo.

A missão do Filho e do Espírito Santo faz do povo de Deus da Antiga Aliança o Templo do
Espírito Santo, o Corpo de Cristo e a Esposa de Cristo (é uma característica nova e específica
do novo Povo de Deus!). Esta Igreja é a forma definitiva do povo de Deus na história e o
início do Reino de Deus e de Cristo, a caminho da sua consumação.103
É pela santíssima Eucaristia – pela Sagrada Comunhão eucarística como uma certa
antecipação do “banquete das núpcias do Cordeiro” (cf. Ap 19,9) – que a Igreja é o Corpo de
Cristo (cf., especialmente, 1 Cor 10,17) e a Esposa de Cristo, já inicialmente unido ao seu
Esposo. Como já dissemos, o envio do Filho por parte do Pai não se restringe ao envio para Ele
Se fazer homem entre os homens, mas é, além disso, para Ele, como homem (como o “pão
descido do Céu”), dar Sua carne e Seu sangue (Sua substância humana) aos homens a Ele unidos
pelo Espírito Santo, para Ele estar nos homens (cf. Jo 1,14 e cap. 6). É deste modo que a Igreja é
o que é. De fato, “sem a Eucaristia, a Igreja simplesmente não existiria” 104.

102
“Comunhão de vida” pode ter três significados, intimamente conexos entre si: a) participação da vida divina
(cf. a “corrente da vida”); b) participação da “vida” de Cristo, isto é, do Seu ser (substância), do Seu Corpo e
Sangue, pela santíssima Eucaristia; c) convivência dos fiéis.
103
LG 9: “Este povo tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita
o Espírito Santo como em seu templo. Tem por lei o mandamento novo, de amar como Cristo nos amou (cf. Jo 13,
34); e finalmente tem como finalidade, o reino de Deus, começado já na terra pelo próprio Deus e que deve ser
continuamente desenvolvido até que no fim dos séculos seja por ele completado, quando Cristo, nossa vida,
aparecerá (cf. Cl 3, 4), e toda a criação «também ser libertada da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade
da glória dos filhos de Deus» (Rm 8, 21).”
104
BENTO XVI, Angelus, 26.6.2011.
Síntese teológica / 68

3) A autocomunicação perceptível de Jesus e a visibilidade da Igreja


Jesus garantiu que Sua autocomunicação, pela qual a Igreja é edificada, fosse assegurada,
realizando-se de um modo perceptível. Como? Através dos sacramentos e o ministério
apostólico, sendo que este ministério apostólico é transmitido por um dos sete sacramentos.
De fato, para garantir – continuamente e até o fim da história, bem como de um modo
objetivo e perceptível – essa Sua autocomunicação, Jesus instituiu o ministério apostólico,105
transmitido pelo sacramento da Ordem. Deste modo, não houve e há apenas membros da
comunidade que é a Igreja, pessoas, portanto, que podem agir na qualidade de membros da
comunidade, mas há pessoas – clara e objetivamente reconhecíveis – que recebem de Cristo a
missão e a faculdade (o “poder sagrado”) de agir na Sua pessoa enquanto Ele é
♦ a Cabeça em relação ao “Corpo” (que é a Igreja),
♦ o Esposo em relação à esposa,
♦ o Mestre em relação aos discípulos,
♦ o Sacerdote do sacrifício redentor em relação ao povo sacerdotal,
♦ o Pastor em relação ao rebanho.106
Essas pessoas são clara e objetivamente reconhecíveis pelo seguinte fato:
1) É através de uma ação perceptível (rito do sacramento da Ordem) que eles são
constituídos como tais representantes de Cristo na Sua Igreja;
2) Esta ação é eficaz, independentemente da disposição (graça santificante etc.) do
ordinando, contanto que este queira ser ordenado;
3) Esta eficácia garantida refere-se àquele efeito da ação sacramental que é o caráter, o
qual é indelével, isto é, não depende do livre arbítrio do ordenado: ele tem o poder sagrado do
representante sacramental de Cristo, quer seja santo (estado de graça), quer se encontre em
estado de pecado. Disso decorre o seguinte: para que conste que esta determinada pessoa é o
representante de Cristo, não é preciso poder ver o caráter sacramental (que, em si, não é visível),
mas basta poder comprovar que ele recebeu o sacramento da Ordem.
Por conseguinte, através desses representantes sacramentais está garantida a presença e ação
perceptível de Cristo na e para Sua Igreja. Deste modo,

a autocomunicação de Jesus Cristo, no e pelo Espírito Santo,


continua a ser não apenas invisível, espiritual, mas também
visível, perceptível.

105
Quanto ao ministério apostólico na Igreja pós-apostólica, eis a doutrina católica: “«O ministério
eclesiástico, divinamente instituído, é exercido em diversas ordens pelos que desde a antigüidade são chamados
bispos, presbíteros e diáconos» (LG 28). A doutrina católica, expressa na liturgia, no magistério e na prática
constante da Igreja, reconhece que existem dois graus de participação ministerial no sacerdócio de Cristo: o
episcopado e o presbiterado. O diaconado se destina a ajudá-los e a servi-los. Por isso, o termo «sacerdos»
designa, na prática atual, os bispos e os sacerdotes, mas não os diáconos. Não obstante, ensina a doutrina católica
que os graus de participação s a c e r d o t a l (episcopado e presbiterado) e o de s e r v i ç o (diaconado) são
conferidos por um ato sacramental chamado «ordenação», isto é, pelo sacramento da Ordem” (Cat. 1554).
106
O Catecismo da Igreja Católica explica (n. 875): “Ninguém pode dar a si mesmo o mandato e a missão de
anunciar o Evangelho. O enviado do Senhor fala e age não por autoridade própria, mas em virtude da autoridade de
Cristo; não como membro da comunidade, mas falando a ela em nome de Cristo. Ninguém pode conferir a si
mesmo a graça; ela precisa ser dada e oferecida. Isto supõe ministros da graça autorizados e habilitados da parte
de Cristo. Dele, os bispos e os presbíteros recebem a missão e a faculdade (o «poder sagrado») de agir «na pessoa
de Cristo-Cabeça», os diáconos, a força de servir o Povo de Deus na «diaconia» da liturgia, da palavra e da
caridade, em comunhão com o bispo e seu presbitério. A tradição da Igreja chama de «sacramento» este ministério,
pelo qual os enviados de Cristo fazem e dão, por dom de Deus, o que não podem fazer nem dar por si mesmos. O
ministério da Igreja é conferido por um sacramento específico.”
Síntese teológica / 69

 A comunicação na dimensão do conhecimento (da palavra) realiza-se pela ♦ Tradição


viva (particularmente no aspecto em que esta assume a forma de doutrina107), pela ♦ Sagrada
Escritura e o ♦ Magistério da Igreja. A atividade dos ministros de Cristo, podemos chamá-la
de “fiel pregação do Evangelho”.
 A comunicação na dimensão do amor (graça santificante, etc.) se realiza pela celebração
dos sacramentos, que são ações perceptíveis, significando e tornando presentes (com sua
eficácia salvadora) os mistérios da vida de Cristo, sobretudo o Seu mistério pascal, comunicando
assim o dom do Espírito Santo, ou seja, as diversas “graças sacramentais”, pelas quais os fiéis
são santificados, partícipes da vida divina.
 A comunicação na dimensão do ser (vida, substância) do Filho encarnado realiza-se, como
já dissemos, pelo centro, o ápice e o fim108 de todos os sacramentos: a santíssima Eucaristia.
 A comunicação da Sua tríplice missão se realiza através de três sacramentos: Batismo,
Crisma, Ordem.
De fato, pelos sacramentos do Batismo e da Crisma, Jesus Cristo comunica a toda a Sua
Igreja, isto é, a todos os membros da Igreja, uma participação no Seu sacerdócio profético e
régio. É o sacerdócio (profético e régio) da Igreja, como povo sacerdotal, sendo uma
verdadeira participação na tríplice missão de Cristo. Trata-se do caráter sacramental desses
dois sacramentos.
O caráter sacramental da Ordem faz dos receptores do sacramento ♦ representantes de
Cristo em Sua relação à Igreja, enquanto o caráter sacramental do Batismo e da Crisma faz dos
receptores destes dois sacramentos ♦ membros da Igreja, que é um povo sacerdotal.

Como o caráter impresso pelo sacramento da Ordem


garante a presença atuante visível de Cristo à Sua Igreja
(de Cristo como Cabeça, Esposo, Mestre, Sumo Sacerdote, Pastor),
assim o caráter impresso pelos sacramentos do Batismo e da Crisma
garante a visibilidade da Igreja .

De fato, para o caráter impresso pelos sacramentos do Batismo e da Crisma vale o mesmo
que já vimos ao considerar o caráter sacramental da Ordem. Por isso, para constatar quem é
membro da Igreja, não é necessário poder constatar quem se encontra em estado de graça, mas
basta saber que estas pessoas foram batizadas. Quem não está em estado de graça (está sem a
presença santificante do Espírito Santo), encontra-se numa situação paradoxal (membro
“morto” da Igreja, estando privado do que podemos chamar a “alma” ou “princípio vital” da
Igreja, isto é, a comunhão vital com Deus Trindade), mas não deixa de ser um membro da Igreja
na terra, situação esta que só é possível na vida terrena, não na eternidade, na qual, aliás,
também aqueles que nunca receberam o caráter sacramental, mas, sim, o dom da comunhão com
Deus Trindade, pertencem perfeitamente à Igreja. Com efeito, o caráter, embora seja indelével, é
para a vida nesta terra, é necessário para a pertença à Igreja visível neste mundo.
Esta Igreja, por todo o seu ser e em todos os seus membros, é enviada a anunciar e
testemunhar, atualizar e difundir o mistério da comunhão da Santíssima Trindade (cf. Cat. 738).
Nisto, no entanto, existe uma diferença, devida aos dois modos diferentes da participação no
único sacerdócio profético e régio de Jesus Cristo: a participação que constitui os representantes
de Cristo-Cabeça (Cristo em relação à Sua Igreja) e a participação que constitui os membros da
Igreja como tal (Corpo de Cristo, Esposa de Cristo). No segundo caso vale: para que eles, com

107
A Tradição viva se compõe essencialmente de três elementos: doutrina, culto, vida (prática) da Igreja, ou
seja, a fé proclamada, confessada, a fé celebrada e a fé vivida.
108
Todos se ordenam à santíssima Eucaristia.
Síntese teológica / 70

sua vida, suas ações, sejam “sacramento” da missão do Filho e do Espírito Santo (Cristo, no e
pelo Espírito Santo, agindo neles e através deles), requer-se a comunhão vital com Cristo
(amor), pois aí eles agem
– como pessoas distintas de Cristo, embora em união com Ele (a Igreja como Esposa de
Cristo), enquanto os representantes sacramentais de Cristo em relação à Igreja agem
(plena e mais fortemente na dimensão central de seu ministério: no múnus de
santificação e de culto a Deus)
– como meros instrumentos de Cristo, que com sua ação, tornam perceptível a própria
ação de Cristo.

3. Os elementos constitutivos da unidade da Igreja,


garantidos pelo ministério apostólico

A unidade da Igreja, mistério de comunhão dos homens com a Ss. Trindade e entre si, é
realizada e garantida por Jesus Cristo, que envia o Espírito Santo de junto do Pai e dá aos
Apóstolos, com Pedro como cabeça, uma missão especial de continuação da Sua própria missão.
Portanto, “Jesus Cristo quer que seu povo cresça sob a ação do Espírito Santo, através da
fiel pregação do Evangelho e da administração dos sacramentos, e mediante um governo
amoroso, realizado pelos Apóstolos e seus sucessores – os Bispos – e o sucessor de Pedro como
chefe. E Ele próprio, através de tudo isso e por obra do mesmo Espírito, realiza a comunhão na
unidade: na confissão de uma única fé, na comum celebração do culto divino e na fraterna
concórdia da família de Deus” (UR 2).
Eis aqui, num esquema, estes elementos constitutivos da unidade (visível e espiritual) da
Igreja:
Síntese teológica / 71

OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA UNIDADE DA IGREJA


(Modelo supremo e princípio desta unidade: a unidade do único Deus na Trindade de pessoas)

absolutamente invisível: Deus Pai


envia
união do divino e humano, do invisível e visível: Jesus Cristo: o Verbo encarnado
envia
missão visível e invisível: Espírito Santo
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

visível (perceptível): vem, dá Seus dons 109


Grupo dos Apóstolos, com Pedro como chefe,
e seus sucessores (bispos, com o bispo de Roma, sucessor de Pedro, como chefe)
(o ministério apostólico)

fiel pregação do Evangelho administração dos sacramentos governo amoroso


com a Eucaristia como centro e ápice
110 111
S. Tradição S. Escritura Magistério (culto divino)

profissão comum de celebração comum do culto divino, fraterna concórdia da


uma única fé sobretudo dos mesmos sacramentos família de Deus
(pecado: heresia) (comunhão na ordem hierárquica)
(pecado: cisma)
.............................................................................
invisível em si mesmo:
laços reais e permanentes de comunhão,
estabelecidos pelos sacramentos, pela profissão da mesma fé e
pela aceitação da autoridade de Pedro e dos outros Apóstolos e dos seus sucessores

comunhão com a Ss. Trindade: graça santificante, fé, esperança, amor;


virtudes morais animadas pelo amor; sete dons do Espírito Santo
comunhão eucarística com Jesus Cristo

109
Esta ação do Espírito Santo não se refere apenas ao ministério apostólico (estes ministros representam
sacramentalmente a Cristo como Cabeça da Igreja, no Seu tríplice múnus), mas também a todos os membros da Igreja,
que participam do tríplice múnus de Cristo (= sacerdócio comum, profético e régio). Assim, além da vida de fé, esperança
e caridade e das outras virtudes, vivificadas divinamente pela caridade (= o exercício do sacerdócio comum, de um modo
particular mas não exclusivamente na liturgia), o Espírito Santo opera a edificação da Igreja também “pelas múltiplas
graças especiais (chamadas de ‘carismas’), por meio das quais ‘torna os fiéis aptos e prontos a tomarem sobre si os vários
trabalhos e ofícios que contribuem para a renovação e maior incremento da Igreja’” (Cat. 798).
110
“O que Cristo confiou aos apóstolos, estes o transmitiram por sua pregação [daí: a S. Tradição] e por escrito, sob
a inspiração do Espírito [S. Escritura], a todas as gerações, até a volta gloriosa de Cristo” (Cat. 96). “A Sagrada Tradição
e a Sagrada Escritura constituem um só sagrado depósito da Palavra de Deus confiado à Igreja” (DV 10).
111
“Mas para que o Evangelho sempre se conservasse inalterado e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram como
sucessores os bispos, a eles ‘transmitindo o seu próprio encargo de Magistério’ (S. Irineu). ... a Sagrada Tradição, a
Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem
os outros, e que juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a
salvação das almas” (DV 10).
Síntese teológica / 72

XII. A celebração do mistério de Cristo na Igreja peregrinante

O “mistério de Cristo” é c e l e b r a d o e c o m u n i c a d o na liturgia da Igreja.

Este mistério é constituído pela missão do Filho e do Espírito Santo: “o Pai realiza o ‘mistério
de sua vontade’ entregando seu Filho bem-amado e seu Espírito para a salvação do mundo e
para a glória de seu nome” (Cat. 1066). “É este mistério de Cristo que a Igreja anuncia e
celebra em sua liturgia, a fim de que os fiéis vivam e dêem testemunho dele no mundo” (Cat.
1068).
Vê-se, portanto, que “a liturgia não esgota toda a ação da Igreja” (SC 9): “ela tem de ser
precedida pela evangelização, pela fé e pela conversão; pode então produzir seus frutos na vida
dos fiéis: a vida nova segundo o Espírito, o compromisso com a missão da Igreja e o serviço de
sua unidade” (Cat. 1072; cf. também Cat. 1109).

1. O que é a “liturgia”?

“Na tradição cristã, ela [a palavra “liturgia”] quer significar que o povo de Deus toma parte
na ‘obra de Deus’” (Cat. 1069). No Novo Testamento, a palavra “liturgia” é empregada para
designar
 o anúncio do Evangelho (cf. Rm 15,16; Fl 2,14-17.30);
 a celebração do culto divino (At 13,2; Lc 1,23);
 a caridade em ato (cf. Rm 15,27; 2Cor 9,12; Fl 2,25).
Em todas essas situações trata-se do serviço prestado a Deus e aos homens. “Na celebração
litúrgica, a Igreja é serva à imagem do seu Senhor, o único ‘liturgo’ (cf. Hb 8,2.6), participando
de seu sacerdócio (culto) profético (anúncio) e régio (serviço de caridade)” (Cat. 1070).
Daí, a definição descritiva da liturgia:

A liturgia é tida como


o exercício do m ú n u s s a c e r d o t a l de Jesus Cristo,
no qual, mediante sinais sensíveis,
é significada e, de modo peculiar a cada sinal,
realizada a santificação do homem, e
é exercido o culto público integral
pelo Corpo Místico de Cristo, cabeça e membros. (SC 7)

Sendo assim, “toda a celebração litúrgica, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo que
é a Igreja, é ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo título e grau, não é igualada
por nenhuma outra ação da Igreja” (ibid.).

A liturgia é caracterizada
pelo diálogo entre Deus e o homem,
pela aliança entre Deus e o homem,
uma vez que é o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo,
o mediador entre Deus e os homens.
Síntese teológica / 73

Deste modo, encontra-se na liturgia uma “dupla dimensão” (cf. Cat. 1083), ou seja, a direção ♦
descendente e a direção ♦ ascendente: de Deus para o homem, do homem para Deus, a
santificação do homem e o culto de adoração prestado a Deus.
São as duas direções da “bênção”: “Abençoar é uma ação divina que dá a vida e da qual o
Pai é a fonte. Sua bênção é ao mesmo tempo palavra e dom (benedictio, eulogia, pronuncie
«euloguia»). Aplicado ao homem, esse termo significará a adoração e a entrega a seu criador, na
ação de graças” (Cat. 1078). Na dimensão ascendente, a “liturgia é também participação da
oração de Cristo, dirigida ao Pai no Espírito Santo. Nela, toda oração cristã encontra sua fonte e
seu termo” (Cat. 1073). Esta dupla dimensão, presente em toda a liturgia 112, manifesta-se, de um
modo particularmente claro e forte, na Santíssima Eucaristia: “Nela está o clímax tanto
♦ da ação pela qual, em Cristo, Deus s a n t i f i c a o mundo, como
♦ do c u l t o que no Espírito Santo os homens prestam a Cristo
e, por ele, ao Pai” (Cat. 1325).
Na Celebração Eucarística, a dimensão ascendente da liturgia é participação no sacrifício da
cruz de Cristo.
Na verdade, a liturgia realiza e manifesta a Igreja como sinal visível da comunhão entre
Deus e os homens por meio de Jesus Cristo. Em outras palavras: na liturgia e por ela, a Igreja é
de modo mais eficaz e intenso “o sacramento da salvação, o sinal e o instrumento da
comunhão de Deus e dos homens” (Cat. 780)

2. A liturgia como obra da Santíssima Trindade

A liturgia não é, de modo algum, apenas ação da Igreja. Ela é ação de Cristo e da Igreja,
ação do Espírito Santo e da Igreja, mas também é obra do Pai. Ela é obra da Santíssima
Trindade.
Dissemos, num capítulo anterior, que o caminho das criaturas é “de Deus Trindade a Deus
Trindade”. Podemos também dizer que o caminho vai:

“do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo –


no Espírito Santo, pelo Filho (encarnado), ao Pai”.

É o que vale de um modo especial para a liturgia, onde se realiza, com a maior eficácia e
intensidade,
♦ a autocomunicação de Deus (do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo) e
♦ a resposta da Igreja, Sua autodoação a Deus (no Espírito Santo, pelo Filho, ao Pai),
prestando o culto de adoração pela oração e, sobretudo, pela oferta sacramental do sacrifício da
cruz. Pensando no mistério da vida divina trinitária, podemos reconhecer claramente as duas
direções na direções opostas das relações reais (de origem) na Divindade:

112
Também na celebração dos demais sacramentos, que parecem destinar-se unicamente à santificação do
homem, está presente a dimensão ascendente, ou seja, de culto prestado a Deus. É evidente que, se o homem é
santificado, Deus é glorificado. “A glória de Deus é o homem vivo” (Sto. Irineu). Mas não é apenas isso. Na
verdade, para participar da liturgia, inclusive para receber a santificação (vida divina, comunhão com a Santíssima
Trindade), portanto para receber os sacramentos, o homem precisa ser capacitado ao culto divino prestado por
Cristo (capacitado a participar deste culto); ele tem de ser uma pessoa consagrada, isto é, uma pessoa que é
configurada a Cristo Sacerdote, alguém, portanto, que participa do sacerdócio de Cristo. Essa consagração é o
caráter sacramental do Batismo, bem como da Crisma. Este caráter é, de fato, uma consagração a Deus, uma
destinação e capacitação ao culto divino, sendo uma participação do sacerdócio (profético e régio) de Cristo.
Quanto ao primeiro dos sacramentos, o Batismo, o caráter é o primeiro efeito da ação sacramental (res et
sacramentum), que, por sua vez, é ainda sinal eficaz (só não é eficaz se a pessoa que recebe o Batismo opõe um
obstáculo moral) da graça do Batismo.
Síntese teológica / 74

 as relações das Pessoas que são origem às Pessoas originadas:


paternidade, expiração ativa;
Pai Filho Espírito Santo
 as relações das Pessoas originadas às Pessoas das quais se originam:
expiração passiva, filiação.
Pai Filho Espírito Santo

1) Deus Pai é a fonte e o fim da liturgia113


O Pai é a fonte e o fim de todas as bênçãos da criação e da salvação, e na liturgia é
reconhecido como tal; em Seu Verbo, encarnado, morto e ressuscitado por nós, Ele nos cumula
com suas bênçãos, e por meio d’Ele derrama em nossos corações o dom que contém todos os
dons: o Espírito Santo. A liturgia é ao mesmo tempo resposta de fé e de amor às “bênçãos
espirituais” (cf. Ef 1,3) com as quais o Pai nos presenteia: ela bendiz o Pai, mediante a adoração,
o louvor e a ação de graças, e implora o dom do seu Filho e do Espírito Santo.

2) A liturgia é obra de Cristo


O tempo da Igreja é o tempo durante o qual Cristo manifesta, torna presente e comunica sua
obra de salvação (os frutos da Sua Páscoa) pela liturgia de sua Igreja, “até que Ele venha” (1
Cor 11,26). Durante este tempo da Igreja, Cristo vive e age em Sua Igreja e com ela de forma
nova, própria deste tempo novo (cf. Cat. 1076).

Na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o Seu mistério pascal.

Doando o Espírito Santo aos Apóstolos, concedeu-lhes a eles e aos seus sucessores o poder de
realizar a obra da salvação (comunicar os frutos do Seu mistério pascal 114) por meio do
Sacrifício eucarístico e dos sacramentos (em torno dos quais gravita toda a vida litúrgica), nos
quais Ele próprio age agora para comunicar a sua graça aos fiéis de todos os tempos e em todo o
mundo.
Assim, Cristo está presente na liturgia da Igreja sobre a terra (nas espécies eucarísticas, nos
sacramentos, no ministro ordenado, por Sua palavra, na assembleia em oração; cf. SC 7), pois
“na realização de tão grande obra, por meio da qual Deus é perfeitamente glorificado e os
homens são santificados, Cristo sempre associa a Si a Igreja, Sua esposa diletíssima, que o
invoca como seu Senhor e por ele presta culto ao eterno Pai” (SC 7).
Cristo presente na liturgia da Igreja na terra é o mesmo presente na liturgia celeste, unindo
assim liturgia terrestre e celeste (cf. Cat. 1090; SC 8). A assembleia litúrgica é “liturgo” (cf. Cat.
1144) pela participação do único sacerdócio de Cristo.

3) O Espírito Santo e a Igreja na liturgia.


“Na liturgia, o Espírito Santo é ... o artífice das «obras-primas de Deus», que são os
sacramentos da nova aliança” (Cat. 1091).

Na liturgia, realiza-se a mais estreita cooperação entre o Espírito Santo e a Igreja.

113
Cf. Cat. 1077ss; Cat. Comp. 221-223.
114
Jesus Cristo enviou os Apóstolos não só para anunciarem que Ele é o único Salvador através da Sua morte e
ressurreição, mas também para levarem a efeito o que anunciavam: a obra da salvação por Cristo (cf. SC 6).
Síntese teológica / 75

A liturgia é assim obra comum do Espírito Santo e da Igreja. O Espírito Santo


 prepara a Igreja para encontrar o seu Senhor;115
 recorda e manifesta Cristo à fé da assembléia;116
 torna presente e atualiza o Mistério de Cristo;117
 une a Igreja à vida e à missão de Cristo e faz frutificar nela o dom da comunhão.118

3. A Celebração eucarística à luz do mistério de Deus Trindade

O centro da liturgia são os sacramentos. O centro deste centro é a santíssima Eucaristia, que
é, por excelência, o sacramento da “Páscoa” do Senhor Jesus Cristo. Na celebração da
santíssima Eucaristia manifesta-se da maneira mais clara a essência da liturgia e sua íntima
conexão com o mistério de Deus Trindade, isto é, o mistério da mais perfeita comunicação e
comunhão.
Ver e ler: Sapientia Crucis 6 (2005) 70-89 (“O Dinamismo intrínseco da Celebração
eucarística e sua Expressão externa”).

XIII. A vida “em Cristo” e “no Espírito” como caminhada do homem


para a comunhão perfeita com Deus e em Deus,
através da missão do Filho e do Espírito Santo
(Teologia Moral e Espiritualidade)

“Reconhece, ó cristão, a tua dignidade!” (Leão Magno): reconhecendo na fé sua nova


dignidade, os cristãos são chamados a levar a partir de então uma “vida digna do Evangelho de
Cristo” (Fl 1,27), isto é, uma vida cuja regra viva e interior é, pela presença atuante do
Espírito Santo, a Pessoa de Jesus Cristo , o Filho enviado de Deus Pai.

1. A posição da teologia moral e da espiritualidade


no “mistério cristão” ou “mistério de Cristo”

O mistério de Cristo
1) é acreditado e confessado: o Credo
2) é celebrado e comunicado: a Sagrada Liturgia
3) está presente para iluminar e amparar
os filhos de Deus em seu agir: o agir cristão
4) fundamenta a nossa oração e
constitui o objeto de nosso louvor,
ação de graças e súplica (intercessão); a oração cristã
115
“Na liturgia da nova aliança, toda ação litúrgica, especialmente a celebração da Eucaristia e dos
sacramentos, é um encontro entre Cristo e a Igreja” (Cat. 1097).
116
“Segundo a natureza das ações litúrgicas e as tradições rituais das Igrejas, uma celebração «faz memória»
das maravilhas de Deus em uma anamnese mais ou menos desenvolvida. O Espírito Santo, que desperta assim a
memória da Igreja, suscita então a ação de graças e o louvor (doxologia)” (Cat. 1103).
117
“O mistério pascal de Cristo é celebrado, não é repetido; o que se repete são as celebrações; em cada uma
delas sobrevém a efusão do Espírito Santo que atualiza o único mistério” (Cat. 1104).
118
“O fruto do Espírito na liturgia é inseparavelmente comunhão com a Santíssima Trindade e comunhão
fraterna entre os irmãos” (Cat. 1108).
Síntese teológica / 76

1) A teologia dogmática (sistemática) refere-se ao mistério de Cristo acreditado e


confessado: a doutrina a respeito do que a Igreja crê, doutrina
♦ haurida da Revelação, “pela qual Deus se dirige e se doa ao homem”, e
♦ acolhida na fé, “pela qual o homem responde a Deus” (Prólogo do Cat.).
2) A teologia dogmática (relativa aos sacramentos) e a disciplina teológica da Liturgia se
referem ao mistério de Cristo celebrado e comunicado: expõe como a salvação de Deus,
realizada uma vez por todas por Cristo Jesus e pelo Espírito Santo, se torna presente nas ações
sagradas da liturgia da Igreja, particularmente nos sete sacramentos. A “celebração” do mistério
de Cristo significa também que ele é objeto de nosso louvor, ação de graças e súplica
(intercessão).
3) A t e o l o g i a m o r a l se refere ao mistério de Cristo enquanto está presente para
iluminar e amparar o agir do cristão, a sua vida de cristão. Apresenta, por isso,
♦ o fim último do homem, criado à imagem de Deus: a bem-aventurança, bem como
♦ os caminhos para chegar a ela:
mediante um agir reto e livre, com a ajuda da fé e da graça de Deus;
por meio de um agir que realiza o duplo mandamento da caridade,
desdobrado nos dez Mandamentos de Deus.
4) A t e o l o g i a e s p i r i t u a l refere-se ao mistério de Cristo enquanto este fundamenta
a oração e toda a vida de união com Deus a se desenvolver sempre mais. A teologia espiritual
complementa a teologia moral.
Eis ainda outra maneira de apresentar essas conexões:

 A fé c o n f e s s a a autocomunicação (automanifestação e autodoação) de Deus


Trindade a nós, realizada através da missão conjunta do Filho e do Espírito Santo.
 Os sacramentos c o m u n i c a m o que a fé confessa.
 A “vida digna do Evangelho de Cristo” m a n i f e s t a - t e s t e m u n h a o que a fé
confessa e os sacramentos comunicam; é fruto da fé e dos sacramentos (liturgia).119

A vida digna do Evangelho significa:


 Viver em comunhão com Deus Pai, fazendo sempre o que é do agrado d’Ele (“perfeitos
como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).120
 Seguimento de Jesus Cristo, conformando os pensamentos, palavras e ações aos
“sentimentos de Cristo Jesus” e seguindo Seus exemplos.121 Cristo é “o caminho”.

119
Cf. Cat. 1692: “O Símbolo da fé professou a grandeza dos dons de Deus ao homem na obra de sua criação
e, mais ainda, pela redenção e santificação. O que a fé confessa os sacramentos comunicam: pelos "sacramentos
que os fizeram renascer", os cristãos se tornaram "filhos de Deus" ? (1Jo 3,1), "participantes da natureza divina"
(2Pd 1,4). Reconhecendo na fé sua nova dignidade, os cristãos são chamados a levar a partir de então uma "vida
digna do Evangelho de Cristo" (Fl 1,27). Pelos sacramentos e pela oração, recebem a graça de Cristo os dons de seu
Espírito, que os tornam capazes disso.”
120
Cf. Cat. 1693: “Jesus Cristo sempre fez o que era do agrado do Pai (cf. Jo 8,29). Sempre viveu perfeita
comunhão com Ele. Também os discípulos são convidados a viver sob o olhar do Pai, "que vê o que está oculto"
(Mt 6,6), para se tornarem "perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5,48).”
121
Cf. Cat. 1694: “Incorporados a Cristo pelo Batismo (cf. Rm 6,5), os cristãos estão «mortos para o pecado e
vivos para Deus em Cristo Jesus» (cf. Rm 6,11), participando assim da vida do Ressuscitado (cf. Cl 2,12). Seguindo
a Cristo e em união com ele (cf. Jo 15,5), podem procurar «tornar-se imitadores de Deus como filhos amados e
andar no amor» (cf. Ef 5,1-2), conformando seus pensamentos, palavras e ações aos «sentimentos de Cristo Jesus»
(cf. Fl 2,5) e seguindo seus exemplos (cf. Jo 13,12-16).”
Síntese teológica / 77

 O Espírito do Filho nos faz andar nesse caminho, nos faz agir, produzir “os frutos do
Espírito” (Gl 5,22) pela caridade operante.122

2. A Pessoa de Jesus Cristo é, graças ao Espírito Santo,


“a regra viva e interior” do agir cristão
A “vida digna do Evangelho” é fruto da presença atuante do Espírito Santo no cristão, o
qual une o cristão a Cristo, conformando-o a Ele, que é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo
14,6). Contemplando-o na fé como modelo, “os fiéis podem esperar que
♦ Cristo realize neles suas promessas [eis a orientação para o fim último] e,
♦ amando-o com o amor com que Ele os amou, façam as obras que correspondem à sua
dignidade” [eis o caminho para o fim] (Cat. 1698).

A c o m u n h ã o c o m C r i s t o , realizada pelo Espírito de Cristo,


é o p r e s s u p o s t o do autêntico agir cristão.
Vale a este respeito: “Sem Mim, nada podeis fazer”.

“Jesus diz: «Eu sou a videira, e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele
produz muito fruto, porque, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15,5). O fruto indicado nesta
palavra é a santidade de uma vida fecundada pela união a Cristo.

Quando cremos em Jesus Cristo,


♦ comungamos de Seus mistérios e ♦ guardamos Seus mandamentos,
 o Salvador mesmo vem amar em nós seu Pai e seus irmãos ,
nosso Pai e nossos irmãos.
 Sua pessoa se torna, graças ao Espírito, a regra viva e interior de nosso agir .

«Este é o meu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei» (Jo 15,12)” (Cat.
2074). Por isso: “Para mim, viver é Cristo” (Fl 1,21).
Peço que considereis que Jesus Cristo nosso Senhor é vossa verdadeira Cabeça e que vós sois um de
seus membros. Ele é para vós o que a Cabeça é para os membros; tudo o que é dele é vosso, seu
espírito, coração, corpo, alma e todas as suas faculdades, e deveis fazer uso disso como coisa vossa
para servir, louvar, amar e glorificar a Deus. Vós sois em relação a Ele o que os membros são em
relação à cabeça. Assim, Ele deseja ardentemente fazer uso de tudo o que está em vós para o serviço e
a glória de seu Pai, como coisa sua123.
A comunhão nos mistérios da vida de Jesus se realiza, sobretudo, no amor: “o Salvador
mesmo vem amar em nós seu Pai e seus irmãos”. Jesus faz aos membros de Seu Corpo o dom
de participar do ápice do Seu amor ao Pai e aos homens: o amor expiador e redentor. A
participação perfeita é o amor expiador em favor de outros (cf. 1 Jo 3,16; 4,10; 2 Cor 5,15). O
outro modo de participar é o amor penitente (pelos próprios pecados).

A união com Cristo e o conformar-se a Ele como regra viva e interior de nosso agir
realiza-se, na base da f é , p e l o a m o r .

122
Cf. Cat. 1695: “«Justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus» (1Cor 6,11),
«santificados... chamados a ser santos» (cf. 1Cor 1,2), os cristãos se tornaram «templo do Espírito Santo» (1Cor
6,19). Esse «Espírito do Filho» os ensina a orar ao Pai (cf. Gl 4,6) e, tendo-se tornado vida deles, os faz agir (cf. Gl
5,25) para carregarem em si «os frutos do Espírito» (cf. Gl 5,22) pela caridade operante. Curando as feridas do
pecado, o Espírito Santo nos «renova pela transformação espiritual de nossa mente» (cf. Ef 4,23), ele nos ilumina e
fortifica para vivermos como «filhos da luz» (Ef 5,8), na «bondade, justiça e verdade» em todas as coisas (Ef 5,9).”
123
S. João Eudes, Cord., 1,5.
Síntese teológica / 78

Pelo amor somos transformados à imagem do Filho único do Pai (cf. Cat. 1877).
O duplo mandamento do amor, mas a única virtude teologal do amor:
 amar a Deus acima de tudo, por Ele mesmo e com todas as forças;
 amar o próximo como a si mesmo, por amor de Deus.
A unidade do amor provém do fato que, cumprindo o mandamento do amor, amamos o
próximo “por amor de Deus”.
Além disso, o amor une intimamente as diversas virtudes, pois o amor realiza todos os atos
virtuosos; cf. 1 Cor 13,4-7: “A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A
caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não busca os seus próprios
interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a
verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

♦ O amor é a recapitulação (resumo, síntese) de toda a Lei (cf. Rm 13,9-10).


♦ O amor é a força para cumprir toda a Lei de Deus.
♦ No amor perfeito de Deus e do próximo consiste a santidade cristã.

O amor (“caridade”) dá forma a toda a ordem moral: penetra o ato mesmo (de outras
virtudes, p. ex. da justiça), dando-lhe um novo modo de ser. Faz desse ato, de alguma maneira,
um ato de amor. A virtude da religião (pertencendo à virtude cardeal da justiça: justiça com
relação a Deus) apenas pode reger toda a atividade humana, dando um novo motivo à ação (para
a glória de Deus, para prestar culto a Deus).
Se, portanto, perguntarmos: como chegamos à comunhão perfeita com a Santíssima
Trindade? Como chegamos à perfeita participação da comunhão de Jesus Cristo com o Pai
no Espírito Santo, que é o fim da caminhada?
A resposta é: pelos a t o s ; não apenas ou simplesmente por possuirmos as virtudes. É
preciso praticá-las! Os “passos” pelos quais andamos até Deus são os atos de amor (amor que
realiza todos os atos virtuosos).
Assim, há dois caminhos, entre os quais é preciso escolher: um caminho para a vida e o
outro para a perdição. Esta linguagem dos “dois caminhos” intenciona mostrar a importância
das decisões morais para nossa salvação.124

3. A vida “em Cristo” e “no Espírito”, realização da vocação do homem


à comunhão com Deus Trindade
A vida “em Cristo” e “no Espírito” realiza a vocação do homem. Esta vida se constitui de
amor divino e de solidariedade humana. É concedida de graça como uma salvação (cf. Cat.
1699).
Essa vida “em Cristo” e “no Espírito” é o agir cristão cuja regra viva e interior é, graças ao
Espírito Santo, a Pessoa de Cristo.

É, portanto, uma vida ou um agir


que tem por fundamento e fonte a missão conjunta do Filho e do Espírito Santo;
é conformação com Cristo (= o “caminho”) por Seu Espírito.

124
Cf. Cat. 1696: “O caminho de Cristo «conduz à vida» (Mt 7,14), um caminho contrário «leva à perdição»
(Mt 7,13; cf. Dt 30,15-20). A parábola evangélica dos dois caminhos ... significa a importância das decisões morais
para nossa salvação. «Há dois caminhos, um da vida e outro da morte; mas entre os dois há grande diferença»
(Didaché, 1,1).”
Síntese teológica / 79

Não é, portanto, apenas uma vida baseada na dignidade e nas possibilidades (faculdades) da
natureza humana. Com efeito, desde o início, o homem é chamado por Deus à bem-
aventurança divina, ou seja, a participar da bem-aventurada comunhão das Pessoas divinas.
Eis a grandeza plena da dignidade humana.

A dignidade humana
♦ se fundamenta em sua criação à imagem e semelhança de Deus, mas
♦ realiza-se em sua vocação à bem-aventurança divina.

Eis, então, o trajeto da caminhada do homem à bem-aventurança na comunhão perfeita


com Deus Trindade:
 Deus é sempre o primeiro a agir, a capacitar o homem. Cria-o em “estado de caminhada”,
dá-lhe um início da comunhão consigo (graça divina) e, tendo o homem pecado, oferece-lhe a
s a l v a ç ã o de que ele necessita.
“O socorro divino lhe é dado, em Cristo, pela
♦ l e i que o dirige e na
♦ g r a ç a que o sustenta: «Trabalhai para vossa salvação com temor e tremor, pois é Deus
quem, segundo a sua vontade, realiza em vós o querer e o fazer» (Fl 2,12-13)” (Cat.
1949).
 O homem é agraciado por Deus com
♦ a l i v r e i n i c i a t i v a e o domínio de seus atos (liberdade do homem). “Deus deixou o
homem nas mãos de sua própria decisão” (Eclo 15,14), para que, aderindo livremente a Deus,
pudesse chegar à plena e feliz perfeição.
♦ Por seus a t o s d e l i b e r a d o s (moralidade dos “atos humanos”; o papel das
“paixões”), a pessoa humana se conforma ou não ao bem prometido por Deus.
♦ O bem é atestado por sua c o n s c i ê n c i a m o r a l . De fato, as pessoas humanas se
edificam e crescem interiormente: fazem de toda sua vida sensível e espiritual matéria de
crescimento. Com efeito, com a ajuda da graça
♦ crescem na v i r t u d e (virtudes, dons e frutos do Espírito Santo),
♦ evitam o p e c a d o e, se o tiverem cometido,
♦ voltam, como o filho pródigo, para a m i s e r i c ó r d i a de nosso Pai dos Céus.
♦ Chegam, assim, à p e r f e i ç ã o d a c a r i d a d e .
 A imagem divina está presente em cada pessoa. Mas, ela resplandece na comunhão das
pessoas, à semelhança da unidade das pessoas divinas entre si (cf. Cat. 1702). Em outras
palavras: “A vocação da humanidade consiste em manifestar a imagem de Deus e ser
transformada à imagem do Filho único do Pai. Esta vocação implica uma dimensão pessoal,
pois cada um é chamado a entrar na bem-aventurança divina, mas concerne também ao conjunto
da comunidade humana ” (Cat. 1877). Não é possível atingir a perfeição da caridade sem
este aspecto social da vocação do homem.

1) A salvação de Deus: a lei e a graça


Dissemos que ao homem ferido pelo pecado, o socorro divino é dado, em Cristo, pela ♦ lei
que o dirige e na ♦ graça que o sustenta.

a) A lei moral:
“A lei é uma ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele a quem cabe o
governo da comunidade.”125 “Segundo a Escritura, a lei é uma instrução paterna de Deus que
125
S.Th. I-II, q. 90, a. 4.
Síntese teológica / 80

prescreve ao homem os caminhos que levam à felicidade prometida e proscreve os caminhos do


mal” (Cat. 1975). Ora, “Cristo é a finalidade da lei (cf. Rm 10,4). Somente Ele ensina e concede
a justiça de Deus” (Cat. 1977).
Existem: ♦ a lei natural; ♦ a Lei revelada.
A Lei revelada se divide em
♦ Antiga Lei (ela é uma preparação para o Evangelho);
♦ Nova Lei ou Lei evangélica (é a perfeição, na terra, da lei divina,
natural e revelada).

A Nova Lei é a obra de Cristo e se exprime particularmente no Sermão da Montanha.126


É também obra do Espírito Santo e, por ele, vem a ser a lei interior da caridade127.
A Nova Lei é a graça do Espírito Santo dada aos fiéis pela fé em Cristo.

A Nova Lei é operante pela caridade, serve-se do Sermão do Senhor para nos ensinar o que é
preciso fazer e dos sacramentos para nos comunicar a graça de fazê-lo (cf. Cat. 1965, 1966).
A Lei evangélica leva a pleno cumprimento, ultrapassa e conduz à perfeição a Antiga Lei:
♦ suas promessas, por meio das bem-aventuranças do Reino dos Céus;
♦ seus mandamentos, por meio da transformação da fonte de suas ações, ou seja, o coração.
A Nova Lei é uma lei de ♦ amor, uma lei de ♦ graça, uma lei de ♦ liberdade (cf. 2 Cor 3,17:
“onde se acha o Espírito do Senhor, aí existe a liberdade”).
Além de seus preceitos, a Nova Lei comporta os conselhos evangélicos (cf. Cat. 1984-
1986).

b) A graça e a justificação
Já refletimos sobre a graça em conexão com a missão do Filho e do Espírito Santo, bem
como em conexão com a reflexão sobre a nossa comunhão pessoal com cada uma das três
Pessoas divinas. Aí vimos também diversos tipos de graça.
A graça do Espírito Santo nos dá a justiça de Deus. Unindo-nos pela fé e pelo Batismo à
Paixão e à Ressurreição de Cristo, o Espírito nos faz participar da vida de Cristo (cf. Cat. 2017).

A justificação é a obra mais excelente da misericórdia de Deus (cf. Cat. 2010)


e, portanto, a máxima manifestação do amor divino.

A justificação é a ação misericordiosa e gratuita de Deus, que perdoa os nossos pecados e


nos torna justos e santos em todo o nosso ser. Isto tem lugar por meio da graça do Espírito
Santo, que nos foi merecida pela paixão de Cristo e nos foi dada no Batismo. A justificação
inicia a resposta livre do homem, ou seja, a fé em Cristo e a colaboração com a graça do
Espírito Santo (cf. Cat. Comp. 422). “A iniciativa divina na obra da graça precede, prepara e
suscita a livre resposta do homem. A graça responde às aspirações profundas da liberdade
humana; chama-a a cooperar consigo e a aperfeiçoa” (Cat. 2022).
Notemos ainda que a graça (santificante) é “sobrenatural, porque depende inteiramente da
iniciativa gratuita de Deus e ultrapassa as capacidades da inteligência e das forças do homem.
Escapa, portanto, à nossa experiência” (Cat. Comp. 423).

126
Sto. Agostinho, Serm. Dom. 1,1,1: CCL 35,1-2 (PL 34,1229-1231): “Aquele que quiser meditar com
piedade e perspicácia o Sermão que Nosso Senhor pronunciou no monte, tal como o lemos no Evangelho de São
Mateus, aí encontrará, sem sombra de dúvida, a carta magna da vida cristã. (...) Este Sermão contém todos os
preceitos apropriados para guiar a vida cristã.”
127
“Concluirei com a casa de Israel uma nova aliança. (...) Colocarei minhas leis em sua mente e as inscreverei
em seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Hb 8,8.10; cf. Jr 31,31-34).
Síntese teológica / 81

Importa também reconhecer e entender bem uma consequência da graça e da ação livre do
homem: o m é r i t o .

O mérito é o que dá direito à recompensa por uma ação boa.


Em relação a Deus, o homem, de si, não pode merecer nada, tendo recebido gratuitamente tudo
d’Ele. Todavia, Deus dá-lhe a possibilidade de adquirir méritos pela união à caridade de
Cristo128, fonte dos nossos méritos diante de Deus.
Os méritos das obras boas devem, por isso, ser atribuídos
antes de mais à graça de Deus e
depois à vontade livre do homem.129

Com efeito, “o mérito do homem diante de Deus, na vida cristã, provém do fato de que Deus
livremente determinou associar o homem à obra de sua graça. A ação paternal de Deus vem
em primeiro lugar por seu impulso, e o livre agir do homem, em segundo lugar, colaborando
com Ele, de sorte que os méritos das boas obras devem ser atribuídos à graça de Deus,
primeiramente, e só em segundo lugar ao fiel. O próprio mérito do homem cabe, aliás, a Deus,
pois suas boas ações procedem, em Cristo, das inspirações e do auxílio do Espírito Santo” (Cat.
2008).
“A adoção filial, tornando-nos participantes, por graça, da natureza divina, pode conferir-
nos, segundo a justiça gratuita de Deus, um verdadeiro mérito. Trata-se de um direito por
graça, o pleno direito do amor, que nos torna «co-herdeiros» de Cristo e dignos de obter «a
herança prometida da vida eterna»130. Os méritos de nossas boas obras são dons da bondade
divina131” (Cat. 2009).
“Como a iniciativa pertence a Deus na ordem da graça, ninguém pode merecer a graça
primeira, na origem da conversão, do perdão e da justificação. Sob a moção do Espírito Santo e
da caridade, podemos em seguida merecer para nós mesmos e para os outros as graças úteis à
nossa santificação, ao crescimento da graça e da caridade, e também para ganhar a vida eterna.
Os próprios bens temporais, como a saúde, a amizade, podem ser merecidos segundo a
sabedoria divina” (Cat. 2010).

2) O caminhar do homem rumo à perfeição da caridade


a) A liberdade do homem
O homem, criado à imagem de Deus com a vocação à bem-aventurada comunhão com a
Santíssima Trindade, é chamado por Deus a dar a resposta livre à Sua iniciativa amorosa.

A livre iniciativa de Deus pede a livre resposta do homem,


pois Deus criou o homem à sua imagem,
conferindo-lhe, com a liberdade, o poder de conhecê-l’O e amá-l’O.

A alma só pode entrar livremente na comunhão do amor. Deus toca imediatamente e move
diretamente o coração do homem. Ele colocou no homem uma aspiração à verdade e ao bem
que somente Ele pode satisfazer plenamente. As promessas da “vida eterna” respondem, além de
a toda a nossa esperança, a esta aspiração (cf. Cat. 2002).

128
É nossa “participação do Espírito Santo”, o Espírito de Cristo, Espírito-Amor; a caridade de Cristo em nós
constitui a fonte de todos os nossos méritos diante de Deus.
129
Cf. Cat. Comp. 426; Cat. 2007, 2011.
130
Conc. de Trento: DS 1546.
131
Cf. Conc. de Trento: DS 1548.
Síntese teológica / 82

Já refletimos anteriormente sobre a questão da liberdade. Apenas sublinhamos o seguinte:


“A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e amadurecimento na verdade e na
bondade. A liberdade alcança sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-
aventurança” (Cat. 1731)132.
Abusando da sua liberdade, o primeiro homem pecou. Este primeiro pecado enfraqueceu a
liberdade humana. Os pecados sucessivos vieram acentuar esta debilidade. 133 Ora, “quem
comete o pecado é escravo (do pecado)” (Jo 8,34). Mas “foi para a liberdade que Cristo nos
libertou” (Gal 5,1). Com a sua graça, o Espírito Santo conduz-nos para a liberdade espiritual,
para fazer de nós colaboradores livres da sua obra na Igreja e no mundo (cf. Cat. Comp. 366).

“Onde se acha o Espírito do Senhor, aí existe a liberdade” (2 Cor 3,17).

Expliquemo-lo brevemente: quem peca coloca sua vontade num estado de escravidão, enquanto
ela adere a um falso bem, um bem apenas aparente; não adere, portanto, ao que é realmente e
propriamente o objeto da vontade. No pecado grave, o homem adere com sua vontade a um
bem particular (= bem criado) como se este fosse seu fim último, isto é, o bem como tal, Deus,
que é o bem-por-essência. Isto significa submeter-se a uma criatura como só se pode submeter
a Deus: é escravidão. Cristo, com Seu Espírito que nos doa, liberta-nos desta escravidão pela
graça da conversão e do perdão. Além disso, o Espírito de Cristo nos torna livres enquanto nos
faz agir por amor, fazendo assim que façamos o bem espontaneamente, movidos a partir de
dentro, não por alguma imposição de fora, não por medo, não por alguma coação ou
constrangimento. O Espírito de Cristo, do Filho de Deus, nos dá a liberdade dos filhos de Deus
(cf. Rm 8,21): fazer a vontade do Pai por amor. “O progresso na virtude, o conhecimento do
bem e a ascese aumentam o domínio da vontade sobre seus atos” (Cat. 1734).

“A liberdade caracteriza os atos propriamente humanos.


Torna o ser humano responsável pelos atos dos quais é voluntariamente autor.
Seu agir deliberado é algo propriamente seu” (Cat. 1745).

Um “ato humano”, em sentido próprio (distinto de “ato do homem” – actus hominis), é,


portanto, um ato que a pessoa humana realiza enquanto ser consciente e livre: um ato da vontade
livre, que pressupõe um correspondente conhecimento (o homem é livre porque dotado de
razão).

“Ato humano” é um ato livremente escolhido após um juízo da consciência (cf. Cat. 1749).

A imputabilidade e a responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas,


pela ignorância, a inadvertência, a violência suportada, o medo, as afeições desordenadas e os
hábitos (diversos fatores psíquicos ou sociais) (cf. Cat. Comp. 364).
Todo ato diretamente querido é imputável a seu autor. “Uma ação pode ser indiretamente
voluntária quando resulta de uma negligência quanto a alguma coisa que deveríamos saber ou
fazer, por exemplo, um acidente ocorrido por ignorância do código de trânsito” (Cat. 1736).
“Um efeito pode ser tolerado sem ser querido pelo agente, por exemplo, o esgotamento da
mãe à cabeceira de seu filho doente. O efeito ruim não é imputável se não foi querido nem

132
Cf. Cat. 1742: “A graça de Cristo não entra em concorrência com nossa liberdade quando esta corresponde
ao sentido da verdade e do bem que Deus colocou no coração do homem. Ao contrário, como a experiência cristã o
atesta, sobretudo na oração, quanto mais dóceis formos aos impulsos da graça, tanto mais crescem nossa liberdade
íntima e nossa segurança nas provações e diante das pressões e coações do mundo externo.”
133
“Recusando o projeto do amor de Deus, enganou-se a si mesmo, tornou-se escravo do pecado. Esta primeira
alienação gerou outras, em grande número. Desde suas origens, a história comprova os infortúnios e opressões
nascidos do coração do homem por causa do mau uso da liberdade” (Cat. 1739).
Síntese teológica / 83

como fim nem como meio de ação, como poderia ser o caso de morte sofrida por alguém
quando tentava socorrer uma pessoa em perigo. Para que o efeito ruim seja imputável, é preciso
que seja previsível e que o agente tenha a possibilidade de evitá-lo, como, por exemplo, no caso
de um homicídio cometido por motorista embriagado” (Cat. 1737).

b) O homem como sujeito moral: a moralidade dos atos humanos


A liberdade faz do homem um sujeito moral. Quando age de forma deliberada, o homem é,
por assim dizer, o pai de seus atos. Por isso, os atos humanos são qualificáveis moralmente.
São bons ou maus (cf. Cat. 1749).
Podem-se indicar três “fontes” ou elementos constitutivos da moralidade dos atos
humanos (cf. Cat. 1750).

Com efeito, a moralidade dos atos humanos depende:


♦ do objeto escolhido (um bem verdadeiro ou aparente);
♦ do fim visado ou da intenção;
♦ das circunstâncias da ação (onde se incluem as suas consequências).

O ato moralmente bom supõe, ao mesmo tempo, a bondade do objeto, da finalidade e das
circunstâncias.

Para que o ato seja moralmente bom, todos os três elementos devem ser bons.

É errado julgar a moralidade dos atos humanos considerando só a intenção que os inspira ou as
circunstâncias (meio ambiente, pressão social, constrangimento ou necessidade de agir etc.) que
compõem o quadro. As circunstâncias podem atenuar ou aumentar a responsabilidade de quem
age, mas não podem modificar a qualidade moral dos próprios atos, não tornam nunca boa uma
ação que, em si, é má.

Existem atos que


por si mesmos e em si mesmos,
independentemente das circunstâncias e intenções,
são sempre gravemente ilícitos, em virtude de seu objeto,
por exemplo a blasfêmia e o perjúrio, o homicídio e o adultério. A sua escolha comporta uma
desordem da vontade, isto é, um mal moral, que não pode ser justificado com os bens que
eventualmente daí pudessem derivar. Com efeito, não é permitido praticar um mal para que
dele resulte um bem (cf. Cat. 1760, 1756; Cat. Comp. 368, 369).
Quanto ao objeto escolhido, eis um exemplo: dar uma esmola a um pobre. É uma ação boa
em si, a qual, como ação, contém necessária e essencialmente a finalidade de aliviar o pobre em
sua situação de indigência ou até de miséria. Quem dá a esmola pode fazer sua esta finalidade,
isto é, o fim da ação como tal (finis operis). Neste caso, o fim da ação como tal é também o fim
visado pelo autor da ação (sua intenção). Mas pode acontecer que o doador da esmola vise (além
desse fim ou em lugar dele) a um outro fim; é o fim do autor da obra (finis operantis). Daí a
distinção entre “objeto escolhido” e “fim visado ou intenção”.

c) As “paixões”: forças para o bem ou para o mal


“O ser humano se ordena para a bem-aventurança por meio de seus atos deliberados.
As paixões ou sentimentos que experimenta podem dispô-lo e contribuir para isso” (Cat.
1762).
Síntese teológica / 84

As “paixões” são
os afetos, as emoções ou os movimentos da sensibilidade (sentimentos)
– componentes naturais da psicologia humana –
que inclinam a agir ou a não agir
em vista do que se percebeu como bom ou como mau.

As paixões principais são


♦ o amor e o ódio (com relação ao bem e ao mal, respectivamente),
♦ o desejo (com relação ao bem ausente) e o medo (com relação ao mal futuro),
♦ a alegria e a tristeza (pelo bem e o mal presentes, respectivamente), e
♦ a cólera (com relação ao mal presente, para afastá-lo).134
A paixão fundamental é o amor, provocado pela atração do bem. Não se ama se não o
bem, verdadeiro ou aparente.
Enquanto movimentos da sensibilidade, as paixões não são nem boas nem más em si
mesmas: são boas quando contribuem para uma ação boa; são más, no caso contrário. Elas
podem ser assumidas pelas virtudes ou pervertidas nos vícios (cf. Cat. Comp. 370, 371). As
paixões são chamadas voluntárias “ou porque são comandadas pela vontade ou porque a
vontade não lhes opõe obstáculo”135. Faz parte da perfeição do bem moral ou humano que as
paixões sejam reguladas pela razão.136

A perfeição do bem moral consiste em que


o homem não seja movido ao bem exclusivamente pela vontade, mas
também pelo “coração” ou “apetite sensível”. 137

“Na vida cristã, o próprio Espírito Santo realiza sua obra mobilizando o ser inteiro,
inclusive suas dores, medos e tristezas, como aparece na Agonia e Paixão do Senhor. Em Cristo,
os sentimentos humanos podem receber sua consumação na caridade e na bem-aventurança
divina” (Cat. 1769).

d) A consciência moral
Por seus atos deliberados (“energizados” pelas paixões), a pessoa humana vai ao encontro
da comunhão consumada com Deus Trindade (bem-aventurança em Deus) ou não vai. São “atos
humanos, isto é, livremente escolhidos após um juízo da consciência” (Cat. 1749).
Lembremo-nos que Deus vem ao socorro do homem através da lei que o dirige. Mas, como
esta lei é reconhecida pelo homem? Como é “interiorizada”? Por aquilo que chamamos de
“consciência moral”.

A consciência moral é um julgamento da razão


pelo qual a pessoa humana reconhece a qualidade moral de um ato concreto
que vai planejar, que está a ponto de executar ou que já praticou.

Em tudo o que diz e faz, o homem é obrigado a seguir fielmente o que sabe ser justo e correto.
É pelo julgamento de sua consciência que o homem percebe e reconhece as prescrições da lei
134
Outras “paixões”: aversão-fuga (com relação ao mal futuro), esperança e desespero (com relação a um bem
ainda não alcançado, um bem árduo, difícil de obter), audácia (com relação a um mal ainda futuro; a audácia
provém da esperança da vitória, enquanto o medo provém do desespero da vitória).
135
S.Th. II-II, q. 24, a. 1.
136
S.Th. I-II, q. 24, a. 3.
137
Cf. Cat. 1775; cf. Sl 84,3.
Síntese teológica / 85

divina (cf. Cat. 1778). De fato, por sua razão o homem conhece a voz de Deus, que o insta a
“fazer o bem e a evitar o mal” (GS 16). Esta lei ressoa na consciência do homem e se cumpre no
amor a Deus e ao próximo (cf. Cat. 1706).
Colocada diante de uma escolha moral, a consciência pode emitir um julgamento correto
de acordo com a razão e a lei divina ou, ao contrário, um julgamento errôneo, que se afasta da
razão e da lei divina.

O homem deve obedecer sempre ao julgamento certo de sua consciência.

Como já dissemos, a consciência moral pode estar na ignorância ou fazer julgamentos


errôneos. Muitas vezes esta ignorância pode ser imputada à responsabilidade pessoal. É o que
acontece “quando o homem não se preocupa suficientemente com a procura da verdade e do
bem, e a consciência pouco a pouco, pelo hábito do pecado, se torna quase obcecada” (GS 16).
Neste caso, a pessoa é culpável pelo mal que comete (cf. Cat. 1791, 1799-1801).

Existe, portanto, o dever de f o r m a r a consciência.

“A Palavra de Deus é luz para nossos passos. É preciso que a assimilemos na fé e na oração
e a coloquemos em prática. Assim se forma a consciência moral” (Cat. 1802).

e) As virtudes
A pessoa humana caminha rumo à comunhão perfeita com Deus através dos atos virtuosos,
ou seja, através dos atos da virtude teologal do amor e de todas as outras virtudes, contanto que
tais atos estejam animados pelo amor.
A virtude, em geral, permite à pessoa não só praticar atos bons, mas dar o melhor de si.
Com todas as suas forças sensíveis e espirituais, a pessoa virtuosa tende ao bem, procura-o e
escolhe-o na prática.

As virtudes são perfeições habituais das faculdades da inteligência e da vontade,


disposições firmes, estáveis para fazer o bem,
disposições permanentes de ação boa.

Na terminologia escolástica chamam-se “habitus”, mais exatamente, “habitus operativi”.138


O habitus é uma disposição estável semelhante a uma natureza (uma “segunda natureza”).
Como tal, o habitus comporta certa interioridade: não é algo externo, puramente mecânico, mas
um novo princípio de ação da pessoa. O habitus encontra-se nos confins entre a liberdade e o
determinismo. De fato, a inclinação a um só objeto, graças à qual o ato se torna mais fácil e
seguro, não impede que o habitus permaneça no âmbito da liberdade. O habitus é aquilo pelo
qual alguém age quando quer (“habitus est quo quis agit cum voluerit“), come se tivesse ao
alcance da mão o que deve ser feito.
As virtudes – pelas quais as faculdades são transformadas – contribuem à realização da
natureza humana, de modo que quanto mais profundas forem essas transformações, tanto mais
forte e perfeito se torna o homem. A transformação espiritual depende, portanto, do
desenvolvimento dos habitus, particularmente daqueles que constituem as virtudes e os dons
sobrenaturais.

1) As virtudes humanas

138
A graça santificante é um “habitus entitativus”, pois aperfeiçoa diretamente a própria substância da alma,
não apenas as suas faculdades ou potências. Os habitus operativi referem-se seja à atividade técnica (mediante um
aprendizado), seja à intelectual (mediante a aquisição das ciências), seja à atividade moral.
Síntese teológica / 86

As virtudes morais – virtudes humanas naturais – são adquiridas e crescem humanamente,


isto é, pela educação, por atos deliberados e por uma perseverança sempre retomada com
esforço. Elas são, portanto, os frutos e, ao mesmo tempo, os germes de atos moralmente bons;
dispõem todas as forças do ser humano para entrar em comunhão com o amor divino; são
purificadas e elevadas pela graça, isto é, pelo dom do amor divino (cf. Cat. 1804, 1810).
Podem ser agrupadas em torno de quatro virtudes cardeais139: a prudência, a justiça, a
fortaleza e a temperança (cf. Sb 8,7).
A prudência dispõe a razão prática a discernir, em qualquer circunstância, nosso verdadeiro
bem e a escolher os meios adequados para realizá-lo. Ela conduz as outras virtudes, indicando-
lhes a regra e a medida.
A justiça consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é
devido. (Está ligada a esta virtude cardeal a virtude da religião.)
A fortaleza garante, nas dificuldades, a firmeza e a constância na busca do bem. Ela nos
torna capazes de vencer o medo, inclusive da morte, de suportar a provação e as perseguições.
Dispõe a pessoa a aceitar até a renúncia e o sacrifício de sua vida para defender uma causa justa.
A temperança modera a atração dos prazeres sensíveis e procura o equilíbrio (a medida
certa) no uso dos bens criados. No Novo Testamento, é chamada de “moderação” ou
“sobriedade” (cf. Tt 2,12).
Viver bem não é outra coisa senão amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e em toda forma de agir.
Dedicar-lhe um amor integral (pela temperança) que nenhum infortúnio poderá abalar (o que depende da
fortaleza), que obedece exclusivamente a Ele (e nisto consiste a justiça), que vela para discernir todas as coisas
com receio de deixar-se surpreender pelo ardil e pela mentira (e isto é a prudência). 140
Vê-se, portanto, que as virtudes humanas se fundam nas virtudes teologais, particularmente
na virtude do amor (cf. 1 Cor 13; Cat. 1812).

2) As virtudes teologais

As virtudes teologais se referem diretamente a Deus.


Dispõem os cristãos a viver em relação pessoal (comunhão) com a Santíssima Trindade
e têm a Deus Uno e Trino por origem, motivo e objeto.

As virtudes teologais são infundidas por Deus na alma dos fiéis para torná-los capazes de
agir como Seus filhos e merecer a vida eterna (cf. Cat. 1813).
“As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão” (Cat.
1813). Elas dão forma e vida a todas as virtudes morais. Assim, existem as virtudes morais
infusas. Elas existem na alma por certa redundância das virtudes teologais (sobretudo da
caridade) sobre ações que, de per si, competem às virtudes morais. Assim, a temperança
inspirada pela fé e pela caridade busca um meio certo, diferente daquele determinado pela
virtude natural: a virtude sobrenatural da temperança visa à sabedoria da Cruz e se aproxima
mais da renúncia do que do prazer moderado (cf. S.Th. I-II, q. 63, a. 4).
♦ A fé é a virtude teologal pela qual cremos em Deus mesmo e em tudo o que nos disse e
revelou, e que a Santa Igreja nos propõe para crer, porque Ele é a própria verdade (cf. Cat.
1814).
♦ “A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos
Céus e a Vida Eterna, pondo nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em
nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo” (Cat. 1817). Ela “assume as
esperanças que inspiram as atividades dos homens; purifica-as, para ordená-las ao Reino dos
Céus” (Cat. 1818).
139
São virtudes que têm o papel de “dobradiça” (= em latim: cardo, cardinis).
140
Sto. Agostinho, Mor. eccl. 1,25,46: PL 32,1330-1331.
Síntese teológica / 87

“A esperança é a "âncora da alma", segura e firme, "penetrando... onde Jesus entrou por
nós, como precursor" (Hb 6,19-20). Também é uma arma que nos protege no combate da
salvação: "Revestidos da couraça da fé e da caridade e do capacete da esperança da salvação" (l
Ts 5,8). Ela nos traz alegria mesmo na provação: "alegrando-vos na esperança, perseverando na
tribulação" (Rm 12,12). Ela se exprime e se alimenta na oração, especialmente no Pai-Nosso,
resumo de tudo o que a esperança nos faz desejar” (Cat. 1820).
♦ “A caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por si
mesmo, e a nosso próximo como a nós mesmos, por amor de Deus” (Cat. 1822).
Tudo o que é privilégio, serviço e mesmo virtude, “se não tivesse a caridade, isso nada me
adiantaria” (cf. 1 Cor 13,1-3). A caridade é superior a todas as virtudes.
“O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o "vínculo da
perfeição" (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e
termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar,
elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino” (Cat. 1827).

Ser “forma” de todas as virtudes ou informá-las significa que


a caridade penetra o ato mesmo da virtude,
dando-lhe um novo modo de ser, o modo da caridade.

O crescimento das virtudes sobrenaturais ou infusas:


a) pela remoção, na pessoa humana, dos obstáculos ao seu exercício e pelo fato que as
faculdades, orientadas em diversas direções, são reconduzidas à unidade (particularmente pela
caridade);
b) uma vez que o exercício da caridade merece um aumento de glória, merece também um
aumento de graça, que é o meio para a glória. Notemos, porém, que este crescimento da vida
da graça, semelhante ao crescimento de todo ser vivo, procede do seguinte modo: quando a
disposição de um ser vivo atingiu um determinado grau, acontece uma mudança; de modo
semelhante, quando a disposição da alma se tiver transformada pelos contínuos atos de caridade,
a pessoa realizará um ato mais intenso de caridade, o qual, por sua vez, provocará um aumento
de graça e de caridade (graça santificante e virtude do amor divino).

3) Os dons e frutos do Espírito Santo


A vida moral dos cristãos é sustentada pelos dons do Espírito Santo. São outro tipo de
aperfeiçoamento das faculdades da alma.

Os dons do Espírito Santo são disposições permanentes que


tornam o homem d ó c i l para seguir os impulsos do mesmo Espírito.

Os sete dons do Espírito Santo são: sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência,
piedade e temor de Deus. Em plenitude, pertencem a Cristo, Filho de Davi (cf. Is 11,1-2). Eles
derivam da caridade; completam e levam à perfeição as virtudes daqueles que os recebem.
“Os frutos do Espírito são perfeições que o Espírito Santo forma em nós como primícias da
glória eterna” (Cat. 1832).
A Tradição da Igreja enumera doze: “caridade, alegria, paz, paciência, longanimidade,
bondade, benignidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência e castidade” (Gl 5,22-23
vulg.).

f) O pecado e a conversão pela misericórdia divina


1) O pecado na vida do homem
Síntese teológica / 88

O caminhar do homem rumo à perfeição da caridade é impedido ou retardado pelo pecado.


O pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a consciência reta; é uma falta ao amor
verdadeiro para com Deus e para com o próximo, por causa de um apego perverso ou
desordenado a bens inferiores a Deus. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade
humana. Foi definido como «uma palavra, um ato ou um desejo contrários à lei eterna»141 (cf.
Cat. 1849).
O pecado é uma ofensa a Deus. “Quem peca fere a honra de Deus e seu amor, sua própria
dignidade de homem chamado a ser filho de Deus e a saúde espiritual da Igreja, da qual cada
cristão é uma pedra viva” (Cat. 1487).

“Aos olhos da fé, nenhum mal é mais grave que o pecado,


e nada tem conseqüências piores para os próprios pecadores,
para a Igreja e para o mundo inteiro” (Cat. 1488).

Pecado mortal:
Escolher, com pleno conhecimento e pleno consentimento, uma coisa gravemente contrária
à lei divina e ao fim último do homem é cometer pecado mortal. Este pecado destrói no pecador
a caridade e, portanto, a comunhão com Deus (presença do Espírito Santo enquanto enviado
pelo Pai e Filho), sem a qual é impossível a bem-aventurança eterna. A pena do pecado mortal é,
se não houver arrependimento, a exclusão eterna da comunhão com Deus.
Pecado venial:
O pecado venial constitui uma desordem moral reparável pela caridade, que ele deixa
subsistir no pecador. No entanto, o pecado venial ofende e fere a caridade e enfraquece-a (cf.
Cat. 1855, 1863, 1875). A pena do pecado venial é a assim chamada “pena temporal”. Esta é a
privação temporal daquela perfeição da comunhão com Deus que o cristão, no momento
presente, poderia ter e, de fato, teria se não estivesse com um apego desordenado a um bem
criado. Este apego é consequência do pecado142 e impede a pessoa de fazer atos de amor
verdadeiramente perfeito. Depois da morte, essa comunhão perfeita será aquela que se tem na
visão beatífica de Deus. Durante a vida terrena, é aquela comunhão que o cristão tem se ele
cumpre perfeitamente o mandamento do amor (“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o coração,
de toda a alma e de todo o entendimento” – Mt 22,37).
“A ignorância involuntária pode diminuir ou até escusar a imputabilidade de uma falta
grave, mas supõe-se que ninguém ignora os princípios da lei moral inscritos na consciência de
todo ser humano. Os impulsos da sensibilidade, as paixões podem igualmente reduzir o
caráter voluntário e livre da falta, como também pressões exteriores e perturbações
patológicas. O pecado por malícia, por opção deliberada do mal, é o mais grave” (Cat. 1860).
O pecado é um ato pessoal. Além disso, temos responsabilidade nos pecados cometidos por
outros, quando neles cooperamos: ♦ participando neles direta e voluntariamente; ♦
mandando, aconselhando, louvando ou aprovando esses pecados; ♦ não os revelando ou não os
impedindo, quando a isso somos obrigados; ♦ protegendo os que fazem o mal (cf. Cat. 1868).
“Os pecados provocam situações sociais e instituições contrárias à bondade divina. As
«estruturas de pecado» são a expressão e o efeito dos pecados pessoais. Induzem suas vítimas a
cometer, por sua vez, o mal. Em sentido analógico, constituem um «pecado social»” (Cat.
1869).

141
Sto. Agostinho, Faust. 22: PL 42, 418; Sto. Tomás de Aquino, S. Th., I-II,71,6.
142
De fato, em todo e qualquer pecado, o pecador quer, de um modo mais ou menos desordenado, um bem
inferior a Deus.
Síntese teológica / 89

2) A misericórdia divina triunfa do pecado


“Deus encerrou todos na desobediência, para a todos fazer misericórdia” (Rm 11,32).
O Evangelho é a revelação, em Jesus Cristo, da misericórdia de Deus para com os
pecadores (cf. Lc 15). Para acolher esta misericórdia é necessário da parte do pecador que ele
reconheça e confesse suas faltas. “Se dissermos: «Não temos pecado», enganamo-nos a nós
mesmos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos nossos pecados, Ele, que é fiel e justo,
perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça” (1 Jo 1,8-9).
“Todo pecado, toda blasfêmia será perdoada aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito
não será perdoada” (Mt 12,31; cf. Mc 3,29; Lc 12,10). Quem a profere é culpado de um pecado
eterno. Na verdade, a misericórdia de Deus não tem limites, mas quem se recusa
deliberadamente a acolher a misericórdia de Deus pelo arrependimento rejeita o perdão de
seus pecados e a salvação oferecida pelo Espírito Santo. Semelhante endurecimento pode levar à
impenitência final e à perdição eterna (cf. Cat. 1864).

g) A santidade na perfeição da caridade


“O apelo à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade se dirige a todos os fiéis
cristãos” (LG 40). A santidade é esta plenitude da vida cristã e a perfeição da caridade.
“O progresso espiritual tende à união sempre mais íntima com Cristo. Esta união recebe o
nome de «mística», pois ela participa no mistério de Cristo pelos sacramentos – «os santos
mistérios» – e, nele, no mistério da Santíssima Trindade. Deus nos chama a todos a esta íntima
união com Ele, mesmo que graças especiais ou sinais extraordinários desta vida mística sejam
concedidos apenas a alguns, em vista de manifestar o dom gratuito feito a todos” (Cat. 2014).
“O caminho da perfeição passa pela cruz. Não existe santidade sem renúncia e sem
combate espiritual (cf. 2Tm 4)” (Cat. 2015). “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). “O progresso espiritual envolve ascese e
mortificação, que levam gradualmente a viver na paz e na alegria das bem-aventuranças” (Cat.
2015).
Uma vez que na nossa caminhada para Deus, nesta vida terrena, podemos sempre crescer na
caridade, até o último momento da vida,
“a perfeição cristã só tem um limite: ser ilimitada”143.

“Vida espiritual” e “espiritualidade”144


O conceito “vida espiritual” e “espiritualidade” é um conceito analógico. A evolução
histórica vai da noção de presença do Espírito Santo (= perspectiva mais objetiva) aos aspectos
mais dinâmicos: o homem que possui o Espírito Santo torna-se capaz de entender o sentido
profundo da S. Escritura e, então, de guiar os outros no caminho da santidade, à plenitude da
vida cristã. Pelos grandes teólogos escolásticos (tomando o homem como ponto de referência da
vida moral e espiritual), a plenitude da vida foi entendida como caridade perfeita. A questão
espiritual torna-se, então, mais prática: como conduzir as almas à perfeição da caridade?
Hoje em dia, a palavra “espiritualidade” significa também, além do objeto da teologia
espiritual,

um certo e s t i l o d e v i d a cristã em conexão com

143
S. Gregório de Nissa, V. Mos: PG 44,300D.
144
Cf. Charles André BERNARD, Teologia spirituale, Ed. San Paolo, Milano 62002, 21-28.
Síntese teológica / 90

correntes espirituais históricas145 ou com condições de existência146.

Em geral, pode-se dizer que as diversas “espiritualidades” se apresentam como caminhos de


santidade que – se são verdadeiramente católicas – não excluem elementos que fazem parte da
fé e vida cristã em geral, mas acentuam e desenvolvem mais ou de um modo peculiar um ou
outro elemento.

3) A comunidade humana147

a) A pessoa e a sociedade
“A vocação da humanidade consiste em manifestar a imagem de Deus e ser transformada à
imagem do Filho único do Pai” (Cat. 1877). Uma vez que Deus é o mistério de uma comunhão
perfeita entre três Pessoas distintas entre si, sendo assim comunidade, a comunidade humana
tem na comunidade divina, isto é, em Deus Trindade, seu modelo supremo a imitar. Por isso:

“Existe certa semelhança entre


a unidade das pessoas divinas e
a fraternidade que os homens devem estabelecer entre si,
na verdade e no amor148” (Cat. 1878).

O amor ao próximo é inseparável do amor a Deus. Igualmente, a pessoa humana tem


necessidade de vida social; é uma exigência de sua natureza. Mediante o intercâmbio com os
outros, a reciprocidade dos serviços e o diálogo com seus irmãos, o homem desenvolve as
próprias virtualidades; responde, assim, à sua vocação (cf. Cat. 1879).
“Cada comunidade se define por seu fim e obedece, por conseguinte, a regras específicas,
mas «a pessoa humana é e deve ser o princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais»”
(Cat. 1881).
“Sem o auxílio da graça, os homens seriam incapazes de «discernir a senda frequentemente
estreita entre a covardia que cede ao mal e a violência que, na ilusão de o estar combatendo,
ainda o agrava mais». É o caminho da caridade, quer dizer, do amor a Deus e ao próximo.

A caridade representa o maior mandamento social.


Respeita o outro e seus direitos.
Exige a prática da justiça, e
só ela nos torna capazes de praticá-la.

Inspira uma vida de autodoação: «Quem procurar ganhar sua vida vai perdê-la, e quem a perder
vai conservá-la» (Lc 17,33)” (Cat. 1889).

b) A participação na vida social


Toda comunidade humana tem necessidade de uma autoridade para se manter e
desenvolver. Seu papel consiste em assegurar enquanto possível o bem comum da sociedade.

145
Por exemplo, espiritualidade beneditina, inaciana, carmelitana.
146
Estados de vida, vocações, situações concretas; daí se fala de espiritualidade sacerdotal, laical, da vida
consagrada, etc.
147
Cf. Cat. 1877-1948 (seguem citações destes números do Catecismo).
148
Cf. GS 24, 3.
Síntese teológica / 91

O bem comum comporta três elementos essenciais: 1) o respeito e a promoção dos direitos
fundamentais da pessoa; 2) a prosperidade ou o desenvolvimento dos bens espirituais e
temporais da sociedade; 3) a paz e a segurança do grupo e de seus membros.
A autoridade só será exercida legitimamente se procurar o bem comum do grupo em questão
e se, para atingi-lo, empregar meios moralmente lícitos. Se acontecer de os dirigentes
promulgarem leis injustas ou tomarem medidas contrárias à ordem moral, estas disposições não
poderão obrigar as consciências. Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando
em abuso do poder.
O bem comum está sempre orientado ao progresso das pessoas: a organização das coisas
deve subordinar-se à ordem das pessoas e não ao contrário. Esta ordem tem por base a verdade,
edifica-se na justiça, é vivificada pelo amor.

É necessário que todos participem, na promoção do bem comum.


cada um conforme o lugar que ocupa e o papel que desempenha,

c) A justiça social
A sociedade garante a justiça social quando realiza as condições que permitem às
associações e a cada membro seu obter o que lhes é devido conforme sua natureza e sua
vocação. A justiça social está ligada ao bem comum e ao exercício da autoridade.
O respeito pela pessoa humana considera o outro como um “outro eu mesmo”. Supõe o
respeito pelos direitos fundamentais que decorrem da dignidade intrínseca da pessoa.
A igualdade entre os homens assenta sobre sua dignidade pessoal e sobre os direitos que daí
decorrem.
As diferenças entre as pessoas pertencem ao plano de Deus, o qual quer que todos nós
tenhamos necessidade uns dos outros. Essas diferenças devem estimular a caridade.149
A dignidade igual das pessoas humanas exige o esforço para reduzir as desigualdades
sociais e econômicas excessivas e leva ao desaparecimento das desigualdades iníquas.
A solidariedade é uma virtude eminentemente cristã 150 que pratica a partilha dos bens
espirituais mais ainda que dos materiais. Difundindo os bens espirituais da fé, a Igreja
favoreceu também o desenvolvimento dos bens temporais, aos quais muitas vezes abriu novos
caminhos. Assim foi-se verificando, ao longo dos séculos, a palavra do Senhor: “Buscai, em
primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt
6,33).

4) A vida moral: um culto espiritual


Nossa vida moral, cujos princípios são enunciados nos Dez Mandamentos,
♦ encontra sua fonte na fé em Deus, que no mistério de Cristo, isto é, na missão do Filho e
do Espírito Santo, nos revela Seu amor (cf. Cat. 2087).
♦ Esta fé leva à liturgia, na qual é celebrado e comunicado este mistério.
♦ A vida moral, como vida digna do Evangelho, é, então, fruto da fé e da liturgia
(sacramentos).
149
Cf. Sta. Catarina de Sena, Diál., 7: “Distribuí muitas graças e virtudes, espirituais e temporais, com tal
diversidade que a ninguém por si só concedi todo o necessário, para serdes obrigados a usar de caridade uns para
com os outros. (...) Quis que todos tivessem necessidade uns dos outros e fossem meus ministros na distribuição das
graças e liberalidades que de mim receberam.”
150
Tem sido enunciada também sob o nome de “amizade” ou “caridade social” e é uma exigência direta da
fraternidade humana e cristã.
Síntese teológica / 92

Assim, a vida moral está ligada à vida litúrgica e dela se alimenta (cf. Cat. 2041).
“A vida moral é um culto espiritual. «Oferecemos nossos corpos como hóstia viva, santa e
agradável a Deus» (cf. Rm 12,1), no seio do corpo de Cristo que formamos, e em comunhão
com a oferta de sua Eucaristia. Na Liturgia e na celebração dos sacramentos, oração e doutrina
se conjugam com a graça de Cristo, para iluminar e alimentar o agir cristão.

Como o conjunto da vida cristã, da mesma forma a vida moral encontra


sua fonte e seu ponto culminante no sacrifício eucarístico” (Cat. 2031).

A Celebração Eucarística deve ser um mistério acreditado, celebrado e vivido na vida


cotidiana do cristão. O culto prestado a Deus na liturgia deve, portanto, ser estendido à vida
cotidiana, à vida de prática do bem, sendo que a virtude da religião e a do amor fazem desta
vida um culto espiritual, um sacrifício agradável a Deus.

A vida moral é, assim, um sacrifício em sentido amplo:


ato de amor a Deus,
pelo qual a pessoa se entrega a si mesma, em adoração, a Deus,
para, neste mundo, ir ao encontro da comunhão consumada com Ele.

De fato, como resposta à iniciativa divina, todo o agir espiritual do homem pode ser
reconduzida a duas atitudes fundamentais, que correspondem à dupla relação do homem a
Deus, isto é, à ♦ relação de criatura e à ♦ relação de aliança, vividas concretamente pelos atos
da virtude da ♦ religião e do ♦ amor (virtude teologal).
♦ Como criatura (em seu ser e agir totalmente dependente do Criador), o homem deve fazer
da própria vida uma homenagem ao seu Criador; eis o sentido da virtude da religião. Esta se
pratica de dois modos:
1) com atos que ordenam o homem somente a Deus, isto é, atos que têm seu sentido somente
no culto prestado a Deus (adoração, oração, oferta dum sacrifício, ...);
2) com atos de outras virtudes, feitos para louvor e glória de Deus (o motivo é da virtude da
religião; neste sentido a virtude da religião “rege” os atos das outras virtudes)151.
♦ Como pessoa com quem Deus (Pai), em Cristo e no Espírito Santo, concluiu uma aliança
de amor, sendo filho no FILHO bem-amado, todo o agir do homem pode ser uma resposta de
amor ao Deus de amor. Como o diálogo fundamental entre Deus e o homem é diálogo de amor,
assim toda a vida concreta do homem pode ser vivida no amor (cf. Rm 13,8-10: toda a Lei se
resume no amor), fazendo da sua vida uma sucessão de atos de amor.
Existencialmente, não se pode separar o amor (e as outras duas virtudes teologais, a fé e a
esperança) da religião. Prestar culto a Deus, reconhecer a própria condição de criatura, faz parte
do amor, como uma propriedade essencial dele. Por isso, se no ato da virtude da religião (p. ex.,
na oração – dizer: “Senhor, Senhor,...”; cf. Mt 7,21-23) pode faltar o amor, no verdadeiro amor
não pode faltar essa sua propriedade essencial. Daí se segue:

Quando existe o a m o r ,
toda a atividade do homem pode adquirir o caráter religioso
e tornar-se ato de culto a Deus (cf. Tg 1,26-27).

Os atos da virtude da religião são a manifestação cultual do amor. Na verdade, as virtudes


teologais, isto é, seus atos, constituem o culto interior de Deus, ao qual se ordena o culto

151
Cf. S.Th. II-II, q. 81, a. 1, ad 1.
Síntese teológica / 93

exterior.152 Os atos destas virtudes, sobretudo o amor, produzem imediatamente a união com
Deus, que é o fim último do culto.

XIV. A consumação de toda a história da salvação


pela perfeita realização do fim da
missão conjunta do Filho e do Espírito Santo

1. O fim da missão do Filho e do Espírito Santo

O fim da missão conjunta do Filho e do Espírito Santo nos é indicado pela Sagrada
Escritura. Este fim é o objeto do desígnio eterno de Deus Trindade com relação às Suas
criaturas, a todo o universo criado. Eis alguns trechos a este respeito:
“(Deus Pai) nos fez conhecer o mistério da Sua vontade, segundo o Seu desígnio que de
antemão determinou n’Ele [Cristo], para a dispensação 153 da plenitude dos tempos: unir154
em Cristo todas as coisas, as que estão nos Céus e as que estão na terra” (Ef 1,9-10).
“Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os Céus, a fim de encher todas as
coisas” (Ef 4,10).
“Quando Eu for elevado da terra, atrairei todos (ou: tudo) a Mim” (Jo 12,32).
“... a fim de que todos sejam um. [...] para que sejam um, como Nós somos um: Eu neles e
Tu em Mim, para que sejam perfeitos na unidade” (Jo 17,21.22s).
“Alegremo-nos [...], porque estão para realizar-se as núpcias do Cordeiro, e Sua esposa já
está pronta. [...] Felizes aqueles que foram convidados para o banquete das núpcias do
Cordeiro” (Ap 19,7.9).
Os trechos da S. Escritura acima citados introduzem-nos na realização plena do desígnio
que Deus tem com o universo das Suas criaturas, com “todas as coisas nos Céus e na terra”.
O Apóstolo Paulo fala, a este respeito, do “mistério da Sua vontade” (isto é, da vontade de
Deus) ou simplesmente do “mistério” ou, então, do “mistério de Deus”, mas que é “o mistério
de Cristo”;155 e é o mistério de Cristo crucificado, como a sabedoria escondida de Deus. 156 É o
mistério de

Jesus Cristo, em quem todo o universo criado deverá ser unido (Ef 1,10).

A consumação ou realização plena daquele desígnio de Deus que podemos chamar


brevemente “o mistério de Cristo” é descrita de diversas maneiras na Sagrada Escritura. O livro
do Apocalipse fala-nos da “consumação” do “mistério de Deus” (Ap 10,7), e esta consumação é
apresentada como sendo “as núpcias do Cordeiro” (19,7), isto é, de Jesus Cristo crucificado e
ressuscitado, bem como o “banquete das núpcias do Cordeiro” (Ap 19,9).

152
Cf. S.Th. I-II, q. 101, a. 2; q. 99, a. 3.
153
oi1konomiva (oikonomía), dispensação, administração, realização ordenada (segundo um plano).
154
ajnakefalaiwvsasqai taV pavnta: recapitular, unir, dar um princípio de unidade; eventualmente: encabeçar;
cf. N. THANNER, Was bedeutet die „Anakephalaiosis“ der gesamten Schöpfung in Eph 1,10?, em: Sapientia Crucis
5 (2004) 5-67.
155
Cf. Ef 1,9; 3,3.4; Cl 1,26s; 2,2; 4,3; Rm 16,25.
156
Cf. 1Cor 2,1s.7s.
Síntese teológica / 94

Ora, a esposa do Cordeiro, como é descrita a partir de Ap 21,9, não é apenas a Igreja
composta de homens (as pessoas humanas salvas pelo Cordeiro), mas também de anjos.157 Além
disso, a própria criação material é apresentada como participante desse mistério das núpcias: ela
pertence àquela realidade que é chamada a “esposa do Cordeiro”. 158 As “núpcias” significam
uma realidade de amor e de união; não qualquer união, mas uma união caracterizada pelo amor
entre pessoas, a qual tem em Deus-Trindade seu modelo absolutamente perfeito.

As “núpcias do Cordeiro” são um mistério


de amor e de união
que tem em Deus-Amor, a Santíssima Trindade,
sua origem primeira e seu modelo perfeito .

No “mistério de Cristo” ou “mistério de Deus” (Apc) pode haver uma realização inicial e
fundamental e uma realização final e consumada, bem como um processo de crescimento ou
amadurecimento até chegar àquela realização absolutamente perfeita que será o reflexo
perfeito, na medida do possível, do modelo divino trinitário. De fato, no livro do Apocalipse, a
consumação do “mistério de Deus” é apresentada não como o simples cessar de um movimento
rumo a uma meta (uma vez que se chegou a essa meta), mas como
o final conclusivo de um processo dinâmico,
cujo fim é ao mesmo tempo a realização do seu sentido
e das intencionalidades e virtualidades nele presentes desde o começo.

Este final conclusivo do processo – as “núpcias do Cordeiro”, a “união de tudo nos Céus e
na terra em Cristo” – é a perfeita realização do fim da missão conjunta do Filho e do Espírito
Santo, sendo a missão do Espírito Santo ordenada à do Filho.
De fato, se essas duas missões divinas são, de alguma maneira, uma “extensão” do mistério
de Deus Trindade às criaturas159, o fim delas não pode ser senão,

um certo reflexo do mistério de Deus no conjunto das criaturas,


mistério de amor e união, de autocomunicação integral e comunhão total160:
uma união trinitária das criaturas
como reflexo da união trinitária divina.

O centro desta união das criaturas é o Senhor Jesus Cristo, o Filho feito homem, com a
máxima presença do Espírito Santo n’Ele, sendo Ele mesmo o vínculo máximo de união entre
criatura e Deus (pela união hipostática da natureza humana com a natureza divina) e estando Ele
todo no Pai.

2. A realização inicial e fundamental

157
Cf. Ap 21,12.14: nas portas: os nomes das doze tribos de Israel (AT), e os nomes dos doze Apóstolos (NT),
bem como doze anjos.
158
Cf. também Ap 21,5, que descreve a nova situação – a consumação do mistério de Deus – com as palavras
de Deus: “Eis que Eu faço novas todas as coisas”. Portanto, tudo é renovado.
159
Veja o capítulo III: “As duas missões divinas como transição da vida intradivina à extradivina”.
160
Veja o capítulo II.
Síntese teológica / 95

3. A realização final e consumada

A imagem divina está presente em cada pessoa. Mas, ela resplandece na comunhão das
pessoas, à semelhança da unidade das pessoas divinas entre si (cf. Cat. 1702).
Síntese teológica / 96

ÍNDICE

I. A TEOLOGIA..............................................................................................................................1
1. A essência da teologia .............................................................1
2. A fé como resposta adequada à Revelação divina .............................................................2
II. O MISTÉRIO DE DEUS UNO E TRINO...............................................................................4
1. Mistério de amor: união e distinção .............................................................4
2. As Pessoas divinas como relações subsistentes .............................................................5
3. Comunhão total por autocomunicação integral .............................................................6
4. Distinção e união – As duas processões e as características próprias das Pessoas divinas.........6
5. Uma questão particular: Por que “D E U S P A I ” e não “Deusa Mãe”?..................................10
III. AS DUAS MISSÕES DIVINAS COMO TRANSIÇÃO DA VIDA INTRADIVINA À
EXTRADIVINA...........................................................................................................................11
IV. VISÃO DE CONJUNTO DAS DIVERSAS DISCIPLINAS DA CIÊNCIA TEOLÓGICA,
VISTAS SOB O ASPECTO UNIFICADOR DA AUTOCOMUNICAÇÃO DE DEUS ÀS
SUAS CRIATURAS PELA MISSÃO CONJUNTA DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO..14
V. O TRAJETO DA CRIAÇÃO: DE DEUS TRINDADE PARA DEUS TRINDADE.............15
1. O proceder das criaturas de Deus Trindade ...........................................................15
2. A volta das criaturas para Deus Trindade – o “estado de caminhada”......................................18
Uma reflexão geral sobre a liberdade............................................................................................19
3. O abuso da liberdade: a criatura afasta-se de Deus ...........................................................22
VI. A NOSSA RELAÇÃO (COMUNHÃO) PESSOAL COM CADA UMA DAS TRÊS
PESSOAS DIVINAS....................................................................................................................23
1. O conhecimento experimental e conceitual das Pessoas divinas..................................................23
1) O conhecimento experimental das Pessoas divinas.......................................................................23
2) O conhecimento conceitual das Pessoas divinas...........................................................................24
2. A revelação do mistério trinitário de Deus na realidade criada e na história humana..............24
1) As manifestações das Pessoas divinas na história.........................................................................24
2) A manifestação das Pessoas divinas nos efeitos “naturais”.........................................................25
3) O que é característico dos efeitos “sobrenaturais”.......................................................................26
4) Aprofundamento da reflexão sobre a manifestação de Deus Trindade na criação.......................27
3. A “apropriação” dos atributos como meio de conhecer conceitualmente as Pessoas divinas. .28
4. A nossa união com cada uma das três Pessoas divinas: as três “correntes” de graça...............31
1) A união com cada uma das Pessoas divinas..................................................................................31
2) As três “correntes de graça”.........................................................................................................35
3) Conclusão: as “correntes de graça” da vida, da palavra e do amor............................................35
4) Divisões da “graça”......................................................................................................................37
VII. JESUS CRISTO COMO CENTRO E ÁPICE ABSOLUTO DA AUTOCOMUNICAÇÃO
DE DEUS “PARA FORA”..........................................................................................................38
1. “JESUS” ...........................................................38
2. “CRISTO” ...........................................................39
3. União ontológica e união interpessoal (intencional) nos principais mistérios da fé...................41
Santíssima Trindade:..........................................................................................................................41
Jesus Cristo:.......................................................................................................................................42
Maria, Mãe de Deus Filho:................................................................................................................42
Santíssima Eucaristia:........................................................................................................................43
Síntese teológica / 97

VIII. JESUS CRISTO EM SUA “VOLTA” PARA O PAI: O “CAMINHO” DA VOLTA DE


TODAS AS CRIATURAS PARA DEUS.....................................................................................44
1. O FILHO encarnado: homem em “estado de caminhada”, solidário com a humanidade
pecadora ...........................................................44
2. O FILHO encarnado: o mediador perfeito entre Deus e os homens.......................................45
3. Jesus exerce a Sua tríplice mediação fazendo de toda a Sua vida uma “volta para o Pai”.......46
4. A “Páscoa” de Jesus: o caminho das criaturas de volta para Deus.............................................47
5. A volta de Jesus ao Pai como mistério de amor redentor, expiador............................................48
1) Mistério de redenção......................................................................................................................48
2) Libertação do amor........................................................................................................................49
3) O amor e x p i a d o r de Jesus, ápice de Seu amor.........................................................................50
a) O que é expiação?.......................................................................................................................................50
b) Por que a expiação é necessariamente amor s o f r e d o r ?...................................................................51
c) O sofrimento na expiação v i c á r i a .....................................................................................................52
d) Por que o amor sofredor é tão grande?.......................................................................................................53
e) Por que é exatamente o amor s o f r e d o r aquele amor que e x p i a ?................................................54
4) O amor misericordioso de Jesus Cristo e de Deus Pai..................................................................55
6. A relação da Páscoa de Jesus aos santos anjos ...........................................................55
IX. O MISTÉRIO DE MARIA, “A OBRA-PRIMA DA MISSÃO DO FILHO E DO
ESPÍRITO NA PLENITUDE DO TEMPO”..............................................................................56
1. Maria no mistério de Cristo e do Espírito Santo ...........................................................56
2. Maria no mistério da Igreja ...........................................................59
X. A REVELAÇÃO DIVINA NA HISTÓRIA E SUA TRANSMISSÃO NA E ATRAVÉS DA
IGREJA........................................................................................................................................61
1. A Revelação divina na história ...........................................................61
2. A transmissão da Revelação divina na e através da Igreja...........................................................63
XI. A IGREJA, SACRAMENTO DA MISSÃO CONJUNTA DO FILHO E DO ESPÍRITO
SANTO E REFLEXO DE DEUS TRINDADE NO MUNDO CRIADO..................................65
1. O sacramento da missão do Filho e do Espírito Santo ...........................................................65
2. A existência e edificação da Igreja pela autocomunicação de Jesus Cristo, no Espírito Santo,
aos homens ...........................................................66
1) O que Jesus comunica?..................................................................................................................67
2) O resultado da autocomunicação de Jesus................................................................................68
3) A autocomunicação perceptível de Jesus e a visibilidade da Igreja..............................................69
3. Os elementos constitutivos da unidade da Igreja, garantidos pelo ministério apostólico.........71
XII. A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO DE CRISTO NA IGREJA PEREGRINANTE.........73
1. O que é a “liturgia”? ...........................................................73
2. A liturgia como obra da Santíssima Trindade ...........................................................74
1) Deus Pai é a fonte e o fim da liturgia.........................................................................................75
2) A liturgia é obra de Cristo...........................................................................................................75
3) O Espírito Santo e a Igreja na liturgia.....................................................................................75
3. A Celebração eucarística à luz do mistério de Deus Trindade.....................................................76
XIII. A VIDA “EM CRISTO” E “NO ESPÍRITO” COMO CAMINHADA DO HOMEM
PARA A COMUNHÃO PERFEITA COM DEUS E EM DEUS, ATRAVÉS DA MISSÃO DO
FILHO E DO ESPÍRITO SANTO (TEOLOGIA MORAL E ESPIRITUALIDADE).............76
1. A posição da teologia moral e da espiritualidade no “mistério cristão” ou “mistério de Cristo”.
...........................................................76
2. A Pessoa de Jesus Cristo é, graças ao Espírito Santo, “a regra viva e interior” do agir cristão...
...........................................................78
Síntese teológica / 98

3. A vida “em Cristo” e “no Espírito”, realização da vocação do homem à comunhão com Deus
Trindade ................................79
1) A salvação de Deus: a lei e a graça...............................................................................................80
a) A lei moral:.................................................................................................................................................81
b) A graça e a justificação..............................................................................................................................81
2) O caminhar do homem rumo à perfeição da caridade..................................................................82
a) A liberdade do homem...............................................................................................................................82
b) O homem como sujeito moral: a moralidade dos atos humanos................................................................84
c) As “paixões”: forças para o bem ou para o mal.........................................................................................85
d) A consciência moral...................................................................................................................................85
e) As virtudes..................................................................................................................................................86
f) O pecado e a conversão pela misericórdia divina.......................................................................................89
g) A santidade na perfeição da caridade.........................................................................................................90
3) A comunidade humana...................................................................................................................91
a) A pessoa e a sociedade...............................................................................................................................91
b) A participação na vida social.....................................................................................................................92
c) A justiça social...........................................................................................................................................92
4) A vida moral: um culto espiritual...................................................................................................93
XIV. A CONSUMAÇÃO DE TODA A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO PELA PERFEITA
REALIZAÇÃO DO FIM DA MISSÃO CONJUNTA DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO
......................................................................................................................................................94
1. O fim da missão do Filho e do Espírito Santo ...........................................................94
2. A realização inicial e fundamental ...........................................................96
3. A realização final e consumada ...........................................................96
Síntese teológica / 99

Ainda uma exposição da teologia espiritual: sobre a oração?


Sobre as três “vias” da vida espiritual (purificação, iluminação, união)?

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