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DIOCESE DE MACAPÁ

Curso de Iniciação à Teologia e à Pastoral

TEOLOGIA FUNDAMENTAL
ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA.
BÍBLIA: EXILIO E PÓS-EXÍLIO
LITURGIA
O SÌMBOLO:

A luz da fé se aprofunda na revelação de Deus


através da escuta da sua Palavra.

CHAMA: A partir da cruz, do mistério Pascal,


brota e arde a luz da fé: Jesus Cristo..

ESPIRAL COM A SETA: movimento de


aprofundamento teológico em direção ao
centro da palavra que é o próprio Cristo
(encarnação, vida, cruz, ressurreição).

MAPA ESTADO DO AMAPÁ E ILHAS DO PARÁ: é o contexto da realidade e da extensão da


Diocese com seus desafios.
TEOLOGIA FUNDAMENTAL

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TEOLOGIA FUNDAMENTAL
I – INTRODUÇÃO
1 A terminologia
Para compreender o que é Teologia Fundamental é necessário partir da definição dos termos:
- Teologia: cf. curso de Introdução à Teologia
- Fundamental: porque tem a ver com os fundamentos da fé cristã.
Neste sentido, pode-se usar a metáfora da casa com várias salas e andares tendo, em baixo,
sólidas fundamentas:

Da mesma forma, a TF se põe no nível das fundamentas do inteiro edifício teológico. Portanto:
- a Revelação em Cristo, a Tradição e o Magistério oferecem o material para a construção e, nesse
sentido, são as fontes da Teologia.
- a Filosofia oferece a ferramenta necessária para poder trabalhar com o material, isto é, as fontes.
- a Teologia Fundamental, colocando-se nas fundamentas do edifício teológico, se encarrega de
articular a relação entre o material e a ferramenta, isto é, entre as fontes e a filosofia ou a ciência,
em última análise: entre a Fé e a Razão.
2 Desenvolvimento Histórico
Historicamente, a TF conheceu três etapas que caracterizaram o seu método em função do contexto
que encontrou:
- Na Época Antiga (II-III sec.): articulou-se em termos de apologética, como defesa da
racionalidade da fé.
- Na Idade Média: dedicou-se, sobretudo, à análise das provas da existência de Deus (preambula
fidei) e dos motivos de credibilidade.

- Na Época Moderna e Contemporânea: afirma-se como disciplina filosófico-teológica, que


aprofunda as relações: fé-razão; fé-ciência; fé-religião; cristianismo-religiões.
A renovação da TF deve-se, sobretudo, ao Concílio Vaticano II, que dedicou uma
Constituição Dogmática à divina Revelação: Dei Verbum, que “pode com justiça ser considerada a
magna carta dessa renovação a força motriz de uma evolução teológica que se estende até os nossos
dias” (FISICHELLA, 2000, p. 27). A grande contribuição do Vaticano II pode ser resumida na
retomada de quatro importantes eixos:

a) A centralidade da pessoa de Jesus Cristo


Antes do Vaticano II o enfoque maior era dado à Igreja (visão eclesiocêntrica). O Vaticano II
redescobre a centralidade da pessoa de Jesus Cristo, Revelador do Pai, totalmente entregue à missão
que lhe foi confiada.
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b) O primado da Palavra de Deus
Por muitos séculos, por causa da proibição do Concilio de Trento de traduzir a Sagrada Escritura nas
diferentes línguas, a maioria do povo não teve livre acesso aos textos sagrados e, portanto, ficou
afastada das fontes da fé. Com o Vaticano II, a Escritura “volta do grande exilio” (E. Bianchi) para o
centro da vida da Igreja e da reflexão teológica.
c) A dimensão de serviço da Igreja
De uma concepção triunfalista da Igreja, com o Vaticano II, passa-se a uma visão de Igreja necessitada
de contínua conversão para realizar a missão de ser mediadora da Revelação, pondo-se como “como
que um sinal e instrumento da intima união com Deus e de unidade de todo o gênero humano” (LG1).
d) O destinatário da Revelação
Durante muito tempo, a TF, preocupada mais com a defesa dos princípios e da doutrina diante do
racionalismo, tinha esquecido o destinatário da Revelação. O Vaticano II focaliza o sujeito a quem ela
se endereça e o objetivo: a salvação da humanidade. É significativo o prólogo da Dei Verbum: “Para
que, mediante, o anúncio da salvação, o mundo inteiro creia; crendo, espere; e esperando, ame”.

3 O objeto da Teologia Fundamental


A TF diferencia-se das outras disciplinas teológicas porque não apenas aprofunda o que
nós cremos, mas, também o “porque nós o cremos”. Portanto, objeto de estudo da TF é a Revelação
e a sua credibilidade. Tal credibilidade é muito mais do que defesa do conteúdo da Revelação
(apologética) diante de quem não crê ou pertence a uma religião não-cristã. A credibilidade é uma
exigência que o próprio sujeito que crê busca, apelando-se ao seu intelecto e a encontra na própria
Revelação. De fato, sua credibilidade não é externa, mas interna e dada com o próprio evento: “a
própria pessoa de Jesus Cristo que não necessita de nenhum outro testemunho além do testemunho do
Pai (Jo 5,31-32; 8,13-18)” (FISICHELLA, 2000, p. 62). Cabe à TF, apresentar o Mistério cristão de
forma razoável e inteligível.
Nesse trabalho, a TF não pode prescindir de duas realidades: a Fé e a Igreja. Com efeito, sem
a fé a Revelação não pode ser acolhida.
Na revelação, dirige-se Deus ao homem, interpela-o e comunica-lhe a Boa-nova da salvação.
Porém é somente na fé que existe verdadeiro e pleno encontro entre Deus e o homem Só assim a palavra
do Deus vivo encontra no homem acolhida e reconhecimento. A fé é o primeiro e livre passo do homem
em direção a Deus. Pela sua palavra Deus convida o homem a um relacionamento de amizade; pela fé
o homem responde ao apelo de Deus. (LATOURELLE, 1972, p. 432)
Quanto à Igreja, ela é a comunidade daqueles que pela fé acolhem a Palavra de Deus e a
transmitem na história, por meio do testemunho e do anúncio. Concretamente,
A palavra de Deus convoca e gera a Igreja. A Igreja, por sua vez, ‘presencializa’ a palavra
para os homens de todos os tempos. Pela Igreja o Cristo interpela os homens em cada geração, dá-lhes
a conhecer seu desígnio de salvação e os convida insistentemente à conversão (Mc 1,14-15). (...) A
Igreja torna a revelação sempre presente pela sua pregação; propõe-na e interpreta autenticamente para
cada geração. (LATOURELLE, 1972, p. 528-538)
Compreende-se, enfim, que a TF depara-se com as seguintes realidades:
- A Revelação;
- A fé, como condição de quem acolhe a Revelação de Deus;
- A credibilidade da Revelação;
- A Igreja, como responsável pela transmissão da Revelação.

4 O Método da Teologia Fundamental


Do ponto de vista metodológico, no estudo da TF é possível percorrer dois caminhos
alternativos e complementares ao mesmo tempo:

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1) Perspectiva teologal (descendente): parte da Revelação e se dirige ao ser humano. Seguindo essa
perspectiva o estudo é realizado com base na lógica interna da Revelação buscando sua relação
coma Igreja e seu Magistério.
2) Perspectiva antropológica (ascendente): parte do ser humano e se dirige a Deus. Nessa
perspectiva oferece-se uma leitura filosófica e existencial da fé, da possibilidade de uma revelação
sobrenatural, da sua inteligibilidade, para depois chegar a abordar o conteúdo da Revelação.
5 Tarefas da Teologia Fundamental
No contexto contemporâneo a TF possui, entre outras, três tarefas específicas a serem
desempenhadas:
1) Dar razão do ato de fé.
Cabe à TF oferecer uma reflexão teológica que saiba motivar a necessidade do crer, como um ato
pessoal de resposta à Revelação e um ato plenamente humano que não sacrifica o intelecto. Tal tarefa
torna-se urgente num contexto no qual, por um lado, cresce o fenômeno de novos grupos religiosos
(seitas) que fazem um uso fundamentalista de expressões cristãs, oferecem certezas absolutas onde a
fé exige o esforço racional e anulam a liberdade humana. Por outro lado, o pluralismo religioso, com a
presença de religiões não cristãs, requer a capacidade de dialogar sem relativizar a própria fé.
2) Provocar o sentido da existência e do viver na sociedade.
O contexto atual, fortemente marcado pela “globalização da indiferença”, gera marginalização,
injustiça, violência. O crescimento do individualismo exacerbante comprova a perda do sentido da
vida. A TF, aprofundando a Revelação cristã, abre novos horizontes. Com efeito, a partir da Revelação
gratuita do amor trinitário de Deus é possível descobrir um sentido novo da existência que vai na
perspectiva do ser-para-o-outro, com um amor que supera o limite da morte.
3) Fundamentar a ação pastoral.
A separação entre teologia e ação pastoral é negativa. De fato, uma reflexão teológica sem um olhar
pastoral não estaria enraizada na historicidade da fé. Da mesma forma, uma ação pastoral sem uma
reflexão teológica não prestaria um bom serviço à fé, porque preocupada, apenas, com a situação
imediata. A TF, com seu aprofundamento, oferece fundamentos sólidos ao agir pastoral, que será
realizado não à luz do provisório e imediato, mas do refletido.
6 A Guisa de Conclusão
À luz dessa breve introdução, compreende-se que o estudo da TF é de suma relevância e
atualidade. Como disciplina teológica que investiga o evento da Revelação e a sua credibilidade, ela
exige, por parte de quem a estuda, capacidade de questionar a própria fé e de deixar-se questionar por
ela. Afinal, a TF,
desafiando-nos a encontrar as razões para mostrar a credibilidade do crer, evidencia
justamente que nada, na fé ou na vida, pode ser assumido passivamente ou tido como ponto
pacífico. A fé será sempre um desafio porque obriga a pensar e a viver; e o que faz a teologia
fundamental é ser um eco inteligente desse desafio para que seja superado o não-crer e o crer
seja motivado. (FISICHELLA, 2000, p. 151).

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A teologia fundamental, pelo seu próprio caráter de disciplina que tem por função dar
razão da fé (cf. 1 Pd 3, 15), deverá procurar justificar e explicitar a relação entre a fé e a
reflexão filosófica. Já o Concílio Vaticano I, reafirmando o ensinamento paulino (cf. Rm 1,
19-20), chamara a atenção para o fato de existirem verdades que se podem conhecer de
modo natural e, consequentemente, filosófico. O seu conhecimento constitui um
pressuposto necessário para acolher a revelação de Deus. Quando a teologia fundamental
estuda a Revelação e a sua credibilidade com o relativo ato de fé, deverá mostrar como
emergem, à luz do conhecimento pela fé, algumas verdades que a razão, autonomamente,
já encontra ao longo do seu caminho de pesquisa. A essas verdades, a Revelação confere-
lhes plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do mistério revelado, onde
encontram o seu fim último. Basta pensar, por exemplo, ao conhecimento natural de Deus,
à possibilidade de distinguir a revelação divina de outros fenômenos, ou ao conhecimento
da sua credibilidade, à capacidade que tem a linguagem humana de falar, de modo
significativo e verdadeiro, mesmo do que ultrapassa a experiência humana. Por todas estas
verdades, a mente é levada a reconhecer a existência duma via realmente propedêutica à
fé, que pode desembocar no acolhimento da Revelação, sem faltar minimamente aos seus
próprios princípios e autonomia. Da mesma forma, a teologia fundamental deverá
manifestar a compatibilidade intrínseca entre a fé e a sua exigência essencial de se
explicitar através de uma razão capaz de dar com plena liberdade o seu
consentimento. Assim, a fé saberá « mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca
sincera da verdade. Deste modo a fé, dom de Deus, apesar de não se basear na razão,
decerto não pode existir sem ela; ao mesmo tempo, surge a necessidade de que a razão
se fortifique na fé, para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não poderia chegar».
(Fides Et Ratio, n. 67)
II – A REVELAÇÃO CRISTÃ
Introdução
A palavra “revelação” vem do grego: apokalýpsis e do latim: revelatio. Os termos contêm um
prefixo (apó – re) que pode indicar “tirar o véu – colocar de novo o véu”. Isto quer dizer que o Mistério
de Deus, embora revelado, não deixa de ser mistério. O termo aparece com a Escolástica no sec. XIV
e torna-se central, sobretudo com o Iluminismo.
Geralmente, se usa o termo “revelação” nos seguintes casos:
a) Para designar experiências de conhecimentos extraordinários de cunho religioso;
b) Para falar daquelas experiências bíblicas de encontro com Deus, com o Espirito, com a Palavra de
Deus, feitas de forma direta ou indireta;
c) Na história da Igreja se usa o termo revelação para definir experiências extraordinárias tipo visões,
aparições, audições. Neste caso, se fala de “revelações privadas”.
d) Fala-se de “revelação” para falar de experiência espiritual originada do contato frequente com a
Sagrada Escritura.
Quando falamos de Revelação cristã estamos designando um dos fatos teológicos mais
importantes: Deus é conhecido por Deus. O específico do cristianismo é que a ação de revelação de
Deus acontece por meio da encarnação do mesmo em Jesus de Nazaré, em vista da criação de uma
comunhão de vida com Deus.
1 OS NÍVEIS DA REVELAÇÃO DE DEUS
A Revelação divina conhece dois níveis: o nível cósmico e o nível histórico. Nesse sentido, se
fala tanto de uma revelação divina cósmica quanto de uma revelação divina histórica. A saber:

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a) Revelação cósmica.
Deus se revela por meio da criação. Qualquer ser humano, de qualquer época e lugar pode ter acesso a
tal revelação, simplesmente pela experiência sensível e, unicamente, pelo uso da razão. A partir desse
nível de revelação gera-se:
-Um senso religioso no ser humano, que faz perceber que há um Criador do universo e há algo depois
da morte. Este mesmo senso religioso o induz a rezar e a tomar consciência da disparidade que há
entre a dimensão de finitude humana e a busca de felicidade.
- O culto e a religião. A partir do senso religioso organiza-se um culto que aos poucos se codifica
numa religião.
- A abertura e o desejo de uma revelação histórica de Deus que já se revela na criação. É por isso
que as religiões tendem a identificar alguns textos como sagrados, no sentido de textos revelados.
Observação:
Tanto o Vat. I quanto o Vat. II não atribuem ao cosmo a categoria de “revelação”. Preferem falar de
manifestação ou atestação da existência do Criador. Contudo, no magistério de João Paulo II, sobretudo
com a encíclica “Fides et Ratio”, se fala do mundo criado também em termos de revelação. Do ponto
de vista teológico, não há nada que impeça que a criação seja considerada parte da economia da
Revelação. Com efeito:
- A criação é efeito da Palavra de Deus (Gn1,3.6.9; Sal 32,6.9)
- A Sagrada Escritura contempla a possibilidade de conhecer a existência de Deus por meio das coisas
criadas (Sb 13,1-9; Rm 1,18-20; At 14,15-17; At 17,26-27)
- O NT apresenta Jesus Cristo, plenitude da Revelação, como o Logos mediador do plano criativo de
Deus e como sentido da mesma criação (Jo 1,1-2; Cl 1,1-18; 1Cor 8,6; Hb 1,2-3).
b) Revelação histórica.
Segundo a concepção judaico-cristã, Deus se revela na história, no sentido que intervém na história da
humanidade em vista da salvação. Além disso, a Revelação é histórica porque, de fato, progrediu ao
longo do tempo: inicia na origem do mundo, se desenvolve ao longo de todo o AT e se completa em
Cristo. Em síntese: a Revelação de Deus é um acontecimento/evento que chega ao seu cume e plenitude
no evento Cristo, verbo encarnado morto e ressuscitado. Simplesmente como aprofundamento da
Revelação plena e definitiva em Cristo, a auto revelação de Deus continua no presente por meio da
Liturgia (SC 7), a devota leitura das Escrituras (DV 25), a atividade missionária (AG 8), os sinais dos
tempos (GS 4), a vida dos santos (LG 50)
ETAPAS DA REVELAÇÃO HISTÓRICA:
 1ª Etapa: a Criação
Deus cria o Universo pelo Verbo e conserva-o. A história da salvação começa com a criação do ser
humano. Portanto, a salvação já brilhava antes do pecado, pelo fato do ser humano ter sido objeto da
auto manifestação de Deus, que lhe abre o caminho da salvação (Ef 1,3-6)
 2ª Etapa: do pecado original até Abraão
Após a queda Deus promete a salvação. O pecado do ser humano não lhe fez perder a vocação à visão
de Deus. Deus continua propondo a sua graça e expressando sua vontade salvífica universal.
 3ª Etapa: de Abraão (Moisés, Profetas, etc..) ao Evangelho.
Deus escolhe seu povo, não para privilegiá-lo com exclusividade, mas para lhe confiar uma missão.
 4ª Etapa: a Revelação se completa em Jesus Cristo
“... Falou-nos pelo Filho” (Hb 1,1s). Primeiro falaram os servos e agora é o próprio Filho que proclama
a Boa-Nova, doando-se a nós, pois ele mesmo é a Boa-Nova. O conteúdo da Revelação a respeito de
Deus e da salvação do ser humano se manifesta a nós em Cristo, que é ao mesmo tempo mediador e
plenitude de toda a Revelação (Mt 11,27; Jo 1,14.17; 14,6; 17,1-3; 2Cor 3,6; 7,6; Ef 1,3-14).

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2 A REVELAÇÃO DA DEI VERBUM
A Constituição Dogmática: Dei Verbum (DV) do Vaticano II, levando em conta a evolução histórica
da Revelação, opera uma reviravolta na compreensão da Revelação: de “Instrução divina” (Vat. I)
dirigida ao ser humano que passivamente a acolhe, para uma compreensão de Revelação como
comunicação entre Deus e o ser humano numa perspectiva dialogal, dinâmica e relacional. A virada
teológica é já apresentada, de forma sintética, no Proêmio do documento conciliar: os Padres
Conciliares se colocaram numa atitude de escuta da Palavra de Deus e de abertura para receber a
mensagem desta Palavra. E quem se dispõe à escuta se dispõe ao diálogo, que neste caso é iniciado
pelo próprio Deus que se manifesta. A citação bíblica de 1Jo 1,2-3 dá a chave de leitura do inteiro
documento, isto é, a auto comunicação de Deus.
(Obs.: A exegese dos parágrafos da DV que seguem será feita durante a aula presencial)

Proemio – DV 1
O sagrado Concilio, ouvindo religiosamente a Palavra de Deus proclamando-a com
confiança, faz suas as palavras de S. João: «anunciamos-vos a vida eterna, que estava junto
do Pai e nos apareceu: anunciamos-vos o que vimos e ouvimos, para que também vós vivais
em comunhão conosco, e a nossa comunhão seja com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo"
(1 Jo 1, 2-3). Por isso, segundo os Concílios Tridentino e Vaticano I, entende propor a
genuína doutrina sobre a Revelação divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro,
ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando espere, e esperando ame.

Dei Verbum n. 2:
Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer
o mistério da sua vontade (cf. Ef 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo,
Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da
natureza divina (cf. Ef 2,18; 2 Pd. 1,4). Em virtude desta Revelação, Deus invisível (cf.
Cl 1,15; 1Tm. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cf. Ex33,
11; Jo 15,14-15) e convive com eles (cf. Bar3,38), para os convidar e admitir à
comunhão com Ele. Esta «economia» da revelação realiza-se por meio de ações e
palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por
Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades
significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem
o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda, que essa Revelação manifesta
tanto a respeito deDeus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se a nós
em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a Revelação.

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Dei Verbum n. 3:
Deus, criando e conservando todas as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1,3), oferece aos homens
um testemunho perene de Si mesmo na criação (cf.Rm. 1, 1-20) e, além disso, decidindo
abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a Si mesmo, desde o princípio,
aos nossos primeiros pais. Depois da sua queda, com a promessa de redenção, deu-lhes
a esperança da salvação (cf. Gn. 3,15), e cuidou continuamente do gênero humano, para
dar a vida eterna a todos aqueles que, perseverando na prática das boas obras, procuram
a salvação (cfr. Rm 2,6-7). No devido tempo chamou Abraão, para fazer dele pai dum
grande povo (cf. Gn 12,2), povo que, depois dos patriarcas, ele instruiu, por meio de
Moisés e dos profetas, para que o reconhecessem como único Deus vivo e verdadeiro,
pai providente e juiz justo, e para que esperassem o Salvador prometido; assim preparou
Deus através dos tempos o caminho ao Evangelho.

Dei Verbum n. 4:

Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus
nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu Filho (Heb. 1, 1-2). Com efeito,
enviou o Seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar
entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cfr. Jo. 1, 1-18). Jesus Cristo,
Verbo feito carne, enviado «como homem para os homens», «fala, portanto, as
palavras de Deus» (Jo. 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou
realizar (cfr. Jo. 5,36; 17,4). Por isso, Ele, vendo o qual se vê o Pai (cfr. Jo. 14,9), com
toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e
milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do
Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a
revelação, a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da
morte e para nos ressuscitar para a vida eterna. Portanto, a economia cristã, como
nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há de esperar nenhuma outra
revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1
Tm 6,14; Tt. 2,13).

Observações:
a) A noção de Revelação na linha de Trento e do Vaticano I, era de cunho metafisico: apresentava
Deus como “substância espiritual, singular, simples e imutável”. Definição abstrata, pouco histórica:
“aprouve à sua misericórdia e bondade revelar-se à humanidade a si mesmo e os decretos da sua
vontade, por outra via, esta sobrenatural”.
b) O Vat. II, com a Dei Verbum, devolve a Revelação ao contexto dialogal entre Deus e o ser humano,
tão caro à Escritura.
c) A Revelação é apresentada como auto comunicação de Deus.
d) A Revelação é fruto da própria vontade, livre e gratuita, de Deus. Tal vontade expressa o que Ele é:
Amor, Trindade, Relação, Proximidade, etc...

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e) A Igreja, pelo Vaticano II, chegou a essa concepção da Revelação graças ao movimento de volta às
fontes.
f) A noção de Revelação da Dei Verbum é Cristo Centrica.

3 TRAÇOS PECULIARES DA REVELAÇÃO HISTÓRICA


1) A Revelação é interpessoal.
Antes de ser manifestação de algo, é comunicação de Alguém a alguém. Diferentemente da revelação
cósmica, pela qual o ser humano deduz que Deus é princípio e fim das coisas criadas, na Revelação
histórica Deus estabelece relações pessoais com o ser humano, aliando-se com ele como o Senhor com
seu servo; como Pai com seu filho; como um amigo com seu amigo; como o esposo com sua esposa.
A Revelação é palavra de Deus, é diálogo: é Deus mesmo que entra em comunicação conosco, como
um “eu” com um “tu”.
2) A Revelação acontece exclusivamente por iniciativa divina.
A Revelação é graça: eclode do amor e se projeta a realizar uma obra de amor. A iniciativa é sempre
de Deus, que livre e gratuitamente se comunica. Com efeito, não é o ser humano que descobre a Deus,
mas é Deus que se manifesta quando quer e a quem ele quer: por meio da natureza; através da existência
humana; pela história; pelas pessoas escolhidas (profetas, sacerdotes, sábios, pastores, reis, etc.); pelas
teofanias; pelos sonhos; pelas visões; pelos arrebatamentos; por meio de diferentes formas de
comunicação: descrições, autobiografias, oráculos, exortações, hinos, reflexões sapienciais. O ponto
mais alto dessa iniciativa é a Encarnação do Verbo de Deus: o Filho que, pessoalmente, vem nos revelar
o Pai.
3) A Revelação é Trinitária
A auto comunicação de Deus é sempre criação (→ Pai), salvação (→ Filho), santificação (→ Espírito
Santo) do ser humano na história e no mundo.
4) A Revelação privilegia a Palavra.
Deus revela e se revela pela sua palavra: interpela o ser humano no maior respeito da liberdade humana.
É, justamente, diante da palavra de Javé que o ser humano deve tomar decisão. A palavra exige fé e
execução. Nesse sentido, pela revelação bíblica, escutar é mais importante do que ver. Portanto, o
pecado consistirá em recusar-se a escutar, ignorar os apelos do Senhor, endurecendo o coração (Jr 7,13;
Os 9,17). Por outro lado, o objetivo da revelação é a salvação do ser humano e sua comunhão com
Deus (Is 55,2)
5) A Revelação é toda orientada para a esperança da salvação em Cristo.
Desde a promessa feita a Abraão, na revelação bíblica há uma tensão para sua realização. Para o profeta
o presente é apenas uma revelação parcial do futuro anunciado, esperado, prometido, mas ainda oculto.
Ele deixa sempre lugar para esperança de uma realização mais decisiva. Com efeito, a concepção
bíblica do tempo não é cíclica e, sim, linear: algo novo acontece na história sob a direção de Deus. A
história está a caminho da plenitude dos tempos, que será a realização da salvação de Deus em Cristo
e pelo Cristo.

JESUS CRISTO: PLENITUDE DA REVELAÇÃO.


A plenitude da Revelação se dá em Jesus Cristo. Nele, a Revelação de Deus encontra a sua plenitude
tanto no modo de realizar-se quanto no conteúdo que transmite. Com efeito, Jesus Cristo é a palavra
definitiva que Deus dirige à humanidade, por ser ele a Palavra feita carne, a partir da qual é possível
compreender o sentido de toda e qualquer palavra pronunciada por Deus. Neste sentido, a Palavra de
Deus, encontra em Cristo toda a sua plenitude conceitual e ao mesmo tempo toda a sua plenitude
hermenêutica. Segundo a visão joanina:
Porque é, em pessoa, a Palavra de Deus, o Filho do Pai, o Cristo é ao mesmo tempo o
Deus que revela e o Deus revelado. Sua doutrina é de Deus, mas não como a do profeta
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que recebe a revelação e a anuncia. Em nosso caso a revelação parte do Cristo ao mesmo
tempo que do Pai. (...) O Cristo é, pois, ao mesmo tempo, o Deus que fala e o Deus do
qual se fala, quem revela o mistério e é o próprio mistério. Não apenas comunica a
palavra e a verdade: ele é a Palavra e a Verdade (Jo 1,1; 14,5-6), é em pessoa o que ele
ensina e proclama. Por isso são João pode dizer da doutrina de Cristo o mesmo que
afirma da sua pessoa. Devemos crer no Cristo (Jo1,12; 10,26), receber o Cristo (Jo 5,43),
vir ao Cristo (Jo 15,4.7). Da mesma forma devemos crer em sua palavra (Jo 5,24),
receber suas palavras (Jo 12,48; 17,8), aceitar o seu testemunho (Jo 3,11), permanecer
em sua palavra (Jo 8,31.51). (LATOURELLE, 1972, p. 82-83)
Em Jesus Cristo realiza-se o paradoxo do “universal concreto” (expressão de Nicolau de Cusa), isto
é, uma salvação de caráter universal se cumpre na concretude e visibilidade de um evento histórico
determinado: “Como universal concreto, Cristo é o lugar no qual se articulam misteriosamente a
diferença entre Deus velado e Deus revelado, entre a revelação como sentido universal e como evento
histórico particular, entre Deus e o homem” (GEFFRÉ, 1989, p. 159). Ele é “universal” porque é Deus
eterno e infinito, é “concreto” porque homem histórico. Em suma: o mistério de Deus na sua dimensão
inefável e universal se concretiza, misteriosamente, na história e no tempo, por meio da pessoa de Jesus
Cristo. A tal propósito, o Prólogo do evangelho segundo João é a melhor introdução à centralidade do
Verbo Encarnado na economia da palavra divina: Jo 1,1-18.
Portanto, a Revelação divina alcança em Cristo sua plenitude. De fato:
a) A criação subsiste em Cristo e tudo foi criado em vista de Cristo. A revelação cósmica, portanto,
pode ser considerada preparação à Encarnação do Verbo de Deus, isto é, preparação a Cristo.
b) A humanidade de Cristo é a plenitude da criação: a realidade criada mais perfeita e mais reveladora
da grandeza de Deus.
c) Com Cristo inicia uma nova criação que ele mesmo conduz, pela sua ressureição, ao cumprimento
escatológico.
d) No mistério da Encarnação, a criação, no seu desenvolvimento histórico, alcançou, realmente, a
plenitude dos tempos. A partir de Cristo é possível compreender o sentido da história: interpretar o seu
passado e desvendar o seu futuro.

Conclusão
Em síntese, a Revelação judaico-cristã apresenta as seguintes características que a tornam única dentro
do panorama das revelações religiosas:
1) A Revelação é palavra – evento – história. Cumpre-se na história e por meio da história. A
experiência religiosa de Israel se diferencia das demais justamente porque os fenômenos reveladores
do divino se distanciam sempre mais da sacralidade do cosmo e se tornam, sobretudo, palavra e
história.
2) Por ser histórica possui um caráter dinâmico: vai da promessa ao cumprimento, da espera ao
encontro, do anúncio profético ao evento.
3) Deus ao revelar a si mesmo revela também o sentido do ser humano e do mundo. A Revelação é,
antes de tudo, a auto comunicação de Deus mesmo. Deus revela a sua vida íntima até manifestar seu
mistério trinitário. O objetivo da Revelação não é explicar os segredos do mundo e do ser humano, mas
explicar que é Deus. Consequentemente, à luz da Palavra de Deus, reinterpretar verdade sobre o mundo
e a humanidade.
4) A Revelação alcança sua plenitude no mistério da Encarnação, porque se expressa de forma plena
na pessoa do Verbo feito carne. A palavra divina oferece-se com palavras humanas. Sua pessoa é
conteúdo e forma da Revelação: Cristo é, ao mesmo tempo, mistério que revela e o mistério revelado.
Ele não só anuncia e revela a salvação, mas ele mesmo é a salvação.

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III – JESUS DE NAZARÉ

Introdução
Até o século XVIII não houve interesse pela vida histórica de Jesus de Nazaré. Todos
concordavam que o relatado nos evangelhos condizia com a história de Jesus. A Época Moderna
inaugurou a “Pesquisa sobre a vida de Jesus”. Um dos maiores expoentes desse movimento é Reimarus
(1694-1768), segundo o qual a compreensão histórica dos ensinamentos de Jesus exigia deixar para
trás quanto foi aprendido no catecismo acerca da Filiação divina, da Trindade e de conceitos
dogmáticos semelhantes, para mergulhar num mundo mental totalmente judaico. De certa forma, era
necessário tomar consciência que havia uma diferença entre o Jesus da história e o Cristo do Querigma.
A partir daí os vários pesquisadores começaram a aplicar sobre o rosto de Jesus os traços que mais lhes
agradavam, conforme a defesa de suas ideias. :
A partir dos anos 1950, a situação alterou-se. A cisão entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da
fé” tornou-se cada vez mais profunda, afastando-se ambos rapidamente cada vez mais um do
outro. Mas o que é que pode significar a fé em Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo, se o homem
Jesus foi totalmente diferente daquele que os evangelistas representam e daquele que a Igreja,
partindo dos Evangelhos anuncia? (RATZINGER, 2007, p. 9).
Atualmente, na pesquisa teológica se afirma que entre Jesus de Nazaré e o Cristo da fé há
continuidade (histórico-teológica) na descontinuidade: a Páscoa deu novos fundamentos à fé dos
discípulos mas não a criou do princípio.
Para o nosso estudo, considerar a vida concreta de Jesus de Nazaré como revelação do ser de
Deus, nos transmite uma noção de revelação mais concreta, mais próxima da experiência humana.
1 A QUESTÃO DO “JESUS HISTÓRICO”
A TF não se ocupa, principalmente do fenômeno religioso em geral, mas aprofunda a
compreensão cristã da relação com Deus. Ora, a pretensão do cristianismo é de ser uma “religião
histórica”. Tal historicidade do cristianismo se baseia sobre a historicidade da pessoa de Jesus de
Nazaré, que é a essência especifica do cristianismo. Com efeito, caso Jesus jamais tenha existido ou as
narrações sobre ele se afastem da realidade, a fé cristã não passaria de uma mera reflexão sobre
conceitos abstratos ou até mitos. Nesse caso, a revelação cristã perderia seu valor histórico.
É de suma importância, portanto, abordar a questão do “Jesus histórico”. Trata-se de buscar
dados, elementos, acontecimentos da vida e morte de Jesus que sejam historicamente certos. Acontece,
porém, que encontramos dois empecilhos: não há, quase, nenhuma fonte que não remeta aos seus
discípulos e estas fontes, não tem apenas interesse histórico. A pesquisa pode atingir a dois grupos de
fontes:
2 Fontes não cristãs.
Do ponto de vista das fontes não cristãs ou extra bíblicas, os elementos são poucos. De fato, as
fontes históricas contemporâneas a Jesus, não falam desta personagem que viveu na periferia do
Império e foi condenado à morte porque considerado um rebelde. Será por causa do cristianismo que
os autores da época serão obrigados a falar de Jesus de Nazaré. Entres as fontes não cristãs recordamos:

- Suetónio: historiador romano. Destaca que entre 41 e 54 d.C. o Imperador Cláudio expulsou os judeus
de Roma por causa das desordens criadas por instigação de Cresto (Crestus).
- Tácito (55-120 d.C.): historiador romano. Relatando o incêndio de Roma (64 d.C.) informa que Nero
acusou os cristãos, cujo nome deriva de Cristo, condenado ao suplício, pelo procurador Pilatos,
durante o reinado de Tibério .
- Flávio Josefo (37-100 d.C.): historiador judeu. Cita duas vezes Jesus. A primeira vez falando de
Tiago, irmão de Jesus, dito Cristo. A segunda vez falando de Jesus como mestre sábio que faz obras

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extraordinárias até o ponto de atrair muitos judeus mesmo depois de sua morte. Segundo alguns
críticos, esta segunda referência foi manipulada pelos cristãos.
3 As fontes cristãs
As fontes cristãs se dividem em:
- canônicas: os livros bíblicos.
- extra canônicas: numerosos escritos que não entraram no cânon bíblico: escritos apócrifos,
escritos dos Padres Apostólicos e fragmentos espalhados.
As fontes cristãs seguem, fundamentalmente, três tendências:
- Tendência sinótica: é o caso de Mc, Mt e Lc. Os estudos atestam que antes da redação dos
evangelhos circulava quatro tipos de material:
a) material especial de Mateus;
b) material especial de Lucas;
c) o evangelho segundo Marcos,
d) a Fonte “Q”
O redator do evangelho segundo Mateus, deve ter utilizado material próprio, o evangelho
segundo Marcos e a fonte “Q”. Mesma coisa deve ter feito o autor do evangelho segundo Lucas: deve
ter utilizado material próprio, o evangelho segundo Marcos e a fonte “Q”. Trata-se de quatro fontes
distintas, apesar de concordarem sobre muitos detalhes. Nesse sentido, pode-se dizer que é possível
reconstruir um pouco da figura histórica de Jesus, justamente, a partir dos sinóticos.
- Tendência joanina: encontra no evangelho de João sua mais completa expressão.
- Tendência sinótica + joanina: une material sinótico e joanino.
Sabe-se, perfeitamente, que os evangelhos são testemunhos de fé e não biografias. Sua
finalidade é suscitar a fé em Jesus Cristo e não oferecer relatos históricos. Além disso, nenhum dos
autores foi testemunha ocular: todos trabalham com material precedente reelaborando-o a partir da
necessidade da comunidade à qual se endereçam. Isso seria já suficiente para afirmar que, de certa
forma, é impossível escrever uma “vida de Jesus”, no sentido de uma biografia completa. Todavia, é
possível um estudo que aprofunde a relação que intercorre entre o texto que possuímos e o evento
histórico. Segue-se o seguinte processo:
a) Estudo da Redação: estuda a contribuição de cada evangelista que selecionam o material
(fontes escritas e orais); organizam o material conforme um projeto orgânico; respondem às exigências
da comunidade destinatária. Os evangelistas são fieis às fontes sem perder sua liberdade criativa que
permite de realizar as intenções teológicas.
b) Estudo das Formas: estuda a forma literária mais antiga e a evolução das várias formas até
chegar à redação escrita. Do ponto de vista literário se individuam as várias formas literárias. Do ponto
de vista histórico se individua o ambiente e o contexto histórico que deu vida àquelas formas.
c) Aplicação dos critérios de historicidade segundo a seguinte distinção:
 Critérios fundamentais:
- atestação múltipla: é autêntico um dato evangélico atestado por todas as fontes ou pela maioria
delas, pelos evangelhos e pelos demais escritos do NT.
- descontinuidade: é autentico um dato evangélico que seja irreduzível a concepções judaicas ou
à comunidade primitiva.
- conformidade: integra o critério anterior, porque vê como Jesus, mesmo unindo-se ao seu
tempo, toma distância.
- explicação necessária: pode-se considerar autêntico aquele dado que ilumina e dá coerência a
um conjunto de dados que, caso contrário, ficariam inexplicáveis.

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Aplicando estes critérios é possível considerar como historicamente certos os seguintes dados:
- Jesus se apresenta como Nazareno.
- Jesus foi batizado por João Batista.
- Jesus anunciava o Reino de Deus (atestação múltipla e descontinuidade).
- Jesus chamou os doze discípulos (atestação múltipla).
- Jesus foi um taumaturgo (atestação múltipla).
- A proximidade com Deus manifestada por Jesus (descontinuidade).
- Jesus criticou o Templo e os sacerdotes (explicação necessária). Foi este o motivo de sua condenação
à morte, desejada pelos sumos sacerdotes.
- A ceia de adeus com os discípulos (atestação múltipla).
- Jesus foi crucificado (atestação múltipla)
- Jesus é testemunhado como vencedor da morte.
- Jesus dá início a uma história coletiva.
 Critério derivado: é conhecido, também, como “estilo de Jesus”. Permite de reconhecer
verdadeiros aqueles elementos que se harmonizam com a sua personalidade.
 Critérios mistos:
- inteligibilidade interna: quando um dado é perfeitamente inserido no seu contexto e perfeitamente
coerente na sua estrutura.
- interpretação diferente e acordo de fundo: aprofunda o momento redacional dos evangelistas.
4 OS TÍTULOS CRISTOLÓGICOS
Objetivo desta análise é ver se os vários títulos atribuídos a Jesus correspondem à sua
autoconsciência ou são mera criação da comunidade cristã, que tematiza a experiência de Jesus
Cristo. É necessário saber:
1) A multiplicidade de títulos é dada pelo fato de Jesus ser o novo que não se encaixa em nenhuma
categoria existente;
2) Cada título expressa um determinado contexto de fé e serve para a Igreja anunciar a sua fé no
Ressuscitado às diversas culturas: “Messias” (judeus); “Kyrios” (pagãos); “Logos” (gregos); Salvador
(religiões mistéricas).
3) Alguns títulos expressam a consciência popular dos contemporâneos de Jesus (“Profeta”, “Filho
de Davi”); outros remontam ao próprio Jesus (“Filho do Homem”) e outros, ainda, são dados pela
comunidade pós-pascal (“Senhor”, “Sabedoria”, “Messias”, “Filho de Deus”).
- Filho do Homem:
Este título, por um lado, traz em si as conotações de cunho messiânico-escatológico de Dn7: poder,
glória, julgamento escatológico. Por outro lado, remete à figura do Servo de Javé com suas
caraterísticas de humildade e sofrimento. No NT tal título recorre 51 vezes e 37 delas é uma ampliação
do pronome pessoal “eu”. Portanto, tudo deixa pensar em que se trate de uma autêntica expressão de
Jesus.
- Messias:
No AT é usado, em contexto religioso, para designar o futuro salvador e assumindo diferentes formas:
real, sacerdotal (após o exílio), profética (Dt 18), escatológica (Macabeus) e do servo de Javé. No NT
alimenta-se a espera de um messias político e o relato das Tentações responde com a recusa a qualquer
forma de messianismo ligado ao prestigio, ao poder e à glória. Pela análise aparece evidente que não
foi um título inventado pela comunidade cristã. De fato, o próprio Jesus se apercebeu (não definiu!)
como Messias: jamais negou de sê-lo, mas sempre corrigiu este título (cf. Mt 11, 2-6; Mc 8, 27-30).

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- Filho de Deus:
No AT este título é atribuído ao povo, aos reis, aos juízes, aos anjos para indicar intimidade e fidelidade
a Deus e jamais a divindade. No NT é aplicado a Jesus em termos mais ontológicos. Contudo, nunca
Jesus usou para si mesmo esse título, mas sempre utilizou as categorias “pai” e “filho” para expressar
sua relação única com o Pai.
Conclusão:
À luz dos textos que a comunidade primitiva nos transmitiu a respeito de Jesus, sobressaem alguns
traços da autoconsciência do próprio Jesus que mostram como ele, de certa forma, se apercebeu como
portador escatológico da salvação, como aquele que anuncia e realiza o Reino, como aquele por quem
o projeto de Deus se torna visível e definitivo.

5 OS MILAGRES
Os relatos evangélicos nos fazem entrar em contato com a práxis de Jesus, que é marcada por
uma constante atividade taumatúrgica. Naquela época havia curandeiros como, por exemplo, Apolônio
de Tiana, filosofo itinerante morto nos anos 96/97 d.C. e o rabino Hanina Ben-Dosa, atuante na
Galileia, de quem foram transmitidas obras prodigiosas.
Quanto à atividade taumatúrgica de Jesus, a pesquisa ainda não chegou a uma conclusão
definitiva. Todavia, do ponto de vista histórico, é inegável a veracidade de tal atuação. Com efeito:
1) A tradição evangélica afirma de modo unânime que Jesus desempenhou ações taumatúrgicas.
2) O relato de tais ações constitui uma parte essencial das narrações evangélicas, embora não
represente o todo da ação de Jesus.
3) Há concordância entre os primeiros testemunhos históricos da tradição querigmática e a tradição
evangélica.
4) Os contemporâneos de Jesus, apesar de interpretarem de forma diferente a ação taumatúrgica de
Jesus, jamais a negam.
5) Os relatos evangélicos que falam da atividade taumatúrgica de Jesus se diferenciam do estilo
sensacionalista dos relatos helenísticos que relatam fatos prodigiosos protagonizados por personagens
famosos.
6) A atividade taumatúrgica de Jesus é testemunhada pela quase totalidade das fontes disponíveis
(exceto os escrito paulinos!): fontes extra bíblicas (Flávio Josefo), fonte “Q”, tradições narrativas,
tradição joanina.
Conclusão:
As fontes falam em modo bastante certo de uma atividade taumatúrgica de Jesus. É necessário
compreender o seu significado do ponto de vista teológico e o evangelista João, neste sentido, oferece
uma chave de leitura interessante, usando a categoria de “sinal”. As curas atuadas por Jesus, por
exemplo, não são práticas de cunho médico ou terapêutico que demonstram a capacidade de Jesus.
Trata-se sempre de sinais evangélicos, cuja finalidade é oferecer um caminho para chegar à fé. A partir
da interpretação comum entre a fonte “Q” e a tradição narrativa, os que chamamos de “milagres”
significam:
1) Jesus é mais forte do que o mal (Lc 11,14ss; Mt 12,28): não há situação espiritual ou física que
não possa ser tocada pela palavra de salvação de Jesus.
2) Por meio das curas e dos exorcismos, Jesus anuncia de modo concreto a chegada do Reino, o
qual não tem a ver apenas com a alma, mas atinge também o corpo e a sua dimensão social.
3) Visto que o Reino de Deus não é apenas uma renovação espiritual, mas atinge também a
história, os milagres são os sinais que em Deus a vida pode ser vivida em plenitude, mesmo sem isenção
de problemas, doenças, sofrimentos.
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4) Os milagres sinalizam a vitória de Deus sobre o pecado e a morte e mostram que o cumprimento
da vida acontece como ressureição do corpo.
5) Pela ação taumatúrgica aparece claro que em Jesus de Nazaré a presença de Deus é palavra
definitiva de salvação.
6 A RESSURREIÇÃO DE JESUS
No estudo das fontes, aparece um fato inesperado: muda o eixo do anúncio. Não é mais o Reino
de Deus, mas a própria pessoa de Jesus Cristo. Segundo os estudiosos há uma passagem de uma
“Cristologia implícita” a uma “Cristologia explicita”, focalizada na experiência de ter reconhecido
ainda vivo aquele Jesus que tinham visto crucificado e morto. Diante desta mudança radical surgiram
algumas hipóteses:
a) Os discípulos, para superar a decepção da morte de Jesus, criaram a notícia de sua ressureição,
subtraindo o cadáver do túmulo e tendo como prova o túmulo vazio.
b) Pode ter acontecido que os próprios discípulos tenham sido vítimas de um engano por parte de
alguém que, às escondidas, tenha subtraído o cadáver do túmulo. Em seguida, os discípulos teriam
criado a tese da “ressureição”.
c) Jesus pode ter passado por uma situação de morte aparente: o frio do túmulo, os aromas
perfumados talvez tenham tido um êxito benéfico sobre o corpo de Jesus até ele acordar novamente e
ir ao encontro dos discípulos.
d) A ressureição de Jesus pode ter sido um mito criado por seus discípulos por meio da imaginação
e em sintonia com as profecias do AT e outras ideias tomadas das outras religiões.
e) As aparições do Ressuscitado devem ter sido visões subjetivas, tipo sonhos, criadas pelo
inconsciente, praticamente: puras ilusões.
Para compreender bem a novidade do anúncio da ressureição é necessário lembrar que o
conceito de ressureição não tinha-se ainda desenvolvido tanto no judaísmo quanto no helenismo. No
judaísmo, de fato, os fariseus falavam de ressureição tomando inspiração da literatura apocalíptica e
da espiritualidade popular, ao passo que os saduceus se opunham a este tipo de novidade doutrinal (cf.
Mt 22,23). Daí se compreende a dificuldade dos discípulos na hora de reconhecer Jesus ressuscitado e
de acreditar na ressureição em si (Mc 16,14). Por outro lado, também o ambiente helenista não era
favorável à ressureição e isso significava fracasso do anúncio cristão naquele ambiente, como atestam
as fontes (At 17,32-33).
As fontes cristãs utilizam três modalidades para falar da ressurreição:
1) Forma sintética em breves profissões de fé ou hinos litúrgicos (Lc 24,34; 1Cor 15,3; Fl 2,5-11).
Esses textos são os mais antigos e mais próximos ao evento da morte de Jesus.
2) Forma homilética. Há uma tomada de consciência e uma problematização do fato (At 10,37-43)
3) Forma narrativa: o túmulo vazio e as aparições/visões do Ressuscitado (At 9,1-5; Mc 16,9-14).
O estudo dessas formas de relato da ressurreição e, sobretudo, a antiguidade de alguns textos
não combinam com a hipótese de que a ressureição de Jesus tenha sido mera invenção planejada de
seus discípulos. É necessário, então, aprofundar dois aspectos: a) a historicidade da ressurreição e b) o
significado do acontecimento.
a) Historicidade
Antigamente, os manuais de teologia afirmavam que a ressurreição era um evento histórico
incontestável, fundamentado sobre dois dados: o “tumulo vazio” e a credibilidade do testemunho dos
discípulos que tinham visto Jesus vivo após a morte. De certa forma a ressurreição era considerada
uma das “provas externas” do caráter divino da revelação. Ficava como fato do passado que não dizia
nada para a fé dos crentes no presente. Ora, o túmulo vazio não tem valor em si, mas somente em união
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às aparições: túmulo vazio e aparições, em conjunto, dizem que o ressuscitado é Jesus crucificado e
sepultado. Além disso as aparições devem ser consideradas como um efeito da ressureição, que,
enquanto tal, não teve testemunhas oculares.
Podemos dizer que a ressurreição é um fato histórico porque foi realizada por um homem histórico
e experimentada por testemunhas históricas. É a todos os efeitos um evento real acontecido na história:
tem a ver com o homem Jesus e tem efeitos verificáveis na história: o túmulo vazio e as aparições; o
retorno dos discípulos após a fuga; o testemunho dos apóstolos até o martírio; o nascimento da Igreja.
O encontro com o Ressuscitado transformou realmente a vida de quem fez tal experiência e tal fato
não deixa o historiador insensível: algo deve ter realmente acontecido para provocar tudo isso. Além
disso, é, também, um acontecimento que transcende a história com a superação da morte e o acesso
à plenitude de Deus. Portanto, dela poderão ser dadas sempre e somente justificativas indiretas.
b) Significado
A ressurreição de Jesus remete, também, a uma dimensão de fé que pode compreender o significado
da ressureição de Jesus para a vida de todo ser humano na dimensão soteriológica (salvífica) e
escatológica (como começo da nova criação). Portanto, a ressurreição de Jesus não é a reanimação de
um corpo, mas a visibilidade concreta que toda existência humana é, definitivamente, acolhida e
salvada por Deus. Neste sentido, a ressurreição de Jesus não é simplesmente a continuação da sua causa
de forma idealística, visto que não se pode separar a sua causa da sua pessoa. Ele apresentou-se como
portador escatológico da salvação e, portanto, a sua ressurreição confirma esta sua pretensão. Contudo,
a ressurreição precisa ser acolhida na fé, para alcançar seu cumprimento: a fé que olhando Jesus sabe
que a existência humana é salva. Enfim, é justamente a ressurreição que constitui o penhor daquela
esperança que determina o agir de quem crê.

IV – VIVA FÉ: RESPOSTA HUMANA Á REVELAÇÃO DIVINA


Introdução
Do ponto de vista humano a fé e o “crer” assumem vários significados. Com efeito, falamos de
“crer” no sentido de incerteza (“creio que amanhã choverá”); utilizamos o verbo “crer” para expressar
confiança (“creio nesta pessoa porque é minha amiga”); enfim falamos também de “crer” para dizer
que acreditamos firmemente (“creio que a solidariedade torna o mundo mais justo e fraterno”). Faz-se
um uso diversificado do “crer”, mas sempre expressa uma forma de conhecimento. No sentido
filosófico, o termo “fé” indica a aceitação da verdade ou da realidade de qualquer coisa que não seja
imediatamente demonstrável ou evidente.
No âmbito das relações interpessoais a “fé” é um verdadeiro ato de confiança. Nesse sentido
está relacionada com o amor. De fato, já na etimologia do verbo “crer” encontra-se essa relação: “crer”
vem do verbo latim “credere” que é formado por cor +dare = lit. dar o coração.
1 “CRER” SEGUNDO A PERSPECTIVA BÍBLICA.
O nosso percurso tem como ponto de partida as fontes cristãs. Nelas buscamos a descrição da
atitude do ser humano diante da Revelação de Deus. Do ponto de vista bíblico, é necessário ressaltar
que a linguagem usada jamais é abstrata. Os autores sagrados não constroem teorias sobre as quais
poder desenvolver especulações de cunho racional, mas apresentam de forma concreta a postura dos
que são interpelados pela Revelação de Deus.

→ No Antigo Testamento
No contexto bíblico e, sobretudo o no Antigo Testamento, a dimensão histórica é chave de
leitura imprescindível para a compreensão de qualquer acontecimento ou atitude. Nesse sentido,
“Crer o” e “no” Senhor equivale a “conhecer suas obras históricas”. A expressão “discernir que o
Senhor é Deus” (Is 43,10) pode ser assumida como profissão de fé que perpassa todo o Antigo
Testamento. A leitura paulina que Rm 4,21 faz de Gn 15,6 dá a entender claramente que para o homem
veterotestamentário o crer-conhecer comportava, necessariamente, o “entregar-se” e obedecer àquele
em que se cria e que se conhecia. É impossível, por certo, reduzir a fé bíblica a um único componente,
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todavia não se pode tira dela a dimensão do conhecer, longe disso. Justamente porque se conhece
concretamente, e porque quase se “verifica” o agir do Senhor é que se crê em sua palavra.
(FISICHELLA, 2000, p. 93-94).
PARA EXPRESSAR O ATO DE CRER, o Antigo Testamento utiliza alguns termos específicos:
 Escutar (shemah)
Diante de Deus que se revela, a resposta é a “escuta”. Trata-se de uma escuta que muitas vezes exige
plena disponibilidade. Neste caso fica paradigmático o encontro entre Elias e Deus no monte Horeb,
onde a voz do Senhor não se faz ouvir de forma ostentosa, mas passa por uma brisa suave (1Rs 18-19).
A escuta para o israelita é o outro lado da palavra de Deus, por isso assume quase sempre um valor
importante. Deus fala e opta por falar, justamente, para que Israel possa escutar (Is 1,1-3) e obedecer
às palavras escutadas (Dt 4).
 Ser fiel / Ser firme / Estar seguro (’aman)
O verbo ’amané usado, antes de tudo, para expressar a credibilidade da testemunha (Gn 42,20;
45,26), baseada no fato que ela fica fiel a si mesmo e não se deixa corromper pelas situações de
conveniência. Os salmos utilizam esse verbo para falar de uma fé em Javé que não se deixa abalar pelas
mudanças da história humana, porque na relação com Deus encontra-se segurança (Sl 19).
→ Conclusões:
À luz da Sagrada Escritura a fé em Deus se apresenta com essas expressões:
a) Convicção: o ser humano sabe de ter fé em Deus que intervém e mantem a promessa. Daí outros
desdobramentos:
- conhecer: a fé implica sempre o conhecimento e não o irracional. O conhecimento nasce da relação,
do ter prática comum de vida. O Faraó, por exemplo, não conhece o Senhor (Ex. 5,2).
- considerar verdadeira a Palavra
- reconhecer Deus que se revelou (Sl 100,3)
- decidir-se: adequar a própria vida ao Senhor, reconhecido como tal.
b) Confiança que passa pela familiaridade com Deus, chamado de Pai e Esposo.
c) Obediência: escutar atentamente, inclinar o ouvido à Palavra do Senhor. Trata-se de aderir a Deus,
proceder com Ele e abandonar-se em suas mãos.
d) Fidelidade: o primeiro e único fiel é o Senhor. A relação com Ele exige ser fieis também, para
sempre. Com efeito, de Deus não se volta atrás. A fidelidade implica: exclusividade (= afastamento
dos ídolos e dos inimigos de Deus) e paciência (= suportar tudo: tanto as provas enviadas por Deus
quanto as maldades do mundo e os acontecimentos da história).
 Temor: é a devoção total ao Senhor que transcende a história, a humanidade e o mundo.
 Fé no ser humano: o Senhor exige não apenas fé nele, mas também fé do homem no homem. É
a fé nos enviados de Deus (Moisés, os Profetas, sacerdotes, etc.)

NO NOVO TESTAMENTO
O eixo do NT é a Revelação definitiva de Deus em Jesus Cristo, a quem deve ser dada a adesão da fé.
 Sinóticos:
Ao evidenciar a pessoa histórica de Jesus, os evangelistas frisam a importância do encontro com ele
para conhecer Deus e nele crer. Geralmente, Jesus não aponta a si mesmo como destinatário da fé das
pessoas, isto é, não diz: “Crede em mim”. Todavia, as circunstâncias mostram que a fé em Deus que
ele quer suscitar passa pela fé na sua pessoa.
 João:
O verbo “crer” encontra-se 98 vezes nos escritos joaninos. O tema da fé é abrangente no seu
Evangelho. Diferentemente dos sinóticos, João, frequentemente, fala de “crer nele” (Jo 2,11; 3,16.18
etc.). O próprio Jesus convida a “crer nele”, para crer em Deus que o enviou (Jo 12,44; 14,1). João
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quando fala do crer frisa que a fé já está inserida na obra terrena de Jesus e já se tornou explícita no
encontro com ele. Em João, crer e conhecer são conceitos afins. Nos discursos de despedida, por
exemplo, é mais usado o verbo “conhecer” (Jo 14.17). Em suma, a fé possibilita um conhecimento
cada vez maior e uma comunhão cada vez mais profunda com a pessoa que é assim conhecida, até
conduzir ao amor. Trata-se de um conhecimento existencial.
 Paulo:
O tema da fé é decisivo dentro da visão teológica de Paulo. Com efeito, o “crer” possui uma
dimensão salvífica porque está enraizado no mistério salvífico da paixão, morte e ressurreição de Jesus
Cristo. Para Paulo, a fé possui uma dimensão pessoal e uma dimensão universal. É pessoal porque
define a identidade de quem crê, que a partir do batismo se torna pessoa justificada. É universal, porque
ninguém é excluído da fé: todos podem ter acesso a ela e são chamados à salvação pelo ato de fé (Gl
3,28; Rm 10,12). A fé se explica como abertura total à aceitação do Evangelho que é tornado conhecido
e feito conhecer. Em Rm 10,17, ele fala da fé que entra pelos ouvidos (“fides ex auditu”), lembrando,
assim, a importância do verbo hebraico “shemah” (escutar). Numa palavra, a obediência devida à fé
depende da escuta e, vice-versa, a escuta leva à obediência. Para Paulo, a fé cristã está centrada no
evento pascal, evento conhecido porque há testemunhas diretas; é transmitido pelo anúncio da Igreja,
que o torna evidente na sua atividade missionária; é tão verdadeiro e real que se viesse a faltar
fracassaria a própria ação da Igreja.
→ Conclusões:
No NT a fé é suscitada pelo Espírito de Deus e se concentra sobre o evento Jesus Cristo. A conversão
é a porta para crer (verbo grego pistéuô: crer, no sentido de ter confiança em alguém e ter certeza
da autenticidade e veracidade de um fato). Duas linhas fundamentais estão na base do modo de
entender a fé:
1) O Pai possui a iniciativa total. Ele pronuncia seu “amém” fiel a Jesus Cristo. Jesus Cristo, por
sua vez, pela força do Espírito Santo que o Pai faz repousar sobre ele, pronuncia o seu “amém”
fiel ao Pai. Desta nova obediência origina-se a salvação da humanidade.
2) Os batizados recebem o mesmo Espírito do Filho e, portanto a fé. Na fé estão envolvidos por
este “amém” do Pai e, pelo Espírito Santo, são associados a este “amém” do Filho.
2 A fé segundo o Concílio Vaticano II
Dei verbum, n. 5
A Deus que revela é devida a «obediência da fé» (Rm16,26; cfr. Rm. 1,5; 2 Cor10, 5-6); pela
fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo «a Deus revelador o obséquio
pleno da inteligência e da vontade» e prestando voluntário assentimento à Sua revelação.
Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina
e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os
olhos do entendimento, e dá «a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade». Para que a
compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa
sem cessar a fé mediante os seus dons.

1) O Concílio coloca o tema da fé não num tratado separado, mas dentro da própria história da
Revelação, para significar que pela fé o ser humano entra a fazer parte da Revelação de Deus, dialoga
com Ele.
2) DV 5, mostra antes de tudo a relação pessoal que, pela fé, o ser humano instaura com Deus.
3) Para o Concílio, a fé deve ser percebida como uma resposta à oferta que Deus faz de si mesmo.
4) Há uma omissão: a dimensão eclesial da fé.

20
 DIMENSÃO ECLESIAL DA FÉ

CIC 181:
«Crer» é um ato eclesial. A fé da Igreja precede, gera, suporta e nutre a nossa fé. A Igreja é a Mãe
de todos os crentes. «Ninguém pode ter a Deus por Pai, se não tiver a Igreja por Mãe» (55).

Como nossa mãe, a Igreja é ao mesmo tempo “mestra da fé”, que nos ensina a “linguagem
cristã” a ser vivenciada nas próprias experiências. Estas devem ser julgadas à luz daquilo que nos foi
transmitido pelos cristãos de todos os tempos e lugares, à luz do que nos ensina toda a comunidade dos
crentes.
É justamente graças à fé recebida pela Igreja que estamos em comunhão com os Apóstolos,
com os Pais da Igreja, com os mártires de qualquer época. Nesta comunhão percebemos duas dinâmicas
complementares:
1) Ninguém deu a si mesmo a fé, mas todos a recebemos dos que nos precederam.
2) Ninguém pode guardar a fé só para si.
Cada um é sustentado em sua fé por todos aqueles que creem juntamente com ele. Dai a
necessidade da comunidade dos crentes, como lugar privilegiado para a experiência de fé. Em suma: a
fé é um ato pessoal, mas não isolado: por ela a pessoa sai de si mesma e entra na Igreja, isto é, na
comunidade dos que creem. Aqui quem diz “Creio”, fazendo da fé uma opção livre, responsável e
intrasferível, diz também “Cremos”, expressando que ninguém pode crer por si só. Com efeito, o ser
humano não encontra sozinho, a Revelação, mas a recebe na comunidade dos crentes.
 DIMENSÃO HUMANA DA FÉ
A fé é um ato autenticamente humano. Pela fé o ser humano, com plena liberdade, consciente
responsavelmente responde a Deus que lhe falou e lhe ofereceu o seu amor em Jesus Cristo. A fé
envolve todo o ser humano: coração, liberdade, vontade e inteligência, que colaboram com a graça de
Deus e assim permitem de realizar aquele movimento da fé que muda a vida das pessoas: Deus fala e
o ser humano escuta, Deus se manifesta e o ser humano o reconhece, Deus o atrai a si e o ser humano
se deixa atrair. A fé, portanto é um ato humano e do ser humano todo, que se realiza no tempo e no
espaço, mediante o qual o ser humano entra em relação com o “Outro”, acolhido como sentido da
própria vida.
 DIMENSÃO SUBJETIVA E EXISTENCIAL DA FÉ (fides qua).
A fé é uma obediência de coração a Deus que veio ao nosso encontro e nos falou em Jesus
Cristo. A fé nos põe em contato vivo com um “TU” pessoal e não com uma fria doutrina. A fórmula
central da fé é “Eu creio em Ti” e não “Eu creio em algo”. A fórmula sintética da fé cristã é: “Creio
em ti, Jesus de Nazaré, pois tu és o sentido (“logos”) do mundo e da minha vida” (RATZINGER, 2012,
p. 60). Portanto, crendo em Jesus Cristo, não apenas temos certeza que a nossa vida e o mundo possuem
objetivamente um sentido e as perguntas do nosso coração possuem uma resposta, mas que este Sentido
(que é o próprio Jesus) nos conhece e nos ama, por isso podemos confiar nele como quem sabe que
todas as suas perguntas encontram resposta no “Tu” de Deus (... como a criança com a mãe). Jesus
Cristo é a resposta às perguntas fundamentais, portanto ter fé significa: entregar-se totalmente a ele,
submeter-se livremente a ele, seguir fielmente a ele, estar estavelmente com ele. Esta dimensão
subjetiva da fé, na Teologia, é chamada “defides qua”, para indicar a fé com a qual se crê, isto é, a fé
como produto de decisão do sujeito. É o ato de fé ou a atitude de fé.
 2.4 DIMENSÃO INTELECTUAL E DOUTRINAL DA FÉ (fides quae)
A fé é crer, também, em tudo aquilo que Jesus nos ensinou e nos deixou como mandamento a
ser cumprido. O ato de fé possui em si a exigência de compreender aquilo que crê para mostrar a
racionalidade da mensagem cristã, para possibilitar um conhecimento sempre mais profundo da
doutrina e dos mistérios da fé, de sua unidade e de suas implicações, para iluminar o crente no seu
esforço de viver a fé. Uma fé adulta exige que o cristão saiba dar e dizer as razões da sua fé. Esta

21
dimensão da fé, em Teologia, é chamada de fides quae, para indicar a fé que é acreditada, a fé expressa
em conteúdos que existiam antes do ato de fé (fides qua).
3 FÉ E RAZÃO
Peculiaridade da Teologia cristã é a visão harmônica da relação entre fé e razão. A encíclica de
João Paulo II, Fides et Ratio, dedicada a esse tema, abre-se com a seguinte afirmação:
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano
se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o
desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-
O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.
Fé → É, primeiramente, uma atitude de dependência de Deus (confiar nele, abandonar-se a ele),
percebido como o único que pode dar pleno sentido à vida do ser humano. Em segundo lugar, e como
consequência disso, “fé” significa, também, crer nas verdades reveladas. A verdade da fé se
fundamenta não sobre um raciocínio humano, mas sobre a palavra de Deus.
Razão → É a faculdade humana de refletir sobre a própria vida, sobre as próprias experiências, sobre
o mundo, buscando compreendê-lo, conhecendo as suas leis, que são leis racionais e, justamente por
isso, podem ser compreendidas, decodificadas e interpretadas pela razão humana sem precisar de ajuda
externa.
A RELAÇÃO ENTRE ESTAS DUAS REALIDADES MUDOU AO LONGO DOS SÉCULOS.
 Época antiga
Desde sua origem o cristianismo, baseado na fé em Jesus Cristo, Verbo Encarnado e tendo como fonte
a Sagrada Escritura, teve que se confrontar com o pensamento grego dos grandes filósofos, sobretudo,
Platão e Aristóteles. A filosofia, ao contrário da fé, não parte de uma revelação divina, mas da busca
humana da verdade. Sócrates passava dias inteiros nas praças para conversar com o povo, porque
achava que a verdade habitasse dentro dos seres humanos. Santo Agostinho (354-430 d.C.) foi o
primeiro grande pensador cristão que conseguiu unir, harmonicamente, a fé originada pela palavra de
Deus com a filosofia de Platão.
 Idade Média
A síntese de Agostinho, centrada sobre o predomínio da “graça de Deus” (e portanto da fé) dominou o
pensamento cristão até Santo Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.). Tomás conseguiu conjugar o
pensamento cristão com a filosofia de Aristóteles, que até então tinha sido deixado de lado, porque
considerado mais “materialista” do que espiritualista mais centrado sobre a realidade concreta do que
sobre o mundo das ideias. Santo Tomàs e tantos outros filósofos e teólogos conseguiram elaborar uma
grande síntese entre fé e razão, como duas realidades que se sustentam reciprocamente. Daí nasceu a
corrente filosófico-teológica que traz o nome de “Escolástica” e que dominará o pensamento cristão
por muitos séculos. Segundo Santo Tomás, a fé precisa da razão para se tornar inteligível (“a fé busca
a inteligência”); mas, ao mesmo tempo, a razão precisa da fé para aumentar seu horizonte de
compreensão (“a inteligência busca a fé”). Em suma: o ser humano deveria crer para entender e
entender para crer. Nessa dinâmica, todavia, a fé ocupava o lugar central e a razão ficava, apenas, como
“ancila” (serva) da fé.
 Época Moderna
A época moderna marca a ruptura entre fé e razão. A Reforma Protestante retoma o pensamento de
Santo Agostinho, baseado mais nos recursos da fé do que nos da razão. Sucessivamente, com o
nascimento do pensamento cientifico, rigorosamente fundamentado no método racional e experimental
(Galileu Galilei), a Igreja começou a perceber uma ameaça para a fé. Galileu, profundo homem de fé
católica, diante dos contrastes entre os resultados do seu método e os dados bíblicos, afirmando que
Deus era Autor tanto da Bíblia quanto da natureza, propunha a superação dos mesmos através do
aprofundamento tanto da Ciência quanto da Bíblia, que não podia ser lida ao pé da letra. A proposta de
Galileu não foi compreendida, Galileu foi condenado pelas autoridades eclesiásticas e o resultado foi
a ruptura entre fé e razão científica. Começou a afirmar-se a necessidade da autonomia da razão diante
22
da fé, com o Iluminismo (séc. XVIII) a razão foi “endeusada” e considerada sempre mais a única fonte
do verdadeiro conhecimento. Por outro lado, a fé foi isolada no âmbito do irracional, até chegar ao séc.
XIX, no qual, com o nascimento do Ateísmo (Fuerback, Marx, Niertsche, Freud, etc...), acontece a
total negação da fé.
 Época contemporânea
Até o Concílio Vaticano II, a Igreja afasta-se progressivamente do pensamento da modernidade, da
qual tenta defender-se. Com o Vat. II (1962-1965) há uma reaproximação entre a Igreja e o pensamento
moderno com um diálogo mais sereno entre Fé e Ciência. Em 1998 o papa João Paulo II publica a
Encíclica “Fides et Ratio” (Fé e Razão), na qual explica que fé e razão não se excluem e, sim, se
completam e se sustentam reciprocamente. Além disso, a fé não deve ser apenas acolhida, mas também
pensada por meio do intelecto que conhece e compreende a Revelação divina. A razão, por sua vez,
necessita de uma busca contínua que não pode ser apenas de cunho analítico, senão acaba parando
diante de seus limites. Portanto, ela precisa da fé para prosseguir sua busca e encontrar respostas.

A fé é o ato do ser humano firmar-se na realidade como um todo, sem que esse ato seja redutível
ao conhecimento, por ser incomensurável em relação ao conhecimento; é a atribuição de sentido
sem a qual o ser humano como um todo ficaria fora do lugar; é um sentido que é anterior ao
calcular e ao agir do ser humano e sem o qual ele não teria condições de calcular e de agir,
porque ele só pode fazê-lo no lugar onde há um sentido que o sustente. Pois, com efeito, o ser
humano não vive apenas do pão da facticidade; como ser humano e na sua essência humana
autêntica, ele vive do amor, do sentido (...).
A maneira cristã de ter fé significa confiar-se ao sentido que sustenta a mim e ao mundo,
reconhece-lo como a base firme sobre a qual posso ficar sem receio. Recorrendo a uma
linguagem mais tradicional, poderíamos dizer: crer segundo a maneira cristã de ter fé significa
compreender a nossa existência como resposta à palavra, ao Logos, que sustenta e conserva
todas as coisas. Significa aceitar que o sentido, que não podemos produzir, mas apenas receber,
já nos foi dado, de modo que precisamos tão somente aceitá-lo confiando-nos a ele.
(RATZINGER, 2012, p. 54-55)

V – A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO
Introdução
Peculiaridade do ser humano é transmitir os conteúdos que, são patrimônio de sua história. Por
meio da tradição, grupos étnicos e culturais, comunicam-se entre si e a história de um povo é levada
ao conhecimento de outro povo. O instrumento essencial é a linguagem, que permite a comunicação e
transmissão dos conteúdos criando, assim, uma tradição.
Também a Igreja possui sua Tradição, que lhe permite de aperceber-se como sujeito histórico
com a tarefa específica da transmissão. Como em toda e qualquer tradição, também na Tradição cristão
distingue-se:
a) Conteúdo transmitido;
b) Processo de transmitir e receber;
c) Sujeitos da tradição.
1. A PRIMEIRA TRANSMISSÃO: DE JESUS AOS APÓSTOLOS
Na origem da tradição cristã há a pessoa de Jesus de Nazaré, que convoca ao seu redor um grupo de
discípulos e transmite-lhes seu ensinamento a fim de que fosse mantido íntegro e transmitido aos que
pela pregação deles tivessem acreditado: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, e
fazei discípulos meus todos os povos; batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo;
ensinai-os a observar tudo o que vos transmiti. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do
mundo” (Mt 28,18-20). À luz desta palavra a comunidade primitiva tomou consciência que o desejo
salvífico de Deus é que toda a humanidade conheça e acolha sua auto comunicação. Daí a sua missão:
23
transmitir em todo tempo e lugar a Palavra de salvação do Senhor. A primeira pregação (transmissão)
foi oral, tendo como conteúdo o Mistério Pascal, a convivência com Jesus, sua vida, suas palavras,
ensinamentos, obras, gestos e ações. Logo depois, a mensagem de salvação passou a ser escrita. Nesse
processo, a comunidade cristã sentiu presente a ação do Espírito do Ressuscitado, que a acompanha,
até hoje, para manter íntegro tudo o que o Mestre lhe entregou.

Dei Verbum n. 7
Deus dispôs amorosamente que permanecesse integro e fosse transmitido a todas as gerações
tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em quem
toda a revelação do Deus altíssimo se consuma (cfr. 2 Cor. 1,20; 3,16-4,6), mandou aos
Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina
de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado
pessoalmente, comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade, tanto
pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que
tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do
Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo
Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação. Porém, para que o Evangelho fosse
perenemente conservado integro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus
sucessores, «entregando lhes o seu próprio ofício de magistério». Portanto, esta sagrada
Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a Igreja
peregrina na terra contempla a Deus, de quem tudo recebe, até ser conduzida a vê-lo face a face
tal qual Ele é (cfr. 1 Jo. 3,2).

2. A TRADIÇÃO
Pela Tradição, que no sentido próprio e específico é a transmissão da pregação e do testemunho
apostólico fora da Escritura, a Igreja conhece e reconhece o diálogo contínuo de Deus com a
humanidade. Em definitiva, a Tradição é o imenso conjunto da auto comunicação de Deus:
- que aconteceu nas experiências de Deus no passado (no povo de Israel e na Igreja do tempo
apostólico);
- que aconteceu e acontece nas experiências de Deus posteriores, e atuais, feitas em comunhão com
aquela revelação do passado. Por isso, a Tradição é viva e não uma “peça de museu”.
Nesse sentido há três fatores que favorecem o progresso da Tradição:
1) A reflexão e o estudo dos crentes sobre as realidades transmitidas. Não só os teólogos, mas todos
os crentes, tem o dever de refletir e meditar sobre elas, sabendo que a realidade transmitida antes de
se tornar objeto de estudo deve ser objeto de contemplação.
2) A dimensão experiencial da fé dos crentes, por meio da profunda inteligência que experimentam
das coisas espirituais.
3) A pregação dos que pela sucessão apostólica receberam um carisma certo de verdade. Os
bispos, de fato, como garantes da verdade da tradição, têm a tarefa de promover e avaliar os
progressos que se manifestam no meio do Povo de Deus quanto à experiência e à inteligência da
realidade revelada e transmitida.
O Concílio Vat. II oferece uma nova definição de Tradição. Com efeito,
- Visto que a Revelação não é mais compreendida como mera comunicação de verdades, mas como
vivificante auto comunicação de Deus, pela qual ele fala aos homens como a amigos, também a
Tradição não pode ser assumida como mera coleção de verdades. Ela é presença vivificante da
palavra de Deus, o qual não para de conversar com a Esposa de seu Filho, isto é, a Igreja.

24
- Sendo que a Revelação não é mais apresentada como simples instrução de Deus, mas acontece com
eventos e palavras, também a Tradição acontece na doutrina, na vida e no culto da Igreja.
-Pelo fato de toda a Igreja ser o Povo de Deus a caminho para a perfeição do reino de Deus, também
todo o Povo santo, unido a seus pastores, transmite a Tradição. De fato, a compreensão da Palavra
de Deus transmitida cresce não apenas pela pregação dos pastores, mas também pela reflexão, estudo
e experiência de todos os crentes.

Dei Verbum, n. 8
E assim, a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros inspirados, devia
conservar-se, por uma sucessão contínua, até à consumação dos tempos. Por isso, os Apóstolos,
transmitindo o que eles mesmos receberam, advertem os fiéis a que observem as tradições que
tinham aprendido quer por palavras quer por escrito (cfr. 2 Tess. 2,15), e a que lutem pela fé
recebida dama vez para sempre (cfr. Jud. 3). Ora, o que foi transmitido pelos Apóstolos, abrange
tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé; e assim
a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que
ela é e tudo quanto acredita. Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do
Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras
transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração
(cfr. Lc. 2, 19. 51), quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais,
quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da
verdade. Isto é, a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da
verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus. Afirmações dos santos Padres
testemunham a presença vivificadora desta Tradição, cujas riquezas entram na prática e na vida
da Igreja crente e orante. Mediante a mesma Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro dos
livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e torna-se
incessantemente operante; e assim, Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a
esposa do seu amado Filho; e o Espírito Santo - por quem ressoa a voz do Evangelho na Igreja
e, pela Igreja, no mundo - introduz os crentes na verdade plena e faz com que a palavra de
Cristo neles habite em toda a sua riqueza (cfr. Col. 3,16).

3. A TRADIÇÃO E A ESCRITURA
A Tradição e a Escritura formam parte da grande transmissão da Revelação de Deus. A Tradição é
“mãe”, “irmã” e “filha” da Sagrada Escritura. Com efeito, em Israel, a Tradição já acontecia séculos
antes dos livros do AT serem escritos. Era um oceano vivo de revelação que acontecia nas experiências
de Deus. Este oceano vivo formou e gerou a Bíblia. Nesse sentido, a Tradição é mãe da Bíblia.
A Tradição continuou enquanto a Bíblia estava sendo escrita (aproximadamente 1000 a.C. – 90
d.C.). A revelação até Jesus Cristo, que aconteceu na experiência de Deus feita pelo Povo de Deus, foi
expressa na Bíblia. Nesse sentido a Tradição é irmã e contemporânea da Bíblia.
Com o término de sua composição (aproximadamente no ano 90 d.C.), a Bíblia passou a orientar
o Povo de Deus como parâmetro para aprofundar a Tradição que continuava e continua acontecendo.
Nesse sentido a Tradição é filha da Sagrada Escritura.
A Tradição e a Sagrada Escritura são mediações da Palavra de Deus. A primeira é confiada aos
Apóstolos e por eles transmitida aos seus sucessores. A segunda é escrita sob a inspiração do Espírito
Santo. Desta forma, a Revelação nos chega mediante a Tradição e a Escritura, que unidas e oriundas
da mesma fonte nos conduzem ao mesmo fim: a salvação da humanidade inteira.

25
Dei Verbum n. 9
A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e
compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que
uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi
escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite
integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e
pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a
conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a
Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas.
Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência.

4. A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO E O DEPÓSITO DA FÉ


A finalidade da pregação cristã não é a adaptação do Evangelho à cultura, mas a transmissão
viva da verdade que salva. A Boa Nova supera e transcende todas as culturas e, por isso, é capaz de
orientá-las, purificando-as e informando-as com os valores cristãos. De fato, cada cultura tem algumas
verdades, alguns bens próprios e quando uma pessoa decide de tornar-se cristã não deve separar-se das
suas raízes, do seu ambiente familiar e social: deve aprender a iluminar todos estes âmbitos com a luz
de Cristo. Contudo, algumas tradições ou costumes podem ficar caducos e estorvar a Tradição. Podem
atrapalhar a revelação de Deus que acontece nas experiências de Deus que as novas gerações fazem
em comunhão com o processo anterior de revelação. Como discernir?
O critério principal de discernimento encontra-se no depósito da fé, no patrimônio revelado e
confiado por Deus à Igreja (1Tm 6,20; 2Tm1,12-14). No depósito alguém confia uma riqueza a outrem.
Este não se torna dono da riqueza confiada, mas fiel depositário. Da mesma forma,o patrimônio da
revelação de Deus acontecido no Povo de Israel e na Igreja do tempo apostólico recebe o título de
depósito da fé. Quem confia a riqueza é o próprio Deus. A riqueza que é confiada é a Revelação. A
fiel depositária é a Igreja, que deve guardar o depósito da fé em condições culturais e históricas que
mudam e que geram tradições. O depósito da fé foi confiado a toda a Igreja, na qual o Magistério
tem a função de:
Conservar nada deve ser esquecido, acrescentado, inventado.
Defender proteger de erros e desvios
Explicar esclarecer a Tradição e a Escritura

Dei Verbum n. 10:


A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus,
confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina dos
Apóstolos e na comunhão, na facção do pão e na oração (cfr. Act. 2,42 gr.), de tal modo que, na
conservação, atuação e profissão da fé transmitida, haja uma especial concordância dos pastores e dos
fiéis (7). Porém, o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na
Tradição (8), foi confiado só ao magistério vivo da Igreja (9), cuja autoridade é exercida em nome de
Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando
apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve
piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto
propõe à fé como divinamente revelado. É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura
e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam
que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito
Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas.

26
BIBLIOGRAFIA

(útil para o aprofundamento pessoal dos temas tratados)

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum. Petrópolis: Vozes, 1979.

FISICHELLA, Rino. Introdução à teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 2000.

GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989.

JOÃO Paulo II. Carta Encíclica Fides et ratio: sobre as relações entre fé e razão. Documentos
Pontifícios. São Paulo: Loyola, 1998.

LATOURELLE, René. Teologia da revelação. São Paulo: Paulinas 1972.

LIBANIO, João Batista. Eu creio, nós cremos: tratado da fé. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2004.

_______. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo: Paulinas, 2003.

______. Teologia da revelação a partir da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992.

RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012.

______. Jesus de Nazaré. Primeira parte: do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo: Planeta,
2007.

SORRENTINO, Francesco. Dizer Cristo em contexto de pluralismo religioso. Atualização, Belo


Horizonte, v. 43, n. 361, p. 189-206, abr/jun 2013.

27
28
ANTROPOLOGIA

TEOLÓGICA

29
INTRODUÇÃO

A Antropologia Teológica é uma área da teologia cristã que tem como foco reflexivo compreender o
ser humano à luz da fé cristã. Seu discurso sistemático-teológico fundamenta-se, sobretudo, na
revelação em Jesus Cristo, comunicada pela Palavra bíblica e pela própria experiência existencial
humana. Trata-se de um tema fundamental, pois tem o ser humano como aquele que responde ao
chamado amoroso do Pai. Sua estrutura é constituída por diversas outras temáticas, isto é, teológicas e
outras afins ao fenômeno humano. Neste sentido, em face dos limites inerentes ao curso, selecionamos
algumas linhas consideradas importantes para a reflexão antropo-teológica: seja a respeito da própria
disciplina, assim como a respeito do seu significado no conjunto da Teologia enquanto discurso sobre
Deus. Provavelmente uma questão ou outra poderá ser mais acentuada, dependendo da sua relevância
na discussão dos participantes do curso.

Vale lembrar que nossos encontros acontecerão de forma expositiva e dialogada. Este material didático
nos auxiliará no acompanhamento das nossas reflexões e diálogos. Abordaremos a questão da origem,
do contexto, riscos e os fundamentos teológicos da disciplina Antropologia Teológica (AT), isto é, sua
razão de ser no universo teológico e a discussão sobre o problema do dualismo, que se manifesta na
relação da oposição-exclusão. Em seguida, discutiremos alguns aspectos significantes dos temas da
Criação, Pecado e Graça, o problema do mal, em relação à centralidade do ser humano enquanto
criatura de Deus, articulando-os numa perspectiva da espiritualidade cristã-católica, como também
pastoral.

O critério fundamental nesse processo é a abertura para o diálogo reflexivo, leitura e boa vontade em
querer se aprofundar na experiência da fé no Deus de Jesus de Nazaré, o Cristo da fé, aprofundando-
se na própria experiência de humanidade. Um excelente curso para todos! Que o Senhor da Vida nos
abençoe! Amém!

1 A importância da sistematização da reflexão teológica.

- Antes de iniciarmos a reflexão do tema propriamente dito, entendo ser necessário, neste momento,
conversarmos um pouco sobre a importância da sistematização da teologia no processo de formação
das lideranças cristãs no meio eclesial-comunitário e social nos dias de hoje. Comecemos por esta
questão: O que é sistematização da teologia? Por que sistematizar a teologia – Teologia Sistemática
-? Por que elaborá-la de forma temática, como estamos fazendo agora?

- “Para o cristão, a existência cristã é em última análise a totalidade de sua existência. E essa
totalidade abre-se para os obscuros abismos do deserto daquele que chamamos Deus” (Rahner, 1989,
12).

- A sistematização constitui então uma necessidade intrínseca do ser humano, no sentido de dar conta
(CONCEITUALMENTE), a partir também de sua capacidade racional, de compreender a dimensão
desse mistério chamado Deus e, em consequência, a vida cristã que se acha envolta por esse mistério,
por ser revelado.

- Devemos fugir das obviedades; a fé cristã não é algo óbvio!! O ser humano não é uma realidade
óbvia!!

- A reflexão sistemática sempre nos lança de novo a novas tentativas de refletirmos a respeito dessa
totalidade chamada cristianismo ou vida cristã;
30
- Toda reflexão é condicionada a seu tempo e a seu contexto; por isso, quando se trata de reflexão
teológica cristã, devemos nos colocar numa atitude de humildade, cônscios de que não esgotaremos a
totalidade dessa realidade que nos abarca; sempre começaremos de novo; tentaremos de novo;

- “... É evidente que a reflexão em geral, e particularmente teológico-científica, jamais abarca nem
pode abarcar a totalidade implicada na vivência da fé, esperança e caridade, e na oração” (Rahner,
Idem.);

- Refletir teologicamente a partir de um método sistemático, o qual busca organizar e dar consistência
às nossas afirmações e teorias, possibilita justificar “perante as exigências da nossa consciência de
verdade”, aquilo que é a “razão de nossa esperança” (1Pd 3,15).

- Consideremos ainda outro princípio antropológico-teológico importante: A reflexão teológica não


substitui a experiência de fé; essa se encontra no primeiro nível da experiência humana – experiência
do transcendente - de Deus; experiência existencial. A reflexão teológica trata-se de movimento
segundo – nível da racionalidade; trata-se também de inter-relacionarmos com conceitos filosóficos e
outras áreas do conhecimento. Podemos afirmar que a teologia é interdisciplinar. Não há como ser
diferente no atual contexto cultural. Como percebemos esses aspectos do ponto de vista racional,
espiritual e eclesial-missionário pastoral? Qual a importância que dou a esses aspectos? Se dou
importância, de que forma o dou?

2 Ponto de Partida: o caráter da disciplina Antropologia Teológica (AT)

- Tomemos como ponto de partida a seguinte afirmação: a disciplina Antropologia Teológica tem um
papel fundamental na construção do conhecimento crítico-teológico cristão; de que forma ela soa aos
nossos ouvidos e inteligência?

- Vejamos a importante consideração do professor Francisco de Aquino Junior, doutor em Teologia,


no qual se baseará nossa reflexão: “A disciplina Antropologia Teológica (AT) é muito recente no
estudo da teologia e, como tal, é, de maneira particular, uma disciplina em construção. Se a teologia
pós-conciliar em seu conjunto vive uma ‘situação de busca’, isso vale de modo especial para uma
disciplina tão recente como a AT, sobretudo se considerarmos, por um lado, a importância e
centralidade da antropologia no mundo moderno e, por outro lado, a dificuldade moderna de uma
abordagem estritamente teológica da antropologia. Mais ainda se considerarmos a tão falada
crise da modernidade e da teologia moderna. Daí o caráter particularmente problemático dessa
disciplina. Ele nos lança na tarefa de determinarmos e explicitarmos seu estatuto teórico, enfrentando,
para isto, as dificuldades epistemológicas provenientes tanto do contexto em que vivemos quanto do
próprio quefazer teológico enquanto tal”. Como se verifica nessas palavras do professor Aquino, de
imediato temos alguns desafios teórico-teológicos a enfrentar no sentido de justificar essa disciplina.
E junto a esse desafio, também temos outro do ponto de vista pastoral, que considero de suma
importância, pois é a razão de ser deste curso, isto é, articular teoria-reflexão teológica e prática-
vivência pastoral a partir da nossa experiência de fé pessoal e eclesial comunitária neste nosso
contexto sociocultural.

3 Antropologia Teológica: origem, problemática/contexto, riscos e os fundamentos teológicos

3.1 A AT como disciplina é relativamente recente no estudo da teologia: “surgiu ou ao menos explodiu
no início da década de sessenta” =.> Karl Rahner, referência fundamental – artigo publicado em 1957,
intitulado Antropologia Teológica: “A construção propriamente dita de uma antropologia (teológica)
31
ainda não aconteceu. A antropologia ainda é repartida nos diferentes tratados, sem uma elaboração do
fundamento sistemático de sua totalidade ...”;

- “[...] a problemática antropológica sempre esteve presente e de modo muito central na teologia. Ela
sempre se ocupou da vida humana em sua relação com Deus: criação, pecado, graça, santificação,
salvação, condenação etc. ‘Não se pode negar que o ser humano sempre ocupou um lugar central na
reflexão sobre a fé e foi o objeto máximo de preocupação pastoral da Igreja’, ainda que essa
centralidade e essa preocupação tenham recebido uma formulação distinta de sua formulação atual.
Neste sentido, a abordagem teológica da antropologia não é algo absolutamente novo. Como
veremos mais adiante, é algo que diz respeito à identidade mais profunda da teologia e, enquanto
tal, tem a idade da teologia”. (AQUINO, ...);

- “A preocupação no campo teológico por agrupar em torno a esse centro de interesse as matérias que
tratam dos vários aspectos da ação criadora e salvadora de Deus é relativamente nova” (Ladaria, 1983).

- Em função disso, importa discutir “a problemática da AT distinguindo a antropologia como problema


teológico da antropologia como disciplina teológica. Se esta é muito recente, aquela é uma constante
no estudo da teologia” (AQUINO).

- “A necessidade, e o esforço de uma reflexão teológica sistemática sobre o ser humano e, ligado
a isso, o surgimento da disciplina AT só podem ser compreendidos a partir do contexto que os
provocam, em que surgem e ao qual procuram responder. Referimo-nos aqui ao contexto da
modernidade ou de mundo moderno, tomando como sua característica fundamental a concentração
antropológica do pensamento, formulada e expressa nas clássicas perguntas de Kant: ‘O que posso
saber?’; ‘O que devo fazer?’; ‘O que me é permitido esperar?’; ‘O que é o homem?’”. (Idem.)

- “A característica fundamental do pensamento moderno é pensar todas as “coisas”, inclusive


Deus, a partir de e/ou em respectividade ao homem, ainda que esse homem possa ser compreendido
de maneiras muito diferentes: aberto a Deus ou fechado sobre si mesmo e seu mundo” (Idem.)

- O próprio Kant, “no prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, isso significou uma
verdadeira “revolução copernicana” no pensamento. Fala-se, neste contexto, da passagem de um
“teocentrismo” para um “antropocentrismo” ou da passagem de um esquema “onto-teológico” para
um esquema “onto-antropológico” do pensar”;

- “Segundo Ladaria, “o interesse que o homem desperta no momento presente em diferentes campos
da ciência tem uma correspondência muito clara na teologia [...]. Por isso entrou na linguagem da
teologia a expressão ‘antropologia teológica’, disciplina que englobaria os diversos ensinamentos
sobre o homem antes dispersos em diferentes tratados”.;

- “Na mesma direção vai a afirmação de Pannenberg: “O ambiente espiritual geral dos tempos
modernos e seu desenvolvimento [...] se reflete na concentração da problemática fundamental da
teologia moderna sobre a compreensão do homem [...]. A concentração da filosofia moderna no
homem como sujeito de toda experiência bem como da própria reflexão filosófica deve repercutir na
teologia”.

- “E Felisa Elisondo fala explicitamente de “virada antropológica da teologia”. Assim como se fala
de “virada antropológica” na filosofia, diz ela, “pode-se dizer que a teologia registrou também sua
‘virada antropológica’”;
32
- Vale ressaltar aqui os riscos dessa “virada antropológica”. “Essa “virada antropológica” não deixa
de ser um risco para a teologia. Risco de um reducionismo antropológico a determinados aspectos
ou dimensões da vida humana em prejuízo de sua dimensão propriamente teologal. Numa palavra:
risco de um antropocentrismo autossuficiente e fechado a Deus”.

- “Trata-se, portanto, de um risco duplamente inevitável para o quefazer teológico: inevitável, se a


teologia quiser cumprir com sua tarefa de inteligência da fé no mundo moderno (caráter contextual da
teologia); mas inevitável, sobretudo, porque a realidade que a teologia procura inteligir, isto é, a história
da salvação ou o reinado de Deus, tem a ver necessária e constitutivamente com o ser humano (caráter
soteriológico da revelação e da fé cristãs)”.

- É fato que só podemos entender a “concentração antropológica” na teologia e o surgimento da


disciplina AT a partir da “revolução copernicana” no pensamento ocidental. No entanto, não podemos
considerar tão somente como um reflexo apenas dessas transformações paradigmáticas, “nem
muito menos fundamentá-las e justificá-las simplesmente a partir do ambiente espiritual em que se
desenvolvem e ao qual, de alguma maneira, procuram responder”.

- “Primeiro, porque não se trata de uma antropologia qualquer, entre as muitas desenvolvidas no
mundo moderno, mas de uma antropologia teológica, portanto, constitutivamente aberta e
referida a Deus, na qual o homem é compreendido fundamentalmente como ‘ouvinte da palavra
(Rahner)’”

- “Segundo, porque a centralidade do ser humano na teologia se fundamenta, em última instância, no


fato de que a história da salvação ou a realização histórica do reinado de Deus, assunto da teologia,
diz respeito não simplesmente a Deus, mas também às pessoas e aos povos a quem Deus salva ou
sobre quem ele reina”.

- “De modo que a antropologia, neste contexto, mais que uma disciplina ou área da teologia,
aparece como uma dimensão constitutiva de toda a teologia cristã”. => contribuição de Rahner.

3.2 “Estatuto teórico da disciplina Antropologia Teológica”

- Vejamos a formulação da problemática do estatuto teórico da disciplina AT construída por Aquino:


“o ser humano em sua respectividade e relação com Deus, tal como ele se revelou na história de
Israel e, nela, de modo definitivo, na vida/práxis de Jesus de Nazaré”.

- Com relação a isso, nos diz Ladaria, na sua obra Introdução à Antropologia Teológica: “Pode-se falar
do homem, e de fato se fala, sob muitos pontos de vista: filosófico, psicológico, médico, sociológico...
O termo ‘antropologia’ tornou-se em muitos casos um termo equívoco. É evidente que a palavra nos
remete ao homem, nos mostra que ele é o objeto material de nosso estudo. Mas isso não basta;
precisamos deixar claro, e isso sem dúvida é muito importante, o ponto de vista a partir do qual
procuramos abordá-lo. O adjetivo ‘teológica’ diz-nos qual é esse ponto de vista: trata-se do que o
homem é em sua relação com o Deus Uno e Trino revelado em Cristo. Ao mesmo tempo, indica-
nos, pelo menos em linhas gerais, o método que precisamos seguir para alcançar o objetivo: o
estudo da revelação cristã. Procuremos introduzir-nos na ‘antropologia teológica’, ou seja, naquela
disciplina ou, melhor ainda, naquela parte ou setor da teologia dogmática que nos ensina o que somos
à luz de Jesus Cristo revelador de Deus”.

33
- “Se em princípio essas questões podem parecer óbvias e tranquilas, afinal trata-se de uma
antropologia (ser humano) teológica (respectiva a Deus) cristã (respectiva a Jesus Cristo),
efetivamente e na prática são muito mais complexas e problemáticas do que parecem. Nem o que
seja o ser humano em sua totalidade e complexidade é algo claro e consensual no mundo
contemporâneo; nem a abordagem teológica do ser humano é algo tranquilo em nossa cultura; nem
sequer a abordagem teológica do ser humano a partir de Jesus Cristo é algo tão simples e evidente na
teologia cristã”.

3.3 “Dificuldades e desafios epistemológicos” do estatuto teórico da disciplina

- A “dificuldade e o desafio concernentes ao objeto material da AT: o ser humano em sua


complexidade e irredutibilidade”. => não basta afirmar que a AT trata do ser humano. “É preciso
explicitar o ponto de vista sob o qual o ser humano é abordado nessa disciplina, o que implica
reconhecer a existência e legitimidade de outros pontos de vista e, mesmo, a articulação e interação
desses diversos pontos de vista, uma vez que todos eles dizem respeito a essa realidade concreta que é
o ser humano”.

- “Se o pensamento antigo insistiu na inserção do homem no cosmos; se o pensamento medieval


enfatizou sua relação com Deus; se o pensamento moderno destacou muito sua irredutibilidade e suas
capacidades teóricas e práticas; o pensamento contemporâneo, por um lado, alargou o horizonte
moderno destacando aspectos da vida humana até então pouco desenvolvidos ou mesmo
desvalorizados (corporeidade, sensibilidade, sexualidade etc.), e, por outro lado, para além da
modernidade, “graças” à crise ecológica, reassumiu a dimensão natural da vida humana,
tomando o homem como parte da natureza (horizonte ecológico ou socioambiental)”.

- E tudo isso deve ajudar na reflexão teológica atual sobre o ser humano: seja, negativamente, evitando
cair em qualquer reducionismo; seja, positivamente, acolhendo e integrando as diferentes contribuições
para o conhecimento da realidade humana.

- Como bem afirma Ladaria, “a revelação cristã não pretende de modo algum ser a única fonte de
conhecimento sobre o homem. Antes, ela pressupõe expressamente o contrário. Sem perder nada
da especificidade teológica, a reflexão cristã sobre o homem deve enriquecer-se com os dados e as
intuições provenientes da filosofia e das ciências humanas”, bem como das mais diferentes formas
e fontes de saber.

- E, levando em conta a sensibilidade e os desafios próprios do contexto em que vivemos, a AT tem


que ficar particularmente atenta contra os reducionismos espiritualistas, individualistas e
antropocentristas. Dito positivamente, ela tem que levar muito em conta as dimensões corpórea,
comunitária e natural/cósmica da vida humana.

3.4 Dificuldades quanto a forma de abordagem, o ponto de vista ou objeto formal => a
abordagem propriamente teológica da antropologia não é nada tranquila em nossa cultura. Seja
por sua negação mais ou menos direta e explícita; seja pela pluralidade e complexidade de sua
abordagem.

- Focalizando o problema da negação de Deus: “Se em outras épocas históricas a realidade de Deus
era algo aceito sem dificuldade e era, inclusive, a realidade a partir da qual em última instância tudo se
tornava inteligível e compreensível, no mundo moderno, sobretudo nos centros de poder e nas

34
camadas ilustradas, ela deixou de ser evidente, foi colocada sob suspeita e até mesmo negada” =>
Paul Ricoeur denomina os “mestres da suspeita”: Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud.

- Consequentemente, “a abordagem do ser humano do ponto de vista de sua respectividade e


relação com Deus tornou-se também problemática. E problemática não só no sentido de que essa
respectividade e relação do homem com Deus deixou de ser evidente, mas, mais radicalmente, no
sentido de ser posta sob “suspeita” e, inclusive, de ser negada. De modo que a abordagem do homem
pôde ser feita prescindindo de Deus e até mesmo em contraposição a ele”.

- “A afirmação de uma AT passa pela afirmação de uma “aliança” entre antropologia e teologia.
Ela depende tanto da afirmação da realidade de Deus e da realidade do ser humano, quanto da afirmação
da respectividade entre ambas as realidades, ainda que essa respectividade seja distinta em cada caso.
Negar a Deus ou afirmá-lo à custa do ser humano ou mesmo como algo que nada tenha a ver com
ele, é negar a possibilidade de uma AT.

- Nesse sentido, há basicamente duas formas de negar a Deus: “Uma, mais teórica, direta e explícita:
ateísmo. Outra, mais prática, indireta e sutil: idolatria”.

- “Mas também é possível afirmar a realidade de Deus de tal modo que se acabe negando a
realidade humana. Seja através de um maniqueísmo espiritualista mais ou menos radical (espírito
X matéria; bom X mau) que para afirmar a Deus tem que negar o homem. Seja através da
instrumentalização ideológica da religião em função de interesses econômicos, políticos,
culturais, de gênero etc., o que, em última instância, consiste na idolatria, isto é, na absolutização
ou no endeusamento dos próprios interesses travestidos de deuses (ídolos), mesmo que (normalmente!)
às custas dos interesses dos outros ou até de suas próprias vidas (os ídolos necessitam de sacrifícios...)”.

- E mais: “a própria negação da realidade de Deus é, em si mesma, negação da realidade humana.


Primeiro, na medida em que nega uma dimensão fundamental da realidade humana (ateísmo). Segundo,
na medida em que absolutiza/endeusa certos interesses, submetendo e sacrificando a eles até a vida
humana (idolatria)”

3.4.1 “No que diz respeito ao ateísmo, aparentemente é a forma mais radical de negação da realidade
de Deus, o maior inimigo das religiões e o maior perigo para a salvação da humanidade. Afinal,
nega direta e explicitamente a realidade de Deus; denuncia e combate abertamente a religião; nega de
modo mais ou menos radical uma transcendência na história”.

3.4.2 “Quanto à idolatria, além de ser uma forma muito sutil de negação da realidade de Deus,
afinal não nega explícita e formalmente a Deus, parece, em princípio, um fenômeno historicamente
superado. A não ser para aqueles que, mediante uma leitura fundamentalista da Escritura, reduzem
a idolatria à fabricação e à veneração de imagens ou a atitude de quem não participa das coisas da
Igreja”.

- Na prática, a idolatria “é muito mais atual, complexa e eficiente do que parece. Basta ver os
frutos que produz: o Deus a quem servimos se manifesta no modo como vivemos e pelos frutos que
produzimos (1 Jo 2, 6)”.

- Como característica bem peculiar, “A idolatria diz respeito, igualmente, a ateus e a crentes – a
própria crença, não obstante sua ortodoxia formal, pode se tornar uma prática idolátrica – e encontra
na vida dos “crentes” um terreno muito fértil porque convive, sem maiores problemas, com a confissão
35
formal e ortodoxa de Deus. Pode confessar com a boca o Deus de Jesus Cristo e, na prática, servir
ao deus-dinheiro, ao deus-poder, ao deus-fama, ao deus-religião etc.”

3.4.3 Dessa forma, podemos perceber suas diferenças fundamentais: “Se o ateísmo é uma postura
predominantemente intelectivo-teórica (consciência, ideologia, razão etc.), não obstante seu caráter
e suas implicações práticas; a idolatria é uma postura predominantemente práxica (o mais
determinante na vida), embora, como toda práxis, tenha um momento intelectivo essencial que deva
ser desenvolvido. Mais que afirmação/negação formal de Deus, há que se ver como Deus é negado
ou afirmado ou que Deus é afirmado ou negado na vida de uma pessoa ou de uma comunidade”.

3.5 A dificuldade em relação à especificidade cristã da Antropologia Teológica => é uma


dificuldade mais atual, complexa e desafiante! Por quê? Vejamos:

3.5.1 “Primeiro, porque o ambiente cultural em que vivemos é muito menos avesso e hostil ao
“religioso”, relativizando o decreto da “morte de Deus” e do “fim da religião” e suscitando o que alguns
chamam de “retorno do sagrado”.

3.5.2 “Segundo, pela pluralidade e complexidade que caracterizam o “religioso” e o “sagrado” em


nosso tempo, relativizando e dificultando enormemente sua caracterização e determinação”. Não é
nada fácil neste contexto dizer em que consiste o teologal e o teológico da vida humana.

3.5.3 “Terceiro, porque a própria tradição teológica cristã em seu diálogo com a filosofia greco-
helenista acabou relativizando excessivamente a vida concreta de Jesus de Nazaré em função da
determinação de sua essência permanente e imutável”.

3.5.4 “Certamente, sempre se afirmou e se continua afirmando na teologia cristã que a revelação de
Deus atinge seu cume e sua plenitude na vida de Jesus Cristo. E, como partir dessa revelação que tem
seu centro e seu cume em Jesus Cristo”.

- Mas, até que ponto essa é uma afirmação evidente, de tal maneira que se torna de fato um
“princípio conformador e configurador do discurso teológico e antropológico? Perspectiva
crítica.

- => “Em seu último livro, publicado postumamente, sobre O Espírito Santo e a tradição de Jesus,
Comblin recolhe e reafirma a crítica à tradição teológica desenvolvida sob o cânone da filosofia grego-
helenista. Embora carregando o tom na oposição entre o Deus dos filósofos (gregos) e o Deus de Jesus,
destaca com acerto as consequências negativas desse fato para a teologia cristã, particularmente no que
diz respeito ao caráter histórico-práxico da revelação cristã”.

- Embora tal discurso teológico “afirme que “Deus se revela em Jesus”, na prática, essa teologia
acaba partindo do “conceito filosófico de Deus dos filósofos gregos”, submetendo a ele a própria
revelação cristã de Deus e, assim, de alguma forma, ocultando o Deus de Jesus.”

- G. Faus: “O perigo, aqui, consiste em “aproximar-se de Jesus com uma ideia predeterminada” de
Deus e do homem. Dessa forma, “impedimos que o acontecimento de Jesus nos ensine algo
decisivo [sobre Deus e] sobre nós mesmos”.

- “Na verdade, esse tem sido um perigo e uma tentação constantes na história da teologia no passado,
mas também no presente. E isso, inclusive, quando se afirma explicitamente a intenção de falar de
Deus e do homem a partir de Jesus Cristo. É preciso levar a sério o caráter histórico da revelação
36
cristã e falar de Deus e do ser humano a partir da vida concreta de Jesus de Nazaré, o Cristo, tal
como aparece na Sagrada Escritura”.

3.5.5 “O Concílio Vaticano II, tomando a escritura como que “a alma de toda teologia” (DV 24;
OT 16), favoreceu e impulsionou a redescoberta do caráter histórico da revelação e, com isso, a
formulação do discurso teológico em categorias práxico-históricas. Isso possibilitou e facilitou a
redescoberta da densidade teológica da vida concreta de Jesus de Nazaré como lugar fundamental da
revelação do mistério de Deus e do mistério do ser humano – algo extremamente relevante e decisivo
para a AT”.

- No que diz respeito concretamente ao discurso teológico sobre o ser humano, a Constituição Pastoral
Gaudium et Spes, de modo particular nos números 10 e 22, como afirma Ladaria, teve o grande mérito
de estabelecer o “princípio” e indicar um “caminho para a construção de uma AT completa e para a
consolidação da disciplina sob forma unitária” – ainda que nem sempre tenha sido consequente com
esse “princípio” e esse “caminho”.

- A grande contribuição do Concílio para a disciplina AT: “o mistério do homem só se torna claro
verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado”; “na mesma revelação do mistério do Pai e de
seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao homem e lhe descobre sua altíssima vocação” (GS
22). De modo que, para se falar cristãmente do homem em sua respectividade e relação com Deus, é
preciso se voltar para a vida concreta de Jesus de Nazaré, em quem o Verbo de Deus se fez carne.

4 A necessidade de superar o dualismo antropológico presente ainda em nossa cultura e na


palavra evangelizadora da igreja (aqui seguiremos basicamente o autor Alfonso Garcia Rubio –
obra: Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs -)

4.1 Afirmação antropológica fundamental: TODO SER HUMANO É UM SER DE RELAÇÃO,


PORTANTO, SÓ PODE SER ANALISADO NESSE CONTEXTO.

* Na relação consigo mesmo, com o mundo, a realidade que nos cerca e, à luz da fé cristã, com Deus.
=> o problema dos dualismos

- Quem é o “ouvinte da palavra” de hoje? Será que a mensagem cristã consegue, de fato, atingir o
homem pós-moderno?

- Como falar hoje significativamente sobre o ser humano numa perspectiva teológico-cristã, tendo
como cenário um mundo transformado, com questões desafiantes, pós-moderno?

- “A urgência da luta contra os poderes que impedem a humanização do homem brasileiro e latino-
americano, não relegará o anúncio da verdade cristã sobre o homem ao âmbito das belas definições
idealistas que deixam intocada a realidade de miséria, de dominação e de exclusão em que se encontra
boa parte da população brasileira e latino-americana?” (G. Rubio)

- Há uma necessidade urgente de se fazer o deslocamento dos paradigmas (modelos) conceituais


teológicos essencialistas, e assumir a nova perspectiva “predominantemente antropológica”;

- Valoriza-se a dimensão sociopolítica do ser humano (teologia política); estamos em face dos atuais
desafios ecológicos (ecotelogia) – valorizando a união entre o ser humano e o meio ambiente;
superação da relação instrumentalista e manipuladora do cosmos;

37
- Valorização das culturas como mediação da construção de uma sociedade humanizante e salvífica.

4.2 O que é “dualismo”? Quais as formas contemporâneas do dualismo? De que forma essa
perspectiva penetra ideologicamente na concepção de ser humano? Quais são as consequências de uma
visão dualista para a compreensão do ser humano numa dimensão religioso-cristão? Quais os
problemas pastorais decorrentes dessa visão?

- Em síntese, o dualismo refere-se a uma contraposição de realidades que coexistem no mesmo


espaço, sendo que nessa perspectiva, haverá sempre uma relação de oposição-exclusão, isto é, uma
realidade necessariamente excluirá a outra. Por isso, esquematicamente, essa perspectiva mostra
sempre uma realidade acima de outra, caracterizando a oposição e a exclusão. A realidade que está na
parte de cima se opõe e exclui a que está na parte de baixo do esquema.

- A cultura ocidental europeia recebe forte influência do esquema dualista platônico => a doutrina
dos dois mundos: o mundo das ideias (da realidade divina, eterna e imutável) e o mundo das coisas
(mundo sensível, mutável, temporal, caduco, ilusório) => visão dicotômica do ser humano => forte
penetração do pensamento platônico na compreensão cristã do homem, do mundo e de Deus;

4.2.1 Esquema filosófico platônico => relação predominante de oposição; estrutura mental
predominante de oposição-exclusão:

IDEIAS -> MUNDO INVISÍVEL ->IMUTÁVEL -> ETERNO -> DISTINTO E


TRANSP.

coisas mundo sensível transitório temporal confuso e opaco

ORDENADO -> VERDADEIRO SER -> CIÊNCIA-> ALMA

caótico ser participado opinião corpo

4.2.2 Esquema dualista/dicotômico cartesiano => R. Descartes (séc. XVI) -> Modernidade:

*Corpo -> matéria espacial (“res extensa”) => mensurável matematicamente;

*Alma ou espírito ou consciência -> substância pensante (“res cogitans”);

*O corpo é uma máquina que funciona independentemente da alma;

- Consequência desta antropologia: o sujeito (consciência humana) está cortado da própria


corporeidade e vice-versa

- Porta aberta para o individualismo; isolamento, e as consequências nefastas de dominação e opressão


dos outros (pessoa concreta, classe, raça, sexo, povos etc.).
38
4.2.3 Dualismo moderado na vida e na teologia eclesiais:
- “Certamente a Igreja nunca aceitou um tipo de dualismo que levasse a considerar a matéria e o corpo
como intrinsecamente maus. A fé no único Deus criador (Deus bom) bem como a fé na encarnação
real do Filho de Deus evitou sempre a contaminação radical por parte do dualismo. Mais ainda: o
magistério da Igreja [...] procurou defender reiteradamente a unidade fundamental do ser humano,
contra as separações e divisões dualistas antigas e modernas. Pode-se afirmar com segurança que a fé
cristã, em toda a sua tradição, soube evitar as consequências mais negativas da visão dualista do
homem. Mas não pode impedir a sua infiltração na teologia, na espiritualidade e no conjunto da vida
cristã, embora na forma de um dualismo moderado. A matéria e o corpo não são desprezados como
intrinsecamente maus, mas são desvalorizados na mesma medida em que valorizam a alma ou o espírito
ou a consciência”. (G. Rubio).

* Esquema: Predomina a relação de oposição-exclusão.

ALMA -> ORAÇÃO ->TEORIA -> FÉ CRISTÃ__ -> IGREJA -> VIDA NO CÉU

Corpo ação práxis opções sócio-políticas mundo vida terrestre

VIDA RELIGIOSA -> correlativamente DEUS -> Jesus Cristo -> DIVINO etc.

Vida profana Homem humano

4.3 Tentativas de superação do dualismo


- Há algumas décadas, a Igreja católica no Brasil, em especial, procurou reagir contra a visão dualista
de Homem e da realidade, bem como contra seu influxo na vida e na reflexão teológica cristãs.

4.3.1 Mas, essa tentativa não passou simplesmente de uma reversão dialética: mudou-se tão somente
os pólos da relação, isto é, os mais descuidados anteriormente passaram a ser mais valorizado e os mais
cuidados passou a ser desvalorizados nessa visão. Vejamos esquematicamente:

CORPO -> ACÃO -> PRÁXIS ->OPÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS -> MUNDO

Alma -> oração -> teoria -> fé cristã -> Igreja

VIDA TERRESTRE -> VIDA PROFANA => HOMEM, Jesus Cristo HUMANO etc

Vida no céu -> vida religiosa Deus divino

- Predomina a oposição-exclusão também nesse esquema.

4.3.2 A justaposição estéril

- Essa “orientação antidualista (bem mais sutil e difícil de ser percebida) vem caracterizada pela mera
justaposição, em dois planos, dos dois elementos da relação. [...] De fato, a perspectiva primeiramente
do desenvolvimento integral e posteriormente da libertação integral foi aceita e assumida por muitos
cristãos (e certamente dentre os mais generosos). Na hora, porém, de articular as diferentes dimensões
39
implicadas nesta libertação integral, muitos deles tropeçam numa enorme dificuldade. Parece que a
vontade explícita e sincera de integração entra em conflito com uma estrutura mental subjacente que
frequentemente não vem à superfície da consciência e que tende a separar. E a julgar pelos resultados,
a força do inconsciente parece levar a melhor neste embate”. Vejamos a representação gráfica dessa
postura:

ALMA ORAÇÃO
CORPO AÇÃO

- Predomina a relação de oposição-exclusão

Dualismo na vontade humana: a oposição-exclusão é necessária em determinados tipos de confronto


em que deve predominar, mesmo, a oposição excludente entre os dois pólos. Em São Paulo: o "homem
velho" e o "homem novo" -> ótica paulina (Cl 3,5-15; Rm 6,3-11). A consciência humana experimenta
a concentração ética entre pecado, por uma parte, e abertura a Deus e aos irmãos, por outra. => em toda
a Sagrada Escritura – AT e NT. “A relação de oposição-exclusão deve guiar o comportamento humano
nos confrontos vivenciados no campo ético entre a fidelidade a Deus e fechamento ao seu apelo”. “Mas
é completamente inadequada para dar conta da riqueza do humano, no entrecruzamento e
complementaridade de suas dimensões positivas”.

4.3.3 Relação de integração-inclusão


- Diferentemente das anteriores, a perspectiva da integração-inclusão favorece uma compreensão mais
integral da experiência humana; vejamos seu esquema:

ALMA CORPO ORAÇÃO AÇÃO

- Análise das figuras: quais as diferenças em relação às outras perspectivas? O que significa para nós
e para o desenvolvimento pastoral, hoje, assumir esta perspectiva de integração-inclusão? De que
forma essa perspectiva nos ajuda a compreender a pessoa humana e Jesus Cristo?

- Do ponto de vista pessoal: em qual perspectiva você se encontra hoje? Quais seriam as dificuldades
reais para se fazer mudanças? Responda para você mesmo em oração.

40
Considerações finais

Compreender o ser humano, a vida humana, é um dos maiores desafios que se colocam à nossa frente,
em nossa vivência existencial histórica. E por mais que nos aproximemos dessa existência humana,
através dos diversos caminhos estruturados pelas ciências e pelas religiões, a fim de encontrarmos
respostas, ainda assim, cada resposta apontada por um caminho específico sempre nos levará a outras
tantas interrogações. Assim, à diferença de outros caminhos, o caminho trilhado pela Teologia, por
meio do viés antropológico- teológico, não que seja o único ou o melhor, mas é aquele que nos faz
encontrar respostas, a partir da luz da fé cristã, dentro de uma experiência de sentido. Qual sentido? O
sentido de uma transcendência, um para além de nossa imanência histórica. Pois é neste sentido que
fazemos a experiência do mistério do amor de Deus, Criador e Salvador. Dessa forma, também nós,
seres humanos, mergulhados em mistério, nessa experiência de sentido, nos encontramos com o
Sentido Absoluto, o Mistério Absoluto do amor de Deus, sentido maior de nossa existência.

_____________________________________________________________________

5. PERSPECTIVA BÍBLICO-TEOLÓGICA CONTEMPORÂNEA DA DOUTRINA DA


CRIAÇÃO DO HOMEM E SEUS DESDOBRAMENTOS ANTROPOLÓGICOS

- Toda referência teológica a respeito da fé na criação fundamente-se na fé bíblico-cristã, à qual mostra


“uma visão unitária de ser humano, chamado a viver em relação com Deus, com os outros seres
humanos e com a natureza”; e esta fé fundamenta-se absolutamente “na auto revelação de Deus como
criador e salvador”;
- “... a fé em Deus criador é fundamental na confissão de fé cristã. O Deus salvador que confessamos
no Símbolo da fé é o mesmo Deus criador de tudo quanto existe. “Creio em Deus Pai todo-poderoso,
criador do céu e da terra ...”
- A explicação teológica tradicional sobre a criação, “que parecia uma posse definitiva da expressão da
verdade” é abalada, na modernidade, pelo “avanço das ciências que vão demolindo a imagem antiga
de mundo”, na qual estruturava-se aquela explicação;
- O surgimento do “evolucionismo” questionava profundamente as afirmações teológicas tradicionais
da explicação teológica da criação do mundo e do homem => o foco nos dados bíblicos;
- Reação da exegese bíblica, que busca novos métodos baseada em estudos científicos, sobretudo em
relação aos textos da criação => metade do século XX;
- Resultado: não confundir a imagem de mundo apresentada nos relatos bíblicos com a mensagem de
salvação transmitida através daquela imagem;
5.1 RELATOS BÍBLICOS DA CRIAÇÃO DO HOMEM: O HOMEM COMO RESPOSTA DA
CRIAÇÃO AO DEUS CRIADOR
- No AT, a criação do homem assume lugar central na obra criadora de Deus (Gn 2,4b-25 e Gn 1,26-
31. Vejamos seu rico conteúdo teológico-antropológico:
5.1.1 A criação do ser humano segundo o relato Javista (Gn 2,4b-25)
5.1.1.1 Gn 2-3: O drama humano fundamental
- “A história da salvação inicia-se, para o Javista, com a criação da humanidade” => uma necessidade
do homem ser libertado de uma situação de não-salvação => há portanto a necessidade de dar uma
resposta a uma situação de ambiguidades, de divisões, de não-salvação => como sair dessa situação de
não-salvação?;
- Um dado exegético importante: “... não se pode compreender adequadamente a mensagem de Gn
2,4b-25 sobre a criação do homem, separando-a do conteúdo de Gn 3. Os dois capítulos formam uma
41
forte unidade tanto do ponto de vista literário colmo do ponto de vista da reflexão teológica”. Atenção,
nestes relatos encontram-se abundante material de origem mítica, que foram interpretados à luz da fé
em Iahweh.
- “Em Gn 3,3-24 é feita uma descrição sumária dos males, sofrimentos e ambiguidades que suscitam a
perplexidade do autor javista”;
- “Deve-se acrescentar ainda que a repercussão desta situação de não-salvação encontra-se igualmente
presente na vida social, nos diz o javista: Gn 4 – a violência destruidora e negadora do outro; Gn 6 – a
corrupção e a maldade se espalha pela humanidade toda; Gn 11 – a Torre de Babel – a vontade de
poder e dominação do outro e do próprio Deus.
- A pergunta fundamental: qual e a causa dessa situação de não-salvação em que se encontra a
humanidade toda?
- A resposta do Javista surpreende, em relação às respostas no âmbito religioso mesopotâmico: a causa
está no próprio homem (Gn 3,1-7; Gn 4 e 11,1-9). O javista não culpa o destino e nem o capricho dos
deuses. “A explicação está na transgressão do homem, no seu culposo e voluntário afastamento do
desígnio de Iahweh”.
- Nesse sentido, fica claro que não se trata de uma vontade divina, muito pelo contrário. Então, qual é
a vontade de Iahweh para o homem e para o mundo?
- “A bela imagem do paraíso responde a essa pergunta (Gn 2,4b-25) => o paralelismo entre Gn 3
(situação de maldição) e Gn 2 (situação de benção): homem e mulher são companheiros e não existem
relações de dominação; na intimidade com Deus, fonte da vida, não aparece o fantasma da morte; a
terra é generosamente fértil para com o homem; o trabalho pela sobrevivência é suave e nada
escravizante; existe harmonia entre o homem e os animais” ...
5.1.1.2 Qual a real mensagem de Gn 2,4b-25?
- O texto constitui uma narrativa simples, imaginativa e de grande liberdade de estilo, mas com um
conteúdo teológico profundo;
- Alguns pontos importantes do texto merecem ser destacados:
*A centralidade do texto está na “atitude benevolente de Iahweh para com o homem;
*No texto encontramos marcas culturais dos mitos caóticos mesotâmicos: a terra parecia um deserto,
e Deus faz surgir um rio para irrigar a terra, mas falta o homem para cultivá-la;
*Após a introdução, o autor nos relata de forma concisa a criação do homem. Gn 2,7 é uma narrativa
marcada pela tradição mítica – modelado com o barro da terra -. A imagem de Deus como oleiro é
comum entre os povos semitas.
*Deus comunica um sopro vital (‘rûah’) à esta estátua de barro. Trata-se do hálito com que todo ser
vivo dá sinais de vida;
*Mas à diferença dos animais, o homem é capaz de conhecer a natureza destes (Gn 2,19-20), é senhor
do seu destino (Gn 3), e vive uma existência dialogal (Gn 2 e 3); “O que supõe que o homem não é
apenas um ser que vive, mas também um ser que é livre e responsável, com uma responsabilidade em
relação ao mundo que os animais não podem ter.”
*O homem (‘adam) é terrestre, da “argila do solo” (‘adamah), não é divino nem emanação do divino.
Mas, recebe, como dom de Iahweh, o “hálito da vida” (rûah). “Vida proveniente da ação amorosa de
Iahweh para com o ser humano”;
*O homem é colocado por Iahweh no jardim do Éden “para o cultivar e guardar (Gn 2,15); a proibição
de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,16-17). Comer deste fruto significa, em
última análise, colocar-se no lugar de Deus, não aceitando o dom da criação e rejeitando a própria
criaturidade; querer suplantar a Deus, autodivinizando-se, significa erigir a mentira como princípio do
próprio existir, condenando-se assim, à autodestruição. Não aceitar a Deus como Deus, isto é o pecado
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na sua última radicalidade. Pecado que coloca o homem e o mundo, por causa do homem, numa
situação miserável de não-salvação;
*O conjunto da narrativa sobre a criação da mulher (Gn 2,18-25) está dividido em três partes
harmoniosamente unidas entre si mediante uma ordem progressiva:
1ª) “Não é bom que o homem esteja só” (v.18): o ser humano foi feito para o diálogo, não para o
isolamento negador da relação com outros seres humanos. O ‘adam é um ser sociável. É necessário o
encontro com o ‘outro’ na relação pessoal para quie a experiência humana seja humana mesmo.”
2ª) “Revisão do mundo animal” (vv. 19-20): os animais são importantes auxiliares do homem, mas não
são seus parceiros. Neles não encontra o ser humano o ‘outro’, a relação de reciprocidade buscada.”
3ª) “Criação da mulher” (vv. 21ss): A mulher é tão humana quanto o pode ser o homem. Sublinha-se
a igualdade fundamental, na qualidade de seres humanos, do homem e da mulher. O texto bíblico fala
da mulher como do auxiliar correspondente ao homem e pretende dizer, com isso, que ela, enquanto
ser humano, é para ele um auxiliar vital.
*O homem é um ser de decisões. “Na teologia da criação, o homem é chamado a se decidir, não é
obrigado a dizer sim ao Criador. E o homem, infelizmente, responde não (Gn 3), iludido em seu sonho
de infinito. Esquece com facilidade que deve simplesmente responder e se auto-engana, julgando-se
no lugar de Deus. Fica configurado assim o drama fundamental da existência do ser humano: é
chamado, por uma parte, a viver a diferença (o homem é diferente de Deus e um ser humano é diferente
dos outros seres humanos), pois o Outro não é ele e os outros não são ele. Por outra parte, no entanto,
o homem está inclinado a se fechar na própria identidade (falsa, neste caso), negadora da diferença”.

6 DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DA PESSOA NA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA


- O conceito de pessoa => surge no contexto das discussões cristológicas e trinitárias no âmbito cristão
=> dois aspectos fundamentais devem ser levados em conta: a articulação fundamental de dois aspectos
constitutivos do ser pessoal: a interiorização ou imanência e a abertura ou transcendência;
*Dimensão de interiorização ou imanência: a pessoa deve estar centrada em si própria, orientada para
a própria interioridade. Desdobramentos dessa dimensão:
> Auto possessão: a pessoa se auto pertence, possui autonomia própria; consequentemente, a pessoa
não deve ser propriedade de outro. Qualquer tipo de escravidão é um atentado direto contra a dignidade
da pessoa;
> Liberdade e responsabilidade: a pessoa é capaz de escolher determinados valores por si mesma, a
partir de si mesma. É chamada a se auto decidir e, em consequência, a optar. É chamada a ser livre.
Consequência: repugna à dignidade da pessoa todo tipo de manipulação. O respeito real à liberdade e
responsabilidade concretas de cada pessoa é indispensável para o crescimento de humanização do
homem;
> Perseidade: a pessoa tem em si mesma a sua própria finalidade. No seu agir, a pessoa, acima de tudo,
se auto realiza como ser pessoal. Por isso, a pessoa não deve ser medida com critérios meramente
autoritários. Consequentemente, entende-se que a pessoa não é objeto ou um instrumento para ser
usado e depois deixado de lado. Tratar a pessoa como mero instrumento para uma finalidade exterior
à própria pessoa é outro grave atentado contra a sua dignidade;
OBS: “É verdade que a finalidade última do homem é Deus, mas trata-se do Deus-Ágape revelado por
Jesus Cristo, fundamento do ser pessoal do homem, e que, longe de instrumentalizá-lo, o impulsiona a
se auto realizar-se conforme a sua realidade pessoal.”
*Dimensão de abertura ou transcendência: a dimensão de imanência vista anteriormente, não
significa, de forma alguma, o isolamento da pessoa! Muito pelo contrário: a pessoa só pode ser

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verdadeiramente ela mesma quando se auto transcende. Destacamos aqui os seguintes aspectos
fundamentais dessa dimensão:
> Abertura ao mundo: há duas atitudes fundamentais que o homem, enquanto criatura e pertencente a
este mundo, devem estar bem articuladas: uma atitude transformadora do mundo com responsabilidade
e a atitude de percepção-celebração do seu caráter simbólico não utilitário;
> Abertura aos outros: a liberdade, autonomia e auto finalidade da pessoa se realiza na relação, no
diálogo, no encontro, na abertura aos outros seres pessoais; acentuação das relações políticas, no âmbito
social e na luta pela justiça;
> Abertura a Deus: é o aspecto mais fundamental da pessoa, privilegiado tanto pelo AT como pelo NT.
A relação com Deus, relação única e exclusiva, faz de cada indivíduo humano uma pessoa, e não apenas
mais um indivíduo da espécie humana. É em Jesus Cristo que percebemos como é extraordinária a
dignidade de cada ser humano concreto, isto é, de cada pessoa, e mais ainda, n’Ele percebemos como
a pessoa se realiza sobretudo na relação com o Tu divino, um Deus certamente com características
pessoais. A abertura a Deus-Ágape implica no compromisso ético com a justiça e com o amor-serviço
solidário. A maior aceitação do Deus-Ágape maior compromisso com o ser humano e vice-versa.
- O crescimento pessoal se dá na dinamicidade Inter relacional intensa destas duas dimensões. A ideia
de deixar o copo encher para depois transbordar é falsa. O amadurecimento da pessoa humana se dá na
relação dialética relacional entre a nossa interioridade, cheia de limites, e a nossa capacidade de
transcender essa perspectiva de imanência. Não vale aqui a posição de suplantar uma dimensão em
relação à outra. O resultado é nefasto; negativo; empobrece a relação das pessoas e a relação com o
próprio Deus-Ágape. Empobrece a dinâmica da pastoral, no âmbito eclesial e comunitário.
Portanto, o nosso maior desafio como pessoa humana, imagem e semelhança de Deus, constitui na
constante e permanente atualização de nossos esforços no sentido de que nos tornemos cada vez mais
pessoa humanas, capazes de, com nossas atitudes e ações, humanizar as nossas relações através de um
diálogo verdadeiramente aberto e transparente e verdadeiro. Como cristãos, entendo ser esta uma das
tarefas mais desafiantes e comprometedoras, mas a que mais dará condições de possibilidade de nos
realizarmos como pessoa humana e nos realizarmos como Igreja-comunidades, enviados do Pai a este
mundo para trazer a paz, a harmonia, a solidariedade e a fraternidade nessa nossa história concreta.
Algumas considerações
Compreender o ser humano, a vida humana, é um dos maiores desafios que se colocam à nossa frente,
em nossa vivência existencial histórica. E por mais que nos aproximemos dessa existência humana,
através dos diversos caminhos estruturados pelas ciências e pelas religiões, a fim de encontrarmos
respostas, ainda assim, cada resposta apontada por um caminho específico sempre nos levará a outras
tantas interrogações. Assim, à diferença de outros caminhos, o caminho trilhado pela Teologia, por
meio do viés antropológico-bíblico-teológico, não que seja o único ou o melhor, mas é aquele que nos
faz encontrar respostas, à luz da fé cristã, dentro de uma experiência de sentido. Qual sentido? O sentido
de uma transcendência, um para além de nossa imanência histórica. Pois é neste sentido que fazemos
a experiência do mistério do amor de Deus, Criador e Salvador. Dessa forma, também nós, seres
humanos, mergulhados em mistério, nessa experiência de sentido, também nos encontramos.

A TEOLOGIA DA GRAÇA E O MAL COMO PROBLEMA TEOLÓGICO

- Afinal, o que vem a ser “graça”? Qual a relação entre “graça” e “justificação pela fé”? Quais as
questões fundamentais que envolvem a Teologia da Graça? Qual a sua relação com a Antropologia
Teológica? Qual a incidência pastoral da reflexão teológica da graça?
- Com essas questões, apresentaremos as linhas fundamentais que norteiam a reflexão sobre o tema da
graça numa abordagem mais atual. Além de autores importantes que discutem esse tema, também nos
apoiaremos nos documentos eclesiais, que, seguindo a Tradição da Igreja, procuram dar consistência à
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sistematização da doutrina da graça, no seio da comunidade cristã. Objetivamos possibilitar uma visão
crítica, de diálogo e de aprofundamento, a partir do tema da teologia da graça, e assim, com efeito,
dinamizar os corações crentes para estarem em constante busca da experiência da graça de Deus,
amadurecendo cada vez mais sua resposta de fé ao Deus-Ágape, revelado pelo seu Filho, Jesus Cristo.
Traremos também uma breve reflexão sobre o tema da origem do mal, que, a meu ver, considero
importante, dentro dessa temática da graça, esclarecer pontos importantes, principalmente do ponto de
vista teológico e pastoral.
1. Ponto de Partida: a situação do homem pecador

A reflexão bíblica e sistemático-teológica “sobre a justificação e a graça tem que tomar como ponto de
partida obrigatória a situação do homem pecador [...], para, a partir daí dar conta do processo que
conduz à sua justificação. Na situação de partida, o ser humano está afetado por uma real incapacidade
de alcançar a salvação por si próprio, mostrando assim “a necessidade de uma iniciativa salvífica
divina”. Em face da situação existencial de pecado e da constante oferta da graça, ao ser humano,
livremente, cabe uma tomada de decisão. Mas, como se processa essa decisão fundamental em nossa
vida, a partir da oferta amorosa da graça de Deus? Como entender esse processo de “libertação da nossa
liberdade”? Como, para nós, hoje, soa a ideia de “salvação”, “graça” e “justificação” nessa realidade
de América Latina e Brasil? Salvos de que e para quê?
2. A nossa salvação é iniciativa absoluta de Deus
- A doutrina cristã da graça afirma categoricamente que a iniciativa da nossa salvação cabe total e
exclusivamente a Deus, ao desencadear um processo de amadurecimento no qual estimula e capacita a
liberdade (justificação) humana para acolher sua oferta de salvação. Mas, onde, na vida do homem,
esta salvação acontece? Quando de fato ele está vivendo comprometido com o Reino de Deus, ou como
se dizia tradicionalmente, em que condições está ele em estado de graça?(cf. França, 1991).
- Importa considerar aqui o problema da participação do agir próprio do ser humano nessa dimensão
salvífica. Dessa forma perguntou-se: “à margem da graça, o que pode e o que não pode o homem, com
vistas ao agir bem e, além disto, a seu fim último?” => o problema pelagiano e semipelagino (séc. V):
“o homem está apto para cumprir, por si só, a lei natural, mais ainda, para realizar o ideal moral
evangélico e auto salvar-se”. Interessante notar que não se trata de uma questão secular, mas que, de
certa forma, encontramos nuances dessa posição pelagiana ou semipelagiananos dias de hoje.
2.1 O testemunho das Escrituras a esse respeito?
- “Com efeito, tanto o Antigo como o Novo Testamento desautoriza a consideração pelagiana das
possibilidades reais do homem sem a graça no plano ético-religioso”. A constatação de uma
pecaminosidade universal – e quase conatural – é um dos dados inquestionáveis da antropologia bíblica
=>Textos vétero-testamentários: Gn 6,5-6; 8,21; Sl 51,3-7, etc. => referendados na primeira seção da
Carta aos Romanos (1,18-3,23) com sua lapidar conclusão: “todos pecaram e todos estavam privados
da glória de Deus”;
- Perspectiva paulina:
- Paulo também acrescentará uma dramática descrição do interior do homem pecador; habitado pelo
pecado que o escraviza, não pode fazer o bem que quer, há de fazer o mal que não quer, e não tem
nenhuma possibilidade de sair, por sua própria iniciativa, desta situação desesperada (Rm 7,14-24);
* Horizonte de sua doutrina: Paulo compreende todo o evento salvífico em Cristo sob o prisma
conceitual da justificação, de tal modo que para ele o acontecimento da graça identifica-se com o
acontecimento da justificação. Importância do enfoque do modelo paulino: está mais acentuadamente
em confronto com o pecado do que os outros modelos; e os seus destinatários: o judeu amigo da lei,
que acreditava poder alcançar sua salvação pelo cumprimento exato da lei, escapando assim por suas
próprias forças do pecado.
* Expressão evidente nessa doutrina é o conceito paulino de fé, que significa acolher a ação salvífica
de Deus no Cristo crucificado e ressuscitado. Ela é propositadamente acentuada como alternativa

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salvífica com relação à lei, reflexo de sua própria experiência espiritual, bem como de seu pensamento
teológico: “se a justiça vem pela lei, então Cristo morreu em vão” (Gal 2,21).
- Na mesma direção o Jesus do quarto Evangelho adverte a seus discípulos que, separados dele, não
podem dar frutos de salvação (Jo 15,5).Outros textos joaninos descrevem o estado do pecador como
um autêntico estado de alienação: Jo 3,20; 8,34; 1Jo 5,19. O Jesus dos Sinóticos se expressava
analogamente: Mc 10,26-27 Perspectiva dos Sinóticos Nos Evangelhos Sinóticos aparece claramente
a possibilidade do homem sair da condição de pecador somente a partir da iniciativa salvífica de Deus.
Absolutamente, é Deus que vai livremente ao encontro do homem, e do homem pecador. Verdade
central da fé cristã, manifestada na totalidade da vida de Jesus Cristo – suas ações e palavras; sobretudo
em sua doação radical na cruz.
- Na perícope de Lc 18,9-14, onde encontramos o fariseu e o publicano em oração no Templo,
evidencia-se duas atitudes bem claras em relação ao tema da justificação: na atitude do fariseu
manifesta-se seu ensinamento por ter cumprido a Lei por seu próprio esforço, tem consciência de que
é justo, e ele se regozija de si mesmo por isso e pelo seu feito e busca agora a sua recompensa, a
salvação; por sua vez, o publicano tem uma atitude bem contrária: ele, sem nada apresentar a Deus
nessa situação, desesperadamente “se reconhece pecador e entrega-se confiante à graça de Deus,
suplicando a sua misericórdia; confessa sua total dependência da graça, honra a Deus e é justificado”.
Fica o questionamento: quem será salvo? Justificado? “Deus abala assim a confiança que os “devotos”
põem neles mesmos, em suas boas obras, querendo se encarregar por si mesmos de sua justificação; já
o fiel entrega-a humildemente a Deus, o único que a pode levar a cabo”; - Indicamos aqui alguns textos
que alicerçam esse ensinamento, o qual explicita a própria práxis de Jesus, “a qual tem origem em sua
própria experiência de Deus” - (Mt 18,23-27; 20,1-15; Lc 15,1-7; 7,41-43; 15,11-32;
3 Uma perspectiva teológica mais atual da doutrina da “justificação”
- A sempre atual mensagem da justificação encontra seu significado em duas dimensões fundamentais:
a 1ª) “na afirmação categórica de que nossa salvação é obra de Deus em nós, e somente a Ele cabe a
iniciativa e a execução”; na 2ª) “que esta se passa entre o homem e Deus, possibilitada por mediações
necessárias, mas excluindo ‘intermediários’ que impedissem esta imediatividade ou que poupassem o
homem do compromisso radical da fé; no fundo a nossa salvação depende de nossa decisão pessoal”;
- E esse compromisso de vida com Deus, revelado e possibilitado em Jesus Cristo, dá-se na liberdade,
sem intermediações; nenhuma intermediação (Igreja, papa, Bíblia, dogma, testemunho, profissão de
fé, devoções, cursos, pregações) arrancará de nós uma decisão pessoal; será sempre “uma instância
crítica” em relação ao culto das obras pelas obras; crítica no sentido das obras que se tornaram
autônomas com o tempo, “erigindo-se em condições prévias para a justificação”; “é a constante
tentação de farisaísmo que acompanha sempre a Igreja ...”;
- Este espírito das “obras é fomentado pela inércia, pela ignorância e pela preguiça na atividade pastoral
da Igreja, e chega a ser muito popular por oferecer critérios simples e superficiais para uma pretendida
adesão a Deus”.
- “Quem faz uma experiência profunda da realidade expressa pelo termo ‘justificação’ vive uma
autêntica libertação do peso infernal” de uma sociedade consumista, escravizante, excludente, que só
visa a lucratividade, também marcada pela autoreferencialidade;
- Quando fazemos uma verdadeira e clara e profunda experiência das “nossas limitações e
deficiências”, saberemos ter a consciência de ser amados por Deus, não se sentindo “coagido a se
justificar desesperadamente aos olhos dos outros através de realizações, sucessos” e aumento de capital
(obras). Perceberemos de fato que nossa vida se fundamenta no Deus que nos ama, e para o qual, temos
“um valor único”. Então seremos livres para sermos nós mesmos, capazes de tomar “distância crítica
com relação a esta sociedade de produção e consumo”, cujos valores serão automaticamente
“relativizados”;

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- Experimentamos, no fundo, que tudo o que nos enriquece realmente, que nos realiza plenamente, não
provém de nós mesmos, e “que o sentido e a justificação” de nossa existência, nossa liberdade e nossa
identidade nos são doadas. Caminhos para alcançarmos, de fato, uma felicidade fundante.
4 Justificação ou Libertação?
- Mudança de contexto da problemática paulina da justificação => atualização, contextualização são
termos fundamentais para compreendermos profundamente a mensagem bíblica e, de modo particular,
a problemática paulina da justificação; tema em foco agora. Vejamos:
- Entre o contexto propriamente paulino e o nosso, atual, podemos dizer que há um elemento comum:
a opressão. E esta implica em uma necessidade fundamental: a libertação. Em Paulo, estamos numa
problemática judaica: A Lei e as regras religiosas, vistas como fardos pesados. Para nós hoje, o que
nos oprime “são as estruturas injustas da sociedade onde vivemos, o arbítrio dos que detém o poder
político e econômico”, a divisão entre oprimidos e opressores, “a concentração crescente do capital
com o consequente aumento da miséria, a ênfase no consumo, na eficácia na produção e no
desenvolvimento às custas de valores humanos superiores, a marginalização de enormes faixas da
população que não participam do progresso apesar de serem as mais exigidas por ele”. É neste contexto
que as pessoas anseiam por sua libertação, pois estes as escravizam, solapam a sua dignidade como
imagem de Deus; contexto imoral de exclusão. São lançadas na marginalidade, e tudo aquilo que
comporta essa realidade nas periferias das cidades. - É fundamental aprofundarmos uma nova
compreensão do significado de “salvação”, trazida por Jesus Cristo. Ela extrapola a visão antiga,
espiritualista, que focava somente na dimensão intimista da “salvação da alma”; Ao contrário, Jesus, o
Cristo de nossa fé, nos trouxe a salvação integral do ser humano; ela envolve a totalidade existencial
do ser humano, homem e mulher, em todas as suas dimensões.
“A libertação socio-política-econômica está implícita na salvação cristã”. Acrescentaria também a
dimensão ecológica alcançada pela graça.
- Mas, cabe aqui uma questão importante: “Na libertação total do homem onde se encontra a dimensão
especificamente teológica, ou seja, como se relaciona com esta totalidade a ação salvífica de Deus em
Jesus Cristo?”.
4.1 A relação profunda entre a libertação da liberdade e a libertação social
- Inicialmente, respondemos a essa questão afirmando que “a necessidade de termos nossa liberdade
profunda libertada pela ação divina (dimensão teológica) a fim de podermos realizar uma autêntica
libertação (sócio-político-econômica) do homem, temos que mostrar a insuficiência radical de qualquer
libertação na qual o homem, como agente transformador da sociedade, não esteja fundamentalmente
libertado de seu egoísmo”;
- A razão é simples: porque todo “o processo de libertação pode ser também escravizante, suscitando
novas tarefas libertadoras”;
- Constata-se esse fato, porque nesse processo vai se consolidando uma inversão na qual vão se dando
maior importância aos meios de transformação da sociedade, e os fins (realização integral) do homem,
que são ideais, ficam em segundo plano; aos poucos os meios vão se tornando espaço de privilégios e
poder. Exemplo, a análise de Marx em relação à produção de mercadorias... Essa inversão também se
constata nos meios políticos, sociais e religiosos;
- O desafio maior está em se sentir realmente livre em relação aos meios nesse processo de libertação
integral do humano;
- E a revelação nos mostra que essa libertação da nossa liberdade nos é dada gratuitamente na
encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
- “A ação de Deus em nós leva-nos a amá-lo sobre todas as coisas, de todo coração (liberdade
profunda), ela nos permite relativizar e tomar distância dos meios de libertação, bem como escapar da
inclinação egoísta de utilizá-los para si”;

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- “As condições injustas de vida são consequências são consequências da liberdade do homem, são
fruto do pecado”; não basta apenas uma libertação social, é necessário que haja uma conversão
constante do coração, se não tais processos de libertação continuarão a ser ilusórios.
4.2 Fundamentação bíblico-teológica da expressão “libertação da liberdade
- Verifica-se, portanto, que o termo “libertação da liberdade” tem o mesmo significado dado por Paulo
a partir da sua expressão “justificação”. Consegue o termo libertação exprimir o evento salvífico de
Cristo?
- A doutrina da justificação não é o único modo de se expressar a noção a salvação cristã. Em Paulo,
na Carta aos Coríntios, por sua vez, a coloca em segundo plano, deixando evidenciar o conceito de
libertação; comparando essas expressões na carta aos Gálatas, veremos que a justificação pela fé,
presente na primeira parte da carta, “é mais precisa e teológica”; a libertação da liberdade, mais
frequente na segunda parte da carta, tem uma grande força apelativa; mas as expressões se completam
de certo modo”.
- Na carta aos Romanos também veremos que “a mensagem da justificação corrige uma possível falsa
compreensão da liberdade, ao acentuar que o homem é escravo do pecado, impotente para o bem, e
que deve receber e experimentar sua libertação como um dom de Deus. Também o conceito de
libertação da liberdade corrige uma interpretação demasiado passiva da justificação, bem como afasta
dela o perigo latente de introversão”.
5 “A libertação da liberdade para o amor e a justiça”
- Vimos que a salvação é um dom de Deus, gratuito e imerecido, que liberta a nossa liberdade profunda
do egoísmo; mas essa ação salvífica de Deus em Cristo (redenção) só se torna uma realidade no homem
se for acolhida na fé (justificação subjetiva);
- Mais concretamente, o que é essa libertação da liberdade profunda, ou mais tradicionalmente, como
passamos do estado de pecado ao estado de graça?
- Reafirmamos que a liberdade profunda diz respeito à totalidade ser humano; a própria pessoa,
“enquanto resultado de seus atos livres e enquanto se constrói a si mesma” no tempo; salvação ou
perdição diz respeito ao processo de “eternização da própria pessoa nesse processo de construção de si
mesma: “uma vida orientada para o egoísmo ou para Deus”.
- Dessa forma, à medida que se responde positivamente ao evento salvífico de Deus em Cristo,
implicará na “atuação da liberdade profunda para Deus”, constituindo assim na “atitude religiosa
fundamental, que compromete “a totalidade da pessoa humana na entrega absoluta de si a Deus” (Mt
22,37; Mc 12,30; Lc 10,27);
- Essa resposta positiva do homem para Deus, motivada pelo próprio Deus, recebeu vários nomes no
NT: metanóia (sinóticos), fé (São Paulo) ou amor (São João);
- “Na antropologia bíblica o nível do coração corresponde ao nível da liberdade profunda, local onde
a pessoa está intimamente presente a si mesma numa unidade mais primordial da inteligência e da
vontade, fonte e sede de sua vida religiosa-moral e de suas opções decisivas. ”
5.1 O “ágape” (amor) cristão
- Importante sublinharmos o significado do alcance desse amor (ágape): atinge a dimensão ontológica
da pessoa como um todo; e é nessa entrega ao outro da totalidade absoluta de seu ser, de si mesmo, que
se encontra a realização plena da pessoa; nossa liberdade profunda voltada para Deus já nos permite
viver “na terra a atitude que, eternizada, vai constituir o céu”: “o amor a Deus é pois o próprio núcleo
da salvação”.
- “Onde estiver presente este amor aí tem início já a salvação; dele não pode prescindir sacramento
algum, dele não pode prescindir fé ou contrição alguma, se querem mediatizar de fato a salvação
oferecida em Cristo”.

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- Mas, para quem permanece fechado em si mesmo, narcisicamente egoísta, fixado em si mesmo, não
faz a experiência desse dom gratuito da liberdade profunda que Deus nos agracia em Cristo;
- Deixemos claro também, pelo que viemos refletindo aqui, que não há amor ou gestos de amor
abstratos, fantasiosos, espiritualóides; intimistas, tão somente; o amor é dom da pessoa que se
autentifica em ações concretas; “depois de feita a decisão prévia fundamental pela liberdade profunda
são tais atos, contudo a expressão e a prova de autenticidade do amor” (Jo 14,15; 14,21; 15,10; 1Jo
2,4s);
- “Por aí já vemos que a fé entendida apenas passivamente não é a que justifica, que o amor que fica
em sentimentos ou palavras não nos transforma (1Jo 3,17s). Logo, amor a Deus autêntico nasce, vive,
cresce, se auto testemunha a partir dos atos concretos, que podem ser atos de outras virtudes, as quais
devem sua existência ao estímulo superior do amor”; dessa forma, toda e qualquer “virtude cristã só é
tal se, de fato, é animada pelo amor”.
- Existiria uma mediação desse amor a Deus específica, ou melhor, por excelência, na qual possamos
perceber em absoluto a nossa orientação fundamental? Sim. O amor fraternal. O amor só se dá entre
pessoas, logo, “é aí que Deus se faz presente;
- “Este amor fraterno pode constituir a atitude fundamental do que ama e neste caso ele diz a totalidade
do homem em doação, identificando-se com a sua orientação profunda de vida...” O “outro” e não o
“próprio eu”, portanto, se tornam a razão fundamental do amor autêntico; Assim, a “ágape cristã é
simultânea e necessariamente amor a Deus e amor ao próximo”;
- Então, concretamente, a presença da graça em nossa realidade humana se constitui no amor em ato
compromissado com o próximo.
5.2 O amor ao próximo nos exige um compromisso com a justiça, que lhe é inerente.
- O compromisso com o outro, o próximo, é o lugar da ação graciosa de Deus. Disso, deduz-se que o
ser humano é o mediador a graça de Deus por excelência; e inerente a este compromisso, está “a
dimensão de luta pela justiça”;
- “Se esta é a nossa liberdade libertada então tudo o que nos torna mais livres (e, portanto, mais voltados
para nossos semelhantes) é graça, é ação salvífica de Deus”. E essa ação ‘será sempre mediatizada por
realidades deste mundo: natureza, acontecimentos e sobretudo, pessoas; pois são elas as “responsáveis
pelos acontecimentos ou pelo nosso modo de vê-los ou de ver a natureza”;
- E Jesus Cristo é a mediação humana da salvação de Deus por excelência (1Tim 2,5; Jo 1,16); Ele é
sinal (sacramento, manifestação) do amor de Deus em sua vida e em suas palavras pela sua doação ao
Pai e à humanidade. “O ‘sacramento do irmão’ (Blathasar) funda-se sempre no sacramento de Deus,
que é Cristo”.
- Sendo assim, a Igreja tem um papel fundamental no sentido de que “seja de fato uma comunidade
libertadora, um campo onde a liberdade cristã possa medrar e desabrochar, onde a autoridade signifique
serviço e não poder, e as prescrições estejam sempre subordinadas ao amor, que no fundo é o único
que conta”;
- Acrescentemos ainda que a ação salvífica de Deus é mediatizada também “pelos apelos” dos que
sofrem, marginalizados, dos pobres, do egoísta solitário, dos oprimidos, do inimigo, apelos estes que
são dirigidos à nossa liberdade; “o necessitado diante de nós dilata as possibilidades do nosso
coração...”
- A injustiça é fruto de uma sociedade mergulhada no egoísmo (pecado) – recusa do amor de Deus, e
que se reflete nas estruturas injustas, obstaculizando a ação salvífica de Deus (libertação das
liberdades), como acontece nas comunidades; Essas estruturas injustas “geram novas injustiças, as
atitudes egoístas produzem novas atitudes egoístas; são a concupiscência social: consequência do
pecado e levando ao pecado. “Além disso destroem na fonte as tentativas de se concretizar o amor
fraterno, pela sua inviabilidade dentro das leis e princípios desta desordem estabelecida, onde o critério
último é o lucro, e não o homem”;
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- “Diante desta situação obstaculizante, injusta e alienante, o amor cristão reveste-se necessariamente
de uma função crítica com relação a esta sociedade, deixando nascer do seu interior a denúncia
profética que exige justiça” para os homens, mulheres, jovens, idosos e crianças;
- O amor fraterno implica revestir-se da luta pela transformação social, a solidariedade com os
marginalizados, o não conformismo com uma sociedade capitalista de consumo; “esta práxis
libertadora passa a ser a mediação humana da ação salvífica de Deus, capaz de influir sobre outras
liberdades para a libertação integral” do ser humano, em nosso contexto de América Latina e Brasil;
- As Escrituras fundamentam essa práxis libertadora como compromisso cristão: “Aí não se cabe
conhecer a Deus (leia-se amar a Deus) num contexto de injustiça (Jer 22,13-16; Os 4,1); a justiça para
com seu semelhante é a instância crítica suprema, mesmo com relação ao culto (Is 1, 10-17), chamando-
nos a atenção para as condições de um culto autêntico”;
- “O NT continua na mesma linha, sem amor fraterno não se é conhecido (amado) por Deus 1 Jo 3,17s;
1 Jo 4,7s). Aqui nem mesmo podemos distinguir amor e justiça; o preceito centralde Lev 19,18
(“amarás o teu próximo como a ti mesmo”) se apresenta como a síntese de uma série de proibições da
mais rigorosa justiça (Lev 19,11-18) e a única vez que Jesus explicou este preceito colocou-nos diante
de um homem que sofrera injustiça e violência (Lc 10,25-37);
- “O compromisso de Jesus Cristo é o compromisso pelos irmãos, e o compromisso pelos irmãos na
América Latina é o compromisso pelos pobres (Puebla 1134-1165) como tão bem exprimiram os bispos
latino-americanos: ‘cremos que a revisão do comportamento religioso e moral dos homens deve
refletir-se na esfera do processo político e econômico de nossos países; por isso convidamos a todos,
sem distinção de classes, a que aceitem e assumam a causa dos pobres, como se estivessem assumindo
e aceitando sua própria causa, a própria causa de Jesus Cristo’”.
6 A propósito de uma breve reflexão sobra a relação entre graça e vida sacramental
- Devido a uma concepção “coisista” da graça, “os sacramentos ainda são vistos, por boa parte dos
católicos, como ritos mágicos que concedem graça; e como somente com esta poderemos nos salvar,
compreende-se a hipertrofia da sacramentalização na pastoral da Igreja”.
- Em outra perspectiva, com relação à ação pastoral, a Igreja deve focar muito mais no “compromisso
pessoal do cristão, que tornará sua participação nos sacramentos, como celebração e intensificação do
mesmo, uma participação mais autêntica e eficaz;
- “É preciso que renunciemos uma vez por todas à concepção falsa, mas muito arraigada nos católicos,
que considera os sacramentos ritos que nos dão a graça com mais facilidade, como se Cristo os tivesse
instituído para fomentara preguiça e a mediocridade cristã; graça só se dá no encontro de duas
liberdades; rito algum poderá suprir o compromisso pessoal, como já insistira tanto São Paulo”.
7 Uma breve reflexão explicativa sobre o problema do “mal” numa perspectiva teológica cristã
- Há uma pergunta fundamental, que todos nós, como seres humanos, pessoas que vivem em relação,
a fazem desde que o mundo é mundo: Em que consiste o “mal”? E, claro, imediatamente outra se faz:
de onde se origina o “mal”? De imediato, consiste numa temática bastante complexa, e que ao longo
dos séculos algumas explicações vão sendo dadas ... umas mais convincentes, outras nem tanto, e assim
o problema do mal continua envolto em sombras, sem respostas mais absolutas;
- É exatamente no âmbito religioso que as tentativas de respostas mais se avolumam; nas mais variadas
culturas religiosas, nos mais diversos povos, com seus mitos e fantasias...
- “Entre os modernos, contudo, existe uma relativa concordância em considerar o mal referido
exclusivamente ao ser humano” => “o mal seria tudo aquilo que impede a humanização do homem”
+> acrescentaria nessa perspectiva antropológica a dimensão ecológica, entendendo a relação “homem-
mundo da natureza”, como complementariedade à visão antropocêntrica;
- Na antiga tradição cristã entendia-se o mal como “ausência do bem” => santo Agostinho, numa
perspectiva “metafísica”, mais abrangente; o “mal é uma privação do bem”, dia Agostinho;

50
- A mesma tradição cristã distingue o mal natural, que independe da liberdade humana, e o mal
resultante do mau uso dessa liberdade, ou seja, o mal moral (pecado);
7.1 Os mitos e a interpretação do mal
- Na antiguidade, como, de certa forma, também hoje, as narrativas míticas se colocaram como fatores
de explicação para quase tudo o que ocorresse no mundo e com o ser humano; não foi diferente para
as tentativas de explicação e interpretação da origem do mal e do sofrimento, a fim de que o homem
pudesse confrontá-lo e até superá-lo;
- Paul Ricouer enumera os seguintes mitos: * os mitos que colocam o mal antes da criação,
identificando-o com o caos primitivo que deve ser vencido pelo Criador; * Outros mitos veem o mal
como uma realidade posterior à criação: o mal é apresentado como consequência da desobediência do
ser humano ao plano do Criador => a libertação do mal só pode ser vivida na aceitação da proposta
salvífica de Deus, diversa da criação. A salvação é dom de Deus, mas é também tarefa-resposta
humana, na decisão e na liberdade (Gn 2-3);
* No âmbito helênico, os mitos trágicos procuram a origem do mal no destino preparado pelos deuses,
diante do qual o ser humano percebe-se importante => aqui, não há libertação do mal, pois trata-se de
um destino inevitável e inexorável;
* Finalmente, outros mitos colocam a origem do mal na situação da alma exilada e prisioneira da
matéria (corpo) => visão platônica e neoplatônica => a liberdade se dará quando o corpo se libertar do
corpo que a escraviza, e retorna a seu mundo originário;
7.2 Outras tendências: metafísica pessimista (ser é um mal => superar o mal com o não-ser =
Nirvana); Tendência dualista: ser bem e ser mal => princípios; o dualismo teológico persa-irânico de
Zaratrustra, que influenciou o cristianismo: a realidade do mundo está dividida entre o Espírito divino
bom (Ormus, cujo símbolo é a luz) e o Espírito divino mau (Arimã, simbolizado pelas trevas). Estes
dois princípios lutam entre si continuamente, e que repercute no ser humano, em parte orientado para
o bem e em parte orientado para o mal;
- Tendência otimista: o ser é bom em si mesmo => perspectiva pressuposta na Sagrada Escritura; sem
dualismos; se Deus que criou tudo é bom, tudo enquanto existe criado por ele deverá ser
ontologicamente bom, como o próprio ser humano também o é. Assim, nessa perspectiva fica difícil
encontrar uma explicação para o mal.
7.3 Satã e a origem do mal: é uma figura secundária no AT; só aparece em época tardia
(depois do exílio) em virtude de uma visão extrema da transcendência de Deus, colocando-o tão
distante, que surgiu a necessidade de criar seres intermediários entre ele e o mundo humano; elementos
demoníacos antes atribuídos a Iahweh serão posteriormente referidos a Satã => o AT não designa um
poder oposto a Iahweh; ele é dependente de Deus; ele é o acusador (cf. Zc 3; Jó 1 etc.);
- No NT, o papel de Satã é apresentado como tentador do ser humano, é o tentador também de Jesus
de Nazaré (Lc 4,1-13). Junto a Satã aparecem os “demônios”, causadores de doenças e enfermidades
do ser humano. O “diabo” vem identificado com Satã; aprece muitas vezes como um poder antidivino
e anticristo (escritos joaninos e 2Ts 2,9); não se trata de um poder em pé de igualdade com Deus ...
- Esta explicação do mal cuja origem está na figura de Satã é também insatisfatória. Com efeito, ou
Satã é o princípio eterno do mal, => aceitação da teologia dualista persa., ou ele e criado por Deus; mas
ele não pode ser o princípio incriado do mal, pois só existe um princípio da realidade toda, a saber, o
Deus único, criador e salvador; e também Deus tê-lo criado é inaceitável, pois como pode o Deus bom
ter criado Satã, o Mau, o resumo do Mal?
- Para resolver esse dilema, a literatura judaica apocalíptica extra bíblica desenvolveu a doutrina da
“queda ou pecado dos anjos”: pelo pecado (entendido sempre como orgulho: querer ser como deuses),
os anjos rebeldes tornaram-se demônios, e o chefe deles seria Satã (1º Livro de Henoc) => influencia
bastante a tradição cristã, já no NT; Satã como origem do mal. O mal existe porque o ser humano se
deixa levar pela tentação proveniente de Satã e dos seus auxiliares.
7.4 O mal como uma realidade natural inerente ao ser humano
51
- Outra perspectiva bíblica => literatura sapiencial: o sofrimento, as ambiguidades e os diversos males
que concernem à condição humana são perfeitamente naturais, simplesmente fazem parte da
criaturidade própria do ser humano => Eclesiastes, Salmos, o Livro de Jó ... - [(O tema do pecado
original e o mal (deixaremos para outro momento)
8. ATITUDE CRISTÃ EM FACE DO MAL
- É importante que reconheçamos que a nossa razão não penetra no último porquê da existência do mal;
por isso as explicações oferecidas pelas ciências humanas ou pela filosofia e até as bíblicas são
insuficientes; como também o sofrimento: as explicações são ineficazes. As explicações têm valor
prático na medida em que ajudam a encarar o mal de maneira mais consciente e a comprometer na luta
pela sua superação. Mas, é verdade, também, que podem servir de pretexto para a fuga ao compromisso
de luta contra o mal;
- Como vive o homem e a mulher de fé a experiência do mal e do sofrimento?
8.1 Oração de lamentação-pedido, linguagem própria do sofrimento
- A lamentação faz parte da linguagem da fé para falar com Deus, nos momentos em que o sofrimento
ou a adversidade acossam a vida do crente => Salmos = Jesus Cristo, no alto da cruz (Mc 15,34). Na
lamentação pronunciada pela pessoa de fé não está presente um mero grito de dor ou de angústia, antes
se trata de uma linguagem realmente articulada: a lamentação constitui um apelo dirigido a Deus. Apelo
que brota do coração humano sofredor pedindo a ajuda divina;
- A lamentação é uma forma de oração e, destarte, comporta uma experiência da proximidade pessoal
de Deus; o sofrimento pode até continuar, mas a pessoa que ora mediante a lamentação recebe uma
força nova para enfrentá-lo ou é ajudada a descobrir uma maneira mais profunda de encará-lo;
- A oração de lamentação, como toda oração de pedido, só será cristã quando vivida na relação pessoal,
dialógica, com esse Deus;
- Deus escuta a oração de pedido, mas não de maneira mecânica; a nossa oração pessoal, brotada do
coração, faz-nos mudar profundamente o nosso interior, efeito da ação de Deus em nós... Quando se
trata de oração-lamento em relação ao sofrimento dos outros, implica aí um compromisso na luta contra
a situação que motivou a oração-lamentação.
8.2 O realismo cristão em face do mal
- Convém lembrar que também para o cristão o mistério do mal continua a ser mistério, esmo depois
da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo => essa experiência ilumina a realidade do mal com uma
nova luz. Mas não é eliminado seu caráter escandaloso e desconcertante; - É pura ilusão pensar que o
cristão tem mais facilidade de lidar com o mal => o cristão aprofunda-se na experiência de confiança
em Deus, mesmo quando o horizonte parece totalmente fechado (Rm 4, 18-24); nesta confiança, o
cristão acredita que a última palavra não pertence à morte, ao pecado ou à degradação da energia, mas
à vida, ao amor e à graça divina; esperança que encontra fundamento último na promessa de Deus...
8.3 Aceitação da ambiguidade inerente à história atual
- O realismo cristão é proveniente da clara percepção da condição humana, tal como a experimentamos
e conhecemos na nossa história, sempre iluminada pela Palavra de Deus, sobretudo pela Palavra
encarnada de Jesus Cristo;
- Segundo a nossa fé bíblico-eclesial, a concupiscência permanece nos remidos. Não só a
concupiscência, mas também os restantes males atribuídos ao pecado e à criaturidade do ser humano,
continuam atuando no mundo atual. Consequentemente, o ser humano deverá aprender a conviver com
eles. A redenção de Jesus Cristo ainda não os eliminou; e precisamos assumi-los com realismo; faz
parte da ambiguidade de nossa vida humana, bem como a vida das comunidades cristãs, da própria
Igreja e da história humana. Não para ficar passivo em face do mal, mas para lutar contra ele com
realismo;

8.4 Atitude fundamental na luta contra o mal: o amor-serviço gratuito


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- A aceitação do Deus-Ágape implica sempre o compromisso de lutar contra o mal, dentro e fora de
nós; mas qual deverá ser a atitude básica a guiar o discípulo de Jesus Cristo nesta luta contra o mal?
- O mal não é superado, quando se devolve mal por mal. Pagando o mal com o mal, o discípulo não
vence o mal, antes fica enredado no seu intrincado e poderoso emaranhado; devemo-nos colocar num
plano diferente, para sair da engrenagem imposta pela dinâmica do mal;
- Ensinamento claro de Jesus: trata-se de retribuir com bem o mal, numa atitude amor-serviço gratuito
que é fruto da experiência da gratuidade com que Deus nos ama (Mt 5,38-48; Rm 12,17.21); porque o
discípulo experimenta que é amado gratuitamente por Deus é que se pode abrir para viver um pouco
de gratuidade em relação ao inimigo; atitude que supera uma relação de comercialização nos
relacionamentos humanos
8.5 A dignidade especial do sofrimento vivido na luta contra a injustiça e contra a
opressão dos irmãos
- A luta contra o mal não deve ficar limitada ao âmbito das relações interpessoais, mas deve estender-
se aos sistemas e estruturas que desumanizam e impedem o crescimento do ser humano precisamente
como humano; o resultado já o sabemos: dominação e exploração do outro (indivíduos, classes, nações,
raças, sexo etc...,);
- Contra este sofrimento o cristão deve rebelar-se, possuído por uma profunda indignação ética. Este
sofrimento provocado por estruturas econômicas, sociais e políticas que levam à morte tantos seres
humanos, privados da possibilidade concreta de crescimento em humanização, não é uma fatalidade
histórica.
8.6 Cruz-ressurreição: a solidariedade que vence o mal
- Em relação ao mal e ao sofrimento, a última palavra é dita, e assim deve ser, por Deus mesmo. Palavra
surpreendente, desconcertante e escandalosa para a sabedoria humana (Cor 1,1725). É, sobretudo a
palavra-silêncio do Deus-Ágape na cruz de Jesus;
- Diante do desafio do mal, o discípulo olha para a cruz de Jesus Cristo, pois nela que se revela como
vê Deus o mal e o sofrimento. Ela não comporta uma resposta teórica para o problema do mal, pois o
que Deus faz é assumi-los, o mal e o sofrimento, em solidariedade com o sofrimento humano para,
assim, vencê-los;
- Não é um Deus distante e apático, mas um Deus compassivo, solidário com o sofrimento de cada ser
humano concreto; certamente o sofrimento não é intrínseco a Deus, mas de alguma maneira concerne
a ele, posto que ama livremente o ser humano;
- Como é desconcertante o Deus que se revela na cruz de Jesus! Quanta falsa imagem de Deus cai por
terra em face dessa revelação. Como resulta ridiculamente banal o deus fácil quebra-galho e tapa-
buracos, diante da cruz de Jesus!

Bibliografia
- Bíblia de Jerusalém.
- Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 1999.
- DE LA PEÑA, Juan L. Ruiz. O dom de Deus. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997.
- MIRANDA, Mário de França. Libertados para a práxis da justiça. São Paulo: Loyola, 1991.
- RUBIO, Alfonso Garcia. Unidade na pluralidade. São Paulo: Paulus, 2001.

53
Exilio e Pós Exílio:
Dominações
Extrangeiras

55
O EXILIO DA BABILONIA: 587/6 - 538 a.E.C.
Introdução
Acompanhamos a ascensão do reino do Sul (931-586), a atuação dos principais reis e profetas, o
surgimento de escritos bíblicos e a subida dos babilônicos ao poder invadindo Judá, destruindo a
cidade de Jerusalém, saqueando o templo e deportando parte da população para a Babilônia. Era o
fim da dinastia davídica, de Jerusalém e do santuário.
Agora, vamos conhecer mais de perto o período do exílio. Foi o mais sofrido de toda a história de
Israel. As deportações promovidas pelos babilônios causaram muita dor para quem foi levado como
refém e para quem ficou na terra. Mas foi justamente em meio à dor desse período, que os expatriados
e os remanescentes na terra, mantiveram sua esperança, sua mística de resistência.
Iremos analisar os fatos históricos do exílio, especialmente o seu significado para o povo de Israel e
a produção literária desse período. Ao olharmos atentamente o exílio do século 6 a.C., queremos
buscar luzes que nos ajudem a encontrar saídas criativas para o momento crítico em que vive a
humanidade hoje. Nossa leitura bíblica tem a vida como ponto de partida e de chegada. Quer ajudar
a defendê-la, promovê-la e recriá-la permanentemente, especialmente lá onde ela está sendo mais
agredida e diminuída. Porque, acima de tudo, o sagrado é a vida.
Contexto histórico
O reino de Judá durou aproximadamente de 931 a 587/6 a.E.C. tinha sua sede em Jerusalém. Era
formado por apenas duas tribos: Judá e Benjamim. Era conhecido por reino de Judá porque a tribo de
Judá absorveu a de Benjamim. Esse reino era bem menor que o de Israel, mas durou quase três séculos
e meio. Terminou em 587/6 a.E.C. sob o domínio da Babilônia. A experiência do exílio vivida pelo
reino do Sul foi mais forte e marcante do que a experiência similar vivida, muito antes, pelo reino do
Norte, Israel. A experiência da dispersão dos israelitas pelo império assírio acabou sendo perdida,
mas a experiência do exílio da Babilônia foi conservada na memória do povo de Judá até hoje, por
meio dos seus escritos.
Depois da Assíria, a Babilônia começou a destacar-se no cenário internacional. Em 597 a.C.,
Nabucodonosor, rei da Babilônia, sitiou Jerusalém, a capital do reino de Judá, e a tomou. Aprisionou
o rei Joaquin, seus familiares e toda a corte. Além deles, deportou para a Babilônia todos os ferreiros
e artífices, e deixou em Judá só a população mais pobre. Saqueou o Templo de Jerusalém e o palácio
real (2Rs 24,10-17), e levou os utensílios sagrados. Substituiu o rei Joaquin por seu tio Matanias, cujo
nome mudou para Sedecias.
Havia em Judá uma grande divisão interna em que, dos diversos partidos, uns eram a favor do Egito
(2Rs 23,31-35; Jr 37,6-7), outros da Babilônia (2Rs 24,17; Jr 38,19; 19,11-12). Sedecias e o profeta
Jeremias posicionaram-se a favor da Babilônia. Jeremias tinha consciência de que o povo não podia
morrer, pois tinha uma missão a cumprir. Por isso, pedia ao povo que não fizesse resistência (Jr 27,10-
12). Isso não quer dizer que Jeremias aprovasse a política da Babilônia. Também ela um dia seria
subjugada (Jr 27,7). Mas era para impedir um mal maior, o extermínio do povo. Além disso, na
memória de todos conservavam-se dois traumas: a destruição de Samaria em 722, que tentou resistir
à Assíria, mas foi aniquilada e nunca mais se refez (2Rs 17,5-6), e a morte do rei Josias, em 609 a.C.,
ao se opor à passagem do exército egípcio pelo seu território (2Rs 23,29-30). Diante desses dois fatos,
o povo ficou perdido, sem saber qual posição tomar (Jr 26,11.16.24).
E mesmo que Sedecias, o último rei de Judá, adotasse a linha babilônica, não tinha segurança em seus
atos. Em diversos momentos consultou Jeremias para saber o que deveria fazer (Jr 37-38). Mesmo
sendo indeciso, salvou a vida do profeta. Por outro lado, era incapaz de impedir que fosse feito algum
mal a Jeremias e nem mesmo conseguia convencer os grupos divididos a adotar sua opção política.
Insatisfeito com a submissão à Babilônia, formou uma coligação antibabilônica instigado pelo Egito,
que desejava alcançar a Ásia. O plano não deu certo. Sedecias temeu uma repressão maior e, antes
que a Babilônia viesse exigir seus direitos, enviou uma embaixada ao rei para renovar sua submissão
(Jr 29,3; 51,59).

56
Não demorou muito para Sedecias, mesmo à revelia dos conselhos de Jeremias, partir para uma
segunda tentativa de coligação antibabilônica com o Egito e os países vizinhos (Ez 17,15; 21,24-25).
Outra vez não foi bem-sucedido. O exército da Babilônia cercou Jerusalém em 587 e a invadiu antes
que chegasse o apoio do Egito . Sedecias foi derrotado nas proximidades de Jerusalém. A cidade, os
muros, as fortalezas foram destruídas e saqueadas. O Templo foi incendiado e a mesma sorte coube
a muitas localidades de Judá.
Sedecias tentou fugir com a família, mas foi capturado (Jr 39,1-7; 52,6-11; 2Rs 25,3-7). Seus
familiares foram mortos, e ele foi cegado e levado para a Babilônia, onde desapareceu. Com o rei, foi
deportado um pequeno grupo, bem menor do que o de 597, pois muitos haviam morrido no combate,
outros pela fome, pela peste e um grande número foi degolado pelos vencedores. Por volta de 582, o
profeta Jeremias refere-se a outra deportação da qual tomamos conhecimento por meio do seu livro
(Jr 52,30).
Toda forma de dominação agride a dignidade e a liberdade humanas. Mas existem alguns métodos
que são mais violentos do que outros. A Babilônia foi menos violenta com os países dominados por
ela do que a Assíria. Esta impunha sanções severas aos países vassalos que variavam segundo as
faltas. Na primeira rebelião a punição era feita com o aumento dos tributos. No caso de uma nova
tentativa de rebelião, os assírios intervinham com a força militar. Na terceira tentativa, o soberano
local era deposto e substituído por um governador assírio. Deportava-se um número elevado da
população nativa para evitar novos focos de rebeliões. Os deportados eram espalhados pelas cidades
do império, e outros povos eram trazidos para o local. Foi o que aconteceu com os israelitas do reino
do Norte (2Rs 17,24).
Os babilônios, ao contrário dos assírios, nomearam no lugar do rei Sedecias um governador da
nobreza local de Judá, chamado Godolias. Ele foi constituído governador da província de Judá (2Rs
25,22; Jr 40,7s).
E Jeremias? As informações a respeito da sua sorte são desencontradas. As narrativas devem
apresentar lacunas, pois no seu livro, em 39,14, Jeremias é libertado em Jerusalém, "do pátio da
guarda", e logo em seguida, no 41,1, aparece novamente entre os prisioneiros na cidade de Ramá, que
estão sendo levados para o cativeiro da Babilônia. Segundo as informações de Jr 39,11-12, foi-lhe
dada a possibilidade de escolher entre ficar em Judá ou seguir para a Babilônia. Ele escolheu a
permanência junto a Godolias, governador da região, e morou com ele em Masfa (Jr 40,6). Com a
morte de Godolias, a situação piorou. O texto não deixa claro qual foi o paradeiro de Jeremias. A
tradição nos informa que ele teria sido levado para o Egito, onde terminou sua vida.
Na angustia da destruição, surge a esperança de sobreviver na terra.
A situação vivida pelo povo durante o cerco de Jerusalém, e mesmo depois da queda da cidade e da
destruição do Templo, foi terrível: falta de comida (Lm 1,11); canibalismo (Lm 2,20; 4,10);
sofrimento das crianças (Lm 2,11-12.19); violação das mulheres (Lm 5,11); assassinato de sacerdotes
e profetas (Lm 2,6.14); enforcamento de homens respeitáveis (Lm 5,12); imposição de trabalhos
forçados e de impostos por parte do império babilônico. O autor do livro de Lamentações descreve
assim a situação de Judá depois da destruição: "Que solitária está a Cidade populosa! Tornou-se viúva
a primeira entre as nações; a princesa das províncias, em trabalhos forçados. Passa a noite chorando,
pelas faces correm-lhe lágrimas. Não há quem a console entre os seus amantes; todos os seus amigos
a traíram, tomaram-se seus inimigos. Judá foi desterrada, humilhada, submetida a dura servidão; hoje
habita entre as nações, sem encontrar repouso; os que a perseguiam alcançaram-na em lugares sem
saída” (Lm 1.1-3). "Nossa herança passou a estranhos, nossas casas a desconhecidos. Somos órfãos,
já não temos pai; nossas mães são como viúvas. Nossa água por dinheiro a bebemos, nossa lenha
entra como pagamento. O jugo está sobre nosso pescoço, empurram-nos; estamos exaustos, não nos
dão descanso" (Lm 5,2-5).
A destruição não havia poupado nada e as áreas que ficaram desocupadas com a saída dos deportados
foram povoadas não só pela população camponesa que ficou em Judá, mas também pelos povos
vizinhos.
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Os sobreviventes recomeçaram lentamente a povoar as cidades e reconstruí-las. Os assentamentos
judaicos concentraram-se nas regiões periféricas e em algumas distantes, provavelmente causando a
separação com Judá logo na primeira deportação, em 597 a.C. Os nomes dessas cidades foram
conservados na lista do "resto de Israel", no livro de Neemias (Ne 11,20.25-36). Ele cita, de fato,
muitas localidades situadas nas regiões de Benjamim, do Negueb e da Sefelá, fora do território de
Judá.
Godolias iniciou seu governo com um programa de reconstruções, convidando os remanescentes da
catástrofe a repovoar as cidades e a retomar as atividades cotidianas. Para isso, distribuiu as terras
dos deportados aos moradores da cidade e do campo. Criou assim uma pequena classe de proprietários
locais, cujo direito não se fundamentava na herança nem na compra, mas na ordem dada pelo
imperador da Babilônia. Esse ato foi considerado válido e digno de fé e suscitou esperanças no povo.
Mesmo assim foi muito difícil para os que permaneceram em Judá, pois todos os dias as ruínas dos
lugares sagrados estavam sob seus olhos.
Godolias estava apenas no início do seu governo quando foi morto traiçoeiramente em Masfa (2Rs
25,25; Jr 40-44). Com sua morte, a situação tornou-se mais difícil ainda e a pobreza, maior.
Sobreviver nesse contexto era muito penoso. Com medo de uma repressão maior, muitas famílias
judias fugiram para o Egito. Refugiaram-se, predominantemente, na colônia de Elefantina (ou Yeb).
Há quem atribua a eles a sua fundação, sendo, posteriormente, transformada em colônia militar de
judeus aposentados. Jeremias também fugiu para o Egito (Jr 42), onde provavelmente concluiu seus
dias (2Rs 25,22-26; Jr 40-44).
Da crise de fé a uma vida nova
Nesse período o povo viveu uma grande crise de fé. Diante dos acontecimentos teve atitudes
diferentes, ora de revolta contra Deus, ora de reconhecimento de sua culpa e, por fim, de pedido de
socorro. O primeiro sentimento que invadiu o povo foi a revolta contra Deus, como se ele fosse o
responsável pela desgraça. Ler: Lm 2,8.17
O desespero do povo era tão grande que ele chegou a sentir-se até no direito de chamar a atenção de
Deus. Ler: (Lm 2,20). Passado o impacto inicial, outro sentimento invadiu o coração do povo, não
mais de revolta contra Deus pela destruição, mas de reconhecimento da culpa do próprio povo. Ele
avaliou a desgraça como consequência de sua infidelidade a Deus. Ler: (Lm 3,41s; 5,7; 4,13).
Mas o povo recobrou suas forças e renovou a confiança em Deus. Ele, sim, podia estar derrotado,
mas Deus não, que continuava inabalável no seu trono. Se Deus continua firme, podemos acreditar
no seu poder. Ele pode fazer brotar a vida num contexto de morte. Ler (Lm5,19-20). O povo recobrou
o ânimo e renovou sua fé: "O Senhor é bom para quem nele confia, para aquele que o busca. É bom
esperar em silêncio a salvação do Senhor" (Lm 3,25s).
A fé pura no Deus de Israel não morreu. O lugar onde o Templo foi destruído continuou sagrado e
nele se ofereciam sacrifícios, segundo a afirmação de Jeremias (Jr 41,4-5). Parte dos muros do Templo
restou e continua em pé até hoje, como "Muro das Lamentações", lugar de orações e de peregrinação
(1Rs 8,33). De acordo com o profeta Zacarias, esses ritos deviam ser observados quatro vezes ao ano:
no 4º mês (junho/julho) por causa da conquista de Jerusalém; no 5º mês (julho/agosto) por causa do
incêndio do Templo; no 7º mês (setembro/outubro) por causa do assassinato de Godolias; no 10º mês
(dezembro/janeiro) por causa do cerco de Jerusalém (Zc 8,19; cf. 2Rs 25,1.8- 9.25). O povo imprimiu
em seus acontecimentos históricos um caráter religioso e celebrativo.
O "resto" eleito: um broto no tronco seco.
Depois da destruição do reino de Judá em 587, nasce a consciência de serem eles o resto que foi
disperso por Deus entre as nações: “[ ... ] não somos mais do que um resto no meio das nações para
onde nos dispersaste" (Baruc 2,13).
E nesse contexto fora e distante da sua terra, Israel se converterá e "então os vossos sobreviventes no
meio das nações por onde tiverem sido levados cativos - quando eu tiver quebrado o seu coração
prostituído que me abandonara, e os seus olhos prostituídos com ídolos imundos - se lembrarão de
mim. Sentirão asco de si mesmos pelo mal que fizeram, por todas as suas abominações.
58
Saberão então que eu sou o Senhor e que não foi em vão que lhes falei que havia de infringir lhes
todo este mal" (Ez 6,9-10). Deus reunirá esse resto purificado para a restauração messiânica. Ler: (Jr
23,3.5-6).
Mas depois do exílio o "resto" é novamente infiel e será novamente dizimado e purificado, como
expressa bem o profeta Zacarias em Zc 13,8-9. Desse resto fiel nascerá o rei Messias, o Emanuel
comparado a uma pedra angular (Is 28,l6-17) e ao broto ou rebento de um povo santo (Is 6,13;
11,1.10). A comunidade cristã retomará essa mesma esperança ao reler em Jesus Cristo como esse
"Rebento" do novo e santificado Israel (Mt 1,6.16)
EXILADO, O POVO PROSPEROU.
O exílio da Babilônia deixou marcas não só no povo que ficou na terra de Judá, mas também nos que
foram deportados. Os remanescentes tinham a realidade da destruição sob os olhos. Os que foram
deportados carregaram consigo as imagens da cidade destruída, do povo disperso e massacrado, do
culto desfeito. Estavam agora fora da terra, sem Templo, sem culto e sem os seus dirigentes. Muitos
sonhos construídos ao longo dos anos foram desfeitos.
Os babilônios não dispersaram os exilados, como fizeram os assírios. Eles foram assentados em
núcleos nas proximidades do rio Cobar, nas cidades de Neppur, Susa, Uruk e outras (Ez l,ls; Ne 7,61).
Alguns deviam viver em regime de servidão (Is 42,22), e grande parte deles foi assentada em
comunidades agrícolas (Ez 3,24; 33,30). Isso favoreceu a conservação do patrimônio espiritual,
religioso e cultural. Podiam falar a própria língua, observar seus costumes e suas práticas religiosas.
Tanto é que, pouco a pouco, foram-se aculturando; adotaram nomes, o calendário e a língua aramaica
que é o hebraico, transformado pela influência de diversos idiomas orientais, já instalados na
Babilônia. Podiam livremente reunir-se, comprar terras, construir casas e comunicar-se com Judá, sua
pátria (Jr 29,5). Não sofreram a mesma sorte dos irmãos do reino do Norte sob o plano ético e político;
foram totalmente assimilados pelos povos entre os quais foram dispersos.
Na realidade, na Babilônia, conseguiram até certa prosperidade econômica num tempo relativamente
curto, a qual foi comprovada pelas pesquisas arqueológicas mediante documentos descobertos na
cidade de Neppur. São documentos de bancos, casas de comércio, contratos de compra e venda,
contratos matrimoniais nos quais aparecem muitos nomes de origem hebraica. Não há indícios nesses
documentos de que os deportados dessa região tivessem sido reduzidos à escravidão.
O profeta Ezequiel vivia entre os exilados. Ele os ajudava muito a superar as dificuldades e a alimentar
a esperança do retorno à Terra Prometida. Numa de suas visões chegou a descrever uma nova
distribuição da terra santa entre as 12 tribos de Israel, colocando-as lado a lado, em uma convivência
de perfeita unidade (Ez 48,1-29). A descrição dos seus confins corresponde aos antigos confins da
terra de Canaã que aparece no livro de Números (cf. Nm 34, l-12). Ezequiel acrescenta nessa descrição
nomes geográficos contemporâneos, incluindo províncias da Babilônia do seu tempo (Ez 47,13-23).
Ainda que os deportados tivessem encontrado a possibilidade de reconstruírem suas vidas viveram a
experiência do exílio como uma grande catástrofe.

A SAUDADE DE DEUS ALIMENTAVA A FÉ E A ESPERANÇA


Com o exílio, o povo pensava que todas as promessas de Deus tivessem falido: terra, descendência e
um grande nome. Viveu uma enorme crise de fé no Senhor, seu Deus. O deus da Babilônia, Marduc,
havia vencido o Deus de Israel, portanto, tinha mais poder do que ele. Por isso, muitos exilados
aderiram à religião de Marduc. Não só por ele ter sido mais poderoso, mas também porque poderiam
obter alguns privilégios de seus senhores babilônios (Ez 14,1-11).
Além do mais, as festividades religiosas dedicadas a Marduc eram muito suntuosas, com liturgias e
procissões solenes, que levavam os exilados a acreditar que, de fato, o Senhor tinha sido vencido,
junto com seu povo. Porém, havia os que permaneciam fiéis ao Deus de Israel, e o sentimento e a
sensação dominante que os afligia era em relação ao problema da retribuição individual e nacional,
ou seja: quem fora o culpado por tanta desgraça que caiu sobre nós?

59
Estamos pagando pelos nossos pecados ou dos nossos antepassados? Estamos pagando pelos nossos
pecados individuais ou coletivos? (Ez 18,2; 23,32).
Ezequiel e o Segundo Isaías não mediram esforços para manter viva no povo a fé no Deus da
Promessa e a esperança de uma restauração na própria terra. Por isso, Ezequiel tenta apresentar um
extenso programa de reconstrução do Templo, do culto (Ez 40-46) e do próprio Estado com seus
limites e com distribuição da terra (Ez 47,13-48,29). O chefe da nova terra não será mais um rei, e
sim um príncipe (Ez 48,21s).
No exílio reafirmaram a identidade israelita mediante algumas práticas culturais e religiosas, como a
circuncisão, a observância do sábado e da lei mosaica. O referencial não era mais o Templo, mas o
Livro da Lei, as Escrituras Sagradas. Elas eram anunciadas principalmente pelos profetas do exílio,
Ezequiel e o Segundo Isaías (Is 40-55). A "religião do Livro" foi tomando importância cada vez maior
no exílio; nele surgiram muitos escritos e outros foram reescritos. Os exilados mantinham viva a fé
pelas celebrações litúrgicas, orações e cânticos, embora não conseguissem esquecer Sião (SI 137).
Conservavam a firme esperança de retomarem a ela, pois Deus a havia prometido a eles, que se
consideravam descendentes de Abraão (Gn 12,7). Isaías via o retomo do exílio como um novo êxodo,
em cujo deserto haveria abundância de água e toda espécie de plantas (Is 41,18-20).
Longe da terra, os exilados, buscaram solidificar sua identidade por meio de algumas práticas que já
existiam entre eles antes do exílio e que perduram até hoje: a circuncisão, a observância do sábado,
das regras alimentares e, fundamentalmente, a leitura da Lei de Moisés ou Torá. Esses sinais externos
os identificavam diante dos outros povos.
Antes do exílio eram os sacerdotes que congregavam o povo ao redor do culto no Templo de
Jerusalém. Agora, no exílio, sem altar, sem templo, sem sacrifício, valoriza-se a Palavra. A Palavra
estava no centro da vida do povo. Na reflexão das Escrituras, a lei tinha um destaque especial.
Ezequiel, por exemplo, faz referências à observância dos mandamentos de Deus (Ez 11,20; 44,24).
Mais tarde, como veremos, Esdras dará à fé judaica uma estrutura bem definida. Centralizada na
observância da lei, a comunidade judaica pôde manter-se unida, mesmo dispersa por todo o mundo.
Inicialmente, as reuniões eram realizadas em casas de uma forma livre e espontânea na forma de
círculos bíblicos como acontece hoje em nossas comunidades (Ez 8,1; 14,1; 33,30-33). Aos poucos,
porém, o espaço ficou apertado e surgiu a necessidade de reservarem um lugar maior e específico
para realizar tais atividades. Assim, aparece pela primeira vez a sinagoga como espaço que substituiu
o templo, agora em ruínas. Porém, não como lugar de sacrifícios, mas como lugar de oração, de
instrução na lei de Deus, de reflexão das Escrituras, lugar da Palavra.
Sinagoga é uma palavra grega que significa "assembleia", "reunião" e foi uma forma criativa
encontrada para manter viva a fé e a identidade judaica.
A BIBLIA NASCE DO OLHAR ILUMINADO SOBRE A HISTÓRIA
O Exílio da Babilônia dividiu a população de Judá em dois contextos geográficos distintos: Judá e a
Babilônia. Nos dois contextos floresceu a literatura bíblica. Em Judá nasceu a Tradição
Deuteronomista, Jeremias, Lamentações e a releitura dos profetas; enquanto que em Babilônia
nasceram os escritos de Ezequiel, Segundo Isaías, Tradição Sacerdotal, Levítico 8,10, e 17-26 e os
Salmos 42; 69; 70; 137.
Literatura em Judá: tradição Deuteronomista

O primeiro núcleo do livro do Deuteronômio (caps. 12-26) foi escrito no reino do Norte. Depois da
queda da Samaria, em 722 a.C., esses escritos foram levados para o Sul e compilados pelo grupo
deuteronomista durante o reinado de Josias. A redação e a compilação do núcleo maior foram feitas
no período do exílio e a finalização e a fusão das quatro grandes tradições, por volta de 445 a.C.,
quando Israel estava sob o domínio persa. A palavra Deuteronomista vem do livro do
Deuteronômio, que significa "segunda lei".
O Deuteronômio recebeu esse nome porque nele fala-se que o rei, ao assumir o trono real, devia
receber, para seu uso, "uma cópia dessa Lei ditada pelos sacerdotes levitas" (Dt 17,18).
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De fato, no livro do Deuteronômio (Dt 5,6-22) encontramos uma cópia do Decálogo que está no livro
do Êxodo (Ex 20,2-17). O tema da Aliança é central, já na sua compilação na época de Josias, e foi
assumido por toda a obra Deuteronomista, que compreende mais seis livros: Josué, Juízes, 1 e 2
Samue1 e 1 e 2 Reis.
Os compiladores da Tradição Deuteronomista, no período do Exílio, não escreveram esses seis livros,
mas serviram-se de fontes já existentes vindas de muitas regiões, como também do reino do Norte.
As fontes às vezes são divergentes entre si, mas eles não as modificaram. Respeitaram-nas embora
tivessem muita liberdade em dispor e reorganizar os textos, chegando algumas vezes a alterar a ordem
cronológica dos acontecimentos. Tudo indica que o interesse maior desse grupo era descrever a
trajetória dos reis de Israel e de Judá conforme 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Os outros três livros -
Deuteronômio, Josué e Juízes - são considerados uma introdução à monarquia. A obra
Deuteronomista inicia no primeiro capítulo do livro do Deuteronômio e termina com o capítulo 25 de
2 Reis com a narrativa da destruição de Jerusalém em 587 a.C.
A homogeneidade do processo redacional encontra confirmação, na coincidência dos dados
cronológicos: 1Rs 6,1 fala que o rei Salomão começou a construir o Templo 480 anos depois da fuga
do grupo de Moisés do Egito. Calculando os vários períodos dos quais falam os demais livros da
Tradição Deuteronomista, obtém-se exatamente a soma de 480 anos. Outros elementos convergem
para afirmar a unidade desse bloco literário, como o estilo e a mensagem teológica. Em todos esses
livros encontramos expressões típicas como: "amar a Deus"; "servir, andar atrás, voltar-se para outros
deuses"; "obter vida longa, longos dias"; "terra, cidade que vosso Deus vos deu como herança"; "a
terra na qual estás para entrar e tomar posse...” Palavras e sinônimos: Lei, norma, estatuto, instrução,
prescrição. E, ainda, traz frases longas e muitas repetições.
A mensagem teológica, presente nesses livros, é a fidelidade de Deus à sua Aliança com o povo de
Israel. Deus o escolheu e fez com ele um pacto. Mas o povo e seus representantes nem sempre foram
fiéis ao pacto e escolheram a própria infelicidade.
Deuteronômio: A herança de Moisés para os exilados
O livro do Deuteronômio é uma coleção de homilias centradas no amor à lei de Deus, na paixão por
sua observância e no agradecimento pelo dom da terra de Canaã. Não é um manual árido permeado
de leis. Ele se parece mais com uma pregação e uma catequese sobre a Torá que deve envolver toda
a pessoa, por isso insiste sobre determinadas expressões: vê, olha, presta atenção, observa, escuta.
Muitas vezes, como grande mandamento, aparece o “ouve”: "Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas
que hoje proclamo aos vossos ouvidos. Vós os aprendereis e cuidareis de pô-los em prática" (Dt 5,1).
Usa com frequência a expressão "hoje" como forma de atualização da Torá.
Uma forma de estudar o livro é analisá-lo segundo os três grandes discursos de Moisés.
O primeiro discurso (Dt 1,6-4,4) traz um resumo da história de Israel, desde sua permanência no Sinai
até a chegada, na Transjordânia, diante do Jordão.
O segundo discurso (Dt 4,44-28,69) começa com uma breve indicação de tempo e lugar (Dt 4,44-49;
1,1-5), depois apresenta o Decálogo, suas exigências e o Código Deuteronômico (Dt 12,1-26,15). Foi
esse o livro da Lei encontrado no Templo sob o reino de Josias (2Rs 22,8-9). Segue uma longa
conclusão (Dt 26,16-28,69).
O terceiro discurso (29-30) lembra: o passado salvífico de Israel (Dt 29,1-8); o empenho pela
fidelidade à Aliança como fonte de bênçãos e a infidelidade, de maldições (Dt 29,9-28); o exílio como
punição da infidelidade e o retomo como sinal do perdão divino (Dt 30,1-10). Por fim, faz um apelo
a uma opção pela fidelidade à Aliança (Dt 30,11-20).
Possíveis divisões do livro do Deuteronômio:
Em três grandes discursos atribuídos a Moisés. Com estilo direto, num tom exortativo e profético,
usando temas e frases estereotipadas e repetitivas, o redator final sintetiza o programa ou projeto que
torna possível fazer de Israel uma nova sociedade, segundo os ideais dos tempos puros da caminhada
pelo deserto, num “hoje” de eterno presente.

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Assim, temos:
 Primeiro Discurso (1,6-4,43): de forma historicizante, recapitula o passado, desde a planície
desértica da Arabá até à entrada na Terra Prometida de Canaã.
 Segundo Discurso (4,44-28,68): Moisés apresenta os fundamentos da Aliança e as
determinações da Lei. Código Deuteronômico: 11,29-26,15.
 Terceiro Discurso (28,69-30,20): últimas instruções de Moisés.
 Apêndice (31,1-34,12): narra os últimos dias de Moisés, com cânticos e bênçãos, bem como a
sua morte.
Atendendo à estrutura da Aliança que percorre o DEUTERONÓMIO do princípio ao fim, os exegetas
apresentam ainda outra divisão,
 Introdução: 1,1-5
 Recordação do passado e exortação a servir o Senhor: 1,6-11,28
 Proclamação da Lei da Aliança: 11,29-26,15
 Compromisso mútuo entre Deus e Israel: 26,16-19
 Bênçãos e maldições: 27,1-30,18
 Testemunhas da Aliança: 30,19-20.
Este esquema vem confirmar que estamos perante o livro da Aliança por excelência.

JOSUÉ: a bênção de Deus é a terra.


O tema central do livro de Josué é a terra. Deus prometeu aos antepassados dar uma terra ao povo
de Israel. O livro de Josué mostra a realização dessa promessa. O livro compreende três grandes
partes: a conquista da terra (caps. 2-12), a distribuição da terra (caps.13-21) e as conclusões (caps.
22-24).
O livro de Josué narra acontecimentos do 13º século a.C, mas sua redação final é do 7º ou 6º século
a.C. A conquista da terra é relida num contexto deuteronomista fortemente influenciado pelo
sacerdócio (por exemplo, a função de Eleazar e de Finéias vai até ultrapassar, em alguns casos, a
função de Josué, como podemos verificar em Josué 14,1-21,1; 22,13.30-34).
Nessa conquista é Javé quem lutou em favor dos israelitas (Josué 23,3-10; 24,11-12) e deu como
herança a terra prometida aos pais (Josué 23,5-14). A terra, sendo um dom de Deus, tem sua conquista
narrada num contexto litúrgico; e é esse aspeto, mais do que o aspeto militar, que deve nortear a
leitura desses acontecimentos.
JUÍZES: Deus tem paciência com os erros do povo.
O livro de Juízes, em uma primeira introdução (Jz 1,1-2,5), retoma, em síntese, a instalação das tribos
em Canaã, com seus fracassos e sucessos, descritos, longamente, no livro de Josué de 1 a 12. A seguir,
depois de algumas considerações gerais sobre o sentido religioso do período tribal (Jz 2,63,6),
apresenta, em sequência narrativa detalhada, o período de Josué como tempo de fidelidade ao Senhor,
e o período dos juízes, como o da infidelidade (Jz 3,7-16,31). O livro termina com duas conclusões
(Jz 17-18 e 19-21). A primeira narra a migração da tribo de Dã para o norte e fala de seu santuário.
A segunda conclusão fala do crime dos habitantes de Gabaá e da guerra das tribos contra a tribo de
Benjamim que se recusava a punir os responsáveis pela morte da concubina de um levita de Efraim.
1 e 2 SAMUEL: os livros do "Nome de Deus"
Samuel, na língua hebraica, significa "nome de Deus". O livro apresenta uma justificativa popular do
nome: Ana deu à luz um filho a quem chamou de Samuel, porque, disse ela, "eu o pedi ao Senhor".
O nome de Samuel é aqui associado ao verbo hebraico "pedir" (Sha' al). O livro fala longamente da
infância, da vocação e da missão de Samuel (1Sm 1-7). Exerce a missão de juiz em meio às tribos de
Israel e faz a transição do sistema de governo tribal para o sistema monárquico, elegendo Saul como
primeiro rei de Israel (lº Sm 8-15). Ou seja, o livro fala da vida de Samuel e conta a história dos
primeiros reis de Israel.

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1 e 2 REIS: um olhar iluminado sobre a história
Já vimos que os dois primeiros capítulos (1Rs 1-2) são continuação de 2Sm 20. Falam da sucessão
ao trono de Davi. O período de abrangência dos dois livros vai da sucessão de Salomão ao trono de
Davi até a destruição de Jerusalém e o início do exílio babilônico em 587 a.E.C. Apresenta, portanto,
três grandes períodos:
1º) a história de Salomão e a divisão do reino em dois: Israel e Judá (1Rs 1-13), pois os
compiladores de cronologias - na época dos escritos bíblicos - fizeram uma sincronia entre os reis do
reino do Norte e do reino do Sul;
2º) as narrativas sobre os dois reinos continuam em paralelo até o final do reino do Norte em 724,
com a sua queda (1Rs 14-2Rs 17);
3º) depois, a narrativa prossegue falando só sobre o reino do Sul, até sua queda em 587 a.C.
(2Rs 18-25).
RELEITURAS DO PENTATEUCO ENTRE OS DEPORTADOS
Você deve ter lembrança do que já falamos da leitura de antigas tradições a respeito das origens de
Israel feita em diferentes momentos e lugares da história.
Na época de Salomão no final do Reino Unido, houve uma intensa atividade literária nesse sentido.
No Reino do Norte, o mesmo processo de reinterpretação e atualização ocorreu. Na época do rei
Josias, os deuteronomistas de Judá revisaram toda a história de Israel desde as origens até o rei Josias
(OHD). Aconteceu, também, a releitura do Êxodo feita pelo movimento profético de Isaías para
reavivar a esperança dos cativos.
Esse processo de releituras foi permanente em Israel. Cada momento histórico tinha os seus
problemas, as suas perguntas. As reelaborações tinham a intenção de jogar luzes sobre os novos
contextos.
JEREMIAS: escritor por vontade de Deus
O profeta foi testemunha ocular de toda a tragédia a ação, em 586: presenciou o cerco a Jerusalém,
viu o Templo e os palácios serem incendiados, viu a deportação do povo para a Babilônia. Foi nesse
contexto que ele passa a ser o porta-voz das esperanças do povo que permaneceu na terra, sem rei
nem templo. Sua missão foi fundamental no processo educativo do povo. Ao mesmo tempo em que
profere julgamentos e condenações contra o povo, também ajudou a despertar no povo a consciência
do compromisso da aliança com Deus.
Durante o cerco dos babilônios (587 a.C.) a Jerusalém chegou a ser preso e lançado numa cisterna
para morrer. Para sua sorte, foi salvo por um amigo etíope (Jr 38). Foi crítico severo das várias
instituições existentes em sua época: Templo, Sacerdócio, Rei e até profetas. Após a destruição de
Jerusalém, Jeremias ganha permissão para ficar no país e viver junto do governador da Judéia,
Godolias e promove uma ampla reforma agrária entre os que ficaram.
Jeremias propõe um novo modelo de relações com Deus, mediado pelo anúncio da Nova Aliança (Jr
31,31-34). Era uma visão renovada por compromissos que exigiam uma religião pessoal, interiorizada
pela força da Lei no coração.
Com os olhos de hoje, a missão de Jeremias pode ser considerada como um fracasso, mas sua figura
jamais deixou de ter influências profundas na fé daqueles que buscavam um novo sentido para a vida.
Pode-se dizer que esse profeta representa uma forma de "pai" para o judaísmo pós-exílico, amparado
pelo ideal da "Nova Aliança" e centrado na religião da Lei no coração. A fé cristã também não deixou
passar em branco o 'sentido profundo dessa mensagem: “Jesus como a Nova Aliança”.
ABDIAS: O amor apaixonado por Sião
O livro do profeta Abdias é o menor livro do Primeiro Testamento. Contém apenas 21 versículos, os
quais expressam toda a amargura do povo judaíta contra os edomitas que invadiram Judá depois da
desgraça do exílio, agravando ainda mais a situação de sofrimento (vv. 1-15).

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Edom, segundo a Bíblia, é habitada pelos descendentes de Esaú, portanto, parentes dos judaítas.
Abdias insiste na restauração da realeza universal do Senhor, na justiça de Deus, no amor apaixonado
por Sião e na restauração do Reino de Deus no dia do Senhor. O livro, embora pequeno, traz os temas
clássicos do profetismo de Israel (vv.16-21).
LAMENTAÇÕES: a dor do abandono e da destruição
O livro das Lamentações consiste basicamente em cinco cânticos que lamentam a queda da
Cidade Santa, Jerusalém, em 587 a.C. Os quatro primeiros apresentam em sua estrutura, no início de
cada parágrafo, as 22 letras hebraicas (estilo acróstico). O quinto cântico não é acróstico, mas tem
tantos versículos (22) quantas são as letras do alfabeto hebraico.
 No primeiro cântico, lamenta-se a destruição de Jerusalém, apontada como resultado da culpa
e dos pecados do povo.
 No segundo cântico, chora-se a punição que Jerusalém recebeu e se exorta a cidade à penitência
(2,1-19); em 2,20-22, Jerusalém pede misericórdia.
 No terceiro cântico, o autor apresenta a dor e a desgraça que se abateram sobre Jerusalém, e a
espera da misericórdia divina.
 No quarto cântico, chora-se novamente a ruína de Jerusalém, castigada segundo a justiça divina
por causa dos pecados de seu povo.
 O quinto cântico tem a forma de oração que implora a ajuda de Deus para as vítimas da
catástrofe de Jerusalém.
Segundo uma longa tradição, apoiando-se em 2Cr 35,25, o autor do livro das Lamentações seria o
profeta Jeremias. Por isso, em algumas Bíblias, o livro das Lamentações vem logo após o de Jeremias;
em outros casos, está na parte final e quase que fazendo parte do livro de Jeremias.
Hoje em dia essa tese não é aceita por todos. Dificilmente Jeremias teria afirmado o fim da inspiração
profética (cf. Jr 42,7-22 e Lm 2,9), nem teria esperado auxílio do Egito (cf. Jr 37,7s e Lm 4,17),
tampouco teria elogiado o rei Sedecias (cf. Jr 22,13-28; 37,17s e Lm 4,20), nem teria apelado para a
culpa dos pais (cf. Jr 31,29 e Lm 5,7).
É bastante provável que o autor de Lamentações seja de um discípulo de Jeremias.
RELEITURA DOS PROFETAS: uma lanterna nas mãos dos exilados
No exílio, os livros dos profetas começaram a ser lidos e interpretados, e passaram por atualizações
e releituras. Já vimos o do profeta Jeremias, que passou por revisões do grupo deuteronomista, de tal
forma que em alguns textos é difícil saber, com certeza, o que é de Jeremias e o que foi acrescentado
por outras mãos. Outros livros proféticos também sofreram releituras, acréscimos e alterações na sua
disposição interna. Certamente isso aconteceu quando os livros proféticos passaram de um uso
restrito, o círculo profético, para o uso da comunidade.
Antes do exílio, a palavra profética era carregada de ameaças e advertências (Jr 8,4-17; Os. 5,8; 6,6).
No exílio e depois dele, a situação havia mudado e fazia-se necessária uma palavra de ânimo e
esperança, de estímulo e encorajamento como a de Isaías 40,1-31. Antes, a palavra profética dirigia-
se especificamente a Israel e a Judá no exílio, mas no pós-exílio tomou dimensões que ultrapassaram
as fronteiras nacionalistas, como o indica a releitura de alguns profetas (Am 1-2; Is 24-27).
A releitura dos textos proféticos parece não ter sido feita antes do exílio, pois se acredita que eles
ainda não estavam em circulação. Nem mesmo foram relidos no âmbito do Templo e da corte, como
aparece bem em Jeremias, capítulo 36, quando o rei de Judá reage com violência queimando o rolo
que continha as palavras do profeta. Mas elas foram lidas, conservadas e protegidas nos círculos
proféticos e em meio ao povo do campo, corno aparece em Miquéias de Morast (Jr 26,17-19), na
região de Judá.
Literatura Bíblica na Babilônia.
Durante o exílio na Babilônia surgiram importantes escritos como o de Ezequiel, o Segundo Isaías,
partes do Levítico e Salmos.
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Eles infundiram nos exilados a esperança do retomo, de um novo êxodo, em que Deus mesmo iria
reunir o seu povo como o pastor reúne o seu rebanho: "Eis aqui o Senhor Deus: ele vem com poder,
o seu braço lhe assegura o domínio... Como um pastor apascenta o seu rebanho" (Is 40,10-11).
Tradição Sacerdotal
Quem trabalhou nessa tradição foi um grupo de sacerdotes e teólogos, formados em Jerusalém, cuja
preocupação era infundir a fé e conservar a identidade do povo submerso pela apatia e pela dispersão.
Sabemos que, quando uma nação vencia, os vencidos eram levados para o exílio e espalhados por
todo o império para colonizar novas áreas. Com isso os contatos se tornavam muito difíceis. Daí a
preocupação dos sacerdotes em salvar a identidade do povo hebreu. Para esse fim, surgiram as
genealogias que aparecem principalmente em Gn. 1-11 e nos textos narrativos8 espalhados nos livros
de Gênesis, Êxodo, Números e em alguns versículos do Deuteronômio e Josué. Isso era para não
perderem a memória do seu próprio povo. Era como, uma espécie de carteira de identidade.
Um dos textos mais conhecidos no exílio da Babilônia é o poema litúrgico de Gênesis 1,1–2, 4a. Os
sacerdotes exilados estruturaram o poema da criação com o refrão: "Deus disse e foi feito... E Deus
viu que era bom" (Gn 1,4.10.12.18.20.24;1,31). Numa realidade confusa e devastada pela violência,
os autores recordam que o mundo criado por Deus é belo, ordenado, perfeito e bom e que a condição
do ser humano não é ser escravo, mas pessoa criada à imagem de Deus para se tornar semelhança
Dele. Também os textos do Dilúvio (Gn 6,5-9,17) e da torre de Babel (Gn 11,1-9) foram redigidos
dentro dessa óptica.
Narrando as origens da criação, o povo de Israel exilado é reportado a um passado comum, fazendo-
o criar uma identidade também comum e, por sua vez, mobilizando a todos na construção de um
futuro promissor. A narração de um passado distante e harmonioso cria uma espécie de coesão social
no presente, superando possíveis tensões e conflitos, e unifica a ação em vista de um novo horizonte.
Diante da catástrofe do exílio, ao ouvir o poema da criação, pouco a pouco, Israel começa a juntar os
retalhos de sua história e a recompor sua identidade. Ele se vê novamente como povo, cujo Deus é o
único e verdadeiro criador. O seu poder é capaz, portanto, de perdoar os erros que levaram ao exílio
e recomeçar tudo de novo.
A palavra de Elohim na criação é uma palavra abrangente de vida, e o mundo foi criado para ser a
casa de vida para todos. Neste sentido, fora da criação não existe salvação, pois destruir a vida na
terra, qualquer uma de suas criaturas – as águas, as matas, o sol, a lua, as estrelas, os animais ou os
seres humanos - é afastar-se do projeto do Deus criador. E o povo de Israel na Babilônia compreende
que o projeto da criação se concretiza na história: Deus vai libertá-lo do sofrimento que ele vive no
exílio. O povo ganha alento e reconstrói a esperança de um novo êxodo.
A Tradição Sacerdotal tem algumas características que a distinguem das demais. O estilo é seco, o
vocabulário é técnico, prima pelas cronologias, cifras, elencos, listas e genealogias não só do gênero
humano, mas também do céu e da terra (Gn 2,4).
A obra tem sua origem no exílio da Babilônia, quando já não existiam as instituições que até então
eram centrais, como o Templo, o sacerdócio, o culto, a terra, o rei. Não existia mais nada disso. Eles
mesmos estavam fora da sua terra e buscavam, no passado, referenciais para alimentar a própria fé.
Os sacerdotes aparecem como animadores da comunidade e incentivavam algumas práticas como a
circuncisão e o sábado, para indicarem a pertença ao povo de Israel, o povo escolhido por Deus.
A reflexão do grupo sacerdotal queria ajudar a comunidade desanimada e infeliz a entender os
desígnios de Deus que sempre respeita a liberdade humana. E procurou mostrar que a situação na
qual grande parte do povo se encontrava não contradizia as promessas divinas. Também os patriarcas
haviam experimentado a migração (Gn 23; 33,18-20) e, no entanto, a terra havia sido doada aos seus
descendentes. Eles tinham a preocupação de mostrar que Deus foi fiel às alianças que fez com seu
povo no passado, desde Noé, Abraão, Moisés e continuará a ser fiel (Ex 19,3-8).
Levítico (8-10; 17-26): o convite à santidade
O livro do Levítico em grande parte foi escrito no período do exílio, na Babilônia.

65
Os capítulos que foram redigidos nesse período compreendem a parte que corresponde à investidura
dos sacerdotes (Lv 8-10).
Descrevem nos seus pormenores as cerimônias que aconteceram na investidura sacerdotal de Aarão
e de seus filhos. Os capítulos 17-26 representam as leis da santidade. O grupo sacerdotal tinha
consciência da enorme distância que há entre a santidade de Deus e a indignidade humana. Acreditava
que o ser humano não poderia ver Deus e continuar vivo (Ex 19,21), nem mesmo apenas ouvi-lo (Ex
20,19). Como exemplo temos Elias (1Rs 19,13) e Moisés (Ex 3,6), que cobrem o rosto diante da
revelação do Senhor. Em outros textos, o fato de ter visto Deus e não ter morrido levou as pessoas
que passaram por essa experiência a uma profunda gratidão (Dt 5,24-27) pela graça recebida (Ex
24,9-11), em particular Moisés, que falava com Ele face a face, como se o fizesse com outro homem
(Ex 33,11).
Os sacerdotes deviam buscar tudo o que facilitasse a comunhão com Deus e evitar tudo o que, física
ou moralmente, colocasse obstáculos a essa comunhão vital. Por isso, não podiam consumir sangue,
porque ele é considerado a sede da vida, dada por Deus. Deviam recusar quaisquer relações sexuais
anormais, aceitar a Deus como ÚNICO, respeitar o ser humano como criatura de Deus, garantir a
dignidade do sacerdócio e dos sacrifícios, celebrar fielmente as festas, os anos santos e outras leis
menores.
Ezequiel: O vigia do povo de coração renovado
Ezequiel era sacerdote, e foi exilado na Babilônia juntamente com os seus compatriotas judeus. Diante
dos acontecimentos do ano 586 a.C., fez a experiência da dureza do que é ser escravo, do que é
cativeiro. Sentiu e assumiu, também, as dores e as lutas dos cativos, promovendo um árduo trabalho
de conscientização das comunidades de Judá e da Babilônia. Pediu ao povo para ver com realismo a
situação. De um lado, Jerusalém estava de fato destruída. Não se podia criar a ilusão de que de uma
hora para outra tudo mudaria. Por outro lado, era preciso controlar o desespero e não entrar em pânico.
Misturando sentimentos de perda, desânimo, desespero, mas também de esperanças, o profeta propõe
um futuro radical: "renascer" das cinzas (Ez 37). Sua mensagem é dirigida através de visões
carregadas de simbolismo vivo (Jr 1-3; 8-11; 40-48); valoriza a dramatização da mensagem através
de ações simbólicas: assédio, fome, morte e deportação (Jr 4-5); usa alegorias (Jr 16).
Como toda mensagem profética, a de Ezequiel atinge certo grau polêmico quando diz que o próprio
Deus havia abandonado o Templo (Ez 11,22-24). Sua vocação está narrada nos capítulos 1-3. Sua
mensagem, por ser dura e direta, se volta para o povo rebelde.
Ezequiel descreveu o exílio da Babilônia dando-lhe um enfoque profundamente profético. O exílio,
nesse sentido, foi um meio necessário para fazer com que um povo rebelde retornasse a Deus. Via
no exílio um estímulo pedagógico capaz de provocar no povo o desejo pela busca do "novo coração"
(Ez 36,26).
Através de símbolos fortes, Ezequiel quer indicar os novos caminhos para a reconstrução da nação.
Em primeiro lugar, o sistema antigo como tal, não respondia mais às exigências dos novos tempos.
Era preciso assumir esse fracasso. Em segundo lugar, não bastava reformar um sistema corrupto, pois
ele já estava contaminado pelos males que levaram o povo à destruição. E, por fim; solicitava a
conversão incondicional a Deus, assumindo um projeto concreto de sociedade e comunidade.
Assim como Deus abandonou o Templo (11,22-2), Ele voltaria a habitar no meio do povo (43,1-7).
A condição exigida era a volta do povo a Deus, mediada por um modelo novo de sociedade onde
deviam vigorar a justiça, a fraternidade e a vida.
Segundo Isaias – o consolador
Entre as lições ensinadas pelo Exílio da Babilônia, encontramos a mensagem do "Segundo Isaias"
(Cap. 40-55). Os capítulos 40 a 55 foram atribuídos a um autor desconhecido que representava um
grupo de judeus exilados. Por isso, esse grupo, conhecido por "Segundo Isaias" nos apresenta um
projeto de restauração para o povo Israel, exilado na Babilônia.

66
O profeta aponta aqui um tempo de esperanças: todos terão a terra para nela trabalhar; haverá uma
nova ordem implantada, baseada na justiça e o fim da opressão estrangeira. A reconstrução do templo
será o sinal visível do retorno dos exilados; Israel é o "servo sofredor" do Senhor, e será guiado pelo
próprio Deus da Aliança; a restauração da comunidade não depende mais dos reis. Agora é o povo
que passa a ser o legítimo herdeiro das promessas feitas a Davi, de cuja linhagem irá surgir o "ungido"
(Messias).
É o povo humilde, pobre e sofredor que passa a ser o próprio agente da redenção, tendo Deus por
guia. Os textos de Isaías 52,13 e 53,4 deixam à nossa imaginação traçar a identidade do "servo
sofredor". O profeta quer nos dar pista para refletir e amadurecer o ideal de salvação que se aproxima.
Para o profeta, o salvador pode ser qualquer um, nascido do povo de Israel, chamado de "servo
sofredor". Não é preciso mais esperar por um rei grande, forte e poderoso. Ele deve ser humilde. Seu
reino será construído na paz e seu poder não mais dependerá, como antes, da força militar de exércitos
poderosos. Com o retorno dos exilados, o profeta vê brotar a esperança de um Novo Êxodo, fim da
escravidão e começo da libertação (Is 40,1-11).
Salmos
Os salmos eram a oração do povo, tanto dos que ficaram na terra de Judá como daqueles que foram
deportados. Alguns salmos parecem retratar a experiência do povo que foi para o exílio. Os salmos
42 e 43 mostram a saudade do fiel "que vive exilado longe do Senhor", longe do santuário onde Deus
mora e longe das festas que reúnem seu povo. Os salmos 42-43 e os 69-70 são de oração individual.
O fiel invoca o nome do Senhor, expõe sua situação, suplica e espera confiante de ser atendido. O
salmo 69 reúne duas lamentações, cada uma é formada por uma queixa e uma prece. A primeira (vv.
2-7 e 14-16) fala do tema da água infernal e dos inimigos. A segunda (vv. 8-13 e 17-30) fala do grito
de angústia do fiel vítima do próprio zelo. O salmo termina com um hino de caráter nacionalista (vv.
31-37). O salmo 70 igualmente lança um grito de angústia porque o fiel sente-se "pobre e indigente":
"Ó Deus, vem depressa! Tu és meu auxílio e minha salvação: Senhor, não demores!". O salmo 137
evoca a queda de Jerusalém em 587 a.C. e o exílio na Babilônia. Recorda, na dor, os fatos vividos
quando os caldeus abriram a brecha nos muros de Jerusalém, a invasão dos edomitas e a ação
arrasadora da Babilônia. Enquanto, ao mesmo tempo, se lembra com saudades de Sião, e deseja
vingança dos inimigos.
CONCLUSÃO
O exílio marcou profundamente o povo de Israel, embora sua duração fosse relativamente pequena,
de 587 a 538 a.C.. Depois disso, Israel não conhecerá mais a independência. O reino do Norte já havia
desaparecido em 722 a.C. com a destruição da capital, Samaria. E a maior parte da população foi
dispersa entre outros povos dominados pela Assíria. O reino do Sul também terminará tragicamente
em 587 a.E.C. com a destruição da capital Jerusalém, e parte da população será deportada para a
Babilônia.
Tanto os que permaneceram em Judá como os que partiram para o exílio carregaram a imagem de
uma cidade destruída e das instituições desfeitas: o Templo, o culto, a monarquia, a classe sacerdotal.
Uns e outros, de forma diversa, viveram a experiência da dor, da saudade, da indignação, e a
consciência de culpa pela catástrofe que se abateu sobre o reino de Judá.
Os escritos que surgiram, em Judá no período do exílio, revelam a intensidade do sofrimento e da
desolação que o povo viveu. São os livros de: Lamentações, Jeremias e Abdias. Os exilados na
Babilônia igualmente recordaram na dor o que viveram: "À beira dos canais de Babilônia nos
sentamos, e choramos com saudades de Sião; nos salgueiros que ali penduramos nossas harpas. Lá,
os que nos exilaram pediam canções, nossos raptores queriam alegria: 'Cantai-nos um canto de Sião!'.
Como poderíamos cantar um canto do Senhor numa terra estrangeira?" (Sl 137).

67
A experiência foi vivida pelos que ficaram e pelos que saíram, como provação, castigo e
reconhecimento da própria infidelidade à Aliança com Deus. Pouco a pouco, foram retomando a
confiança em Deus que pode salvar o seu povo e conduzir o mesmo a um “Novo Êxodo” a voltar para
Sião, conforme afirma o Segundo Isaías. Deus, novamente, devolverá a terra ao povo como fez no
passado (Ez 48). De fato, no Segundo Isaías já se entrevê a libertação do povo que virá por meio de
Ciro, rei da Pérsia. Ele será o conquistador, não só de Judá e Israel, mas de todo o Oriente.
Ciro será, de fato, o "ungido", o salvador do povo de Judá e dos exilados?

Perguntas:
1- Na sua opinião, qual foi a causa do Exílio?
2- Longe da terra, os exilados, buscaram solidificar sua identidade por meio de algumas
práticas que já existiam entre eles antes do exílio e que perduram até hoje. Quais são essas
práticas?
3- Qual foi a forma criativa encontrada para manter a fé e a identidade judaica no exílio?
4- O Exílio da Babilônia dividiu a população de Judá em dois contextos geográficos distintos:
Judá e a Babilônia. Nos dois contextos floresceu a literatura bíblica. Quais livros foram esses?

BIBLIOGRAFIA

EQUIPE DO SAB. O alto preço da prosperidade: monarquia unida em Israel. Coleção Visão Global,
caderno nº 5. 5º ed. São Paulo: Paulinas, 2010.

______________. Em busca da vida, o povo muda a história: Reino de Israel. Coleção Visão Global,
caderno nº 6. 5º ed. São Paulo: Paulinas, 2010.

______________. Entre a Fé e a fraqueza: Reino de Judá. Coleção Visão Global, caderno nº 7. 5º ed.
São Paulo: Paulinas, 2010.

______________. Deus também estava lá: Exílio da Babilônia. Coleção Visão Global, caderno nº 8.
5º ed. São Paulo: Paulinas, 2010.

GASS, Ildo Bohn (org). Uma introdução à Bíblia: Reino dividido. Vol. 4. CEBI, Paulus, 2003

_______________. Uma introdução à Bíblia: Exílio Babilônico e dominação persa. Vol. 5. CEBI,
Paulus, 2003.

68
PÓS-EXILIO (DOMINAÇÃO PERSA)
538-333 a.C

LEMBRANDO O EXÍLIO
O exílio marcou profundamente o povo de Israel, embora sua duração fosse relativamente pequena,
de 587 a 538 a.C.. Depois disso, Israel não conhecera mais a independência. O reino do Norte já havia
desaparecido em 722 a.C. com a destruição da capital, Samaria. E a maior parte da população foi
dispersa entre outros povos dominados pela Assíria. O reino do Sul também terminara tragicamente
em 587 a.E.C. com a destruição da capital Jerusalém, e parte da população foi deportada para a
Babilônia.
Tanto os que permaneceram em Judá como os que partiram para o exílio carregaram a imagem de
uma cidade destruída e das instituições desfeitas: o Templo, o culto, a monarquia, a classe sacerdotal.
Uns e outros, de forma diversa, viveram a experiência da dor, da saudade, da indignação, e a
consciência de culpa pela catástrofe que se abateu sobre o reino de Judá.
Os escritos que surgiram, em Judá no período do exílio, revelam a intensidade do sofrimento e da
desolação que o povo viveu. São os livros de: Lamentações, Jeremias e Abdias. Os exilados, na
Babilônia. igualmente recordaram a dor que viveram: "À beira dos canais de Babilônia nos sentamos,
e choramos com saudades de Sião; nos salgueiros que ali penduramos nossas harpas. Lá, os que nos
exilaram pediam canções, nossos raptores queriam alegria: 'Cantai-nos um canto de Sião!'. Como
poderíamos cantar um canto do Senhor numa terra estrangeira?" (Sl. 137).
A experiência foi vivida pelos que ficaram e, pelos que saíram como provação, castigo e
reconhecimento da própria infidelidade à Aliança com Deus. Pouco a pouco, porém foram retomando
a confiança em Deus que pode salvar o seu povo e conduzir o mesmo a um “Novo Êxodo” a voltar
para Sião, conforme afirma o Segundo Isaías. Deus, novamente, devolverá a terra ao povo como fez
no passado (Ez. 48). De fato, no Segundo Isaías já se entrevê a libertação do povo que virá por meio
de Ciro, rei da Pérsia. Ele será o conquistador, não só de Judá e Israel, mas de todo o Oriente.
Ciro será, de fato, o "ungido", o salvador do povo de Judá e dos exilados? É o que iremos
ver...
INTRODUÇÃO
Depois de uns cinquenta anos da destruição de Judá por parte da Babilônia, no cenário político começa
a despontar uma ameaça: Ciro, rei da Pérsia. Esse de pouco a pouco, foi conquistando os impérios
existentes, chegando à terra de Israel qual passagem para dominar o Egito. Começa assim a
dominação persa que pode ser dividida em dois períodos: primeiro de 538-445; o segundo de 445 –
333 a.E.C.
PRIMEIRO PERÍODO PERSA
(538 – 445 a.E.C.)
1. JUDÁ, UM TRAMPOLIM PARA CONQUISTAR O EGITO.
Por que os persas tinham tanto interesse em ter os judeus como seus aliados? É que, na verdade,
Judá lhes servia de trampolim para conquistar o Egito. Esse era o alvo principal. Para concretizar
esse empreendimento, era importante manter Judá aliado, para que servindo de base militar
oferecesse apoio as tropas de passagem e servisse de escudo de defesa contra o Egito. De fato, em
525 a.C., o rei Cambises (530-522) conquista o Egito. Mais uma vez, as terras de Judá se tornaram
lugar estratégico na luta pelo controle do poder internacional.
2. CIRO, REI PERSA E OS PLANOS DE RECONSTRUÇÃO DA JUDÉIA.
As grandes potências não vão durar para sempre, mesmo se o poder de suas armas, o controle da
comunicação e da economia, apresentam-se tão fortes que parece impossível derrubá-las. Assim tinha
sido a Babilônia senhora do Oriente Médio, que fascinava por seu esplendor, jardins suspensos, largas
69
avenidas, templos, construções. Nada levava a crer que, 50 anos mais tarde, os babilônios não seriam
mais os donos do mundo. Quem passa hoje por suas ruínas pode constatar o que Jeremias e Isaias
haviam profetizado. (Cf. Jr 51,43 e Is 13,20-22).
Em 537 a.C a agonia dos judeus chega ao fim, e novos ventos começaram a soprar. Em quase
cinquenta anos de desterro, os Judeus tinham perdido tudo, mas nunca a esperança. A esperança em
Deus era muito forte. "Ele enviaria um libertador à altura de Moisés", assim esperavam os exilados
na Babilônia. Mas Deus tem seus planos, que nem sempre são iguais aos nossos. Uma olhada no
panorama internacional nos ajudará a compreender como se deram os fatos.
No ano 538 a.C o rei da Pérsia, Ciro, entrou triunfalmente em Babel, a capital do império
babilônico, formando assim o maior império do Oriente. Foi aclamado pelos próprios babilônios.
Pelos judeus deportados foi celebrado como “ungido de YHWH” (Is 45,1). Mais tarde os repatriados
ainda o consideravam o “enviado de YHWH” (2º Cr 36,22-23; Esd 1,1-4).
Dessa forma, Ciro pôs fim a quase um século de domínio da Babilônia no Oriente Médio, por
um lado, e, por outro, iniciou um período de dois séculos de hegemonia persa na região. Pela primeira
vez na história, todo o Oriente Médio passou a estar sob o domínio de um único rei.
Como vimos nas dominações da Assíria para o norte e da babilônia para Judá, a estratégia de
dominação era a mesma. Ao subjugar um povo, cobravam tributos. Caso houvesse suspensão na
remessa de impostos, havia uma nova invasão e se exilavam as classes dirigentes para evitar
qualquer tentativa de resistência. Os assírios, além das deportações, traziam outros povos para
misturar com os que restavam no país, a fim de suprimir a identidade de cada povo. Com a mesma
finalidade, impunham também suas divindades, sua religião.
Diferentemente dos assírios e babilônios, a estratégia política persa era mais tolerante e menos cruel.
Em vez de deportar, os persas até permitiam a repatriação de quem havia sido expatriado pelo império
que os precedera. Respeitavam também a religião dos povos conquistados. O rei Ciro, por exemplo,
restabeleceu o culto a Marduc na Babilônia. Para os judeus, ele mandou restituir imagens e objetos
sagrados que haviam sido roubados espoliados na dominação dos babilônios. E mais, não somente
financiou a construção do altar e do segundo templo, como também patrocinou a realização dos
sacrifícios diários ali oferecidos. YHWH tornou-se, dessa forma, mais uma divindade a quem Ciro
prestava culto. Pediu inclusive que os judeus rezassem a YHWH em favor de sua família. (cf. Esd
6,2-10 sobre essa nova estratégia de dominação). Outro indicativo do respeito dos persas é o uso da
língua do povo dominado nas inscrições régias e na correspondência oficial. Os demais impérios
impunham a própria língua. No império persa, os escritos oficiais apareciam em três línguas: persa,
elamita e babilonês. Na Síria e na Palestina, que não falavam essas línguas, os decretos e as inscrições
vinham na língua aramaica, conhecida e falada na região.
Pelo seu respeito à língua, à cultura e às tradições religiosas, Ciro impôs confiança aos
povos que foi conquistando, tanto que alguns grupos babilônicos que discordavam da política
oficial saudaram Ciro, a ponto de um sacerdote babilônico afirmar: “Na Babilônia reina alegria”.
Diante de tudo isso e mesmo assim, muitos exilados não quiseram voltar para seu país de origem.
Outros, porém, voltaram, pois falou mais alto o amor a terra, o apego às tradições, o desejo de
reconstruírem o Templo, a cidade e a comunidade de Israel. Diversas caravanas foram organizadas e
retomaram para Judá com o intuito de recomeçar a vida ali. Nasceram então vários projetos de
reconstrução de Judá, que se iniciaram ainda no tempo de Ciro, por volta de 537 a.E.C.
Com a tomada da Babilônia, a Pérsia tornou-se o maior império do Oriente. Judá continuava
dependente e o povo exilado descobriu-se como uma pequena comunidade étnica perdida no vasto
império em meio a muitas raças. Era obrigado a continuar aceitando um rei estrangeiro que lhe ditava
normas e leis, era vigiado por um exército que controlava o pagamento dos tributos e impostos. Judá
não decidia mais seu destino, nem via possibilidade de uma independência política num futuro
próximo.

70
A política do persa Ciro dava certas garantias de autonomia para os povos vencidos que desejassem
retomar ao seu país de origem. O decreto de Ciro ou edito de Ciro, parece ser algo como o que se
encontra em Esd 1,2-4. Logo após esse decreto muitas caravanas começaram a longa jornada de volta.
Mas, como em todo processo migratório, a proposta da volta para a Palestina não foi prontamente
aceita por todos. Muitos preferiram ficar na Babilônia. Não é difícil compreender os motivos. A
permanência na Babilônia, a longo prazo, também trouxe suas vantagens. Um considerável número
de judeus já havia se adaptado à nova realidade dos babilônios, sem risco de perder sua identidade.
Houve razões de sobra para a permanência de muitos, como situação profissional e econômica
estáveis, laços familiares com os povos locais, aquisição de propriedade e terras. A principal lição
tirada do Exílio, principalmente nas esferas social e religiosa, foi que a sobrevivência se tornou
possível no meio de qualquer povo ou lugar.
A destruição da nação, em 586, causou certa desintegração social, principalmente porque os líderes
foram levados cativos. Muitas comunidades continuaram a se organizar mesmo longe da terra de
Israel. A esse processo lento deu-se o nome de diáspora, para se referir aos judeus que viviam fora
de Israel. Isso ajudou a criar a consciência de que Deus, Javé podia ser celebrado em terras longínquas,
distante do centro principal do culto, que era o Templo de· Jerusalém.
Ao mesmo tempo, os exilados sabiam que a reconstrução do Templo tinha um significado quase
"messiânico". Simbolizaria a garantia eterna da unidade recuperada, motivo capaz de trazer de volta
os judeus dispersos pelo Exílio. Aqueles que optaram por permanecer na Babilônia tinham o dever
moral para com aqueles que decidiram partir. Os grupos de sacerdotes, a família real, comerciantes,
artesões e funcionários ligados ao Templo, sentiram-se todos envolvidos nesse anseio de ver a vida
reconstruída na terra de Israel. Lutariam para garantir essa unidade judaica através de subsídios
materiais enviados para a reconstrução da nação, a começar pelo Templo. Isso fez com que muitos
judeus da Babilônia, que nunca mais retomaram à terra de seus ancestrais, olhassem para o Templo
como o símbolo máximo da reconstrução da unidade judaica.
2.1- Os conflitos criados com o retorno dos exilados
Sabemos que foi apenas um grupo pequeno de judeus, que foi levado cativo para a Babilônia. Trata-
se da elite de sobreviventes de líderes israelitas constituídos pela família real, sacerdotes, funcionários
do templo, comerciantes e artesãos. Tirar esses líderes do seu meio foi uma das formas de deixar a
nação mais vulnerável ao domínio estrangeiro.
A maior parte da população que permaneceu na Terra de Israel era constituída de camponeses,
artesãos pobres e pastores. Talvez, mais importante que o exílio, propriamente dito, tenha sido o
fenômeno da dispersão (diáspora) a que o povo esteve submetido. Foi a dispersão que caracterizou o
povo judeu como povo presente entre outros povos.
Com o retorno dos exilados, os assentamentos das famílias na Palestina tiveram muitos problemas. É
que estavam regressando os "legítimos herdeiros", os antigos "donos" que possuíam as terras antes da
invasão babilônica. As brigas e tensões não foram poucas. Em 586 a.C. muitos tiveram que deixar
tudo às pressas para serem deportados para uma terra estrangeira. Suas propriedades foram
confiscadas.
Com a anistia do rei Ciro (538) e o retorno das famílias à Palestina abriu-se um novo capítulo: os
antigos donos começaram a reclamar a posse de seus bens antes confiscados.
Acontece que ao chegar à Palestina, os exilados perceberam que grandes mudanças haviam ocorridos.
Aqueles que permaneceram na Palestina, naturalmente tomaram posse das propriedades e mantiveram
a terra produzindo. Formavam um contingente de camponeses, conhecidos mais tarde como "povo da
Terra”. Aos exilados se misturavam ainda outros estrangeiros e samaritanos que retomavam de
Nínive. Esse encontro, entre antigos donos que retomavam do cativeiro e os que já estavam nas suas
propriedades, acabou gerando os primeiros conflitos na terra.

71
2.1.1-O Cisma samaritano.
Quando a Assíria invadiu o Norte, parte da população foi exilada para outras partes do império,
enquanto outros povos eram trazidos para o reino do Norte. O povo que estava em Samaria foi
misturado em meio a uma população que tinha outras tradições religiosas (cf. 2º Rs. 17,23-25). Isso
foi visto com maus olhos pelos habitantes do Sul que consideraram os samaritanos adoradores de
outros deuses e não mais do Senhor como seu único Deus verdadeiro. Havia os que continuavam
fiéis ao Senhor, mas não eram reconhecidos como tais (Esd 4, 1-5). Devido a isso, quando os
samaritanos ofereceram ajuda aos habitantes do sul na reconstrução do Templo e das muralhas da
cidade, esta é rejeitada e a resposta é: “Não convém que vós e nós edifiquemos casa a nosso Deus;
mas nós sós a edificaremos ao Senhor Deus de Israel, como nos ordenou Ciro o rei da Pérsia”
(Esdras 4:3). Eis que se forma a confusão, o “cisma”. A partir de então os samaritanos fizeram forte
oposição à construção do Templo e das muralhas da cidade.
Os samaritanos viram-se então obrigados a afirmar sua autonomia religiosa. Construíram seu
próprio Templo no monte Garizim, no século IV a.C. Eles passaram a aceitar apenas os cinco
primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco, como livros inspirados. Eles não sofreram reformas e
acréscimos feitos pelos massoretas. Após o início do cisma samaritano outros acontecimentos foram
motivos de conflitos.
2.2 – Sasabassar: chefe da primeira caravana
Os persas nomeavam, quando possível, príncipes ou lideranças do próprio povo para governar
as províncias dominadas. Judá também passou por esse processo. Em 538 a.C., Sasabassar foi
nomeado príncipe e governador de Judá por Ciro e teve como missão chefiar o retorno do primeiro
grupo de exilados, bem como conduzir, de Babilônia para Jerusalém, os utensílios de ouro e prata do
templo que Nabucodonosor roubara. Além disso, coube ao mesmo governador colocar os
fundamentos do novo templo de Jerusalém, mas não foi uma missão fácil. (Esd 1, 7-11; 5,14)
Os repatriados regressaram animados pelas promessas da profecia de Isaias (Is 40-45), mas
ao chegar a Jerusalém, diante da realidade encontrada, o sorriso foi cedendo lugar às lágrimas. A
situação era lamentável. Campos abandonados, cidades em ruínas, muralhas destruídas, e o templo
em cinzas. O conflito entre os camponeses remanescentes de Judá e os repatriados foi inevitável. Parte
dos terrenos abandonados havia-se tornado selvagem e as melhores terras estavam ocupadas pelos
remanescentes1.
Uma das primeiras tarefas desse primeiro grupo era a reconstrução do altar de sacrifícios (Esd
3,2-3), mas o povo estava mais interessado em readquirir as terras de seus antepassados e construir
suas próprias casas (Ageu 1,2-4) do que trabalhar para reconstruir a cidade e o Templo.
Essa tarefa coube, anos mais tarde, a Zorababel e Josué a partir de 520 a.C, uma vez que
Sasabassar não conseguiu ir muito além da reconstrução do altar e do lançamento dos fundamentos
do segundo templo (Cf. Esd 3,6-13 e 5, 16). Uma razão para tanta importância do segundo templo
eram os interesses que o império persa tinha na reconstrução e no fortalecimento de Judá. Outra razão,
era que o primeiro templo, constituía-se em centro na tradição de Judá e de modo especial para os
moradores de Jerusalém, durante a monarquia.
Além do desinteresse dos repatriados, as obras do templo não foram adiante por causa da
resistência dos camponeses remanescentes nas terras de Judá. Depois da deportação, entre eles se
encontravam os samaritanos, os amonitas e os moabitas que haviam se misturados com os
remanescentes durante o exílio. Esses camponeses tinham um projeto diferente daquele defendido
pelos sacerdotes repatriados. Seu grito de resistência continua ecoando ainda hoje nos ditos do 3°
Isaías (56-66), bem como nos Livros de Rute, Jonas e Jó.

1
Entre eles se encontrava os samaritanos, amonitas e moabitas que haviam se misturados com os judeus pobres que
ficaram na terra durante o exílio (Esd 3,3).
72
2.3 – Zorobabel: chefe da segunda caravana
Pouco antes de 520 a.E.C., outra caravana importante foi organizada quando Dario I já era rei
dos persas enviando Zorobabel e Josué, representantes do grupo da elite judaica, para a missão de
reconstruir o templo. Zorobabel era neto do rei Jeconias (1Cr 3,16-19), também chamado de Joaquin
(2Rs 24,6), que havia sido deportado juntamente com Ezequiel para a Babilônia em 597 a.C. (2Rs
24,15). Portanto, era da linhagem de Davi. Seu retorno da Babilônia despertou nos judeus mais
nacionalistas uma forte esperança de restauração da monarquia davídica. Ainda mais que ele veio
como alto comissário do rei Dario, por quem fora nomeado governador (Ag 1,1).
Josué era sumo sacerdote (Ag 1,1.12), descendente de família sacerdotal sadoquita, filho de
Josedec (Esd 3,2) da tribo de Levi, que fora deportado por Nabucodonosor (1Cr 5,41), ele foi, portanto
o líder religioso durante a construção do segundo templo. Ambos tiveram apoio dos profetas Zacarias
e Ageu (Esd 5,1-2). O retorno de Josué foi mais uma razão para aumentar a esperança na reconstrução
de um estado davídico independente da Pérsia em torno do templo.
Zorobabel e Josué voltavam a Jerusalém, a fim de continuar as obras de reconstrução do templo que
Sasabassar iniciara, mas logo tiveram que interromper por causa da resistência dos remanescentes
como já lemos em Esd 4.
Por volta do ano 460 a.C., surge uma revolta no Egito e na província do Transeufrates, da qual Judá
fazia parte. Judá também se rebelou contra o poder central do império persa. Nesse contexto de grande
instabilidade em Judá, entre os anos 445 e 432 a.C., o império persa, de olho no corredor Siro-
Palestinense, enviou Neemias para reorganizar Jerusalém e Judá. Apesar da resistência de grupos
internos e dos povos vizinhos, ele começa a colocar em funcionamento o projeto de restauração e
reestruturação da comunidade.
3- ESCRITOS BÍBLICOS DO PRIMEIRO PERIODO PERSA: 538-445 a.C
Os escritos bíblicos, do tempo da dominação persa, assim como a sua história, podem ser classificados
em dois períodos: o primeiro vai de 538 a 445, e o segundo corresponde aos anos 445 a 333 a.C.
Na primeira fase a tradição sacerdotal continuou sua obra literária e redigiu parte do livro do Levítico
(Lv 1-7) assim como os capítulos de 11-16. São também dessa época os livros dos profetas Ageu,
Zacarias (1-8), Isaías (56-66), Joel e diversos Salmos, 4; 10; 22; 23; 50; 77; 78; 83; 105-107; 126.
3.1- Levítico 1-7; 11-16: o desejo de comunhão com Deus.
Esses capítulos do livro do Levítico foram escritos no período do exílio, por um grupo de sacerdotes
e são conhecidos como livros da Tradição Sacerdotal. Esse grupo continuou a colocar por escrito
tradições muito antigas sobre o ritual dos sacrifícios. Os capítulos de 1-7 falam dos diversos tipos de
sacrifícios que eram praticados desde o início da história do povo. Os sacrifícios não são exclusividade
dos israelitas, pois em todas as religiões são uma forma de entrar em comunhão com a divindade. Os
capítulos de 11-16 tratam das regras referentes ao puro e impuro, as quais se baseiam em princípios
muito antigos. Puro é tudo aquilo que pode aproximar-se de Deus. Impuro é tudo aquilo que se torna
impróprio para o culto a Deus e dele é excluído. Os animais puros são os que podem ser oferecidos a
Deus e os impuros lhe são desagradáveis. Inclui também o elenco de diversas impurezas que impedem
o ser humano de entrar em contato com Deus, como: o consumo de alimentos impuros (Lv 11), a
impureza da mulher depois do parto ou no período menstrual (Lv 12), a lepra (Lv 13-14), a impureza
sexual do homem ou da mulher (Lv 15) e por fim apresenta o grande Dia da Expiação dos pecados (a
festa judaica do YomKippur da purificação), em Lv 16.
3.2- Ageu: a leitura messiânica da história.
O profeta Ageu atuou pouco, provavelmente de agosto a dezembro de 520 a.C., no período do rei
Dario. O livro de Esdras apresenta Ageu e Zacarias como irmãos profetas, filhos de Ado. Falaram em
nome do Senhor aos judeus que estavam na Judéia e em Jerusalém (Esd 5,1; 6,14). Ageu deixou
escrito o livro que leva seu nome, e retratou nele a situação dos primeiros tempos do pós-exílio e o

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incentivo ao povo para retomar a reconstrução do Templo (Ag. 1,1-15), que havia sido interrompida
pela oposição dos samaritanos (Esd 4,1-5)
Ageu dá uma "sacudida" no povo que parece estar dormindo, só preocupado consigo mesmo (Ag 1,9),
e não se reanima em reconstruir a Casa do Senhor, que poderia ser fonte de bênçãos, de multiplicação
do povo e possibilidade de se abrir para a salvação definitiva.
A instabilidade das nações já é prelúdio do Dia do Senhor (Ag 2,21-22). A salvação está
próxima, pois ele viu em Zorobabel o portador das esperanças messiânicas. Ageu via realizar-se duas
expectativas do povo: a reconstrução do Templo e o retomo do rei Messias descendente de Davi.
3.3- Zacarias 1-8: a nova comunidade de Israel.
O profeta Zacarias aparece contemporaneamente ao profeta Ageu. Sua primeira intervenção foi
feita provavelmente de outubro a novembro de 520 a.C. (Zc 1,1), um mês antes do último oráculo de
Ageu (Ag 2,10.20). Sua atividade prolongou-se, no mínimo, até o ano 518 a.C. (Zc 7,1), três anos
antes da reinauguração do novo Templo, em 515.
O livro é formado por oito narrativas de visões, dois oráculos e algumas pregações. Elas são redigidas
em primeira pessoa e descrevem antecipadamente a restauração definitiva da comunidade de Israel.
No pós-exílio, com a ausência do rei, o poder vai concentrar-se nas mãos do sumo sacerdote (Zc 6,9-
15); a lei e os sacrifícios foram se impondo cada vez mais como sinais da união do povo. A
comunidade vai se fechando em si mesma (Esd 6,21). O Templo, o sumo sacerdote, o culto e a lei
vão dando as feições da religião que chegou até Jesus.
3.4- Isaías 56-66: Deus é fonte segura de salvação.
Já tivemos oportunidade de conhecer o Primeiro Isaías, formado pelos capítulos 1-39; seu autor
é desconhecido e anterior ao exílio. Os capítulos 40-55 pertencem ao Segundo Isaías do tempo do
exílio, e os capítulos finais de 56-66 são atribuídos ao Terceiro Isaías do pós-exílio, no período da
dominação persa. Mesmo assim, um grande número de estudiosos admite que, algumas partes foram
introduzidas posteriormente, entre elas os dois poemas de Isaías (63,1-6 e 63,7-64,11).
O Terceiro Isaías enfrentou alguns problemas diante da realidade que encontrou em Judá. Queria
reconstruir novamente um povo unido e santo, e se deparou com uma profunda crise de esperança,
porque o Templo continuava apenas com a pedra fundamental; os muros estavam destruídos e havia
conflitos externos com os samaritanos e internos com os que estavam na terra. Essa situação gerou
grande desânimo. Isaías, por um lado, denuncia o pecado como obstáculo à salvação e, por outro,
reafirma a fidelidade de Deus como fonte segura de salvação.
O profeta quer acabar com os idólatras que buscam apoio nos falsos deuses e se entregam às práticas
idolátricas como sacrifícios humanos, prostituição sagrada, sacrifícios com uso de animais impuros
(65,4; 66,3.l7), necromancia (65,4), veneração de Moloc (57,9) de Meni e de Gad, pretensas
divindades (65,11). Denuncia a impotência dos falsos deuses, incapazes de salvar, e anuncia o poder
do verdadeiro Deus, cujo julgamento é inevitável.
O rompimento da Aliança com Deus implica automaticamente o rompimento das relações igualitárias
entre irmãos: governantes praticando extorsão (56,10-57,2), brutalidades, exploração recíproca,
violações da justiça etc. Isaías denuncia esses delitos e mostra a incompatibilidade deles com um culto
que considera autêntico (58).
Diante de Deus fiel no amar, poderoso para salvar, infalível para julgar, todos os homens são
convidados a acolhê-lo; para aqueles que o acolhem, haverá motivo de alegria; e para aqueles que o
rejeitam, haverá desgraça. Para Isaías, acolher a Deus significa acolher o outro como irmão; amar a
Deus significa amar o próximo e vice-versa. Moral, religião e compromisso com a justiça são
inseparáveis.
3.5- Joel: o povo novo terá em Jerusalém um paraíso.
Joel, na língua hebraica, significa "o Senhor é Deus". A respeito desse profeta, conhecemos
pouca coisa, apenas que ele é filho de Fatuel (Jl 1,1). O livro que leva o seu nome normalmente é
situado no pós-exílio, e é carregado de características apocalípticas. É pequeno, traz apenas quatro
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capítulos e pode ser apresentado em duas partes. A primeira apresenta a invasão destruidora dos
gafanhotos. Há diversas interpretações dessa calamidade, claramente rememora a praga do Egito,
contra o Faraó, portanto é um sinal de Deus chamando o povo para a conversão. A segunda parte fala
do Dia do Senhor, quando Ele julgará as nações e com Israel triunfará sobre os seus inimigos: sua
vitória será definitiva (3-4). Há uma unidade no vocabulário, no estilo e na temática. "O Dia do
Senhor" aparece nas duas partes: 1,15; 2,1- 2.10-11; 3,3-4; 4,14.
3.6- Salmos 4; 10; 22; 23; 50; 77; 78; 83; 105-107; 126.
Muitos salmos apresentam entre si semelhanças de estrutura, de situações e de temáticas; isto
não significa que tenham necessariamente surgido em um determinado contexto, época e situações.
É muito difícil definir com exatidão o período, também porque retratam situações humanas que se
repetem em contextos diversos, seja em nível pessoal, seja em nível coletivo. Para facilitar o estudo
dos salmos, podemos classificá-los em três grandes grupos: salmos de louvor; salmos de pedido de
socorro, de confiança e de ação de graças; e salmos de instrução. Os salmos que provavelmente
surgiram nesse período pertencem ao segundo e terceiro grupos.
3.6.1- Os salmos de pedido de socorro, de confiança e de ação de graças.
Entre os salmos de pedido, podem ser colocados os salmos 22, 83 e 126. O salmo 22 é uma
prece individual de lamentação de um inocente perseguido: "Cercam-me cães numerosos, um bando
de malfeitores me envolve, como para retalhar minhas mãos e meus pés" (Sl 22,17). Apesar de toda
a dor e sofrimento, o salmista termina com a ação de graças pela libertação alcançada, porque Deus é
fiel àqueles que o temem (vv. 23-27). É um poema muito próximo do servo sofredor de Is 52,13-
53,12. Considerado um salmo messiânico, foi o salmo colocado nos seus versículos iniciais, na boca
de Jesus na cruz (Mt. 27,46).
Os salmos 77, 83 e 126 são orações coletivas de pedido de socorro contra os povos vizinhos, inimigos
de Israel, e a alegria da volta do exílio. Esse retorno prefigurava a chegada da era messiânica.
Os salmos 4 e 23 são de confiança e gratidão a Deus, porque só dele vem a felicidade. O salmo 23 é
muito conhecido e apresenta Deus como o bom Pastor que conduz o seu povo e lhe oferece o banquete
messiânico.
Os salmos 10 e 107 são orações individuais de ação de graças pelos benefícios recebidos. O fiel subia
ao Templo acompanhado de parentes e amigos para cumprir as promessas. O salmo 107 apresenta um
hino de ação de graças, pelos benefícios da Providência, inspirado no Segundo Isaías. O salmo fala
do êxodo (vv. 4-9), da volta do exílio (vv. 10-16), do socorro divino aos que sofrem (vv. 17-22) e aos
que viajam no mar (vv. 23-32).
3.6.2- Os Salmos de instrução.
Os salmos de instrução têm em comum a preocupação de ensinar mediante os fatos da história.
Trazem exortações à maneira dos profetas, admoestações litúrgicas e reflexões sapienciais. Os salmos
78, 105 e 106 recordam longamente a história sagrada, os patriarcas, a Promessa e a Aliança que Deus
fez com os antepassados. Fazem memória, também do êxodo precedido e acompanhado por
maravilhas, a marcha no deserto, a revelação do Sinai e a posse da terra como herança. Os salmistas
não apenas recordam os fatos, mas revelam seus significados e convidam a traduzi-los em atitudes
práticas, como o ensina o Deuteronômio.
O salmo 50 traz o estilo das exortações proféticas. Deus vem para julgar Israel e revela-se contrário
ao formalismo dos sacrifícios unido ao desprezo pela Torá.

SEGUNDO PERÍODO PERSA


(445 – 333 a.E.C)
O segundo período persa abrange os anos de 445-333 a.E.C. e compreende o tempo da atuação de
Neemias e Esdras. Nesse tempo, os cinco primeiros livros da Bíblia receberam forma definitiva. A
prática do culto cresceu em importância, contribuindo para a criação da comunidade judaica
incentivada por Neemias e, mais tarde por Esdras.

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4- NEEMIAS
Desde o início da reconstrução do templo, se passaram mais de 70 anos. O projeto de Zorobabel e
Josué então iniciado foi continuado e consolidado por Neemias e mais tarde por Esdras.
Neemias (=YHWH consola/conforta) era descendente de uma antiga família de deportados (Ne 2,4)
e chegou a ser copeiro de confiança do rei Artaxerxes I (Ne. 1,1.11) o qual o nomeou governador de
Judá. Diferentemente de Zorobabel e Josué, a missão de Neemias não visava a libertação do jugo
persa, mas, garantia a continuidade do envio de tributos para os senhores do mundo naquela época.
Ele chegou a Jerusalém por volta do ano 445 a.C., com documentos que o autorizava a reconstruir os
muros da cidade (Ne 2,10-18). A missão de Neemias, portanto, era de estar a serviço, andar de mãos
dadas com o império. É inegável que Neemias tinha boas relações com os persas.
Podemos resumir a missão de Neemias em sua primeira viagem a Jerusalém nos pontos a
seguir: (Veja e leia sempre as citações bíblicas).
4.1- Reconstruir as muralhas da cidade (Ne 2,8; 6,15; 12,27-43).
Uma cidade fortificada trazia mais estabilidade, segurança e atrativos para a nova capital,
diante das dificuldades que enfrentava. Há quase um século antes, Zorobabel e Josué haviam
reconstruído o templo, símbolo mais importante para os judeus. Com a reconstrução das muralhas de
Jerusalém, Neemias fortalecia um símbolo para a identidade da comunidade judaica.
Neemias sofreu resistência de vários grupos contra seu projeto de reconstrução das muralhas:
 Dos nobres das províncias vizinhas (Esd 4,6-24; Ne 6,1ss).
 Dos nobres de Judá, vinculados ao samaritano Sanabalat e ao amonita Tobias, por meio de
casamentos, contratos comerciais e outros interesses (Ne 6,17-19; 13,4-9.28; 3,33-48).
 Dos nobres de Técoa, ao sul de Jerusalém (Ne 3,5)
Mas nenhum desses grupos conseguiu impedir o projeto, que tinha apoio do império,
inclusive com uma escolta militar providenciada pelo rei persa (Ne 2,9).
Quem reconstruiu as muralhas? Provavelmente, Neemias recrutou trabalhadores diaristas,
escravos, pequenos proprietários de terra e artesãos. É possível que a miséria e a insatisfação dos
pobres da terra tivessem chegado a uma situação insustentável, justamente por causa desse
recrutamento para as obras na muralha.
4.2- Reorganizar as famílias (7,7-72) e repovoar a cidade ainda pouco habitada (7,4-5; 11,1-
12,26).
Todas essas medidas de reorganização administrativa e religiosa da cidade de Jerusalém
provavelmente tinham em vista a transferência da capital da província de Judá para a cidade santa,
em lugar de Masfa que parece ter sido a capital anterior.
4.3- Garantir o sustento do pessoal responsável pelo culto (os sacerdotes sadoquita, os
sacerdotes levitas, os cantores e os porteiros do templo – Ne 12,44-47).
É bom lembrar aqui que, embora Neemias 10,33-34 diga que a comunidade judaica
sustentava também o serviço diário do culto (os pães sagrados, os animais para os sacrifícios, o
alimento para os animais, etc.), segundo 2º Cr 31,3-4, porém, o sustento diário do culto era feito
pelos persas.
Neemias começou os trabalhos e encontrou resistências. As dificuldades nasciam do interior da
comunidade e de fora. Internamente, as dificuldades eram de ordem econômica e de infidelidade às
tradições religiosas. A situação de Judá era muito precária, pois estava mergulhada numa profunda
crise, dividida entre ricos exploradores e pobres espoliados (Ne 1,1-5; 5,1-5.15). Havia um grande
sincretismo religioso atribuído ao casamento com mulheres estrangeiras. As dificuldades externas,
por sua vez, eram provindas, sobretudo dos governadores dos países vizinhos que se opunham à
reconstrução de Judá. Não bastasse isso Neemias sofreu um atentado armado por Tobias (Ne 6, l0-
14), esse foi descoberto em tempo.
Todas essas oposições não conseguiram desanimar Neemias e o povo de Judá. Neemias viu-se
obrigado a proteger militarmente a obra (Ne 4, 10-17), rechaçando as acusações injustas. Fez frente,

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por sua tenacidade, a todas as ameaças, unindo-se à população de Jerusalém e de Judá. Em 52 dias
reconstruiu os muros, colocou vigilância nas portas e fez com que parte da população campesina
ocupasse a cidade quase despovoada (Ne 7,4-5; 11,1-3). Conseguiu concluir o trabalho, graças a um
rígido esquema de segurança (Ne 3-4; 6,1-7,3).
Ao terminar os muros, Neemias fez a dedicação com festejos (Ne 12,27-43) e começou a reorganizar
a comunidade. Havia muitas desordens sociais, em particular a venda de judeus concidadãos como
escravos, por causa das dívidas contraídas. Suas medidas de reforma foram bem acolhidas pelo povo
(Ne 5,1-13; 7,4-72a; 11,1-20). O próprio Neemias informa que atuou durante 12 anos em Jerusalém
de maneira íntegra e honesta e retornou para a Babilônia (Ne 5,14).
Ao que tudo indica Neemias voltou para uma segunda missão em Jerusalém (Ne 13,6), antes da morte
de Artaxerxes I (424 a.C.), e enfrentou diversos problemas relacionados com a organização da
comunidade israelita, como a presença de estrangeiros, o repouso sabático e o matrimônio com
mulheres estrangeiras (Ne 13,4-31). Ele entrou em conflito com pessoas influentes de Judá (Ne
13,28).
Com base na lei do Deuteronômio e no Levítico (Dt 15,1-15 e Lv 25), Neemias exigiu a devolução
de tudo o que os pobres perderam pelo abuso do penhor e da cobrança das dívidas por parte dos ricos
e proclamou o ano jubilar (Lv 50; Ne 10,31-32). Ele propôs uma reforma interna de cunho social,
pedindo aos ricos que devolvessem as terras roubadas e perdoassem as dívidas (Ne 5,6-13). É
provável que tenha voltado pela segunda vez a Susa, capital do império persa, deixando Jerusalém
com as muralhas reconstruídas e a província da Judéia criada.

5 – ESDRAS: A RECONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE JUDAICA


Esdras é sacerdote-escriba, sábio intérprete dos mandamentos do Senhor e de suas leis referentes a
Israel (Esd 7,11). Recebe o título de escriba da corte do rei da Pérsia, que era uma espécie de secretário
para os negócios judaicos (Esd 7,11.21). Mas a função dele como escriba em Jerusalém era a de ler,
traduzir e explicar a Lei ao povo (Ne. 8,8) (essa missão continuou com os escribas também no tempo
de Jesus). Ele era membro da comunidade dos deportados. Chegou a Judá, no ano 398 a.C, com a
missão de estabelecer a “Lei de Deus” como lei do Rei (Esd 7,26). Os persas tinham a preocupação
de unificar os povos do imenso império em torno de suas tradições religiosas e culturais, e queriam
resolver a divisão que existia entre samaritanos e judeus.
Esdras recebeu como missão do rei da Pérsia e de seus sete conselheiros:
5.1- Ensinar a Lei de Moisés aos judeus.
5.2- Legitimar teologicamente as reformas culturais e religiosas decretadas pelo
governador Neemias.
Esdras estava a serviço dos interesses do império. Tinha sua benção. Desobedecer à lei de
Moisés, isto é, às leis contidas no Pentateuco, era também desobedecer à lei do imperador (Esd 7,26).
Essa importância dada à observância da Lei de Moisés, certamente tem como um dos seus objetivos,
alcançar a ordem na província de Judá num momento em que os egípcios representavam uma ameaça.
Cooptava as lideranças para o projeto de extorsão de tributos por parte dos persas. Eliminava
qualquer possibilidade de o povo ter esperanças em dias melhores, jogando para o futuro a espera da
vinda de um messias libertador. De outra forma, seria difícil entender a razão por que o rei teria tanto
interesse em que se observasse a Lei de Moisés. Em suma, a concessão cada vez maior de autonomia
aos judeus, incluindo-se a liberdade de observar as suas próprias leis, fazia parte da estratégia persa
de assegurar a lealdade de Judá ao império.
Além da situação de desigualdade e de aumento da pobreza, se aprofundava a crise de
identidade do povo judeu. O exílio já havia causado um grande desânimo no povo. Agora, ia
enfraquecendo cada vez mais a esperança de uma gloriosa restauração das instituições e dos símbolos
centrais dos judeus, que corria o risco de desaparecer enquanto povo com identidade própria.
Nesse momento difícil, o uso da lei exerceu um papel decisivo: manter a identidade cultural.
Não fosse o apego à lei, é possível que os judeus tivessem desaparecido como povo culturalmente
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bem definido, tal como aconteceu com todos os povos da redondeza. Ela deu identidade social,
nacional e religiosa ao povo, garantindo dessa forma sua sobrevivência como nação, num momento
em que corria sérios riscos de ver sua cultura desaparecer em meio a um imenso império. (Cf. Esd 7-
8 e Esd 7,10). Cf. Ne 7,72b-8,12 para perceber como a comunidade judaica se organizou em torno da
lei de Moisés.
Esdras recebeu ainda autorização para exigir dos tesoureiros da Transeufratênia o que fosse
necessário para realizar a missão (Esd 7,21) e para nomear novos juízes e funcionários para velarem
pelo cumprimento das leis de Deus e do rei (Esd 7,25-26). A lei não era mais o Deuteronômio, sobre
a qual Neemias ainda se inspirou, mas um escrito recolhido e compilado nos ambientes sacerdotais
do exílio na Babilônia. A população da Judéia foi convidada a celebração da lei, lida em público e
ratificada por todos (Ne 7,72-8,12). A liturgia prolongou-se na celebração anual da festa das tendas
(Ne 8,13-18) e foi seguida de uma confissão dos pecados (Ne 9,1-3).
A comunidade firmou um pacto de fidelidade ao Senhor, que abrangia a observância da lei e
do culto. Por isso, Esdras proibiu o casamento com as mulheres estrangeiras, incentivou a separação
de quem estivesse casado com elas e a expulsão delas da comunidade (Esd 9-10). A situação difícil
criou muitos conflitos. Os filhos das mulheres estrangeiras não eram considerados judeus, porque a
pertença ao povo era determinada pela mãe da criança (Esd 9,1-2; 10,2-10). O incentivo da instrução
sobre a lei era para chegar à sua observância estrita, considerada como caminho único de salvação
(Ne 8,1-8). Se por um lado Esdras devolveu a identidade ao povo, por outro ele o isolou e segregou
dos povos vizinhos.
Esdras fez o que lhe foi pedido pelo rei da Pérsia: entregou o donativo régio no Templo e
celebrou o sacrifício dos repatriados; informou-se sobre a situação do país e sobre os matrimônios
mistos; investigou os casos concretos e autorizou o divórcio. Houve muitos protestos por parte dos
profetas e dos escritos sapienciais às leis que entraram em vigor nessa época. A missão de Esdras não
parece apontar para uma ampla reforma, mas oferece um esclarecimento sobre a situação de Judá.
No período de Esdras, a lei tornou-se o centro da reforma do judaísmo. A época persa
possibilitou a consolidação da lei e das convicções religiosas, apesar das tensões internas na
comunidade judaica e dos conflitos na formação de grupos. Tudo isso os preparou para enfrentar as
novas idéias e costumes da época helenista, instaurada por Alexandre Magno, como veremos no
próximo estudo. A centralização na lei não significou a anulação da fé; antes, foi uma forma de
protegê-la diante da dominação. A expressão concreta dessa fé manifestava-se mediante a prática e a
observância da lei. Essa fidelidade deu-lhes condições para manterem-se em pé e firmes diante das
ameaças que nasciam de todos os lados.
Não é por acaso que o Pentateuco termina de fixar-se na época persa e de converter-se em
documento base do judaísmo e da identidade da fé judaica. O culto divino da palavra e a leitura da
Torá encontraram suas formas independentes da liturgia sacrifical, na qual o centro era o altar dos
sacrifícios. Agora o centro passa a ser o livro em forma de rolos.
A observância da lei, do sábado e da circuncisão tomou-se o elemento distintivo e essencial
da vida judaica, não só na Palestina, mas também na diáspora. Com essas três instituições o judaísmo
encontrou uma vida religiosa independente do Templo, embora ele continuasse sendo o lugar por
excelência das peregrinações, do culto sacrifical e das celebrações festivas da Páscoa.
6- ESCRITOS BIBLICOS DO SEGUNDO PERIÓDO PERSA: 445-333 a.C.
Temos apenas os documentos do Primeiro Testamento que vão aproximadamente do período histórico
de Neemias (445 a.C.) e Esdras (398 a.C.) até Antíoco Epífanes IV (175-164 a.C.). Este é um período
muito importante para a formação da Bíblia como livro.
6.1- Rute: a avó estrangeira do rei Davi.
Há muita dificuldade para situar o livro de Rute no seu tempo. Alguns o colocam bem antes do exílio,
porque o interpretam como consolidação das leis tribais. Outros o colocam no pós-exílio, o que parece
corresponder melhor à teologia que o livro traz: o universalismo, o sentido do sofrimento e a
concepção de retribuição que havia nesse período. Mesmo que o livro de Rute não seja polêmico, é
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um escrito de resistência; ele faz uma crítica à postura de Neemias e Esdras, que foram contra o
matrimônio de israelitas com mulheres estrangeiras (Ne 13 e Esd 9). Rute é avó de Davi, uma moabita
estrangeira, modelo de piedade. Rute é um protesto contra a discriminação da mulher estrangeira
viúva e pobre. O livro de Rute questiona o tratamento dado à mulher no tempo de Neemias e Esdras.
Contesta também as leis do Deuteronômio (Dt. 23,4-7) e confirma o profeta Malaquias (Ml 2,14-16),
que se opõe à separação conjugal de judeus com as esposas estrangeiras exigida por Esdras (Esd 9).
6.2- Jonas: a Palavra de Deus é para todos.
Jonas, na língua hebraica, significa "pomba". Ele recebeu a missão de anunciar a Palavra de
Deus ao povo de Nínive, mas recusou-se e pegou o barco para Társis. Diante de uma forte tempestade
ele é jogado ao mar, engolido por um grande peixe e vomitado numa praia de Nínive. Faz pregações
na cidade e toda a população se penitencia e se converte a Deus. É uma espécie de novela bíblica, que
tem por finalidade mostrar que a Palavra de Deus, por um lado, é eficaz, apesar da resistência e
das dificuldades do profeta e, por outro, é dirigida a todos, não só ao povo de Israel.
Jonas, de certa forma, é um protesto contra Esdras, que aprisiona a Palavra de Deus e quer determinar
os destinatários da salvação: os puros, isso é aos pertencentes ao povo eleito, o único escolhido por
Deus. Nínive é a capital da Assíria, que havia destruído o reino do Norte. Os seus habitantes eram
considerados inimigos do povo de Israel e, consequentemente, de seu Deus.
6.3- Provérbios 1-9: a sabedoria vem de Deus.
O livro dos Provérbios pertence à literatura sapiencial. O autor identifica-se com Salomão, filho
de Davi, rei de Israel. Isso não significa que seja ele, de fato, seu autor, mas a ele é atribuída à autoria.
Isso para valorizar e sacralizar a obra, por Salomão ser filho de Davi, o ungido do Senhor, o portador
da Aliança e das Promessas. O livro é formado por nove coletâneas. A nós interessa a primeira, que
surgiu nesse segundo período da dominação persa (Pr 1-9). Ela traz as recomendações da sabedoria:
exortações do pai educador que previne o filho contra as más companhias; ensina como adquirir e
escolher a sabedoria (1,20-33; 8,22-35). No final da coletânea o autor apresenta a antítese da
sabedoria: a insensatez (Pr. 9,1-6; 9,13-18).
6.4- Jó.
O livro de Jó também faz parte da literatura sapiencial. Já tivemos a oportunidade de conhecer
uma parte do livro que surgiu como escrito provavelmente no período da monarquia unida. É o início
e o final do livro (1,1-2,13 e 42,7-17) que são escritos em prosa, com uma unidade interna e teológica.
A parte em poesia constitui o centro da obra e traz outra visão teológica (3,1 - 31,40; 38,1 - 42,6), que
melhor corresponde o período do pós-exílio. Depois da catástrofe de 587 a.C., os judeus exilados na
Babilônia tinham perdido tudo. Viveram, então, profunda crise de fé no poder e na justiça de Deus.
Alguém que conhecia a história de Jó teria se servido dela para animar os exilados na espera paciente
da justiça de Deus, pois no livro de Ezequiel ele é apresentado como exemplo de justiça (Ez 14,14.20).
O autor compôs os poemas (3,1-31.40;38,1-42,6) com finalidade pastoral e profética, inspirando-se
em Ezequiel, que o havia precedido.
No livro, Jó é um herói que sofria uma série de provações, e afirmava não as merecer. Três de seus
amigos e Eliú discutiam com ele sobre o valor da vida, da justiça humana e divina (31,35-37). É um
diálogo entre quatro pessoas: em três ciclos de discursos (3-14; 15-21; 22-27). Todos eles defendem
a tese tradicional da teologia da retribuição terrestre: se Jó está sofrendo é porque pecou; ele pode
ser justo aos seus próprios olhos, mas aos olhos de Deus, não.
Jó afirma sua inocência e descreve a injustiça que gera o sofrimento dos pobres (Jó 20 e 24), e
reivindica o direito de ser reconhecido publicamente na sua inocência. Mas agindo dessa forma ele
acusa o deus da teologia da retribuição como responsável pelo seu sofrimento. O poeta serve-se do
mistério da dor humana para sondar o mistério de Deus.
Nesse momento entra Eliú, um quarto personagem que contesta Jó e seus amigos, e tenta justificar a
maneira de Deus agir (32-37). Ele é interrompido pelo próprio Deus que se revela a Jó em uma
teofania. Os discursos de Deus são um prolongado questionamento a Jó: "Onde estavas, quando lancei

79
os fundamentos da terra? Dize-me, se é que sabes tanto. Conheces as leis dos céus, determinas o seu
mapa na terra? (38,4.33). Acaso é sob tua ordem que a águia remonta o vôo e constrói seu ninho nas
alturas?" (39,27).
As perguntas continuam. O que o autor quis dizer com elas? Se o ser humano não é capaz de
compreender os mistérios da natureza criada, muito menos será capaz de entender os desígnios de
Deus. Jó responde a Deus: "Eis que falei levianamente: que poderei responder-te? Porei minha mão
sobre a boca; falei uma vez, não replicarei; duas vezes, nada mais acrescentarei" (Jó 40,5).
Deus faz um segundo discurso de seu domínio sobre as forças do mal e Jó por fim conclui: "conhecia-
te só de ouvido, mas agora te viram meus olhos" (Jó 42,5). No sofrimento, Jó faz a experiência do
encontro com o verdadeiro Deus. O poema termina com um ato de fé na bondade e santidade infinita
de Deus que ultrapassa a capacidade humana de entender os seus desígnios (42,1-6).
6.5- Cântico dos Cânticos.
O livro do Cântico dos Cânticos apresenta em forma de poemas o amor humano entre dois
jovens que se apaixonam, se unem, se perdem, se buscam e por fim se encontram. O amado é chamado
de "rei" (1,4.12) e Salomão (3,7.9), e a amada de "Sulamita" (7,1). Houve quem quisesse colocar a
redação do livro no tempo de Salomão ou pouco depois. Porém o estilo e a linguagem situam a obra
no período persa, e alguns até o colocam no período helenista, mais tarde ainda.
O livro do Cântico dos Cânticos apresenta três grandes temas salvíficos: 1) a gênesis do amor humano;
2) o êxodo/exílio como superação das dificuldades para o encontro com a terra,amado/a; 3) a redenção
da amada, isto é, o povo de Israel.
Diversas interpretações foram dadas ao Cântico dos Cânticos: natural, mítica e mística ou alegórica.
A interpretação natural descreve a história do amor humano entre um homem e uma mulher. A mítica
retrata histórias dos deuses e a mística ou alegórica evoca o amor entre Deus e seu povo; o primeiro
casal humano; o amor de Cristo pela Igreja; o amor entre Cristo e a pessoa humana.
O livro do Cântico dos Cânticos, situado na época persa, traz uma nova compreensão da sua
mensagem. Ele faz um protesto contra a marginalização da mulher, sobretudo a partir de Neemias,
Esdras e do grupo sacerdotal que elaborou as leis de pureza. A resistência e a valorização da mulher
cresceram nesse período em que sua marginalização era mais forte. A jovem se apresenta
independente, corajosa, enfrenta os guardas da cidade (Ct. 3,1-4; 5,2-8), o rival que a persegue (Ct.
8,11-12) e os irmãos que a querem proteger (Ct. 8,8-10). A obra ressalta a dignidade da mulher,
independentemente de ela ser ou não, mãe.

6.6- A fusão das tradições Javista, Eloísta, Deuteronomista e Sacerdotal (JEDP)2


Já tivemos possibilidade de conhecer as quatro principais tradições que formam de modo especial os
cinco primeiros livros da Bíblia, a Torá: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Esses
livros sofreram acréscimos, ampliações, reinterpretações e repetições em seus textos e foram
concluídos nessa época, formando o atual Pentateuco. A obra começou a ser escrita muito antes.
Vamos fazer uma rápida retrospectiva das quatro principais tradições que integraram o Pentateuco:
Javista, Eloísta, Deuteronomista e Sacerdotal.
No estudo sobre a monarquia unida, por volta do ano 1000 a.C., vimos a Tradição Javista nos escritos
da época. Muitos deviam integrar essa escola. Seus autores mostraram um interesse particular pelas
narrativas patriarcais; as promessas, a páscoa e as bênçãos. Mais adiante, por volta do ano 900 a.C.,

2
Há uma tendência atual de relativizar, pelo menos nas discussões entre os biblistas, as Tradições Eloísta e um pouco
menos a Javista, dando todo o valor às Tradições Deuteronomista e Sacerdotal, como se as duas anteriores fossem pré-
Deuteronomistas. Mas na literatura bíblica atual continua a menção das quatro tradições principais na formação do
Pentateuco (cf. KONING5. 1. A Bíblia nas origens e hoje. Petrópolis, Vozes, 1998. pp. 79-83; SICRE, J. L. Introdução
ao Antigo Testamento. 2. ed. Petrópolis, Vozes, 1999. pp. 86-91). Por isso, neste estudo conservamos as quatro principais
tradições que teriam contribuído na formação do Pentateuco segundo a teoria de Welhausen. A pesquisa dos estudos
bíblicos avança, e isso é bom! Mesmo assim, não podemos ignorar os benefícios que essas descobertas trouxeram, e sem
dúvida servirão de pedestal para o avanço dos novos estudos na área bíblica. As tradições não podem ser ignoradas no
estudo da formação do Pentateuco mesmo que futuramente surjam novas propostas a esse respeito.
80
surgiu um segundo grupo, no reino do Norte, identificado como Tradição Eloísta. Seu interesse maior
é o tema da Aliança.
Mais tarde, por volta do ano 722 a.C., entre os escritos do exílio em Judá, também no reino do Norte,
encontramos o início da Tradição Deuteronomista, que é o primeiro núcleo do Deuteronômio. Seu
interesse maior é a questão da terra e da monarquia. Por fim a Tradição Sacerdotal, que surgiu durante
o exílio na Babilônia, e cujo interesse maior era abordar os temas relacionados às leis, as normas
culticas, a genealogias, cifras etc.
A fusão das quatro tradições, que formam os cinco livros do Pentateuco, foi atribuída ao grupo
sacerdotal, especialmente Esdras, embora seja difícil afirmar isso com toda a certeza. No seu conjunto,
o Pentateuco reflete a estrutura religiosa e social de Israel, desde os patriarcas e Moisés até Esdras
que, provavelmente, o conclui.
6.7- Salmos 19,8-15; 85; 96-98; 113; 116; 118; 119. Esses salmos refletem alguns contextos e
preocupações desse período. Os salmos 19,8-15 e 119 são uma exaltação à Lei de Deus. A Lei é
apresentada nos seus diversos sinônimos: testemunho, preceito, estatuto, mandamento, promessa,
palavra, norma, caminho. Porém, deve ser entendida num sentido mais lato como ensinamento
revelado, assim como os profetas o transmitiram.
O salmo 85 promete aos repatriados a paz messiânica, anunciada por Isaías e Zacarias. Os
salmos 96-98 exaltam a Deus como o rei e juiz triunfante. Os dois últimos são hinos escatológicos.
Neles se encontram muitas referências a salmos anteriores e ao Terceiro Isaías. No livro dos salmos
eles foram agrupados pela sua afinidade universalista e celebram com entusiasmo o Deus entronado,
rei e juiz de Israel, Senhor dos povos.
Os salmos 113, 116 e 118 iniciam o hallel (isto é, o aleluia, o hino de louvor) a Deus. Esses
salmos eram recitados pelos judeus nas grandes festas, principalmente na refeição pascal. Exaltam o
nome do Senhor que "ergue o fraco da poeira e tira o indigente do lixo, fazendo-o sentar-se com os
nobres, ao lado dos nobres do seu povo [...]". A ação de graças continua nos lábios da comunidade,
que é representada nos diversos grupos que em procissão entravam no Templo. É provável que fossem
usados na liturgia para a festa das Tendas, à qual se referem Ne 8,13-18; Esd 3,4; Zc 14,16; Ex 23,14.

7- ESCRITOS NÃO BÍBLICOS:


Os papiros de Samaria foram descobertos por volta de 1962-1963 E.C. (= era cristã) no vale do Jordão.
Originários do Sec. IV a.E.C. do segundo período persa. São um total de 20 fragmentos todos de
caráter legal e administrativo. Esses fragmentos trazem a lista dos governadores da Samaria do
período persa.

CONCLUSÃO
O período persa destacou-se pelos seus projetos de reconstrução da Judéia, de modo especial
de Jerusalém. Estes, sem dúvida, reacenderam a alegria e as esperanças nos exilados de recomeçar a
vida na sua própria terra. Um sonho muito difícil de ser concretizado. A destruição das cidades da
Judéia, do Templo, de Jerusalém e de suas muralhas deu-se no ano 587/6. Sua reconstrução foi lenta
e difícil, à custa de muito sacrifício. Na verdade, atrás dos projetos de reconstrução escondiam-se os
projetos expansionistas da Pérsia, que desejava chegar até o Egito, tendo em vista a ampliação da
dominação econômica com a cobrança de tributos. Para isso, ela precisava, portanto conquistar a
simpatia do povo de Judá, reconhecendo sua identidade e tê-lo como aliado e súdito.
Sasabassar foi o primeiro chefe de caravanas a conduzir um grupo de exilados e com a autorização
da Pérsia devolver-lhe os objetos de culto e reconstruir o Templo de Jerusalém (Esd 1,8-11).
Encontrou oposição e apenas conseguiu o lançamento da pedra fundamental (Esd 5,14-16).
Com a morte de Ciro, assume seu filho Cambises, que continuou o intento expansionista do pai
chegando até o Egito, mas teve de retomar devido aos conflitos internos na sede do império; morreu
em consequência deles.

81
Dario I, depois de muita luta, impôs-se em 521 a.C., consolidando o império persa. Incentivou a
reconstrução do Templo, a qual foi levada adiante por Zorobabel, apoiado pelos profetas Ageu e
Zacarias. O Templo foi reinaugurado em 515 a.C., mas sem a presença de Zorobabel e do profeta
Ageu. Não se sabe ao certo qual foi o fim deles.
O período persa do tempo de Sasabassar e Zorobabel, que corresponde ao tempo dos dois primeiros
projetos, foi muito rico em produções literárias. Nele nasceram os livros de: Ageu, Zacarias (1-8),
Terceiro Isaías (56-66), Joel, Levítico (1-7; 11-16) e diversos salmos.
Neemias levou adiante o terceiro projeto que visava a reconstrução dos muros da cidade de Jerusalém
(Ne 2,11-3,38) e da comunidade judaica. Era um homem decidido. Demonstrou-se preocupado com
a situação do povo, sobretudo com os pobres e explorados. Então, pediu aos exploradores que
devolvessem as terras roubadas dos pobres e perdoassem as dívidas acumuladas (Ne 5,7-13). Neemias
viu no problema da terra e da família a raiz dos males sociais do seu tempo. Por isso, fez valer a lei
do ano jubilar por meio do perdão das dívidas para devolver a dignidade às famílias e ao povo.
Conseguiu reconstruir os muros da cidade de Jerusalém na primeira fase de sua permanência em Judá.
Retomou uma segunda vez e preocupou-se mais em restabelecer a "pureza legal" e promoveu
politicamente Judá, que passou a ser uma província da Pérsia. Deixou caminho aberto para Esdras
que chegou à Judéia por volta de 398 a.C. e deu continuidade ao trabalho iniciado por Neemias na
reconstrução da comunidade judaica, que havia perdido sua identidade. Restabeleceu-a pela
observância estrita à lei de Deus e do rei (Esd 7,26). Expulsou as mulheres estrangeiras e seus filhos
que ameaçavam essa fidelidade (Esd 10,3.11). Em protesto a essa medida de Esdras, surgiram
diversos escritos bíblicos com características proféticas contra a exclusão da mulher estrangeira, a
opressão sobre o povo e o fechamento da comunidade sobre si mesma: Rute, Jonas, Jó, Cântico dos
Cânticos, Provérbios (1-9). Nesse tempo o Pentateuco recebe forma definitiva, com a união das
Tradições Javista, Eloísta, Deuteronomista e Sacerdotal. Surgiram também alguns salmos.
Por volta do ano 350 a.C., o império persa começou a apresentar sinais visíveis de decadência
provocada pelos conflitos internos na sucessão dos soberanos. A Grécia já havia iniciado suas
conquistas na Ásia com Filipe, rei da Macedônia, assassinado em 336. Assumiu em seu lugar o filho
Alexandre. Ele continuou as guerras de conquista, chegando a ocupar Anceniva, Tiro, Síria e
Jerusalém na batalha de isso, em 333 a.C.

Perguntas:
1º) Tudo começou com um general chamado Ciro. Além do forte exército, ele era considerado
pacificador e respeitador das tradições dos povos. Entrou na Babilônia praticamente sem encontrar
nenhuma resistência e aclamado pelo povo, que o considerava libertador. Todo o império
babilônico passa para as suas mãos, inclusive a Palestina. Como é que os israelitas enxergaram
essa virada?

DOMINAÇÃO GREGA
(333 - 63 a.E.C.)
Após a volta dos exilados a Jerusalém e a reconstrução da comunidade judaica, a história
aparentava estar caminhando muito bem, apesar das dificuldades internas em relação à
aplicação das normas de pureza. Mas houve uma reviravolta com a tomada do poder por um
novo império, o dos gregos. Em 333 a.C., o rei Alexandre Magno impôs o seu poder na região,
começando pela Síria e chegando até o Egito, onde fundou a cidade de Alexandria. Conquistou
sem muita dificuldade o território que antes pertencia à Pérsia, inclusive a nação do Povo de
Deus e a cidade de Jerusalém.
O imperador Alexandre em pouco tempo conseguiu organizar um dos maiores impérios
da antiguidade, tendo como limite, no Oriente, as Índias. Mas com 32 anos adoeceu e deixou
um grande império para ser dividido entre seus generais, chamados diádocos.
Para o nosso estudo nos interessa apenas os grupos dos Ptolomeus e dos Selêucidas.

82
8- A GLOBALIZAÇAO HELENISTA INVADE A CULTURA DE ISRAEL
No início, todo o Oriente contemplou estupefato a fulminante entrada em cena de Alexandre
Magno. De todos os impérios e respectivas culturas que o mundo antigo conheceu, os gregos foram
os que mais deixaram a sua influência, mesmo após a extinção de seu Império, principalmente com
a implantação da língua grega em todas as regiões dominadas. Mas a presença dos gregos não se
resumiu ao novo idioma; com o passar do tempo, os novos governantes gregos tentaram impor
tanto a cultura quanto as suas divindades. Alguns destes governantes, sobretudo no período dos
Selêucidas, empreenderam uma verdadeira campanha de helenização da cultura judaica.
(Helenização é um termo usado para descrever a difusão da cultura grega e, em menor escala,
de seu idioma)
Os gregos tinham um modo particular de conceber a vida em família e na sociedade, muito
menos marcada pela tradição e pela dimensão comunitária. Tinham diferentes formas de
organização social, de tradições culturais e de vivências religiosas. É com essa realidade que o
povo de Israel teve de conviver por muitos anos e em constante conflito.
As cidades gregas, as chamadas “polis” que foram se formando dentro do novo Império,
além de um jeito diferente de promover o comércio (mais independente da ação dos reis), tinham
a presença de templos para as divindades e, uma vida mais intensa, nas praças, nos ginásios de
esportes, nos locais públicos e teatros. No centro da cidade havia o “empórion” (isto é, mercado).
Ele ficava na praça central, conhecida na língua deles por ágora. Além do mercado, eram fonte de
lucro as minas, normalmente de propriedade do Estado, e arrendadas a pequenas empreiteiras que
absorviam a maior parte da mão-de-obra.
Cada cidade tinha sua divindade protetora principal, com seu templo. Ele era provido por
uma casta sacerdotal que oficiava as cerimônias religiosas. Os sacerdotes não exerciam grande
influência na vida moral e ética do povo. A religião interessava enquanto servia aos interesses dos
homens e mulheres que frequentavam o templo, o qual servia não só para o culto da divindade,
mas também como oficina de artes, escola de música, aprendizagem dos escritos sagrados
(hieróglifos e cuneiformes). O templo exercia também a função bancária.
A sociedade grega era dividida, basicamente, em três classes sociais: a dos cidadãos, a dos
libertos e a dos escravos. Os cidadãos eram somente os indivíduos do sexo masculino nascidos de
pais cidadãos. Eles gozavam de plenos direitos. Alguns, com raras exceções, obtinham a condição
de cidadão, graças a leis especiais. A segunda classe social, a dos libertos, era conhecida em Atenas
com o nome de metecos. Era formada, na sua maioria, por estrangeiros que não tinham os mesmos
privilégios políticos dos cidadãos, mas podiam possuir terra.
Entretanto, a maior parte da população era constituída por escravos, divididos em escravos
urbanos e escravos das minas. Poucos escravos urbanos conseguiam passar para a segunda classe
social, a dos libertos. Normalmente melhoravam sua posição pela fidelidade aos serviços prestados.
Podiam, então, receber um salário pelo trabalho e possuir propriedades. Alguns chegavam até a
ocupar posições respeitáveis como pequenos funcionários públicos e gerentes de banco. Mas aos
escravos das minas era reservado tratamento muito cruel e sem nenhum direito.
Apesar das diferenças entre as classes sociais e da desigualdade entre ricos e pobres, não
havia desnível social tão gritante como nós conhecemos hoje. Comiam o mesmo tipo de comida,
vestiam o mesmo tipo de roupa e participavam do mesmo tipo de divertimentos. Essa igualdade substancial
era criada pelo sistema de serviços que os homens abastados prestavam ao Estado em forma de contribuições
para custear o teatro, equipar a marinha e sustentar os pobres. Os gregos estavam habituados a um estilo de
vida sem grande conforto e luxo. Professores, escritores, pedreiros, carpinteiros e trabalhadores comuns da
população recebiam uma dracma por dia. O salário era o mesmo para todos. Os bolos de cevada, cebola e
peixe, regados com vinho, eram a alimentação principal. O vestuário era um pedaço de pano retangular
enrolado em torno do corpo - preso por um alfinete nos ombros e amarrado na cintura com uma corda e
sandálias. A cultura grega distinguiu-se por sua filosofia de vida e pela filosofia clássica, que teve grande
influência na cultura universal. Entre os primeiros filósofos helenistas estão os cínicos, que surgiram por
83
volta do ano 350 a.C. Diógenes foi uma das figuras mais representativas desse movimento, tomando-se
conhecido pelo seu gesto de procurar, em pleno dia, com uma lanterna acesa, um homem honesto.
Nessa mesma época, surgiram duas escolas, cada qual com sua filosofia de vida. A primeira foi a de
Epicuro, surgida por volta de 350 a.C. Ela deu origem ao epicurismo, cujo princípio era a lei do menor
esforço. Era um liberalismo total, contanto que a pessoa vivesse sem dor e sem esforço em nenhum sentido.
A segunda filosofia de vida da época é o estoicismo, nasceu como reação aos epicureus; é chamada de
escola estoica de Zenão. Esta primava pelo rigorismo na observância da disciplina e das regras do bem-
viver. Trazia listas de virtudes que deviam ser seguidas e de vícios que deveriam ser evitados. Paulo, o
apóstolo, sofreu influência da escola estoica. Nos seus escritos encontramos, com certa frequência, listas de
defeitos e virtudes (cf. Rm 1,29-32; 1Cor 5,10-11; 6,9-10; Gl 5,19-21 e outras). Contemporaneamente às
filosofias de vida, havia a filosofia clássica desenvolvida pelos grandes filósofos Platão, Sócrates,
Aristóteles e outros. Os gregos cultivavam também ciências como a matemática, a arquitetura, a náutica, as
letras e, sobretudo as artes plásticas. O mundo e a pessoa para eles eram constituídos por dois elementos:
espírito e matéria. O espírito valia mais do que a matéria. Essa mentalidade se reproduziu na apreciação do
trabalho e, por conseguinte, nas pessoas: a produção intelectual era mais valorizada, enquanto o trabalho
que exigia mais esforço físico era considerado inferior, por isso era reservado aos escravos.
Com a morte prematura de Alexandre, seu vasto império foi dividido entre seus generais,
chamados de diádocos. Quatro deles disputaram a divisão do reino de Alexandre: Seleuco;
Lisímaco; Cassandro e os Ptolomeus (1ºMc 1,7-9; Dn. 8,8) 1

9 - DOMINAÇÃO DA DINASTIA DOS PTOLOMEUS (323-198 A.C)


Depois das lutas entre os generais de Alexandre Magno, a dominação dos gregos sobre a
Palestina pode ser dividida em dois grandes períodos. Num primeiro momento, isto é, de 301 a 198
a.C., ficou sob o domínio da dinastia do general Ptolomeu a partir de Alexandria no Egito.
Depois de 198 a.E.C., porém, os Selêucidas, como ficaram conhecidos os sucessores do
general Seleuco, conquistaram a Palestina e passaram a dominar Israel desde a Antioquia da Síria,
até a capital de seu império.
A dinastia dos Ptolomeus é assim chamada porque o nome do primeiro rei dessa dinastia foi
Ptolomeu, um dos quatro generais de Alexandre Magno. Como seu pai se chamava Lagos, também
é conhecida como a dinastia dos Lágidas.
O primeiro rei desse novo império foi Ptolomeu I Soter (323-285 a.C.). Entrou em Jerusalém
em 320 a.C., em dia de sábado, com o pretexto de levar oferendas ao Templo, mas o resultado foi o
estabelecimento do domínio sobre a cidade e o país de Israel. Prendeu muitos judeus e os levou para
Alexandria, no Egito. Por outro lado em seu reinado, favoreceu a cultura grega, criando um museu
em Alexandria.
O reinado dos Ptolomeus pode ser caracterizado como um estado burocrático, fortemente
centralizado e militarmente estruturado, principalmente para controlar e fiscalizar o recolhimento
de impostos. Eles não permitiam que as regiões controladas fossem autônomas, por medo de motins
e por temor de perder seu poder. Do ponto de vista econômico, foi uma época de muita
exploração. Em todas as regiões dominadas, estabeleciam oficiais, tropas militares e
encarregados das finanças e do recolhimento dos impostos. Cerca de um terço da produção era
arrecadado em forma de tributo. Os Ptolomeus arrendavam à famílias ricas o direito de recolher
os impostos, dando-lhes liberdade no processo de arrecadação. Com isso, conseguiam lucros
financeiros e maior influência política.
O auge do poder dos Lágidas foi, no reinado de Ptolomeu II, o qual patrocinou algo que
passou a influenciar a vida dos judeus da diáspora (os que se encontravam fora da Terra Santa) e
depois dos cristãos do N.T. Como a língua grega tornou-se oficial, ninguém mais conseguia ler os
livros sagrados escritos em hebraico. Nasceu então a necessidade de traduzir a Sagrada Escritura
para o grego2. Nasceu a chamada tradução dos Setenta ou Septuaginta.
Os judeus da diáspora3 dispersos pelas cidades helenizadas viviam mergulhados na
cultura grega. Embora inicialmente pudessem, tal como os judeus da Palestina, viver

84
livremente sua fé em Javé, aos poucos, foram sendo influenciados pela cultura helênica. No
entanto, eles não opunham tanta resistência contra o Helenismo. Especialmente em
Alexandria, iniciaram um processo de inculturação, conservando, porém, a observância da lei
e o culto na sinagoga.
Nesse período da dominação dos Ptolomeus, os Judeus da Palestina se dividiram. De um
lado, a classe dirigente e, de outro, os setores mais pobres, encarregado de manter quem estivesse
no poder, porém fiéis à lei de Moisés. A classe dirigente, composta pelos chefes dos sacerdotes e
por setores da aristocracia, a fim de garantir seus interesses econômicos, apoiou a introdução do
modo de vida dos gregos no Judaísmo.
O sumo sacerdote dos judeus continuava desfrutando de pleno poder. Assim também as
famílias ricas. Em 2º Macabeus 3,11, temos uma referência a uma dessas famílias que tinha muito
dinheiro depositado no templo de Jerusalém, sinal de que o templo funcionava ao mesmo tempo
como banco. Isso nos revela que as principais famílias judias estavam plenamente integradas no
mundo helênico. Mais tarde, quando os Selêucidas venceram os Ptolomeus, essas apoiaram o rei
Antíoco III contra Ptolomeu V.
A presença dos gregos trouxe outra mudança significativa: não há mais um governador civil
ao lado do sumo sacerdote, como no período persa. O próprio, sumo sacerdote passa a exercer
também o poder civil. A administração não será mais feita por um governador, mas por um
conselho de anciãos, composto de sacerdotes e leigos, presidido pelo sumo sacerdote (l Mc 12,6;
2º Mc 1,10; 11,27). Mais tarde, na época dos Macabeus, esse conselho seria chamado de Sinédrio.
Com isso, aumentou ainda mais o poder do sumo sacerdote. Além de desempenhar as
funções no templo, passou a exercer tarefas políticas, como representante da comunidade judaica.
No entanto, embora tivesse poder para administrar as questões internas do Judaísmo, ele tinha
pouca autonomia administrativa.
Frente a realidade, houve resistência do povo da terra contra a exploração econômica e
política dos gregos. Para a comunidade judaica fiel à observância da lei e ao culto no Templo de
Jerusalém, o mais importante de tudo era garantir a pureza de sua identidade, de sua tradição. Por
isso, reagiu fortemente contra a helenização dos costumes judaicos.
Quando mais tarde os Selêucidas impuseram na marra a cultura grega, o povo resistiu
bravamente ao processo de desintegração de sua identidade.
É importante ainda lembrar que os Lágidas não impuseram à força seu modo de vida, sua
cultura. Porém, criaram as condições para que o helenismo fosse mudando aos poucos a
mentalidade e os costumes judaicos.
2
A comunidade judaica teve muita dificuldade para aceitar a tradução da Bíblia do hebraico para o grego, porque o
uso da língua grega representava o domínio do império grego e uma ameaça para a cultura e a religião judaicas. Essa
tradução já representava a assimilação da cultura grega pelos judeus, pois os seus textos sagrados não podiam mais
ser lidos na língua original. Para consolar essas comunidades foi contada a história dos setenta (ou setenta e dois)
sábios que fizeram uma tradução do texto sagrado de forma idêntica, apesar de cada qual permanecer na sua cela,
sem ter contato um com o outro. Essa história amenizou a consciência das comunidades judaicas que não reconheciam
a tradução dos setenta, como texto sagrado e serviu para mostrar que o texto grego é tão sagrado quanto o hebraico
e, por isso, é querido por Deus. Pois, opinavam que se duas pessoas não fariam uma tradução igualzinha, quanto mais
setenta ou setenta e duas. Isso só poderia ser obra de Deus que agiu tanto na inspiração da produção do texto original
quanto no da tradução. Essa versão da Bíblia em grego não influenciou somente os judeus daquela época; quase todos
os autores do NT (que foi escrito em grego), ao citarem o AT, o fazem utilizando a versão em grego da LXX.
Obs. As Bíblias que utilizamos, usam os nomes dos livros da versão grega, bem como a divisão em dois volumes dos
Livros dos Reis e de Samuel.
3
Diáspora = processo de dispersão dos judeus pelo mundo e a consequente formação de comunidades judaicas fora
da Palestina. A primeira diáspora iniciou-se em 586 a.C., quando o imperador babilônico Nabucodonosor invadiu
Jerusalém e deportou os judeus para a Babilônia. Apesar da libertação de Jerusalém pelo imperador persa Ciro I em
539 a.C. apenas uma parte dos judeus retornou para lá. A maioria optou por permanecer na Babilônia e alguns
migraram para vários países do Oriente. O segundo momento da diáspora aconteceu no ano 70, com a destruição de
Jerusalém pelos romanos. A partir desse momento, os judeus dirigiram-se a diversos países da Ásia Menor e do sul
da Europa, formando comunidades que mantiveram a religião e os hábitos culturais judaicos.
85
A dinastia dos Lágidas do Egito perdeu a hegemonia sobre a Judéia por volta do ano 198
a.C., na batalha de Panion, e a partir dessa data os Selêucidas da Síria passaram a dominar a região
da Judéia. No período dos Ptolomeus grande parte dos antigos escritos ganha redação definitiva:
Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas.
Os dois livros das Crônicas teriam constituído inicialmente uma só obra, igualmente Esdras
e Neemias. De fato, são muito semelhantes no estilo e no conteúdo. Tratam dos mesmos temas
fundamentais: o Templo, o culto, o clero, o governo de Davi, a restauração da comunidade pós-
exílio. Surgiram diversos outros escritos que retratam esse contexto histórico e suas problemáticas
mais marcantes.
10 - LITERATURA DE RESISTÊNCIA NA ÉPOCA DOS PTOLOMEUS
A literatura que surge no decorrer do período dos Ptolomeus são os livros de Ester,
Eclesiastes, Tobias e os capítulos 9-14 de Zacarias .
10.1- Ester.
O livro é muito mais uma novela do que uma história real. Do livro de Ester chegaram até
nós duas versões: uma em hebraico e outra em grego. A versão hebraica foi editada em torno
de 350 a.C., no final da época persa, pouco antes de os gregos destruírem a grande potência e
têm 167 versículos e a versão grega que foi editada entre 114 e 112 a.C., durante o governo
de João Hircano, possui um acréscimo de 93 versículos. Nas Bíblias, normalmente, são
assinalados os acréscimos dos versículos em grego.
A versão grega preservou: os relatos do sonho de Mardoqueu, a carta de condenação dos
judeus, a oração de Mardoqueu e de Ester, a visita de Ester ao rei, a carta de reabilitação dos
judeus e a interpretação do sonho de Mardoqueu. É estranho que no texto em hebraico não se
mencione nenhuma vez o nome de Deus; talvez isso justifique posteriores acréscimos em
grego, nos quais Deus passa a fazer parte da história que se desenrola com seu povo.
10.2- Eclesiastes ou Coélet.
Eclesiastes vem do grego ekklesiastes, isto é, aquele que convoca a assembleia ou ekklesia, e
pode significar também membro da assembleia. É atribuído à "Coélet, filho de Davi" (1,1; 1,12).
O autor procura descrever o tempo de exploração interna e externa na Palestina, que
podava toda esperança de um futuro melhor para o povo, principalmente para os pobres, fazendo
como que um grande balanço a respeito da situação humana de sua época. Procura chamar a
comunidade para constatar a realidade, sair do mundo das ilusões que o sistema de sociedade
apresenta como ideal de vida feliz: a riqueza, a busca do poder, ciência, trabalho para enriquecer,
prazeres, sede pelo status social. O autor indica dois caminhos que a comunidade deve percorrer.
O primeiro é descobrir Deus como Senhor da vida, do mundo e do processo histórico que os
envolve, dando a Deus a chance de agir na vida do povo. O segundo é Deus que está sempre
presente na vida concreta de cada ser humano, a cada instante. O Eclesiastes procura denunciar as
consequências de uma estrutura social injusta, apontando que o povo de Deus não tem vida de qualidade
quando é impedido de comer o pão como fruto do próprio trabalho. Consequentemente, ele é impedido da
vida, que lhe foi roubada não por uma pessoa, mas por um sistema de sociedade, que privilegia uma
minoria e acaba escravizando a maioria ou a nação inteira.
10.3- Zacarias 9-14.
O livro de Zacarias foi escrito em duas épocas diferentes: no período persa, os capítulos 1-
8 por volta de 520, durante a construção do 2º templo e, e em 115 a.C no período grego, os
capítulos 9-14.
Um tema comum às duas partes é a esperança na vinda de um Messias. É que o povo
vivia numa realidade de dura opressão, sem perspectivas de alcançar a libertação, em curto
prazo. Por isso, olha para o futuro e espera por um Messias pobre, bom pastor e da linhagem
de Davi.
Na primeira parte (9-11), merece destaque a referência à vinda de um rei messiânico
pobre, montando um jumentinho. Seu projeto é acabar com a força das armas e estabelecer
86
uma era de paz em todo o planeta (9,9-10). É o messianismo que se refaz à linha dos antigos
profetas. Outra característica do Messias é que ele é apresentado como o bom pastor em
oposição aos maus pastores. (Leia Zc.11,4-17e compare com Ez 37,15-28!).
Na segunda parte (12-14), a figura do Messias volta a ser ligada com a descendência de
Davi (12,8). É o messianismo centrado em Jerusalém, onde o culto e o templo, vinculados à
lei, são as mediações privilegiadas entre Deus e o povo. Nessa segunda parte, a esperança na
libertação está organizada em torno de três figuras-chave da história passada de Israel. São elas:
Davi, Elias e Josias. É um texto de esperança dirigido para Jerusalém, para a Judéia e para os
descendentes de Davi (12,8).

11- DOMINAÇÀO DOS SELEUCIDAS (198-142 a.C.)


O domínio dos Selêucidas sobre a região da Judéia começou em 198 a.C., quando Antíoco
III venceu os Lágidas. A troca de domínio dos Lágidas para os Selêucidas não significou apenas
uma mudança de poder, mas uma significativa melhora para o povo.
A população de Judá não estava satisfeita sob o domínio dos Ptolomeus. Havia grande
descontentamento. Eles eram menos generosos em conceder certos privilégios aos países
dominados, pois tinham medo de perder o poder ao dar muita autonomia. Contrariamente, os
Selêucidas eram mais generosos, concediam aos países dominados a liberdade de se organizarem
a maneira das cidades gregas, com um conselho e as assembleias dos cidadãos, mesmo que essa
liberdade não se estendesse a toda a população, ou seja, aos escravos e libertos.
Antíoco III favoreceu muito os habitantes de Jerusalém, renovando os privilégios para a
cidade e o Templo por meio de um decreto especial, no qual reconheceu a boa acolhida que os
Selêucidas tiveram por parte do Sinédrio, que saiu ao encontro deles, deu comida ao exército e aos
elefantes, e ajudou o exército a capturar a guarnição egípcia.
Como retribuição, Antíoco ajudou a reconstruir a cidade destruída pelas ações bélicas e
permitiu que os habitantes dispersos voltassem para repovoar as cidades; deu liberdade aos
prisioneiros; providenciou animais, sal e lenha para os sacrifícios do Templo; ofereceu vinho,
azeite, incenso, grãos e farinha para os ritos; proibiu a importação de carnes ritualmente impuras;
incentivou o término das obras do Templo e deu liberdade para viverem a lei segundo as
prescrições dos antepassados; isentou o conselho dos anciãos, sacerdotes e escribas das taxas do
Templo sobre os animais e o sal; aos demais cidadãos de Jerusalém concedeu a mesma isenção de
impostos durante três anos; dispensou os cidadãos de um terço dos serviços obrigatórios. Antíoco
III confirmou o direito dos judeus de se regerem segundo sua lei, a Torá (2º Mc 4,11).
Nessa época, começou a destacar-se uma nova potência no cenário internacional: Roma.
Antíoco III tratou de garantir as fronteiras ao sul, depois avançou pela Ásia Menor, confrontando-
se com Roma, e foi derrotado na batalha de Magnésia (Dn 11,18). Teve de entregar todo o território
que já havia conquistado; desarmar o exército, pagar grande indenização e entregar seu filho como
refém (1Mc 8,6-7). A paz e a "autonomia" custaram-lhe muito caro.
Antíoco III, pressionado pela enorme dívida contraída com Roma, apelava para todos os
meios, lícitos ou não, a fim de saldá-la. Foi morto enquanto se apoderava do tesouro do templo de
Bel, no ano 187 a.C. (Dn 11,19).
Seu filho Seleuco IV (187-175 a.C.) sucedeu-o no trono. Procurando sanar as dívidas do seu
pai, tentou saquear o Templo de Jerusalém (2Mc 3 e Dn 11,20) mas teve o mesmo fim que ele. Foi
morto (2Mc 3) e seu irmão Antíoco IV subiu ao trono.
Diferentemente de seu irmão, Antíoco IV, muito pretensioso, usou o nome de uma das
divindades mais invocadas na Grécia para se proclamar: “Zeus Epífanes”. Agindo dessa forma,
desagradou aos gregos e judeus, e rompeu a promessa feita por seu pai a estes, de respeitar sua
autonomia religiosa e impôs o helenismo à força na Palestina desencadeando uma grande
perseguição contra os judeus.
Antíoco IV, agora com o acréscimo no nome de Epifanes, desestabilizou também a
legitimidade da sucessão ao cargo de sumo sacerdote, nomeando quem lhe oferecesse maiores
87
vantagens econômicas (2Mc 4,23-29), pois precisava pagar os tributos que Roma lhe impôs. Sua
intenção era humilhar a comunidade judaica, proibindo os sacrifícios no Templo, a circuncisão, a
observância do sábado, as dietas alimentares e decretou sentenças de morte para quem os
praticasse. Mandou oferecer sacrifícios aos deuses (lºMc 1,59; 2Mc 10,5; 6,2) no Templo de
Jerusalém, e ergueu um altar dedicado à divindade pagã ''Zeus Olímpico" - esse gesto foi
interpretado por Daniel como a "abominação da desolação" (Dn 9,27).
Com a conivência do sumo sacerdote Jasão, que corrompeu o rei selêucida para obter o cargo
(2Mc 4,7-9), o helenismo entrou de cheio em Jerusalém. Com a nomeação de Jasão para o sumo
sacerdócio no lugar de Onias III, foi quebrada a sucessão hereditária dos sadoquitas no cargo de
sumo sacerdote.
Os moradores de Jerusalém que aderiram ao Helenismo receberam inclusive o título de
"cidadãos antioquenos" (2Mc 4,9). Ler 1Mc 1,10-64.
Em 1Mc 1,14-15 podemos conferir que até um ginásio para atletismo foi construído na
cidadela dentro de Jerusalém; Pior que tudo isso, foi introduzir no próprio templo o culto a Zeus
Olímpico, correspondente a Júpiter dos romanos. (2Mc 4,7-20).
Dessa forma Jerusalém ficou dividida, de um lado judeus da classe dirigente, favorável ao
helenismo, entre eles os saduceus, e do outro lado, os "hassideus", judeus "piedosos" que resistiam
em defesa da tradição judaica, fechando-se cada vez mais dentro dos limites estabelecidos pela
Lei.
Os saduceus eram um grupo organizado, formado pela classe dirigente. Organizaram-se
para defender seus interesses e privilégios. Eram da aristocracia sacerdotal, bem como dos
setores leigos e ricos. Constituíam a elite ligada aos interesses econômicos do governo, do
latifúndio, do templo e do grande comércio. Durante a dominação dos gregos, sua posição
política era favorável à adoção da cultura helênica e à aliança estratégica com os Selêucidas,
que lhes garantia uma situação econômica privilegiada.
Além de serem conservadores, viviam em torno do templo, controlando o poder e o
comércio. Os saduceus mantinham sua influência sobre o povo através das alianças com quem
detinha o poder. Eles não tinham mentalidade apocalíptica. Consequentemente, não
esperavam por um Messias, nem acreditavam na ressurreição. Mais tarde, apoiariam os reis
asmoneus abertos à helenização da cultura judaica.
Alexandre Janeu (103-76 a.C), por exemplo, apoiou-se neles, quando lutou contra os
fariseus. Porém, Salomé Alexandra, sua esposa, que o sucedeu no trono (76-67 a.C.), admitiu
novamente os fariseus no Sinédrio. A partir de então, começou um conflito entre os dois
grupos no grande conselho, onde os saduceus continuaram sendo a maioria.
Antíoco IV Epífanes, apesar de encontrar grande resistência, sobretudo por parte dos
Macabeus e dos Assideus - comunidades de judeus apegados à Lei (1Mc 2,42) - continuou a
perseguição aos judeus, até se confrontar com a resistência armada da família sacerdotal de
Matatias (l Mc 2,15-28). A oposição crescia cada vez mais, sobretudo no campo. Antíoco morreu
como seu pai, enquanto tentava despojar um templo no ano 164 a.C., (lº Mc 6,1- 17; 2Mc 9; 10,9-
13).

12- LITERATURA NA ÉPOCA DOS SELÊUCIDAS.


A literatura que surge durante o período dos Selêucidas são os Livros do Eclesiástico, Daniel,
Judite, o segundo Macabeus, os Salmos 44;74;86;91.
12.1- Livro do Eclesiástico:
Este escrito teve sua origem por volta dos anos 190-180 a.C. Seu autor parece ter sido certo Jesus
Ben Sirac, e provavelmente este livro chegou aos nossos dias pela tradução grega deste escrito, feita
pelo seu neto nos meados do ano 132 a.C.
O livro é composto por 51 capítulos. A parte central do livro do Eclesiástico é o capítulo 24.
Neste capítulo, seu autor procura identificar a sabedoria com a Lei da tradição de Moisés (Eclo

88
24,23). Deixemos claro que Lei neste contexto não significa legislação, mas os cinco livros do
Pentateuco, que para os judeus são chamados de Torá.
Do ponto de vista do autor do livro do Eclesiástico, a Lei para o povo de Israel constitui a
verdadeira sabedoria para a caminhada do povo. No entanto, a narração toda do Pentateuco aponta
a experiência básica de toda humanidade de qualquer época da história: a sabedoria que nasce de
uma experiência concreta e conduz à vida.
Podemos entender que a experiência com Deus, que este livro aponta, tanto no âmbito
pessoal como familiar e comunitário, nenhum poder pode eliminá-la, nem mesmo valores que são
considerados culturais. Assim, os israelitas, que não cederam ao medo, à imposição cultural
opressora, aos costumes que desqualificavam a vida do seu povo, podem servir de exemplo e
estímulo também para nós. A fidelidade a Deus é fundamental. Nossa fidelidade não deve ser
dirigida à lei, mas sim ao seguimento de Jesus que é a plenitude da lei para nós.
12.2- Daniel.
No livro de Daniel a personagem principal é apresentada como um sábio (1,20; 2,23) que faz uma
leitura teológica e apocalíptica da história. A palavra "apocalíptica" vem do grego "apocalipse" e
significa "revelação". O Livro de Daniel é escrito em três línguas diferentes: hebraico (1,1-2,4;8-
12), aramaico (2,4b.7,28) e grego (3,24-90; 13-14), e pode ser dividida em duas partes: de 1-6 conta
a história de Daniel e de seus companheiros na corte da Babilônia; e de 7-12 apresenta as quatro
visões, narradas em primeira pessoa e explicadas por um anjo. Ela retrata, de forma viva, o contexto
histórico e conflitivo do período dos Selêucidas.
No capítulo 7 as quatro bestas são interpretadas com unanimidade pelos estudiosos como símbolos
dos impérios da Babilônia (leão), dos Medos (urso), da Pérsia (leopardo) e da Macedônia (animal
com dez chifres). Este último animal (Dn 7,1-28) é identificado com os dez reis da dinastia
Selêucida. O chifre normalmente é interpretado como símbolo de força e poder. O autor do livro de
Daniel descreve esse quarto animal de forma feroz (Dn 7,7-8). Daniel, nessa obra, é um
representante autorizado do pensamento judaico palestino da primeira metade do século II a.C. O
autor deve ter-se servido de escritos anteriores e aplicado aos seus contemporâneos. Quer mostrar a
eles que um judeu piedoso, mesmo na perseguição, pode ser fiel às suas tradições religiosas e às
prescrições alimentares (Dn 1-6). Quer mostrar ainda como as provações podem ser superadas com
a ajuda de Deus (Dn 3,24- 90).
12.3- Livro de Judite.
Escrito por volta de 198-166 a.C., o livro contém 16 capítulos. A forma literária deste livro é
chamada de novela ou conto. O pano de fundo irreal da história narrada faz supor que provavelmente
o autor não pretendia registrar fatos históricos. Vejam que Nabucodonosor, rei da Babilônia (605-
652 a.C.), neste conto é rei da Assíria e reside em Nínive; entretanto, o império assírio e a cidade de
Nínive haviam sido destruídos em 612 a.C. O nome do general Holofernes não é babilônico, mas
persa. A cidade de Betúlia é desconhecida pelos relatos históricos, não pode ser identificada com
nenhuma cidade palestina; portanto, trata-se de uma criação literária. O nome Judite só aparece em
outro escrito como a mulher heteia de Esaú (Gn 26,34), sendo um nome muito improvável para uma
mulher judia. Esse nome deve ter sido escolhido em virtude de seu significado: "judia". O livro quer
nos dizer que Deus salva o seu povo através da ação dos seres humanos. A fidelidade do povo
judaico baseia-se em sua fidelidade à lei. Esse é o núcleo do discurso de Aquior (Jd 5,5-21), das
palavras de Judite (Jd 8,17-20) e de seu exemplo como mulher e viúva que vive segundo a lei ( 8,6;
10,5; 12,2.19).
Assim, o Deus de Judite é o Deus dos humildes, o socorro dos oprimidos, o protetor dos fracos, o
abrigo dos abandonados, o salvador dos desesperados (Jd 9,11). E Judite é um exemplo desse povo
e desta fé.
12.4- 2 Macabeus: 2 Macabeus narra acontecimentos que vão de 175 a 160 a.C. O autor
parece ter urna sólida formação helenista, mesmo sendo um ardoroso judeu, porque se refere a
Deus com muita frequência. Ele narra os atos dos Macabeus, que podem ser apresentados em três
89
partes:
 1-7: as intrigas entre os sumos sacerdotes israelitas e os reis da Síria, a perseguição de
Antioco IV Epífanes, o martírio de Eleazar e da mãe com os sete filhos;
 8,1-10,9: a revolta dos Macabeus, as primeiras vitórias, a morte de Antíoco IV Epífanes, a
purificação do Templo;
 10,10- 15,36: as lutas de Judas Macabeu.
 O livro conclui com um epílogo em 15,37-39.
Toda a obra é um confronto entre a cultura e as tradições religiosas judaicas e helênicas. A
oposição maior foi no período de Antíoco IV Epífanes.
12.5 - Tobias:
O livro de Tobias não se encontra na Bíblia hebraica. Ele chegou até nós por meio da
Vulgata (Bíblia latina). A história contata pelo livro de Tobias segue um estilo em sintonia
com uma longa tradição bíblica de narrativas da interação entre Deus e casais ou pessoas
piedosas: Abraão e Sara; Isaac e Rebeca; Jacó e Raquel.
Não é um livro histórico nem se refere aos grandes acontecimentos da história do Povo
de Deus. Ele chega a apresentar algumas imprecisões, pois confunde distâncias e localidades.
Mas o autor procura somente utilizar alguns dados e informações para contar sua história.
O livro apresenta, em meio a trama familiar, alguns ensinamentos básicos do judaísmo:
esmola (Tb 1,17; 2,2-4; 4,7-11), piedade para com os mortos e dignidade de ter uma sepultura
(Tb 4,4;14,12-13), atenção aos peregrinos (1,6;5,14) e abstenção de alimentos impuros
utilizados pelos pagãos (Tb 1,10-12).
O livro quer nos ensinar que Deus não abandona jamais quem nele confia. Esse homem
passou por tantas provocações que pareciam insondáveis e, no entanto, Deus abriu os
caminhos e recompensou sua fidelidade. Representa a visão nacionalista da tradição ortodoxo-
judaica.

13- REVOLTA DO POVO DE DEUS


13.1- Revolução dos Macabeus (167-142 a.C)
Para não renegarem a fé judaica, muitos judeus fugiram para cidades estrangeiras,
engrossando as fileiras dos judeus na diáspora (1Mc 15,22s). Outros foram martirizados, mas não
abandonaram a fé e seus costumes (2Mc 6,18-7,42). Quando tudo parecia estar anunciando o fim
do Povo de Deus e de sua religião, entrou em cena a família sacerdotal de Matatias e seus filhos
(1Mc 2,15-28).
Como em outros tempos, tudo começou a mudar a partir de uma pessoa ou família que
permaneceu fiel à proposta de Deus. A história do Povo de Deus era a sua maior segurança; dava-
lhe a certeza de que seu Deus não o abandonaria à própria sorte nem deixaria os seus filhos lutarem
sozinhos e desamparados. Os judeus tinham aprendido a lição do exílio na Babilônia: se as pessoas
permanecem fiéis à Aliança, sendo zelosas e observantes da Lei, Deus faz sua parte e age através
de seus filhos e juntamente com eles.
Tudo começou a mudar quando delegados do governo selêucida tentaram impor aos judeus
que oferecessem sacrifícios aos deuses gregos, no povoado onde moravam Matatias e seus filhos.
Zeloso pela lei de Deus, pelos costumes do povo judeu e cheio de fúria por estar vendo seus
conterrâneos aderirem a essa prática pagã, Matatias avançou contra o delegado do rei e um judeu
apóstata e os liquidou (1Mc 2,lss). Tal atitude tornou Matatias e seus filhos um perigo para o estado
grego. O resultado foi o ataque do exército do rei contra essa família e todos os judeus que aderiram
à causa dela. Conhecendo os costumes judaicos, os gregos atacaram em dia de sábado (sabiam ser
o dia sagrado dos judeus). Morreram muitas pessoas por se negarem a lutar no dia santo (1Mc
2,38). Após esse desastre, muitos outros judeus piedosos e zelosos pela lei de Deus se uniram
contra a opressão do império e decidiram nada fazer em dia de sábado, mas, se fossem atacados,
90
iriam se defender. A revolta começou perto de Jerusalém e logo se espalhou pela região.
Matatias foi líder de seu povo por pouco tempo. Morreu no ano 166 a.C., e foi enterrado em
Modin (1Mc 2,70), mas deixou aos seus filhos o exemplo e o zelo pela Lei de Deus.
Judas, filho de Matatias, continuou a obra iniciada pelo seu pai. Como tinha o sobrenome de
Maccabaeus, "Macabeus" (de significado incerto, parece derivar de maqqabah= martelo), acabou
dando nome à revolta. Judas Macabeu (166 a 160 a.C), como passou a ser conhecido, obteve várias
vitórias contra o exército de Antíoco IV.
O rei grego não ficou passivo diante dessa nova revolta na Judéia. Ele "se encheu de ira"
(1Mc 3,27), fez novos empréstimos na Pérsia para afrontar a rebelião. Preparando-se para uma
guerra santa, Judas e seus companheiros se reuniram em assembléia em Mispá (1Mc 3,42-60),
rezaram e escutaram o livro da Lei, preparando-se para defender seu país e sua religião, conforme
as orientações de Dt. 20,5-9. Assim, venceram o exército grego conduzido por Nicanor e Górgias
em Emaús.
Sobre as vitórias de Judas, tudo é narrado como uma guerra, cujas principais motivações são
as leis e os costumes religiosos dos judeus. Por isso, tão logo se conquistam a cidade de Jerusalém
e o Templo, providencia-se a sua purificação37. A cerimônia aconteceu no dia 25 do mês de Kisleu
(dezembro), do ano 164 a.C. Durou oito dias (l Mc 4,42-51) e até os dias de hoje é celebrada entre
os judeus; trata-se da festa de chanuká8ou festa das luzes.
Quando Judas morreu, seu irmão Jônatas recebeu o legado de continuar a luta pela libertação
do Povo de Deus. Foi nesse tempo que morreu um dos maiores tiranos que o Povo de Deus
conheceu: Antíoco IV Epífanes, como seu pai, foi morto enquanto tentava despojar um
templo iraniano no ano 164 a.C. (1Mc 6,17; 2Mc 9; 10,9-13).
Jônatas (160 a 143 a.C.) não manteve as motivações de seu irmão Judas e de seu pai
Matatias. Lutou por três anos no deserto de Técoa e pretendeu julgar as pessoas, fazendo
desaparecer os ímpios de Israel (1Mc 9,73). Aproveitando as disputas entre Demétrio e
Alexandre Balas, pretendentes ao império grego, Jônatas conseguiu de Balas a nomeação
como "sumo sacerdote da sua nação [...], e amigo do rei" (l Mc 10,20) e chegou a celebrar
ilegitimamente, no mesmo ano de 152 a.C., a festa dos Tabernáculos ou Tendas (1Mc 10,21).
Jônatas, vítima de suas próprias intrigas, foi executado por Trifon, general de Alexandre Balas
(13,14-24). Seu irmão Simão o sepultou em Modin e o sucedeu:
Simão (143-134 a.C), o último dos filhos de Matatias, conseguiu grande autonomia para
a Judéia, mas continuou usando os títulos conseguidos por seu irmão Jônatas: "sumo sacerdote
e amigo do rei" (1Mc 13,36). Os judeus aparentemente aceitaram a situação "até que
aparecesse um profeta digno de fé" (1 Mc 14,41).
Foi no tempo de Simão que o antigo reino de Israel conseguiu certa autonomia e
estabilidade política. Ele estendeu as fronteiras do país (1Mc 13,43-48), tomou Acra, a
cidadela grega próxima ao Templo, reduto dos gregos em Jerusalém em 141 a.C.,
transformando-a no palácio dos Macabeus (1Mc 13,49-52).
Mas seu reino durou pouco; foi assassinado pelo seu genro Ptolomeu de maneira trágica,
no transcurso de um banquete com todos os seus filhos, exceto João Hircano (1Mc 16,11-17),
que substituiu o pai.
João Hircano deu início a um reino e a uma dinastia mais estáveis, mas não diferentes
das dos reis que procuraram sobrepujar o Povo de Deus.

7
A festa da purificação do Templo é até hoje celebrada entre os judeus.
8
A palavra chanuká significa inauguração, dedicação. Quando Judas se propôs a purificar o Templo, sua primeira atitude foi
manter aceso o nertamid, "fogo eterno", junto ao grande candelabro de sete velas (menorá), mas o óleo santo era suficiente
somente para um dia. Diz a lenda que milagrosamente durou oito dias, tempo necessário para se preparar o óleo santo. Nasceu
assim a festa das luzes.

91
13.2- Dinastia Asmoneia (142-63AC)
Com a morte de Simão encerra-se a saga dos irmãos Macabeus, que, a seu modo, procuraram
libertar seu povo da opressão dos gregos selêucidas. Com João Hircano, filho de Simão, Israel volta
a ter um rei e uma monarquia; começa assim a dinastia asmoneia. Desde a queda do último rei
legítimo de Judá, em 598 a.C., com a invasão dos babilônios, o Povo de Deus sonhava ter de volta
um rei que o governasse conforme o grande rei Davi.
João Hircano (134-104 a.C), que sucede a seu pai, vinga-se imediatamente daqueles que o
assassinaram. O livro de 1º Mc termina apresentando o início das proezas e alguns feitos de João
Hircano ( 16,24).
No seu reinado, os gregos, através de Antíoco VII, conseguem cercar Jerusalém (133 a.C) e
obrigam João Hircano, então rei de Israel, a lhes pagar tributo e a fazer uma parceria com eles, contra
os persas. Para se livrar da tutela dos selêucidas, Israel apela aos romanos, com quem renova alianças
conforme seus antepassados (126 a.C), Roma socorre o país somente alguns anos depois, e mais
tarde, impõe sobre o Povo de Deus seu domínio imperial.
Durante seu reinado, Hircano procurou extirpar do meio do Povo de Deus todos os sinais da
cultura grega: destruiu o templo no monte Garizim, cidade helenizada da Samaria, obrigou os
idumeus e ituneus a adotar a circuncisão, entre outras iniciativas. Implantou uma política de
intolerância contra qualquer cultura que não fosse à judaica.
Os hasidins, que lutaram ao lado dos Macabeus desde o início, não ficaram contentes com a
forma pela qual o rei João Hircano estava conduzindo seu reino, conjugando o poder político com
o poder religioso. Depois de conflitos e mortes, os hasidins se separaram do rei e se constituíram
em forte opositor ao reino dos asmoneus. Desse grupo serão os descendentes dos fariseus, muito
conhecidos no tempo de Jesus. A história que começou com os Macabeus teve um novo momento
com a dinastia asmoneia, da qual fez parte Herodes, que governou no tempo de Jesus.
Nesse período formou-se um grupo de judeus piedosos, que se distanciou de Jerusalém e foi
viver no deserto em Qumrã, perto do Mar Morto. Esse grupo deu origem aos essênios (eram como
os atuais monges), que viviam em comunidades isoladas, procurando cumprir todos os preceitos
de pureza ritual e dedicando-se principalmente ao estudo e à multiplicação das Sagradas Escrituras.
Em 1947 foram descobertos, nesse local, perto de Jericó, vários textos sagrados que datam de
períodos até anteriores a Jesus Cristo.
A história da pequena nação de Israel com uma nova dinastia não foi muito feliz. Os
descendentes de João Hircano, por meio de golpes e assassinatos, se revezaram no poder, seguindo
o modelo dos povos vizinhos. Governaram o país subjugando o povo com impostos, fizeram
alianças com estrangeiros e até montaram um exército de mercenários mantidos pelo povo judeu.
Tudo tem um fim com a entrada e a imposição do domínio romano; com Pompeu, no ano 63 a.C.
A presença dos romanos na região dá início a numa nova era de progressos em algumas
áreas; em outras perdura a forma de impor e manter o poder.
13.2.1- Escritos da época dos Asmoneus.
No período dos Asmoneus surgiram alguns escritos que mostram todo o conflito enfrentado
pelos judeus arraigados às tradições religiosas e culturais, em confronto com a helenização. São os
livros de Daniel e 1 e 2 Macabeus. No livro do profeta Isaías, os capítulos 24-27 e 34-35 já
apresentam uma perspectiva apocalíptica, e são, provavelmente desse período.
O autor do livro 1 Macabeus acredita que a felicidade só é possível pela observância fiel da
Lei. Para isso, é necessário rejeitar os costumes pagãos. Só dessa forma os judeus irão desfrutar
dos benefícios da Aliança, e podem esperar a intervenção de Deus a seu favor contra os inimigos,
pois serão vitoriosos.

92
14- ÚLTIMOS ESCRITOS DO ANTIGO TESTAMENTO
O contato com a cultura grega, principalmente com a língua grega, não significou apenas
dominação e tristeza para o Povo de Deus. Da mesma forma que do contato com a cultura e o
mundo persa (cultura muita rica em conhecimentos e sabedoria) nasceram escritos mostrando
a cultura dos judeus, o mesmo aconteceu com o contato com o rico mundo dos gregos.
Estes consideravam os judeus um povo ignorante, com costumes e cultura ultrapassados.
Menosprezavam igualmente sua língua. Judeus piedosos e sábios procuraram então
demonstrar, através de escritos voltados para seu povo, a riqueza da cultura e dos costumes
judaicos.
Os últimos escritos do Primeiro Testamento devem ser situados no período dos hasmoneus:
Livro de Ester - o texto grego; 1º Macabeus: a luta pela libertação; Baruc: arrependimento e
conversão; Sabedoria: ser sábio é ser justo.
14.1- O Livro de Ester:
O livro quer ajudar a comunidade judaica da época a se manter fiel à história de seus antepassados,
não caindo no jogo dos dominadores persas. E devolver aos judeus a esperança para continuarem
fiéis aos seus costumes, mesmo no meio das dificuldades e humilhações.
Assim como nos livros de Rute e Cânticos dos Cânticos, a mulher teve uma importante
participação no processo de libertação; também Ester é protagonista na libertação de seu povo. Isso
significa que a mulheres continuavam tendo papel significativo no resgate de sua dignidade e
participação nas lutas em busca de liberdade para o povo, em meio a um contexto patriarcal. Ester
salva seu povo do extermínio, e chama seus correligionários à fidelidade ao Deus do Êxodo, que
tirou os pobres da escravidão do Egito.
14.2- O Livro de Baruc:
Baruc (em hebraico significa bento), companheiro e escriba de Jeremias (Jr 32,12 e Jr 36,26).
Acompanhou durante sua estada no Egito, depois da queda da Cidade Santa (Jr 43,6s). Por esse
motivo, o livro de Baruc aparece nos manuscritos dos LXX, juntamente com o livro das
Lamentações e a Carta de Jeremias, logo após o livro desse profeta. Já na Vulgata de São Jerônimo
(séc. IV d.C.), a Carta de Jeremias torna-se o capítulo 6 de Baruc.
O livro que chegou até nós, é um escrito do período grego, pois a introdução foi escrita em grego;
já a oração de 1,15-3,8 (desenvolve a oração de Dn 9,4-19) deve ter sido redigida em hebraico e
depois traduzida para o grego. A data mais provável da redação final desse escrito é meados do
século I a.C. O autor deve ter sido um judeu que vivia fora da Terra Santa (na diáspora), utilizando
o nome desse personagem histórico (pseudepigrafia49). Procura animar os judeus a se manterem em
comunhão com Jerusalém, com o Templo e seus ritos.
Esse livro retrata as motivações daqueles judeus que procuravam resistir contra a idolatria e
não se distanciar de Jerusalém, o que faziam através de cartas, orações pessoais e recordando, nas
sinagogas, a história do passado do seu povo, das principais Leis e dos textos sagrados. Por isso, o
autor apresenta uma profunda análise sobre o pecado: é uma perversão da ordem moral (Br 2,12),
rejeita a verdadeira sabedoria (Br 3,9ss), opõe-se à Lei de Deus e dos profetas (cf. Br 1,18.21;
2,5.10.24). Para não cair no pecado, o fiel deve colocar-se humildemente junto de Deus e observar
as leis da Torah (Br 2,8.30ss; 4,1.28).
14.3- O Livro de Sabedoria.
Este é o último escrito do AT, redigido num tempo muito próximo ao surgimento do

9 Pseudepigrafia consiste em utilizar o nome de algum personagem famoso para dar crédito ao escrito. Esse fenômeno é muito
mais comum no período grego, em que não houve grandes escritos e profetas; assim, os novos escritos "emprestavam" o nome de
algum personagem conhecido ao invés de utilizar o próprio nome (provavelmente desconhecido por todos e sem muito prestígio).
Assim se explicam também os títulos de outros escritos: Terceiro Isaías, Segundo Zacarias e Daniel.

93
Cristianismo (60 a.C.), revela grandes riquezas, tanto para o povo judeu quanto para os cristãos.
Escrito para judeus, embora permeado da cultura grega, não deixa de lado a sabedoria da
religião e do pensamento judaicos. O livro da Sabedoria é o que melhor ilustra a assimilação
da língua grega no AT (o que perdurará no NT, escrito todo ele na língua helênica).
Observando o estilo e o conteúdo do livro, deduz-se que foi redigido fora de Israel, talvez
no Egito, provavelmente em Alexandria.
Buscando exaltar a sabedoria de Deus junto ao seu povo, o autor combateu diretamente o
ateísmo e a idolatria presentes no ambiente em que se encontrava. Segundo ele, a sabedoria divina
deve ser buscada e apreendida por todos (Sb 1,1-15).
O livro da sabedoria pode ser dividido em três partes:
1ª Parte – Sb. 1,16-5,24 - Comparando os justos com os ímpios, o autor mostra a soberba dos
maus em relação aos bons. No futuro, os maus terão uma grande decepção, enquanto os justos
reinarão com Deus.
2ª Parte – Sb. 6,1-9,19 - A sabedoria é apresentada com sua origem e características, mas
acima de tudo é considerada dom de Deus. Por isso, basta pedi-la que será concedida a todos.
3ª Parte – Sb. 10,1-19,20 - O autor compara os idólatras pagãos com seu povo judeu; faz isso
resgatando a história da sua gente, desde as pragas do Egito, a travessia do Mar Vermelho até
outros feitos de Deus junto ao seu povo. Deus sempre protegeu e guiou todo aquele que seguiu
seus preceitos.
O livro da Sabedoria procura deixar bem claro ao seu leitor que o pensamento e a sabedoria do povo
judeu em nada são inferiores aos de outros povos, pois têm sua origem no próprio Deus Criador (Sb.
9,9).
CONCLUSÃO:
O período da dominação helenista foi um dos mais longos, de 333 a 63 a.C. Só terminou
quando chegou o domínio romano. Deixou marcas profundas na história do povo da Bíblia. Esse
período iniciou-se com Alexandre Magno em 323 a.C. e, com sua morte, o reino dividiu-se entre
quatro generais. Os Ptolomeus ficaram com a região de Canaã e a eles sucederam-se os Selêucidas.
Nesse período, houve um grande confronto entre as duas culturas, a helenista e a judaica. O bojo
da discórdia, da helenização maciça promovida por Antíoco IV Epífanes, foi sua imposição cultural
e as práticas religiosas. Arraigado no monoteísmo, o povo judeu reagiu ao politeísmo e às práticas
religiosas pagãs: o culto aos ídolos e a prostituição sagrada com orgias e banquetes rituais (2Mc
6,2- 11.18-31).
A comunicação intensa, que havia entre Judá e a comunidade judaica em Alexandria, no
tempo dos Ptolomeus, não puderam continuar no domínio dos Selêucidas; isso dificultou ainda
mais as relações entre dominadores e dominados. Levantou suspeita e fez com que o movimento
dos judeus a favor da helenização encontrasse apoio junto ao rei (lºMc 1,41-51).
Grande parte dessas dificuldades foi causada por motivos econômicos anteriores a Antíoco
IV Epífanes, como a apropriação indevida do tesouro do Templo e pelas dívidas que Selêuco III
havia contraído com Roma. Essa atitude foi interpretada pelos judeus como um sacrilégio e para
os helenistas podia ser vista como um empréstimo forçado. Outro motivo de confronto pode ter
sido a diversidade de concepção da vida, do mundo, da história. Eram culturas com visões muito
diferentes.

94
PERIODO DO IMPÉRIO ROMANO

Estamos chegando ao fim de nossa caminhada pelo Antigo Testamento. Agora


abordaremos o período do imperialismo romano e que nos abrirá o acesso ao chão do
Novo Testamento.
Isso não significa que haja um espaço entre um Testamento e outro. Há, porém,
um período de tempo e, principalmente, que faz “ponte” entre os dois Testamentos. A
esse período chamamos de Inter testamento.
Em termos de literatura, o último escrito do Antigo Testamento seria o livro da
Sabedoria, mais ou menos no ano 50 a.C. O primeiro livro do Novo Testamento é a
primeira carta aos Tessalonicenses, escrita em 51 d.C. Temos então o espaço de um
século sem literatura estritamente bíblica em que muita água passou por baixo da ponte
da história.
Para começar, o sonho de independência dos asmoneus vê o seu fim, e Jerusalém
é sitiada. O general Pompeu toma a capital e torna Israel província romana.
Muitas revoltas vão acontecer, o templo será saqueado, Herodes será eleito rei e o
reconstruirá, e haverá muitas tentativas de repressão do povo. E em meio a tudo isso, nasce
Jesus. Ele projeta suas palavras e ações que vão marcar o século e os dois milênios
seguintes.
15- O IMPERIO ROMANO: PODER POLÍTICO, MILITAR E ECONÔMICO
Por ser um importante corredor de passagem comercial entre o Ocidente e o Oriente,
Israel sempre foi alvo de disputa entre os grandes centros políticos, cada um querendo "pôr
a mão" naquele pedacinho de terra de aproximadamente 20.000 km2. O povo, mais uma
vez, ficou como peteca, ora na mão de um, ora na mão de outro.
Desde 63 a.C., os romanos dominaram essa região. Jerusalém tornou-se um ponto
estratégico de suma importância para Roma que desejava controlar não só a região do
Oriente Próximo, mas também as vias de comunicação, as rotas comerciais, entre o
Ocidente e o Oriente, e entre a Europa e a África. Para a geografia da época, isso significava
controlar o norte e o sul, o leste e o oeste. Com isso as províncias da Galiléia, da Pereia, da
Indumeia e da Judéia passaram a pagar tributos para o Império. Essa situação gerou muitas
revoltas, principalmente na Galileia, uma das regiões mais exploradas por ser grande
produtora agrícola e pecuária. Porém, qualquer revolta dentro do Império era
terminantemente sufocada. Várias cidades da Galileia foram destruídas, arrasadas
e incendiadas, e suas populações foram vendidas como escravas ou mortas.
Os romanos sabiam que os judeus eram muito zelosos, defensores das tradições
culturais e religiosas de sua terra. Sabiam também que eles estavam espalhados por todas
as regiões já conquistadas, onde mantinham forte o ideal de unidade em torno da Lei. Foi
exatamente por causa da defesa de sua religião que os Macabeus haviam pedido ajuda a
Roma, contra a tirania dos Selêucidas, extremamente intolerantes quanto à religião judaica.
Essa característica dos judeus tornava-os uma nação peculiar comparada às outras
conquistadas. Uma oposição aberta em relação aos judeus poderia pôr a perder os planos
romanos para controlar a região. Por isso, Pompeu não transformou imediatamente a Judéia
numa província romana, como tinha acontecido com os outros povos conquistados. O
controle romano se deu por meio das nomeações para os cargos importantes na Judéia,
especialmente o cargo de sumo sacerdote.
O que significa para Israel estar sob o domínio dessa grande potência? De onde vem
sua riqueza? Como esse Império se organiza e de que modo domina?
O Império Romano está sustentado por três pilares: a escravidão, a propriedade
privada da terra e o comércio.

95
15.1- Escravidão
A mão de obra escrava é encontrada em toda e qualquer ocupação ou atividade
civil e, é utilizada como força de trabalho na produção dos bens materiais,
predominantemente nas minas, na agricultura e no serviço doméstico dos grandes
senhores. O/a escravo/a não é considerado/a uma pessoa, mas um bem do mesmo nível
que uma extensão de terras, uma cabeça de gado ou uma saca de grãos, por exemplo.
Além disso, escravos e escravas, considerados/as como mercadorias, são facilmente
transportados/as de um local para outro, o que aumenta sua importância.
15.2- Propriedade privada da terra
As vastas extensões de terra pertencem à elite romana e quem as cultiva é a mão
de obra escrava. Da concentração de terra e do trabalho escravo, a elite extrai o excedente
da produção geradora de riqueza. Este excedente é utilizado para sustentar uma vida de
luxo e pompa nos centros urbanos do Império.
15.3- Comércio
O Império entra em constantes batalhas. Os territórios conquistados são anexados às
terras imperiais e seus habitantes escravizados. Consequentemente aumenta a produção
agrícola, uma vez que há terras e mão de obra abundante. A produção intensa exige um
forte esquema comercial, que é favorecido pelas muitas estradas abertas pelo Império e pelo
aumento de segurança nas rotas marítimas. Além disso, a moeda única e um sistema
bancário que fornece financiamento de crédito ajudam a garantir o domínio imperialista nas
regiões conquistadas aumentando, dessa forma, os mercados compradores. Essa “roda viva”
sustenta o grande fluxo comercial do Império.
Além desses três fatores, o Império Romano contava com um exército, de cerca de
350 mil soldados, bem equipados e bem remunerados, divididos em legiões, que garantiam
a sua estabilidade. As legiões variavam entre 6.000 e 10.000 homens, dependendo das
baixas que eventualmente sofriam nas batalhas. A região de Israel representava apenas 1%
do território romano, e havia 8% das tropas do exército romano acampadas, especialmente
na Galileia. Além dos soldados, havia também inúmeros servos, escravos e seguidores que
os acompanhavam.
O exército romano, para melhorar os pontos fracos da cavalaria, alistava soldados dos
povos dominados. Quem lutasse na legião e saísse vivo, ganhava a cidadania romana. Para
lutar, os legionários usavam uma lança, uma espada curta e um pequeno punhal. Para se
defender, uma armadura e um escudo gigantesco.
Não havia uma idade determinada para alistar-se, mas, a maioria dos candidatos se
alistava a partir dos 17 anos e o tempo de serviço regulamentar era de vinte anos. Ao dar
baixa, o legionário recebia uma recompensa em dinheiro equivalente a um ano de soldo,
por vezes com um bônus para os que concordassem em fixar residência na província onde
houvessem servido por último.
Com isso, o ex-soldado podia comprar um pedaço de terra ou abrir um negócio.
Legionários reformados morando nas províncias tornavam-se, assim, fazendeiros,
comerciantes ou artesãos. Geralmente casavam-se com mulheres locais, e era muito
provável que seus filhos viessem futuramente a se tornar também legionários. Dessa forma,
as legiões, além de sua importância militar, também se constituíram num poderoso elemento
de difusão da cultura romana. A cidade de Filipos era colônia do Império Romano onde
vivia instalado na cidade veteranos dessas legiões. Filipos era considerada uma Roma em
miniatura.
Eram funções do exército romano: favorecer as conquistas romanas, obrigando as
províncias conquistadas a sustentar a riqueza de Roma; controlar a população livre e a
população escrava; estabelecer a "Pax Romana", ou seja, eliminar os muitos focos de
resistência e de rebeliões por meio da força, e garantir uma segura arrecadação de tributos.
Exemplo 2Mc 5,1-20.
96
A Pax Romana foi uma época da história romana marcada por uma aparente paz e
prosperidade, durante a transição do período republicano para o período imperial, que trouxe
a estabilidade ao Império Romano e garantiu a autoridade de Roma sobre suas províncias.
A expressão pax romana é originária do idioma oficial do Império Romano – o latim
– e significa “paz romana”. A política da Pax Romana foi aplicada em todo o império.
Essa política foi iniciada com a coroação de Augusto César, em 27 a.C., evento que
encerrou o período da república romana. Os últimos anos dessa república foram marcados por
grande instabilidade, com guerras civis dividindo o império, conspirações políticas que
resultaram em inúmeros assassinatos de senadores, rebeliões provinciais e de escravos a abalar
a ordem etc. Assim, era necessário reaver a estabilidade do império e garantir sua integridade
territorial. Para isso, foi tomada uma série de medidas político-administrativas que garantiram
o controle de Roma sobre esses locais, possibilitando um período de prosperidade. O conjunto
dessas medidas ficou conhecido como Pax Romana.
Características da Pax Romana
As principais preocupações na Pax Romana eram afastar a ameaça de rebeliões
provinciais e, ao mesmo tempo, manter essas regiões economicamente produtivas. Assim,
uma das ferramentas utilizadas por Roma foi promover a aculturação desses locais, também
conhecida como romanização. Essa aculturação tinha como objetivo desenvolver os valores
culturais de Roma nas províncias mais distantes, de forma a diminuir as diferenças culturais
existentes. Para tanto, era importante, por exemplo, a transmissão do idioma oficial (o latim)
e dos valores religiosos do Império Romano. Isso era possível pela presença das legiões
romanas nas províncias.
Além da transmissão dos valores culturais romanos, era indispensável, a partir de ações
político-administrativas, garantir o desenvolvimento dos locais conquistados. Assim, foram
tomadas decisões que traziam crescimento econômico para as províncias, o que garantia sua
satisfação com a autoridade romana. Algumas dessas medidas romanas de destaque foram a
construção de estradas e aquedutos e melhorias no plantio agrícola.
Por fim, não somente a transmissão da cultura romana e o desenvolvimento econômico
garantiam a lealdade de determinadas províncias. Em alguns casos, o Império Romano usou
da coação para manter o controle e, para isso, contou novamente com as legiões romanas, que
também cumpriam essa função de dominar utilizando a força. A presença das tropas romanas
em províncias potencialmente rebeldes e distantes mantinha as elites e a população locais sob
controle, uma vez que o exército romano estava presente para esmagar qualquer tentativa de
rebelião que pudesse acontecer. As legiões romanas também garantiam a essas províncias
a proteção a ataques de povos estrangeiros que pudessem tentar invadir as fronteiras do
Império Romano.
A Pax Romana, estabelecida em 27 a.C., permaneceu até o ano de 180 d.C. A morte
do Imperador Marco Aurélio é o considerado o marco do início do período de decadência do
Império Romano.
16- A PIRÂMIDE SOCIAL:
- No topo da pirâmide social romana estavam os nobres: a corte imperial, os altos
funcionários do Estado como os senadores e os generais. Esta era também a classe rica do
Império.
- No meio estavam os homens livres, os que eram considerados cidadãos romanos. Essa
cidadania era adquirida, primeiramente, por nascimento de pais romanos; em segundo lugar,
por compra do direito e, em terceiro lugar, por concessão do imperador a algumas cidades.
Essa era a classe média do Império.
- Na base da pirâmide estavam os escravos, que praticamente eram todos os que não
detinham o direito de cidadãos romanos. Aí se incluíam os povos conquistados, inclusive
Israel. Eles não participavam da política e não tinham acesso à propriedade e à liberdade de
locomoção. Sua função na sociedade era produzir. Constituía a classe pobre e excluída do
97
Império.
A força de trabalho alimentava, toda a estrutura imperial. Alguns escravos
conseguiam a liberdade e passavam a fazer parte da classe dos libertos, mas não eram
considerados cidadãos romanos.
17- A RELIGIÃO:
O império romano era politeísta, ou seja, acreditavam em vários deuses. De modo
geral deixava que cada um adorasse e cultuasse os deuses que quisesse. Mas,
ideologicamente, obrigava os povos conquistados. A grande parte dos deuses romanos,
foram retirados do panteão grego, porém os nomes originais foram mudados. Muitos deuses
de regiões conquistadas também foram incorporados aos cultos romanos. Os deuses eram
antropomórficos, ou seja, possuíam características (qualidades e defeitos) de seres
humanos, além de serem representados em forma humana. Além dos deuses principais, os
romanos cultuavam também os deuses lares e penates. Estes deuses eram cultuados dentro
das casas e protegiam a família. Principais deuses romanos; Júpiter - rei de todos os deuses,
representante do dia. Apolo - Sol e patrono da verdade, Vênus - amor e beleza, Marte –
guerra, Minerva - sabedoria, conhecimento, Plutão - mortos, mundo subterrâneo, Netuno -
mares e oceanos, Juno - rainha dos deuses, Baco - vinho, festas, Febo - luz do Sol, poesia,
música, beleza masculina, Diana - caça, castidade, animais selvagens e luz, Ceres - colheita,
agricultura, Cupido – amor, Mercúrio - mensageiro dos deuses, protetor dos comerciantes,
Vulcano - metais, metalurgia, fogo, Saturno – tempo, Psique – alma.
A partir de Otaviano, que se intitulou Augusto (31 a.E.C. a 14 d.E.C.), os imperadores
romanos também passaram a considerar-se "divinos", isto é, semideuses, merecendo por
isso um culto à sua imagem. No caso de Israel, devido ao seu zelo extremo pela religião
monoteísta e a absoluta proibição de imagens como objeto de culto, os romanos foram mais
brandos na exigência do culto ao imperador. Impuseram, porém, o oferecimento de um
sacrifício diário ao imperador no Templo de Jerusalém, em substituição ao culto a ele.
Os judeus também tiveram outras concessões dos romanos: estavam dispensados do
serviço militar obrigatório nas legiões e tinham seu próprio tribunal, o Sinédrio, para julgar
casos envolvendo os judeus. Mas o Sinédrio tinha um poder limitado: o julgamento de
alguns delitos era reservado aos Romanos, especialmente aqueles que implicavam pena de
morte.

Obs.: Teremos outras informações sobre o Período Romano no modulo: Os


Sinóticos.

18- BIBLIOGRAFIA

- Curso de Bíblia por correspondência. CEBI 2002. Volumes 7 e 8.


- Uma Introdução à Bíblia. CEBI 2005. Ed. Paulus. Volumes 5 e 6.
- SAB - Serviço de Animação Bíblica. Visão Global. Ed. Paulinas, 2013. Volumes 9 e 10.
- Bright, John. História de Israel. São Paulo: Paulus, 2003. 2ª edição.

98
LITURGIA

99
A LITURGIA NOS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO
Do livro: O MISTÉRIO CELEBRADO: MEMÓRIA E COMPROMISSO I

Autor: José Ariovaldo da Silva

Falamos da liturgia, digamos, em seu estado germinal, embrionário, dos primórdios do


cristianismo: primeiro no período apostólico (séc. I), depois no período caracterizado como
“era dos mártires” (séc. II e III). A liturgia desses três primeiros séculos, do ponto de vista
histórico, certamente tem muito a nos ensinar em termos de celebração litúrgica. Vale a pena
conferir.

1. No período apostólico
Jesus e os seus primeiros seguidores eram judeus, praticavam a religião judaica,
participavam normalmente das celebrações litúrgicas da religião do seu povo (templo,
sinagogas, festas, orações).
Assim sendo, como todo judeu piedoso, eles não deixaram de participar fiel e
assiduamente das celebrações da religião do seu povo. Isso significa que, em termos cultuais,
houve uma natural continuidade entre o judaísmo e o movimento cristão emergente.
Jesus e os apóstolos não criaram uma liturgia totalmente nova. Isto é, foi sobre formas
cultuais já existentes que procuraram encarnar o novo “culto em espírito e verdade”
inaugurado por Jesus (cf. Jo 4,23). Aliás, Jesus mesmo declarou que não veio para abolir a lei
e os profetas mas para dar-lhes cumprimento (Mt 5,17). Não veio para romper com a liturgia
dos pais, mas para aperfeiçoá-la. E ele o fez dando nova orientação a certos ritos judaicos já
existentes.
A nossa liturgia cristã, portanto, em seus elementos rituais mais originários, significa
simplesmente a continuidade da liturgia hebraica. Porém, - e isto é importante! - a “liturgia
hebraica” vivida e celebrada por Jesus e sua primeiríssima comunidade assume agora um novo
referencial. Carrega-se de um novo sentido. O referencial é a própria novidade Jesus de
Nazaré, o Cristo Salvador. Assim, a partir do mistério de Cristo, aconteceu uma
“cristianização” dos elementos rituais herdados/“adotados” do judaísmo, emergindo daí uma
“liturgia cristã”. A última ceia é um exemplo típico de reinterpretação “cristã” da ceia pascal
judaica: celebração memorial não mais do êxodo, mas da passagem de Cristo deste mundo ao
Pai.
Elementos que herdamos do judaísmo, “cristianizados” pelo movimento cristão:
● A organização da liturgia da Palavra da missa (com leituras bíblicas, canto dos
salmos, homilia): vem da liturgia judaica celebrada aos sábados nas sinagogas.
● A oração eucarística da missa: foi organizada a partir das “louvações” (orações
de louvor) que os judeus faziam durante as refeições familiares e nas sinagogas, exaltando os
benefícios da criação e da providência divina sobre Israel.
● Os pedidos da oração dos fiéis na missa: inspiram-se no modelo das dezoito
bênçãos com as quais se iniciava a liturgia sinagogal.
● A semana, com o costume de dedicar um dos sete dias à reunião litúrgica (os
cristãos a deslocaram do sábado para o domingo, em memória da Ressurreição), as festas de
Páscoa, Pentecostes e o próprio conceito de “ano litúrgico” (com uma série de celebrações
religiosas que sacralizam o tempo profano), o culto dos mártires: tudo isso herdamos do
judaísmo.
● Alguns elementos da oração cotidiana (oração da manhã e da tarde: Laudes e
Vésperas; o ternário das horas: Terça, Sexta, Noa; a contagem do dia litúrgico de tarde a
tarde, isto é, de véspera a véspera): herdamos do judaísmo.
● O costume de iniciar as orações litúrgicas com a fórmula invocatória “Corações
ao alto”, “Oremos”, “Demos graças”: herdamos do judaísmo.
100
● A doxologia, isto é, o costume de terminar a oração com um breve louvor a Deus,
à maneira do “Glória ao Pai”; o canto dos serafins (Is 6,3: “Santo, santo, santo”) usado
pelos judeus na oração da manhã: herdamos do judaísmo.
● Aclamações litúrgicas proclamadas pela comunidade judaica, como “Amém”,
“Aleluia”, “Hosana”, “Pelos séculos dos séculos”: herdamos do judaísmo.
● As chamadas orações “paradigmáticas”, mediante as quais, fazendo alusão a
grandes exemplos (paradigmas) da história da salvação, pede-se a Deus ajuda e salvação:
herdamos do judaísmo.
● A imposição das mãos, um dos gestos mais importantes da liturgia cristã, bem
como a unção dos enfermos: herdamos do judaísmo.
É todo um conjunto riquíssimo de elementos rituais cristãos originários do culto
judaico, o que demonstra o quanto nossa liturgia está enraizada na tradição cultual do AT. (Cf.
T. Klauser, Breve historia de la liturgia occidental I: Desde la primitiva Iglesia hasta Gregorio
VII, Cuadermos Phase 103, Barcelona, Centre de Pastoral Litúrgica, 2000, p. 6).

Mas também há aspectos fundamentais de descontinuidade, distanciamento, e até de


ruptura, entre a liturgia ‘cristã’ emergente e liturgia judaica.
Da parte de Jesus, ele demonstra uma atitude profundamente crítica em relação à ordem
cultual da religião judaica. Não que fosse contra as instituições cultuais em si... Seguindo a
linha dos profetas, ele questiona radicalmente as práticas cultuais meramente exteriores,
vazias, isto é, sem compromisso com a vida, sem compromisso com o essencial da Lei, que é
a lei do Amor. Em outras palavras, o que Jesus quer é resgatar e garantir o fundamento do
culto, a saber, o Amor que se desdobra na prática da justiça, da misericórdia, do perdão (cf.
Mt 9,13; Os 6,6)1. Diante da samaritana ele mesmo proclama que “os verdadeiros adoradores
(a começar por ele mesmo!) hão de adorar o Pai em espírito e verdade e são estes os adoradores
que o Pai deseja” (Jo 4,23).
Também os discípulos de Jesus, impregnados da experiência cristã, comportaram-se
com grande liberdade frente à religião judaica. Não só adotaram elementos da tradição cultual
de sua religião, mas também - e não sem eventuais tensões - distanciaram-se de uns e
romperam com outros. Após a ascensão de Cristo, eles continuaram de certa maneira
vinculados ao templo, participando das orações que nele se faziam. Porém, evitavam participar
dos sacrifícios rituais. E tinham suas razões para isso: Como judeus “cristianizados”, estavam
convictos de que a morte-ressurreição de Cristo havia superado os sacrifícios da Lei antiga.
Consequentemente, o templo também perdeu sua razão de ser, sendo substituído pelo
verdadeiro Templo que agora é Cristo. Isso atiçou a ira dos zelosos guardiães do lugar santo,
o que desencadeou o martírio de Estêvão e a primeira perseguição contra a Igreja de Jerusalém
(cf. At 7,54-8,3). Assim, o vínculo dos cristãos com o templo foi desaparecendo pouco a
pouco, sumindo enfim por completo após a destruição deste pelas tropas romanas no ano 70
d.C.. Consequentemente, o autêntico culto cristão foi se formando e se organizando em
reuniões celebradas em casas particulares.

A partir do mistério de Cristo, processa-se na primitiva comunidade cristã uma paulatina


superação da imagem do espaço sagrado (o templo), do tempo sagrado (o sábado) e da pessoa
sagrada (o sacerdote). A partir de Cristo, o lugar da morada de Deus é antes de tudo o espaço
humano; o tempo sagrado é o dia que não tem ocaso, Cristo, senhor do sábado; o sacerdócio
cristão é um “sacerdócio existencial” e não ritual (Cf. J. M. Castillo, Símbolos de libertad...,
p. 31-80: “Jesús y la práctiva religiosa estabelecida”).

Outro dado importante: num inusitado espírito de abertura para fora do judaísmo, os
apóstolos decidiram liberar os pagãos convertidos ao cristianismo do peso da circuncisão e da
lei mosaica (cf. At 15,7-11).

101
Dentro desse clima de liberdade, e também de alegria vivida a partir da experiência do
mistério de Cristo, sem renegar as raízes judaicas, e até mesmo em sintonia com elas, mas com
senso crítico, a Igreja apostólica soube também criar formas próprias de culto. “Reunir-se
junto”, “congregar-se” (aspecto comunitário!): é o que caracteriza a liturgia dos primeiros
cristãos” (cf. Mt 18,20; 1Cor 11,17.20.33-34; 14,23.26; At 4,31; 20,7-8; Hb 10,25; Tg 2,2
etc.). Faziam as “reuniões”, como já dissemos, em casas particulares. Conforme a narração
dos Atos dos Apóstolos, os primeiros cristãos “partiam o pão em casa, tomando as refeições
com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46). Trata-se de reuniões tanto para um “ágape”
(refeição fraterna) como também para uma “ceia eucarística” (cf. 1Cor 11,17-34),
normalmente celebrada dentro de uma refeição (herança judaica!). Junto com a refeição tinha
lugar o “ensinamento dos apóstolos”, a “comunhão fraterna” e as “orações” (cf. At 2,42.47;
4,24-31; 12,5). Uma oração que nestas “reuniões” certamente nunca faltava era a “oração de
bênção” (oração eucarística: ação de graças), de origem judaica, mas agora com conteúdo e
motivo cristão (pascal cristão!).
Outra novidade: Introduziram o costume de realizar as reuniões litúrgicas “no primeiro
dia da semana”. Inclusive deram um nome a esse dia: “dia do Senhor” (domingo), por ser o
dia memorial da ressurreição do Senhor (cf. 1Cor 16,2; At 20,7; Ap 1,10). A celebração da
Páscoa anual vai surgir mais tarde. Mas a consciência de uma Páscoa anual já é sentida quando
Paulo, ao falar do domingo da Páscoa, proclama: “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1Cor
5,7). Quer dizer: A imolação de Cristo substituiu a do cordeiro da Páscoa anual hebraica. A
celebração do batismo “no nome de Jesus Cristo” (At 2,38), o batismo “no Espírito Santo”,
anunciado por João Batista (cf. Mt 3,11; Mc 1,8; Lc 3,16; Jo 1,33) e pelo próprio Jesus a
Nicodemos (Jo 3,3-5), é outra novidade.
Enfim, numa palavra, o novo culto “em espírito e verdade”, inaugurado por Jesus
Cristo, onde o compromisso amoroso com a vida das pessoas está acima de tudo, acontece nas
reuniões litúrgicas dos primeiros cristãos em clima de simplicidade extraordinária, de
vitalidade espontânea, de alegria, seja seguindo formas cultuais judaicas daquele tempo, seja
rompendo com outras, seja criando novas. E para garantir a “edificação da comunidade” (1Cor
14,12), os dirigentes têm o cuidado de não deixar introduzir nas reuniões desvios nem
desordens contra o espírito comunitário.
Fica claro, pois, que “a comunidade apostólica, embora não tendo ainda uma
regulamentação estável da liturgia, já dispunha de algumas formas litúrgicas próprias.
Destaca-se a importância das Reuniões de Oração, do Batismo e da Eucaristia”2.

Fatores essenciais que contribuíram para a formação e o desenvolvimento da liturgia no


período apostólico:
● a mensagem e atividade de Jesus;
● o mistério de sua morte e ressurreição;
● a consciência da presença do Senhor entre os seus;
● a ação do Espírito Santo (M. Augé, Liturgia: história, celebração, teologia,
espiritualidade, São Paulo, Ave-Maria, 1996, p. 30).

2. Na era dos mártires


No período seguinte, caracterizado como “era dos mártires” (séculos II e III), os
cristãos procuram conscientemente se manter no âmbito da tradição litúrgica judaica, mas com
orientação radicalmente nova, é claro. Orações compostas neste período testemunham essa
ligação. Por exemplo, as orações de S. Clemente Romano3e as orações “eucarísticas” da
Didaqué ou “Doutrina dos doze apóstolos”4, do final do primeiro século, são composições
tipicamente hebraicas na sua forma, mas agora com conteúdo cristão, focalizando Jesus, o
servo de Deus.

102
Importantes escritores cristãos da época, como Tertuliano (Séc. II) e Hipólito de Roma
(+ 235)5, e inclusive a arte litúrgica deste período, fazem contínua alusão a figuras e temas do
AT para explicar e fazer viver os mistérios cristãos.
Este é o período em que também se “institucionalizou” a prática apostólica das reuniões
para a “fração do pão” em “casas particulares”. “Famílias ricas ofereciam as suas moradias
para as reuniões da comunidade cristã. Por causa da ‘planta’, essas casas facilmente se
prestavam às necessidades litúrgicas da igreja”6. Exemplo típico dessas casas temos em Dura
Europos (na Mesopotâmia): trata-se de uma casa helenística construída lá pelo ano 200 a.C.,
que foi transformada em domus ecclesiae (casa da Igreja) em 232. Em Roma existia bem umas
40 destas casas. As mais famosas foram descobertas sob as igrejas de S. João e S. Paulo, santa
Cecília, S. Clemente e santa Pudenciana.
Herdeiros do monoteísmo judaico, mas sobretudo, conscientes da centralidade do
“culto espiritual” a partir do mistério de Cristo, e também por causa das perseguições sofridas,
os cristãos ao mesmo tempo declararam um vigoroso “não” aos rituais pagãos. Como no tempo
apostólico! (cf. 1Cor 10,21-22). Os rituais, templos e ídolos pagãos são considerados como
criações diabólicas. Por isso, os cristãos não têm nada a ver com eles. E “pagaram caro” por
tal postura, sofrendo sangrentas perseguições! Então, defendendo a jovem Igreja contra as
forças diabólicas da idolatria, os Padres exaltam a superioridade do cristianismo e
desmascaram a corrupção do paganismo.
Defendendo-se contra a acusação, movida pelos pagãos, de que os cristãos eram uma
“gente ateia e sem religião”, pois não tinham templo, nem altar, nem sacrifícios, nem
sacerdotes, os Padres reafirmam e exaltam o culto espiritual7.

A saber, o templo dos cristãos é Cristo e, nele, a própria comunidade dos cristãos, formando
em Cristo um só corpo; esta é a morada de Deus. O altar é Cristo e, em Cristo, são sobretudo
os órfãos e as viúvas, os pobres em geral, sobre os quais os cristãos depositam a oferta de
suas próprias vidas. Sacrifício é o de Cristo e, em Cristo, a própria vida dos cristãos colocada
a serviço das pessoas. Consequentemente, sacerdote também é Cristo e, em Cristo, todos os
cristãos, inseridos no único sacerdócio de Cristo a serviço de todos. Neste sentido entende-se
a novidade e superioridade do cristianismo... E suas ações rituais não são senão celebrações
memoriais que atualizam a Aliança eterna de amor selada por Cristo com os seres humanos,
para que os cristãos possam também vivê-la em Cristo com renovada intensidade.

Por outro lado, quando se trata de elementos culturais ou rituais não estritamente
vinculados ao culto pagão, os Padres não demonstram nenhuma dificuldade em usá-los para
explicar e viver a liturgia. Nesse sentido, desaparece a intransigência.

Tertuliano, para descrever a renúncia batismal usa a palavra eieratio, termo jurídico, extra
cultual, que significa “desligamento de um contrato de serviço ou de associação”. Ou, para
falar da profissão batismal ou de fidelidade a Cristo, usa a expressão sacramenti testatio ou
signaculum fidei, termos técnicos que significam o juramento de fidelidade feito pelo soldado
ao imperador romano. Falando da unção pós-batismal, Tertuliano diz que deve ser
abundante, a ponto de o óleo escorrer por todo o corpo nu do neobatizado. O rito deve ser
realizado desse jeito porque assim o fez Moisés ao ungir Aarão. Com isso, o autor “insinua
que o batismo confere ao cristão o que no AT a unção conferia ao israelita: o sacerdócio.
Sabemos, porém, que gregos e romanos ungiam o corpo por diversos motivos: com fins
terapêuticos, para ficar fisicamente em forma ou por outras razões referentes ao esporte.
Ambrósio de Milão conservou o significado sacerdotal da unção pós-batismal, ao mesmo
tempo que descreveu com termos mais culturais a unção pré-batismal: Unctus est quasi
athleta Christi (Ungido qual atleta de Cristo)”.
Hipólito de Roma (século III) propõe dar leite adoçado com mel aos recém batizados após
comungarem, na vigília pascal. Com o batismo, o neófito atravessa o Rio Jordão, entra na
103
terra prometida e goza de suas bênçãos. Hipólito via neste rito um símbolo do cumprimento
da promessa que Deus fizera ao seu povo (cf. Ex 3,8; 13,5; 33,3; Nm 13,27): um símbolo da
páscoa cristã. Interessante que o leite adoçado com mel não era bebida só dos cristãos. Antes
destes, os romanos já tinham o costume de dá-lo aos recém-nascidos, como sinal de boas-
vindas na família e para protegê-los dos maus espíritos. Provavelmente Hipólito conhecia o
seu uso, e resolveu adotá-lo para os recém-nascidos no batismo, revestindo o rito de
interpretação bíblica (A. Chupungco, Adaptação. In: DILI, p. 3-4).

Nota-se como elementos da cultura mediterrânea (eieratio, sacramenti testatio, unção,


leite com mel) se prestavam perfeitamente a uma interpretação cristã. Tinham uma certa
“conaturalidade” para exprimir o mistério cristão. E, para evitar uma interpretação errada ou
uma teologia de má qualidade, por parte dos recém-batizados, os Padres insistiram na
catequese e na mistagogia, isto é, na apresentação dos mistérios cristãos contidos nestes ritos.
Numa palavra, por causa da entrada do Evangelho no mundo helenístico, já a partir do
tempo apostólico, não obstante a radical recusa dos ritos pagãos, a liturgia cristã não deixou
de se enriquecer com novas formas rituais e toda uma terminologia própria da cultura
ambiente.
Isso mostra como a liturgia cristã, já deste os tempos apostólicos, vai se adaptando aos
povos mediterrâneos com sua cultura própria. A liturgia vai se inculturando, diríamos hoje. O
mistério de Cristo vai sendo celebrado também com elementos da cultura local...
Inclusive já encontramos neste período importantes elementos testemunhais de uma
liturgia já mais elaborada/organizada.

A Didaqué, por exemplo, nos dá interessantes informações sobre a vida litúrgica entre
os anos 80 e 130: concretamente, sobre a celebração do batismo, sobre o jejum e a oração,
sobre a celebração do ágape e da eucaristia, especialmente no domingo. Acima já nos
referimos também às orações da carta do papa Clemente aos Coríntios (do ano 96).
O procônsul Plínio o jovem, de Bitínia, numa carta escrita ao imperador Trajano no
ano 112, refere-se a duas reuniões litúrgicas num dia estabelecido: uma ao raiar do dia, na
qual os cristãos elevam cantos de louvor a Cristo “como a um Deus” e assumem sob
juramento observar certos mandamentos; outra à tarde para uma “refeição inocente” (cf. A.
Adam, Corso di liturgia, op. cit., p. 23-24).

Um testemunho importantíssimo nos vem de Justino, leigo, filósofo convertido ao


cristianismo. Lá pelo ano 150 ele escreve uma Apologia (defesa) em favor dos cristãos. Aí,
entre outras coisas, ele faz uma explanação sobre como se desenrolava normalmente a
celebração da missa na comunidade cristã que ele defendia8. Trata-se de um testemunho
documental interessantíssimo, pois por ele sabemos como se celebrava a missa em meados do
século II:

“E no dia chamado do Sol, realiza-se uma reunião num mesmo lugar de todos os que habitam
nas cidades ou nos campos. Leem-se os comentários dos Apóstolos ou os escritos dos profetas,
enquanto o tempo o permitir. Em seguida, quando o leitor tiver terminado a leitura, o que
preside, tomando a palavra, admoesta e exorta a imitar estas coisas sublimes. Depois nos
levantamos todos juntos e recitamos orações; e como já dissemos, ao terminarmos a oração,
são trazidos pão, vinho e água e o que preside, na medida de seu poder, eleva orações e
igualmente ações de graças e o povo aclama, dizendo o Amém. Então vem a distribuição e a
recepção, por parte de cada qual, dos alimentos eucaristizados, e o seu envio aos ausentes
através dos diáconos. Os que possuem bens e quiserem, cada qual segundo sua livre
determinação, dão o que lhes parecer, sendo colocando à disposição do que preside o que foi
recolhido. Ele por sua vez socorre órfãos e viúvas, os que por enfermidades ou outro qualquer

104
motivo se encontram abandonados, os que se encontram em prisões, os forasteiros de
passagem; em uma palavra, ele se torna provedor de quantos padecem necessidade”.

Como se vê, temos aí apresentadas todas as partes principais da missa: reunião em


assembleia no “dia do Sol”9 (isto é, no domingo), escuta da Palavra, homilia, oração dos fiéis,
preparação das oferendas, oração eucarística, comunhão, socorro aos necessitados. Logo em
seguida, Justino explica por que os cristãs se reúnem no “dia do Sol”:

“Fazemos a reunião todos juntos no dia do Sol, porque é o primeiro dia, em que Deus
transformando as trevas e a matéria, fez o cosmos, e Jesus Cristo, nosso Salvador, no mesmo
dia ressuscitou dentre os mortos”.

A Tradição apostólica de Hipólito de Roma (ano 215) também é outro documento


importantíssimo que nos ajuda perceber como era organizada e celebrada a liturgia nesse
período. Refere-se ao batismo (com um itinerário de iniciação cristã já bem detalhado), à
eucaristia (com uma ‘oração eucarística’ já elaborada)10, às ordenações (de bispo, presbítero e
diácono, com uma oração consecratória para cada um destes graus), às bênçãos, às orações e
ao ágape.
No que diz respeito ao batismo, eucaristia e ordenações, também Tertuliano (+ por
volta de 220) e Cipriano (+ 258) nos oferecem bons testemunhos.
Não obstante os elementos litúrgicos já mais ou menos elaborados e organizados, o que
predomina ainda é um clima de grande espontaneidade e ampla liberdade para improvisar as
orações. Não existiam livros litúrgicos como temos hoje. Muitas vezes, com base num
esquema definido (a grande bênção da ceia pascal judaica era, sem dúvida um referencial,
como já dissemos acima!), o presidente da assembleia improvisava a oração de acordo com
suas habilidades. Isso nós vemos pelos próprios documentos.

A Didaqué, por exemplo, depois de uma fórmula de oração “eucarística”, acrescenta:


“Deixai os profetas bendizer à vontade”. Justino, na sua Apologia, testemunha que o
presidente da celebração pronuncia a oração eucarística “na medida de seu poder”. Hipólito
de Roma, na sua Tradição apostólica, depois de apresentar um modelo de oração eucarística,
lembra ao bispo que não é obrigado a rezar com aquelas palavras nem repeti-las de cor. Pode
rezar de acordo com seus próprios talentos, de modo mais longo e solene, ou de modo mais
simples. O importante é que o bispo, quando ora, siga a regra da fé: “Dê graças o bispo, tal
como mencionamos. De forma nenhuma é necessário que, dando graças a Deus, profira as
mesmas palavras que mencionamos, como se o fizesse de memória: reze cada um segundo
suas possibilidades. Se alguém tiver capacidade para rezar uma oração mais longa ou mais
solene, ótimo. Se outro, porém, rezando, proferir uma oração mais simples, deixai-o, contanto
que reze o que é correto dentro da ortodoxia” (Tradição apostólica de Hipólito de Roma, 2ª
ed., Petrópolis, Vozes, 1981, p. 45).

3. Resumindo
Em termos cultuais o movimento cristão iniciado por Jesus de Nazaré significa
simplesmente a continuidade da liturgia judaica.
Mas também há aspectos de descontinuidade entre a liturgia judaica e a liturgia judeu-
cristã emergente. Às práticas cultuais meramente exteriores se antepõe a lei do Amor. Ao
templo se sobrepõe aos poucos o novo Templo (Cristo/Igreja). Aos pagãos convertidos não se
impõe o peso da circuncisão e da lei mosaica.
E mais, os cristãos se sentiram também muito livres em criar formas próprias para
celebrar a liturgia, a memória do mistério de Cristo. “Reunir-se junto” para a escuta da Palavra,
a oração comum, a fração do pão (Eucaristia), em casas particulares, no primeiro dia da semana
(domingo), o batismo, a comunhão fraterna, são alguns elementos próprios de destaque.
105
As comunidades cristãs dos séculos II e III procuraram celebrar e compreender a
liturgia mantendo um significativo vínculo com a tradição judaica.
Herdeiro do monoteísmo judaico, mas sobretudo conscientes da importância do “culto
espiritual” a partir do mistério de Cristo, e também por causa das perseguições sofridas, os
cristãos declararam um vigoroso “não” aos rituais pagãos.
Ao mesmo tempo, não hesitaram em compreender e celebrar a liturgia com elementos
culturais dos povos greco-latinos da bacia do Mediterrâneo.
À medida que o tempo ia passando, e os cristãos se multiplicando, a liturgia também
foi naturalmente se elaborando e se organizando cada vez mais.
Mesmo assim, prevaleceu ainda o princípio da espontaneidade e ampla liberdade para
improvisar as orações litúrgicas.
O que se procurou garantir em tudo isso, a todo custo, foi o essencial herdado de Jesus
dos apóstolos: o mistério de Cristo.

___________________

NOTAS DE RODAPÉ

Cf. J. M. Castillo, Símbolos de libertad, Salamanca, Sígueme, 1981, p. 31-80 (“Jesús y la


práctiva religiosa establecida”).
2
M. Augé, Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, São Paulo, Ave-Maria,
1996, p. 29.
3
Carta de S. Clemente Romano aos Coríntios (= Coleção Fontes da Catequese 3), 59-61, 3ª
ed., Petrópolis, Vozes, 1984, p. 60-63.
4
Trata-se do mais antigo catecismo cristão que conhecemos. É de final do século I e início do
século II. Cf. Didaqué. Catecismo dos primeiros cristãos (= Coleção Fontes da Catequese 1),
4ª ed., Petrópolis, Vozes, 1983; cf. também Didaqué. O catecismo dos primeiros cristãos para
as comunidades de hoje, 7ª ed., Paulus, São Paulo, 1989; cf. ainda La Didajé (= Cuadernos
Phase 75), Barcelona, Centre de Pastoral litúrgica, 1996, p. 5-22.
5
Cf. Tradição apostólica de Hipólito de Roma (= Coleção Fontes da Catequese 4), 2ª ed.,
Petrópolis, Vozes, 1981, p. 37ss.; La tradición apostólica (= Cuadernos Phase 75), Barcelona,
Centre de Pastoral Litúrgica, 1996, p. 23ss.
6
A. Chupungco, Adaptação. In: DILI, p. 3.
7
J. M. Castillo, Símbolos de libertad, op. cit., p. 81-111 (“La iglesia primitiva y la práctica
religiosa”).
8
Cf. Justino, Apologia I,67. In: Tradição apostólica de Hipólito de Roma, op. cit., p. 82-83.
9
Dia dedicado ao deus Sol na tradição religiosa romana.
10
Esta ‘oração eucarística’ foi acolhida e introduzida no nosso missal romano, depois do
Vaticano II, com algumas adaptações: é a Oração Eucarística II.

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Capítulo primeiro do Livro:
O MISTÉRIO CELEBRADO: MEMÓRIA E COMPROMISSO I
CELEBRAR É PRECISO

Autora: Ione Buyst

Neste exato momento, em algum lugar do mundo, há gente reunida para celebrar sua
fé. Seja em uma linda catedral ou em um pequeno barraco numa periferia de cidade, numa
Capela rural ou ao ar livre... Seja com muita ou pouca gente: as celebrações litúrgicas
acontecem por toda parte. Há celebrações que são esperadas com alegre expectativa e
muitos preparativos; há outras que mais parecem uma obrigação, pesada e enfadonha. Por
que celebramos, afinal? O que caracteriza uma celebração cristã? Celebrações cristãs são
iguais no mundo inteiro, em todas as realidades? Para ser um(a) praticante cristão(ã), basta
ir às celebrações? E não pode haver cristãos que praticam sua fé apenas numa prática social
ou política, sem ter de participar da liturgia? E o que as celebrações litúrgicas têm a ver
com teologia, com pastoral, com espiritualidade? Estas são algumas das questões que
abordaremos neste capítulo introdutório. As palavras-chave (indicando categorias básicas)
são estas: celebrar, celebração; símbolo, ação simbólica; mito, rito, ritualidade; liturgia
cristã, celebração da fé cristã; inculturação; teologia litúrgica; pastoral litúrgica,
espiritualidade litúrgica.
1. CELEBRAÇÕES EXISTENTES NAS COMUNIDADES

Propomos que neste início de estudo vocês façam


uma lista das celebrações conhecidas pelo grupo.

Nem sempre nos damos conta da variedade das celebrações litúrgica: Celebração
eucarística (missa), batismo; confirmação (crisma); reconciliação; unção dos enfermos;
ordenação (diaconal, presbiteral e episcopal); matrimônio; consagração de Virgens;
profissão religiosa; dedicação de igreja e altar; bênçãos; Exéquias; celebração da palavra
de Deus; liturgia das horas (ofício divino); celebrações catecumenais; celebrações com
doentes e idosos; distribuição da sagrada comunhão fora da missa; hora Santa; liturgias
domésticas; celebrações em circunstâncias variadas.
As celebrações acompanham determinados tempos do dia, da semana e do ano:
ofício da manhã e da tarde; ofício de vigílias; celebração do domingo, dia do Senhor; ciclo
do Natal (advento, Natal, epifania), ciclo da Páscoa (quaresma, tríduo pascal, tempo
Pascal), tempo comum, festa do Senhor, de Maria e dos outros santos e santas;
acontecimentos marcantes da vida pessoal e da vida de um povo...
Além dessas celebrações consideradas “oficiais”, há práticas celebrativas do
chamado “catolicismo popular”, muitas vezes de cunho regional, e que o povo foi criando
ao longo do tempo porque não se situava nas práticas oficiais realizadas em latim e para
poder expressar sua devoção. Assim encontramos novenas, terços e rosários, vias-sacras,
sentinelas, congadas, folias, “incelências” etc.

107
Há celebrações acompanhando as atividades de várias pastorais: da criança, da
Juventude, dos idosos, da saúde, da Terra, de rua..., retiros, cursos de formação teológica,
escolas de fé e política...
Nas últimas décadas, nas comunidades eclesiais de base foram nascendo outros tipos
de celebrações, relacionadas com fatos ou reivindicações de cunho social e político,
vividas na fé: ocupações de terras e casas; luta por água, esgoto, luz elétrica; martírio de
membros da comunidade; procissões, vigílias em praças públicas pela paz e contra a
violência... E, de uma maneira mais profunda, há uma preocupação em se viver todas as
celebrações litúrgica sob o ângulo do compromisso social e político, inerente à fé cristã.
Atualmente, na América Latina está crescendo o interesse pelas práticas rituais dos
povos indígenas que conseguiram sobreviver aos 500 anos de colonização e pelas tradições
religiosas guardadas vivas pelos afro-descendentes, até bem pouco tempo proibidas e
reprimidas.
Na sociedade pluralista em que vivemos, é importante interessar-nos por conhecer e
apreciar as práticas celebrativas de outras igrejas cristãs (igrejas orientais, igreja
Anglicana, igrejas protestantes e evangélicas...), assim como de outras tradições filosóficas
e religiosas (judaísmo, islamismo, hinduísmo, budismo, etc.), principalmente as que estão
presentes em nossa região.
Confrontem a lista que fizeram com o texto acima:
Quais as coincidências? Quais as diferenças? O que foi esquecido?
O que é desconhecido ou não existe em sua realidade?

2. CELEBRAR? POR QUÊ?

Constatamos que há uma rica variedade de celebrações; fazem parte de nossa vida.
Não somente de nossa vida religiosa, mas de nossa vida como um todo. Celebrações,
mitos, e ritos são um dado antropológico. O ser humano, em qualquer cultura, parece não
poder viver sem eles. Pensem num casamento, nas festas de aniversário nas famílias, no
velório ou num enterro... Pensem nos festejos do aniversário de uma cidade, de um clube,
da Independência da nação... Pensem no carnaval, na comemoração da vitória de um time
esportivo, na abertura dos jogos olímpicos...
Celebrar é uma ação comunitária, festiva, que tem a ver com “tornar célebre”,
solenizar, destacar do cotidiano, colocar em destaque pessoas ou fatos e realçar o
significado que tem para um determinado grupo de pessoas.

Aí surge a pergunta: por quê? Por que celebramos? Por que é preciso celebrar? Em
primeiro lugar, o ser humano parece ter necessidade de buscar, expressar e aprofundar o
sentido da existência, dos acontecimentos, da vida e da morte... E, como esse sentido
ultrapassa nossa capacidade racional, necessitamos de símbolos, de mitos e ritos, de festa.
Celebrar, simbolizar e ritualizar a existência é tão indispensável ao ser humano quanto comer
e beber. Aliás, é o que distingue os humanos de outros seres vivos sobre a face da terra.
Nos símbolos ou ações simbólicas, um sinal sensível vem carregado de uma
realidade não-sensível, não-palpável (o divino, por exemplo, o transcendente), e permite
nossa

108
identificação e comunhão com essa realidade, bem como nossa participação nela. Os mitos
são narrativas que expressam de forma simbólica as crenças e convicções de um povo.
Ritos têm como característica a repetição de determinadas palavras, gestos e ações
simbólicas, possibilitando a expressão comunitária, a transmissão, conservação e o
aprofundamento do sentido da vida.
Cada grupo humano tem sua maneira própria de ver a vida. Cada grupo humano tem
sua maneira de ritualizar o sentido da existência. Seus símbolos, mitos, ritos, suas festas
são expressão de sua identidade. E da conservação de seus símbolos, mitos, ritos e festas
depende a conservação de sua identidade, a integração dos membros no grupo e seu sentido
de pertença.
Quando o sentido expresso pelo grupo se refere a uma realidade “divina”,
“transcendente”, falamos de símbolos, mitos, ritos e festas religiosas. Temos a convicção de
que Alguém nos acompanha, nos ouve, nos vê; conversamos com esse Alguém com palavras
e gestos (ritos), “curtimos” sua companhia. Quando estamos sofrendo, na dor, na miséria, na
incompreensão, na perseguição, na solidão, gritamos para esse Alguém ou imploramos ajuda,
seu consolo. Quando estamos felizes, alegres, vivendo em paz, sentimos necessidade de
expressar a esse Alguém nossa gratidão.
Nós, cristãos, como todos os outros grupos humanos, temos nossas festas, nossos
símbolos, mitos, e ritos que possibilitam expressar e vivenciar nossa identidade, nossas
convicções, nossa fé. Trata-se de uma necessidade inerente do fato de sermos “humanos”.
Sem símbolos, sem ritos, sem celebrações, não é possível ser gente plenamente. É mediante
esses elementos rituais que expressamos nossa relação com Alguém, que para nós é o Deus
e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Além da necessidade antropológica de ritualizar nossa fé, temos o mandamento
expresso de Jesus dado no contexto da última Ceia, referido por Paulo e Lucas: Façam isto
em memória de mim... (1Cor 11,23-26; Lc 22,19-20).
3. LITURGIA CRISTÃ

Quando falamos em “liturgia cristã” estamos nos referindo a um conjunto de


celebrações que foi nascendo nas comunidades cristãs ao longo da história e que expressam
a fé, as convicções, a maneira de compreender a vida, a maneira de os discípulos de Jesus
se relacionarem com o transcendente, o divino.
O adjetivo “cristã” indica a centralidade cristológica (ou melhor, crística) dessas
celebrações. Todas se referem a Jesus, o Cristo, o ressuscitado, e expressam o sentido
profundo (o mistério) de sua pessoa, sua vida, sua missão, sua morte e ressurreição, sua
segunda vinda, como chave de compreensão de nossa própria vida. Possibilitam que nos
reconheçamos nele, nos identifiquemos com ele e participemos em seu mistério. Toda a
liturgia cristã é feita em memória de Jesus, conforme as palavras já citadas: Façam isto em
memória de mim...
A liturgia cristã tem suas raízes na liturgia judaica: parte de fatos. Faz memória das
intervenções libertadoras de Deus na história, a favor de seu povo, com o qual estabeleceu
uma aliança. Festas da natureza, como a Páscoa e Pentecostes, recebem novo significado a
partir de fatos históricos, lidos desde a fé no Deus único, o eterno, e da aliança com ele.

109
O fato principal, exemplar para o povo judeu, é a libertação do povo da escravidão no
Egito, o chamado êxodo (saída), situado por volta de 1200 a.C. Compreendem que foi
Deus quem chamou e preparou Moisés como liderança do povo, que foi Deus quem
endureceu o coração do faraó do Egito, que foi Deus quem fez o povo hebreu passar a pé
enxuto pelo Mar Vermelho e que afogou os egípcios no mar, possibilitando a fuga dos
hebreus e a caminhada pelo deserto, até a tomada de posse da Terra Prometida. Ao longo
da história, novos fatos são interpretados, tendo como referência a memória do êxodo,
celebrada anualmente na festa da Páscoa. As Sagradas Escrituras, lidas, meditadas e
interpretadas nas assembleias litúrgicas, num contexto de diálogo com o Senhor, mantêm
viva a fé e a aliança com o eterno, numa vida dedicada a ele e em obediência à sua palavra
em todas as áreas da vida humana.
Para os cristãos, o fato novo do qual se faz memória na liturgia (em continuidade com
a saída do Egito), é a morte-ressurreição de Jesus, seu êxodo, sua páscoa, sua passagem da
morte para a vida, da Cruz para a ressurreição. É a referência decisiva e definitiva para o
sentido da vida pessoal e da história da humanidade. É referência para discernir, para
reconhecer as páscoas do povo em todos os tempos e lugares, até que se realize plenamente
entre nós o Reino de Deus inaugurado por Jesus, na força do Espírito Santo de Deus.
Assim, toda a liturgia cristã pode ser considerada celebração do mistério de Jesus,
memória de sua páscoa (morte-ressurreição). Quem faz a memória é a comunidade dos
discípulos de Jesus, em nome dele, celebrando a libertação que Deus operou e continua
operando em nossas vidas, pelo poder do Espírito Santo. Esta memória é ao mesmo tempo
renovação da nova e eterna aliança entre Deus e seu povo, realizada em Jesus. A memória é
realizada com ações rituais que comportam leitura e interação das Sagradas Escrituras, num
contexto de diálogo íntimo entre os parceiros da aliança (o Senhor Deus e o seu povo), na
espera da vinda e intervenção definitiva do Senhor na história.
A liturgia cristã é profissão de fé da comunidade eclesial; é a fé da Igreja expressa
em ação ritual. Celebramos na fé como Igreja, em Igreja. Cada cristão(ã) assume esta
expressão de fé comum, eclesial, como sendo sua fé e se deixa formar por ela ao longo
de sua vida (cf. CIC 1066-1068)

4. INCULTURAÇÃO – UM SÓ MISTÉRIO, DIVERSIDADE DE FORMAS


CELEBRATIVAS
O mistério de Cristo é um só e sempre o mesmo. Entretanto, a ação ritual que
expressa esse mistério assume necessariamente uma forma cultural. Depende, portanto, da
cultura da comunidade celebrante.
Os primeiros cristãos eram todos judeus. Celebravam o mistério de Jesus com
elementos rituais conhecidos de sua tradição: leitura e meditação das Sagradas Escrituras,
orações, a ceia, o batismo... Pouco a pouco, no entanto, foram surgindo comunidades em
outros contextos culturais (gregos, romanos...), assumindo para suas liturgias formas
rituais diversificadas.
Esse processo natural e coerente com a lógica da encarnação foi, infelizmente,
interrompido num dado momento da história. As formas rituais foram como que
“engessadas”: proibiu-se qualquer mudança, qualquer criatividade. Toda a liturgia, em

110
qualquer parte do mundo, tinha de ser celebrada em latim, com canto gregoriano, gestos,
símbolos e vestes iguais para o mundo inteiro, sem levar em conta a cultura de cada povo
celebrante! Foram séculos de “fixismo” litúrgico. O Concílio Vaticano II, no entanto, na sua
Constituição sobre é Sagrada Liturgia, denominada Sacrosanctum Concilium (SC),
promulgada em dezembro de 1963, abriu a possibilidade de uma reforma da liturgia e uma
adaptação às culturas (SC 21; 37-40). É preciso salvaguardar a parte divinamente instituída
da liturgia e a unidade substancial do rito romano. De resto, dê-se lugar a legítimas variações
e adaptações para os diversos grupos, regiões e povos (SC 38). Hoje, o termo usado para essa
adaptação é: inculturação.
A inculturação significa uma íntima transformação dos valores culturais autênticos,
graças à sua integração no cristianismo e ao enraizamento do cristianismo nas diversas
culturas humanas. Trata-se de um duplo movimento: 1) a Igreja encarna o Evangelho
nas diversas culturas; 2) ao mesmo tempo, assimila os valores daquelas culturas, se
compatíveis com o Evangelho, “para aprofundar melhor a mensagem de Cristo e
exprimi-la mais perfeitamente na celebração litúrgica e na vida da variada comunidade
dos fiéis”.

O princípio foi colocado, a porta foi aberta, mas está custando para que tudo isso seja
assumido na prática. É como uma pessoa aprender a andar de novo, depois de ter ficado
meses com a perna engessada. E, vejam bem, no caso da liturgia, foram séculos de
imobilismo rigidamente controlado!
Pouco a pouco, no entanto, alguma mudança vai aparecendo; em alguns lugares mais,
em outros menos. O latim cedeu lugar às línguas vivas de cada povo; muitos elementos
celebrativo secundários ou até contrários ao espírito da liturgia foram afastados, a estrutura
das celebrações tornou-se mais transparente; novas linguagens e estilos musicais entram nas
celebrações (nem sempre com os devidos critérios); a arte arquitetônica, as imagens, as
vestes, a ornamentação estão se renovando; estamos tomando maior liberdade nos estilos
celebrativos; os símbolos e ações simbólicas ainda estão ensaiando seus primeiros passos; a
eucologia (as orações) parecem ainda ter muita dificuldade de expressar fé em conceitos,
linguagem e sensibilidade das culturas atuais. Os desafios da inculturação estão aí.
Na América Latina, está havendo uma preocupação de integrar liturgia e devoção
popular. E, timidamente, aparecem liturgias com traços indígenas, africanos ou afro-
ameríndios... Liturgia com o rosto de cultura urbana? Com a cara da juventude?... São
outros desafios.
Qual é a base teológica para a inculturação da liturgia? Apontemos três aspectos:
a. Deus não é uma peça de museu! Sempre o mesmo na sua essência, aparece sempre
diverso na sua manifestação sempre vivo e atual. A liturgia como um momento de
celebração de encontro e comunhão com este Deus, deverá ser diversificada, de acordo
com os diferentes rostos de Deus revelados em cada época e realidade.
b. O verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). O Filho de Deus, para se
comunicar com seu povo, assumiu o seu modo de vida, sua língua, seus costumes, numa
palavra: sua cultura. A Igreja deverá seguir os passos de Jesus e encarnar-se em cada
povo, em cada meio sociocultural.

111
c. Nós os ouvimos apregoar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus! (At
2,11). A Igreja nasceu universal no dia de Pentecoste por obra do Espírito Santo. E durante
toda a história o Espírito foi suscitando missionários que anunciaram o evangelho de Jesus
Cristo em todas as culturas, suscitando igrejas locais em todas as partes do mundo. Onde
não lhe colocaram barreiras, o Espírito fez nascer liturgias nativas que vieram enriquecer
a Igreja de Cristo com grande riqueza espiritual.
Em todo o trabalho da inculturação, há dois extremos a serem evitados:
– O tradicionalismo, que se apega às formas de antigamente, sem levar em conta a
reforma litúrgica e a cultura atual da comunidade. A verdadeira tradição não é estática
nem morta; ela é viva, dinâmica, criativa.
– A espontaneidade, que quer sair por aí criando coisas novas, sem atentar para o
mistério celebrado na liturgia e sem levar em conta a tradição viva que nos vem dos
apóstolos. A verdadeira criatividade exige conhecimento profundo e respeito pela
tradição.
A partir de agora nós concentraremos nas celebrações cristãs mais especificamente
na tradição da Igreja católica romana.
5. LITURGIA NO CONJUNTO DA VIDA CRISTÃ E DA AÇÃO ECLESIAL

Liturgia, lit-urgia
O termo “liturgia”, ação do povo ou serviço realizado a favor do povo, pode ser
entendido de duas maneiras complementares:
1) É a ação de Deus servindo e santificando o seu povo, fazendo-o passar da morte
para a vida
2) É ação do povo servindo e glorificando a Deus em união com Jesus, no Espírito
Santo.
De qualquer modo, é AÇÃO, trabalho, serviço... Coisa para se FAZER. (Diferente
de teo-logia, psico-logia e outras: que são coisas para pensar, refletir, estudar.)

5.1.Liturgia: celebração que transborda numa vida de comunhão

Liturgia é ação simbólica, ritual; expressão comunitária de nossa fé cristã. É o mistério


cristão celebrado. Por esta razão, a liturgia é considerada “cume” para o qual tende a ação da
Igreja e, ao mesmo tempo, é a “fonte” donde emana toda sua força (SC 10). Ou seja, a liturgia
não deve ser considerada como um momento, uma atividade em meio a outras, cultivada
talvez, mas por uns e menos por outros. É a fonte da qual decorre, como um rio, a vida da
igreja e de cada cristão e cristã. Por que é na liturgia que o Ressuscitado vem ao encontro de
sua comunidade de fé, nos atinge, nos transforma com seu Espírito, nos faz participar de sua
vida de comunhão com o Pai e nos envia de volta ao mundo, renovados, santificados.
Podemos, assim, distinguir dois momentos complementares, às vezes chamados de
liturgia-celebração (liturgia em sentido restrito) e liturgia-vida (liturgia em sentido amplo,
também chamada de liturgia da história). Somos convidados a fazer de toda a nossa vida
uma liturgia em sentido amplo, decorrente da liturgia como celebração do mistério cristão.
Uma não existe sem a outra.

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Sem a vida vivida como culto espiritual, a celebração litúrgica torna-se uma
formalidade, o ritualismo vazio, uma mentira. De nada adianta dizer Senhor, Senhor... e não
trabalhar para que a transformação de si mesmo e do mundo, para que aconteça a justiça do
Reino. Sem a liturgia-celebração, a vida cristã perde a ligação com a sua fonte, seu princípio
vital, seu rumo, seu ponto de referência e sua destinação final: Deus, o Senhor.
Neste estudo, trabalharemos a liturgia em sentido restrito; porém, sempre tendo
presente nas entrelinhas sua relação intrínseca com a liturgia-vida.
5.2.À liturgia faz a igreja

A liturgia deve ser considerada não somente em relação à vida pessoal e social dos
cristãos, mas também em relação ao contexto eclesial. É uma determinada igreja que
celebra; expressa na celebração seu modelo eclesial, suas opções pastorais. Por isso, vamos
encontrar estilos e ênfases diferentes nas celebrações litúrgicas: mais institucional ou mais
profética, mais centrada na palavra de Deus ou com maior espaço para as devoções e os
sentimentos religiosos, mas romana ou mais inculturada, mais ligada com as classes
abastadas ou com os pobres.
De qualquer forma, a liturgia não pode ser vivida como algo isolado da vida
comunitária e missionária, com sua evangelização e catequese, como suas pastorais sociais,
com sua preocupação ecumênica e de diálogo religioso. Aqui também vale a palavra do
Concílio: a liturgia é cume e fonte de toda a vida da Igreja. É na liturgia que a igreja-
comunidade é formada pelo próprio Espírito do Senhor, na ação ritual. A Igreja faz a liturgia,
mas ao mesmo tempo é a liturgia quem faz a Igreja. Toda a nossa vida comunitária, todo o
nosso empenho pastoral e missionário deve brotar deste encontro comunitário com o Deus
vivo na celebração litúrgica.
5.3. Liturgia e espiritualidade

Merece uma atenção especial a relação entre liturgia e espiritualidade. De início, é


preciso esclarecer que aqui vamos entender espiritualidade como vida espiritual, ou vida no
Espírito. Abrange, portanto, toda a vida do cristão e consiste numa união sempre mais íntima
com Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, e por ele, com o Pai, no Espírito Santo. Brota
do encontro com o Senhor na liturgia, expande-se na oração pessoal e expressa-se na vida
pessoal, no trabalho, nas relações humanas, na organização da vida em sociedade.
Como cristãos, somos chamados a formar um só Corpo em um só Espírito com o
Senhor, para continuar a missão messiânica inaugurada por ele, até que o Reino de Deus
atinja toda a realidade humana, até que Deus seja tudo em todos (cf. 1Cor 15,28). O
evangelho não deixa dúvidas: a preocupação primeira é com os pobres e com todas as
pessoas feridas em sua dignidade humana, em seu ser filho ou filha de Deus.
Em muitos ambientes, a espiritualidade fica reduzida a exercícios e experiências de
oração, de devoção, de meditação, sem ligação com a liturgia e sem preocupação com a
libertação dos pobres e a transformação da realidade social.
Enfocando o aspecto litúrgico, percebemos que a maioria das pessoas não aprendeu
a alimentar sua vida espiritual na liturgia. Não lhes foi ensinado isso.

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O que devemos fazer então? Recuperar a unidade entre liturgia, devoção e
compromisso ético.
5.4.Pastoral litúrgica

Pastoral litúrgica diz respeito a todos os esforços feitos para animar a vida litúrgica
de uma comunidade, paróquia, diocese, região, levando em conta a sua realidade (histórica,
cultural, social, eclesial), de modo que todos os cristão e cristãs possam participar da
liturgia de forma ativa, consciente, plena, frutuosa e colher dela os frutos espirituais. A
pastoral litúrgica inclui cuidados com a preocupação, realização e avaliação das
celebrações, com a organização da vida litúrgica nos vários níveis eclesiais, com a
formação do povo e dos ministros.
a) as celebrações

As celebrações por si só já podem ser consideradas uma ação pastoral, na medida em


que, por meio da ação simbólico-ritual da comunidade, é o Cristo-Pastor que age, nos atinge,
nos santifica com seu Espírito. Daí a importância de se celebrar bem, para que esta ação
pastoral seja a mais eficaz possível, acompanhando o ritmo de nossa vida comunitária
(eucaristia dominical, ano litúrgico...) e pessoal (iniciação cristã, reconciliação, matrimônio,
enfermidade, morte...).
Entretanto, costuma se dizer que as celebrações requerem também uma ação pastoral
antes e depois. Antes: para poder chegar a participar da liturgia, normalmente a pessoa
passa por etapas de evangelização e catecumenato ou catequese. Depois: a participação na
liturgia faz de nós testemunhas; somos enviados(as) para continuar a missão messiânica
de Jesus.
Ainda um outro antes e depois quanto ao trabalho das equipes de liturgia. Antes: a
reunião de preparação, a distribuição das tarefas, os ensaios, a organização do espaço
celebrativo, a preparação pessoal de cada ministro ou ministra. Depois: a avaliação do
trabalho da equipe e da celebração como um todo. Há também um antes mais remoto, que
é a organização da pastoral litúrgica e a formação.
b) A organização da vida litúrgica

Qualquer ação pastoral necessita de um mínimo de organização. Quanto maior a


comunidade, mais complexa será a organização.
Vamos pensar numa comunidade de base com uma vida litúrgica reduzida: tem sua
celebração dominical, suas festas durante o ano litúrgico, as novenas e vias-sacras, visita aos
doentes, talvez alguns sacramentos como batismo e casamento, provavelmente assegurados
por ministros e ministras leigos e leigas. Poderá tudo isso funcionar sem organização? Cada
um desses trabalhos requer escolha de pessoas responsáveis reuniões de preparação e
avaliação, planejamento das atividades, envolvimento da comunidade.
Todas as pastorais devem poder contar com a ajuda da equipe de liturgia da paróquia.
E mais: há setores da vida humana que ainda carecem de expressão litúrgica e que são um
permanente convite à criatividade pastoral da equipe. Não podemos nos contentar com as
missas e os sacramentos. Bênçãos, celebrações da palavra em várias circunstâncias e
principalmente o ofício Divino ainda não ocupam todo o espaço que

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poderiam ocupar. Qualquer situação humana significativa, em nível pessoal ou social,
pode requerer uma ritualização o que nos ajude a perceber a presença de Cristo e de seu
Espírito nesta situação e a viver esse momento em profunda comunhão com ele. Também
a vida litúrgica de uma região pastoral e de uma diocese necessita de organização e de uma
equipe, ou serviço, ou comissão, responsável por ela.
c) A formação litúrgica

Formação litúrgica é capacitação para compreender e viver melhor a liturgia. Pode ser
considerada em vários níveis (básico, médio, superior, especialização, ciência litúrgica), para
vários destinatários (povo, ministros, professores, especialistas, pesquisadores),
considerando vários aspectos (históricos, antropológicos, teológicos, rituais, espirituais,
mistagógicos, pastorais, jurídicos, ecumênicos). Para se conhecer a liturgia, é praticamente
indispensável adquirir conhecimentos básicos de Bíblia, cristologia, pneumatologia,
escatologia e também da realidade social e cultural. Para cada nível, grupo destinatário ou
aspecto da formação litúrgica deverão ser encontradas metodologia e pedagogia adequadas.
Principalmente a formação dos ministérios litúrgicos não poderá ficar reduzida a aulas
teóricas; é necessária uma outra abordagem, uma educação integral para a ritualidade, em
que se aprenda a vivenciar a harmonia entre o gesto corporal, seu sentido teológico-litúrgico
e a atitude espiritual correspondente.4
Podemos distinguir ainda a formação a-sistemática da sistemática. As equipes de
liturgia receberam antes de tudo uma formação a-sistemática, acompanhando a ação.
Trata-se de preparar os membros da equipe, prática e espiritualidade, para que possam
exercer sua função com competência e conhecimento de causa. Pouco a pouco, poderão
adquirir maiores conhecimentos sobre o sentido teológico e espiritual da liturgia, sobre
cada uma das celebrações litúrgicas, sobre os tempos do ano litúrgico. Para facilitar o
estudo e aprofundamento das equipes, cada comunidade, paróquia ou diocese poderia ter
uma pequena biblioteca à disposição, atualizada, com dicionários, livros e revistas de
liturgia.
Ao lado da formação a-sistemática, é necessário organizar uma formação litúrgica
sistemática, seja como disciplina nos cursos de teologia, seja em cursos especializados
para ministros(as) ou agentes de pastoral litúrgica. Por fim, vale lembrar que a própria
liturgia é formadora dura de fé e vida cristã. É a mais fundamental “didascalia”
(ensinamento) da Igreja!
Resumindo

O conjunto de celebrações que formam a liturgia cristã é expressão simbólica, ritual,


da fé cristã, centrada no mistério de Deus revelado em Jesus Cristo, no Espírito Santo,
principalmente em sua páscoa, em sua morte-ressurreição.
Como seres humanos que somos, necessitamos dessa expressão ritual de nossa fé, ao
lado de outras formas como o anúncio e o testemunho. O único mistério celebrado na liturgia
quer se expressar numa diversidade de formas celebrativas, acompanhando a inculturação do
evangelho de Jesus Cristo na diversidade de povos e culturas.

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Entendida como ação ritual, simbólico-sacramental, a liturgia é ao mesmo tempo ação de Deus
servindo e santificando o seu povo (fazendo-o passar da morte para a vida) e ação do povo, servindo
e glorificando a Deus em união com Jesus, no Espírito Santo. Esta comunhão brota a vida cristã e
eclesial como um rio brota da fonte e é por ela alimentado. A liturgia faz a Igreja, faz com que se
torne sempre mais expressão do mistério de Deus no aqui e agora da história. Por isso, a
espiritualidade cristã, assim como a ética, nasce e se alimenta da participação na liturgia; não pode
ser reduzida a exercícios de piedade (retiros, meditação, oração pessoal...) que não tenham a sua fonte
na liturgia.
Liturgia antes de tudo celebração, ação ritual, acontecimento teologal. Todavia, necessitamos
de uma organização pastoral para que todo o povo cristão possa, de fato, participar adequadamente
da vida litúrgica. Necessitamos também de formação litúrgica e de estudos especializados.

PARA PENSAR

1. O que foi novo para vocês neste capítulo? Em que sentido?

2. Que consequências tira disso para sua maneira de participar da liturgia e para a vida
litúrgica de sua comunidade?

Ou: Faça uma lista das celebrações que você conhece e a partir do estudo de hoje pergunte-se:
podem ser consideradas liturgia cristã? Sim? Não? Por quê?

Ou: Por que as pessoas procuram essas celebrações? O que gostariam de encontrar nelas?Se
possível, provoque ou planeje uma conversa com algumas pessoas, ouvindo profundamente as
razões de cada um, sem julgar.

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1 O QUE É LITURGIA
“A liturgia é a fonte primária do
Verdadeiro espírito cristão” (Paulo VI).

Liturgia é uma palavra da língua grega que quer dizer: Ação do povo, ação em favor do povo.
Liturgia cristã é antes de mais nada, ação de Deus em favor do seu povo Celebrada pela Igreja,
o povo de Deus.
É a ação de um povo, reunido na fé, em comunhão com toda a Igreja, para celebrar o Mistério
Pascal – Morte e Ressurreição de Cristo, presente na Assembleia, oferecendo-se ao Pai como culto
perfeito.
O Concilio Vaticano II definiu a liturgia na Constituição “Sacrossanctum Concilium” – que foi
o primeiro documento conciliar, publicado em Roma no dia 4 de dezembro de 1963 -, ele a define
como: “ uma ação sagrada pela qual através deritos sensíveis se exerce, no Espírito Santo, o múnus
sacerdotal de Cristo, na Igreja e pela, para a santificação do homem e a glorificação de Deus” (cf SC,
7).
Aprofundando o conceito da “Sacrossanctum Concilium”:
a) Ação sagrada – é ação de uma comunidade – Igreja onde Cristo age. É sagrada, pois comunica
Deus e por ela comunicamo-nos com Ele. Isso pela fé e o amor.
b) Ritos sensíveis – Esta comunicação de Deus, por Cristo e em Cristo se faz através de sinais,
símbolos e formula especifica, isto é, a “forma sacramental’’.
c) O múnus sacerdotal de Cristo - É Ele o Cristo quem age e continua a realizar a obra da
salvação de modo que todos possam realizar a sua vocação sacerdotal recebida no Batismo. A ação
sagrada é de Cristo. Ele é o sacerdote, o oferente e a oferenda.
d) Na Igreja e pela Igreja – Cristo não age sozinho, mas se faz presente na e pela ação da Igreja
toda.
e) Para a santificação do homem e a glorificação de Deus – Estes são os dois movimentos de
cada ação litúrgica: o movimento de Deus para o homem – a santificação. E o movimento do homem
para Deus – a glorificação.
O documento de Medellín assim define a liturgia
“A liturgia é a ação de Cristo Cabeça e de seu corpo que é a Igreja. Contém, portanto, a iniciativa
salvadora que vem do Pai pelo Verbo, o Filho, no Espírito Santo, e a resposta da humanidade, daqueles
que foram enxertados, pela fé e pela caridade, no Cristo, recapitulador de todas as coisas. A liturgia,
momento em que a Igreja é mais perfeitamente ela mesma, realiza indissoluvelmente unida, a
comunhão com Deus e entre os homens; isso de tal maneira que a primeira é a razão da segunda. Se
antes de tudo, a Igreja procura o louvor da Glória e da graça, também está consciente de que todos os
homens precisam da Glória de Deus para serem verdadeiramente humanos” (Medellín – lit. 9,2)

1.1 O QUE CELEBRAMOS NA LITURGIA CRISTÃ?

No coração da Celebração Eucarística, a missa, que é o centro de toda a liturgia, ressoam as


palavras de Jesus referidas por Paulo e Lucas: “Façam isto em minha memória! ” Em seguida, o
ministro anuncia o que temos de mais sagrado: “Eis o mistério de nossa fé! ” E qual é o mistério de
nossa fé? Qual é o alicerce sobre o qual se apoia nossa identidade cristã, nossa vida eclesial, nossa
missão? A aclamação cantada por toda a comunidade reunida responde: “Anunciamos, Senhor, a vossa
morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde Senhor Jesus! ”
Nestas três frases encontramos a resposta à pergunta fundamental: o que celebramos na liturgia
cristã? Fazemos memória de Jesus Cristo. Celebramos o mistério de nossa fé, que é o mistério da
paixão-morte-ressurreição de Jesus: o mistério pascal. Celebramos "até que Ele venha", na perspectiva
escatológica da plena realização do Reino de Deus.

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As palavras-chave da liturgia são: memória (memorial), mistério, mistério pascal e sacrifício
(entrega, oblação), em sua origem e em sua compreensão atual. É essencial entendermos “em minha
memória” com o sentido de “memorial”. Vejamos.
Fazendo memorial: participamos dos acontecimentos salvadores. Compreender a páscoa judaica
e cristã como dados históricos e como memória ritual é de fundamental importância para nossa
participação em todas as celebrações de liturgia cristã.
A festa anual da Páscoa do povo judeu tem relação com a saída (êxodo) do Egito e a consequente
libertação da escravidão à qual o povo era submetido naquele país. O Êxodo no capítulo 12 recolhe
primeiro a tradição das tribos nômades que a cada início de primavera sacrificavam as "primícias"
(primeiros cordeiros nascidos naquele ano) para oferecer à divindade. Descreve com detalhes como
deve ser preparada e realizada a festa: o sacrifício de um carneiro (cordeiro), a marcação dos batentes
das portas das casas com o sangue do animal sacrificado, em sinal de proteção. O versículo 14 diz
expressamente: “Este dia será para vós um memorial e o celebrareis como uma festa para o Senhor.
Nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo”. Em seguida, recolhe a tradição dos
agricultores que celebravam na mesma época a "festa dos Ázimos", pães sem fermento feitos com as
primeiras espigas da colheita de cevada. E, de novo, relaciona a festa com a saída da escravidão do
Egito, como podemos verificar no versículo 17: “Observareis, pois, a festa dos Ázimos, porque nesse
dia é que fiz o vosso exército sair da terra do Egito. Vós observareis este dia em vossas gerações; é um
decreto perpétuo”.
Observemos o termo usado para estabelecer a relação da festa da Páscoa com o fato da saída
(êxodo) do Egito. Não se trata de uma simples recordação, uma simples lembrança. Trata-se de uma
participação do fato lembrado, graças à participação no rito celebrado. É o que fica claro em Ex. 13,3-
10 em que o autor sagrado apresenta o sentido da festa. Destaquemos alguns versículos: “Lembrai-vos
deste dia, em que saístes do Egito, da casa da escravidão; pois com mão forte o Senhor vos tirou de lá;
e, por isso, não comereis pão fermentado. Hoje é o mês de Abib (Nisan) e estais saindo. (...) Guardarás
este rito neste mês.
(...) Naquele dia falarás a teu filho: “Eis o que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito”... Isto
é um memorial.
Notemos bem os detalhes do texto? Quem participa da festa da Páscoa, está naquele momento
saindo da escravidão, está sendo libertado pelo Senhor. Ex. 13,8 nos diz: "Eis o que o Senhor fez por
mim quando (eu!) saí do Egito". O memorial traz o fato recordado ritualmente presente, hoje.
Desta forma, possibilita que as pessoas que participam da festa (ritual) estejam incluídas na relação de
Aliança do Senhor com todo o seu povo e, a libertação torna-se um fato contínuo, até a plena realização
das promessas do Senhor. Portanto, podemos afirmar que a Páscoa anual judaica tem seu fundamento
na última ceia do Egito. Esta é, sim, um acontecimento irrepetível, mas quem celebra anualmente a
páscoa judaica é transportado por esse rito ao mesmo momento fundador da passagem do mar, a que
remetia a última ceia no Egito. Esta mesma Páscoa servirá de base para Jesus em sua última ceia com
seus discípulos pouco antes de sua morte.
O Rabi Gamaliel, possivelmente o mestre de são Paulo (At 22,3) ou talvez um neto seu, explica o
que a Páscoa significa para o “Israel das gerações”: “Em toda geração, cada um é obrigado a ver-se a
si próprio como tendo ele mesmo saído do Egito [...]. Não somente a nossos pais remiu o Senhor [...],
mas também a nós remiu com eles, conforme está dito: “E nos fez sair de lá, para nos fazer vir e dar-
nos a terra que tinha jurado a nossos pais” [Dt 6,23]. (Confira os capítulos 12, 13 e 14 do livro do
Êxodo).
Até aqui procuramos ter uma compreensão da expressão “em memória de mim” ou “memorial”, e
vimos que não se trata de uma repetição ou de uma lembrança saudosa, mas de uma atualização. O
passado é trazido para o presente, no hoje da celebração litúrgica. Pela ação memorial também o futuro
torna-se presente, a vinda gloriosa do Senhor é antecipada na ação ritual. Já está presente no memorial,
pois já estamos antegozando dela no momento celebrativo. A memória abrange passado, presente e
futuro; no hoje da celebração estamos ao mesmo tempo na Galiléia e na Judéia daquele tempo e no
meio da multidão reunida em torno do trono e do Cordeiro e dos anjos e santos, do qual fala o
Apocalipse, descrevendo a realidade celeste.

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O memorial da antiga e nova Páscoa só tem sentido no contexto da aliança que o Senhor realizou.
Por puro amor, por gratuidade, por compaixão, em sua imensa ternura é que o Senhor propõe a aliança.
“Vocês serão o meu povo e eu serei o vosso Deus”. Esta é a proposta que perpassa toda a história
sagrada. A iniciativa é dele. A aliança prevê: da parte do Senhor: a promessa de proteção, bênção,
defesa contra os inimigos, vida, paz, terra, prosperidade...; por parte do povo: obediência, escuta e
seguimento do Senhor, pertença, fidelidade, exclusividade. O Senhor revela o seu Nome: Eu sou (Ex
3,14). O povo será considerado pelo Senhor como um reino de sacerdotes, uma nação consagrada, um
povo de sua particular propriedade (Ex 19,5-6). O Senhor será amado e cultuado pelo povo como o
único Senhor, o único Deus.
Mas, a primeira Aliança é rompida pela infidelidade da nação, pela indiferença em relação ao
Senhor. No Novo Testamento é apresentada a Nova Aliança: Jesus é apresentado como o Servo do
Senhor que restabelece a aliança e abre a possibilidade de participação de todas as nações:
♥ Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos (Jo 15,13);
♥ Jesus, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Jo 13,1);
♥ Isto é meu corpo doado por vós... Isto é meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que
será derramado por vós e por todos, para remissão dos pecados (Lc 22,2);
♥ Tornou-se assim fonte de salvação, na medida em que "sua morte destruiu a morte" e a
inimizade entre os povos;
♥ Abriu para todos o caminho da ressurreição, a entrada na glória, na comunhão definitiva em
Deus;
♥ Abriu, também, o caminho da plena comunhão de todos os povos com o Pai.
♥ Falamos da Páscoa enquanto intervenção libertadora de Deus na vida do povo e falamos da
Páscoa enquanto celebração que recorda esta intervenção de Deus. Mas, Páscoa é entendida também
como mistério. Daí a expressão mistério pascal nos textos litúrgicos e nos documentos da Igreja.
1.2 MISTÉRIO E MISTÉRIO PASCAL
Mistério, na linguagem comum, tem a ver com segredo, enigma, algo incompreensível, escondido
ou oculto, que ultrapassa nossa compreensão: "Esse rapaz é um mistério para mim!" - "Não consigo
entender essa situação; é muito misteriosa." De fato, a palavra grega “mysterion” tem significado de
fechar; entenda: fechar a boca e os lábios, isto é, não falar, guardar segredo. Assim, por exemplo, um
plano militar secreto é “mysterion”. Porém, na literatura apocalíptica da Bíblia, o termo "mistério"
aparece com um sentido novo, específico: é o plano secreto da intervenção definitiva do Senhor Deus
na história a favor de seu povo, e que é revelado aos sábios e profetas.
Os discípulos de Jesus reconhecem a revelação e realização deste mistério na pessoa de Jesus,
principalmente em sua morte-ressurreição. Anunciam Cristo crucificado, que para os judeus é
escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é
Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.
Do ponto de vista cristão, o mistério de Deus refere-se a esta presença escondida, à maneira como
Deus conduz a história, à salvação que operou na morte-ressurreição de Jesus, o Cristo, e que dá sentido
ao sofrimento dos pequenos, às injustiças sofridas, ao amor e à solidariedade dedicados ao próximo.
Anunciado por muito tempo pelos profetas, o mistério de Deus foi revelado na Páscoa de Jesus. Por
isso, pode ser chamado de mistério pascal, mistério de Cristo ou mistério de nossa fé.
O mistério da liturgia é o mistério pascal de Jesus em toda a sua densidade e extensão, atuando
no rito litúrgico, por meio da assembleia celebrante, na celebração do memorial, ao longo do ano
litúrgico e, principalmente na celebração eucarística.
Quais são as consequências desta maneira de ver para a liturgia? Liturgia é celebração, é festa-
memória da Páscoa de Cristo. Porém de um Cristo que se identifica com o seu povo, principalmente
os pobres e excluídos, e se associa à sua caminhada de libertação. Por isso, a liturgia celebra a Páscoa
de Cristo na páscoa da gente, páscoa da gente na Páscoa de Cristo. É paixão-sofrimento e ressurreição.
A entrega de Jesus, sua Paixão-Morte-Ressurreição que aconteceram uma única vez, tornam-se
presentes para nós pela ação litúrgica, ou seja, toda vez que fazemos memória destes fatos e de nossa
salvação. Celebramos o seu Mistério Pascal. O único mistério pascal de Jesus Cristo é celebrado de
119
forma nuclear na Celebração Eucarística, a Missa. No entanto, todas as celebrações litúrgicas são
consideradas memória / memorial de Jesus, o Cristo, celebração do seu mistério pascal. Cada
celebração enfoca um aspecto diferente do único mistério pascal:
♥ Pelo Batismo somos sepultados com Cristo na morte ao pecado, para ressurgir com ele para
uma vida nova.
♥ Pela Confirmação somos ungidos com o Espírito Santo do Senhor, configurados ao Cristo-
Messias, rei, profeta e sacerdote.
♥ Pela Reconciliação reconhecemos nosso erro e somos perdoados e acolhidos pela misericórdia
do Pai, manifestada na cruz e na ressurreição de Jesus.
♥ Na Unção dos Enfermos somos associados à paixão de Jesus, e encontramos força e alívio pelo
poder de sua ressurreição que atua em nós.
♥ Por sua Vida Matrimonial, o casal participa da união que liga Jesus Cristo e sua Igreja, em
todas as circunstâncias da vida, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença..., fazendo juntos o seu
caminho pascal.
♥ Pelo sacramento da Ordem os ministros ordenados são identificados com o Cristo enquanto
cabeça de sua Igreja, chamada a anunciar, celebrar e viver o mistério pascal.
♥ Na Profissão Religiosa, há identificação com Cristo pela vivência radical da vida batismal, no
seguimento de Jesus Cristo, sintetizado nos votos religiosos.
♥ Nas Exéquias, entregamos ao Senhor o caminho pascal percorrido pelo (a) falecido (a), desde
o seu batismo até a hora de sua morte.
♥ A Celebração da Palavra Deus nos faz ouvir, a cada dia, a proposta do caminho pascal, a
proposta da nova Aliança e nos leva a aderir a esta proposta, rumo à comunhão escatológica.
♥ O Tempo Litúrgico é essencialmente celebração do Cristo em seu mistério pascal.
♥ O Ofício divino (a oração diária da tarde e da manhã, ligada ao nascer e pôr-do-sol) são, símbolo
de Cristo que morre e ressuscita para uma vida nova.
♥ O Domingo se destaca entre os outros dias da semana como Dia do Senhor, dia da ressurreição,
vitória sobre a morte. Domingo: Páscoa Semanal dos Cristãos.
♥ E o mistério pascal se descobre e reluz, nos vários "mistérios do Senhor” celebrados ao longo
do ano litúrgico, como se fosse um diamante que resplende em várias cores e matizes. De fato a cada
ano, percorremos o caminho pascal: passando pela espera ardente do advento da definitiva vinda do
Senhor, a divinização pela encarnação e manifestação do Filho de Deus em nossa humanidade
celebrada no Natal e na Epifania; o deserto da quaresma; a paixão da cruz e a vitória da ressurreição;
o fogo de pentecostes; a lenta e perseverante identificação com o Cristo Jesus ao longo do tempo
comum.
♥ Até mesmo o espaço litúrgico, o lugar de nossas celebrações, expressa o mistério pascal que aí
se celebra: o altar, a mesa da Palavra, a cadeira do presidente da comunidade, o recinto onde fica a
assembleia, o batistério, a capela do Santíssimo, as imagens, a decoração, a arte com que tudo isso é
realizado.
Finalizando esses comentários sobre o que celebramos na liturgia, gostaríamos de abordar um
aspecto de suma importância: a compreensão do que é “sacrifício”. É urgente e necessário que
tenhamos a percepção do verdadeiro sentido do sacrifício, pois esta expressão é muito usada em
orações, como também em textos bíblicos e litúrgicos.
Javé, Deus de Israel, e nosso, é santo, isso sim, e santo significa separado, diferente. Ele não se
deixa confundir com as atividades humanas comuns. E para expressar isso, o povo lhe destina
simbolicamente alguma coisa separada, alguma coisa "santa", lhe "consagra" algo, faz uma “ação
santa”. É isto que se chama "sacrifício". Portanto, no sentido original, sacrifício não significa
necessariamente imolação, destruição.
Há uma compreensão de que sacrifico é algo cruento, sofrido, difícil, exigente, às vezes horrendo
e mortal. Mas, não é só isso. Sacrifício é, inclusive, o bom odor do incenso. "Sacrificar", que vem do
latim “sacrum facere”, significa "tornar santo". Já o Antigo e, sobretudo, o Novo Testamento nos
ensinam que a melhor coisa que podemos transformar em sacrifício, em coisa santa para oferecer a
Deus, é a própria vida e, tudo que fazemos livremente. O grande modelo de sacrifício foi Cristo, porém,

120
não tanto por sua imolação (ao modelo dos sacrifícios antigos), mas por sua disposição em fazer
livremente a vontade do Pai e exercer sua missão. Não é o sangue que faz o sacrifício, mas a oblação,
a oferta, a dedicação a Deus: “Eis que eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10, 7). Jesus é o
sacrifício, a “realidade santa” por excelência, por sua verdade, sua fidelidade – consumada quando
enfrentou a morte que os humanos lhe impuseram (João 19, 30). E quem vive nessa autenticidade da
vida doada, ao modelo de Cristo, é consagrado com ele: “Pai, por eles eu consagro, para que também
eles sejam consagrados pela verdade” (João 17, 19).
Fica claro que o “sacrifício de Cristo” não é pelo sangue derramado como se Deus quisesse e
necessitasse desse sangue. O sacrifício de Cristo foi aceito pelo Pai qual sinal de obediência e fidelidade
ao Projeto do Reino, que Jesus de Nazaré abraçou e foi fiel até o fim, não se importando com as
dificuldades encontradas, mas enfrentando inclusive a morte. Pela fidelidade ao Projeto do Pai, Jesus
não se negou a ofertar, dar em sacrifício, a sua própria vida. Ele poderia ter se negado, mas não o quis
e não o fez. Livremente ofertou sua própria vida como oblação, doação ou sacrifício. É a oblação
perfeita. O mais importante e completo sacrifício até hoje realizado. Doou sua vida em favor de toda a
humanidade. Mesmo que este sacrifício, livre e espontâneo, tenha sido um cruento homicídio.
A partir destas considerações temos um melhor entendimento do que seja sacrifício. Nas
orações, na liturgia e na Bíblia.

1.3 A IGREJA CELEBRANTE - (ASSEMBLEIA LITÚRGICA)

OLHANDO A BÍBLIA

Na história do povo de Deus, podemos perceber como sempre uma assembleia litúrgica marcou
os momentos decisivos da sua vida. Certamente a razão disso ter sido assim é que Israel encontra sua
identidade comunitária na aliança com o Senhor, e a tradição dos antigos conta que esta aliança
começou por uma solene assembleia litúrgica que, por ordem do Senhor, Moisés reuniu no monte Sinai
(Ex 19).
⮚ Nas assembleias do AT aparecem claros 4 elementos:
1. A convocação do povo por Deus; Ex 19,4; Js 24,1; Ne 8,1
2. A presença de Deus no meio do povo sobretudo mediante a Palavra; Ex 24,3.7; Js 24,2-13; Ne
8,2-6
3. A adesão do povo às propostas de Deus; Ex 19,8; Ex 24,3.7; Js 24,19-24; Ne 9,1-3
4. Ação simbólica - O sacrifício conclusivo colocado como selo de aliança feita entre Deus e o seu
povo; Ex 24,8; Ne 9,1-3. Testemunho tendo uma pedra como monumento que fica como sinal do
compromisso Js 24,25.
⮚ Novo Testamento:
1. A primeira foi no dia de Pentecostes, comemorando a 1ª Assembleia (Sinai) – At 2,1-41 (os quatro
elementos também estão presentes)
2. Outros textos: At 2,42-47; 4,32-35l 5,12-16; Hb 12,18-24; 1Pd 2,4-10; Mt 18,20... 1Cor 11,1-14.
⮚ Características principais das assembleias do Novo Testamento:
⮚ Convocação e reunião em nome e ao redor do Ressuscitado;
⮚ O dia da reunião - o Domingo
⮚ Opção pelos excluídos
⮚ Animação do Espírito
⮚ Elementos constitutivos: convocação, proclamação da Palavra, refeição, envio em missão.
❖ Ler em grupos:
1. Êxodo 19,1-8; 24,1-8.
2. Josué 24,1-28
3. Neemias 8 e 9
4. At 2,1-41

121
1.4 O QUE É UMA ASSEMBLEIA LITÚRGICA?

Assembleia – Reunião de numerosas pessoas para determinado fim. (synagogê, synaxis,


coetus, congregatio, collecta) convocada (qahal, ecclesia, convocatio) por Deus.
1. A assembleia litúrgica é uma ação da Igreja-povo de Deus:
“As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é o ‘sacramento da
unidade’, isto é, o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos bispos. Por isso, estas celebrações
pertencem a todo o corpo da Igreja, e o manifestam e afetam; mas atingem a cada um dos membros
de modo diferente, conforme a diversidade de ordens, ofícios e da participação atual” (SC 26).
2. A partir do movimento litúrgico e da contribuição do Vaticano II, podemos dizer que:
Assembleia litúrgica é a reunião dos fiéis aberta a todos os povos, raças, idades e sexo, convocada
por Deus como membros da comunidade de irmãos e irmãs em Cristo e no Espírito enquanto corpo
eclesial no corpo ressuscitado de Cristo integral – cabeça e membros, através do serviço uns dos outros
com seus dons e carismas – ministérios – de forma plena, consciente e ativa, para celebrar e renovar
a nova Aliança na páscoa de Jesus, ouvindo a Palavra, assumindo sua missão no mundo, em união
com a Igreja celeste.
Quem = fiéis
Por quê = convocada por Deus
Como = corpo eclesial no corpo de Cristo
Através de que = ministérios atuando ativa e conscientemente
Para que = celebrar a Aliança na páscoa de Jesus e assumir sua missão no mundo
Com quem = unidade com a Igreja celeste
1.4.1 Elementos característicos da assembleia litúrgica: reunião dos fiéis – aberta a todos
os povos, raças, idades e sexo:
♦ Desde Israel, o povo de Deus se identificava enquanto grupo, quando reunido (cf. Ex 19).
♦ Para a tradição bíblica a palavra assembleia tem uma conotação política. Por isso, os momentos
fortes e decisivos da história de Israel são marcados por uma assembleia, a qual dá o sentido de
pertença a um povo, identidade:
✔ (Js 24) – Javé convoca uma assembleia em Siquém (1200 a. C.), como forma de aliança das
tribos de hebreus que aceitaram Javé como Deus.
✔ (1Rs 8) – Dedicação do templo de Jerusalém, dando nova consistência ao reino de Salomão–
transformando-o em império.
✔ (2Rs 22) – Assembleia para empreender a Reforma de Josias (620 a.C.), quando se lê os
documentos encontrados nas paredes do Templo.
✔ (Is 56) – Assembleia mestiça no exílio, pois não havia mais assembleias.
✔ (Ez 20,34-38; 36,24-25; 37,21-22) – Ezequiel anuncia uma reunião do povo, como ato salvador
do Senhor.
♦ A Igreja é constituída como tal, quando reunida, quando está no mesmo lugar, quando se põe
em unanimidade, numa verdadeira união de sentimentos e de corações. “... Onde habitualmente
ficavam... eram assíduos (unânimes) à oração...” (Cf. At 1,13-14.
“Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome... “ (Mt 18,20; cf. SC7).
♦ Na América Latina somos também envolvidos, entramos em unidade, formamos assembleia
com os empobrecidos de um sistema excludente. Celebramos com eles, conflitividade de
classes.
Convocada por Deus como membros da comunidade de irmãos e irmãs em Cristo e no Espírito:
♦ A Igreja só existe porque convocada em assembleia pelo Senhor.
♦ Ecclesia – do hebraico – qahal = assembleia convocada por Deus. (Segundo G.Dix a palavra
Ecclesia, nos três primeiros séculos significava a assembleia litúrgica).
♦ Na assembleia do Sinai (celebração de Pentecostes para os judeus) Israel entende-se ecclesia
(cf. Dt 4m10; 9,10; 18,16), porque convocado por Deus (Ex 19,4) para receber a Lei, selar a
Aliança.
122
♦ A comunidade cristã se sente como novo povo, da nova aliança, quando reunida em
Pentecostes, continuação escatológica da comunidade do deserto convocada por Deus (cf. At
7,38).
♦ É nesta assembleia que Deus torna Cristo presente e atuante. O Cristo glorificado e dispensador
do Espírito (cf. At 2,11). Este mesmo Espírito que conduz a assembleia à celebração da vida
em Cristo (cf. At 2,24.31-36).
Enquanto corpo eclesial no corpo ressuscitado de Cristo integral – cabeça e membros.
♦ Na tradição dos Santos Padres a assembleia litúrgica está ligada ao “dia do Senhor” - domingo,
dia do Sol de justiça - dia da ressurreição do Senhor.
♦ Somos membros do Corpo místico de Cristo (cf. SC 7 parágrafos 12,14,15).
♦ “A razão última da presença de Cristo na assembleia é, pois, o fato de que esta é o Corpo do
Senhor animado pelo seu Espírito: é na assembleia que a Igreja se atualiza, se manifesta
plenamente, na presença visível dos fiéis e invisível do Espírito Santo de Cristo”. (Joseph
Lecuver. A assembleia litúrgica, fundamentos bíblicos e patrísticos. In: Concilium, 2 (1966), p.
17)
♦ As primeiras comunidades cristãs se reúnem em nome do Senhor, constituindo o Corpo de
Cristo (cf. 1Cor 12; Rm 12) (Doc. 52, nºs 33, 34, 35).
“Faltar à assembleia é amputar o corpo de Cristo” (Constituição Apostólica)
A assembleia participa: através do serviço uns dos outros com seus dons e carismas – ministérios
– de forma plena, consciente e ativa.
♦ Os carismas são distribuídos na comunidade porque Cristo se faz presença através do seu
Espírito. Isto leva a comunidade a confessar que Cristo é seu Senhor. Quando os dons são
serviço comum criando unidade.
♦ Os ministérios são portanto exercidos como Diakonia = serviço, formando a diversidade na
unidade do Corpo de Cristo, do qual ele é a cabeça. Nossos ministérios só têm sentido se vistos
a partir do ministério e no ministério de Jesus. Assim somos, aqui, Cristo total que age no
serviço à salvação de todos.
♦ Daí a importância de não acumular ministérios, pois distorce o Corpo em sua diversidade (cf.
SC 26; 28-29; CNBB, Doc. 43, nº 54).
♦ Somos povo sacerdotal no sacerdócio diaconal de Jesus, porque consagrados no Batismo (cf.
LG 10 parágrafo 27). A ministerialidade na Igreja, brota do sacramento do Batismo e não do
sacramento da ordem.
♦ Na participação ativa e exterior – através do canto, andar, levantar as mãos, ler, ungir, etc.
Participação no envolvimento do corpo (gesto simbólico-corporal).
♦ Na participação consciente – compreensão e aceitação daquilo que a comunidade e Deus
fazem conosco através do ritual. Quando os símbolos ganham um referencial objetivo, ligado
à fé cristã. Aqui supõe a catequese (sentido teológico).
♦ Na participação plena – somos envolvidos na ação litúrgica a tal ponto de nos identificarmos
com a pessoa de Jesus Cristo em sua missão, morte, ressurreição, em direção à comunhão com
o Pai, no Espírito – a Koinonia = identificação, união.
♦ Na participação frutuosa – a identificação com o Cristo nos proporciona uma experiência
salvífica que envolve nossa vontade - é o nível das opções e da adesão pessoal, quando somos
solicitados a assumir novas atitudes e compromissos = espiritualidade.
♦ Por isso, o Vaticano II entende a assembleia como sujeito da celebração, na qualidade de Povo
de Deus. (Cf. SC 11, 14, 18, 19, 21, 27, 30, 41, 48, 50, 55, 79, 114, 121, 124; Novo Catecismo
da Igreja Católica 1136, 1140; DP 233, 238).

Para celebrar e renovar a nova aliança na páscoa de Jesus, ouvindo a Palavra.


♦ Há na assembleia uma proclamação da memória da aliança:
- Moisés, no Êxodo (cf. Ex 24,37);
- Josué, em Siquém (cf. Js 24,2-13);
- Esdras, na assembleia da restauração (cf. Ne 8,2-6).

123
♦ Há também uma resposta do povo pela adesão ao que o Senhor propõe – compromisso:
- Sinai “Fazemos tudo o que o Senhor disse”(Ex 24,3-7).
- Siquém e outros (cf. Js 24,19-24; Ne 9,1-3).
♦ Há um sacrifício para selar a aliança (cf. Sl 50; Ex 24,8; Ne 8,12).
♦ E, eventualmente, um testemunho fixado no local: pedra, etc, tornando-se sacramento da
aliança (cf. Js 24,25).
♦ Jesus em sua morte e ressurreição, convoca o povo para uma nova assembleia, não mais em
Siquém ou Jerusalém, mas em sua pessoa – Mistério Pascal (cf. Jo 4,21ss), convocando todos
os excluídos das outras assembleias (cf. Mt 27,7-10; Lc 14,21-23).
♦ Jesus proclama um ano jubilar (cf. Lc 4,29), por isso procuram matá-lo.
♦ Sua morte, a cruz tornaram para nós sacramento de sua fidelidade ao Pai e à humanidade.
assumindo sua missão no mundo, em união com a Igreja celeste...
♦ A assembleia festiva por causa da ressurreição do Senhor e nossa, antecipa as alegrias celestes
(cf. Hb 12,22-23), antecipando o regresso do Senhor e suas primícias.

CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS

1. A assembleia é sujeito da ação litúrgica – todos celebram;


2. Importância dos ritos iniciais para constituição da assembleia – Corpo de Cristo, Templo do
Espírito.
3. A equipe de liturgia deve levar em conta cada tipo de assembleia;
4. Investir na diversidade de ministérios;
5. Repensar, ou fundamentar o ministério da presidência;
6. Repensar e valorizar o ministério exercido pelas mulheres;
7. A ministerialidade aponta para uma concepção de Igreja que o grupo celebrante tem.
8. Necessidade de se formar comunidades engajadas, considerando as outras formas de pertença
à Igreja (religião popular...); relação CEBs e massa...

1.5 A PALAVRA CELEBRADA – O DIÁLOGO DE DEUS COM SEU POVO


E DO POVO COM DEUS

A Igreja “nunca deixou o costume de reunir-se para celebrar o mistério pascal: lendo as
escrituras (Lc 24,27), celebrando a Eucaristia”... lugar da atualização do mistério pascal de Cristo (cf.
106). A preocupação dos padres conciliares de devolver a palavra de Deus ao povo causou várias
implicações para as celebrações litúrgicas.
1.5.1 O diálogo entre os parceiros da aliança
Ao celebrar, a assembleia dialoga com Deus que fala ao seu povo e, responde a Ele com cantos
e orações (cf. SC 33). Desenvolve-se, então, um verdadeiro diálogo de Deus com seu povo reunido,
um colóquio contínuo do Esposo e da Esposa.

ESTRUTURA
DEUS FALA O POVO RESPONDE

1ª Leitura (AT e Atos)


Salmo Responsorial
2ª Leitura (Epístolas e Apocalipse)
Aclamação
Evangelho
homilia

124
Profissão de Fé
Oração dos fiéis
Amém.

A liturgia lembra constantemente a palavra revelada e, desta forma, evoca e atualiza os feitos
salvíficos de Deus. O lembrar faz com que a comunidade conheça a vontade de Deus, o que ele quer
seu projeto de salvação. Então, nasce a resposta à palavra de Deus, ou seja, o louvor, a ação de graças,
a súplica, a intercessão, os gestos e as ações simbólicas. Assim, sob diversas formas, o Senhor da
aliança, “ora interpela, ora ensina, ora exorta, ora ‘diz e faz’. Por sua vez, a assembleia escuta, responde,
medita, suplica, dá graças até se identificar com a palavra que, vinda do Pai, volta para se unir e ele
numa comunhão eterna”.5
A dinâmica celebrativa das celebrações litúrgicas nos insere na lógica da revelação. Deus
0chama, reúne, e a comunidade, atendendo ao seu chamado, se apresenta e responde a Ele.
A celebração litúrgica no seu conjunto, possui uma estrutura de base que favorece o
diálogo: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística. A Sacrosanctum Concilium, falando sobre a
celebração eucarística afirma que “liturgia da palavra e liturgia eucarística, estão tão estreitamente
unidas que formam um só ato de culto” (cf. n. 56). Numa relação de aliança os dois momentos estão
estreitamente unidos: a palavra constitui o momento do contrato, através do diálogo e a liturgia
eucarística o momento em que a comunidade cheia do Espírito, dá sua resposta e sela o compromisso
com Deus. A palavra é então fundamento sobre o qual a aliança se firma.
A própria liturgia da palavra possui uma dinâmica dialogal: Deus fala nas leituras (AT, NT
e Evangelho) e a comunidade responde, cantando o salmo responsorial, elevando suas súplicas ou
agradecimentos, professando a fé... Temos também a homilia que apresenta a proposta de Deus e
também a resposta da comunidade. Com razão, a Sacrosanctum Concilum e o Ordo Lectionum Missae
valorizaram as leituras bíblicas, o salmo responsorial, a aclamação, a homilia, o silêncio, a profissão
de fé e a oração dos fiéis.6
1.5. 2. A dimensão simbólico-sacramental da proclamação da palavra de Deus
O leitor ou a leitora ao proclamar a palavra de Deus na celebração litúrgica está realizando um
gesto simbólico-sacramental. É o próprio “Cristo que fala quando se lêem as Sagradas Escrituras na
Igreja” (SC 7). Para fazer experiência da Salvação que a palavra anuncia e realiza, a liturgia se serve
de sinais sensíveis (cf. SC 7).
Os sinais sensíveis evocam, revelam e manifestam a “outra realidade” (o mistério da nossa
salvação que tem como centro e fundamento o mistério pascal de Cristo). Mais ainda, os sinais
sensíveis realizam o que significam. A significação não acontece automaticamente, depende da
preparação dos leitores, da assembleia litúrgica, do lugar da proclamação da palavra, ou seja, dos sinais
sensíveis.
1.5.3. Os ministros e ministras da liturgia da palavra
São diversos os ministros e ministras que se colocam a serviço do Senhor e da assembleia
litúrgica para a proclamação da Palavra de Deus.
Os leitores e leitoras (OLM 51-52) assumem um verdadeiro ministério litúrgico (cf. SC 29;
OLM 49). Proclamam a palavra do Senhor, são servidores de Jesus Cristo, emprestam a própria voz
para que o anúncio salvífico chegue ao coração das pessoas. Para isso é importante a preparação dos
mesmos: “O que mais contribui para uma adequada comunicação da palavra de Deus à assembleia por
meio das leituras é a própria maneira de proclamar dos leitores, que devem fazê-lo em voz alta e clara,
tendo conhecimento do que lêem” (OLM, 14). Daí exige-se dos que proclamam as leituras “uma
preparação em primeiro lugar espiritual, mas é necessária também uma preparação técnica. A
preparação espiritual supõe pelo menos dupla instrução: bíblica e litúrgica. A instrução bíblica deve
encaminhar-se no sentido de que os leitores possam compreender as leituras em seu contexto próprio

5
GELINEAU, J. Em vossas assembleias: sentido e prática da celebração litúrgica, 2. ed., São Paulo: Paulinas, 1975, v. 1, p. 147-148.
6
Cf. Sacrosanctum Concilium, n. 51-53 e OLM - Ordo Lectionum Missae, n. 11-31.
125
e entender à luz da fé o núcleo central da mensagem revelada. A instrução litúrgica deve facilitar aos
leitores certa percepção do sentido e da estrutura da liturgia da palavra e a relação entre a liturgia
eucarística. A preparação técnica deve capacitar os leitores para que se tornem sempre mais aptos na
arte de ler diante do povo, seja de viva voz, seja com a ajuda de instrumentos modernos para a
ampliação da voz” (OLM 55).
O diácono é o ministro que tem a função de proclamar o Evangelho, ponto alto da liturgia da
palavra (cf. OLM 13,17) e também fazer de vez em quando a homilia (cf. OLM 50).
O salmista entoa o salmo que é palavra de Deus cantada. Este deve ser “dotado da arte de
salmodiar e de uma boa pronúncia e dicção” (OLM 56; IGMR 102). Para este também é necessário
formação bíblico-litúrgica, espiritual, musical e técnica.
O homiliasta que na maioria das vezes é o presidente da celebração, ou eventualmente um
outro padre ou diácono (cf. OLM 38, 41, 50; IGMR 66), faz a homilia de tal forma que o povo
compreenda saborosamente a palavra de Deus e possa ligar textos sagrados, a realidade na qual
vivemos e o mistério celebrado. (OLM 41)
O (a) animador (a) introduz as leituras, com palavras claras, sóbrias e concisas, ajudando a
assembleia a estar atenta para a escuta (OLM 57).
É importante a postura do corpo, o tom da voz, o olhar dos ministros e ministras da palavra, a
boa qualidade do som... Tudo deve preparado e realizado com verdadeira unção para que a palavra de
Deus seja proclamada dignamente e cumpra sua missão.

1.5.4 A assembleia ouvinte da palavra - OLM 44-48


Deus quer dialogar com seu povo e transmitir sua palavra salvífica. A assembleia, animada pela
fé escuta atentamente a palavra da aliança, com o ouvido do coração. Da escuta brota a resposta cheia
de fé de um povo que quer sempre mais firmar a aliança com o Deus salvador.
A palavra reúne, faz crescer e alimenta o povo de Deus (cf. OLM 44; DV 21). A palavra é força
de salvação para os que crêem. Cabe à assembleia escutar com disposição interior e exterior para que
cresça na vida espiritual e na experiência do mistério na celebração e na vida cotidiana.7
1.5.5 A mesa da palavra
A dignidade da palavra de Deus requer um lugar digno da proclamação dos tesouros bíblicos
(cf. OLM 32; IGMR 309). É chamado de ambão, ou seja, lugar elevado ou mesa da Palavra. A mesa
onde os fiéis se alimentam da palavra deve ter um estrutura estável. E importante uma íntima proporção
entre as duas mesas: palavra e eucarística (cf. OLM 32; IGMR 309).
Da mesa da palavra se proclama as leituras (AT, NT e evangelho), o salmo, o precônio pascal,
a homilia (pode ser feita também da cadeira do presidente) e a oração dos fiéis (cf. OLM 33, IGMR
309).
1.5.6 Os livros
Os lecionários e o evangeliário “lembram aos fiéis a presença de Deus que fala a seu povo.
Portanto, é preciso procurar que estes, que são sinais e símbolos das realidades do alto na ação
litúrgica, sejam verdadeiramente dignos, decorosos e belos” (OLM 35). Pela importância que o
evangelho ocupa na liturgia da palavra, o livro dos evangelhos requer mais veneração: é levado em
procissão (IGMR 194) e incensado (cf. IGMR 133-134).

1.5.7 Os gestos e atitudes do corpo na proclamação e escuta da palavra


Na liturgia da palavra numa atitude de discípulos, ouvimos, falamos, cantamos, sentimos o
cheiro do incenso, vemos o leitor, a procissão com o evangeliário, tocamos o livro, fazemos silêncio.
Como assembleia de fé, ficamos de pé ao escutar o evangelho, ficamos sentados para ouvir as
leituras e responder à palavra de Deus com o salmo responsorial.
Os ministros conforme a função que lhes cabe proclamam a palavra de pé, carregam o
evangeliário em procissão, incensam e beijam o livro. Olham a assembleia com um olhar amoroso e
escutam a resposta da assembleia.

7
Cf. OLM n. 44-48.
126
Os gestos, as atitudes nos ligam ao mistério pascal de Jesus Cristo.

1.5.8 A reforma dos lecionários


O Concílio estabeleceu um critério para a reforma dos lecionários: “Com a finalidade de mais
ricamente preparar a mesa da palavra de Deus para os fiéis, os tesouros bíblicos sejam mais largamente
abertos, de tal forma que dentro de um ciclo de tempo estabelecido se leiam ao povo as partes mais
importantes da Sagrada Escritura” (SC 51).
De olho nesse princípio e nas orientações do Concílio, o “Consilium”, Conselho para execução
da Constituição de Liturgia, com a ajuda de peritos, organizou o lecionário que teve sua primeira
publicação em 1969 e revisão em 1981.
Dessa maneira, nas diversas celebrações litúrgicas, a comunidade, reunida para celebrar, recebe
os múltiplos tesouros da única palavra de Deus, seja no decorrer do ano litúrgico em que se recorda o
mistério de Cristo em seu desenvolvimento anual, semanal e diário, como também nas celebrações dos
sacramentos e sacramentais.8 Temos então um elenco de leituras bíblicas para os domingos (ano ABC),
para as celebrações dos sacramentos e sacramentais, para as celebrações eucarísticas semanais (ano par
e ano ímpar) e para as celebrações dos santos.
Bom seria se as assembleias litúrgicas valorizassem o livro (lecionário) como sinal celebrativo:
“os livros das leituras que se utilizam na celebração, pela dignidade que a palavra de Deus exige, não
devem ser substituídos por outros subsídios pastorais, por exemplo, pelos folhetos, que se fazem para
que os fiéis preparem as leituras ou as meditem pessoalmente” (OLM 37).

1.6 DESAFIOS QUE AINDA RESTAM

Constatamos que após o Concílio Vaticano II houve muito empenho e realizações para que o
povo de Deus pudesse se alimentar na mesa da palavra de Deus, contudo ficam ainda desafios:

▪ Uma sistemática preparação de leitores, salmistas, para que a proclamação da Palavra de Deus seja
de fato um diálogo amoroso entre Deus e a comunidade de fé.
▪ Valorizar a homilia como parte integrante da liturgia e empenhar-se na preparação dos homiliastas.
▪ Garantir o silêncio que possibilita a disposição interior para ouvir e responder aos apelos de Deus
(cf. OLM 28).
▪ Dar o devido valor ao livro (lecionário, evangeliário) como sinal e símbolo da realidade maior
celebrada na liturgia.
▪ Valorizar o lugar da proclamação da palavra de Deus, utilizando material nobre.
▪ Melhorar o sistema de som de nossas igrejas.
Certamente, cada comunidade de acordo com sua realidade poderá avaliar o que pode fazer para
que a mesa da palavra seja abundante e rica, bem preparada. Que o diálogo entre os parceiros da Aliança
aconteça, de modo que aos poucos, vamos nos transformando e mudando a nossa realidade, como
muito bem expressa um lavrador de Pernambuco: “Fui notando que se a gente vai deixando a palavra
de Deus entrar dentro da gente, a gente vai se divinizando. Assim, ela vai tomando conta da gente e a
gente não consegue mais separar o que é de Deus e o que é da gente. Nem sabe muito bem o que é
palavra dele e palavra de gente. A Bíblia fez isso em mim”.9

8
Cf. OLM - Ordo Lectionum Missae, n. 3.
9 Carlos Mesters. Por trás da Palavra, n. 46 (1988): 28.

127
2 O ANO LITURGICO
2.1 O TEMPO
O ano litúrgico é celebração-atuação do mistério de Cristo no tempo. O “nosso” tempo
O nosso tempo tem a ver com ritmo, alternância, duração, começo/fim, nascimento/morte,
perecer/perdurar eternamente; história, processo, acontecimentos, monotonia/momentos significativos,
limite/ilimitado...
Sentimos o tempo como limite, e ao mesmo tempo sentimos em nós a vocação para o ilimitado.
Estamos presos à época em que nascemos e vivemos, percebemos o tempo como “curto”, “pequeno”,
“insuficiente”, sentimos a morte como limite dos limites. (Cf. Sl 90: Setenta anos dura nossa vida,
oitenta para quem tem muita energia...). Ao mesmo tempo, há momentos em que transpomos o tempo,
entramos em outra dimensão, ‘esquecemos’ a hora, ‘não vemos o tempo passar’... (outras expressões
significativas “Não tenho tempo!” “Gostaria de ter todo o tempo do mundo” “Não dá mais tempo”.
“Ai! Que demora! A noite passa!”... “Lutamos contra o tempo”. “Corremos atrás do tempo”.
A nossa vida é marcada pelo tempo:
O tempo cósmico: horas, minutos, segundos; manhã, meio-dia, noite; semanas, meses,
estações, anos; previsão do tempo; na agricultura: preparar a terra, semear, irrigar, colher...
O tempo biológico: ritmo das batidas do coração, da respiração, pulsação; concepção, gravidez,
nascimento, infância, adolescência, juventude, idade adulta, terceira idade, ancião/ã... passado,
presente, futuro...
O tempo histórico: acontecimentos que marcam a história, a caminhada e a vida da pessoa, de
um povo, da humanidade...
O tempo sagrado: “divino”, “tempo dos deuses”, “eternidade” ...10

Viver o mistério pascal de Jesus Cristo ao longo do ano litúrgico


um caminho espiritual

A celebração do ano litúrgico como caminho espiritual (Ione Buyst)


1. A celebração dominical da Palavra de Deus acompanha o ano litúrgico. No decorrer do ano é
revelado todo o mistério de Cristo, desde a encarnação e natividade até a ascensão, o dia de Pentecostes
e a expectativa da feliz esperança e vinda do Senhor (Cf. SC 102). Na atual organização do ano litúrgico
na Igreja católica romana, distinguimos o ciclo do natal, o ciclo da páscoa e o tempo comum. Neste
último se destacam os 33 ou 34 domingos, com textos bíblicos repartidos em 3 anos (A, B, C). Além
disso, temos o ciclo das festas do Senhor durante o tempo comum e o ciclo das testemunhas do mistério
pascal (Maria, apóstolos e evangelistas, outros santos e santas). A celebração destes vários mistérios -
enfocando vários ‘aspectos’ (lados, ângulos, faces) do único mistério de Cristo e como que trazendo-
os presentes no hoje de nossa história – nos permite participar dos mesmos, para que sejamos
penetrados por eles e repletos da graça da salvação (Cf. SC 102).
2. O ano litúrgico é como que o eixo ao redor do qual vamos estruturando nossa vida espiritual. “De
ano em ano, percorremos assim o caminho pascal: passando pela espera ardente do advento da
definitiva vinda do Senhor, a divinização pela encarnação e manifestação do Filho de Deus em nossa
humanidade celebrada no natal e na epifania; o deserto da quaresma; a paixão da cruz e a vitória da
ressurreição; o fogo de pentecostes; a lenta perseverante identificação com o Cristo Jesus ao longo do
tempo ou festa do ano litúrgico re-vela, realça, manifesta, nomeia as experiências pascais (na vida
pessoal, comunitária, social...) feitas no dia-a-dia, à luz da páscoa de Cristo. É essencial a constante
busca e o diálogo entre liturgia e vida. Se usarmos a imagem de uma montanha, podemos dizer que o
ano litúrgico nos convida a subir como que em espiral. De ano em ano passamos pelas mesmas
‘paisagens’; porém, a celebração dos mistérios nos atinge a cada vez de modo diferente, devido à nossa
realidade sempre ‘inédita’, sempre nova. Depende também da intensidade de nossa participação na

10
Ione Buyst. O tempo como realidade simbólico-sacramental na liturgia. São Paulo. Semana de Liturgia
128
celebração e de nossa abertura ao mistério. A possível partilha das experiências pascais em momentos
como a recordação da vida e a homilia, possibilitam um enriquecimento maior para todos.
3. Vejamos três exemplos de como cada mistério celebrado corresponde a uma dimensão espiritual de
nossa caminhada pascal no dia-a-dia de nossas vidas, seja a nível pessoal, social ou cósmico. Um
primeiro exemplo: a celebração da vinda do Senhor no tempo do advento vem ao encontro de nossa
busca fundamental. Somos seres de desejo, inacabados, sempre ‘em devir’, assim como a realidade
social e cósmica da qual fazemos parte. Elementos rituais próprios deste tempo litúrgico expressam e
nos ajudam a incorporar esta dimensão do mistério em nossas vidas: leituras bíblicas, cantos, a prece
‘Vem, Senhor Jesus!’, a cor roxa ou rosada, a coroa de advento, as antífonas do Ó... Ouvindo a promessa
da plena realização do Reino de Deus, cresce a expectativa e podemos afirmar confiantes: ‘um outro
mundo é possível!’ Cheios de esperança, suplicamos ‘Venha a nós o vosso Reino!’ e atendemos ao
convite para a vigilância e a espera ativa, preparando os caminhos do Senhor. – Um segundo exemplo:
a festa de Pentecostes (na qual desemboca todo o tempo pascal) é celebração do Espírito Santo, Dom
do Pai, Amor de Deus derramado sobre nós, condição de nossa comunhão no Cristo Ressuscitado,
fonte da transformação pascal de toda a realidade. Esta festa ativa em cada um de nós a vocação e a
capacidade para o encontro, para o amor, para a união, para a doação, como pede a aclamação ao
evangelho: “Vinde, Espirito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso
amor”. Não é o amor a força fundamental e única capaz de unir pessoas e povos de diferentes visões
políticas, credos e culturas? A força secreta de comunhão presente no âmago do universo e que levará
tudo e todos a se encontrar em Deus? Vários elementos rituais medeiam o mistério celebrado: leituras
bíblicas, cantos (por exemplo, a seqüência de Pentecostes), a cor vermelha, em alguns lugares também
a fogueira e a bandeira do Divino, o abraço da paz... Um terceiro exemplo ainda: nos domingos de
tempo comum, a tônica é dada pela leitura continua de um dos evangelistas. Cada evangelho nos coloca
no seguimento de Jesus Cristo, desde o chamamento dos discípulos até os ensinamentos a respeito do
fim dos tempos. No ano A, ouvimos atentamente o evangelho de Mateus. O Cristo, qual novo Moisés,
nos leva, em comunidade, como Igreja, a nos despojar de nosso tradicionalismo para nos abrir ao novo
que Deus vai revelando no hoje da história; não são nossas práticas que nos salvam, mas a fé, a adesão
a Cristo, a partir de nossa pequenez, a partir de nossa pobreza. No ano B, Marcos é nosso guia. Coloca-
nos frente a frente com Jesus Cristo que é Messias que vem instaurar o reino de Deus, sim, porém, não
de maneira clara, explícita; e não vem de forma triunfante, mas como servo sofredor, perseguido,
executado na cruz. No ano C, é Lucas quem nos conduz; ele insiste no seguimento radical de Jesus,
ensina-nos a orar, a amar, a perdoar, a nos deixar guiar pelo Espírito, a levar em conta as mulheres, a
colocar no centro de nossa vida o acolhimento e a preocupação com os pobres... Toda esta lenta e
progressiva caminhada do tempo comum vem de encontro a uma clara característica de nossa vida:
somos chamados a descobrir nosso caminho, passo a passo; somos chamados a crescer no amor, a
amadurecer, aprendendo muitas vezes a duras penas, através do sofrimento e do acúmulo de
experiências.
4. Assim, participando dos ritos, somos chamados a participar sempre mais plenamente do mistério
pascal de Jesus Cristo para sermos transfigurados, transformados nele. Cf. Gl 2,20: Já não sou mais eu
que vivo, é Cristo que vive em mim. Trata-se de um processo espiritual pascal. É passagem do ‘homem
velho’ para o ‘homem novo’ do qual fala São Paulo. É a “...atitude permanente ou um estilo de vida
cristão baseado na assimilação ou identificação com Cristo, produzido pelo batismo e pela
confirmação e a seguir nutridos pela plena participação à Eucaristia, aos sacramentos em geral e à
oração da Igreja: tudo isso no âmbito fundamental do ano litúrgico e seguindo o ritmo cíclico que lhe
é próprio”. Trata-se da recriação de nosso eu, adquirindo a forma de Jesus Cristo ressuscitado, segundo
o Espírito de Deus. É processo lento e sofrido, e ao mesmo tempo alegre e esperançoso, que deverá
durar até a nossa morte. Cada celebração se inscreve neste processo. Perfazendo seu próprio caminho
pascal, cada pessoa está ao mesmo tempo participando e colaborando na páscoa de todo o tecido social,
de toda a realidade cósmica (Cf. Rm, 8, 18-25), até à plena comunhão, quando Deus será tudo em todos
(Cf. 1Cor 15,28).
5. A transformação espiritual a partir da participação na liturgia não se produz automaticamente. O
Espírito atua, mas é preciso garantir nossa colaboração. Depende de um trabalho de cada participante

129
e também de um trabalho dos ministérios que atuam na celebração. Cada participante é chamado a
‘entrar no jogo ritual’, com todo o seu ser (‘corpo’, mente, coração, espírito), aberto à atuação de Deus,
colaborando com o ‘ofício’ divino. Os ministros e ministras têm função mistagógica: conduzir para
dentro do mistério, levando a uma experiência do mistério celebrado. Trata-se do “... zelo pedagógico
que devemos ter para comunicar às pessoas este mistério divino (...) para que as pessoas sejam de fato
tocadas pela misericórdia de Deus, reconhecendo-se amadas, remidas e restauradas. (...) Por trás
deste conjunto pedagógico está a ação do Espírito Santo, que é de fato o mistagogo que nos conduz
no caminho espiritual”. De que forma os ministros podem cumprir essa missão? De duas maneiras: a)
celebrando bem, proclamando os textos e realizando as ações rituais conscientemente, atentamente,
imbuídos do espírito da festa, cheios de fé e de fervor, deixando-se guiar pelo Espírito de Deus; b)
ajudando a comunidade, com breves motivações e principalmente na homilia, a perceber e acompanhar
o caminho progressivo oferecido pelo ano litúrgico e que pede de cada um de nós atenção, seriedade
no seguimento, revisão de vida..., assim como entrega confiante na misericórdia de Deus em relação
aos nossos fracassos e gratidão por aquilo que Deus vai realizando ao longo de nossas vidas...
Obs.: Texto elaborado por Ione Buyst, para a Semana de Liturgia, realizada em outubro de 2002, em São
Paulo.

2.1 O TEMPO DO ADVENTO


ADVENTO
“Advento é a tradução do latim adventus”. Antes de ser usada no cristianismo, significava duas coisas:
a) acreditava-se que a divindade vinha a seu templo uma vez por ano, num dia fixo, para visitar seus
fiéis durante o culto e trazer-lhes salvação. Este dia era chamado adventus, “o dia da vinda”. Muitos
templos só abriam suas portas naquele dia.
b) também a primeira visita oficial de uma pessoa importante, principalmente para tomar posse e
assumir o governo ou algum outro cargo importante, era chamada de adventus ou, em grego, parousia,
“parusia”, ou epiphnéia, “epifania” (manifestação).11
O tempo do advento faz parte do ciclo natalino que compreende o advento mesmo, o natal, a
epifania, o ano novo e o Batismo do Senhor.

Duração do advento: O advento começa à noitinha do Sábado, véspera do 1º Domingo e vai até a
véspera do natal do Senhor.

Sentido teológico-litúrgico
O tempo do Advento abre para a Igreja a grande celebração da manifestação do Salvador em
nossa humanidade. Embora o mistério da encarnação tenha sua expressão celebrativa maior nas festas
do natal e da epifania, é todo o ciclo do natal (que vai do 1º domingo do advento até a festa do batismo
do Senhor) que celebra a vinda do Salvador.
O advento é um tempo de preparação para as festas epifânicas, tem como tarefa preparar-nos
para receber o Senhor que vem e se manifesta a nós. Sendo assim, a manifestação do Senhor tem dois
aspectos:
1) A sua manifestação em nossa carne ao nascer, que constitui sua primeira vinda;
2) A sua manifestação em glória e majestade no final dos tempos, que constitui sua segunda vinda.
O tempo do advento terá por conseguinte esta dupla estrutura: será advento escatológico e
advento natalício. O primeiro compreende o tempo que vai do primeiro domingo do advento ao dia
16 de dezembro inclusive; o segundo constitui-se pela semana de 17 a 24 de dezembro que propõem
a preparação mais imediata para a festa do natal.
Não é um tempo de penitência, mas de alegre e gozosa espera.

O advento possui um rico e original conteúdo teológico:


a). Recorda a dimensão histórica da salvação – Deus se deixa encontrar como salvador da

11
Ione BUYST, Preparando advento e Ritualidade.
130
história. A história é o lugar da atuação do plano salvífico de Deus.
b).Evidencia a dimensão escatológica do mistério cristão – é uma visão escatológica dinâmica,
que vê a história como lugar do agir das promessas de Deus e direcionada para o cumprimento do dia
do Senhor.
c). Essencial conotação missionária – Tempo de anúncio do Reino. A Igreja, sacramento
universal de salvação (LG 28) vive para o mundo. João Batista e Maria nos dão este exemplo.
d). Deus se revela como o Deus da libertação, que aterra os vales, aplaina as montanhas, faz
florescer o deserto, traz a paz, faz o surdo ouvir, o cego enxergar, cura os aleijados... Nada é
impossível para Deus. É o Deus protetor dos pobres e oprimidos.
(Cristo, festa da Igreja, p. 186-189)
Vinda do Salvador - vem para levar a criação e a história à plenitude. (Deus tudo em todos).
Ritualidade
● A Palavra de Deus
● As orações
● A aclamação litúrgica: Vem, Senhor Jesus! Venha a nós o vosso Reino! “Até que ele venha”
● Ausência do glória
● A cor roxa/rosa.
● A coroa do advento (acendimento progressivo)
● A novena do natal (ant. Ó) As músicas próprias
Os textos das antífonas do Óh constituem uma síntese da história da espera do Messias, uma
proclamação de seus títulos e suas funções, uma atualização do desejo da vinda através do grito:
Vem!, que faz da oração dos justos do Antigo Testamento a oração da Igreja até que Ele venha.
Ouvindo a promessa da plena realização do Reino de Deus, cresce a expectativa e podemos
afirmar confiantes: ‘um outro mundo é possível’. Cheios de esperança suplicamos: ‘Venha a nós o
vosso Reino’ e atendemos ao convite para a vigilância e a espera ativa, preparando os caminhos do
Senhor” (Ione Buyst).
Cantando os Salmos e poemas dos profetas e evangelistas de ontem e de hoje, resgatando até,
com novo sabor e vibração, as antigas Antífonas do Ó, com certeza aprofundaremos a nossa fé,
reaqueceremos a nossa esperança e prepararemos momentos autênticos e gostosos de
confraternização. (Hinário Litúrgico 1, p. I e II)
Para ajudar a cantar melhor o advento temos o Hinário Litúrgico da CNBB, que recolheu o que
há de melhor para que as comunidades possam fazer a experiência profunda do mistério que
celebramos no advento.

Principais celebrações:

1º, 2º, 3º, 4º domingos; festa da santa virgem Maria “cheia de graça” (8/12); Maria, mãe de
Guadalupe (12/12), virgem grávida, de rosto mestiço, festa que sublinha o sentido do advento como
tempo de gestação e de esperança; novena em preparação imediata ao natal.
Espiritualidade
Toda a liturgia do advento é apelo para se viver alguns comportamentos essenciais do cristão:
a expectativa vigilante e alegre, a esperança, a conversão, a pobreza.
Expectativa vigilante e alegre – O olhar da comunidade fixa com esperança mais segura no
cumprimento final, a vinda gloriosa do Senhor: “Maranatha: vem, Senhor Jesus”.
É uma expectativa vigilante e alegre porque aquilo que se espera acontecerá. Deus é fiel. A
alegria caracteriza os tempos messiânicos (Is 9,2; 35,1; 44,23; 49,13; 35,9; 51,11; 61,10). E ainda, o
Batista salta de alegria no ventre de Isabel. A virgem é convidada a alegrar-se. O nascimento é uma
festa alegre (Lc 1,44.46-47; 2,10.13-14).
A esperança - É uma esperança forte e paciente; que aceita a hora da provação, que aceita a
provação, a perseguição e a lentidão do desenvolvimento do Reino...
A conversão – O comportamento de vigilância e espera alegre, exige sobriedade. São Paulo nos
131
convida para despertarmos do sono e estarmos preparados, a fim de recebermos a salvação definitiva
(Rm 13,11-14). É necessário um treinamento diário na luta contra o maligno, muita sobriedade e
oração.
A penitência do advento tem um estilo diferente da quaresma. Mas é igualmente centrada na
conversão – consiste em prepararmos alegres e ligeiros, cheios de esperança, o caminho do Senhor
que vem.
Ajuda-nos ainda a reconciliar-nos totalmente com nossa realidade humana, pessoal e social.
Na humanidade de Jesus, encontramos a nossa, o nosso jeito de ser, nossas fragilidades e
problemas, unindo a Ele o mais profundo de nossa condição humana.
Espírito pobre – aqueles (as) que esperam as promessas de Deus, confiam nele e estão
disponíveis e dóceis ao plano de Deus. (Cristo, festa da Igreja, p. 189-192)
Ainda vale ressaltar que o advento é marcado pela mística da gravidez, que cria em nós uma
atitude permanente de espera, que nos faz crer na força escondida da vida que continuamente está
para nascer.
A espiritualidade do advento e do natal, nos faz retomar a mística pascal no sentido de passar
das trevas à luz, de “uma vida morta” a “vida nova da ressurreição”.
Expectativa, espera ardente e ativa. Esperar contra toda esperança.
“Preparem os caminhos do Senhor”; Vigilância:
Oração mais intensa; escuta assídua da Palavra de Deus, atenção a nós mesmos, à comunidade, à
história.
Dimensão, antropológica, social, cósmica
Somos seres de desejo, inacabados, sempre “em devir”, assim como a realidade social e cósmica da
qual fazemos parte.
Espera ativa que gera otimismo e soma forças nas causas comuns: convivência humana, futuro da
humanidade e do planeta, a paz no mundo, “outro mundo possível”.
.

2.2 A FESTA DO NATAL

Sentido teológico-litúrgico
Manifestação de Deus em nossa humanidade - O Verbo se fez um de nós (Emanuel); nele somos
participantes da vida divina, filhos e filhas de Deus.
Embora esta celebração lembre o nascimento de Jesus, vai além do fato histórico e nos leva à
contemplação do mistério da salvação.
Natal, mistério da salvação
São Leão Magno, via o natal como “uma rica e profunda expressão, através da qual apresenta o valor
salvífico do evento”. A essência do mistério se encontra na união da humanidade com a divindade na
única pessoa divina do Verbo. A finalidade deste “admirável mistério” é salvar a humanidade. Este
mistério continua atuando na Igreja mediante a celebração litúrgica.
“Com a celebração das festas epifânicas, temos, na fé, a certeza de que a salvação, acontecida no
evento, é comunicada também hoje para nós. Ela nos é conferida na revelação de todo o mistério de
Cristo, especialmente no mistério pascal, que é celebrado também no dia de Natal, mediante o real
“memorial” eucarístico da morte, ressurreição e vinda gloriosa do Senhor”.12
O jeito próprio da pascalidade do natal
A páscoa é a maior festa cristã. É o fato fundante da nossa fé. O natal retoma a páscoa de um jeito
próprio: adoramos o Cristo como o Senhor ressuscitado, mas o contemplamos nos traços do menino
nascido em Belém: “Hoje nasceu para vocês um salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11).13

12
A. BERGAMINI, Cristo, festa da Igreja. p. 195-212.
13
M. BARROS e P. CARPANEDO, Tempo para amar, p. 92.
132
A encarnação do Verbo
A liturgia do natal recorda todo o realismo da encarnação terrestre do Verbo. O Filho de Deus não se
disfarça em homem, mas permanecendo Deus, é também real e concretamente homem; e se manifesta
na realidade humana.
O Natal, princípio da Igreja e da solidariedade de todas as pessoas
Com a encarnação, Jesus se uniu a todas as pessoas. Deus se fez solidário com todos.
Natal, mistério da renovação cósmica
Todo o cosmo é atingido pelo mistério da encarnação. O Verbo entrou na história, recriando todas as
coisas.14
O natal e a mística da paz
“... o sol nascente vem nos visitar e guiar nossos passos no caminho da paz” (Lc 1,78).
Os textos bíblicos do natal anunciam que Deus vai cumprir suas promessas de paz sobre a terra.
Ultimamente, neste mundo conturbado, mundo das guerras e mortes, há muitas iniciativas e vigílias
pela paz.15

Ritualidade
As leituras revelam o tempo de cumprimento das promessas feitas durante o advento.
“Hoje uma luz brilhou para nós, hoje nasceu-nos o Cristo Senhor” - “Já nasceu o Filho do Deus
eterno, príncipe da paz”
As orações - Os textos assinalam a verdade da encarnação do Filho de Deus, que apareceu encarnado,
“verdadeiro homem nascido da Virgem Maria”, e “verdadeiro Deus, eterno com o Pai da glória”.
Dimensão pascal do natal (círio, lucernário, ceias fraternas) Luz; estrela; (Presépio, encenações);
abraço da paz; vigília da paz; músicas e cantos de natal
Espiritualidade
O tempo do natal nos leva a viver Cristo que está em nós e manifestá-lo ao mundo.
No natal, o Cristo revela-se a nós como quem assumiu plenamente a condição humana e a
ressuscitou. Viver a espiritualidade do natal significa também reconciliar-se totalmente com nossa
realidade humana, pessoal e social. Reconhecer Jesus “deitado nas palhas da manjedoura” nos
chama a reencontrar o nosso jeito de ser, nossas fragilidades e problemas, unindo a ele o mais
profundo da nossa condição humana. A partir desta aceitação de nossa humanidade é que podemos
concentrar nossa atenção nos sinais concretos de sua vinda salvadora e em nossa missão de
testemunhar ao mundo que ele vem em breve.
Atitude espiritual
Ternura, amor filial e fraterno, adoração do divino no humano e vice-versa, elevação, gratidão,
alegria, gratuidade.
Mistério da encarnação. Assumir nossas fragilidades: trazemos este tesouro em vasos de barro.
Dimensão, antropológica, social, cósmica
O mundo traz em seu bojo o mistério da vida divina, à qual é chamado a acolher e aderir
conscientemente, plenamente. A partir deste núcleo comum, a paz é possível.

2.3 SOLENIDADE DA SANTA MÃE DE DEUS

Esta festa era celebrada na oitava do natal. É a primeira festa de Maria no ocidente. O aspecto
da circuncisão foi acrescentado mais tarde (das Gálias e da Hispânia).

14
A. BERGAMINI, Cristo, festa da Igreja. p. 216.
15
M. BARROS e P. CARPANEDO, Tempo para amar, p. 92-93.
133
Encontramos no lecionário e na eucologia uma síntese dos dois temas da festa: a maternidade
de Maria e a circuncisão do Senhor. Os evangelhos destacam: a adoração dos pastores com a figura
central de Maria, a mãe do Menino, e a circuncisão ao oitavo dia. A segunda leitura refere-se ao
tema da maternidade de Maria.
A eucologia também trata da maternidade de Maria, que é virgindade fecunda.
Lecionário16
Ano A Ano B Ano C
Números 6,22-27 Números 6,22-27 Números 6,22-27
Salmo Responsorial 67 (66) Salmo Responsorial 67 (66) Salmo Responsorial 67 (66)
Gálatas 4,4-7 Gálatas 4,4-7 Gálatas 4,4-7
Lucas 2,16-21 Lucas 2,16-21 Lucas 2,16-21

Texto Patrístico - Das Cartas de Santo Atanásio, bispo (Epist. ad Epictetum, 5-9: PG 26, 1058.
1062-1066) - (Séc. IV)
O Verbo assumiu nossa natureza no seio de Maria
O Verbo de Deus veio em auxílio da descendência de Abraão, como diz o Apóstolo. Por isso devia
fazer-se em tudo semelhante aos irmãos (Hb 2,16-17) e assumir um corpo semelhante ao nosso. Eis
por que Maria está verdadeiramente presente neste mistério; foi dela que o Verbo assumiu, como
próprio, aquele corpo que havia de oferecer por nós. A Sagrada Escritura, recordando este nascimento,
diz: Envolveu-o em panos (Lc 2,7); proclama felizes os seios que o amamentaram e fala também do
sacrifício oferecido pelo nascimento deste Primogênito. O anjo Gabriel, com prudência e sabedoria, já
o anunciara a Maria; não lhe disse simplesmente: aquele que nascer em ti, para não se julgar que se
tratava de um corpo extrínseco nela introduzido; mas: de ti (cf. Lc 1,35 Vulg.), para se acreditar que o
fruto desta concepção procedia realmente de Maria.
Assim foi que o Verbo, recebendo nossa natureza humana e oferecendo-a em sacrifício, assumiu-a em
sua totalidade, para nos revestir depois da sua natureza divina, segundo as palavras do Apóstolo: É
preciso que este ser corruptível se vista de incorruptibilidade; é preciso que este ser mortal se vista de
imortalidade (1Cor 15,53).
Estas coisas não se realizaram de maneira fictícia, como julgam alguns, o que é inadmissível! Nosso
Salvador fez-se verdadeiro homem, alcançando assim a salvação do homem na sua totalidade. Nossa
salvação não é absolutamente algo de fictício, nem limitado só ao corpo; mas realmente a salvação do
homem todo, corpo e alma, foi realizada pelo Verbo de Deus.
A natureza que ele recebeu de Maria era uma natureza humana, segundo as divinas Escrituras, e o
corpo do Senhor era um corpo verdadeiro. Digo verdadeiro, porque era um corpo idêntico ao nosso.
Maria é portanto nossa irmã, pois todos somos descendentes de Adão.
As palavras de João: O Verbo se fez carne (Jo 1,14) têm o mesmo sentido que se pode atribuir a uma
expressão semelhante de Paulo: O Cristo fez-se maldição por nós (cf. Gl 3,13). Pois da íntima e estreita
união com o Verbo, resultou para o corpo humano um engrandecimento sem par: de mortal tornou-se
imortal; sendo animal, tornou-se espiritual; terreno, transpôs as portas do céu.
Contudo, mesmo tendo o Verbo tomado um corpo no seio de Maria, a Trindade continua sendo a
mesma Trindade, sem aumento nem diminuição. É sempre perfeita, e na Trindade reconhecemos uma
só Divindade; assim, a Igreja proclama um único Deus no Pai e no Verbo.

16
G. RAMIS, Ano litúrgico; ciclo do advento, natal, epifania. In: D. BORÓBIO (org.), A celebração na Igreja III; ritmos e
tempo da celebração, p. 179-181.
134
2.4 EPIFANIA

Epifania
A epifania nasceu no Oriente, no início do século IV. Enquanto a Igreja do Ocidente celebrava
o natal em Roma a do Oriente celebra a Epifania. Esta festa celebra a manifestação de Deus na
encarnação.
Já no início do século II, há notícia de uma festa cristã, celebrada por seitas gnósticas, no dia 6
de janeiro, que comemorava o batismo de Jesus, momento em que aconteceu a verdadeira
“manifestação” e a investidura divina, segundo a ideologia gnóstica.
Com a introdução da epifania em Roma e noutras igrejas do Ocidente, o episódio dos Magos tornou-
se o tema central da festa. Deus não se manifesta apenas a uma única raça, a um povo privilegiado,
mas aos homens e mulheres de toda tribo, nação e cultura.
Sentido teológico-litúrgico: Manifestação de Deus às nações.
“Hoje a Igreja se uniu a seu celeste esposo, porque Cristo lavou no Jordão seu pecado; para as núpcias
reais correm os magos com presentes; e os convivas se alegram com a água transformada em vinho”.
(ant. do cântico evangélico da Epifania)
A epifania celebra a manifestação de Cristo que é para todos. É um pentecostes não só para
Israel, mas para todos.
Jesus inaugura o reino numa perspectiva universal.
Todo o mistério da revelação é um mistério de amor nupcial.
A vivência da epifania faz do cristão um missionário, anunciador e indicador do sinal do grande Rei.

Ritualidade
● Os textos bíblicos: Is 60,1-6 – Sl 72 (71) – Ef 3,2-3.5-6 e Mateus 2,1-12. Todos os textos
apresentam o messias-rei que se manifesta ao mundo.
● Os textos oracionais: O tema central da festa da epifania é a manifestação do Senhor que encheu
o mundo com sua glória.“Vimos sua estrela no oriente e viemos adorar o Rei da gente!”
● Estrela, incenso.
● Folia de Reis
● Músicas próprias
Espiritualidade
- Encontro, adoração, entrega.
- Abrir-se à dimensão missionária.
- Não viver a epifania como um fato passado, mas acontecendo hoje.
- Fazer da assembleia eucarística um momento forte e fortalecimento da fé, da esperança e da caridade.
Dimensão, antropológica, social, cósmica
Todos os povos e culturas estão em contínua busca; seguem a ‘estrela’; reverenciam o Mistério, cada
um a seu modo. Emergência do Divino no mundo.

2.5 O BATISMO DO SENHOR

Batismo: É uma festa epifânica, celebra a manifestação do Senhor.


Sentido teológico-litúrgico
Manifestação de Jesus como Messias (Cristo). “Este é meu Filho amado, em quem me comprazo”
(Mt 3,17)
Jesus é batizado como todo judeu. No batismo é confirmado em sua missão, voltada para um batismo
de cruz. Ele o filho de Deus, o messias, o filho amado. É o eleito de Deus.17

17
A. BERGAMINI, Cristo, festa da Igreja. p. 224-238.
135
O tema da luz está presente também no batismo de Cristo no Jordão. Ele é iluminado pela glória do Pai
Ritualidade
Isaías 42,1-4..6-7; Salmo Resp. 29 (28); Atos dos Apóstolos 10,34-38. Evangelhos: Ano A: Mateus
3,13-17; Ano B: Marcos 1,7-11; Ano C: Lucas 3,15-16.21-22
Os textos das orações e dos prefácios apresentam a teofania do Jordão como manifestação da
divindade de Cristo, proclamada pelo Pai. Temos ainda a missão profética de Jesus. Em Cristo somos
renascidos pela água e pelo Espírito Santo. ´Este é meu Filho muito amado, ouvi-o...’ (Aspersão com
água na profissão de fé)
Espiritualidade
Neste dia se recorda também o nosso batismo.

Texto Patrístico - São Gregório de Nazianzo, bispo, Séc. IV. Oratio in sancta Lumina, 14-16. 20:PG
36, 350-351. 354. 358-359:
Cristo é iluminado no batismo, recebemos com ele a luz; Cristo é batizado, desçamos com ele às águas
para com ele subirmos.
João batiza e Jesus se aproxima; talvez para santificar igualmente aquele que o batiza e, sem dúvida,
para sepultar nas águas o velho Adão. Antes de nós, e por nossa causa, ele que é Espírito e carne
santificou as águas do Jordão, para assim nos iniciar nos sacramentos mediante o Espírito e a água.
João reluta, Jesus insiste. Eu é que devo ser batizado por ti (cf. Mt 3,14), diz a lâmpada ao Sol, a voz à
Palavra, o amigo ao Esposo, diz o maior entre todos os nascidos de mulher ao Primogênito de toda
criatura, aquele que estremecera de alegria no seio materno ao que fora adorado no seio de sua Mãe, o
que era e seria precursor ao que já tinha vindo e de novo há de vir. Eu é que devo ser batizado por ti.
Podia ainda acrescentar: e por causa de ti. Pois sabia que ia receber o batismo de sangue ou que, como
Pedro, não lhe seriam apenas lavados os pés.
Jesus sai das águas, elevando consigo o mundo que estava submerso, e vê abrirem-se os céus de par
em par, que Adão tinha fechado para si e sua posteridade, assim como o paraíso lhe fora fechado por
uma espada de fogo.
O Espírito, acorrendo àquele que lhe é igual, dá testemunho da sua divindade. Vem do céu uma voz,
pois também vinha do céu aquele de quem se dava testemunho. E ao mostrar-se na forma corporal de
uma pomba, o Espírito glorifica o corpo de Cristo, já que este, por sua união com a divindade, é o
corpo de Deus. De modo semelhante, muitos séculos antes, uma pomba anunciara o fim do dilúvio.
Veneremos hoje o batismo de Cristo e celebremos dignamente esta festa. Permanecei inteiramente
puros e purificai-vos sempre mais. Nada agrada tanto a Deus quanto o arrependimento e a salvação do
homem, para quem se destinam todas as suas palavras e mistérios. Sede como luzes no mundo, isto é,
como uma força vivificante para os outros homens. Permanecendo como luzes perfeitas diante da
grande luz, sereis inundados pelo esplendor dessa luz que brilha no céu e iluminados com maior pureza
e fulgor pela Trindade. Dela acabastes de receber, embora não em plenitude, o único raio que procede
da única Divindade, em Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos
dos séculos. Amém.

2.6 TEMPO DA QUARESMA - PREPARANDO A PÁSCOA

Sentido teológico-litúrgico
- Seguir Jesus orante, no deserto, no Tabor, como abertura ao Espírito que ora em nós.
- Preparação à páscoa, ao batismo (catecumenato) e à renovação das promessas batismais na vigília
pascal.
- Tempo de um novo nascimento, de ser mais discípulo (a), de aprender a ser filho (a) no Filho, de
passar da morte à vida. A Penitência e a conversão como exigência do batismo, à maneira do grão de
trigo que morre para renascer, ou como a mulher que sofre dores de parto para dar à luz

136
- Preparemos para celebrar a páscoa, “não com o velho fermento, nem com o fermento da malícia e da
perversidade, mas com pães sem fermento, isto é, na pureza e na verdade” (1Cor 5,8).
Ritualidade
- Cinzas
- Cor roxa (rosa no 4o domingo, vermelho no domingo de ramos)
- Austeridade, ausência de flores e de acompanhamento musical, de glória e de aleluia, (Ausência de
círio no domingo): vazio simbólico que nos remete ao necessário vazio do coração a ser preenchido
com a Palavra (não com artifícios externos).
- Músicas que expressem o sentido e a espiritualidade da quaresma
- Valorizar a cruz, o ato penitencial, o rito da bênção e aspersão da água.
- Procissão com ramos no domingo de ramos
- Valorizar o sacramento da reconciliação.
- ODC: substituir o lucernário da vigília do sábado pela iluminação da cruz
- Leituras do ano A, enfatizam a dimensão batismal da Igreja, esquema mais antigo, ligado ao
catecumenato (deserto, transfiguração, Samaritana, cego, Lázaro).
- Leituras do ano no B, acentuam a glorificação de Cristo pela cruz e falam da nossa participação no
mistério de Cristo (deserto, transfiguração, vendilhões do templo, Nicodemos, grão de trigo).
- Leituras do ano no C: sublinham a conversão do coração e o perdão e enfatizam a misericórdia de
Deus para com o pecador (deserto, transfiguração, figueira estéril, o filho que volta, pecadora
perdoada).
- Nos anos ABC, a primeira leitura conta os grandes momentos da história da salvação e da caminhada
do povo de Deus.
Atitude espiritual
Reconhecer-se necessitado/a de reconciliação e do perdão de Deus; mudança de vida, conversão,
volta para o Pai, aceitar o desafio de renascer.
Assumir a páscoa como um modo de viver, a vida vencendo a morte, o positivo vencendo o
negativo, o perdão vencendo a mágoa, a tolerância sem cair na indiferença, atos de amor concretos na
comunidade, na família, como exercício no caminho do discipulado (cf. Lucas, 6,27-38). Sabemos que
passamos da morte à vida se amamos os irmãos (1 Jo 3,14).
Lembrar que somos discípulos (as) de Jesus, que superou o fracasso humano da Cruz com um
amor que vence a morte.
Retiro pascal estruturado no trinômio: oração, jejum, esmola:
- Jejum: disciplina que conduz à liberdade.
- Oração – leitura orante - como sinal do nosso desejo de Deus, de unificação do coração.
- Esmola traduzida por solidariedade – CF.

Da Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das festas pascais)18.


O TEMPO DA QUARESMA

6. “O anual caminho de penitência da Quaresma é o tempo de graça, durante o qual se sobe ao monte
santo da Páscoa. Com efeito, a Quaresma, pela sua dúplice característica, reúne catecúmenos e fiéis na
celebração do mistério pascal. Os catecúmenos, quer por meio da ‘eleição’ e dos ‘escrutínios’ quer
mediante a catequese, são admitidos aos sacramentos da iniciação cristã; os fiéis, ao contrário, por
meio da escuta mais frequente da Palavra de Deus e de uma oração mais intensa são preparados, com
a Penitência, para renovar as promessas do Batismo”.

18
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

137
a) Quaresma e iniciação cristã
7. Toda a iniciação cristã tem uma índole pascal, sendo a primeira participação sacramental na morte
e ressurreição de Cristo. Por esta razão, a Quaresma deve alcançar o seu pleno vigor como tempo de
purificação e de iluminação, especialmente mediante os “escrutínios” e as “entregas” (o símbolo da fé
e a oração do Senhor); a própria vigília pascal deve ser considerada como o tempo mais adaptado para
celebrar os sacramentos da iniciação.
8. Também as comunidades eclesiais, que não têm catecúmenos, não deixem de orar por aqueles que
noutros lugares, na próxima vigília pascal, receberão os sacramentos da iniciação cristã. Os pastores,
por sua vez, expliquem aos fiéis a importância da profissão de fé batismal, em ordem ao crescimento
da sua vida espiritual. Estes serão convidados a renovar tal profissão de fé, “no final do caminho
penitencial da Quaresma”.
9. Na Quaresma, cuide-se de ministrar a catequese aos adultos que, batizados quando crianças, não a
receberam e, portanto, não foram admitidos aos sacramentos da Confirmação e da Eucaristia. Neste
mesmo período sejam realizadas as celebrações penitenciais, a fim de os preparar para o sacramento
da Reconciliação.
10. O tempo da Quaresma é, além disso, o tempo próprio para celebrar os ritos penitenciais
correspondentes aos escrutínios para as crianças ainda não batizadas, que atingiram a idade adequada
à instrução catequética, e para as crianças há tempo batizadas, antes de serem admitidas pela primeira
vez ao sacramento da Penitência.
O bispo promova a formação dos catecúmenos tanto adultos como crianças e, segundo as
circunstâncias, presida aos ritos prescritos, com a participação assídua por parte da comunidade local.
b) As celebrações do tempo quaresmal
11. Os domingos da Quaresma têm sempre a precedência também nas festas do Senhor e em todas as
solenidades. As solenidades, que coincidem com estes domingos, são antecipadas para o sábado. Por
sua vez, os dias feriais da Quaresma têm a precedência nas memórias obrigatórias.
12. Sobretudo nas homilias do domingo seja ministrada a instrução catequética sobre o mistério pascal
e sobre os sacramentos, com explicação mais cuidadosa dos textos do Lecionário, sobretudo as
perícopes do Evangelho, que ilustram os vários aspectos do Batismo e dos outros sacramentos e
também a misericórdia de Deus.
13. Os pastores expliquem a Palavra de Deus de modo mais frequente e mais amplo nas homilias dos
dias feriais, nas celebrações da Palavra, nas celebrações penitenciais, em particulares pregações,
durante a visita às famílias ou a grupos de famílias para a bênção. Os fiéis participem com frequência
nas missas feriais e, quando não for possível, sejam convidados a ler pelo menos os textos das leituras
correspondentes, em família ou em particular.
14. “O tempo da Quaresma conserva a sua índole penitencial”. Na catequese aos fiéis seja inculcada,
juntamente com as consequências sociais do pecado, a natureza genuína da penitência, com a qual se
detesta o pecado enquanto ofensa a Deus.
A virtude e a prática da penitência permanecem partes necessárias da preparação pascal: da conversão
do coração deve brotar a prática externa da penitência, quer para os cristãos individualmente quer para
a comunidade inteira; prática penitencial que, embora adaptada às circunstâncias e condições próprias
do nosso tempo, deve porém estar sempre impregnada do espírito evangélico de penitência e orientada
para o bem dos irmãos.
Não se esqueça a parte da Igreja na ação penitencial e seja solicitada a oração pelos pecadores,
inserindo-a com mais frequência na oração universal.
15. Recomende-se aos fiéis mais intensa e frutuosa participação na liturgia quaresmal e nas celebrações
penitenciais. Seja-lhes recomendada sobretudo a frequência, neste tempo, ao sacramento da Penitência,
segundo a lei e as tradições da Igreja, para poderem participar nos mistérios pascais com espírito
purificado. É muito oportuno no tempo da Quaresma celebrar o sacramento da Penitência segundo o
rito para a reconciliação de mais penitentes, com a confissão e absolvição individual, como vem
descrito no Ritual Romano.
Por sua vez, os pastores estejam mais disponíveis para o ministério da Reconciliação e, ampliando os
horários para a confissão individual, facilitem o acesso a este sacramento.
138
16. O caminho de penitência quaresmal em todos os seus aspectos seja orientado para pôr em mais
evidência a vida da Igreja local, e para lhe favorecer o progresso. Por isto se recomenda muito conservar
e favorecer a forma tradicional de assembleia da Igreja local, segundo o modelo das “estações”
romanas. Estas assembleias de fiéis poderão reunir-se, especialmente sob a presidência do pastor da
diocese, junto dos túmulos dos santos ou nas principais igrejas e santuários da cidade, ou nos lugares
de peregrinação mais frequentados na diocese.
17. “Na Quaresma não se colocam flores no altar e o som dos instrumentos é permitido só para sustentar
o canto”, no respeito da índole penitencial deste tempo.
18. De igual modo, omite-se o Aleluia em todas as celebrações, desde o início da Quaresma até a Vigília
pascal, também nas solenidades e nas festas.
19. Sobretudo nas celebrações eucarísticas, mas também nos pios exercícios, sejam escolhidos cânticos
adaptados a este tempo e correspondentes, o mais possível, aos textos litúrgicos.
20. Sejam favorecidos e impregnados de espírito litúrgico os pios exercícios de acordo com o tempo
quaresmal, como a Via-sacra, para com mais facilidade conduzir os ânimos dos fiéis à celebração do
mistério pascal de Cristo.
c) Particularidades de alguns dias da Quaresma
21. Na quarta-feira antes do primeiro domingo da Quaresma os fiéis, recebendo as cinzas, entram no
tempo destinado à purificação da alma. Com este rito penitencial, surgido da tradição bíblica e
conservado na práxis eclesial até os nossos dias, é indicada a condição do homem pecador, que
exteriormente confessa a sua culpa diante de Deus e exprime assim a vontade de conversão interior, na
esperança que o Senhor seja misericordioso para com ele. Por meio deste mesmo sinal inicia o caminho
de conversão, que alcançará a sua meta na celebração do sacramento da Penitência nos dias antes da
Páscoa. A bênção e imposição das cinzas são realizadas durante a missa ou também fora da missa.
Nesse caso, permite-se a liturgia da Palavra, concluída com a oração dos fiéis.
22. A Quarta-feira de Cinzas é dia obrigatório de penitência na Igreja toda, com a observância da
abstinência e do jejum.
23. O I domingo da Quaresma assinala o início do sinal sacramental da nossa conversão, tempo
favorável para a nossa salvação. Na missa deste domingo não faltem os elementos que sublinham tal
importância; por exemplo, a procissão de entrada, com a ladainha dos santos. Durante a missa do I
domingo da Quaresma, o bispo celebre oportunamente na igreja catedral, ou noutra igreja, o rito da
eleição ou da inscrição do nome, segundo as necessidades pastorais.
24. Os Evangelhos da Samaritana, do cego de nascença e da ressurreição de Lázaro, assinalados
respectivamente para os domingos III, IV e V da Quaresma no ano A, pela sua grande importância em
ordem à iniciação cristã, podem ser lidos também nos anos B e C, sobretudo onde há catecúmenos.
25. No IV domingo da Quaresma (“Laetare”) e nas solenidades e festas permite-se o som dos
instrumentos, e o altar pode ser ornado com flores. E neste domingo podem ser usados os paramentos
de cor rósea.
26. O uso de cobrir as cruzes e as imagens na igreja, desde o V domingo da Quaresma, pode ser
conservado segundo a disposição da Conferência Episcopal. As cruzes permanecem cobertas até ao
término da celebração da Paixão do Senhor na Sexta-feira Santa; as imagens até ao início da Vigília
pascal.

2.7 DOMINGO DE RAMOS E DA PAIXÃO DO SENHOR

“A Semana Santa visa recordar a Paixão de Cristo, desde sua entrada messiânica em Jerusalém. ”
(Normas Universais do Ano Litúrgico 99).
“Na Semana Santa a Igreja celebra os mistérios da salvação, levados a cumprimento por Cristo
nos últimos dias da sua vida, a começar pelo seu ingresso messiânico em Jerusalém. O tempo quaresmal
continua até à Quinta-feira Santa. A partir da missa vespertina “in Cena Domini” inicia-se o tríduo
pascal, que abrange a Sexta-feira Santa “da paixão do Senhor” e o Sábado Santo, e tem o seu centro na
139
vigília pascal, concluindo-se com as vésperas do domingo da ressurreição. “Os dias feriais da Semana
Santa, de segunda-feira a quinta-feria inclusive, têm a precedência sobre todas as outras celebrações”.
É oportuno que nestes dias não se celebre nem o Batismo nem a Confirmação. (da Carta Circular
Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das festas pascais, nº 27).

1. Da Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das festas pascais)19.


28. A Semana Santa tem início no Domingo de Ramos da paixão do Senhor, que une num todo o triunfo
real de Cristo e o anúncio da paixão. Na celebração e na catequese deste dia sejam postos em evidência
estes dois aspectos do mistério pascal.
29. Desde a antiguidade se comemora a entrada do Senhor em Jerusalém com a procissão solene, com
a qual os cristãos celebram este evento, imitando as aclamações e os gestos das crianças hebréias, que
foram ao encontro do Senhor com o canto do Hosana.
A procissão seja uma só e feita sempre antes da missa com maior concurso de povo, também nas horas
vespertinas, tanto do sábado como do domingo. Para realizá-la os fiéis reúnem-se numa igreja menor
ou noutro lugar adaptado, fora da igreja para a qual a procissão se dirige. Os fiéis participam nesta
procissão levando ramos de oliveira ou de outras árvores.
O sacerdote e os ministros precedem o povo, levando também eles os ramos.
A bênção das palmeiras ou dos ramos é feita para os levar em procissão.
Conservados em casa, os ramos recordam aos fiéis a vitória de Cristo celebrada com a mesma
procissão.
Os pastores esforcem-se por que esta procissão, em honra de Cristo Rei, seja preparada e celebrada de
modo frutuoso para a vida espiritual dos fiéis.
30. O Missal Romano, para celebrar a comemoração da entrada do Senhor em Jerusalém, além da
procissão solene supramencionada, apresenta outras duas formas, não para conceder comodidade e
facilidade, mas tendo em consideração dificuldades que possam impedir a procissão.
A segunda forma de comemoração é a entrada solene, quando não se pode fazer a procissão fora da
igreja. A terceira forma é a entrada simples, que se faz em todas as missas do domingo, no qual se
realiza a entrada solene.
31. Quando não se pode celebrar a missa, convém realizar uma celebração da Palavra de Deus para a
entrada messiânica e a paixão do Senhor, nas horas vespertinas do sábado ou na hora mais oportuna do
domingo.
32. Na procissão são executados “pelos cantores” e pelo povo os cânticos propostos pelo Missal
Romano, com os Salmos 23 e 46, e outros cânticos apropriados em honra de Cristo Rei.
33. A história da Paixão reveste particular solenidade. É aconselhável que seja cantada ou lida segundo
o modo tradicional, isto é, por três pessoas que representam a parte de Cristo, do cronista e do povo.
A Passio é cantada ou lida pelos diáconos ou sacerdotes ou, na falta deles, pelos leitores; neste caso, a
parte de Cristo deve ser reservada ao sacerdote. A proclamação da paixão é feita sem os portadores de
castiçais, sem incenso, sem a saudação ao povo e sem o toque no livro; só os diáconos pedem a bênção
do sacerdote, como noutras vezes antes do Evangelho.
Para o bem espiritual dos fiéis, é oportuno que a história da Paixão seja lida integralmente sem omitir
as leituras que a precedem.
34. Concluída a história da paixão, não se omita a homilia.

2. Alguns dados históricos


A origem é um costume popular do século V, em Jerusalém, que na tarde do domingo fazia a procissão
solene para comemorar a entrada de Jesus na cidade. Em Roma celebrava-se o domingo da paixão. As
duas se juntaram.
3. Ritualidade

19
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

140
● Rezar o Ofício de Vigília – ver Ofício Divino das Comunidades.
● Bênção dos Ramos.
Procissão com os ramos – O Missal Romano apresenta 3 formas: 1) a solene, com a procissão fora
da Igreja; 2) a entrada solene no interior da Igreja; 3) entrada simples.
● Leituras dos textos bíblicos: Isaías 50,4-7; Salmo 22 (21); Filipenses 2,6-11.
São proclamados dois textos evangélicos:
- Entrada de Jesus em Jerusalém:
Ano A: Mateus 21,1-11
Ano B: Marcos 11,1-10
Ano C: Lucas 19,28-40
- Paixão de Jesus:
Ano A: Mateus 26,14 – 27,66
Ano B: Marcos 14,1 – 15,47
Ano C: Lucas 22,14 – 23,56
● Cantos que expressam o mistério celebrado: Os filhos dos hebreus, H 2, p. 24-26; Hosana,
hey, ODC p. 439; Salmo 119 (118), ODC p. 151-154; Glória, louvor, H2, p. 148; Hosana filho de
Davi, H2, p. 150; Em Jerusalém, H2, p. 136; Meu Deus, ó meu Deus, H2, p. 21-22. O evangelho da
Paixão pode ser cantado. Ver Hinário 2, p. 113-118.
● Orações que exprimem o mistério.
4. Atitude espiritual
● Hoje” somos chamados (as) a entrar com Jesus em Jerusalém, seguir seus passos, compartilhar
de seu sofrimento, paixão, morte, para com Ele participarmos de sua ressurreição e vida.

5. Lembretes:
- “Hoje” somos chamados (as) a entrar com Jesus em Jerusalém, seguir seus passos, compartilhar de
seu sofrimento, paixão e morte, para com Ele participarmos de sua ressurreição e vida.
- A cor usada é o vermelho.
- Prever vasilhas com água, para que outros ministros ajudem na aspersão dos ramos.
- Os cantos e as músicas devem conduzir-nos ao coração do mistério celebrado.
- Providenciar ramos, antecipadamente, para todos.
- Preparar bem o Evangelho da Paixão que pode ser proclamado, cantado ou encenado e também o
Evangelho da bênção dos Ramos, que pode ser dialogado.
- Preparar com antecedência e proclamar bem as leituras. Cantar com unção o salmo.
- Valorizar a cruz que vem à frente da procissão, podendo ser colocado um ramo em sua haste.
- As pessoas podem levar ervas medicinais para serem abençoadas.
- Enquanto o povo vai chegando, pode-se queimar ervas cheirosas no local da reunião para a bênção
dos ramos.

2.8 TRÍDUO PASCAL

QUINTA-FEIRA SANTA
Páscoa da Ceia

“Na quinta-feira santa, na missa vespertina, a recordação do banquete que precedeu o êxodo ilumina,
de maneira especial, o exemplo de Cristo ao lavar os pés dos discípulos e as palavras de Paulo sobre a
instituição da Páscoa cristã na Eucarístia” (Normas Universais do Ano Litúrgico, 99).
“Com a missa celebrada nas horas vespertinas da Quinta-feira Santa, a Igreja dá início ao tríduo pascal
e recorda aquela última ceia em que o Senhor Jesus, na noite em que ia ser traído, tendo amado até ao
extremo os seus que estavam no mundo, ofereceu a Deus Pai o seu Corpo e Sangue sob as espécies do
pão e do vinho e deu-os aos apóstolos como alimento, e ordenou-lhes, a eles e aos seus sucessores no
sacerdócio, que fizessem a mesma oferta” (A preparação e celebração das festas pascais, 44).

141
1. Sentido teológico-litúrgico
● Abre o Tríduo Pascal.
● Começa a fazer parte do “tríduo” pascal com o objetivo de historicizar os relatos evangélicos.
● Enquanto o Tríduo nos apresenta a realidade do mistério pascal único e unitário na sua dimensão
histórica, a quinta-feira o transmite em sua dimensão ritual.
● Celebramos a Ceia, na qual o Senhor se entrega por nós nos sinais simbólico-sacramentais da Oração
eucarística – a grande ação de graças – e a comunhão do pão e do vinho.
● “Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai,
tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13.1). Jesus sabia que seria
entregue às autoridades que o estavam procurando há muito tempo. Ele não foge, se entrega. E faz a
entrega durante uma refeição. É agora o novo Cordeiro Pascal (páscoa). Seu sangue será derramado
para a salvação de todos.
● É corpo entregue e sangue derramado – “Eis o meu corpo – eis o meu sangue – que é dado por vós
– fazei isto para celebrar a minha memória”.
● “A última ceia é significada pelo Senhor como forma de estabelecimento de uma aliança nova,
sinalizada pelo pão e o vinho partilhados”. O ato de comer e tomar uma refeição em conjunto possui
uma significação própria, como consequência de uma reciprocidade e cumplicidade que se estabelece
na relação. O Cristo que entrega a eucaristia é o mesmo que dá o seu corpo e derrama o seu sangue por
nós. No lava-pés, temos uma concretização eloquente dessa entrega de Jesus até o fim. (Marcelo
Guimarães e Penha Carpanedo, Revista de Liturgia, n. 170, março/abril. 2002, p. 4)
2. Ritualidade
● A Liturgia da Palavra – “As leituras falam-nos do rito pascal do Antigo e Novo Testamentos
tendo como núcleo a ceia pascal celebrada por Jesus com os discípulos, que serve de eixo a páscoa
hebraica e a cristã”. A passagem do EX 12,1-8.11-14 narra-nos a instituição do rito memorial dos
acontecimentos do Êxodo, que anunciaram e prefiguraram a páscoa de Jesus. Com o salmo 116 (115),
a Igreja responde a palavra de Deus com ação de graças, bênção... A segunda leitura (1Cor 11,23-26)
descreve a ceia pascal cristã, e dá seu sentido. O evangelho (Jo 13,1-15), estreitamente vinculado com
as duas leituras anteriores, ilumina-as com a figura de Jesus que, embora Mestre e Senhor, faz-se servo
lavando os pés dos discípulos.
Leituras Bíblicas:
João 13,1-15; Êxodo 12,1-8.11-14; Sl 115, 12-18; 1Corintios 11,23-26
● OS CANTOS revelam o mistério celebrado. Cantar a Ceia do Senhor é cantar, de véspera, em
resumo e por antecipação, o Mistério que vai se desdobrar nas celebrações do Tríduo Sacro.
Nossa glória é a cruz, H2, p. 163; Nós devemos gloriar-nos, H2, p. 161; Eu vos dou um novo
mandamento, H2, p. 52; Jesus erguendo-se da Ceia, Quanto tempo eu desejei, H2, p. 184; Hoje é festa
diz o povo, H2, p. 149; Onde o amor e a caridade, H2, p. 170...
3. Atitude espiritual
● A Igreja, por vontade de Cristo, repete a ceia para perpetuar a páscoa.
● Participando do cenáculo, onde o Senhor estabelece aliança conosco, damos início à páscoa de
Cristo, realizando as palavras da Escritura: “Desejei ardentemente comer convosco esta ceia pascal
antes de sofrer” (Lc 22,15).
● É momento de assumir no gesto do lava-pés, a mística do viver em comunidade, do jeito que
Jesus viveu e ensinou como sinal de adoração ao Deus que nos chama à comunhão do seu amor. O
lava-pés pode expressar, também, a afeição da comunidade pelos excluídos da sociedade (indígenas,
negros...)
4. Lembretes:
● O local da celebração assume um tom festivo, com flores, velas, etc. A cor utilizada é a branca.
É importante ajudar a comunidade a entrar na globalidade do tríduo e da festa pascal. Onde for
oportuno, pode-se utilizar o costume judaico de começar a páscoa acendendo as luzes da festa,

142
utilizando-se, por exemplo, da menorá, candelabro de sete velas, onde cada vela é acesa em memória
de um grupo ao qual a comunidade deseja unir-se especialmente por ocasião da festa.
● Sendo a páscoa uma festa muito antiga, patrimônio das tribos pastoris e das comunidades
judaicas, pode-se fazer algum gesto que assinale esta pertença, como, por exemplo, comer ervas
amargas.
● O rito do lava-pés é um assumir a mística do viver em comunidade, do jeito que Jesus viveu e
ensinou como sinal de adoração a Deus que nos chama à comunhão do seu amor. O lava-pés pode
expressar também a afeição da comunidade pelos excluídos da sociedade. Se possível, pode-se ligar
este rito com a campanha da fraternidade. Para que o rito tenha seu sentido pleno, é importante planejá-
lo bem, prevendo jarra, bacia e toalhas, bem como quem irá fazê-lo e o lugar onde vão se posicionar
as pessoas que terão os pés lavados.
● O rito do lava-pés pode ser realizado durante a proclamação do Evangelho.
● É importante dar à celebração uma dimensão de refeição e ceia. Caso haja celebração
eucarística, prever a comunhão sob as duas espécies (pão ázimo e vinho). Onde for possível, as pessoas
podem se reunir em torno da mesa.
● Onde for o costume, preparar um altar para uma breve adoração eucarística. Não convém
prolongar esta adoração a noite inteira, evitando que as pessoas cheguem cansadas para a celebração
maior na noite pascal. A adoração da 5a feira não deve sobrepor-se à vigília pascal, ponto alto do tríduo.
Prever velas e incenso para a procissão de translado.

5. Recomendações de Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das


festas pascais20.
- A missa “In Cena Domini” é celebrada nas horas vespertinas, no tempo mais oportuno para uma plena
participação de toda a comunidade local. Todos os presbíteros podem concelebrá-la, ainda que tenham
já concelebrado neste dia a missa do Crisma, ou então devam celebrar outra missa para o bem dos fiéis
(nº 46).
- Nos lugares em que seja requerido por motivos pastorais, o ordinário do lugar pode conceder a
celebração de uma outra missa nas igrejas e oratórios, nas horas vespertinas e, no caso de verdadeira
necessidade, também de manhã, mas só para os fiéis que não podem de modo algum tomar parte na
missa vespertina. Evite-se, todavia, que estas celebrações se façam em favor de pessoas particulares ou
de pequenos grupos e que não constituam um obstáculo para a missa principal (nº 47).
Segundo antiquíssima tradição da Igreja, neste dia são proibidas todas as missas sem o povo.
- Antes da celebração, o tabernáculo deve estar vazio. As hóstias para a comunhão dos fiéis devem ser
consagradas na mesma celebração da missa. Consagrem-se nesta missa hóstias em quantidade
suficiente para este dia e para o dia seguinte (nº 48).
- Reserve-se uma capela para a conservação do Santíssimo Sacramento e seja ela ornada de modo
conveniente, para que possa facilitar a oração e a meditação: recomenda-se o respeito daquela
sobriedade que convém à liturgia destes dias, evitando ou removendo qualquer abuso contrário (nº 49).
Se o tabernáculo é colocado numa capela separada da nave central, convém que nela seja disposto o
lugar para a reposição e a adoração.
- Durante o canto do hino Glória a Deus toquem-se os sinos. Concluído o canto, eles permanecerão
silenciosos até à vigília pascal, segundo os costumes locais; a não ser que a Conferência Episcopal ou
o ordinário do lugar determinem diversamente, segundo a oportunidade. Durante este tempo o órgão e
os outros instrumentos musicais podem ser utilizados só para sustentar o canto. (nº 50).
- Durante a procissão das ofertas, enquanto o povo canta o hino Onde há caridade e amor, podem ser
apresentados os dons para os pobres, especialmente os que foram recolhidos no tempo quaresmal como
frutos de penitência (nº 52).

20
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

143
- Para os doentes que recebem a Comunhão em casa, é mais oportuno que a Eucaristia, tomada da mesa
do altar no momento da Comunhão, seja a eles levada pelos diáconos ou acólitos ou ministros
extraordinários, para que possam assim unir-se de maneira mais intensa à Igreja que celebra (nº 53).
- Concluída a oração após a Comunhão, forma-se a procissão que, passando pela igreja, acompanha o
Santíssimo Sacramento ao lugar da reposição. A procissão é precedida pelo cruciferário; levam-se os
círios acesos e o incenso. Durante a procissão, canta-se o hino apropriado ou outro cântico eucarístico.
A procissão e a reposição do Santíssimo Sacramento não podem ser feitas nas igrejas em que na Sexta-
feira Santa não se celebra a paixão do Senhor (nº 54).
- O Sacramento seja conservado num tabernáculo fechado. Nunca se pode fazer a exposição com o
ostensório. O tabernáculo ou o cibório não deve ter a forma de um sepulcro. Evite-se o termo mesmo
de sepulcro: com efeito, a capela da reposição é preparada não para representar a sepultura do Senhor,
mas para conservar o pão eucarístico para a Comunhão, que será distribuída na Sexta-feira da paixão
do Senhor (nº 55).
- Convidem-se os fiéis a permanecer na igreja, depois da missa “In Cena Domini”, por um determinado
espaço de tempo na noite, para a devida adoração ao Santíssimo Sacramento solenemente ali
conservado neste dia. Durante a adoração eucarística prolongada pode ser lida uma parte do Evangelho
segundo João (cap. 13-17). Após a meia-noite, esta adoração seja feita sem solenidade, já que começou
o dia da paixão do Senhor (nº 56).

SEXTA-FEIRA SANTA
Páscoa da Cruz
“A ação litúrgica da sexta-feira santa chega ao seu momento culminante no relato segundo São João
da paixão daquele que, como o Servo do Senhor, anunciado no livro de Isaías, tornou-se realmente o
único sacerdote a oferecer-se a si mesmo ao Pai” (Normas Universais do Ano Litúrgico, 99).
“ Neste dia, em que ‘Cristo, nosso cordeiro pascal, foi imolado’, a Igreja, com a meditação da paixão
do seu Senhor e Esposo e adorando a cruz, comemora o seu nascimento do lado de Cristo que repousa
na cruz, e intercede pela salvação do mundo todo” (A preparação e celebração das festas pascais, 58).

1. Sentido teológico-litúrgico
● Celebramos a paixão e morte na cruz. “Eis, o lenho da cruz, do qual pendeu, a salvação do
mundo”. É o dia em que o esposo foi tirado.
● A Igreja nasce do supremo ato de amor de Jesus na cruz.
● A cruz, quando Jesus a carrega, já é o resplendor da páscoa. É do supremo ato de amor de Jesus
na cruz que nasce a Igreja. Ela não é apenas instrumento de morte, mas ao mesmo tempo trono e
exaltação, sinal da salvação. Na cruz, Jesus se torna o único mediador entre o Pai e a humanidade.
● “A páscoa da cruz, por um lado, expressa a tristeza e o luto, porque afinal ‘o esposo nos foi
tirado’ e porque o mal, que fez o justo inocente sofrer e morrer, parece não ter se acabado e se prolonga
até os nossos dias. Afinal, a cruz é um instrumento de tortura e testemunha o escândalo da inteligência
humana em fazer os humanos sofrerem. Prostrando-se, ajoelhando-se, silenciando, a comunidade
participa desta páscoa da cruz expressando seu protesto contra a injustiça e sua solidariedade com os
crucificados do mundo e da história.
● Ao mesmo tempo, a celebração da sexta-feira santa assume a dimensão de ação de graças pela
doação da vida de Cristo e pela remissão que o Pai lhe deu. É a partir da ressurreição que celebramos
a crucificação. É nessa perspectiva que a cruz entra na assembleia cristã, como sinal pascal de vitória,
sendo aclamada e adorada” (Marcelo Guimarães e Penha Carpanedo, Revista de Liturgia, n. 170,
março/abril.2002, p. 5).

2. Ritualidade
A Igreja não celebra a eucaristia. O elemento fundamental e universal da liturgia deste dia é a
proclamação da palavra.
144
De preferência a celebração aconteça as 3 horas da tarde, a hora da morte de Jesus.
Temos como partes essenciais da liturgia da Paixão do Senhor: liturgia da Palavra, a adoração da Santa
Cruz e comunhão.

● A LITURGIA DA PALAVRA – A primeira leitura é um trecho do quarto cântico de Isaías (Is 52,13
– 53,12) – é o novo testamento que dá sentido à personalidade do Servo Sofredor, vendo-a
realizada na pessoa de Jesus, por isso antigamente se chamava esse cântico de ‘o evangelho da
paixão e morte do Senhor’. (Borobio III, p. 107).
Salmo 31 – a Igreja encontra neste salmo a descrição da paixão de Jesus e de seu pleno
abandono nas mãos do Pai (Borobio III, p. 107).
A 2ª leitura tirada da carta aos Hebreus (4,14-16; 5,7-9) – esta leitura nos ajuda a compreender
o mistério da morte do Senhor.
O evangelho é o relato de João 18,1 – 19,42 que a Igreja reserva, para esse dia precisamente
pela perspectiva com que o apóstolo apresenta a vida e a morte de Jesus.

Leituras Bíblicas:
João 18, 1-19,42; Isaias 52, 13-53,12; Salmo 30 (31) ; Hebreus 4, 14-16;5,7-9

Adoração da Cruz:
Apresentação da Santa Cruz - Primeira opção
A cruz velada é levada ao altar, acompanhada por dois acólitos com velas acesas. O que preside,
de pé diante do altar, recebe a cruz, descobre a parte superior e a eleva um pouco, começando a
antífona Eis o lenho da cruz do qual pendeu a salvação do mundo (...) Todos respondem: Vinde,
adoremos! Terminado o canto, ajoelham-se e permanecem um momento adorando em silêncio,
enquanto o presidente continua de pé com a cruz erguida. Em seguida, o presidente descobre o braço
direito da cruz, elevando-a de novo e começando a antífona Eis o lenho da cruz tudo como acima.
Enfim, descobre toda a cruz e, levantando-a, começa pela terceira vez a antífona Eis o lenho
da cruz (...)

Apresentação da Santa Cruz - Segunda opção


O presidente, ou outro ministro, dirige-se à porta da Igreja, onde toma nas mãos a cruz sem véu.
Acompanhado pelos acólitos com velas acesas, vai em procissão pela nave até o presbitério. Junto à
porta principal, no meio da Igreja e à entrada do presbitério. Junto à porta principal, no meio da igreja
e à entrada do presbitério, de pé, ergue a cruz, cantando a antífona Eis o lenho da cruz do qual pendeu
a salvação do mundo a que todos respondem Vinde, adoremos! Ajoelhando e adorando um momento
em silêncio, como acima. Em seguida coloca a cruz com os candelabros à entrada do presbitério.
Adoração da Santa Cruz
Para a adoração da cruz aproximam-se, como em procissão, o padre, os ministros e os fiéis, exprimindo
sua reverência pela genuflexão simples ou outro sinal apropriado, conforme o costume da região, por
exemplo, beijando a cruz.
Durante a adoração cantam-se cantos apropriados, sentando todos aqueles que já fizeram a adoração.
Deve-se apresentar á adoração do povo uma só e mesma cruz. Se, por causa da grande quantidade de
fiéis, não for possível aproximarem-se individualmente, o padre ou o ministro, toma a cruz e, de pé
diante do altar, convida o povo em breves palavras a adorá-la em silêncio, mantendo-a erguida por um
momento.
Terminada a adoração, a cruz é levada para o altar, em seu lugar habitual. Os castiçais acesos são
colocados perto do altar ou da cruz (Missal Romano)
3. Atitude espiritual
● O jejum pascal – A tradição do jejum é antiga. Começava na sexta-feira e prolongava-se até a
celebração eucarística do sábado para o domingo.

145
● O grande silêncio - Toda a terra faz silêncio para lembrar o tempo em que o Senhor esteve na
sepultura.
● Contemplando as chagas de Cristo, tornamos presentes, as dores e martírios de todos os
oprimidos da terra, nos quais sua Paixão continua..
● Com Jesus celebramos e vivenciamos a páscoa da cruz – a vitória do Amor – a cruz gloriosa.
4. Lembretes:
● É importante pensar em como ligar a solene ação litúrgica com a religiosidade do povo.
● A liturgia deste dia possui uma nota de despojamento e simplicidade. O altar fica sem toalhas
e sem candelabros, em sinal de luto e dor da comunidade. Apenas na hora da comunhão estende-se o
corporal.
● A cor dos paramentos é o vermelho, sinal do sangue do Senhor derramado na cruz.
● O silêncio ocupa um lugar muito importante na mística e na dinâmica da celebração, lembrando
o tempo em que o Senhor esteve na sepultura. A celebração começa em silêncio, sem canto, e assim
termina.
● A celebração começa com a comunidade toda ficando de joelhos.
● A leitura da paixão ocupa, neste dia, uma dimensão de sacramento e sinal para a comunidade
orante. É importante planejá-la, distribuindo bem as tarefas e ensaiando-a previamente. Pode ser
cantada. Veja proposta no Dia do Senhor, ciclo pascal, p. 193-201.
● A oração universal é o momento onde a comunidade ora pelas grandes necessidades do mundo
e das igrejas. Além da distribuição das tarefas deste momento, é necessário atentar para sua dinâmica,
intercalando momentos de silêncio e prece. Veja proposta no Dia do Senhor, ciclo pascal, p. 201-204
ou Hinário 2, CNBB.
● Para a adoração da cruz, prever uma cruz grande coberta com pano vermelho, e dois ministros
com velas para acompanharem.
5. Recomendações de Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das
festas pascais21.
- A Igreja, seguindo uma antiquíssima tradição, neste dia não celebra a Eucaristia; a sagrada Comunhão
é distribuída aos fiéis só durante a celebração da paixão do Senhor; aos doentes, impossibilitados de
participar desta celebração, pode-se levar a Comunhão a qualquer hora do, dia (nº 59).
- A Sexta-feira da paixão do Senhor é dia de penitência obrigatória para a Igreja toda, a ser observada
com a, abstinência e o jejum (nº 60).
- Está proibido celebrar neste dia qualquer sacramento, exceto os da Penitência e da Unção dos
Enfermos. As exéquias sejam celebradas sem canto e sem o som do órgão e dos sinos. 62. Recomenda-
se que o ofício da leitura e as laudes deste dia sejam celebrados nas igrejas, com participação do povo
(cf. n. 40) (nº 61).
- Recomenda-se que o ofício da leitura e as laudes deste dia sejam celebrados nas igrejas, com
participação do povo (nº 62).
- A celebração da paixão do Senhor deve ser realizada depois do meio-dia, especialmente pelas três
horas da tarde. Por razões pastorais pode-se escolher outra hora mais conveniente, para que os fiéis
possam reunir-se com mais facilidade: por exemplo, desde o meio-dia até ao entardecer, mas nunca
depois das vinte e uma horas (nº 63).
- Respeite-se religiosa e fielmente a estrutura da ação litúrgica da paixão do Senhor (liturgia da palavra,
adoração da cruz e sagrada Comunhão), que provém da antiga tradição da Igreja. A ninguém é licito
introduzir lhe mudanças de próprio arbítrio (nº 64).
- O “presidente” os ministros dirigem-se para o altar em silêncio, sem canto. No caso de alguma palavra
de introdução, esta deve ser feita antes da entrada dos ministros.

21
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

146
O “presidente” e os ministros, feita a reverência ao altar, prostram-se: esta prostração, que é um rito
próprio deste dia, seja conservada diligentemente, pois significa não só a humilhação do “homem
terreno”, mas também a tristeza e a dor da Igreja.
Durante a entrada dos ministros os fiéis permanecem em pé, e depois ajoelham-se e oram em silêncio
(nº 65).
- As leituras devem ser lidas integralmente. O Salmo responsoriaI e a aclamação ao Evangelho sejam
executados no modo habitual. A história da paixão do Senhor segundo João é cantada ou lida, como
no domingo precedente (cf. n. 33). Depois da leitura da paixão, faça-se a homilia e, ao final da mesma,
os fiéis podem ser convidados a permanecer em meditação por um breve tempo (nº 66).
- A oração universal (...) expressam o valor universal da paixão de Cristo, pregado na cruz para a
salvação do mundo inteiro. Em caso de grave necessidade pública, o Ordinário do lugar pode permitir
ou estabelecer que se acrescente alguma intenção especial. É consentido ao sacerdote escolher, entre
as intenções propostas no Missal, aquelas mais adequadas às condições do lugar, contanto que se
mantenha a ordem das intenções, indicada para a oração universal (nº 67).
- A cruz a ser apresentada ao povo seja suficientemente grande e artística. Das duas formas indicadas
no Missal para este rito, escolha-se a mais adequada. Este rito deve ser feito com um esplendor digno
da glória do mistério da nossa salvação: tanto o convite feito ao apresentar a cruz como a resposta dada
pelo povo sejam feitos com o canto. Não se omita o silêncio reverente depois de cada uma das
prostrações, enquanto o sacerdote celebrante, permanecendo de pé, mostra elevada a cruz (nº 68).
- Apresente-se a cruz à adoração de cada um dos fiéis, porque a adoração pessoal da cruz é um elemento
muito importante desta celebração. No caso de uma assembleia muito numerosa, use-se o rito da
adoração feita contemporaneamente por todos.
Use-se uma única cruz para a adoração, tal como o requer a verdade do sinal. Durante a adoração da
cruz (...) cânticos adequados (cf. n. 42). (nº 69).
- “O que preside” canta a introdução ao Pai-Nosso, que é cantado por toda a assembleia. Não se dá o
sinal da paz.
A Comunhão é distribuída segundo o rito descrito no Missal. Durante a Comunhão pode-se cantar o
Salmo, ou outro cântico apropriado. Concluída a distribuição da Comunhão, a âmbula é levada para o
lugar já preparado fora da igreja (nº 70).
- Depois da Comunhão procede-se à desnudação do altar, deixando a cruz no centro, com quatro
castiçais. Disponha-se na igreja um lugar adequado (por exemplo, a capela da reposição da Eucaristia
na Quinta-feira Santa), para colocar ali a cruz, a fim de que os fiéis possam adorá-la, beijá-la e
permanecer em oração e meditação (nº 71).
- Pela sua importância pastoral, sejam valorizados os pios exercícios, como a Via-sacra, as procissões
da paixão e a memória das dores da bem-aventurada Virgem Maria. Os textos e os cânticos destes pios
exercícios correspondam ao espírito litúrgico deste dia. O horário desses pios exercícios e o da
celebração litúrgica sejam de tal modo dispostos, que apareça claro que a ação litúrgica, por sua mesma
natureza, está acima dos pios exercícios (nº 72).

147
SÁBADO SANTO
“Com a alegria do Espírito Santo e cheios do desejo espiritual, esperemos a santa páscoa” (Regra de
São Bento, 49,7)

Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das festas pascais22.

O SÁBADO SANTO
73. Durante o Sábado Santo a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando a sua paixão e morte,
a sua descida aos infernos, e esperando na oração e no jejum a sua ressurreição. Recomenda-se com insistência
a celebração do oficio da leitura e das laudes com a participação do povo (cf. n. 40). Onde isto não é possível,
prepare-se uma celebração da palavra ou um pio exercício que corresponda ao mistério deste dia.
74. Podem ser expostas na igreja, para a veneração dos fiéis, a imagem de Cristo crucificado ou deposto no
sepulcro, ou uma imagem da sua descida aos infernos, que ilustra o mistério do Sábado Santo, bem como a
imagem da Santíssima Virgem das Dores.
75. Neste dia a Igreja abstém-se absolutamente do sacrifício da missa. A sagrada Comunhão só pode ser dada
como viático. Não se conceda a celebração de matrimônios nem a administração de outros sacramentos, exceto
os da Penitência e da Unção dos Enfermos.
76. Os fiéis sejam instruídos sobre a natureza particular do Sábado Santo. Os usos e as tradições de festa
vinculados com este dia por causa da antiga antecipação da vigília para o Sábado Santo devem ser transferidos
para a noite ou para o dia da Páscoa.

Sentido teológico-litúrgico
● A este dia acrescenta-se porém, algumas peculiaridades: veneração do repouso de Jesus no sepulcro
e sua descida aos infernos e seu misterioso encontro com todos os que esperavam que se abrissem
as portas do céu, como indica a carta do apóstolo Pedro (1Pd 3,19-20; 4,6).
● Descendo à mansão dos mortos, Jesus se solidariza com os mortos (é a solidariedade última com
as pessoas que devem ser salvas).
● A descida à mansão dos mortos não é separada da ressurreição, mas, ao contrário, sublinha a
verdade da vida nova de Jesus, pois sublinha a verdade da sua morte.
Descer à mansão dos mortos é equivalente a enfrentar a morte, na esperança de que o Pai a vencerá,
não somente para ele, mas para todos. “Descer à mansão dos mortos é esperar contra toda esperança
que Deus enfrentará o irremediável”.
A descida à mansão dos mortos não indica tanto a realidade da morte de Jesus quanto a inauguração
da sua vitória sobre a morte.
● “Confessar que Jesus desceu à mansão dos mortos” equivale a confessar um evento salvífico que
ilumina também hoje a situação das pessoas diante de Deus e as livra (Bergamini, p. 341-344).
Ritualidade
- A liturgia das horas, com o ofício das leituras, as laudes, a hora média e as vésperas, atualmente é o
elemento principal que caracteriza e santifica este dia.
- Os salmos escolhidos, rezados em sentido cristão, relacionam-se com o mistério de Cristo no sepulcro
e com o seu abandono total ao Pai, que lhe dará a completa vitória sobre a morte com a ressurreição
dos mortos (Salmos 4, 16 (15), 24 (23), 64 (63); Cântico de Isaías 38,10-14.17-20; Salmos 27 (26), 30
(29), 116 (115) e 143 (142).
- As antífonas orientam os salmos em relação aos mistérios de Cristo no sepulcro: Exemplos:
“Adormeço tranquilo e repousarei na paz”. “O inocente, o Senhor, foi morto”; “Ó morte, serei a tua
morte”...
- Os responsórios constituem uma contemplação de Cristo sepultado.

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Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

148
- As leituras do ofício das leituras (Hebreus 4,1-16 e Homilia do grande Sábado Santo), tratam do
mistério recordado nesse dia.
- A oração lembra o batismo e faz referência a Cristo sepultado e pede para que sejamos participantes
com ele na glória da ressurreição.
● Realizar o Ofício das leituras, das laudes (manhã) com a participação do povo.
● Realizar uma celebração da Palavra.
● Venerar a imagem de Cristo crucificado.
● Passar o dia em silêncio e em profunda comunhão com o Senhor que desce à mansão dos mortos
em solidariedade com os mortos. Vencendo a morte Ele nos arranca das trevas e nos traz vida nova.
● Retirar-se ao deserto, a fim de permanecer só diante de Deus em oração silenciosa, de pura escuta.
Atitude espiritual
● Somos convidados a viver no silêncio profundo e na meditação.
● Todo fiel e convidado à “contemplação, nutrindo o coração com os afetos sugeridos pela Liturgia
das Horas: a tranquilidade na paz de Deus, o repouso na esperança, a plena confiança na palavra
de Deus, a certeza do cumprimento das promessas divinas e o abandono ao julgamento de Deus:
ele glorificará o justo e lhe dará a plenitude de vida” (Bergamini, p. 348).
● É um chamado para retirar-se ao deserto, a fim de permanecer só diante de Deus em oração
silenciosa, de pura escuta. Deve ser um dia de intensa fé e forte esperança.
● É marcante a figura de Maria que permanece confiante e cheia de fé, junto da cruz: “em seu grande
coração recolhia-se toda a vida do corpo místico, do qual, sob a cruz, ela fora chamada a ser a mãe
espiritual. Enquanto a fé se escurecia em todos, ela, a primeira alma fiel, permaneceu sozinha
mantendo viva a chama, imóvel na escuridão da fé (é esta a razão pela qual o sábado torna-se o dia
de Nossa Senhora).

VIGÍLIA PASCAL
Páscoa da Ressurreição
“A Vigília pascal, na noite santa em que o Senhor ressuscitou, seja considerada a ‘mãe de todas as
santas vigílias’, na qual a Igreja espera, velando, a Ressurreição de Cristo, e a celebra nos sacramentos.
Portanto, toda a celebração desta sagrada Vigília deve realizar-se à noite, de tal modo que comece
depois do anoitecer ou termine antes da aurora do domingo” (Normas Universais do Ano Litúrgico,
21).
Na vigília pascal da noite santa, propõem-se sete leituras do Antigo Testamento, que lembram as
maravilhas de Deus na história da salvação, e duas do Novo, a saber, o anúncio da ressurreição, segundo
os três evangelhos sinóticos, e a leitura apostólica sobre o batismo cristão como sacramento da
ressurreição de Cristo. ” (Normas Universais do Ano Litúrgico, 99).
“Segundo uma antiquíssima tradição, esta noite é “em honra do Senhor”, e a vigília que nela se celebra,
comemorando a noite santa em que o Senhor ressuscitou, deve ser considerada como “mãe de todas as
santas vigílias”. Nesta vigília, de fato, a Igreja permanece à espera da ressurreição do Senhor e celebra-
a com os sacramentos da iniciação cristã.
Significado da característica noturna da vigília pascal
“Toda a vigília pascal seja celebrada durante a noite, de modo que não comece antes do anoitecer e
sempre termine antes da aurora de domingo”. Esta regra deve ser interpretada estritamente. Qualquer
abuso ou costume contrário, às vezes verificado, de se antecipar a hora da celebração da vigília pascal
para horas em que, habitualmente, se celebram as missas vespertinas antes dos domingos, deve ser
reprovado. As razões apresentadas para antecipar a vigília pascal, como por exemplo a insegurança
pública, não se têm em conta no caso da noite de Natal ou de reuniões que se realizam de noite.
A vigília pascal, na qual os judeus esperaram a passagem do Senhor que os libertaria da escravidão do
Faraó, foi por eles observada como memorial a ser celebrado todos os anos; era a figura da futura e
verdadeira Páscoa de Cristo, isto é, da noite da verdadeira libertação, na qual Jesus rompeu o inferno,
ao ressurgir da morte vencedor”.
149
Desde o início a Igreja tem celebrado a Páscoa anual, solenidade das solenidades, com uma vigília
noturna. Com efeito, a ressurreição de Cristo é o fundamento da nossa fé e da nossa esperança, e por
meio do Batismo e da Confirmação fomos inseridos no mistério pascal de Cristo: mortos, sepultados e
ressuscitados com Ele, com Ele também havemos de reinar. Esta vigília é também espera da segunda
vinda do Senhor. ” (A preparação e celebração das festas pascais, 77-80).
1. A estrutura da vigília pascal e a importância dos seus elementos e das suas partes e (seu sentido
teológico) (da Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das festas
pascais)23.
81. A vigília tem a seguinte estrutura: depois do lucernário e da proclamação da Páscoa (primeira
parte da vigília), a santa Igreja contempla as maravilhas que Deus operou em favor do seu povo desde
o início (segunda parte ou liturgia da Palavra), até ao momento em que, com os seus membros
regenerados pelo Batismo (terceira parte), é convidada à mesa, preparada pelo Senhor para o seu povo,
memorial da sua morte e ressurreição, à espera da sua nova vinda (quarta parte). Esta estrutura dos ritos
por ninguém pode ser mudada arbitrariamente.
82. A primeira parte compreende ações simbólicas e gestos, que devem ser realizados com tal
dignidade e expressividade, de maneira que os fiéis possam verdadeiramente compreender o
significado, sugerido pelas advertências e orações litúrgicas. Na medida em que for possível, prepare-
se fora da igreja, em lugar conveniente, o braseiro para a bênção do fogo novo, cuja chama deve ser tal
que dissipe as trevas e ilumine a noite. Prepare-se o círio pascal que, no respeito da veracidade do sinal,
“deve ser de cera, novo cada ano, único, relativamente grande, nunca artificial, para poder recordar que
Cristo é a luz do mundo. A bênção do círio seja feita com os sinais e palavras indicados no Missal ou
por outros aprovados pela Conferência Episcopal.
83. A procissão com que o povo entra na igreja deve ser iluminada unicamente pela luz do círio pascal.
Assim como os filhos de Israel eram guiados de noite pela coluna de fogo, assim também os cristãos,
por sua vez, seguem a Cristo ressuscitado. Nada impede que, a cada resposta Demos graças a Deus!
Se acrescente outra aclamação dirigida a Cristo. A luz do círio pascal passará, gradualmente, às velas
que os fiéis têm em suas mãos, permanecendo ainda apagadas as lâmpadas elétricas.
84. O diácono faz a proclamação da Páscoa, magnífico poema lírico que apresenta todo o mistério
pascal inserido na economia da salvação. Se necessário, ou por falta de diácono ou por impossibilidade
“do que preside”, tal proclamação seja confiada a um cantor. As conferências episcopais podem adaptar
convenientemente esta proclamação, introduzindo nela algumas aclamações da assembleia.
85. As leituras da Sagrada Escritura formam a segunda parte da vigília. Elas descrevem os
acontecimentos culminantes da história da salvação, que os fiéis devem poder tranquilamente meditar
por meio do canto do Salmo responsorial, do silêncio e da oração do celebrante. O renovado Ordo da
vigília compreende sete leituras do Antigo Testamento, tomadas dos livros da lei e dos profetas, já
utilizadas com frequência nas antigas tradições litúrgicas tanto do Oriente como do Ocidente; e duas
leituras do Novo Testamento, tomadas das cartas dos apóstolos e do Evangelho. Desta maneira, a Igreja
“começando por Moisés e seguindo pelos profetas”, interpreta o mistério pascal de Cristo. Portanto, na
medida em que for possível, leiam-se todas as leituras de maneira que se respeite completamente a
natureza da vigília pascal, que exige uma certa duração. Todavia, onde as circunstâncias de natureza
pastoral exigem que se reduza ainda o número das leituras, leiam-se ao menos três do Antigo
Testamento, a saber, dos livros da lei e dos profetas; nunca se pode omitir a leitura do capítulo 14 do
Êxodo, com o seu cântico.
86. O significado tipológico dos textos do Antigo Testamento tem as suas raízes no Novo, e aparece
sobretudo na oração pronunciada pelo celebrante depois de cada uma das leituras; para chamar a
atenção dos fiéis, poderá ser também útil uma breve introdução para que compreendam o significado
das mesmas. Tal introdução pode ser feita pelo próprio “presidente” ou pelo diácono. As Comissões
litúrgicas nacionais ou diocesanas poderão cuidar da preparação de subsídios oportunos, que sirvam de

23
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

150
ajuda aos pastores. Depois da leitura canta-se o salmo com a resposta do povo. Na repetição destes
diversos elementos mantenha-se um ritmo que possa favorecer a participação e a devoção dos fiéis.
Evite-se com todo o cuidado que os salmos sejam substituídos por canções populares.
87. No final das leituras do Antigo Testamento canta-se o Glória a Deus, tocam-se os sinos segundo
os usos locais, pronuncia-se a oração e passa-se às leituras do Novo Testamento. Lê-se a exortação do
apóstolo sobre o Batismo, entendido como inserção no mistério pascal de Cristo.
Depois, todos se levantam: “O que preside” entoa por três vezes o Aleluia, elevando gradualmente a
voz, e o povo repete-o. Se necessário, o sal mista ou um cantor entoa o Aleluia, que o povo prossegue
intercalando a aclamação entre os versículos do Salmo 117, tantas vezes citado pelos apóstolos na
pregação pascal. Por fim, com o Evangelho é anunciada a ressurreição do Senhor, como ápice de toda
a liturgia da Palavra. Não se deve omitir a homilia, ainda que seja breve.
88. A terceira parte da vigília é constituída pela liturgia batismal. A Páscoa de Cristo e nossa é agora
celebrada no sacramento. Isto pode ser expresso de maneira mais completa nas igrejas que têm a fonte
batismal, e sobretudo quando tem lugar a iniciação cristã dos adultos ou, pelo menos, o batismo de
crianças. Mesmo que não haja a cerimônia do Batismo, nas igrejas paroquiais deve-se fazer a bênção
da água batismal. Quando esta bênção não é feita na fonte batismal mas no presbitério, num segundo
momento a água batismal seja levada ao batistério, onde será conservada durante todo o tempo pascal
(...)
89. Em seguida tem lugar a renovação das promessas batismais, introduzida com uma palavra do
celebrante. Os fiéis, de pé e com as velas acesas na mão, respondem às interrogações.
Depois eles são aspergidos com a água: desse modo, gestos e palavras recordam-lhes o Batismo
recebido. O “que preside” asperge o povo passando pela nave da igreja, enquanto todos cantam a
antífona (...) um cântico de caráter batismal.
90. A celebração da Eucaristia forma a quarta parte da vigília e o seu ápice, sendo de modo pleno o
sacramento da Páscoa, ou seja, memorial do sacrifício da cruz e presença de Cristo ressuscitado,
consumação da iniciação cristã e antegozo da Páscoa eterna.
91. Recomenda-se não celebrar apressadamente a liturgia eucarística; é muito conveniente que todos
os ritos e as palavras que os acompanham alcancem toda a sua força expressiva: a oração universal,
mediante a qual os neófitos participam pela primeira vez como fiéis e exercem o seu sacerdócio real;
a procissão das oferendas, com a participação dos neófitos, se estiverem presentes; a oração eucarística
primeira, segunda ou terceira, possivelmente cantada, (...); a comunhão eucarística, que é o momento
da plena participação no mistério celebrado. Durante a Comunhão é oportuno’ cantar o Salmo 117,
com a antífona Cristo, nossa Páscoa, ou o Salmo 33, com a antífona Aleluia, Aleluia, Aleluia, ou outro
cântico de júbilo pascal.
92. É muito desejável que na comunhão da vigília pascal se alcance a plenitude do sinal eucarístico,
recebido sob as espécies do pão e do vinho. O ordinário do lugar julgue sobre a oportunidade desta
concessão e das suas modalidades.
2. Leituras Bíblicas:
Entre as leituras do Antigo e do Novo Testamento canta-se o hino do glória.
Gn 1,1.26-31 a - Sl 104(103);
Gn 22,1-2.9ª10-13.15 - Sl 16 (15);
Ex 14,15 – 15,1 - Ex 15;
Is 54,5-14 - Sl 30 (29)
Is 55,1-11 – Is 12
Br 3,9-15.32-38; 4,4 – Sl 19(18)
Ez 36,16-17a.18-28 – Sl 42 (41)
Rm 6,3-11
Ano A: Mt 28,1-10; Ano B: Mc 16,1-7; Ano C: Lc 24,1-12
3. Atitude espiritual
De pessoas dispostas a proclamar com Cristo, vencedor da morte que a vida é mais forte. Ó
morte, onde está tua vitória? Cristo ressuscitou e com Ele nós ressuscitamos.

151
4. Lembretes:
- A equipe de liturgia tem o papel de preparar bem a vigília pascal e de ajudar a comunidade a
entender sua importância e sentido.
- É importante pensar bem o horário da vigília para que não comece antes do pôr-do-sol. Em alguns
lugares, ela tem início à meia-noite ou de madrugada, fazendo o aleluia da ressurreição coincidir
com o nascer do sol.
- A cor sugerida pelo diretório litúrgico é o branco ou o amarelo, mas se poderia fazer outras
tentativas, no sentido de buscar uma maior inculturação das cores na liturgia.
- Um elemento a valorizar na vigília é a abertura ecumênica e macro-ecumênica. Dar à noite da
páscoa uma dimensão cósmica e universal, alargando suas fronteiras para uma comunhão maior com
as Igrejas, com as religiões e culturas diferentes, com os excluídos da sociedade e da Igreja. No início
da celebração (ao redor da fogueira), esse elemento poderia ser explicitado num rito de convocação
de todo o universo, de todos os povos e culturas para celebrar a páscoa de Deus no mundo.
- A liturgia da luz e do fogo tem uma densidade e eficácia própria. Para que cumpra seu papel, urge
tomar alguns cuidados, tais como: preparar uma fogueira para o começo da celebração; prever o círio
pascal e enfeitá-lo convenientemente; deixar disponíveis estilete e pavio para acender; prever velas
para todos.
- A solene proclamação pascal constitui uma característica própria desta noite. É um texto antigo,
também chamado de exultet (porque na sua versão em latim começa com a palavra exulte), muito
poético e comovente. Convém que a pessoa que irá cantá-lo ou proclamá-lo se prepare para que
constitua um momento forte da celebração.
- A liturgia da palavra poderia se revestir de um estilo bem mais narrativo e cênico, de modo
que as memórias das páscoas do passado e as da nossa história atual apareçam aos olhos e ao coração
da assembleia como o contar de uma história que Deus fez com o seu povo. Seria muito bom se esta
parte da celebração não fosse algo pesado e cansativo.
- A celebração da vigília certamente será enriquecida com a celebração dos sacramentos de
iniciação cristã. Caso não aconteça, não se omita a renovação do batismo de toda a comunidade, a ser
feitos solenemente.
- É conveniente dar à celebração uma dimensão de refeição e ceia. Caso haja celebração eucarística,
prever a comunhão sob as duas espécies. Onde for possível, as pessoas podem se reunir em torno da
mesa. A comunidade pode estender, o convívio depois da ceia, repartindo algum alimento festivo.
- Os cantos expressam o mistério celebrado: Exulte de alegria, H2, p. 143-144; Veja Salmos, H2, p.
43,62,18,60,27,61,20,30,65,67; Ladainha, H2, p. 192-194; Cristo nossa páscoa, H2, p. 127; Bênção
da água, Dia do Senhor, p. 386.
5. Recomendações de Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das
festas pascais24.
- A liturgia da vigília pascal seja realizada de modo a poder oferecer ao povo cristão a riqueza dos ritos
e das orações; é importante que seja respeitada a verdade dos sinais, se favoreça a participação dos fiéis
e seja assegurada a presença de ministros, leitores e cantores (nº 93).
- Ao anunciar a vigília pascal, evite-se apresentá-la como o último ato do Sábado Santo. Diga-se antes
que a vigília pascal se celebra “na noite da Páscoa” e como um único ato de culto. Recomenda-se
encarecidamente aos pastores insistir na formação dos fiéis sobre a importância de se participar em
toda a vigília pascal (nº 95).

24
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

152
- Para poder celebrar a vigília pascal com o máximo proveito, convém que os próprios pastores
adquiram um conhecimento melhor tanto dos textos como dos ritos, a fim de poderem dar uma
mistagogia que seja autêntica (nº 96).

2.9 O TEMPO PASCAL

“Com a alegria do Espírito Santo e cheios do desejo espiritual, esperemos a santa páscoa” (Regra de
São Bento, 49,7)

Sentido teológico-litúrgico
● Os cinquenta dias do tempo pascal são como “um só dia”, “um grande domingo” (Santo Atanásio),
onde prolongamos o aleluia, dando graças ao Senhor (aleluia é palavra hebraica que significa dar
graças) porque ressuscitou Jesus, e porque nos insere neste mistério de vida.
● A alegria da festa pascal prolonga-se por cinquenta dias.
● Nos primeiros três domingos, fazemos isso contemplando o testemunho da experiência que as
discípulas e os discípulos tiveram do Senhor ressuscitado. A celebração comunitária em assembleia
é o lugar privilegiado do encontro.
● A partir do 4º domingo a comunidade se organiza para dar continuidade à missão de Jesus,
assumindo o mesmo projeto que o levou a dar a sua vida. A comunidade é chamada a enfrentar a
perseguição e o sofrimento.
Ritualidade
● A característica mais destacada do tempo pascal é a alegria. A cor branca, as flores, tudo é orientado
para expressar o sentimento de festa.
● O círio pascal, que pode estar nas celebrações do batismo, durante os cinquenta dias da páscoa, está
no centro das nossas celebrações como sinal do Cristo vivo, ressuscitado, luz de nossas vidas. É
importante que ele seja bem bonito e enfeitado. Ele pode ser aceso e incensado no início da
celebração, enquanto a assembleia canta um refrão que evoque o sentido do gesto. A comunidade
pode ser convidada a se aproximar do círio, ou a estender a mão em direção a ele, durante a
profissão de fé, nas preces e na bênção final.
● Uma das expressões mais fortes é o “aleluia”, palavra hebraica que significa simplesmente “louvor
a Deus”. É o canto novo da vitória do Cristo e das comunidades dos filhos e filhas de Deus.
● As flores ligam a páscoa com a natureza, sempre superando a hostilidade do tempo e irrompendo
com força de vida e encanto.
● A água batismal, consagrada na noite da páscoa, permanece neste tempo como lembrança do
batismo e da nossa recriação em Cristo. É bom que seja colocada em lugar de destaque, de
preferência na pia batismal devidamente ornamentada, se possível, e junto ao círio. É importante
também que seja elemento de todas as celebrações da páscoa. O rito da água, no tempo pascal, mais
do que um sentido penitencial, faz memória do batismo e pode, às vezes, tomar lugar na profissão
de fé.
● Que tal valorizar os cinquenta dias da páscoa para as crismas e primeiras comunhões, numa
continuidade com a noite batismal da páscoa?
● A última semana da páscoa é consagrada pelas Igrejas como tempo de oração pela unidade dos
cristãos.
Cabe à equipe de liturgia procurar ligar o tempo pascal com as demais celebrações e
acontecimentos que acontecem neste tempo (mês de Maria, casamentos, dia das mães, etc.),
procurando dar uma dimensão pascal a estas liturgias.
Atitude espiritual
● Alegria. Certeza da vitória da vida.
● Compromisso com a construção da vida.

153
Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das festas pascais25.
O TEMPO PASCAL
100. A celebração da Páscoa continua durante o tempo pascal. Os cinquenta dias que vão do domingo
da Ressurreição ao domingo de Pentecostes são celebrados com alegria como um só dia festivo, antes
como “o grande domingo”.
101. Os domingos deste tempo devem ser considerados como “domingos de Páscoa” e têm precedência
sobre qualquer festa do Senhor e qualquer solenidade. As solenidades que coincidem com estes
domingos são celebradas no sábado anterior. As festas em honra da bem-aventurada Virgem Maria ou
dos santos, que ocorrem durante a semana, não podem ser transferidas para estes domingos.
102. Para os adultos que receberam a iniciação cristã na vigília pascal, todo este tempo é reservado à
mistagogia. Portanto, onde houver neófitos, observe-se tudo o que é indicado no Rito da Iniciação
cristã dos adultos, n. 37-40 e 235-239. Faça-se sempre, na oitava da Páscoa, a oração de intercessão
pelos neo-batizados, inserida na oração eucarística.
103. Durante todo o tempo pascal, nas missas dominicais, os neófitos tenham reservado um lugar
especial entre os fiéis. Procurem eles participar nas missas juntamente com os seus padrinhos. Na
homília e, segundo a oportunidade, na oração universal, faça-se menção deles.
No encerramento do tempo da mistagogia, nas proximidades do domingo de Pentecostes, faça-se
alguma celebração segundo os costumes da própria região. Além disso, é muito oportuno que as
crianças recebam a sua Primeira Comunhão nestes domingos pascais.
104. Durante o tempo pascal os pastores instruam os fiéis, que já fizeram a Primeira Comunhão, sobre
o significado do preceito da Igreja de receber neste tempo a Eucaristia. Recomenda-se, sobretudo na
oitava da Páscoa, que a sagrada Comunhão seja levada aos doentes.
105. Onde houver o costume de benzer as casas por ocasião das festas pascais, tal bênção seja feita
pelo pároco ou por outros sacerdotes ou diáconos por ele delegados. É esta uma ocasião preciosa para
exercitar o múnus pastoral. O pároco faça a visita pastoral a cada família, tenha um colóquio com os
seus membros e ore brevemente com eles, usando os textos contidos no Ritual das Bênçãos. Nas
grandes cidades veja-se a possibilidade de reunir mais famílias, para juntas celebrarem o rito da bênção.
106. Segundo a diversidade dos lugares e dos povos, existem muitos costumes populares vinculados
com as celebrações do tempo pascal, que às vezes suscitam maior participação popular que as mesmas
celebrações litúrgicas; tais costumes não devem ser desprezados, e podem muitas vezes manifestar a
mentalidade religiosa dos fiéis. Por isso, as conferências episcopais e os ordinários do lugar cuidem de
que estes costumes, que podem favorecer a piedade, possam ser ordenados do melhor modo possível
com a liturgia, estejam impregnados do seu espírito e a ela conduzam o povo de Deus.

2.10 PENTECOSTES. O que é Pentecostes?


Pentecostes vem da palavra grega pentekosté e significa quinquagésimo.
Era para os judeus uma festa de grande alegria, pois era a festa das colheitas. Ação de graças pela
colheita do trigo. Vinha gente de toda a parte: judeus saudosos que voltavam a Jerusalém, trazendo
também pagãos amigos e prosélitos. Eram oferecidas as primícias das colheitas no templo. Era também
chamada festa das sete semanas por ser celebrada sete semanas depois da festa da páscoa, no
quinquagésimo dia. Daí o nome Pentecostes, que significa "quinquagésimo dia".
A celebração de pentecostes nas comunidades cristãs
Tudo parece indicar que a festa hebraica de Pentecostes não teve influência importante nas
celebrações cristãs. Porém a Ascensão de Jesus ao céu e o envio do Espírito Santo não podiam ser
ignorados como eventos específicos.

25
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

154
No início, Ascensão e Pentecostes costumavam ser celebrados contemporaneamente, baseando-
se justamente nas palavras do próprio Jesus que convidavam a ligar os dois acontecimentos. Com
efeito, em João (16,7), Jesus anuncia a sua partida e ao mesmo tempo, mas condicionado a esta partida,
o envio do Espírito Santo. Era normal celebrar com mais solenidade o último dia da quinquagésima
pascal.
A duração de cinquenta dias da páscoa, inspirada na tradição veterotestamentária, constitui,
porém, a novidade radical da festa cristã. Pentecostes significou, desde muito cedo, um período de
cinquenta dias e não uma festa particular. Ao jejum pré-pascal seguem os cinquenta dias de solenidade
e alegria nos quais nem sequer se permite rezar de joelhos. Ressoava em cada reunião litúrgica o cântico
triunfal do aleluia.
Num antigo texto, Tertuliano (final do século II e início do III) expressa o sentido dos cinquenta
dias: “é o espaço gozoso no qual a ressurreição do Senhor foi manifestada entre os discípulos, e a graça
do Espírito Santo foi revelada...”
Nos três primeiros séculos aparece com suficiente clareza que, para as Igrejas da Ásia menor,
África, Roma ou da Gália, assim como também do Egito, pentecostes e seu significado são um fato
universal. A páscoa inaugura em todos os lugares um tempo de festa de sete semanas que se assemelha
a um grande domingo que recebe o nome de pentecostes, vindo a ser a páscoa prolongada.
O quinquagésimo dia começa a assumir autonomia litúrgica própria no início do século IV,
quando, durante a Vigília de Pentecostes, celebrada com a mesma solenidade da Vigília pascal, em
Roma, eram realizados os sacramentos da iniciação cristã. A Vigília vai sendo organizada tomando
como modelo a Vigília pascal, com várias leituras, que tem seu coroamento na celebração eucarística.
O pentecostes tornou-se então a festa do Espírito Santo, aniversário de sua vinda sobre os apóstolos.
Tudo isto foi acontecendo sem uma rigorosa conexão com o tempo pascal e o sentido da páscoa.
No fim do século V ou no século VI para todas as igrejas, pentecostes perdera seu caráter de
conclusão da páscoa, passando a ser uma grande festa do ano litúrgico. A partir do século VII,
prevalecerá esta teologia, inclusive com uma oitava à festa de Pentecostes, com uma celebração dos
sete dons do Espírito Santo.
A celebração de pentecostes hoje
A renovação litúrgica proposta pelo Concílio Vaticano II resgatou a mais antiga tradição da
celebração de pentecostes: o encerramento da quinquagésima pascal. O mistério pascal é celebrado
como um todo (morte, ressurreição, ascensão, envio do Espírito).
O Concílio suspendeu a oitava do Espírito Santo e a semana anterior a Pentecostes por um
tempo que sublinham a espera do Espírito Santo. Foi conservada a Vigília de Pentecostes, no sentido
de celebração da espera do Espírito Santo.
O tempo pascal é tempo de mistagogia para os iniciados (RICA – Ritual de Iniciação Cristã dos
Adultos).
Pentecostes celebra a presença de Jesus entre os seus depois da ressurreição em perspectiva
escatológica.
O domingo de Pentecostes (na qual desemboca todo o tempo pascal) recorda o Espírito Santo,
Dom do Pai, Amor de Deus derramado sobre nós, condição de nossa comunhão no Cristo Ressuscitado,
fonte da transformação pascal de toda a realidade. Esta festa ativa em cada um de nós a vocação e a
capacidade para o encontro, para o amor, para a união, para a doação, como pede a aclamação ao
evangelho: “Vinde, Espirito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso
amor”. Não é o amor a força fundamental e única capaz de unir pessoas e povos de diferentes visões
políticas, credos e culturas? A força secreta de comunhão presente no âmago do universo e que levará
tudo e todos a se encontrar em Deus?
Vários elementos rituais medeiam o mistério celebrado: leituras bíblicas, cantos (por exemplo, a
sequência de Pentecostes), a cor vermelha, em alguns lugares também a fogueira e a bandeira do
Divino, o abraço da paz, a semana de oração pela unidade dos cristãos...
Traços fundamentais da celebração de pentecostes

155
- Efusão do Espírito Santo – “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi dado” (Rm 5,5).
- Coroamento da páscoa de Cristo – A pentecostes é a plenitude da páscoa, o mistério pascal total.
- Tempo da Igreja – A comunidade cristã é presença e prolongamento do Cristo ressuscitado.
- Comunidade aberta a todos os povos – O testemunho é levado até as extremidades da terra.
- Partida para a missão – Reunião da comunidade e ponto de partida para a missão.
Carta Circular Paschalis Sollemnitatis – A preparação e celebração das festas pascais26.
107. O domingo de Pentecostes conclui este sagrado período de cinquenta dias, quando se comemora
o dom do Espírito Santo derramado sobre os apóstolos, os primórdios da Igreja e o início da sua missão
a todos os povos, raças e nações. Recomenda-se a celebração prolongada da missa da vigília, que não
tem um caráter batismal como a vigília da Páscoa, mas de oração intensa segundo o exemplo dos
apóstolos e discípulos, que perseveravam unânimes em oração juntamente com Maria, a Mãe de Jesus,
esperando a vinda do Espírito Santo.
108. “É próprio da festividade pascal que toda a Igreja se alegre pelo perdão dos pecados, concedido
não só àqueles que renascem no santo Batismo, mas também aos que há tempo foram admitidos no
número dos filhos adotivos”. Mediante uma atividade pastoral mais intensa e maior empenho espiritual
da parte de cada um, com a graça do Senhor, será possível a todos os que tenham participado nas festas
pascais testemunhar na vida o mistério da Páscoa celebrado na fé.
Livros e artigos consultados:
BERGAMINI, Augusto. Domingo. In: Cristo, festa da Igreja: história, teologia, espiritualidade e
pastoral do ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994. 506, p.
BELLAVISTA, J. A quinquagésima pascal.121-141. In: BORÓBIO, Dionísio (Org.). A celebração na
Igreja: ritmos e tempos. São Paulo: Loyola, 2000. v. 3, p. 67-91.
BUYST, Ione. O ano litúrgico, um caminho espiritual. Texto elaborado por Ione Buyst, para a Semana
de Liturgia, realizada em outubro de 2002, em São Paulo.

FESTAS DO SENHOR
A liturgia é sempre memória da páscoa do Cristo, seja em cada domingo, seja nas festas do Senhor
que fazem parte dos ciclos do ano litúrgico e seja nas demais festas do Senhor que ocorrem ao longo
do ano litúrgico Nas festas do Senhor, as comunidades cristãs aprofundam aspectos da vida do Cristo
ou títulos do Senhor que não entram nos ciclos do ano litúrgico. - O aniversário da dedicação de uma
igreja é considerado festa do Senhor.
Sentido teológico-litúrgico. Ritualidade Atitude espiritual Dim,
antropol,
soc, cósm.

26
Congregação do Culto Divino, 16 de janeiro de 1988.

156
F Na diversidade das festas do Cor branca Ao celebrarmos cada Jesus de
E Senhor, revela-se a multiforme Textos bíblicos e uma destas festas, Nazaré,
S graça de Cristo e do seu mistério orações contemplamos a A
T manifestado em nossa história. Música insondável riqueza do manifestação
A Tornados filhos e filhas de Deus Ícone do mistério mistério de Cristo, filho de Deus em
S pelo Espírito, cada batizado e querido do Pai, nossa
batizada participa da santidade de Salvador e Senhor da humanidade.
Deus, que nos deu, no Cristo, a história, revelando-se a
D graça de participarmos de sua nós como Palavra de
O comunhão. vida e caminho de
O Concílio Vaticano II deu a ressurreição.
S todas estas festas um conteúdo
E teológico e espiritual de caráter
N mistagógico, como possibilidade
H das comunidades aprofundarem
O sua relação com o Senhor, mesmo
R as que nasceram a partir de
discussões teológicas e de
motivações devocionais, como as
festas do Corpo e Sangue do
Senhor e da Santíssima Trindade,
por exemplo.27

SANTORAL
- Toda celebração cristã, pela força da ressurreição, se realiza na comunhão dos antepassados que
viveram antes de nós o mistério da páscoa do Senhor pela entrega e consagração de suas vidas. Nosso
louvor momentâneo e frágil se reveste do vigor perene que se canta na “Jerusalém celeste, a assembleia
dos eleitos, a Igreja dos primogênitos inscritos nos céus, os espíritos dos justos e dos profetas, dos
mártires e dos apóstolos, dos anjos e dos arcanjos...”28 Além disso, há dias especialmente consagrados
à memória das testemunhas de Jesus que tiveram seus nomes inseridos no calendário da Igreja.
- Trata-se de uma relação de veneração que se traduz em amor respeitoso, admiração da sua
maturidade na fé, culto à Trindade, já que tudo neles e relaciona com o mistério de Deus em Jesus
Cristo.
- A comunidade cristã, ao celebrar a memória das testemunhas de Cristo, crucificado e
glorificado, acolhe o exemplo de suas vidas e se une à intercessão de suas preces. Não dirigimos
nosso louvor a Maria ou aos santos, mas ao Pai, por Cristo no Espírito, junto com Maria e os santos
e santas.
- Estando nós rodeados por tão grande nuvem de testemunhas, deixemos de lado tudo o que
nos atrapalha e o pecado que se agarra em nós e corramos com perseverança no Caminho, mantendo
os nossos olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé.29
- Toda a atenção pastoral deve orientar a devoção aos santos, em referência a Jesus Cristo,
propondo aos fiéis o exemplo de suas vidas e a intercessão de suas preces que nos animam e nos
sustentam no seguimento de Jesus.

27
28
Anáfora de São Tiago, oração da antiga Igreja de Jerusalém.
29
Cf. Hebreus 12,1-2.
157
Sentido teológico-litúrgico Ritualidade Atitude Dim, antropol, soc,
espiritual cósm.
A intuição da fé desde Ícone Ao O feminino de Deus
M os inícios incluiu na memória Músicas celebrar a A participação da
A da páscoa de Jesus, a memória Textos bíblicos memória da Mãe mulher nas grandes
R de sua mãe, valendo-se de sua Orações, do Senhor, causas da
I intercessão e olhando Maria antífonas... proclamemos humanidade
A como a “cheia de graça”, nela as
símbolo do Israel fiel, a Não atribuir a grandezas do
discípula grávida do Verbo, Maria, título ou Senhor que
primeira entre as(os) função própria olhou para a
discípulas(os) de Jesus, de Cristo, humilhação de
“aquela que acreditou” e que como fazem sua serva e
seguiu Jesus até o fim. certas músicas, acolhamos a
A devoção popular é o certas força amorosa
profundamente marcada pelo práticas como do Espírito que
olhar de quem busca na mãe por exemplo, nos santifica e
proteção e auxílio nas aflições incluir a ave- nos faz como
da vida, projetando sobre Maria depois ela, discípulos e
Maria grande poder de do Pai nosso discípulas fiéis
intercessão junto de Jesus, o no meio de de Jesus, atentos
poder de conseguir que a água uma e obedientes à
se transforme em vinho... A celebração, ou Palavra.
comunidade cristã, na invocar a
liturgia, não nega o poder da bênção de
oração de Maria, e até destaca Maria.
o seu lugar na assembleia dos
redimidos, mas reafirma a sua
condição de criatura em
relação a Deus e de discípula
em relação ao Cristo,
evitando atribuir a Maria
título ou função própria de
Cristo.

Sentido teológico-liturgico. Ritualidade Atitude espiritual Dim, antropol, soc,


cósm.
A Desde os primeiros tempos do Fazendo memória Eloquência do
P cristianismo tiveram lugar de Antífonas destes primeiros anúncio e do
Ó destaque na celebração litúrgica, Ícones irmãos e irmãs na fé, testemunho
S personagens como João Batista, Cor agradecemos a Deus
T o precursor de Jesus; os termos recebido a
O apóstolos, primeiros a Recordação herança de Jesus e o
L transmitirem a boa nova de da vida e testemunho das
O Jesus; os evangelistas Marcos e missão, primeiras
S Lucas e outros discípulos e comunidades.
discípulas do Senhor (cf. o Retomemos com
/ elenco abaixo). renovado vigor a fé
D Os apóstolos, fiéis aos como itinerário de
I ensinamentos de Jesus, seguimento e
S anunciaram com firmeza o consagremos toda a
C evangelho e deram o nossa vida na missão
158
I testemunho do Cristo com a de viver e anunciar o
P palavra e com a sua própria evangelho.
U vida. Os evangelistas
L recolheram e anotaram tudo
O quanto as comunidades
S lembraram a respeito de Jesus e
/ do seu ensino e nos
A transmitiram o precioso dom
S dos evangelhos. Muitos outros
discípulos e discípulas
seguiram Jesus, escutando sua
palavra, colocando-se a seu
serviço, anunciando o
evangelho e dando a vida pelo
reino.

Jesus é a testemunha fiel (Ap Ícone Honrando os Eloquência do


1,5), aquele que reconciliou Músicas mártires, testemunho
céus e terras com seu sangue Antífonas proclamamos o
derramado na cruz. Nele todos Textos cumprimento do
M os batizados e batizadas são bíblicos mistério pascal no
Á chamados a dar testemunho, supremo testemunho
R anunciando com palavras e com Recordação da fé e do amor e
T a própria vida, que Jesus é o da vida e renovemos nossa
I Senhor. martírio adesão ao Cristo.
R Toda a história da Igreja Oremos por nossa
E desde o início até nossos dias, Igreja, que o Espírito
S está marcada pelo testemunho de Deus nos dê a
dos mártires e confessores da graça de vivermos
fé. Ao recordar, o aniversário em pé de testemunho
de morte dos que haviam por causa do reino.
confessado com firmeza sua fé
em Jesus, as primeiras
gerações cristãs
testemunhavam: “Nós
adoramos Cristo qual Filho de
Deus. Quanto aos mártires, os
amamos como discípulos e
imitadores do Senhor, o que é
justo por causa da sua
incomparável devoção pelo seu
rei e mestre. Possamos nós
também ser companheiros e
condiscípulos seus”
(fragmento da ata do martírio
de Policarpo, bispo de
Esmirna).

159
Sentido teológico-liturgico. Ritualidade Atitude espiritual Dim, antropol, soc,
cósm.
No Novo Testamento a Antífonas Ao celebrar a Eloquência do
presença dos santos – Música “passagem” dos testemunho
consagrados pelo batismo – Cor santos deste mundo
S são reverenciados como Leituras ao Pai, proclamamos A intercessão dos
A imitadores de Cristo. Em bíblicas em suas vidas o santos
N Hebreus temos a imagem mistério pascal de
T eloquente de uma assembleia Recordação Cristo crucificado e
O dos primogênitos, heróis da fé da vida glorificado. Na
S que chegaram à perfeição. diversidade e
-- Como os antigos israelitas em originalidade de cada
A assembleia no Sinai, os santo busquemos a
S cristãos aproximam-se da beleza da santidade
Jerusalém celeste e formam a de Deus e oremos
assembleia mediada por Jesus para que cresça em
(Hb 12,22-24). E o nossas comunidades
Apocalipse apresenta o o desejo de trilhar os
espetáculo da Jerusalém seus caminhos.
celeste, povoada de
testemunhas, de sacerdotes de
Deus que elevam a ele
cânticos de louvor (Ap 5,9-
10).

2.11 TEMPO COMUM

I. Introdução:
1. Periodicidade do TC
● Possui 33 ou 34 semanas, entre os dois Ciclos: Natal (após batismo) e Pascal (após pentecostes).
● É o maior tempo do AL, tomando praticamente a metade do ano.
2. Cotidianidade do TC
É bom que entre um tempo e outro, entre uma festa e outra, haja um tempo comum, um período de
repouso e assimilação. Depois da festa e do extraordinário buscamos a calma como elemento de
equilíbrio e de normalidade (Penha Carpanedo, RL 118, p. 4)
● Nossa vida não é feita só de festa. Temos o semanal, o dia-a-dia. O comum da vida.
● Após a festa, vem a cotidianidade. O repouso que dá o equilíbrio da vida.
● “O Tempo Comum nos reconcilia com o normal e nos ajuda a descobrir o dia-a-dia como tempo
de salvação, segundo a promessa do ressuscitado: ‘estarei com vocês todos os dias’”.
● O Senhor se revela a nós, nos acontecimentos do dia-a-dia, em nossas vivências e cansaços, na
convivência, no trabalho... E “é aí no interior de cada dia que damos prova de nossa fidelidade” (Penha,
RL 118 (1993) p. 4).
● É o esforço de buscar, no cotidiano da vida, o mistério do Senhor acontecendo entre
experiências de morte e ressurreição.

3. O domingo: páscoa semanal (texto anexo)


4. Tempo Comum: Cristo, seu mistério e o discipulado

160
● No TC celebramos, portanto, o mistério de Cristo em sua totalidade (encarnação, vida, morte,
ressurreição e ascensão) e não um ou outro aspecto do mistério (cf. NUAL, 43). É o que o distingue
dos demais tempos.
● Por isso, a tônica recai sobre o evangelho de cada domingo. Aí temos a espiritualidade a ser
vivida durante a semana. A vida cotidiana é lida à luz do mistério do Senhor.
● Neste longo período do ano litúrgico devemos prestar especial atenção ao Lecionário tanto
dominical como semanal. É o tempo em que a comunidade cristã aprofunda na fé o mistério pascal e
sublinha as exigências morais da vida nova.
● É a tarefa cotidiana de pascalizar a vida.
● A partir da vida do Senhor, aprender dele o que significa e em que implica ser discípulo (a).
Somos educados a cada domingo.
● Como o Evangelho é o centro enquanto o que dá a tônica da espiritualidade do domingo e da
semana:
“O mistério celebrado em cada domingo, poderá ser encontrado no evangelho do dia. Junto com os
discípulos que deixaram tudo para seguir o Mestre, e junto com todo o povo que coloca nele suas
esperanças, acompanhamos Jesus na sua caminhada missionária.
Em cada um dos acontecimentos que ocorrem no caminho, Deus vau revelando o mistério de Jesus e
nós vamos sendo convidados a aderir mais profundamente, mais apaixonadamente à sua pessoa e à
sua causa. Nos acontecimentos cotidianos da vida e da caminhada de Jesus, vamos percebendo o
Mistério maior que está presente também em nossa vida, tanto nos acontecimentos extraordinários
como também naqueles que nos parecem banais e rotineiros. Em todos eles, é Deus que está presente,
é Deus que nos chama, nos fala, nos toca, nos convida ao seguimento de Jesus, nos envia como
testemunhas das realidades em que vivemos... Cada domingo é assim uma visita de Deus para nos
renovar, para libertar o seu povo, para nos unir mais e ele e entre nós” (Ione Buyst, RL 118, p. 9).
II. Os ciclos dos Evangelhos
“O Evangelho dá a cada domingo um rosto próprio. Lido à luz da páscoa, constitui-se num fato de
salvação para a comunidade que celebra. Trata-se de uma leitura quase contínua, que se harmoniza
com a primeira leitura tirada do Antigo Testamento. Contudo, esses domingos não chegam a ter uma
unidade entre si (Penha Carpanedo, RL 118, p. 4-5).
“O Concílio Vaticano II pediu que a mesa da Palavra fosse mais enriquecida, para que o povo
pudesse se alimentar também da mesa da Palavra (cf. SC 51). Dessa forma o lecionário foi
organizado em um ciclo trienal A,B,C. Cada ano é caracterizado pela leitura de um dos evangelhos
sinóticos: ano A lemos o evangelho de Mateus, no ano B o de Marcos e no ano C o de Lucas.
Há uma certa lógica igual para todos os anos:
● Domingos da memória do discipulado de Jesus - No início do tempo comum, depois do natal e
antes da quaresma lemos o início da missão de Jesus, com o chamado dos discípulos, a proposta do
Reino;
● Em seguida, vamos acompanhamos cada evangelho, quase que do começo ao fim, pulando aquelas
passagens que são lidas nos tempos fortes do ano litúrgico;
● No final do tempo comum, ouvimos as palavras de Jesus sobre o fim do mundo – o discurso
escatológico.
“Não se trata de fazer tudo centrado sempre no Evangelho, mas em cada domingo a cena evangélica
se constitui num fato de salvação, na linha do memorial, ou seja, o encontro agora é proposto à
comunidade reunida, não como tema catequético para aprender a lição, mas como relação afetuosa
e transformadora”.

161
1. Ano "A" - Mateus: O novo povo de Deus.
No ano A, ouvimos atentamente o evangelho de Mateus. O Cristo, qual novo Moisés, nos leva, em
comunidade, como Igreja, a nos despojar de nosso tradicionalismo para nos abrir ao novo que Deus vai
revelando no hoje da história; não são nossas práticas que nos salvam, mas a fé, a adesão a Cristo, a
partir de nossa pequenez, a partir de nossa pobreza (Ione Buyst).
- Comunidades de Mateus- judeus cristãos, observantes da Lei, judeus-cristãos helenistas não
apegados à Lei e ao Templo e não-judeus. (Norte da Galiléia e Síria)
● Marca a etapa da introdução às diversas experiências eclesiais.
● Ótica voltada para a constituição da igreja (perspectiva eclesiológica).
● Jesus é apresentado como:
* o Messias que veio convocar o "novo e verdadeiro Israel";
* é o Messias, descendente de Davi. Mas um Messias pobre, que vem num jumento (21,5),
sofredor (Is 53);
* é aquele que traz a Justiça divina, contra o legalismo judaico.
● Em Jesus (seus ensinamentos e obras), o plano de salvação de Deus está cumprido:
cumprimento das Escrituras.
● Portanto, a "nova criação" (1,1-18); a "nova lei", o "novo Sinai" (5,17) são a partir de Jesus.
2. Ano "B" - Marcos: Jesus, o Messias.
No ano B, Marcos é nosso guia. Coloca-nos frente a frente com Jesus Cristo que é Messias que vem
instaurar o reino de Deus, sim, porém, não de maneira clara, explícita; e não vem de forma triunfante,
mas como servo sofredor, perseguido, executado na cruz (Ione Buyst)
- Escreveu em torno do ano 70 para a comunidade da Itália ou da Síria (não se sabe)
● Constitui a experiência catecumenal da conversão.
● Ótica voltada para a pessoa de Jesus Cristo e o seguimento da igreja (perspectiva cristológica).
● Jesus é o Messias, o Filho de Deus.
● Evangelho é destinado à sua comunidade que está sendo perseguida pelo Império Romano, isto
exige do cristão uma resposta de fé: seguir Jesus = assumir sua causa: os pobres. A conseqüência de
tal decisão é a cruz.
● É o Evangelho do catecúmeno.
● Marcos procura responder a uma grande pergunta que perpassa todo o seu Evangelho: "Quem
é Jesus de Nazaré?". Contudo, não responde, deixando à comunidade tal tarefa, pois terá que fazer o
caminho do Evangelho (16,8).
Portanto, para conhecer Jesus, deve-se conhecer o que Ele fez (sua práxis). Só compreenderá quem é
Jesus, a comunidade que, conhecendo-o, passa a vivê-lo (sua pessoa e seus ensinamentos).
3 - Ano "C" - Lucas: A vida do cristão.
No ano C, é Lucas quem nos conduz; ele insiste no seguimento radical de Jesus, ensina-nos a orar, a
amar, a perdoar, a nos deixar guiar pelo Espírito, a levar em conta as mulheres, a colocar no centro
de nossa vida o acolhimento e a preocupação com os pobres...(Ione Buyst).
- Anos 80 – As comunidades em sua maioria, são compostas por gente de origem não-judaíca.
● Introduz à compreensão do mistério do reino em sua relação com a história.
● São orientações para a vida cristã.
● Ressalta a presença da Graça de Deus manifestada em Jesus, numa perspectiva de Esperança e
Confiança para vivermos os valores cristãos, sendo luzes aos olhos da humanidade.
● Jesus veio para todos, essencialmente para os pobres (4,16-22) = universalismo em Jesus.
● A Boa-Nova do Reino (Boa Notícia, Evangelho) se dirige, em primeiro lugar aos pobres e
marginalizados (toda espécie, inclusive os pecadores).
● Lucas insiste em alguns pontos como
a) no espírito de oração e contemplação (Marta/Maria);
b) no desapego (o rico insensato);
162
c) na maneira correta de praticar a caridade e a solidariedade (bom samaritano).
● É o evangelho da graça e da prática cristã, estando em íntima ligação com os Atos dos Apóstolos
(vida de Cristo/vida da Igreja).
● Evangelho da subida (caminho).
4. As leituras do Antigo e do Novo Testamento
As leituras do AT foram escolhidas sem uma ordem lógica, para que pudessem ter uma referência com
o trecho do evangelho.
Do Novo Testamento e feita a leitura semicontínuada das epístolas de Paulo e de Tiago. A 1ª carta aos
Coríntios foi distribuída nos três anos e a carta aos Hebreus foi dividida em duas partes, nos anos B e
C.
Foram escolhidas leituras breves e não difíceis para a compreensão dos fiéis.
5. Leituras na Semana
Durante a semana lê-se: Marcos (semanas I a IX), depois Mateus (semanas X a XXI), em seguida
Lucas (semanas XXII a XXXIV).
Na primeira leitura, lê-se ora o Antigo, ora o Novo Testamento.
A leitura contínua na verdade é uma construção:
a) Onde cada episódio insere-se na continuidade de uma trama, de um acontecimento e de um
pensamento que se desenvolve.
b) Permite colher o ponto de vista do evangelista, que é testemunha de Jesus, da Igreja e, por fim, tem
um sentido teológico próprio a transmitir (Bergamini, p. 418-420).

III. As orações
Nos prefácios se expressa o conteúdo do mistério de Cristo, considerados em seu conjunto, mas com
particular referência ao mistério pascal (Bergamini, p. 422).

3 LITURGIA DAS HORAS/ OFICIO DIVINO DAS COMUNIDADES


Penha Carpanedo e Mirim Borges

UMA LITURGIA DAS HORAS

Faz escuro mas eu canto (Thiago de Mello)


Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.

163
Para começo de conversa
Quando a Liturgia, em latim, separada da Palavra, sob o domínio do clero deixa de ser a norma
da fé e a fonte de espiritualidade, mantendo o povo como “mudo espectador” (cf. SC 48), o Oficio
Divino vai mais longe: se ausenta do cenário eclesial.
Depois de um milênio desta ausência, voltar a ele como “fonte de piedade” (cf. SC 90) não é
um caminho fácil. Basta constatar que 50 anos depois estamos à meia estrada de considera-lo como
nos inicios: parte estruturante da Liturgia da Igreja, celebração em vez de recitação coletiva,
contemplação gratuita do mistério nas horas, em vez de obrigação...
Antes do Concílio, o povo, em sua grande maioria entregue à própria sorte, sem ter qualquer
oportunidade de uma experiência mais profunda de evangelização e de celebração da fé, buscou nas
devoções o alimento da vida cristã. E assim se sustentou, por séculos, sua fé com as manifestações da
piedade popular.
Com o Concilio descobria-se que a vida espiritual não pode ter outra fonte que a liturgia.
Abrindo os tesouros da Palavra de Deus e colocando no centro da vida eclesial o mistério do
crucificado-ressuscitado, a reforma litúrgica oferecia um amplo material como fonte de espiritualidade.
Com essa finalidade, restaurou-se toda a liturgia da Igreja: a eucaristia e os sacramentos, o ofício divino
e o ano litúrgico, a música e a arte.
Dessa forma, a reforma devolveu ao Ofício Divino a sua condição de “oração pública e comum
do povo de Deus” [IGLH, n. 1], indicando-o como fonte de piedade [SC 90]. Para isso, houve um
verdadeiro esforço em reformar e traduzir o breviário que resultou no livro Liturgia das Horas [1971].
O Ofício das Comunidades, nesse mesmo sentido, ouvindo o apelo dos grupos de base, assumiu a
empreitada de ser uma versão popular da Liturgia das Horas, mais acessível ao povo das nossas
comunidades.
Comecemos nossa conversa com um olhar sobre a pratica do Oficio Divino e a nossa vida
pessoal e eclesial.
As nossas horas
Pensar a Liturgia das Horas é partir do tempo como sinal sensível, naquilo que o tempo tem de
mais imediato: as horas. O ponto de partida é a nossa maneira de lidar com as horas do dia.

Canto do povo de um lugar (Caetano Veloso)


Todo dia o sol se levanta
E a gente canta ao sol de todo dia.
Fim da tarde a terra cora
E a gente chora porque finda à tarde.
Quando a noite a lua mansa
E a gente dança venerando à noite.
Madrugada um céu de estrelas
E a gente dorme sonhando com dia.

Nas horas do relógio, a memória das horas de Deus


Podemos perceber as horas a partir do relógio: horas que passam, horas que não passam; hora
de chegar, hora de sair; hora de trabalhar, hora de descansar... Tentamos controlar as horas (com o
relógio), mas nós e que somos controlados/as... (Só as crianças escapam da tirania da hora marcada...).
Podemos ter outras maneiras de perceber as horas, de acordo com nossa relação com o cosmos,
com o nosso corpo, com as pessoas: hora do amanhecer e do entardecer; horas do dia e da noite; hora
de nascer e hora de morrer; hora da dor e hora da alegria; hora de solidão e hora de encontro...
Os gregos quando falavam do tempo que passa usavam a palavra kronos. Comparavam o tempo
que passa com o Deus kronos que devora os filhos, por medo do herdeiro. Se vivemos as horas apenas
como tempo que passa "nenhuma novidade surge para ficar". Mas os gregos conheciam uma outra

164
palavra: Kairós (tempo oportuno). Neste sentido, cada hora é um tempo oportuno para fazer da vida
uma travessia consciente, para estar presentes a nós mesmos, para conectar com as pessoas e o
universo...
Estruturada em base ao simbolismo do sol que ‘morre’ e ‘ressuscita’, a Liturgia das Horas ou
Oficio Divino é a expressão litúrgica que volta a nossa atenção ao mistério da hora, evocando o mistério
do Cristo morto e ressuscitado e a nossa participação neste mistério. Toda a elaboração ritual se apoia
no simbolismo do sol que nasce e se põe. Temos então, os ofícios da manhã, do meio dia, da tarde, da
noite... em cada oficio estão ligados à respectiva hora: as aberturas, os salmos, os Cânticos de Zacarias,
de Maria e de Simeão, as preces, especialmente os hinos do tempo comum. Ver alguns exemplos,
ensaiando e identificando a referência às horas.
Os ofícios da manhã e da tarde (noite) se articulam com o ritmo semanal (domingo e dias de
semana) e com o ritmo anual (tempos litúrgicos). Por isso temos ofícios do advento, natal, páscoa, etc.

3.1 DE ONDE VEM ESTE JEITO DE REZAR?

Das comunidades judaicas


Na tradição judaica a vida espiritual se estrutura segundo três ritmos: ritmo anual (festas
ligadas às estações); ritmo semanal (o shabat) e ritmo diário: manhã e tarde (cf. Deut. 6, 4-7), e
também o meio dia (cf. Dn 6, 11.14 ; SI 55,17-18), Nestas horas do dia se recita a oração do Shemá
as 18 preces e o salmos. Jesus viveu neste ambiente espiritual.
Na bíblica, a criação é vista como obra de Deus e o ritmo cósmico, manifesta a sua presença. A
alternância do dia e da noite, o nascer e o por do sol fazem crer em uma força conduzindo a historia.
“Como é certo que criei o dia e a noite e estabeleci as do céu e da terra, também é certo que não
rejeitarei a estirpe de Jacó e de meu servo Davi” (cf. Jer 33,25-26). A oração Judaica da manhã, da
tarde e do meio expressam este sentido (Dn 6, 11.14; SI 55,17-18).
No novo Testamento, estas horas também são marcantes: Jesus se encontra com a samaritana
ao meio dia (Jo 4). Ao meio dia Pilatos condena Jesus (Jo 19). Ele se reúne com os seus, à noite, na
hora em que ia ser entregue (Jo 19) – segundo João a Hora de Jesus anunciada em Cana (Jo 2) se
cumpre na cruz. Depois da ressurreição, o amanhecer e o entardecer é hora de encontro com o
ressuscitado (cf. relatos das aparições de Jesus).
Esta foi à experiência de Jesus como Judeu. Jesus conheceu a oração diária.
Das comunidades cristãs
Assíduos na oração comum (Atos 2, 46), a comunidade cristã organiza a oração em diferentes
momentos do dia:
- hora terceira ou nove da manhã, (Atos 2, 1.15, cf. 1.14), correspondia ao sacrifício matutino
no templo;
- hora nona ou três da tarde (Atos 3, 1-2; 10. 3.30), correspondia à hora do sacrifício da tarde;
- hora sexta ou meio-dia (Atos 10,9);
- há também oração noturna: Pedro e Silas à meia noite no cárcere (At 16,25); a comunidade de
Jerusalém passa a noite em oração (At 20, 7-11) – ritmo semanal.
Foi uma maneira de colocar em prática a palavra de Jesus, sobre a necessidade de vigiar e orar
sempre com perseverança (Lc 18,1).
No ofício divino nossa atenção se volta para o mistério da hora, evocando as horas de Jesus e
a nossas horas...
A partir do grupo, conversar sobre o que é o Ofício Divino das Comunidades?
Uma Oração comunitária, que se celebra no início e no final de cada dia, composta de salmos,
leituras bíblicas, hinos e orações, silêncio... O símbolo a partir do qual jorra toda a elaboração ritual é
o sol nascente e o poente.
(Manusear o livro).

165
3.2 UMA HERANÇA PERDIDA E REENCONTRADA

6) Da época patrística
Nos três primeiros séculos: organiza-se a oração da comunidade com as seguintes
características: Ao nascer do sol e no final da tarde; com insistência na oração comunitária; com o rito
Lucernário (ação de graças pela luz que não se apaga) e o salmo 141 no ofício da tarde. Há também o
ofício da noite. Neste período, justifica-se as horas, atribuindo a cada uma um significado, a luz da
morte-ressurreição de Jesus e da memória dos apóstolos. Rezava-se em particular e em comunidade.
Testemunhos da época:
❖ Clemente Romano aos coríntios (+101)
Vejamos, amados, como se desenrola a ressurreição a seu tempo. O dia e a noite nos manifestam
a ressurreição; dorme a noite, ressuscita o dia; o dia se retira, chega a noite.
❖ Tradição Apostólica de Hipólito (+235)
Todo fiel e toda mulher fiel, ao levantarem-se do sono pela manhã, antes de tocarem o que quer
que seja, lavem as mãos e rezem a Deus; dirijam-se, somente então, ao trabalho.
Se houver instrução da Palavre de Deus, prefiram encaminhar-se ao local, considerando em seu
coração que é a Deus que ouvem naquele que prega. Todo aquele que reza na igreja poderá vencer a
maldade do dia. (...) Cada um deve ter a preocupação de ir à igreja, local onde floresce o Espírito Santo.
Se estiveres em casa, reza quando for a hora terceira e bendiz a Deus. Se estiveres em outro
lugar nesse momento, reza a Deus em teu coração: pois a essa hora viu-se o Cristo ser pregado no
lenho. (...) Reza igualmente quando for a hora sexta: quando Cristo foi pregado no lenho da cruz, o dia
foi dividido e se fizeram grandes trevas. (...). Façam também, ainda, uma grande prece e uma grande
exaltação do Senhor quando for a hora nona. (...) a essa hora Cristo, ferido no lado, verteu água e
sangue e, iluminando o resto do dia, estendeu-o até o cair da tarde: Cristo, começando a dormir, deu
origem ao dia seguinte e perfez a imagem de ressurreição.
A partir do IV século, com o fim das perseguições, as comunidades se desenvolveram e se
organizaram. Chamavam-se Ofícios das catedrais. Eram liturgias populares, com a participação do
povo, compostas de salmos, hinos e orações, tendo como eixo o mistério pascal celebrado diariamente,
sobretudo, nas horas da manhã e da tarde.
Testemunhas da época
❖ João Cassiano (+435), relatando como o Abade Theonas no Egito exortava aos monges (entre os
anos 380-399 – quando ainda não havia eucaristia cotidiana no Egito): muitos, mesmo antes os
seculares, guardam essa forma de devoção com suma delicadeza. Levantando-se antes da luz, ou
quando amanhece não se envolvem em atos domésticos e em necessidades deste mundo, sem que
tenham previamente, correndo à Igreja, consagrado, diante de Deus, as primícias de todas as suas
atividades e trabalho.
❖ Gregório de Nissa (+394), escrevendo sobre a Vida de Santa Macrina, sua irmã: Nada ignorava do
saltério, e recitava cada uma das divisões da salmodia nas horas apropriadas: levantando-se do leito,
ao iniciar o trabalho, ao termina-lo, na hora de iniciar a refeição e ao erguer-se da mesa, indo deitar-se
e levantando-se de novo para orar. Em toda parte, levava consigo a salmodia, qual companheira fiel
que em tempo algum abandonava.
❖ João Crisóstomo (407): Sejam muito diligentes em chegar de manhã cedo para apresentar orações
e louvor a Deus, para agradecer pelos benefícios recebidos e para implorar a Deus a sua presença como
aliado e protetor. Cada um vá aos seus afazeres com temor e tremor, e assim passe o dia como quem
deve voltar à tarde para prestar conta ao patrão e pedir-lhe perdão pelas inobservâncias. Devemos, pois,
transcorrer o tempo da noite em sobriedade e assim estar prontos para nos apresentarmos de novo ao
louvor matutino.
❖ Etéria (século IV) durante o episcopado de São Cirilo, seu diário, relata com detalhe os ofícios de
Jerusalém: Abrem-se cada dia, antes dos galos cantarem, todas as portas da Anástasis aos monges e as
virgens (...) e não apenas a estes, mas também ao povo, homens e mulheres, que, entretanto, desejem
fazer a primeira vigília. Desse momento até o dia claro, dizem-se hinos, responde-se aos salmos e
166
antífonas e, e cada hino, reza-se uma oração. Dois ou três presbíteros alternam, todos os dias com os
monges e, a cada hino ou antífona, dizem orações. E começando a clarear o dia, tem inicio os hinos
matinais.
Igualmente à sexta hora (meio dia), descem todos, ainda uma vez, à anástasis e dizem salmos e
antífonas... (...) E à hora nona (três da tarde), há o que aqui chamam licinicone, que nós chamamos
lucernare: reúnem-se, como antes, toda a multidão na Anástasis, acendem-se todas as tochas e círios e
a claridade é imensa (...) Recitam-se os salmos lucernares e antífonas, por longo tempo.
O que é realmente notável é que se escolhem sempre, para cantar, salmos e antífonas
apropriados; tanto os que se dizem à noite como os que, ao contrário, se dizem pela manhã e ainda o
que se dizem durante o dia – à sexta hora, à nona hora ou ao Lucernário; são sempre de tal forma
adequados e tão bem escolhidos que dizem respeito, sempre, à cerimônia a que se destinam.
Quando o ofício perdeu sua identidade
Este modelo de ofício celebrado nas catedrais ou paróquias, com toda a densidade bíblica e
teológica, era simples e acessível ao povo e tendia a alimentar a vida do cristão comum. Com o tempo
o oficio evoluiu (ou retrocedeu?) para uma sobrecarga de elementos (muitos salmos, hinos, leituras).
A partir do século VII, em consequência do latim como língua litúrgica oficial e sobrecarga de
elementos devocionais no oficio, o que era de todo o povo se limitou ao clero (processo de
Clericalização). O que era uma celebração comunitária passou a ser recitado individualmente
(breviário) e o que era uma ‘liturgia das horas’ (o mistério pascal associado à hora), com uma dimensão
de gratuidade, passou a ser encarada como obrigação.
Sem a oração litúrgica, o povo buscou nas devoções formas de substituição: o rosário no lugar
dos salmos (15 pai-nosso para os irmãos leigos dos mosteiros e 150 ave-marias para o povo,
intercalados com os mistérios); o Angelus ('horas da ave-maria') nas horas do oficio; o Oficio de Nossa
Senhora: hinos das diversas horas do oficial oficio da virgem Maria.
O movimento litúrgico (na Europa a partir de 1909; no Brasil, 1933) conduziu a Igreja ao
Concilio Vaticano II e à Reforma litúrgica. Antes do Concílio, a comunidade Ecumênica de Taizé, na
França, propõe a oração das horas numa forma simples, despojada, reduzida ao essencial e que atrai
multidões.
Sem desmerecer o valor da piedade popular e mesmo destacando a sua contribuição como
alimento da religiosidade e da fé cristã da maioria do povo, era mais que necessário um esforço para
devolver ao povo as riquezas (leituras bíblicas, textos litúrgicos, ritos, símbolos) da herança dos nosso
primeiros pais e mães na fé.
Concilio Ecumênico Vaticano II (1962)
O Concilio Vaticano II definiu a relação entre Liturgia e piedade popular, afirmando a primazia
da liturgia em relação às práticas de piedade, como “primeira e mais necessária fonte de espiritualidade
cristã” (cf. SC 14).
SACROSSANCTUM CONCILIUM, 84
A tradição antiga organizou o oficio divino de maneira a consagrar ao louvor divino todo o
tempo do dia e da noite. Os sacerdotes e todos os que na Igreja são oficialmente dedicados a esta função
e os próprios fiéis que adotam essa forma comprovada de oração, ao se dedicarem convenientemente
a este admirável cântico de louvor, são a voz da esposa, que fala ao esposo, ou mesmo a oração do
próprio Cristo, que se dirige ao Pai, através de seu corpo.
Cinco aspectos decorrentes da reforma do Concílio Vaticano II, a respeito do Oficio Divino:
Ação ritual
- Como toda a liturgia, o oficio divino é uma ação ritual, comunitária, não é ação privada. Trata-
se uma lit-URGIA (lit = povo. Urgia – oficio, ação, trabalho): ação do povo e ação de Deus ('divino')
a serviço do povo. Sendo ação comunitária, não pode ficar reduzido a uma recitação de textos.
- O que se propõe na reforma, é passar da recitação do ‘breviário’ à celebração da liturgia das
horas. Porém, a maioria dos ‘usuários’ da liturgia das horas continuam o estilo do ‘breviário’: Mais
leitura de textos do que uma celebração litúrgica.
167
2) Ação do povo/ ação de Deus
A grande novidade do Concilio Vaticano II foi devolver ao povo o direito de celebrar o Oficio
Divino como era nos primeiros tempos da Igreja, por isso “recomenda-se também aos leigos que
recitem o Oficio Divino, quer juntamente com os sacerdotes, quer reunidos entre si, e até cada um em
particular” (SC 100). A Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas, enfatiza que “o louvor da Igreja
não é reservado aos clérigos e monges, nem por sua origem, nem por sua natureza, mas pertence a toda
comunidade cristã”(IGLH 270). Portanto, a partir do Concilio Vaticano II, podemos dizer com razão
que o Oficio Divino é oração da Igreja.
O memorial da páscoa nas horas
- A reforma do Concilio Vaticano II enfatizou a verdade das horas, chamando a atenção para
a finalidade especifica do oficio divino: fazer memória da páscoa nas horas do dia. Dá destaque aos
dois polos: Oficio da manhã, ao chegar a luz do dia evocando a ressurreição de Jesus... Oficio da
tarde, ao pôr-do-sol, hora que lembra a última Ceia de Jesus e a cruz (Lc 22, 53).
- A liturgia das horas é oração de louvor, de ação de graça, intercessão, com Jesus (oração de
Cristo), fazendo memória da sua páscoa nas horas do dia. O sol que 'morre' e 'ressuscita' a cada dia
torna-se símbolo de Cristo morto e ressuscitado que orienta e ilumina diariamente nossa vida com seus
altos e baixos.
Toda a elaboração ritual do oficio se destina a expressar o mistério escondido no simbolismo
do sol que nasce e se põe com referência ao crucificado-ressuscitado. Os salmos são escolhidos em
grande parte levando em conta a hora, também as antífonas, preces e orações. Mas é, sobretudo, o hino
(no tempo comum) que expressa mais claramente o sentido da hora. Tomemos como exemplo um hino
da tarde:
- Hino da tarde (ODC, p. 278):
1. Cai a tarde, o sol se esconde suba, ó Deus nosso louvor,
pelo dia que termina / dom do teu imenso amor.
2. Bendizemos o teu nome/ pelos bens da criação,
pelo Espírito que habita/ dentro em nosso coração.
3. Toda a luta deste dia/ te entregamos, ó Senhor,
Tudo seja em tuas mãos/ oferenda de louvor.
4. Como incenso perfumado/ suba a ti nossa oração,
ó Deus trino, hoje e sempre,/ seja a nossa louvação.
-Cada pequena comunidade reza como Igreja, unida a Cristo, oferecendo a Deus o sacrifício
de louvor e de ação de graças, intercedendo por toda a humanidade como fez Jesus na cruz. No oficio,
as mãos que erguemos estão vazias de materialidade, mas repletas das lutas e vitórias da nossa vida
cotidiana.
- Hino da manhã (LH, segunda-feira, laudes):
Clarão da gloria do Pai, /ó Luz, que a Luz origina,
sois Luz da Luz, fonte viva, /sois Luz que ao dia ilumina.
2. Brilhai, ó Sol verdadeiro, /com vosso imenso esplendor,
e dentro em nós derramai /do Santo Espirito o fulgor.
3. Também ao Pai suplicamos, /ao Pai a glória imortal,
ao Pai da graça potente, /que nos preserve do mal.
4. Na luta fortes nos guarde /vencendo o anjo inimigo.
Nas quedas, dê-nos a graça, /de nós afaste o perigo.
5. Alegre passe este dia, /tão puro quanto o arrebol.
A fé, qual luz cintilante, /refulja em nós como sol.
6. A aurora em si traz o dia. /Vós como aurora,
brilhai: ó Pai, vós todo no Filho, /e vós, ó Verbo, no Pai.
4) O Oficio fonte de piedade

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- A reforma do Oficio foi feita de tal forma que tornasse “fonte de piedade” (SC 90). Há, no
ato de celebrar, uma relação entre as horas de Jesus e as nossas horas, pois trazemos em nossos corpos
as marcas da paixão (SC 12; 2Cor 4, 10-11). O Oficio, com seus hinos, salmos, orações e momentos
de silencio que se repetem regularmente, vai pedagogicamente moldando a vida, segundo os
sentimentos e os passos de Jesus. Basta que realizemos com inteireza o rito e 'acompanhemos com a
mente' e o coração atentos as palavras e gestos...
- Com séculos de separação entre espiritualidade e liturgia é preciso aprender de novo a ‘arte
da atenção’ na liturgia, superando o formalismo e a rigidez em nossas celebrações. E esta atenção
litúrgica deve estender-se pela vida, em forma de cuidados (acender o fogão como se acende a vela do
altar – São Bento); “gentileza gera gentileza” (profeta gentileza, RJ).
5) Portas abertas para a Inculturação
Depois de quatro séculos, desde o Concilio de Trento (1545-1563) que determinou uma quase
completa uniformidade, o Concilio Vaticano II abriu as portas para a inculturação: corresponder às
necessidades pastorais particulares e às diferentes culturas dos povos.
- Primeiro passo: voltar às fontes, à simplicidade das origens: "As cerimonias resplandeçam
de nobre simplicidade, sejam claras na brevidade e evitem as repetições inúteis; devem adaptar-se à
capacidade de compreensão dos fiéis e não precisar, em geral de muitas explicações" (SC 34).
Na reforma da Liturgia das horas houve este trabalho de eliminar complicações e acréscimos
que foram sendo introduzidos ao longo dos séculos. Já foi um grande avanço. Porém, o Concilio
queria mais do que isso.
Segundo passo: "A Igreja não pretende impor uma uniformidade rígida, nas coisas que não
dizem respeito à fé e ao bem de toda a comunidade; mas respeita e procura desenvolver as qualidades
e dotes de espirito das várias raças e povos" (Cf. SC 37-40).
11) Oficio Divino das Comunidades
Oficio Divino é o nome mais antigo da tradição de oração da Igreja. São Bento falava de Opus
Dei, 'a obra de Deus'. Outro nome conhecido na Igreja latina é Breviário (referindo-se ao livro que
'abreviou' os diversos elementos antes separados, em um único volume). Liturgia das horas é nome
recente (1959), assumido pela reforma litúrgica do Concilio Vaticano II (Cf. edição oficial).
a) Ponto de partida
A partir do processo de inculturação desencadeado pelo Concilio, porém, hoje percebemos
melhor a importância dessa criatividade autônoma do povo como contribuição inestimável para a
criação de uma expressão litúrgica autenticamente enraizada nas culturas dos povos.
Aplicando este princípio ao Oficio Divino, em 1988, foi editado o Oficio Divino das
comunidades (1ª versão) levando em conta três referencias:
A Tradição da Igreja, de celebrar em determinadas horas, uma oração de louvor/ação de
graças e intercessão, com salmos, leituras bíblicas, hinos e orações, tendo como eixo o mistério pascal;
em diálogo com a piedade popular e com jeito de nossas Comunidades Eclesiais de Base.
A ideia de um Oficio Divino popular, nasceu com o padre Geraldo Leite em Ponte dos
Carvalhos, na periferia de Recife (PE). Como padre diocesano tinha obrigação de rezar o breviário e o
fazia sozinho. Depois do Concilio teve a iniciativa de começar a rezar com o povo de manhã e de noite.
Inspirado na simplicidade da oração da comunidade de Taizé, na França, propôs um oficio que
articulava elementos da tradição e cultura popular. Foi este o ponto de partida do Oficio Divino das
comunidades.
b) O jeito nosso de celebrar
O Oficio Divino das comunidades é oração eclesial e popular, bíblica e litúrgica que ajuda a
unir fé e vida cotidiana, dimensão social e pessoal, louvor e lamento, escuta e prece, levando em conta:
- a ‘mútua fecundação’ entre liturgia e piedade popular, não apenas incorporando elementos
externos, mas procurando corresponder à ‘piedade’ do povo, ao seu ‘anseio de oração e de vida cristã’.
- o jeito novo de celebrar das Comunidades Eclesiais de Base, incorporando como parte do rito
a ‘recordação da vida’ para ligar vida e liturgia.
169
- a Linguagem poética e musical, próxima do povo.
-a dimensão ecumênica e abertura a outras religiões, bem como a Linguagem inclusiva na
questão de gênero.
- a ritualidade. Embora no ODC não haja muitas indicações e detalhes a respeito dos gestos,
símbolos e ritos, na prática foi se criando um estilo que valoriza o espaço, os gestos, a música, a atuação
dos diversos ministérios, a partilha da Palavra, o silencio... O Oficio das comunidades, por sua estrutura
mais simples e pelo estilo celebrativo, está mais próximo do Oficio das catedrais do que a liturgia das
horas.
Com o Oficio Divino das Comunidades, aprendemos a orar, prestando atenção no mistério da
páscoa em nossas horas, à luz da páscoa de Cristo, ao longo de todo o ano litúrgico. Cada oficio está
assim estruturado: Chegada; abertura, recordação da vida e hino; Salmo; leitura bíblica e meditação;
Cântico evangélico; preces, Pai nosso e oração; benção.
Fidelidade à tradição O Ofício das Comunidades reproduz, em sua estrutura, os mesmos
elementos da Liturgia das Horas, organizados segundo o simbolismo do sol, que se esconde e renasce
cada dia, evocando o mistério da morte e ressurreição do Senhor. Privilegiou os ofícios cotidianos da
manhã e da tarde e propôs, no lugar das primeiras vésperas dos domingos e solenidades, o ofício de
vigília. Quanto à sequência de cada ofício, esta versão valorizou o invitatório como abertura do ofício
da manhã, inseriu, antes do hino, a recordação da vida, simplificou a salmodia, indicou, como leitura
bíblica, o evangelho do dia e acrescentou o momento da chegada como um tempo de preparação
imediata antes de começar o ofício.
O grande ganho do Ofício foi ter de volta os salmos como escola de oração, como diziam os
antigos. De fato, há, em todo salmo, uma memória escondida que faz referência à ação de Deus no
êxodo e à aliança que ele fez com o seu povo. Esses poemas orantes, que acompanham o povo de Deus
desde os tempos da bíblia e que foram rezados por Jesus e pelas primeiras comunidades cristãs, têm,
ainda hoje, a virtude de ajudar as pessoas a agradecer na prosperidade e a receber consolação e ânimo
na adversidade (cf. IGLH n. 100).
Assim, o Ofício das Comunidades traz 110 salmos em versões que seguiram o critério da
fidelidade ao texto bíblico e, ao mesmo tempo, ganharam uma linguagem poética e musical mais
próxima da compreensão das comunidades, já que foram compostos em ritmos brasileiros. Além disso,
foram incluídos, cânticos do AT e do NT e os cânticos evangélicos de Zacarias, de Maria, e de Simeão.
Como na Liturgia das Horas, esses textos poéticos estão distribuídos segundo o critério
cristológico, de forma a ligar os mistérios da Páscoa às horas do dia. Os demais elementos do ofício
[antífonas, preces e orações], sobretudo os hinos, se referem, igualmente, às horas do entardecer e do
amanhecer. Assim, o Ofício, como oração de Cristo e da Igreja, volta a nossa atenção ao mistério da
hora, associando as horas de Jesus às horas do nosso tempo, seguindo o movimento do sol na
alternância do dia e da noite, articulando-se também, com os ritmos semanal e anual. É a Oração da
Igreja, que unida ao Cristo em sua oração de louvor, ação de graças e intercessão ao Pai, faz memória
da sua páscoa.
a) Expressão da Igreja latino-americana A inculturação da liturgia não pode ser tarefa isolada,
mas deve inserir-se no fenômeno mais amplo de renovação da Igreja, da sua teologia e missão no
mundo. Uma das preocupações da equipe que elaborou o Ofício Divino das Comunidades foi
justamente a de adequar a linguagem dos textos e o estilo de sua celebração à teologia e ao novo jeito
de celebrar nas comunidades eclesiais do nosso Continente.
O documento de Medellín dá as coordenadas quando identifica o “passo” de Deus que salva,
com a “passagem de condições de vida menos humanas para condições mais humanas” (cf. introdução).
Além disso, lembra a importância de “manter-se numa situação dinâmica e de acompanhar tudo o que
houver de positivo no processo de evolução da humanidade” para chegar “a uma experiência vital da
união entre a fé, a liturgia e a vida cotidiana” (cf. cap. 9). Trata-se, assim, da compreensão de uma
liturgia que leva em conta as ações de Deus, não somente na história passada, mas nos fatos
significativos, portadores de vida, que acontecem no presente.
A “vida” transparece em todo ofício, na linguagem dos hinos, das orações, das preces, das
introduções aos salmos, mas é na recordação da vida que ela fica mais explícita: “os acontecimentos
170
de cada dia, as pessoas, suas angústias e esperanças, suas tristezas e alegrias, as conquistas e revezes
da caminhada, as lembranças marcantes da história, da comunidade, das igrejas e dos povos, os próprios
fenômenos da natureza são reconhecidos como sinais de Deus a serem lembrados (cf. ODC, p. 11).
O Ofício Divino das Comunidades faz isso sem confundir oração com discurso político, ou,
segundo uma expressão de Libânio “sem quebrar a coluna vertebral da gratuidade”. A profecia se
manifesta no ato mesmo da celebração, no espírito de liberdade e de gratuidade, na beleza
contemplativa. São celebrações que primam pela valorização dos símbolos, por uma participação
envolvente através do canto dos salmos e dos hinos, num clima profundamente orante que garante o
que é próprio da liturgia cristã: diálogo com Deus, na memória do Senhor Jesus, em comunhão com o
seu Espírito no compromisso com o Reino.
b) O diálogo do Ofício com a piedade popular Ao afirmar que a liturgia é a “primeira e mais
necessária fonte de espiritualidade cristã” (cf. SC 14), a Sacrosanctum Concilium não dispensa a
piedade popular que sustentou o povo durante séculos. Em seu artigo 13, ela recomenda que os atos de
piedade do povo cristão, especialmente os atos de piedade das Igrejas particulares, levando em conta
os tempos litúrgicos, se harmonizem com a liturgia, nela se inspirem e a ela conduzam.
Em consonância com essa orientação, Puebla fala de “promover adaptações adequadas
particularmente aos grupos étnicos e ao povo simples (grupos populares) ” (DP n. 940). Também o
documento do CELAM, que relata as conclusões do encontro latino-americano realizado em Lima, em
1982, ao tratar da “Adaptação na Liturgia”, lembra, por sua vez, que “o desafio fundamental da
renovação litúrgica na América Latina seria o de conseguir eliminar o abismo entre liturgia e expressão
religiosa do povo cristão”. E diz ainda:
A Igreja da América Latina deveria ir reincorporando elementos da religiosidade e piedade
popular dentro da sua liturgia e realizar uma mútua fecundação entre liturgia e expressão religiosa
popular, com isso seriam integrados os anseios de oração e vida cristã que podem comprovar em nossos
países e se daria à liturgia um maior dinamismo.
Em linha com estas orientações, o Ofício Divino das Comunidades é um exemplo bem-sucedido
da “mútua fecundação” entre liturgia e piedade popular. Ao integrar a piedade popular, não buscou
tanto os elementos externos, mas procurou corresponder à “piedade” do povo, ao seu “anseio de oração
e de vida cristã”. De fato, o catolicismo popular é portador de muitos valores, coincidindo com o que
sugere Paulo VI na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, sobre a evangelização no mundo
contemporâneo:
Encaradas durante muito tempo como menos puras, algumas vezes desdenhadas, essas
expressões assim constituem hoje em dia, mais ou menos por toda parte, o objeto de uma redescoberta.
(...) A religiosidade popular (...) traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os
simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e
predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé; ela comporta um
apurado sentido dos atributos profundos de Deus: a paternidade, a providência, a presença amorosa e
constante, etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que raramente se observam alhures no mesmo
grau: paciência, sentido da cruz na vida cotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção,
etc. Em virtude destes aspectos, nós chamamos-lhe de bom grado “piedade popular”, no sentido de
religião do povo, em vez de religiosidade”. (...) Antes de mais importa ser sensível em relação a ela,
saber aperceber-se das suas dimensões interiores e dos seus inegáveis valores, estar-se disposto a ajudá-
la a superar os seus perigos de desvio” (EN 48)
A ritualidade e a singeleza do Ofício Divino das Comunidades, sem muitas palavras
explicativas, centrado no mistério pascal de Jesus, vai ao encontro dessa piedade do povo, com o seu
“fervor espiritual”, com a sua devoção e sua capacidade contemplativa, com sua atitude de confiança.
Essa dimensão verifica-se nas melodias dos salmos, cânticos e hinos, nos refrãos meditativos, nas
orações, no silêncio... De fato, o que encanta a muitas pessoas que descobrem a oração do ofício é a
maneira simples e despojada de celebrar, com a participação de todos, sem o monopólio de quem
preside, centrada em Jesus, o “mistério da piedade” (1 Tm 3,16).
Desafios e perspectivas O Ofício Divino das Comunidades é uma sólida referência para a
celebração diária, enraizada na tradição que vem dos nossos pais e mães na fé, com um jeito bem

171
brasileiro e fiel à eclesiologia que se desenvolveu a partir do Concílio Vaticano II. Dessa maneira, as
comunidades que vivem a fé em meio a tantas lutas e desafios têm, nele, expressão e fonte para
alimentar a fé e testemunhar em todo tempo e lugar a salvação de Deus.
O grande desafio que permanece é superar séculos de separação entre liturgia e devoção/
espiritualidade e entre liturgia e catequese. Não basta oferecer o livro e não convém simplesmente
impor a prática, é preciso criar as condições em termos de vida eclesial: assumir o ofício divino como
parte da liturgia da Igreja, acompanhando a prática e oferecendo formação bíblica e litúrgica.
Antes do Concílio, o povo tinha suas novenas, as quais representavam o seu jeito de celebrar,
sobretudo à noite. Depois do Concílio, a tendência foi reduzir tudo à missa, com o perigo de banalizar
e cair na mera formalidade. O Ofício das Comunidades veio como alternativa à celebração eucarística
diária, a fim de guardá-la mais para o domingo e, dessa forma, oferecer ao povo um correspondente
das orações populares do povo, que estivesse, ao mesmo tempo, à altura do novo contexto eclesial.
Em vez disso, muita gente continuou insistindo em formas tradicionais, e atualmente assistimos
o ressurgimento de um devocionismo exacerbado, no mínimo estranho, que nem corresponde à piedade
popular.
As perspectivas abrem-se a partir do caminho lento, mas progressivo, feito nestes 30 anos. Com
este Ofício, cada comunidade pode organizar sua oração tendo como eixo o mistério pascal de Jesus e
reaprendendo, assim, com uma referência bíblica e litúrgica.
Houve, desde a primeira edição, o cuidado de fazer chegar às comunidades não apenas o livro,
mas também os recursos pedagógicos que ajudassem a subsidiar a prática ritual, sua teologia e
espiritualidade. Como o ofício é quase todo cantado, procurou-se também, desde o início, garantir
acesso às melodias, através de gravação e partituras das músicas. Ao lado disso, textos foram escritos
e encontros de formação foram organizados em vários níveis, visando a transmissão do significado
teológico, espiritual e pastoral dessa iniciativa, além da sua apropriação por parte das comunidades.
O Ofício das comunidades ganhou o coração do povo. Para ir mais longe, desdobrou-se em
ofício da juventude, Ofício da Novena do Natal, Ofício dos mártires, Ofício de adolescentes e crianças,
celebrando por ocasião da morte... Oxalá a comemoração de 30 anos represente um novo impulso, que
passe a ocupar cada vez maquis os espaços de oração da comunidade e que seja celebrado com
qualidade e profundidade e possa tornar-se tão popular como o era nos primórdios da Igreja.

3.3 O QUE É O OFÍCIO DIVINO?

Mas o que é mesmo o Ofício Divino? De onde vem? Por que e quando celebrá-lo? E como
introduzi-lo nas comunidades?
1) Ofício Divino: serviço do povo e serviço de Deus
Ofício Divino refere-se à tradição da Igreja de celebrar em determinadas horas do dia,
especialmente de manhã e à tarde. É chamado também Liturgia das Horas.
O nome "Liturgia das Horas" ou "Ofício Divino" indica que se trata de uma ação. O termo
liturgia é derivado de duas palavras gregas: laós, que quer dizer povo, e ergon, que significa ação,
oficio, trabalho, obra, serviço'. Podemos dizer que todo serviço que realizamos para melhorar o mundo
é uma liturgia, um Oficio Divino; mais ainda se o fazemos em comunhão com Jesus Cristo, em
obediência à vontade do Pai, deixando-nos conduzir pelo Espírito, como fez Jesus. Contudo, como
seres humanos, temos necessidade de expressar em linguagem simbólica e ritual o conceito do que
somos, cremos e fazemos.
Nesse sentido, o Ofício Divino é trabalho comunitário de dar graças ao Pai, como Corpo de
Cristo e em nome de Jesus, por meio de salmos e cânticos bíblicos, hinos, leituras bíblicas, orações,
ações simbólicas, música... É confirmação de nossa adesão a Deus, renovando nosso compromisso com
sua obra no mundo.

172
3.4 CONHECENDO MELHOR O RITO

A celebração comunitária manifesta mais claramente a natureza eclesial da Liturgia das


Horas, favorece a participação ativa de todos (...). Por isso, sempre que a celebração possa ser feita
comunitariamente com a participação do povo deve ser preferida à celebração individual (IGLH n. 33).
No Oficio Divino, elementos comuns a outras celebrações são organizados de modo peculiar,
em função da finalidade própria do Ofício. No Ofício Divino das Comunidades (ODC), esses elementos
estão assim relacionados: chegada e, em seguida, versos da abertura; a recordação da vida e o hino; um
ou dois salmos; uma leitura bíblica e a meditação; cântico evangélico; preces, pai-nosso e a bênção
final. Trata-se de uma maneira regular e costumeira de fazer a celebração que permite à comunidade
ter domínio sobre a sequência dos elementos e a quem coordena, segurança e desembaraço em seu
ministério.
2.1 Chegada e abertura
A celebração comunitária sem oração pessoal seria, na expressão de são João Crisóstomo, como
colocar incenso em carvão apagado. Por isso, o primeiro elemento do Ofício é a chegada: um tempo
de silêncio e quietude para que a pessoa possa abrasar o coração e colocar-se "inteira" na presença do
Senhor, numa atitude de reverência, mente e coração atentos, como condição para participar da ação
comunitária. Esse momento inicial aponta para outros espaços de silêncio ao longo do Ofício (depois
de cada salmo, da leitura, entre um elemento e outro...), que ajudam cada pessoa a participar
interiormente da oração comum.
Na chegada é bom manter as luzes do ambiente reduzidas e evitar ruídos de qualquer tipo. Pode
ser útil também um refrão meditativo, repetido várias vezes, para criar o silêncio e centrar a atenção.
A pessoa que coordena se põe de pé e, sem fazer qualquer convite ou comentário, entoa os
versos da abertura repetidos pela assembleia. No Ofício da manhã, o primeiro do dia, pedimos que
Deus mesmo venha abrir nossa boca para o louvor: "Estes lábios meus, vem abrir, Senhor..." (cf. Sl
51[50],17). O segundo verso, "Venham, adoremos...", nos situa no sentido da celebração (em relação
à hora, ao tempo litúrgico ou à festa). Os versos seguintes, de um salmo de convite ao louvor, vão
progressivamente nos introduzindo ao diálogo da aliança com Deus, em Jesus Cristo. A abertura
termina com o "glória-ao-Pai", invocando a Trindade, e uma saudação final. Esta é a estrutura de todas
as aberturas do Ofício da manhã e tarde.
A forma de repetição permite o diálogo entre quem preside e a assembleia, num duplo
movimento de cantar e escutar, de falar e deixar que o Espírito sopre em nós o louvor de Deus e realize
a santificação. O fato de repetir dispensa o papel, ajudando a centra a atenção nas palavras, na melodia
e nos gestos, e tem a vantagem de incluir as pessoas que não têm acesso à leitura escrita.
Quanto à melodia, a inspiração original veio inicialmente do tradicional Ofício de Nossa
Senhora, muito enraizado na piedade do povo em algumas regiões do Brasil. Essa proximidade com a
piedade popular dá às aberturas estilo afetuoso e piedoso que encontra no coração do povo ressonância
e aceitação imediatas. Outras melodias foram aparecendo. Como a métrica do texto é a mesma em
todas as aberturas, podem ser cantadas com uma única melodia. Todavia, é bom diferenciar uma
melodia festiva de uma melodia mais adequada para os dias comuns da semana ou para um determinado
tempo litúrgico. Recomenda-se que sejam cantadas de forma livre, sem instrumento.
2.2 Recordação da vida
O Oficio Divino das Comunidades introduziu, depois da abertura, o momento da "recordação
da vida" para explicitar a relação entre o mistério celebrado e os acontecimentos da vida. Parte-se do
princípio de que liturgia não celebra ideias, celebra fatos. É memória da Páscoa do Cristo acontecendo
em nossa realidade.
O nome "recordação da vida" sugere um trazer de volta ao coração, em atitude de contemplação,
como Maria que "conservava cuidadosamente todos os fatos e os meditava em seu coração" (Lc 2,19;
cf. Lc 2,51); ou como os discípulos de Emaús que expressaram toda a tristeza do coração por causa do
que viram acontecer em Jerusalém nos dias da morte de Jesus (cf. Lc 24,13-35); ou ainda como Pedro
e João, libertos da prisão, relatando à comunidade tudo o que lhes acontecera (cf. At 4,23-31). É um

173
trazer de volta ao coração para discernir, com a ajuda do Espírito, os desígnios de Deus na trama da
história humana.
A recordação da vida não é prece, nem compromisso, nem "intenção". Tem mais o perfil de
relato. Em uma pequena assembleia pode ser feita de maneira informal, em tom de conversa... Em uma
grande assembleias é possível ser preparada antes e apresentada pela equipe, ou feita em forma de
conversa dois a dois... Na memória de um mártir, ou de um santo, partilham-se aspectos da sua vida,
de como ele ou ela deu testemunho de Jesus. No Ofício da noite, no lugar da "recordação da vida"
costuma-se fazer uma "revisão do dia", em clima penitencial e de reconciliação com Deus e entre
irmãos. A recordação da vida não é um momento isolado, mas desdobra-se ao longo da celebração: no
salmo, nos momentos de meditação e nas preces.
2.3 Hino
Os hinos não são textos bíblicos, mas sim composições da Igreja, de natureza poética,
destinados ao louvor de Deus. Colocados logo depois da recordação da vida, têm a finalidade de
introduzir a assembleia no sentido da celebração; expressam, quase sempre mais que os outros
elementos do Ofício, o sentido peculiar da hora, do tempo e das festas.
No Oficio Divino das Comunidades, recolheu-se do repertório produzido depois do Concílio o
que melhor atendesse aos critérios de adequação à hora, ao tempo e às circunstâncias especiais; que
fossem orantes, poéticos e até proféticos, no sentido de ligarem o mistério celebrado à luta do dia-a-
dia. Foram valorizados alguns hinos da antiga tradição da Igreja, em versão popular, e outros
pertencentes ao repertório do catolicismo popular.
2.4. Salmos e cânticos bíblicos
Os salmos constituem parte essencial no Oficio Divino, Palavra de Deus cantada e meditada.
No Ofício Divino das Comunidades temos 110 salmos, quase todos rimados e com melodia brasileira,
distribuídos em quatro semanas, um ou dois em cada Ofício. Além dos salmos, há cânticos tirados de
outros livros do Antigo Testamento, indicados para o Ofício da manhã. E há os cânticos do Novo
Testamento, do livro do Apocalipse, das cartas de Paulo e de Pedro, indicados para o Ofício da tarde.
Os salmos são uma "escola de oração" que nos situam no diálogo da Aliança em que Deus se
revela como o Deus libertador, atento ao grito dos que sofrem, severo com o orgulho dos prepotentes,
comprometido com a sorte dos pequenos e fracos. Um Deus que escuta e intervém, que caminha com
seu povo e age em seu favor.
Na tradição cristã o salmo é sempre rezado a partir de Jesus, "o grande cantor dos salmos", na
expressão de santo Agostinho. As comunidades cristãs aprenderam desde o início a identificar na voz
do salmista a voz do próprio Cristo e a considerar cada salmo como uma profecia da sua vida. A
Sacrosanctum Concilium lembra que, quando a Igreja ora e salmodia, é Cristo quem ora e salmodia na
Igreja (cf. SC, n. 7); e a Instrução Geral recomenda prestar atenção à relação que existe entre o salmo
e Jesus: "Quem salmodia em nome da Igreja deve prestar atenção ao sentido pleno dos salmos,
especialmente ao sentido messiânico, em virtude do qual a Igreja adotou o saltério" (IGLH, n. 109).
Com essa chave é que os salmos foram distribuídos ao longo dos Ofícios: salmos próprios da
manhã; salmos da tarde; salmos do domingo; salmos para um determinado tempo litúrgico...
Cada salmo vem acompanhado de expressões rituais que ajudam a comunidade a fazer dele a
sua oração, em Cristo e na Igreja: a introdução que situa o salmo em seu contexto de origem; a frase,
em geral do Novo Testamento, conferindo ao salmo um sentido de louvor cristológico; a doxologia
final acrescentando a dimensão trinitária; a antífona ou refrão acentuando alguma frase do salmo ou
conferindo matiz conforme o tempo ou memória especial. A forma de salmodiar alternando em dois
coros favorece a escuta e expressa o diálogo da aliança entre Deus e o seu povo, entre Cristo e a
comunidade.
Terminado o salmo, é indispensável um tempo de silêncio para deixar que a Palavra ressoe no
íntimo de cada pessoa e manifeste sua força transformadora pela atuação do Espírito Santo.
Quem está coordenando pode concluir com uma oração espontânea, do tipo coleta, conhecida
na tradição como "oração sálmica".

174
É uma oração que retoma algum aspecto do salmo ligando-o com o mistério de Cristo e com a
vida da comunidade.
A oração sálmica tem a seguinte estrutura: uma invocação a Deus, memória partindo do próprio
salmo, pedido de intercessão (“Por Cristo”).
2.5 Leitura bíblica e meditação
A maior parte dos textos usados no Oficio Divino é tirada da Bíblia ou inspirada em textos
bíblicos: são salmos e cânticos bíblicos, responsos, aberturas, antífonas, refrãos meditativos. E há
também leituras bíblicas. Por isso, podemos dizer que o Oficio Divino é Palavra de Deus cantada,
proclamada, escutada, atualizada, assumida. O Espírito Santo faz do texto antigo uma palavra viva e
atual nas circunstâncias da vida pessoal e comunitária em diferentes contextos social e cultural. Sendo
assim, durante o Ofício, Bíblia e vida vão se interpretando mutuamente e tornando-se meditação e
oração no diálogo com o Senhor.
A "meditação" depois da leitura é momento de partilhar os apelos que a Palavra de Deus fez
surgir, explicitando melhor a relação entre a Bíblia e a vida... Não em forma de debate, mas como
acolhida contemplativa da Palavra viva e atual de Deus para a comunidade. Por essa razão, fazem parte
desse momento o silêncio, refrãos ou versos de um salmo à semelhança do salmo de resposta na missa,
para criar um clima de contemplação e escuta.
2.6 Cânticos evangélicos
Os cânticos de Zacarias e de Maria são louvor e ação de graças respectivamente. Cantados
depois da leitura bíblica e meditação, expressam maximamente os louvores matutino e vespertino, pela
redenção (cf. IGLH, n. 50). Com o Cântico de Zacarias, no Ofício da manhã, ao brilho do sol nascente,
bendizemos a Deus por Jesus Cristo, o sol do Oriente que vem iluminar os que estão nas trevas. O
Cântico de Maria, no Ofício da tarde, é ação de graças pela manifestação de Deus em Jesus Cristo e
pela vitória de todos os redimidos no dia que passou.
Por isso, ainda que no ODC esses cânticos apareçam como opcionais nos dias da semana, é
vivamente recomendado que sejam cantados a cada dia.
O Cântico de Simeão, que se canta por tradição no Ofício da noite (completas), nos faz olhar
para o dia que passou e reconhecer nele a salvação de Deus; no ODC esse cântico tem sido valorizado
também no Ofício de vigília, por sua dimensão pascal, reforçada pela antífona: "Sentinela, em que
ponto está a noite, sentinela, em que ponto está a noite? A luz surgirá nas trevas, e esta noite,
resplandecerá como dia".
2.7 Preces, pai-nosso, bênção e despedida.
Nas preces louvamos e suplicamos a Deus, unindo-nos à ação de graças e à intercessão de Jesus,
como povo sacerdotal, por toda a humanidade, para que venha o Reino de Deus em nosso mundo. É a
resposta orante do nosso espírito, mergulhado no Espírito de Deus que vem em socorro de nossa
fraqueza e ora em nós de acordo com a vontade de Deus (cf. Rm 8,26-27).
Ocupam o primeiro lugar as preces universais: pelos ministros e ministras das Igrejas, pelos
pobres, pelos doentes, pelos que estão tristes, pelas necessidades do mundo, pela paz... (cf. IGLH, n.
187). Mas há lugar ainda para as necessidades da comunidade local, das pessoas que estão reunidas.
Portanto, além de participar das preces já formuladas no livro, é momento de a assembleia apresentar
outras intenções, atenta ao que está acontecendo ao seu redor. A resposta cantada proporciona um clima
orante ao conjunto das preces.
O pai-nosso, recitado ou cantado pela assembleia, pela sua importância e dignidade, deve
aparecer como coroamento dos Ofícios da manhã e da tarde; mais ainda, naqueles casos em que os
cânticos evangélicos são omitidos.
Na bênção e despedida no final do Ofício, invoca-se a proteção e a força de Deus para que
continuemos o "Oficio Divino" do nosso sacerdócio espiritual, ao longo do dia, no trabalho, na
convivência, nos gestos de solidariedade, fazendo de toda a vida uma experiência pascal: "Sabemos
que passamos da morte à vida se amamos os irmãos" (1Jo 3,14).

175
2.8 Música
A música no Ofício, assim como em toda a liturgia, constitui parte integrante da ação litúrgica
(cf. SC, n. 112).
Sendo assim, não deve ser considerada enfeite externo, mas elemento que participa da sua
própria natureza expressando a íntima união dos corações no louvor a Deus (cf. IGLH, n. 268).
No Oficio Divino das Comunidades, houve o cuidado quase rigoroso de valorizar o canto,
buscando as expressões musicais religiosas e culturais do povo (cf. SC, n. 119). Podemos dizer que a
música é um dos elementos que mais contribuem para fazer do Ofício Divino das Comunidades uma
versão brasileira da Liturgia das Horas. São melodias, ritmos e sons quase sempre em consonância com
o texto (aberturas, hinos, salmos, cânticos bíblicos, responsos...), de acordo com o sentido da hora, do
tempo ou da festa. Trata-se de música "inculturada", apropriada ("música ritual") para expressar o
sentido dos diversos ritos a serviço da participação da assembleia.
2.9 Gestos e atitudes
O Oficio Divino, como toda ação litúrgica, é ato simbólico feito não só com palavras, mas
também com gestos, músicas, movimentos, símbolos; linguagem corporal da nossa adoração a Deus
que se manifestou humano, em Jesus.
No livro Ofício Divino das Comunidades não há muitas indicações e detalhes a respeito dos
gestos, símbolos e ritos.
Entretanto, na prática foi se criando um estilo que valoriza a ritualidade. Em geral, adotam-se
os seguintes gestos e atitudes: o sinal-da-cruz sobre os lábios ao cantar "Estes lábios meus vem abrir,
Senhor"; o sinal-da-cruz sobre o corpo, no verso "Vem, ó Deus da vida, vem nos ajudar" e no início
dos três cânticos evangélicos; o estar de pé durante a abertura, o hino, a proclamação do evangelho, o
cântico evangélico, as preces, o pai-nosso e a oração conclusiva (IGLH, n. 263); o estar sentado na
proclamação das leituras (exceto do evangelho), nos salmos e demais cânticos bíblicos com suas
antífonas (IGLH, nn. 264-265).
2.10 Ministérios
Quem celebra o Ofício é toda a comunidade, povo sacerdotal, corpo de Cristo animado pelo
Espírito, em igualdade de condição, mas organizado, com diversidade de funções (cf SC, nn. 26 e 29).
Por menor que seja uma assembleia, não pode prescindir de pessoas que realizem os serviços de
coordenar, de proclamar as leituras, de animar o canto... São caris mas e ministérios que brotam da
participação do sacerdócio de Cristo pelo batismo, suscitados pelo Espírito a serviço do sacerdócio de
todos os batizados.
Quem coordena canta a abertura; indica, quando necessário, as páginas do livro; convida a
comunidade a compartilhar os acontecimentos na recordação da vida, a fazer as preces, a rezar o pai-
nosso; pronuncia a oração, a bênção e a despedida.
O cantor ou a cantora anima todos os elementos cantados do Ofício, menos a abertura, que
pertence a quem preside. Os leitores proclamam as leituras. Há ainda os que cuidam do espaço, os que
acendem as velas, os que preparam o fogo para o incenso...
3ª Etapa: Estudo do rito – recordação da vida no ODC
Algumas Considerações:
1) A "recordação da vida" é um elemento ritual introduzido no Ofício Divino das Comunidades
desde sua primeira edição, depois da Abertura para explicitar a relação entre a celebração e os
acontecimentos da vida. Parte-se do princípio de que a liturgia celebra fatos e não ideias. É a memória
da Páscoa de Cristo acontecendo em nossa realidade, principalmente na vida dos pobres, como nos
propõe Medellin. Na prática tem sido introduzido também em outras celebrações, como parte dos ritos
iniciais ou no início da liturgia da palavra antes da proclamação dos textos bíblicos, ou ainda na
homilia, relacionados com as leituras do dia... (considerar também a experiência do grupo...)
2) O nome "recordação da vida" sugere um trazer de volta ao coração, partilhar lembranças e
preocupações, "angústias e esperanças, tristezas e alegrias", conquistas e tribulações da caminhada
pessoal, familiar, da comunidade, das Igrejas, dos povos e fenômenos da natureza... como sinais de
Deus, de sua presença e ação que podem ser percebidas e acolhidas a partir da fé. Os fatos da vida são
176
reconhecidos assim, como testemunhos, que indicam a passagem libertadora de Deus em nosso tempo
e seu chamado à conversão e necessárias transformações. É feita em conversa livre e espontânea, sem
perder o tom meditativo, e quem relata, possa ser ouvido por todos participantes. Não cabe nela a forma
de prece, nem de ação de graças, nem de compromisso, nem de ´intenção´ por alguma pessoa ou
situação. Os fatos relatados terão sua repercussão e desdobramento ao longo da celebração.
3) A recordação da vida tem sua raiz na memória bíblica que situa a salvação dentro da história
e acontecimentos humanos. Tem no êxodo, na libertação do Egito (AT) e no mistério da páscoa de
Cristo para a liturgia cristã, sua principal referência, memória profética que abre espaço para inserir
nossa páscoa, hoje. A Dei Verbum, sobre a Revelação Divina no item 2, explicita a relação entre texto
bíblico e acontecimento: Deus se revela "... através de acontecimentos e palavras intimamente conexas
entre si, de forma que as obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e corroboram
os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras. Estas, por sua vez, proclamam as obras e
elucidam o mistério nelas contido". Na Sagrada Escritura encontramos inúmeros exemplos desta
relação entre fatos passados e presentes, a partir da fé no Deus da Aliança que liberta seu povo. Alguns
são para nós, muito significativos (Lc 2, 17-19; Lc 2, 51; Lc 24,13-35; At 4,23-31) e, como diz Ione
Buyst" Não poderíamos reconhecer nestes relatos, antecessores de nossa recordação da vida?".
4) Na dinâmica ritual do Ofício Divino, a recordação da vida constitui um primeiro momento
que terá seu desdobramento nos elementos seguintes. Os fatos que são trazidos, devem entrar em
diálogo com o hino, com a leitura bíblica e, principalmente com os salmos e cânticos bíblicos; precisam
ressoar nas preces, como súplica ou louvor... "E nos preparem assim para ler e viver todos os momentos
e acontecimentos de nosso dia-a-dia em perspectiva pascal".
5) Que fatos trazer? Todos os aspectos da vida humana, principalmente da vida dos pobres e de
todos que sofrem, merecem ser expressos e contemplados na liturgia como possível lugar de encontro
com o Senhor, lugar de sua manifestação. Assim nos lembra a Constituição Gaudium et Spes:... Não
se encontre nada verdadeiramente humano que não ressoe no coração dos discípulos de Cristo.(cf. GS,
1). Pela recordação da vida, a comunidade celebrante, cultiva as atitudes de atenção e escuta à ação
amorosa de Deus e de solidariedade e compaixão com a vida dos irmãos.
6) É preciso porém, cuidar de não tornar este momento demasiadamente sobrecarregado e
extenso em relação aos outros elementos do Ofício. Quando se prevê mais tempo é bom fazê-lo
sentados e sempre em clima de meditação e espontaneidade. No final quem anima poderá retomar o
que foi partilhado, realçando as possíveis ligações entre os fatos e os sinais mais significativos. As
diferentes circunstâncias, tipos diversos de celebrações e a caminhada da comunidade poderão sugerir
formas criativas de fazer a recordação da vida: conversa em duplas (cochicho), em pequenos grupos,
jogral, testemunhos, fotos ou recortes de jornal, vídeos relacionados com os fatos... ou até mesmo em
silêncio, como "revisão do dia", em clima penitencial e reconciliação entre irmãos.
7) A recordação da vida nascida na Igreja dos pobres é um elemento ritual indispensável nas
liturgias cristãs atentas à ação de Deus no mundo, atentas à presença dinâmica de Cristo Ressuscitado
e de seu Espírito no coração da vida, rumo à plena realização do Reino. (Ione Buyst).
4ª Etapa - Vivência do Rito da Recordação da Vida -Ofício da tarde da 1ª semana
1. Combinar o recorte que será vivenciado, considerando o Ofício desta tarde (2ª. feira, 01 de
julho): refrão... recordação da vida, hino e salmo, encontrando o gesto corporal (postura, tom de voz...)
mais adequado para expressar o sentido teológico e a espiritualidade que ela contém.
2. Escolher e ensaiar o refrão, hino e salmo. Distribuir os ministérios (presidência, cantores,
acendimento da vela), preparar o ambiente, etc.
3. Lembrar o que é vivência ritual e qual seu objetivo. É indispensável a autenticidade de cada
participante para este momento, buscando unir corpo, mente e coração.
4 - Vivenciar o recorte: Refrão: "Recordações, lembranças da vida querida e sofrida, na festa e
na dor. Pra nós são sinais da Tua presença, na vida da gente, amado Senhor!" ou outro à escolha.
Recordação da Vida: Trazer acontecimentos significativos vividos neste tempo como sinais da
passagem de Deus entre nós. Hino e Salmo: escolhidos ou indicados para o Ofício desta tarde. Após o
canto do salmo, silêncio e repetição orante dos versos ou oração sálmica. ligando com os fatos trazidos
na recordação da vida.
177
5 - Conversa dos três pontos: O que fizemos? O que sentimos? O que o rito realizou em nós?
Como experimentamos a relação entre a liturgia e a vida nesta vivência? 6 - Ver as possibilidades do
rito para a prática na comunidade.
5ª Etapa- Avaliação da vivência: O que achei importante e levo para minha vida?

4. CANTO E MÚSICA NA LITURGIA PÓS-CONCÍLIO VATICANO II


Princípios teológicos, litúrgicos, pastorais e estéticos

Texto produzido pelo setor “Música Litúrgica” da CNBB


Introdução
Este subsídio resume de maneira sugestiva o que de mais importante vem se definindo como
rumos e diretrizes para o fazer litúrgico-musical entre nós, desde a promulgação da Constituição sobre
a Sagrada Liturgia, do Concílio Vaticano II, em 1963. É o resultado significativo de sucessivos
encontros promovidos pelo Setor de Música Litúrgica da CNBB, ao longo do ano de 2004, nas regiões
Norte, Nordeste e Centro-Sul.
O mais desejável seria que todos os servidores da arte musical na Liturgia se dessem tempo,
regularmente, para meditar cada um dos documentos sobre música na Liturgia, especialmente, a própria
Sacrosanctum Concilium e, em nível de Igreja no Brasil, o caderno de “Estudos da CNBB”, nº 79,
(1998): A música litúrgica no Brasil1.
O tempo é de muita dispersão e deturpação. Uma enxurrada de coisas produzidas sem
melhores critérios e divulgadas sem maiores cuidados, com força devastadora, invade as mentes e os
corações dos fiéis menos avisados, solapando os fundamentos sólidos da fé e da piedade. Quando se
atenta para o antigo adágio “lex orandi lex credendi”2, percebe-se quão grave é a responsabilidade de
quem oferece subsídios para o cultivo da fé do Povo de Deus. E, a este respeito, quem desconhece a
importância do canto litúrgico, sua força motivadora e expressiva?...
O discernimento, então, se impõe como prática da vigilância cristã, tão cobrada pelo Mestre
dos Mestres, Jesus, sobretudo daqueles e daquelas que têm, por missão, alimentar, de maneira
substanciosa, a fé do Povo de Deus: “Quem é o administrador fiel e atento, que o Senhor encarregará
de dar à criadagem a ração de trigo na hora certa? Feliz aquele servo que o Senhor, ao chegar,
encontrar agindo assim!” (Lc 12,42-43).
Explicando as siglas das notas de rodapé
GS – Gaudium et Spes, Constituição do Concílio Vaticano II, sobre a Igreja no mundo de hoje, 1965.
MLB – A música litúrgica no Brasil, Estudos da CNBB, nº 79, 1998.
MS – Musicam Sacram, Instrução da Sagrada Congregação dos Ritos, sobre a música na sagrada
liturgia, 1967.
PMLB – Pastoral da música litúrgica no Brasil, Documentos da CNBB, nº 7, 1976.
SC – Sacrosanctum Concilium, Constituição do Concílio Vaticano II, sobre a sagrada liturgia, 1963.

I – Do ponto de vista teológico:


1) A Música Litúrgica brota da vida da comunidade de fé. É na contemplação da passagem do Eterno
no devir da Natureza e no correr da História... é na intuição do Mistério de Cristo no cotidiano das
pessoas e grupos humanos, que o autor e compositor litúrgico encontra sua fonte primeira de
inspiração3.
2) A Música Litúrgica reflete necessariamente o Mistério da Encarnação do Verbo e, por isso
mesmo, assume as características culturais da música de cada povo, nação ou região 4.
3) A Música Litúrgica se enraíza na longa tradição bíblico-litúrgica judaica e cristã. Desta tradição
recebe a seiva que lhe garante a identidade, bem como o incentivo a beber na rica fonte dos Salmos
e demais cânticos bíblicos do Antigo e Novo Testamento. As melhores composições produzidas
ao longo da experiência celebrativa das Igrejas, todas elas de forte inspiração bíblica, são também
nossas melhores referências 5.
178
4) A Música Litúrgica se insere na dinâmica do memorial, própria e original da tradição judaico-
cristã: é canto, são palavras, melodias, ritmos, harmonias, gestos, dança... a serviço da recordação
dos fatos salvífico, um passado significativo que aflora nos acontecimentos, no hoje, no aqui-e-
agora da comunidade cristã, a qual prolonga a experiência da Mãe do Senhor, de quem se diz que
guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração (Lc 2,19; cf. 51b)6.
5) A Música Litúrgica tem o papel pedagógico de levar a comunidade celebrante a penetrar sempre
mais profundamente o Mistério de Cristo7. Por sua força e suavidade, capacita-a, com singular
eficácia, a experimentar e entender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura,
a profundidade... (...) o amor de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento (Ef 3,18-19).
6) A Música Litúrgica brota da ação do Espírito Santo, que suscita na assembleia celebrante o fervor
e alegria pascais, provocando em quem canta uma atitude de esperança e amor, diante da realidade
em que vive8. Sua tônica principal é e será sempre a alegria escatológica: mesmo vivendo em
meio a rupturas dolorosas de todo tipo de opressão, exclusão e morte, a Música Litúrgica expressa
a esperança de um novo céu e uma nova terra (Ap 21,1; cf. Is 65,17)9.
7) A Música Litúrgica, a seu modo e por sua vez, expressa, finalmente, a natureza e
sacramentalidade da Igreja, Povo de Deus, Corpo de Cristo, na diversidade de seus membros e
ministérios, já que há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de
ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diferentes atividades, mas é o mesmo Deus que realiza
tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, em vista do bem de todos(1Co 12,4-
7)10.
II – Do ponto de vista litúrgico:
1) A Música Litúrgica autêntica traz consigo o selo da participação comunitária. Ela reflete o direito
que todo cristão e toda cristã têm, por força do sacerdócio batismal, de expressar-se como
assembleia celebrante que louva e agradece, suplica e oferece por Cristo, com Cristo e em Cristo,
ao Pai, na unidade do Espírito Santo. Cantando, tocando e dançando, a assembleia celebrante,
qual nação santa, povo que ele conquistou, proclama os grandes feitos daquele que nos chamou
das trevas a sua luz maravilhosa (1Pd 2,9)11.
2) A Música Litúrgica manifesta o caráter ministerial de toda a Igreja, corpo de Cristo, ao mesmo
tempo, uno e diverso, com membros e funções diferentes, se bem que organicamente convergentes:
nem todos, a todo momento, fazem tudo. A um(a) cabe animar, a outro(a) interpretar. A um(a),
presidir, aos demais, responder. Um(a) é o(a) que proclama, os(as) demais escutam. Embora todos
e todas comunguem na mesma fé, vibrem na mesma alegria e, a seu tempo, cantem em uníssono e
se balancem no mesmo ritmo, em total sintonia e prazerosa harmonia12.
3) A Música Litúrgica é música ritual. Como tal, ela tem um caráter exigentemente funcional,
precisando adequar-se à especificidade de cada momento ou elemento ritual de cada tipo de
celebração, à originalidade de cada Tempo Litúrgico, à singularidade de cada Festa13.
4) A Música Litúrgica está a serviço da Palavra. Sua grande finalidade é, portanto, realçar a Palavra
emprestando-lhe sua força de expressão e motivação. Jamais poderá, portanto, empaná-la ou
dificultar-lhe a audição, compreensão e assimilação14.
5) A Música Litúrgica expressa o mistério pascal de Cristo, de acordo com o tempo do ano litúrgico
e suas festas15.
III - Do ponto de vista pastoral:
1) A Música Litúrgica, por um lado, encarna as finezas e cuidados do Bom Pastor para com seu
rebanho. Quem exerce algum tipo de ministério litúrgico musical prima, então, por adequar-se à
diversidade dos ambientes sociais e culturais, às vivências e contingências do cotidiano, às
possibilidades e limitações de cada assembleia. Cabe-lhe, portanto, com sensibilidade e sensatez,
não só ajudar na escolha, no aprendizado e na utilização do repertório mais conveniente, mas
também cuidar oportunamente da formação litúrgico-musical da assembleia.
2) A Música Litúrgica, por outro lado, reflete aquela solidariedade que caracteriza os discípulos de
Cristo na sua relação com toda a Humanidade, pois, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as

179
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra
nada de verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração. (...)Portanto a comunidade
cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua história” 16.
3) A Música Litúrgica, enfim, é fruto da inspiração de quem vive inserido/a no meio do povo e no
seio da comunidade eclesial, em profunda sintonia com o Mistério de Cristo, contemplado, à luz
das Escrituras, no dia-a-dia da vida17. Uma música assim produzida leva a assembleia a celebrar,
como Maria na casa de Izabel, a ação transformadora e libertadora do Deus-Pastor. O Cântico de
Maria, por sinal, cantado todas as tardes no Ofício de Vésperas e no momento da comunhão nas
festas marianas, é a grande referência do canto da Igreja, onde cada autor e compositor deveria se
espelhar.
IV – Do ponto de vista estético:
1) A Música Litúrgica, em todos os seus elementos, palavra, melodia, ritmo, harmonia... participa
da natureza simbólica e sacramental da Liturgia cristã, celebração do Mistério de Cristo18.
2) A Música Litúrgica, ao mesmo tempo, brota da cultura musical do povo, de onde provêm os
participantes da assembleia celebrante. Nesta cultura, então, é que, prioritariamente, busca e
encontra os gêneros musicais que melhor se encaixem na variedade dos Tempos Litúrgicos, das
Festas e dos vários momentos ou elementos rituais de cada celebração: toda linguagem musical é
bem-vinda, desde que seja expressão autêntica e genuína da assembleia19.
3) A Música Litúrgica privilegia a linguagem poética. Toda autêntica experiência de oração é antes
de tudo uma experiência poética, e a linguagem poética, portanto, é a que mais se ajusta ao caráter
simbólico da Liturgia. Evitem-se, portanto, textos de cunho explicativo ou didático, textos
doutrinários, catequéticos, moralizantes ou ideologizantes, estranhos à experiência propriamente
celebrativa20.
4) A Música Litúrgica prioriza o texto, a letra, colocando tudo mais a serviço da plena expressão da
palavra, de acordo com os momentos e elementos de cada rito21: uma coisa é musicar um texto
para canto de abertura, outra é musicar um texto como salmo responsorial; uma coisa é musicar
uma aclamação ao Evangelho, outra, musicar um texto para a procissão das oferendas ou da
comunhão; uma coisa é musicar um texto para o ato penitencial, outra musicar a aclamação
angélica do “Santo”; uma coisa é musicar a prece eucarística, outra a bênção da água batismal,
outra, ainda, o invitatório no início do Ofício Divino; uma coisa é musicar um repertório para o
Tempo da Quaresma, outra musicar um repertório para a Festa do Natal... Muito vai depender,
também, da própria experiência litúrgico-espiritual de quem compõe ou da assembleia para a qual
se compõe.
5) A Música Litúrgica é chamada a realizar perfeita simbiose (combinação vital) entre a palavra
(texto, letra) e a música que a interpreta. Esta simbiose implica, inclusive, em que o texto seja
composto de tal maneira que a métrica e a cadência dos versos, bem como os acentos das palavras
sejam convenientemente levados em conta pela música, evitando-se descompassos, desencontros
e dissonâncias entre o embalo da música e a cadência dos versos ou os acentos de cada palavra22.
6) A Música Litúrgica prescinde de tensões harmônicas exageradas. A riqueza de expressão do
sistema modal do canto gregoriano e a grandiosidade da polifonia sacra continuam sendo
referenciais inspiradores para quem se dedica ao fazer litúrgico-musical.
7) A Música Litúrgica, ao ser executada, embora se destine a ser expressão autêntica de tal ou qual
assembleia, prima por manter-se fiel à concepção original do(a) autor(a), conforme está expressa
na partitura, sob pena de perder as riquezas originais da sua inspiração e, consequentemente,
empobrecer lhe a qualidade estética e densidade espiritual.

Exultai, justos, no Senhor, que merece o louvor dos que são bons.
Louvai o Senhor com cítara, com a harpa de dez cordas cantai-lhe.
Cantai-lhe um cântico novo, tocai a cítara com arte, bradai.
(Sl 33,1-3)

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Notas de rodapé
1 A pedido da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia, da CNBB, a editora PAULUS houve por
bem publicar na coleção “Documentos da Igreja”, num único volume, os “Documentos sobre a Música
Litúrgica”, que vão do Motuproprio “Tra le Sollecitudini” de Pio X (1903), ao “A Música Litúrgica
no Brasil” (Estudos da CNBB, nº 79), 1998.
2 Isto é, a norma da oração é a norma da fé, ou seja, a oração é a condicionante mais importante da fé,
ou ainda, a oração é a expressão e o alimento mais importante da fé, ou seja, a gente crê do jeito que a
gente ora.
3 Cf. MLB, 47-78.
4 Cf. SC 38-40, 119; MLB 211-219.
5 Cf. SC 121; MLB 80-95.
6 Cf. MLB 190.
7 Cf. MLB 350.
8 Cf. MLB 352.
9 Cf. MLB 351.
10 Cf. MLB 347.
11 Cf. SC 14; PMLB 2.2.1; MLB 165-178, 354.
12 Cf. SC 28
13 Cf. SC 112, 107; MLB 189-202.
14 Cf. SC 121; PMLB 2.1.4; MLB 203-204.
15 Cf. SC 102-111.
16 GS 1.
17 PMLB 2.2.5.
18 Cf. SC 121; MLB 194.
19 Cf. SC 39-40, 119; MS 54-61; PMLB 2.1.5.
20 Cf. MS 61; MLB 191.
21 Cf. SC 112, 121; PMLB 2.1.4.
22 Cf. SC 116; MS 50; MLB 345-346.

181
LITURGIA AÇÃO MISTAGOGICA
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA

1. Teologia a partir do rito (Edmar Perón 2)


Duas pessoas visitaram a cidade mineira de Ouro Preto, famosa por sua história. A primeira,
ao chegar, dispensou a ajuda de um guia; preferiu caminhar sozinha, "livre"; rapidamente a monotonia
a invadiu, as igrejas eram "todas iguais" e as casas, "muito velhas". Voltou para casa decepcionada
com o passeio; achou tudo "um tédio".
A outra pessoa, reconhecendo que desconhecia as ruas por onde andar e o que de mais
importante teria para visitar, aceitou de bom grado a ajuda preciosa de um guia local. Ficou encantada
com as ruas estreitas e seus casarios antigos, de cores fortes; maravilhou-se com as igrejas e os
pequenos monumentos; descobriu encanto em cada detalhe! A história era viva, atual! "Como valeu a
pena" o passeio! "Que vontade de voltar!".
Creio que isso possa acontecer também com as pessoas que desejam entrar na "cidade"
chamada Liturgia e percorrer, passo a passo, as ruas dos sinais, dos gestos e das palavras, no grande
"bairro" do rito! Poderá fazer uma boa e profunda experiência de fé (isso é ritualidade!) ou, cansada,
achar tudo muito tedioso, sem vida (o que chamamos ritualismo). Uma coisa é certa: quem faz a
experiência da ritualidade entra na cidade Liturgia e continua a percorrer muitas vezes e sempre mais
maravilhada as mesmas ruas e a visitar os mesmos monumentos: tudo tem vida, ilumina, encanta, tem
sentido... A fé e a espiritualidade se renovam e a compreensão é sempre mais clara e profunda!
Por isso convido você, leitor, a percorrermos juntos esses caminhos da Liturgia,
particularmente o bairro do rito celebrado, auxiliados por muitos guias, homens e mulheres que, ao
longo da história da Igreja, já passaram muitas vezes por ele e são para nós testemunhas: catequistas e
papas, pessoas estudiosas e sábias, gente simples, amada e, muitas vezes, criticada, mas sempre
importantes para nós porque testemunhas de fé, pois:
"Na tradição mais antiga da Igreja, o caminho formativo do cristão - embora sem descurar a
inteligência sistemática dos conteúdos da fé - assumia sempre um caráter de experiência, em que era
determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo anunciado por autênticas testemunhas. Nesse
sentido, quem introduz nos mistérios é primariamente a testemunha"!3
Da celebração do mistério à sua compreensão
Se você é daquelas pessoas que deseja sempre mais e procura formação contínua certamente
tem lido esta Revista de Liturgia; pois bem, ela tem-se empenhado em nos ajudar a (re)descobrir a
importância da celebração litúrgica para a compreensão da fé: a mistagogia litúrgica. Isso tem-se
revelado sobretudo no modo como o conteúdo das colunas e dos artigos tem sido apresentado; esse
empenho ganhou reforços vindos de vários eventos nacionais:
● A REDE CELEBRA que, desde 1995, tem-se colocado a serviço de uma liturgia orante,
participativa, popular, libertadora e centrada no Mistério Pascal de Cristo; com um método de
formação que parte do rito para chegar ao conhecimento.
● A assembleia da ASLI, Associação dos professores de liturgia do Brasil (31/janeiro a
4/fevereiro/2005), que estudou O Rito como fonte da teologia litúrgica;
● O Seminário sobre a Eucaristia na vida da Igreja, promovido pela CNBB (11-14 de
fevereiro/2005), cujo método empregado foi do rito à teologia e à espiritualidade;
● A 20ª Semana de Liturgia (16-20/outubro/2006) com seu tema O método mistagógico no Rito
de Iniciação Cristã de Adultos.
● Ultimamente esse método foi reproposto a toda a Igreja Católica Romana pela XI Assembleia
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (2-23/10/2005) e confirmado pelo documento do papa Bento
XVI "Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentam Caritatis sobre a Eucaristia fonte e ápice da vida
e da missão da Igreja" (22 / fevereiro/2007).
São, pois, algumas referências que mostram o quanto temos necessidade desse método.
"Por que usar esse método"?
Talvez permaneçam inquietações quanto a esse método: a mistagogia.
Tentarei oferecer a você alguns elementos para a sua reflexão:
182
1°) É um método acessível a todas as pessoas; não exige a leitura de um livro; apenas aquela
participação atenta, de quem está com o coração "em Deus", orientado para ele, "conectado" nele, e
que responde com sinceridade, na OE, o nosso coração está em Deus. Como ensina o Concílio, SC 11:
"É necessário, que os fiéis celebrem a Liturgia com retidão de espírito, unam a sua mente às palavras
que pronunciam [aos gestos que realizam e, desse modo], cooperem com a graça de Deus (cf. 2Cor
6,1)"
2°) "Do rito à teologia e à espiritualidade... seguindo o exemplo dos padres da Igreja, que não
refletiam teoricamente sobre a eucaristia e os demais sacramentos, mas partiam do que os fiéis haviam
vivenciado na celebração, para desentranhar, a partir daí, o sentido do sacramento"4.
Essa afirmação da CNBB está a nos indicar que a mistagogia foi um método provado e
aprovado pela tradição da Igreja5; marcou fortemente o seu primeiro milênio, foi deixado de lado por
vários séculos do segundo, mas finalmente, redescoberto no século XX, particularmente pelo
Movimento Litúrgico6. E mais, não refletiam teoricamente, mas a partir do que os fiéis haviam
vivenciado na celebração. Esse método parte do rito - ou seja, dos sinais, gestos e palavras da
celebração - para nos conduzir à compreensão do que celebramos (vai da prática à teoria, da experiência
da fé à sua inteligência). Como em uma escada, de degraus em degraus, poderemos alcançar novas
vivências e compreensões. É um processo constante de transfiguração!
3°) A mistagogia litúrgica suscita a participação ativa, consciente e frutuosa no único e mesmo
mistério pascal, celebrado na liturgia e vivido no cotidiano; arranca-nos da superficialidade de uma
"atividade exterior durante a celebração"; e, muito mais do que isso, nos dá uma "maior consciência
do mistério que é celebrado e da sua relação com a vida cotidiana" (SCa 52); "que os cristãos não
entrem nesse mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada,
consciente, ativa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações (SC 48).
A mistagogia nos ensina a mergulhar, a entrar no mistério da fé, pois a celebração é uma
experiência a ser vivida, um encontro de irmãos e irmãs com o Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. É
comunhão com a Santíssima Trindade!
4°) Enfim, ele respeita o princípio eclesial que une a norma da fé à norma da oração,
reconhecendo que o primeiro lugar pertence à ação litúrgica: lex orandi lex credendi: a "reflexão
teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo" (SC. 34)7
E para terminar, retomo a comparação inicial.
Ao longo de 2008 não poderemos visitar todos os lugares da cidade Liturgia, por isso nos
deteremos no bairro do rito celebrado, entraremos na grande, imponente, sóbria e milenar construção
da Oração Eucarística - seu monumento principal. A partir dela, tentaremos aprofundar um pouco
mais o sentido da eucaristia, através da mistagogia eucarística (certamente marcada pelos meus limites
intelectuais, mas principalmente por minha paixão pela liturgia). Percorramos este caminho.
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
2. Fazei isto em memória de mim
A você que aceitou visitar a cidade Liturgia, venha e conheça um pouco melhor o grande
monumento da Oração Eucarística, situado no bairro do Rito Celebrado. Repare a luz que o ilumina:
ela tem sua origem no próprio Senhor, quando, na noite em que ia ser entregue, celebrando a ceia com
seus discípulos, ordenou: "Fazei isto em memória de mim".
Com essa luz, queremos ver mais nitidamente todo o nosso "monumento", neste e nos
próximos quatro artigos.

O Rito celebrado
Quantas vezes, ao participarmos da Celebração Eucarística, você e eu ouvimos, ao final da
narrativa da instituição, a ordem de Jesus: "Fazei isto em memória de mim". Pode até ser que a
tenhamos ouvido (e, no meu caso, dito) de forma rotineira, fora da ação do Espírito, sem espiritualidade
ou unção, o que nos fizera experimentar a frieza do ritualismo! Mas, saiamos dessa atitude. Apreciemos
essa belíssima oração.
Quero lembrar que a Igreja considera a Oração Eucarística como centro e ápice de toda a
celebração, prece de ação de graças e santificação... Embora presidencial, o sentido desta oração é
183
que toda a assembleia se una com Cristo na proclamação das maravilhas de Deus e na oblação do
sacrifício (IGMR 78).
Essa oração é um todo no qual podemos identificar vários elementos, dentre os quais quero
chamar a sua atenção para dois deles:
a) a narrativa da instituição, quando pelas palavras e ações de Cristo, se realiza o sacrifício
que Ele instituiu na última Ceia, ao oferecer o seu Corpo e Sangue sob as espécies de pão e vinho, e
ao entregá-los aos apóstolos como comida e bebida, dando-lhes a ordem de perpetuar este mistério
(IGMR 78d);
b) e a anamnese, pela qual, cumprindo a ordem recebida do Cristo Senhor através dos
Apóstolos, a Igreja faz a memória do próprio Cristo, relembrando principalmente a sua bem-
aventurada paixão, a gloriosa ressurreição e a ascensão aos céus (IGMR78e). 8
Em cada uma das catorze orações eucarísticas do Missal Romano, as palavras do Senhor são
idênticas. Entretanto, como poderá ser observado na citação a seguir, naquelas três Orações
Eucarísticas chamadas de para missas com crianças, fora acrescentada a expressão “E disse também"
antes das palavras "Fazei isto em memória de mim". Desse modo, as crianças podem distinguir com
maior clareza o que se pronuncia sobre o pão e o vinho, daquilo que se refere ao mandato do Senhor
9 (provavelmente não apenas elas entenderão melhor!):
⮚ Tomai, todos, e comei, isto é o meu corpo que será entregue por vós.
⮚ Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança,
⮚ que será derramado por vós e por todos, para remissão dos pecadas.
⮚ E disse também: Fazei isto em memória de mim.
⮚ Em seguida. após ouvir o Eis o mistério da fé, a assembleia aclama: anunciamos, Senhor, a
vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!10
E quem preside retoma: celebrando, pois, a memória da paixão do vosso Filho, da sua
ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão aos céus...11
Percebeu? Nesses trechos o termo memória oferece como que uma moldura ao quadro da
aclamação da assembleia! E moldura e quadro revelam juntos, a beleza do todo e se complementam
mutuamente, oferecendo-nos o sentido do rito celebrado.
Para os cristãos a Eucaristia é memorial, e numa medida incomparável: não se limita
a recordar, mas atualiza [torna presente] sacramentalmente a morte e ressurreição do Senhor, disse
o papa João Paulo II12.
E na missa vespertina da Ceia do Senhor, rezamos: Concedei-nos, ó Deus, a graça de
participar dignamente da Eucaristia, pois todas as vezes que celebramos este sacrifício em memória
do vosso Filho, torna-se presente a nossa redenção13.
Bíblia: fazei-o em memória de mim
Em cada missa, celebramos, portanto, na tradição da Igreja, a memória do Senhor, cujos
alicerces já se encontram na tradição bíblica do Antigo Testamento, e alcança sua plenitude em Jesus
Cristo. Vamos juntos retomar alguns textos bíblicos.
Quando o Livro Sagrado fala da Páscoa, no contexto da libertação da escravidão do Egito,
assim se expressa:
“Cada um tomará para si um cordeiro por família... [e no 14º dia do mês de nisã) toda a
assembleia da comunidade de Israel o imolará ao crepúsculo. Tomarão do seu sangue e po-lo-ão sobre
os dois marcos da porta (...) O sangue, porém, será para vós um sinal (...) passarei adiante e não
haverá entre vós o flagelo destruidor (...) Este dia será para vós um memorial, e o celebrareis como
uma festa para Iahweh; nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo" (cf. Ex 12,1-14)14.
Essa festa pascal é um memorial, celebrado de geração em geração. Por isso, cada geração, ao
celebrar a páscoa, faz a experiência da própria libertação: “Amanhã (...) dirás a teu filho: "Nós éramos
escravos do Faraó no Egito, mas Iahweh nos fez sair do Egito com mão forte" (Dt 6,21). Naquele dia
(...) assim falarás a teu filho: "Eis o que Iahweh fez por mim, quando saí do Egito" (Ex 13,8).
O memorial é o perene hoje da ação libertadora de Deus em favor do seu povo, de tal
forma que, ao celebrar anualmente a páscoa como um memorial, cada geração sai hoje da terra da
escravidão - o Egito - e participa da libertação que Deus continua a realizar hoje.
184
Para cada geração, o relato do pai de família é essencial ao rito; pela palavra é reavivada a
memória do passado, daquela salvação que Deus realizou em favor do seu povo. Após ouvir na liturgia
o que Deus fez aos pais no passado o povo se reconhece diante do mesmo Deus que age no agora de
sua história15.
Esta obra - o memorial da libertação - foi sendo realizada pelas gerações do povo de Israel,
até que, chegada a plenitude dos tempos, Jesus Cristo a concluiu naquela ceia derradeira: Quando
chegou a hora, ele se pôs à mesa com os apóstolos [...] tomou um pão, deu graças, partiu e distribuiu-
o a eles dizendo: "Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória". E, depois de
comer, fez o mesmo com o cálice, dizendo: "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, derramado
em favor de vós" (cf. Lc 22,14.19-20)16.
A hora decisiva chegou! É a páscoa do Senhor! A hora da salvação! Jesus celebra uma páscoa
com seus amigos na noite em que ia ser entregue. É a última, aquela que precede a manifestação do
Reino de Deus em sua morte e ressurreição e nela se cumprem as expectativas de libertação do Antigo
Testamento, recordadas cada ano na ceia do êxodo no Egito (cf. Ex 12).
Para entendermos melhor o sentido do que Jesus falou, tomemos suas palavras: Fazei isto... É
a ordem que recebemos de Jesus e não simples exortação; ela tem em vista apenas os gestos e as
palavras sobre o pão e sobre o cálice: comer e beber, participar da vida de Jesus Cristo, pois o cálice
de bênção é comunhão com o sangue de Cristo, e o pão que partimos é comunhão com o corpo de
Cristo (cf. 1Cor 10,16).
É o meu corpo que é dado... Jesus se refere à totalidade de sua pessoa. É como se ele dissesse:
"Isto é o meu corpo, eu mesmo, minha pessoa, minha existência dada por vós"17.
É o meu sangue que é derramado... Na bíblia o sangue é símbolo de vida e, por isso mesmo,
é por meio dele que a aliança entre Deus e a humanidade é selada (cf. Ex 24,8). Nos lábios de Jesus,
tal expressão significa sua vida livremente entregue à morte violenta, como gesto supremo de fidelidade
ao Pai e de solidariedade com os homens e mulheres de todos os tempos, libertando-os: é o sangue da
nova e eterna aliança. A aliança que se realiza na entrega de sua vida - corpo dado e sangue
derramado.
Em minha memória! Os discípulos não farão mais a memória da libertação do Egito. Sem
dúvida, trata-se ainda da salvação concedida por Deus... Mas o que é inteiramente novo é a
personalização daquilo que a memória visa. O acontecimento celebrado é a ação de Deus na pessoa
de Jesus"18.
Ao celebrar uma ceia, Jesus deixa aos seus discípulos um sacramento da sua vida entregue:
do seu corpo dado e do seu sangue derramado. É o sacramento da Cruz, banhada na luz vitoriosa da
Ressurreição: mistério pascal, mistério da fé! Ele instituiu o sacramento do que estava por acontecer:
sua doação total, cujo símbolo maior é a Cruz. Hoje, em cada santa missa, a Igreja torna presente o
Senhor, faz a memória d'Ele, do seu mistério pascal, fato já acontecido, único, irrepetível e sempre
atual (cf. 1Cor 11,26). Assim, a cada geração é dada a possibilidade de participar do mesmo sacramento
do Senhor, até que Ele venha!
É justamente isto que nos ensina o Apóstolo: “Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que
vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-
o e disse: "Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim". Do mesmo modo, após
a ceia, também tomou o cálice, dizendo: "Este cálice é a nova aliança em meu sangue, todas as vezes
que dele beberdes, fazei-o em memória de mim". Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis
desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha (1Cor 11,23-26).
Portanto, a última refeição que Jesus tomou com seus discípulos antes de morrer recebeu nos
evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas a característica de ceia pascal, assimilando e modificando os
significados teológicos contidos na ceia judaica19. Nela, Jesus transformou o evento da cruz e
ressurreição em um ato de culto perene e vivificante, instituiu uma eucaristia (ou seja, uma ação de
graças ao Deus salvador) e fundou também um memorial perene do evento histórico da sua paixão,
morte e ressurreição20.

185
Significado dos ritos para a vida cristã
Há uma relação entre o mistério celebrado no rito e a totalidade da vida cristã de tal maneira
que a própria vida vai sendo progressivamente transformada pelos sagrados mistérios celebrados
(SCa 64)21. Compreendemos, pela palavra de Bento XVI, que a celebração consciente e ativa será
sempre frutuosa, rompendo com aquela visão dualista que separa fé e vida, celebração e cotidiano
cristão, já radicalmente criticada pelos profetas (AT) e por Jesus.
Passando, pois, da celebração do memorial eucarístico à nossa vida, gostaria de destacar a
atitude da doação. Quem "visita" o memorial do Senhor, isto é, faz sua memória na celebração
eucarística, é chamado a entrar no mistério da vida de Cristo, que foi toda ela, desde a Encarnação até
a Cruz, unicamente doação (cf. Fl 2,5-11). Pela participação no memorial do Senhor, você vai deixando
que esse mistério transfigure a sua vida. Tal participação possibilita que você fique mais parecido (a)
com Jesus, tenha vida eucarística, sinta a alegria profunda de poder arriscar a sua própria vida como
ele o fez e, hoje, seja fiel ao Pai e a seu Reino e solidário com os irmãos. Enfim, à luz da páscoa do
Senhor, o seu modo de vida cristã ajudará os homens e a sociedade a passar de situações menos
humanas para situações mais humanas. Assim, poderá testemunhar Jesus Cristo, no ambiente onde
estiver, sendo uma pessoa nova, adulta na fé, sempre mais transformada pela celebração.
E, como rezamos ao terminar a celebração do 1º Domingo do Tempo Comum: Deus todo
poderoso, que refazeis as nossas forças pelos vossos sacramentos, nós vos suplicamos a graça de vos
servir para uma vida que vos agrade. Amém.

MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
3. Mandai vosso Espírito Santo!
Enquanto me preparava para prosseguir nossa "mistagogia" sobre o grande e central
monumento da Oração Eucarística (que os Santos Padres me perdoem por tal ousadia!), tive a
oportunidade de reler a Instrução, da ainda Sagrada Congregação dos Ritos, sobre o culto do mistério
eucarístico
- Eucharisticum mysterium (25/maio/1967) - da qual, a modo de introdução, quero destacar
um texto que me animou a prosseguir com vocês o caminho iniciado. Depois de recordar que o Concílio
de Trento (1545-1563) havia ordenado aos Pastores da Igreja o encargo de exporem, com frequência,
durante a celebração da Missa, por si ou por outros, um dentre os textos lidos na Missa, para alimento
das ovelhas de Cristo, isto é, os fiéis (DH 1749), o citado documento apresenta a mesma necessidade
para estes tempos pós Vaticano II (1962-1965): partir da celebração para falar da celebração e a ela
conduzir, como as grandes catequeses da Igreja Antiga: Os pastores, portanto, conduzam os fiéis, por
uma conveniente catequese, à completa compreensão deste mistério da fé, partindo dos mix4x4stérios
do Ano Litúrgico e dos ritos e orações que coincidem com a celebração, de forma que ilustrem o seu
sentido e, especialmente o da grande Oração Eucarística, e levem à profunda compreensão do mistério
que os ritos e as preces significam e realizam (EM 15). Assim, encorajados, vejamos mais uma parte
do nosso monumento único; procuraremos compreender as suas partes uma por uma, mas sem perder
de vista que não poderão jamais serem separadas, caso contrário destruiríamos o próprio "monumento",
isto é, a Oração Eucarística, toda ela é uma prece de ação de graças e santificação.
O rito celebrado
Convido você a fixar sua atenção nas invocações ao Espírito Santo (=epiclese), presentes na
Oração Eucarística, e que nos ajudarão a passar do rito à teologia. "Juntamente com a anamnese, a
epiclese está no cerne de cada celebração sacramental, mais especialmente da Eucaristia" (Catecismo,
1106). Epiclese significa "invocar sobre". É a oração pela qual a "Igreja implora a força do Espírito
Santo para que os dons oferecidos pelo ser humano sejam consagrados, isto é, se tornem o Corpo e
Sangue de Cristo, e que a hóstia imaculada se torne a salvação daqueles que vão recebê-la em
Comunhão" (IGMR 78c). Tais invocações são duas, segundo a estrutura das Orações Eucarísticas do
Missal Romano: uma sobre as oferendas do pão e do vinho e outra sobre a assembleia que comungará
dos dons eucarísticos. Observemos essas invocações a partir da nossa Oração Eucarística V, composta
por ocasião do Congresso Eucarístico de Manaus.

186
A primeira invocação, também chamada epiclese de consagração, é feita impondo as mãos
sobre os dons do pão e do vinho ou oferendas, enquanto se suplica ao Pai: "mandai vosso Espírito
Santo para que as nossas ofertas [melhor: oferendas] se mudem no Corpo e no Sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo". E o povo aclama: "Mandai vosso Espírito Santo!"22.
Após a narrativa da instituição, a anamnese e o ofertório, tem lugar a segunda invocação ao
Espírito Santo ou epiclese de comunhão: "E quando recebermos Pão e Vinho, o Corpo e Sangue dele
oferecidos, o Espírito nos una num só corpo, para sermos um só povo em seu amor". E o povo aclama:
"O Espírito nos una num só corpo!". Igualmente nas orações eucarísticas I e II, a epiclese de
consagração pede que pão e vinho "se tornem para nós", isto é, para aquela comunidade de celebrantes
da liturgia sacramental23, "o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo", o Filho de Deus e nosso Senhor. O
"para nós" está a apontar a epiclese de comunhão. O pão e o vinho serão transformados e as pessoas
que deles provarem experimentarão seus frutos: a) a comunhão eclesial, quando o próprio "Espírito
Santo" as tornará "em Cristo um só corpo e um só espírito..." (OE III), serão reunidas "pelo Espírito
Santo num só corpo" (OE II); b) a plenitude "de todas as graças e bênçãos do céu" (OE I); c) ser um
"sacrifício vivo para o louvor da glória" de Deus Pai (OE IV).
Desse modo, "o Espírito, invocado sobre os dons do pão e do vinho colocados sobre o altar, é
o mesmo que reúne os fiéis 'num só corpo"' e os conduz à participação no Mistério Pascal24. Ele realiza
no hoje da história de cada fiel, da Igreja, e do mundo inteiro - para sua atual salvação – o Corpo
Eucarístico do Senhor e o seu Corpo eclesial. Assim a Eucaristia e a Igreja estão de tal forma
relacionadas com o Espírito que não poderíamos falar delas sem a ação d'Ele, o Espírito Criador25: Veni
Creator Spiritus
Bíblia: Vem, Espírito Criador!
"Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida...", assim a Igreja professa no Creio chamado
Niceno-Constantinopolitano. O Espírito é aquele que dá a vida. Essa luz vem da Bíblia e nos ajudará a
“enxergar” melhor a Ação do Espírito, em particular na Oração Eucarística.
- Criação26. "O Espírito de Deus pairava sobre as águas" (Gn 1,2) é tido em referência ao
Espírito Santo, ainda que de modo embrionário; mas "perceber no Espírito de Deus que pairava sobre
as águas uma primeira velada alusão à realidade do Espírito desvela a compreensão de muitas outras
passagens da Bíblia". Há outras alusões bíblicas mais explícitas a respeito dessa atividade criadora do
Espírito: "O céu foi feito com a Palavra do Senhor, e seu exército com o sopro de sua boca" (Sl 33,6)27;
"Envias teu sopro [espírito] e eles são criados, e assim renovas a face da terra" (Sl 104,30).
- Encarnação. A ação criadora do Espírito alcança sua plenitude na Encarnação: por Ele o
"Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1,14), foi concebido no seio da Virgem Maria (Lc 1,35;
Mt 1,18). Lembremo-nos também de que toda a vida de Jesus foi marcada pela ação do Espírito Santo:
batismo (Mt 3,16 e par.), missão (Lc 4,1.14-21), entrega (Hb 9,14), ressurreição (At 10,38; Rm 1,4),
aparição (Jo 20,19-22).
- Igreja. O Espírito Santo é dom do Crucificado-Ressuscitado aos seus (Jo 16,7; 20,22). É o
mesmo Espírito que "gera" uma Igreja corajosa e missionária (At 2). Ele é quem mantém viva na Igreja
a memória de Jesus (Jo 14,26). Sabemos, pois, que o centro dessa memória é o Mistério Pascal de
Jesus, celebrado na liturgia, especialmente na Eucaristia. Não podemos falar de Igreja, nem de liturgia
sem a ação criadora daquele que é alma da Igreja, concedendo-lhe a vida nova, especialmente pelos
sacramentos.
Significado dos ritos para a vida cristã:
Cresce decidida e continuamente nossa consciência de que é "essencial viver e aprofundar a
fé na Eucaristia a partir da oração com a qual a Igreja desde sempre a celebra, isto é a Oração
Eucarística"28. Refletindo dessa vez sobre as invocações ao Espírito Santo (epicleses) nessa oração e
sua ação, procuremos encontrar alguma ajuda para a nossa vida cristã.
1. Uma atitude espiritual. Por primeiro creio que, aprofundando o sentido da Oração
Eucarística, deveremos reconhecer sua unidade e vencer algumas tentações que "destroem" esse
monumento central da cidade Liturgia, como por exemplo: interromper a oração para explicações a
respeito da transubstanciação eucarística ou para entoar hinos de adoração; querer "cronometrar a
realidade sacramental" interessando-nos unicamente pela transformação do pão e do vinho no

187
sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, deixando de lado a memória d'Ele, de sua Morte e
Ressurreição, celebrada até o seu retorno glorioso, como nos ensina o Apóstolo Paulo (cf. 1Cor 11,23-
26). Recordemo-nos sempre da teologia presente na Instrução Geral sobre o Missal Romano: "Inicia-
se então o momento central e culminante de toda a celebração, a Oração Eucarística, que é uma oração
de ação de graças e de consagração. (...) O sentido dessa oração é que toda a assembleia dos fiéis se
una a Cristo na proclamação das maravilhas de Deus e na oblação do sacrifício" (IGMR 78).
Assim reconhecemos que a "Oração Eucarística forma uma unidade de louvor, bênção, ação
de graças e súplica. É o conjunto dessa oração que tem valor consagrante. Isso é tão verdade que o
antigo Cânon Romano (atualmente, Oração Eucarística I), que não tem epiclese explícita, é
perfeitamente válido, como válida é a Anáfora de Addai e Mari, que não contém qualquer relato da
Instituição"29.
2. Um compromisso. Aproveitando-nos do jeito de meditar a Bíblia - leitura orante - tomar
nas mãos cada uma das Orações Eucarísticas e, auxiliados pelo Espírito, descobrir sua beleza, encanto
e profundidade. Assim aprenderemos a rezar de modo libertador, descobrindo a ação de Deus em
nossas vidas, e, por isso, dando-lhe graças, pois nisso consiste "nosso dever e nossa salvação". Os
passos são bem simples, podem ser feitos em grupo ou sozinho (a):
a. Rezar ao Espírito Santo;
b. Ler/reler o texto quantas vezes for necessário para entender o que o texto diz, mas sem
interpretá-lo, apenas acolhendo-o como um dom;
c. Meditar: o que o texto diz para nós (ou para mim) hoje, como me ajuda a descobrir a ação
sempre atual de Deus?
d. Orar: deixar que do coração brote a oração, aquilo que o texto meditado me leva a dizer
a Deus. Esses passos nos levam à contemplação do mistério do amor de Deus por nós e ao
compromisso de viver em sua presença, com gratidão de filhos e filhas que são por Ele muito
amados30.
3. Um empenho cotidiano. Tendo celebrado a Eucaristia, participando da vida de Jesus
Cristo- Corpo entregue, Sangue derramado - empenhar-se em viver de acordo com aquela
transformação que o Espírito Santo realiza: reconhecendo-nos "um só corpo e um só espírito" passar
da dispersão para a reunião/união, do egoísmo para a solidariedade e fraternidade e a partilha, da
violência para a construção da paz e do amor, da mentira para a verdade, da injustiça para a justiça, do
consumismo para a pobreza... Enfim: passar "de condições de vida menos humanas para condições
mais humanas" (Medellín); passar de uma vida vivida "segundo a carne" para aquela realizadora, vivida
"segundo o Espírito" (Gl 5,16-25; Rm 8,5-12).
Finalmente, com os jovens presentes em Colônia, na XX Jornada Mundial da Juventude,
vamos de novo acolher as palavras do papa Bento XVI:
Jesus não nos deixou a tarefa de repetir a Ceia pascal que, de resto, como aniversário, não é
repetível a nosso bel-prazer. Deixou-nos a tarefa de entrar na sua "hora" [o mistério de sua páscoa].
Entramos nela mediante a palavra do poder sagrado da consagração, uma transformação que se
realiza mediante a oração de louvor (...). Essa oração chamada pela Igreja "oração eucarística"
realiza a Eucaristia. Ela é palavra de poder, que transforma os dons da terra de maneira totalmente
nova na doação de si da parte de Deus e envolve-nos nesse processo de transformação. Eis por que
chamamos a esse acontecimento Eucaristia, que é a tradução da palavra hebraica beraká
agradecimento, louvor, bênção, e assim transformação a partir do Senhor: presença da sua "hora". A
hora de Jesus é a hora em que o amor vence31.

MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
4. Recebei, ó Senhor, a nossa oferta!
Em todos os sacrifícios fazemos a memória da paixão de Cristo; com efeito, o sacrifício que
oferecemos é a paixão do Senhor32.
Encantados com o nosso magnífico "monumento" - a Oração Eucarística - demos mais um
passo e, para além de toda observação, é preciso "entrar" nele. É um santuário, lugar santo, no qual,

188
com quem preside, toda a assembleia entra "respeitosamente e em silêncio", mas também agradecendo,
aclamando, fazendo memória, oferecendo (cf. IGMR 78).
Dentre todos os enfoques que o tema deste artigo, a respeito do ofertório da missa, nos
proporciona, é preciso reconhecer nossa limitação e, principalmente, deixar-nos guiar pelos textos da
Oração Eucarística, o grande "monumento" da Igreja, único e uno. Lembremo-nos: se estamos vendo
suas partes é para que, distinguindo-as, possamos melhor compreendê-la e valorizá-la no seu todo. Esse
caminho pode parecer árduo, mas uma coisa é certa: a teologia jamais pode deixar de lado a celebração,
certos de que a esta cabe o primeiro lugar.
O rito celebrado
Onde acontece o "ofertório" na celebração eucarística? O que "oferecemos" na missa?
Ainda hoje, após trinta e oito anos do Missal Romano, publicado segundo os decretos do
Concílio Vaticano II e promulgado pelo papa Paulo VI, em 1970, muitos consideram "ofertório" a
"preparação das oferendas". Vejamos o que diz o rito: as oferendas do pão e do vinho, levadas
louvavelmente em procissão pelos fiéis, são tomadas nas mãos por quem preside e elevadas "um pouco
sobre o altar" enquanto ele reza: Bendito sejais, Senhor, Deus do universo... pelo pão... e, depois, pelo
vinho. A ele pode unir-se a assembleia, aclamando: Bendito seja Deus para sempre! Como podemos
notar, o rito celebrado não indica o ofertório da missa, mas sim a colocação dos dons sobre o altar,
acompanhados de uma oração para louvar e bendizer a Deus33.
E a Oração Eucarística? Aqui sim você encontrará o ofertório ou oblação da missa. Após a
narrativa da instituição e consagração, quem preside reza: "Celebrando, pois, a memória da paixão do
vosso Filho, da sua ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão aos céus, nós, vossos servos, e
também vosso povo santo, vos oferecemos, ó Pai, dentre os bens que nos destes, o sacrifício perfeito e
santo, pão da vida eterna e cálice da salvação"
(Oração Eucarística I - daqui em diante será citada apenas com as iniciais OE).
- "Celebrando agora, ó Pai, a memória do vosso Filho (...) nós vos oferecemos em ação de
graças este sacrifício de vida e santidade" (OE III).
- "Celebrando, agora, ó Pai, a memória da nossa redenção (...) nós vos oferecemos o seu Corpo
e Sangue, sacrifício do vosso agrado e salvação do mundo inteiro" (OE IV).
- "Recordamos, ó Pai, neste momento, a paixão de Jesus, nosso Senhor, sua ressurreição e
ascensão; nós queremos a vós oferecer este Pão que alimenta e que dá vida, este Vinho que nos salva
e dá coragem" (OE V).
E a assembleia aclama sempre: "Recebei, ó Senhor, a nossa oferta".
Portanto, o ofertório da missa acontece dentro da Oração Eucarística e é um componente
irrenunciável da anamnese (ou memorial), como aparece sinteticamente na OE II: - "Celebrando, pois,
a memória da morte e ressurreição do vosso Filho, nós vos oferecemos, ó Pai, o pão da vida e o cálice
da salvação". Esse "é o momento do ofertório por excelência de toda a celebração eucarística, com
exclusão de todo outro possível momento concorrente"34.
É a Igreja inteira, de modo especial aquela que aí está reunida, quem oferece no memorial que
naquele momento se celebra (cf. IGMR 79f); eis o que diz a OE I: "Celebrando, ... nós, vossos servos,
e também vosso povo santo, vos oferecemos...".
E se você me perguntasse "o que oferecemos?", lhe diria ser melhor perguntar: "quem se
oferece?".
Sem dúvida alguma a Igreja oferece hoje aquele que se ofereceu ao Pai uma vez por todas,
Cristo, em seu mistério pascal: o "sacrifício da cruz" foi "oferecido uma só vez" (Oração sobre as
oferendas, 21° Domingo, TC). Tudo, porém, o fazemos sob os sinais sacramentais do pão e do vinho,
os quais são, pela ação do Espírito Santo, "o pão da vida eterna e o cálice da salvação" (OE I e II); o
"Pão que alimenta e que dá vida" e o "Vinho que nos salva e dá coragem" (OE V).
Assim, as nossas oferendas do pão e do vinho tornam-se hoje ofertas: "o sacrifício de vida e
santidade" (OE III) e "salvação do mundo inteiro" (OE IV). Foi o próprio Deus quem, "no sacrifício
da cruz, único e perfeito", levou "à plenitude os sacrifícios da Antiga aliança" (Oração sobre as
oferendas, (16° Domingo, TC); e nós damos graças ao Pai, por Cristo, nossa Páscoa: "pela oblação de

189
seu corpo, pregado na cruz, levou à plenitude os sacrifícios antigos (...) cumprindo inteiramente a vossa
vontade, revelando-se, ao mesmo tempo, sacerdote, altar e cordeiro" (Prefácio da Páscoa V).
A teologia
Qual o sentido do sacrifício de Jesus? Como a bíblia o apresenta e a Igreja o compreende?
O Concílio Vaticano II, confirmando a tradição, afirmou que Jesus, nosso Salvador, "na noite
em que ia ser entregue" (OE II), durante a Última Ceia, instituiu "o Sacrifício eucarístico do seu Corpo
e do seu Sangue para perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o Sacrifício da cruz, confiando
à Igreja, sua esposa amada, o memorial da sua morte e ressurreição" (SC 47). Cenáculo e Gólgota, Ceia
e Cruz ficaram para sempre unidos.
Confiando à Igreja o memorial da sua Páscoa, o Senhor nos deixou o sacramento da sua Cruz.
Na última Ceia, o pão que ele partia era o sacramento do seu corpo... entregue, e o cálice que
ele dava era o sacramento do seu sangue... derramado: "Isto é o meu corpo que é dado por vós... Este
cálice é a nova Aliança em meu sangue, que é derramado em favor de vós" (Lc 22,19-20; Mt 26,26-
28; Mc 14,22-24). E, no discurso sobre o pão da vida, lemos: "o pão que eu darei é a minha carne para
a vida do mundo" (Jo 6,51c). Comendo daquele pão e bebendo daquele cálice do Senhor, os discípulos
tomavam (e tomam!) parte na sua vida doada "por muitos para remissão dos pecados".
Sobre isso nos ajuda a exegese recente: "a ceia do Senhor implica em uma presença pessoal
que se exprime em termos de corpo e sangue. O Cristo glorioso é dado no seu ser corporalpnemático
(cf. 1Cor 10,3). (...) A sua presença é atual (...). O ressuscitado traz consigo os sinais do Crucificado,
proclama e atualiza a memória da sua morte sobre a cruz: todas as vezes, pois, que comeis desse pão e
bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor (1Cor 11,26). O dom de si mesmo torna-se salvação
para todos, 'o sangue derramado por muitos' (Mc 14,24) e reassume a inteira existência de Jesus como
uma existência para os outros. Nos textos neotestamentários, a Eucaristia contém o valor expiatório do
sacrifício de Cristo (Mc 14,24; Mt 26,27; Lc 22,19s;1Cor 11,24)"35.
Aquele acontecimento da Cruz, a morte salvadora, o amor levado até o extremo, realizou-se
de modo único e definitivo. A Igreja não pode jamais repeti-lo; o que ela pode e faz é tornar aquela
entrega definitiva de Jesus presente ao longo das gerações, celebrando uma ceia: Reunião, Palavra,
Ação de Graças, Pão e Vinho partilhados (cf. SC 6). Uma só é a entrega de Cristo na Cruz, mas muitas
são (e serão, até que Ele venha!) as Ceias da Igreja, nas quais se torna presente, no "decorrer dos
séculos", aquela entrega única (cf. 1Cor 11,26). Fazemos uma ceia na qual tornamos presente aquela
entrega do Senhor, cujo Corpo foi entregue e cujo Sangue foi derramado por muitos, até o seu retorno
glorioso: Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor,
Jesus (Missal Romano, Aclamação memorial; cf. 1Cor 11,26).
O que Jesus Cristo fez, "o fez uma vez por todas, oferecendo-se a si mesmo" (Hb 7,27) e, por
sua ascensão, "entrou uma vez por todas no Santuário" dos Céus (Hb 9,12). Sim! Ele morreu uma única
vez, "o justo pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus. Morto na carne, foi vivificado no espírito"
(1Pd 3,18). "Morrendo, ele morreu para o pecado uma vez por todas; vivendo, ele vive para Deus" (Rm
6,10)36. Jesus, em sua doação total, no sacrifício de si mesmo, torna-se presente em cada eucaristia
(memorial) e se oferece e é oferecido (ofertório).
Não é a missa em si que é um sacrifício, mas a missa enquanto sacramento do sacrifício de
Jesus, enquanto memória da entrega total de Jesus ao Pai. Parece-me que podemos traduzir
corretamente o sentido de "sacrifício" por DOAÇÃO TOTAL, entrega sem reserva. "Eis-me aqui para
realizar teu projeto, ó Pai, para fazer tua vontade, para cumprir a missão que me confiaste" (cf. Hebreus
10,5-10 e Sl 40,7-9)37.

Significado dos ritos para a vida cristã


Esse "ofertório" e "sacrifício" é apenas algo restrito à celebração do culto cristão ou tem a ver
com o dia-a-dia das pessoas? Como pode cada pessoa "oferecer sacrifício", se esta é função própria
dos "sacerdotes"?
Jesus Cristo "fez do novo povo um reino sacerdotal para seu Deus e Pai (Ap 1,6; 5,9-10). Na
verdade, os batizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para serem
casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras próprias do cristão, ofereçam
190
oblações espirituais e anunciem os louvores daquele que das trevas os chamou à sua admirável luz (1Pd
2,4-10)" (LG 10). É assim, como "povo sacerdotal", que podemos (e devemos!) oferecer sacrifícios
agradáveis a Deus. Mas, o que são esses "sacrifícios"? Seriam as dores e o peso da vida?
É preciso ampliar nossos horizontes.
O Concílio diz que os fiéis são "convidados e levados a oferecer", juntamente com Cristo,
nossa Páscoa, "a si mesmos, os seus trabalhos e todas as coisas criadas"(PO 5). Como ensinava Paulo
ao exortar os romanos a oferecerem seus corpos, isto é, a própria vida, "como hóstia viva, santa e
agradável a Deus", rompendo com a mentalidade do mundo e discernindo cotidianamente "a vontade
de Deus, o que é bom, agradável e perfeito". Nisso consiste o "culto espiritual" dos cristãos (Rm 12,1-
2). Assim, fazer a vontade do Pai — o alimento de Jesus (Jo 4,34) e o sentido de seu "sacrifício —
será também e nosso sacrifício. Na missa, memorial da morte e da ressurreição do Senhor, a Igreja
deseja que os fiéis aprendam a oferecer-se a si mesmos, com Cristo, ao Pai, e, desse modo, "por Cristo
mediador, se esforcem por realizar de dia para dia a unidade perfeita com Deus entre si, até que
finalmente Deus seja tudo em todos" (SC 48).
Como podemos notar, não há nos textos conciliares uma separação entre culto e vida: quem,
na missa, oferece Cristo em seu "sacrifício na cruz", com Ele se oferece ao Pai naquele momento e nas
ações de cada dia. Oferecendo a Cristo, sob os sinais do Pão e do Vinho consagrados — Corpo e Sangue
do Senhor — suplicamos que o Espírito Santo "faça de nós uma oferenda perfeita" (OE III) e que,
"reunidos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos em Cristo um sacrifício vivo" para glória
de Deus Pai (OE IV). Nosso "ofertório" é Cristo e, com Ele, também a nossa vida é "ofertório", quando
consagrada a Deus a serviço do seu Reino "que também é nosso"!
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
5. Em comunhão com toda a Igreja aqui estamos!
Encantados, temos "observado" a beleza da Oração Eucarística e, com a ajuda do Espírito
Santo, "entrado" nela. Sim, ela é o "monumento" mais importante da "cidade" chamada Liturgia,
situado no vivificador "bairro" do rito!
Desta vez queremos destacar as "intercessões" que integram a Oração Eucarística. Se há em
nós o desejo de conhecer esta oração é justamente para celebrá-la com maior dignidade e fé, "ativa,
consciente e frutuosamente", em comunhão com toda a Igreja. Pois "o rito revigora e fortifica a fé"
(SCa 6).
Rito celebrado
Talvez você esteja se perguntando: mas há "intercessões" que compõem a Oração Eucarística?
As súplicas não aparecem exatamente antes da liturgia eucarística? Vejamos como o Missal
de Paulo VI as apresenta38.
A Instrução Geral do Missal Romano apresenta deste modo os principais elementos que
compõem a Oração Eucarística: ação de graças, aclamações, epiclese, narrativa da instituição (ou
consagração), anamnese, oblação (ou ofertório), intercessões, doxologia. A assembleia reunida
confirma e conclui toda a Oração com a aclamação Amém (IGMR 79). Logo, para construir o
monumento uno e belo da Oração Eucarística a Igreja utiliza-se de todos estes materiais.
A mesma Instrução nos dá o sentido das intercessões: por elas "se exprime que a Eucaristia é
celebrada em comunhão com toda a Igreja, tanto celeste como terrestre, que a oblação é feita por ela e
por todos os seus membros vivos e defuntos, que foram chamados a participar da redenção e da
salvação obtidas pelo Corpo e Sangue de Cristo" (79g).
São verdadeiras intercessões as que constituem a Oração Eucarística, porém o acento é
colocado sobre a comunhão eclesial daquela assembleia celebrante39. Tal dimensão de comunhão é tão
antiga que já no séc. VI eram consideradas fora da Igreja aquelas pessoas que, na Oração Eucarística,
não diziam o nome do papa40. Vejamos como isso aparece de modo concreto:
- "Nós as oferecemos também em comunhão com o vosso servo, o Papa N., o nosso Bispo N.,
e todos os que guardam a fé católica que receberam dos apóstolos" (OE I)41.
- "Senhor Deus, conduzi a vossa Igreja à perfeição na fé e no amor, em comunhão com o Papa
N., o nosso Bispo N., com todos os bispos, presbíteros e diáconos e todo o povo que conquistastes"
(OE VI-D).
191
Esta comunhão envolve num só abraço a terra e o céu: "Assim como aqui nos reunistes, ó Pai,
à mesa do vosso Filho em união com a Virgem Maria, Mãe de Deus, e com todos os santos" (OE VIII).
No mesmo abraço envolve os vivos e os defuntos: "Lembrai-vos, ó Pai da vossa Igreja...Lembrai-vos
também dos nossos irmãos e irmãs que morreram na esperança da ressurreição... Enfim, nós vos
pedimos, tende piedade de todos nós" (OE II)42.
Estes poucos exemplos explicitam a teologia da IGMR, apresentando todos os "que foram
chamados a participar da redenção e da salvação obtidas pelo Corpo e Sangue de Cristo". Em comunhão
com toda a Igreja, enfim, suplicamos a "força" - aquela "do Espírito Santo (At 1,8) - para construirmos
juntos o Reino de Deus (OE V) e assim, um dia sermos reunidos no "mundo novo", com "os homens e
as mulheres de todas as classes e nações, de todas as raças e línguas, para a ceia da comunhão eterna,
por Jesus Cristo, nosso Senhor" (OE VIII).
Teologia
Para aprofundar o tema, quero retomar apenas uns elementos da tradição bíblica e outros da
tradição eclesial.
Primeiramente a tradição bíblica do Novo Testamento; nela, a comunhão eclesial aparece na
oração de Jesus e da Comunidade. Na última ceia, "na noite em que ia ser traído", Jesus orou ao Pai
por todos os seus discípulos e discípulas: "Pai, que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em
mim, para que sejam perfeitos na unidade" (Jo 17,22-23). Assim, por vontade do próprio Senhor, a
comunhão entre os fiéis permanece ligada à instituição da eucaristia.
Tal intercessão e comunhão eclesial aparecem ligadas também na vida das primeiras
comunidades.
No Livro dos Atos dos Apóstolos, após a ascensão de Jesus Cristo, os irmãos "perseveravam
na oração" (1,14), à espera da manifestação do Espírito Santo, e os que entravam na comunidade
"mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às
orações" (2,42); e enquanto Pedro estava na prisão, a "oração fervorosa da Igreja subia continuamente
até Deus, intercedendo em favor dele" (12,5). Também o apóstolo Paulo pede que se reze "por todos
os cristãos" (Ef 6,18) e por todas as pessoas: "recomendo que façam pedidos, orações, súplicas e ações
de graças em favor de todos os homens..." (1Tm 2,1).
Contudo, nós não sabemos o que convém pedir; o Espírito que o Pai do Céu dará "àqueles que
o pedirem" (Lc 11,13), é que "vem em auxílio da nossa fraqueza e intercede por nós" (Rm 8,26). Assim
somos introduzidos pela bíblia na tradição litúrgica da Igreja, o segundo elemento a ser considerado.
Antes de tudo quero recordar que nossas Orações Eucarísticas possuem uma "estrutura
literária e teológica" bastante constante, ou seja, elas têm um "jeito" próprio de se apresentarem43.
Inicialmente fazemos memória da ação salvadora de Deus na história e, por isso, o louvamos (seção
anamnético-celebrativa); amparados pela ação d'Ele, em seguida o invocamos, fazemos súplicas a Ele
(seção epiclética). É a essa "seção" invocativa ou "epiclética" que pertencem nossas "intercessões".
A súplica segue a ação de graças a Deus por suas maravilhas; o louvor desemboca na súplica,
e é nossa salvação.
Como vimos acima estas "intercessões" caracterizam a "comunhão" da Igreja, reunida para
celebrar o memorial do Senhor. Na teologia eucarística a comunhão é sempre fruto da ação do
Espírito44. Ele é o primeiro dom suplicado ao Pai do Céu. À invocação do Espírito Santo estão ligadas
todas as demais. Há, portanto, uma profunda conexão entre a invocação do Espírito e as demais
súplicas:
- "Escutai vossos filhos e filhas, ó Deus Pai, e concedei-nos o Espírito de amor. Nós, que
participamos desta refeição, fiquemos sempre mais unidos, na vossa Igreja, com o Papa N., com o
nosso Bispo N., com todos os outros bispos e com aqueles que servem o vosso povo" (OE X).
Portanto, fruto da ação do Espírito Santo é a atual universalidade da Igreja e da salvação
realizada por Cristo, presente em nosso "hoje" todas as vezes que celebramos a Eucaristia em memória
d'Ele45; essa salvação, atualmente presente em cada missa, estende-se sobre todos os membros da Igreja
- os pastores, os fiéis ali reunidos e a totalidade do povo de Deus, inclusive os membros já falecidos -
e ainda, sobre os outros falecidos e aqueles que procuram a Deus "de coração sincero" (OE IV).

192
Significado dos ritos para nossa vida
"A grande tradição litúrgica da Igreja ensina-nos que é necessário, para uma frutuosa
participação, esforçar-se por corresponder pessoalmente ao mistério que é celebrado", sendo exigência
irrenunciável unir a fé e as obras, a celebração e a vida cotidiana, fazendo concordar: disposição
interior-rito-vida cristã. Caso contrário "as nossas celebrações, por muito animadas que fossem,
arriscar-se-iam a cair no ritualismo" (SCa 64).
Também desta vez nos perguntamos sobre as consequências desta temática para a nossa vida.
Para além da participação litúrgica mais "ativa, consciente e frutuosa” e das muitas intuições
que somente o Espírito Santo pode nos inspirar, quero destacar três.
A comunhão eclesial. Nossas celebrações não são nunca ações de um grupinho - "privadas"
-mas sempre da Igreja. Isto deve nos ajudar a: romper aquela visão estreita: "minha" pastoral, "meu"
movimento. "minha" associação (é claro que tudo é situado, concreto, mas é preciso ser aberto,
universal, ecumênico!); rever o conteúdo das nossas preces (elas envolvem de fato a Igreja, a
sociedade, os que sofrem e a comunidade reunida?)46; abrir nossos corações para o trabalho em
conjunto: pastoral de conjunto, associação de moradores, sindicatos...
A oração pelos falecidos. Como tivemos ocasião de observar, cada missa é celebrada em
comunhão com todos os seus membros, os vivos e os falecidos. Quantas feridas abertas na vida pessoal
(e até da comunidade) porque na última celebração não foi dito o nome da pessoa falecida há 15 anos!
Ora, independentemente da menção do nome, que em casos específicos tem lugar próprio na oração
eucarística, nós pedimos sempre a Deus que acolha no seu Reino "os nossos irmãos e irmãs que
partiram desta vida e todos os que morreram" (OE III). Quem sabe poderíamos valorizar mais o
momento da Oração chamada coleta que conclui os ritos iniciais. Após o convite Oremos todos os fiéis,
com quem os preside, se conservam em silêncio por alguns instantes, tomando consciência de que estão
na presença de Deus e formulando interiormente os seus pedidos (IGMR 54).
Assim, é do coração confiante de todos os participantes que brotarão as intenções, e
poderemos dispensar caixinhas, corações e outras "criatividades" surgidas com "boa intenção", ao
longo destes últimos anos, para tentar substituir a "lista de intenções". Com paciência e catequese
litúrgica daremos grandes passos!
Os santos e santas. Juntamente com a oração pelos mortos, a devoção aos santos ocupa um
lugar de destaque em nossa formação católica, de raízes lusitanas. A Oração Eucarística, fonte da
reflexão, apresenta uma teologia bem completa, sintetizada no primeiro prefácio dos santos: os méritos
dos santos são dons de Deus, a quem glorificamos ao festejar os santos; damos graças a Deus porque
nos seus santos e santas, ele oferece "um exemplo para a nossa vida, a comunhão que nos une, a
intercessão que nos ajuda", enquanto caminhamos perseverantes no deserto da vida, até o dia em que
receberemos "com eles a coroa imperecível". Os santos não aparecem nem separados d'Aquele que é
"Santo, Santo, Santo" nem nos substituindo em nossas responsabilidades. Eles são modelos, exemplos,
pois "souberam amar Cristo e seus irmãos" (OE V), servindo a Deus (OE II) e, por isso, se tornaram
"amigos de Jesus" (OE X) e moram para sempre na Casa de Deus, o Paraíso (OE XI); estão em
comunhão conosco (bem no espírito das intercessões, acima apresentado), auxiliando-nos nas estradas
da vida, intercedendo a Deus por nós (OE III). Por fim, eles são os eleitos, de cujo convívio queremos
participar: "concedei-nos, o convívio dos eleitos" (OE II). Somos chamados a cultivar agora a
esperança de um dia "participar da vida eterna, com a Virgem Maria, Mãe de Deus, com os santos
apóstolos e todos os que neste mundo" serviram a Deus (OE II)47. Como se pode notar, não rezamos
missas nem para os santos e santas, nem para os anjos, mas sempre, em comunhão com eles,
agradecemos a Deus Pai "pelo seu dom inefável", a redenção (2Cor 9,15), em Cristo Jesus, "para louvor
da sua glória" (Ef 1,12), pela virtude do Espírito Santo.
Enfim, as intercessões nos dão o sentido da comunhão eclesial e, desenvolvendo as invocações
ao Espírito Santo, nos convidam a viver segundo a sua inspiração, cuja voz ouvimos através das
Escrituras (cf. DV 21).

193
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
6. Toda a honra e toda a glória, agora e para sempre! Amém!
Quando iniciamos nossa visita à "cidade" Liturgia e nos propusemos a percorrer passo a passo
as suas "ruas" de nomes estranhos, sinais, gestos, palavras... entramos imediatamente no "bairro
principal" do Rito Celebrado e nos deparamos, curiosos, diante do seu "monumento principal", a
Oração Eucarística. Ali permanecemos pacientemente para alcançarmos a graça de, mistagogicamente,
"entrar" no seu mistério. Hoje, por pura graça de Deus, temos possibilidade de conhecer uma última
obra de arte, esculpida em nosso "monumento", a doxologia final e seu Amém. Somos pessoas
encantadas e transbordamos de grata alegria, tomados por uma profunda admiração e gratidão por
tudo aquilo que Deus é e fez por nós!
Rito celebrado
Como sempre, nosso ponto de partida, caro leitor, é a Instrução Geral do Missal Romano,
pois nela encontramos o rito e alguns elementos de sua teologia, bem como as normas "promulgadas
por vontade expressa do II Concílio do Vaticano... [as quais] constituem mais uma prova desta
solicitude da Igreja, da sua fé e do seu amor inalterado para com o sublime mistério eucarístico, e da
sua tradição contínua e coerente" (1). A partir da Instrução reconhecemos que a Oração Eucarística é
o "centro e ápice de toda a celebração, prece de ação de graças e santificação... toda a assembleia se
une com Cristo na proclamação das maravilhas de Deus e na oblação do sacrifício" (78).
Esta sua característica de ação de graças é testemunhada já por São Justino, martirizado entre
os anos 163-165: "Àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilha com vinho e água;
pegando-os, ele louva e glorifica o Pai do universo através do nome do seu Filho e do Espírito Santo,
e pronuncia uma longa ação de graças"48.
Deste modo podemos afirmar que "toda a Oração eucarística é doxológica, isto é, palavra
(logos) de louvor (doxa) dirigida a Deus" 49. A iniciamos reconhecendo a necessidade da ação de graças
50: "Demos graças ao Senhor, nosso Deus. É nosso dever e nossa salvação". E quem preside prossegue:
"Na verdade, ó Pai, é nosso dever dar-vos graças, é nossa salvação dar-vos glória" (OE IV). Ou ainda:
"É justo e nos faz todos ser mais santos louvar a vós, ó Pai" (OE V). E, rezando com crianças, se diz:
"Ó Pai querido, como é grande a nossa alegria em vos agradecer e, unidos com Jesus, cantar vosso
louvor" (OE X). Por fim, após ter glorificado a Deus Pai e ter-lhe rendido graças pela obra da salvação
(cf. IGMR 79a), concluímos a oração em perfeita harmonia com seu início, através de uma doxologia,
pela qual glorificamos a Deus.
Esse elemento da Oração eucarística diz respeito especificamente àquele momento em que o
presidente da celebração reza sozinho: "Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo
poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre"; e a
assembleia, tendo acolhido no silêncio ativo a doxologia, aclama "Amém" (IGMR 79h; cf. 151). Essa
aclamação não apenas conclui o pequeno trecho oracional Por Cristo..., mas confirma toda a Oração
Eucarística, como se afirma de outro Amém: "O povo, unindo-se à súplica [pronunciada por quem
preside], faz sua a oração pela aclamação Amém" (IGMR 54; cf. 78).
Deste modo, fica claro que a ação de graças pertence a toda a assembleia dos fiéis, unida a
Jesus Cristo: "O sentido desta oração é que toda a assembleia se una a Cristo na proclamação das
maravilhas de Deus e na oblação do sacrifício" (IGMR 78).
Teologia
Todas as Orações Eucarísticas do rito romano são concluídas pela doxologia e o Amém.
Enquanto a doxologia - Por Cristo. com Cristo, em Cristo... - cabe à pessoa que preside a assembleia
celebrante, o Amém pertence a todos os fiéis, os quais manifestam, também nesse momento, o seu
sacerdócio batismal.
Nosso Amém funda suas raízes na oração do povo de Israel. Ele aparece para concluir o hino
de ação de graças a Deus, entoado por ocasião da instalação da Arca da Aliança, na Tenda, em
Jerusalém: "Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, desde agora e para todo o sempre! E que todo o
povo respondia: Amém!" (1Cr 16,36; cf. Sl 41,14; 106,48). É também a manifestação da assembleia
do povo à bênção que Esdras elevou a Deus: "Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus, e todo o povo
respondeu, levantando as mãos: Amém! Amém!" (Ne 8,6).
194
No Novo Testamento, os textos paulinos apresentam o Amém como elemento já assumido pela
liturgia cristã: "Pois, se louvas a Deus somente com o espírito, como o ouvinte não-iniciado poderá
dizer 'amém' à tua ação de graças?" (1Cor 14,16). E ainda (com incrível semelhança com nossa
doxologia eucarística!): "Na verdade, tudo é dele, por ele e para ele. A ele, a glória para sempre.
Amém!" (Rm 11,36). Por Cristo "dizemos 'Amém' a Deus, para sua glória" (2Cor 1,20). O Apocalipse
diz Amém a Jesus Cristo "que fez de nós um reino de sacerdotes para seu Deus e Pai" (1,6; cf. 1,7), e
relaciona o Amém a Jesus, como se fosse um seu nome, por ser ele "a testemunha fiel" (Ap 1,5).
Enfim, para concluir todos os livros inspirados, que a bíblia contém, lemos: "a graça do Senhor
Jesus Cristo esteja com todos. Amém" (Ap 22,21).
Dentre os escritores dos primeiros séculos da Igreja, o mais antigo a retratar a aclamação
Amém é São Justino; além do texto acima citado, encontramos o seguinte, dentro da descrição da
liturgia dominical: "o presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e ação
de graças, e todo o povo exclama, dizendo: Amém"51. Outro exemplo, sem menosprezar santo
Agostinho, nós encontramos em São Jerônimo, o qual dizia que o "Amém" ressoava como "trovão
celestial" nas basílicas romanas52. Assim, os fiéis, tornados pelo batismo povo sacerdotal, participavam
ativamente não só ouvindo com atenção e fé a oração de quem os presidia, mas também através de
aclamações, das quais o Amém figurava dentre as mais antigas.
Hoje, é neste momento que se faz a elevação da grande patena53 com o "pão da vida eterna" e
do "cálice da salvação"; realiza-se um gesto amplo de elevar aos céus os dons eucaristizados, à vista
de todos, o qual conclui a Oração eucarística, tanto teórica quanto visualmente54. Tais gestos, porém,
não nos devem confundir: não é este o "ofertório" da missa. "Essa concepção ofertorial da doxologia
final não se sustém, já que faz injustiça ao momento ofertorial por excelência, o único da oração
Eucarística, que é a anamnese... além de não encontrar apoio nem mesmo na própria formulação da
doxologia"55. Na anamnese rezamos: "Celebrando, pois, a memória,... nós vos oferecemos, ó Pai,..."
(OE I); e na fórmula da doxologia final colocamos no centro "toda a honra e toda a glória" que
prestamos ao Pai, pela mediação de seu Filho, Jesus Cristo, cujo mistério pascal celebramos, e na
unidade do Espírito Santo.
Significado dos ritos para nossa vida
A doxologia final é síntese "e expressão de nossas vidas, vividas em louvor e gratidão a Deus,
por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo. Transbordamos de grata alegria;
somos tomados por uma profunda admiração e gratidão por tudo aquilo que Deus é e fez por nós. As
cordas do coração vibram e fazem vibrar as cordas vocais. É o próprio Espírito, o Sopro de Deus,
renovando o seu povo"56.
Nesta "síntese de nossas vidas", como muito bem se expressou Ione, quero destacar duas
atitudes decorrentes deste momento ritual, reafirmando minha convicção de que a liturgia é a fonte de
nossa espiritualidade cristã.
Em primeiro lugar a gratidão-louvor: "toda a honra e toda a glória". É autêntica a gratidão
que brota da vida de quem sabe reconhecer que nos altos e baixos da sua existência, nas alegrias e nas
dores, na festa e no trabalho, nas lutas do dia-a-dia... nós não estamos sozinhos, o Senhor põe-se a
caminhar conosco (Lc 24,16; Mt 28,20; 2Tm 4,17; Fl 4,13). Confiamos na sua "imensa misericórdia"
de Pai! Ele nos introduzirá ao seu Reino, "onde, com todas as criaturas, libertas da corrupção do pecado
e da morte" o "glorificaremos por Cristo, Senhor nosso", por quem ele dá "ao mundo todo bem e toda
graça" (OE IV). Otimismo e esperança resplandecem na pessoa que assim vive!
Outra atitude é a fidelidade. Fidelidade a Deus e a seu projeto de um "mundo de irmãos e
irmãs", porque todas as pessoas são suas filhas. Pois dizer Amém é estar de acordo, é aceitar. Jesus
Cristo é a "testemunha fiel, o primogênito dentre os mortos" (Ap 1,5); n'Ele "todas as promessas de
Deus têm um 'sim' garantido"; ele é o nosso "Amém" para a glória de Deus Pai (2Cor 1,20). Sua
fidelidade, porém, foi colocada continuamente à prova: as tentações no deserto, os adversários nas
cidades, a agonia no monte das Oliveiras, a rejeição até a morte de cruz, o abandono... Por isso, por
sua fidelidade, "Deus o exaltou acima de tudo" (Fl 2,9). Nele, no seu "sim", no seu "faça-se a tua
vontade, ó Pai", no seu "Amém" toda pessoa que se faz discípula-missionária encontra forças e sentido
para a própria fidelidade, cotidianamente colocada à prova... e caminha de cabeça erguida pelas

195
estradas da vida, superando com o próprio "sim-amém" - última palavra do livro inspirado (Ap 22,21)
- aquele "não" de Adão e Eva, no Paraíso (Gn 3).
Quanto à celebração eucarística... Este Amém final necessita de urgente renovação para ser
comunitário e solene, e "ressoar como um trovão celestial", para retomar o dizer de são Jerônimo, e
deixar de ser inexpressivo sussurro. Em relação aos outros Amém da missa ele "é o mais importante" e
o caminho para a justa valorização deveria ser o canto, como manda a instrução Inaestimabile
Donum,457.
Com Paulo podemos dizer que o Senhor nos livrará de todo o mal e nos salvará, admitindo-
nos em seu reino celeste. "A ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém" (2Tm 4,18).
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
7. O pão da vida, da mesa da palavra de Deus
Ao longo do mês de outubro de 2.008, realizou-se em Roma, o Sínodo dos Bispos a respeito
da importância da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, colocando-se desta maneira em
continuidade com o anterior, sobre a Eucaristia, apresentada como "fonte e ápice da vida e da missão
da Igreja". Já o Papa Paulo VI havia dito que a evangelização é eficaz quando realiza uma
"intercomunicação que nunca se interrompe, entre a Palavra e os sacramentos" (Evangelii Nuntiandi,
47). Estes elementos nos recordam que existe tal relação entre a Palavra de Deus e os Sacramentos que
sem ela a vida e a missão da Igreja perderiam a sua força.
Percebendo que a unidade entre Palavra e Sacramentos, especialmente a Eucaristia, é
proclamada nesta dimensão ampla da vida eclesial e da sua missão evangelizadora, convido você a
contemplar como tal unidade se realiza antes de tudo no rito celebrado (a nossa missa), uma vez que
nossa fé exprime-se no rito: a norma da oração é a norma da fé (lex orandi lex credendi): e nessa relação
o primeiro lugar pertence à ação litúrgica (SCa 34).
Rito celebrado
A missa inteira, direito e dever dos fiéis, especialmente nos domingos e festas de preceito,
consta de duas partes, a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, as quais se encontram tão
estreitamente unidas, que formam um só ato de culto (cf. IGMR 28). Utilizando-nos da linguagem do
alimento, podemos dizer que Jesus Cristo, o único Pão da Vida, é oferecido aos fiéis a partir de duas
mesas, a da Palavra de Deus e a do seu Corpo; à primeira mesa chamamos Ambão, enquanto a segunda
é chamada Altar.
À mesa da Palavra de Deus, isto é, do Ambão, o Pão da Vida é servido a todos por meio das
leituras da Sagrada Escritura, do canto do Salmo Responsorial e do Aleluia58; esta parte principal é
desenvolvida pela homilia e concluída pela profissão de fé e a oração universal ou dos fiéis (cf. IGMR
55); aqui o ponto alto é o anúncio do Evangelho, com seus ritos próprios: ficar em pé, cantar o Aleluia,
fazer procissão com o Livro dos Evangelhos (Evangeliário) em meio ao incenso queimando e velas
acesas.
Por sua vez, à mesa do Corpo de Cristo, o Altar, depois de ter colocado sobre ele o pão e o
vinho, fruto da terra e do trabalho humano, damos graças a Deus pela solene Oração Eucarística e, em
seguida, partilhamos os dons eucarísticos, agora dons de Deus, "pão da vida eterna e cálice da salvação"
(Oração Eucarística I). Nesta mesa o ponto alto é a Oração Eucarística, cume não só da Liturgia
eucarística, mas de toda a celebração da missa (cf. IGMR 78). Deste modo temos condições de
perceber, pela sequência dos ritos celebrados, que o nosso olhar, a nossa atenção e o nosso coração se
voltam primeiro para o ambão e, em seguida, para o altar: antes para o Livro - que é aberto e lido, a
Palavra do Senhor - depois para o pão e o vinho que, uma vez rezada a Oração Eucarística, são o Corpo
do Senhor. Duas são as mesas, mas um só é o alimento, Jesus Cristo, o Pão da Vida.
Acredito que podemos reconhecer em outros ritos a unidade entre ambas as mesas, o Ambão
e o Altar. Por exemplo: o Evangeliário, colocado ao início da celebração, sobre o Altar, depois é levado
em procissão para o Ambão, para o anúncio do Evangelho; antes de proclamar o Evangelho e antes de
iniciar a Oração Eucarística, nos dois momentos rituais o ministro se inclina diante do Altar (não seria
esta inclinação outro pequeno e despercebido rito a indicar a união das mesas?); e, ainda outro, com
relação ao Espírito Santo, o qual, na Oração eucarística romana, é invocado uma vez sobre os dons e
outra sobre a comunidade, já "na tradição litúrgica alexandrina existe uma dupla epiclese, ou seja uma
196
invocação do Espírito Santo antes da proclamação das leituras e uma outra depois da homilia"59,
conforme o Instrumento de Trabalho do último sínodo dos Bispos, nº 3460.
Enfim, o mesmo documento afirma que na grande Tradição da Igreja, Orígenes (morto por
volta de 254), proclamava: "Considero o Evangelho Corpo de Jesus" (IT 35).
Teologia
A unidade íntima e inseparável existente entre a Palavra e a Eucaristia e demais sacramentos
encontra suas raízes de modo singular no testemunho do Novo Testamento. Quero citar por primeiro
os discípulos de Emaús, narrado em Lc 24,13-35. Enquanto os dois voltavam para casa, sem esperança
e tristes - pois em Jerusalém mataram a Jesus de Nazaré, o profeta poderoso em palavras e em obras -
o próprio Senhor crucificado-ressuscitado aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles, sem que eles o
reconhecessem. E, começando por Moisés e por todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as
Escrituras o que a ele dizia respeito. E o coração dos discípulos ardia enquanto escutavam o Senhor!
Por fim, à mesa, ao partir do pão, os seus olhos se abriram e não mais viram o Senhor, a quem haviam
reconhecido na fração do pão. É assim a nossa celebração hoje: como discípulos estamos reunidos,
todos juntos, o Senhor se faz presente no meio de nós, conforme prometera (Mt 18,20), nos revela a
Palavra das Escrituras (Liturgia da Palavra) e parte o Pão para nós (Liturgia Eucarística).
Ao lado desse texto bem conhecido colocarei um do Antigo Testamento: Ex 24,1-11. O povo
foi reunido aos pés da montanha sagrada; Moisés tomou do sangue dos sacrifícios de comunhão e
derramou-o sobre o altar e, em seguida, como bom leitor, tomou o livro da Aliança e o leu para o povo
que respondeu afirmativamente à proposta da Aliança: "Tudo o que o Senhor falou, nós o faremos e
obedeceremos". Então Moisés aspergiu o povo com a outra parte do sangue dos sacrifícios e disse:
"Este é o Sangue da Aliança que o Senhor fez convosco, através de todas essas cláusulas". O texto
conclui dizendo que aqueles que subiram à presença do Senhor o contemplaram e, depois, comeram e
beberam. Assim temos a união claríssima entre a Palavra da Aliança e o Gesto da Aliança, a aspersão
do sangue e o sacrifício de comunhão.
Elenco alguns outros exemplos das Escrituras: o cobrador de impostos, Levi, que ouve a
palavra de Jesus e em seguida celebra uma grande festa em sua casa, na qual Jesus come e bebe com
os cobradores de impostos e pecadores (Lc 5,29-32); o mesmo aconteceu com Zaqueu (Lc 19,1-10):
os pecadores acolhem a Palavra de Jesus e, depois, comem e bebem com Ele, reconhecendo que em
Jesus chegou para eles a salvação. Temos também a mesa preparada por Marta, precedida pela escuta
da palavra da parte de Maria (Lc 10,38-42). E sabemos que Marta e Maria não estão em oposição uma
à outra, mas "habitam a mesma casa”. Também o evangelho segundo João (6,45.51) nos apresenta esta
unidade: "E todos serão ensinados por Deus". As pessoas que escutam o Pai e se deixam ensinar por
ele vão até Jesus, "o pão vivo descido do céu".
A esses exemplos da Bíblia desejo acrescentar alguns da Tradição da Igreja. São Jerônimo
assegura: "A carne do Senhor, verdadeira comida, e o seu sangue, verdadeira bebida, esse é o
verdadeiro bem que nos é reservado na vida presente: alimentar-se com a sua carne e beber do seu
sangue, não só na Eucaristia, mas também na leitura da Sagrada Escritura. É, de fato, verdadeira comida
e verdadeira bebida a Palavra de Deus que se obtém do conhecimento das Escrituras" (IT 35). Sua
experiência é de que a Palavra e a Eucaristia são o alimento que Deus nos oferece enquanto
peregrinamos rumo à sua Casa, e vamos colaborando para que o seu Reino venha.
Magnífica síntese dessa teologia encontramos na Constituição Dogmática Dei Verbum,
documento do Concílio Vaticano II sobre a revelação divina, o qual afirma que "a Igreja sempre
venerou as divinas Escrituras, como também o próprio corpo do Senhor; sobretudo na sagrada liturgia,
nunca deixou de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, tanto da mesa da palavra de Deus como da
mesa do corpo de Cristo" (n. 21). Igualmente a Sacrosanctum Concilium afirma esta relação quando
diz que desde Pentecostes a Igreja jamais deixou de celebrar o mistério pascal de Cristo reunindo-se
em assembleia litúrgica, lendo tudo quanto nas Escrituras se refere a Cristo [liturgia da Palavra] e dando
graças a Deus Pai pelo mistério da Salvação, realizado em Cristo uma vez por todas e, agora, oferecido
a nós que estamos celebrando [liturgia eucarística, especialmente na Oração Eucarística] (n. 6).

197
Significado dos ritos para nossa vida
Será que esta unidade entre Liturgia da Palavra e Liturgia da Missa e dos outros sacramentos
tem algo a ver com nossa vida?
A atitude fundamental será equilibrar nossa fé pessoal e comunitária a respeito da presença
real de Cristo em nosso meio; nossa visão é reduzida: cremos que ele está realmente presente no pão e
vinho consagrados, seu Corpo e Sangue (e está bem!), mas somos "lentos de coração para crer" também
que sua presença é real quando, na comunidade reunida, o Livro é aberto e uma pessoa proclama a
Palavra de Deus a todos61, pois naquele momento Ele fala conosco (cf. SC 7); nossa é somente a voz,
mas a Palavra é dele; a assembleia litúrgica, graças ao Espírito Santo, escuta Cristo.
Outras atitudes serão de maior ou menor importância, conforme a caminhada de cada
comunidade:
- Vencer a prática pecaminosa da improvisação dos leitores e leitoras. Há tempo se fala da
necessidade de se organizar uma verdadeira "Escola de Leitores e Leitoras", inclusive em nível
diocesano (IT 37); e, deste modo, Deus falará a seu povo reunido62. Para isso é preciso que tomemos
consciência de que a pessoa que proclamará a Palavra do Senhor deve preparar-se com antecedência,
se possível durante a semana, para que na celebração a Palavra esteja escrita no Livro, mas saia do
coração, onde encontrou aconchego pela leitura, meditação, oração e o auxílio do Espírito Santo. Sem
espiritualidade não seremos ministros da Palavra, talvez realizaremos bem uma tarefa (mas, então, nos
tornaremos funcionários... que pena, não é mesmo?).
- Homilias... elas devem ser servidoras de Deus; devem ser uma conversa familiar63, dando
continuidade àquela conversa que Deus iniciou com seu povo durante as leituras, e unindo a vida da
comunidade celebrante, a Palavra de Deus anunciada e a celebração que se está realizando.
- Orações Eucarísticas... conhecer o seu sentido e conteúdo, e ajudar por uma catequese
adequada, isto é, mistagógica, as muitas pessoas sedentas de rezar, dando graças "a Deus pelo seu dom
inefável" (2Cor 9,15) em Cristo Jesus, "para louvor de sua glória" (Ef 1,12) por virtude do Espírito
Santo. Nesse caso tenho por certo que quanto mais os ministros ordenados "saborearem" esta oração,
tão antiga, bela e profunda, mais poderão os fiéis entrarem no mistério da ação de graças pela salvação,
dom de Deus: "a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada" (SCa 64).
- Romper com a tentação, cada vez maior, de o presidente da celebração - ou o grupo de canto
ou outro ministro - tornar-se o protagonista, animador de um suposto auditório, no caso a assembleia
que se reuniu para celebrar o Senhor, e não para ser massa.
- Valorizar os dois pontos altos da celebração: o Anúncio do Evangelho e a Oração Eucarística
Dois ritos simples, mas profundos: um bom anúncio do Evangelho, envolvidos pelos seus ritos, e uma
orante proclamação da Oração Eucarística poderiam revelar sem sombra de dúvida a unidade entre
Liturgia da Palavra e Liturgia Eucarística. O canto de comunhão, ligado ao evangelho proclamado na
celebração, como sugere o Hinário da CNBB, é outro sinal de unidade entre Palavra e Eucaristia.
Gostaria, enfim, de lembrar que a Igreja considera tão importante a unidade entre a Liturgia
da Palavra e a Liturgia Eucarística que existe inclusive uma norma: "Ninguém deve aproximar-se da
mesa do Pão do Senhor, senão depois de ter estado presente à mesa de sua Palavra” 64. Estar presente,
participando ativamente e não tolerando como momento necessário, mas enfadonho. Como tornar mais
vivos os ritos da Liturgia da Palavra e os da Oração Eucarística, garantindo a unidade entre eles?
Refletindo pessoalmente, estudando ou conversando com sua equipe de liturgia ou canto, creia-me,
será possível encontrar outras aplicações para a vida concreta.
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
8. Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo!
É sempre um prazer recordar que nós cristãos nos alimentamos de um único "pão da vida",
recebido, porém, de duas mesas, a da Palavra e a da Eucaristia, ambas tão unidas que constituem "um
só ato de culto". Esse ato celebrativo único, vivido ao redor do Ambão e do Altar, possui alguns ritos
que o iniciam e outros que o concluem. Desta vez queremos considerar apenas os ritos iniciais,
procurando seguir a mesma metodologia, de forma que, partindo da celebração, passemos pela teologia
e encontremos elementos para o nosso cotidiano. Busquemos continuamente fazer do rito celebrado

198
uma fonte de teologia e de vida espiritual. A unidade existencial entre rito, teologia e espiritualidade é
realizada pelo Espírito Santo.
Rito celebrado
O jeito ordinário de iniciar a missa, segundo o Missal Romano de Paulo VI, é por meio dos
Ritos Iniciais: canto de entrada (procissão, veneração do Altar), sinal-da-cruz e saudação, rito
penitencial, Kyrie, Glória e Oração do dia. Em seu conjunto, esses pequenos ritos têm por finalidade
"fazer com que os fiéis, reunindo-se em assembleia, constituam uma comunhão e se disponham para
ouvir atentamente a palavra de Deus e celebrar dignamente a Eucaristia" (IGMR 46) 65. Deste modo,
ser Igreja, criar comunidade de fiéis, é a grande finalidade dos ritos iniciais da missa; depois, em
comunhão fraterna nos disporemos a celebrar ativamente a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística.
Assim, é bom lembrar que cada um destes ritos contribuirá, conforme o modo como serão
realizados, para que aconteça a comunhão dos fiéis reunidos, segundo as orientações da IGMR.
O canto de entrada (48) promoverá melhor a comunhão quando cantado em estilo dialogal,
alternando entre o grupo dos cantores e o povo. Nesse caso, a antífona ou refrão, sempre mais
"condizente com a ação sagrada e com a índole do dia ou do tempo", caberia ao povo, enquanto que o
Salmo, isto é, as estrofes, ao grupo de cantores. A dimensão dialogal, realizadora de comunhão (cf.
34), prossegue no sinal-da-cruz e na saudação à assembleia (50), seja aquela principal, a bíblico-ritual,
seja aquela espontânea para introduzir no mistério do dia (ainda que esta possa ser feita por um outro
ministro). O ato penitencial deve ser "realizado por toda a assembleia" (51), através de uma das três
fórmulas presentes no Missal: Confesso...; Tende compaixão...; Senhor, que viestes...aproveitando as
muitas invocações alternativas para os diversos tempos66. Pleno de caráter comunitário batismal é o
rito dominical de bênção e aspersão da água, substituindo o ato penitenciai. Quando a invocação
cristológica, Senhor, tende piedade - nossa tradução do Kyrie - não apareceu no próprio ato penitencial
ela deverá ser cantada após o Deus todo-poderoso tenha compaixão... É canto "executado normalmente
por todos, tomando parte nele o povo e o grupo de cantores ou o cantor" (52).
Também o Glória revela a comunhão da assembleia "congregada no Espírito Santo" (53). No
Glória, os dois primeiros modos de execução reforçam o aspecto eclesial: quem preside o entoa e a
assembleia toda o canta ou, secundariamente, o alterna com o grupo de cantores67. Enfim, a oração do
dia, também chamada coleta, manifesta a comunhão dos fiéis pelo fato de todos se conservarem em
silêncio e formularem interiormente as suas intenções, juntamente com o ministro que os preside (cf.
54).
Saliente-se que esta união é ainda inicial, uma vez que somente depois de escutar juntos, a
Palavra de Deus, alcançaremos o seu ponto alto na comunhão eucarística: "concedei que, alimentando-
nos [ó Pai] com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos
em Cristo um só corpo e um só espírito" (Oração Eucarística III).
Acerca dos ritos iniciais podemos aplicar o que ensina a IGMR, n° 96: "Formem um único
corpo, seja ouvindo a Palavra de Deus, seja tomando parte nas orações e no canto ou, sobretudo, na
oblação comum do sacrifício e na comum participação da mesa do Senhor". Passamos, portanto, da
dispersão da vida cotidiana à união de uma assembleia convocada pelo próprio Deus, Pai e Filho e
Espírito Santo.
Teologia
A Ceia que Jesus tomou com seus discípulos, antes de morrer, marcou o início de muitas
outras ceias nas gerações da Igreja: a missa. Assim, a missa começou numa reunião de discípulos, os
quais, depois de Pentecostes, jamais deixaram de se reunir para celebrar o mistério pascal de seu Senhor
(cf. SC 6). Reuniam-se no primeiro dia (At 20,7), que é também o oitavo (Jo 20,26). Aliás, essa reunião
colore o "retrato" das primeiras comunidades (At 2,41-42). Também Paulo afirma enfaticamente a
importância desta união dos fiéis, reunidos para a eucaristia (1Cor 11,20-21.33).
Tal é a tradição que encontramos nos primeiros séculos. Santo Inácio de Antioquia (+110)68,
exorta à necessária comunhão que deve haver entre os cristãos: "Preocupai-vos em participar de uma
só eucaristia. De fato, há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice na unidade do seu
sangue, um único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos" (Aos Filadelfienses,

199
4). Em Roma, encontramos a mesma tradição, testemunhada pelo leigo e mártir São Justino, (+ 165)69:
"No dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram nas cidades ou nos
campos" (I Apologia, 67,3).
Portanto, a missa inteira é, por sua natureza, "comunitária", e não uma ação privada ou
devocional, intimista; ela é uma ação da Igreja (cf. SC 26). Esse sentido comunitário-eclesial é
ressaltado várias vezes pela IGMR, ainda que sob diferentes níveis de importância teológica:
⮚ A missa "presidida pelo Bispo, cercado de seu presbitério, diáconos e ministros leigos,
e na qual o povo santo de Deus participa plena e ativamente" ocupa, o primeiro lugar "na Igreja local"
por seu significado: é a "principal manifestação da Igreja" (112; cf. 22 e SC 41).
⮚ Os fiéis, na celebração da santa missa, "constituem o povo santo, o povo adquirido e o
sacerdócio régio para dar graças a Deus e oferecer o sacrifício perfeito, não apenas pelas mãos do
sacerdote, mas também juntamente com ele, e para aprender a oferecer-se a si próprios" (95).
⮚ Até mesmo os gestos e posições do corpo, que todos os participantes assumem, são
importantes sinais da "unidade dos membros da comunidade cristã, reunidos para a sagrada Liturgia"
(42).
Dentre os ritos iniciais, considero que a saudação e a resposta manifestam, sempre de modo
explícito, o mistério da Igreja reunida (50). Ao ouvir a saudação "Que a graça de nosso Senhor Jesus
Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco" a assembleia aclama:
"Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo". Assim, constituir-se como Igreja é ser um "povo
cuja união seja um reflexo da unidade que existe entre o Pai e o Filho e o Espírito Santo"70.
Mas também o canto de entrada, que abre a celebração, tem grande força para promover a
união da assembleia, pois a unidade dos corações se atinge mais profundamente pela unidade das
vozes,71 e ainda mais porque ele nos introduz no mistério do tempo litúrgico ou da festa celebrada,
manifesta a alegria do encontro dos irmãos entre si e com seu Deus e, por fim, acompanha a procissão
de entrada, reveladora do aspecto todo ministerial da Igreja. Bons exemplos poderiam ser:
Ó Senhor, salva teus filhos e reúne os espalhados, para que te celebremos, nós, em ti,
glorificados;
Ó Pai, somos nós o povo eleito, que Cristo veio reunir!72
O sinal-da-cruz recorda a cada pessoa ali reunida o seu nascimento nas águas do batismo "em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28,19), e, agora, a convida novamente a mergulhar no
mesmo Deus-comunhão, o qual se abre para nós e nos permite participar do seu amor, enquanto
celebramos em seu "Nome", na sua comunhão trinitária.
Unido a esse gesto, está o da bênção e aspersão da água em recordação do batismo, o qual
revela a identidade sacerdotal daquela assembleia que: no Kyrie (52), aclama a Cristo, morto e
ressuscitado, implorando sua misericórdia, no Glória sente-se Igreja, congregada no Espírito Santo,
que glorifica e suplica a Deus Pai e ao Cordeiro (53), e na oração do dia (54), como "corpo orante"
reza em silêncio, consciente de estar na presença de Deus e, por isso, com confiança, formula
"interiormente os seus pedidos".
Significado dos ritos para nossa vida
Em sua relação com a vida, a liturgia torna-se para nós "fonte" de espiritualidade, como um
rio que brota do lado direito do templo e leva vida por onde passa (Ez 47,1). Sendo fonte (SC 10), dela
emana toda a força para a Igreja. É certo que tal relação da liturgia com a vida encontra-se aberta, pois
cada um pode vivenciá-la de modo bastante peculiar sob a luz do Espírito Santo. Entretanto há alguns
elementos que poderiam nos ajudar a vivenciar melhor os ritos iniciais na celebração e deixá-los irrigar
nosso cotidiano.
⮚ Participar ativamente da comunidade no Domingo, dia do Senhor, pois a reunião
dominical refaz nossa vocação cristã e nos fortalece para enfrentar as dificuldades quotidianas sem
sucumbir, a exemplo dos 49 mártires de Abitene, atual Tunísia, em 304, categóricos em afirmar: "Sem
o Domingo não podemos viver".
⮚ Todos os fiéis, povo santo... "evitem qualquer tipo de individualismo ou divisão,
considerando sempre que todos têm um único Pai nos céus e, por este motivo, são todos irmãos entre
si" (IGMR 95).

200
⮚ O grupo de cantores... poderia ensaiar cantos de abertura segundo os critérios propostos,
capazes de promover a união de todos, sem ficar insistindo nos cantos da sua pastoral e do seu
movimento. Seria oportuno tomar conhecimento dos “Estudos da CNBB, n. 79, sobre A música
litúrgica no Brasil” e assim, adquirir critérios para poder escolher cada um dos cantos da missa.
⮚ As equipes de liturgia... sendo uma verdadeira equipe, podem reunir-se, estudar, rezar
juntos, buscando criativamente as melhores propostas para favorecer a união entre os irmãos e irmãs
que se reunirão para celebrar. É importante que os participantes não aceitem ser mais um número de
telefone na lista de quem coordena à espera de um dia ser chamado para fazer "algum serviço" na
celebração (!). Ser, de fato, equipe!
⮚ Valorizar os ministérios. A procissão de entrada será verdadeiramente eclesial quando
quem preside e os demais ministros vencerem a atual tentação de "serem a estrela", assumindo
verdadeiramente e sempre mais as atitudes de João Batista, a voz que conduz os discípulos ao Senhor,
que é a Palavra.
⮚ Apostar na comunhão e na união, ainda que nosso cotidiano insista em apresentar o
mundo como perdido e sem concerto, e cada um de nós como impotentes. É verdade que nossa
sociedade é estruturalmente injusta, mas continuamente vemos florescer iniciativas de grupos,
organizações, associações que se opõem - unidos, não sozinhos - ao que é injusto e contrário à vida das
pessoas e do planeta. Quais destes grupos estão perto da sua casa ou do seu trabalho? Unir-se a algum
deles não seria uma boa consequência da nossa comunhão na missa?
Para concluir, quero recordar um texto escrito há mais de 10 anos, mas muito atual: Embora
a missa dependa da decisão de cada um e de cada uma de nós, ela não é uma ação individual e muito
menos individualista. Para celebrar a missa, somos chamados a constituir a assembleia litúrgica, a
formar juntos um corpo comunitário, que ora, adora, bendiz, oferece, canta... a uma só voz, a uma só
alma, a um só coração73.

MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
9. Comungamos Cristo em comunhão de Irmãos e Irmãs!
Temos visto por toda parte uma crescente valorização da comunhão eucarística. E isto sem
dúvida é um valor (ainda que, infelizmente, a maioria das comunidades católicas do Brasil não possa
celebrar a missa dominical). Todavia, podem surgir perguntas. A comunhão eucarística não é um
encontro pessoal com Cristo, para que então todos os ritos que a acompanham? Esses ritos não
atrapalhariam a intimidade com o Senhor? Não bastaria a "consagração" para tornar possível a
comunhão?...e muitas outras. Bem, quem acompanhou os artigos anteriores já tem elementos para
começar a responder. Entretanto, como a regra da oração fundamenta a regra da fé e a reflexão
teológica, é preciso irmos novamente ao livro litúrgico, no caso, o Missal Romano, aprovado pelo Papa
Paulo VI, no dia 03 de abril de 1969, e encontrar aí o Rito da Comunhão; ele nos conduzirá a uma
compreensão mais profunda a respeito da comunhão eucarística.
Rito celebrado
Como puderam perceber, uma das mãos eclesiais a nos conduzir ao sentido da Missa é a
Instrução Geral do Missal Romano74. Vejamos o que ela nos oferece a respeito dos ritos da comunhão.
Inicialmente se insiste que a finalidade de todo o Rito da Comunhão é preparar bem a assembleia
celebrante: "sendo a celebração eucarística a ceia pascal, convém que, segundo a ordem do Senhor, o
seu Corpo e Sangue sejam recebidos como alimento espiritual pelos fiéis devidamente preparados"
(80).
Assim, tendo dito o grande "Amém" à Oração Eucarística, a assembleia começa a preparar-se
para a comunhão rezando o Pai nosso, pedindo "o pão de cada dia, que lembra para os cristãos antes
de tudo o pão eucarístico, e pede-se a purificação dos pecados, a fim de que as coisas santas sejam
verdadeiramente dadas aos santos" (81). Em seguida, realiza-se o rito da paz, com a oração e a
saudação: "a Igreja implora a paz e a unidade" (82) e os irmãos e irmãs "conforme as normas
estabelecidas pela Conferência dos Bispos, expressam mutuamente a paz, a comunhão e a caridade"
(154), antes de comungar do Sacramento.

201
Depois, seguindo as ações de Jesus na Última Ceia, se parte o Pão eucarístico para dá-lo. É
um gesto de grande importância, pois os muitos que ali estão, pela comunhão do "único pão da vida,
que é o Cristo, morto e ressuscitado pela salvação do mundo" formam o Corpo eclesial do Senhor (cf.
1Cor 10,17); a invocação em forma de ladainha Cordeiro de Deus "acompanha a fração do pão; por
isso, pode-se repetir quantas vezes for necessário até o final do rito", sendo concluído sempre "com as
palavras dai-nos a paz" (83). Um momento de oração silenciosa ajuda quem preside e toda a assembleia
a "receber frutuosamente o Corpo e Sangue de Cristo". A seguir, o sacerdote mostra aos fiéis o pão
eucarístico sobre a patena ou sobre o cálice e diz: "Felizes os convidados para a Ceia do Senhor" (cf.
Ap 19,9), e todos os presentes fazem um ato de humildade: "Senhor, eu não sou digno (a)" (cf. Mt 8,8)
(84). Só então, acontece a comunhão eucarística: "É muito recomendável que os fiéis, como também o
próprio sacerdote deve fazer, recebam o Corpo do Senhor em hóstias consagradas na mesma Missa e
participem do cálice nos casos previstos75, para que, também através dos sinais, a Comunhão se
manifeste mais claramente como participação no sacrifício que está a ser celebrado" (85). "Enquanto
o sacerdote recebe o Sacramento, entoa-se o canto da comunhão que exprime, pela unidade das vozes,
a união espiritual dos comungantes, demonstra a alegria dos corações e realça mais a índole
comunitária da procissão para receber a Eucaristia" (86). O texto do canto da comunhão, conforme
aprovação da CNBB (87), retoma o Evangelho do dia, realizando de modo muito oportuno a unidade
entre Palavra e Eucaristia, Ambão e Altar.
"Terminada a distribuição da Comunhão o sacerdote e os fiéis oram por algum tempo em
silêncio"(88). Esta oração de ação de graças continua no silêncio a grande Oração de Ação de Graças,
a Oração Eucarística - "ponto central e culminante de toda a celebração" (78) - e poderá ser concluída
pelo canto de um salmo ou hino de louvor por parte de toda a assembleia. Por fim, quem preside reza
a oração após a comunhão, a qual completa "a oração do povo de Deus" e encerra "todo o rito da
Comunhão", implorando "os frutos do mistério celebrado. (...) O povo pela aclamação Amém faz sua a
oração" (89).
Teologia
Naquele tempo..., ao ser interrogado sobre o maior mandamento, Jesus afirmou não existir
outro mandamento mais importante do que amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo
(cf. Mc 12,28-31). Parece-me que o Rito da Comunhão, segundo os textos do Missal Romano, segue
esta intuição bíblica; ele une à comunhão eucarística a comunhão fraterna, fazendo com que esta
preceda aquela. Procuremos compreender melhor.
A Oração Eucarística II, recolhida pela Tradição Apostólica76, cujo texto inspirador remonta
ao final do segundo século, e, neste sentido, pertencente às mais antigas Orações da Igreja - suplica ao
Pai que "participando do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só
corpo"; nisso ela foi seguida com maior ou menor fidelidade pelas novas composições (ao todo doze,
considerando as quatro versões da oração eucarística VI). Já o Cânon Romano, de origens também
muito antigas -- fins do IV século - implora para os que participamos do altar da Igreja, recebendo o
sacramento do Corpo e o Sangue de Jesus Cristo que sejamos "repletos de todas as graças e bênçãos
do céu". A assembleia faz uma pequena aclamação, síntese desta fé: "Fazei de nós um só corpo e um
só espírito" (OE II e III), "O Espírito nos una num só corpo" (OE V).
Esta regra da oração enraíza-se na Bíblia e marca toda a história da Igreja.
O apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios, por volta da Páscoa do ano 57, tinha bem claro
que "o cálice da bênção que nós abençoamos... é comunhão com o sangue de Cristo" e que "o pão que
partimos... é comunhão com o corpo de Cristo". Portanto "como há um único pão, nós, embora muitos,
somos um só corpo, pois participamos todos desse único pão" (1Cor 10,16-17). Assim torna-se
manifesto o "efeito unificador" da comunhão eucarística: a comunhão no Corpo Eucarístico do Senhor
realiza a comunhão do Corpo Eclesial do Senhor, de tal forma que quem despreza o irmão "come e
bebe a própria condenação" e não a Ceia do Senhor (cf. 1Cor 11,17-34). Igual compreensão do fato de
que a Eucaristia edifica a Igreja aparece nas homilias de são João Crisóstomo, cuja pregação no campo
moral e social acarretou-lhe duras oposições e enfim o desterro (404-407), onde faleceu. "Com efeito,
o que é o pão? É o corpo de Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem? No corpo de
Cristo; não muitos corpos, mas um só corpo. De fato, tal como o pão é um só apesar de constituído por
202
muitos grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença
desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos reciprocamente
entre nós e, todos juntos, com Cristo"77.
Esse pensamento está presente também no concílio Vaticano II: "Pelo sacramento do pão
eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis, que constituem um só
corpo em Cristo (cf. 1Cor 10,17)"78.
Assim, a comunhão sacramental realiza a unidade da Igreja, também ela chamada Corpo de
Cristo (cf. 1Cor 12,27; Ef 4,12-15). "A incorporação em Cristo, realizada pelo Batismo, renova-se e
consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma
plena que é a comunhão sacramental" (EE 22). Com estas luzes podemos retomar o significado dos
ritos que compõem o Rito da Comunhão79, acima apresentados, os quais enfatizam que a comunhão
com Cristo se realiza em comunhão com os irmãos. Motivando o Pai-nosso, quem preside poderá dizer:
"Antes de participar do banquete da Eucaristia, sinal de reconciliação e vínculo de comunhão fraterna,
rezemos, juntos, como o Senhor nos ensinou"; no rito da paz, "a Igreja implora a paz e a unidade para
si mesma e para toda a família humana e os fiéis se exprimem a comunhão eclesial e a mútua caridade,
antes de comungar do Sacramento" (82); "o gesto da fração realizado por Cristo na última ceia, (...)
significa que muitos fiéis pela Comunhão no único pão da vida, que é o Cristo, morto e ressuscitado
pela salvação do mundo, formam um só corpo (1Cor 10,17)" (83); o canto da comunhão "exprime, pela
unidade das vozes, a união espiritual dos comungantes, demonstra a alegria dos corações e realça mais
a índole comunitária, da procissão para receber a Eucaristia" (86).
Neste contexto de comunhão fraterna emergem alguns elementos explicitamente pessoais:
após a fração do pão, o ministro ordenado "prepara-se por uma oração em silêncio para receber
frutuosamente o Corpo e Sangue de Cristo, e os fiéis fazem o mesmo, rezando em silêncio" (84); a
atitude humilde de cada pessoa se confessar indigna de tomar parte na Ceia do Senhor, buscando no
evangelho uma palavra: "Senhor, eu não sou digno(a) de que entreis em minha morada, mas dizei uma
palavra e serei salvo(a)" (cf. Mt 8,8); o "Amém" (firme, decidido!) ao ouvir "Corpo e Sangue de
Cristo", na comunhão no Pão e no Vinho, expressão de fé eminentemente pessoal80; e, ainda, terminada
a comunhão, toda a assembleia, juntamente com quem preside, reza em silêncio: "não seja transcurado
o tempo precioso de ação de graças depois da comunhão" (SCa 50).
Significado dos ritos para nossa vida
A liturgia torna-se alimento da nossa vida espiritual, pois abre a fonte do mistério cristão aos
fiéis que dela participam ativa, consciente e frutuosamente. Por isso tentarei uma vez mais fazer a
ligação entre o rito celebrado e o cotidiano de nossas vidas, como uma lista sempre aberta.
● Uma vez que a comunhão eucarística realiza-se na comunhão de irmão nossa vida exige
um contínuo esforço por vencer as pequenas divisões, formando-nos para superar as grandes. Penso,
por exemplo, naquelas divisões provindas dos preconceitos contra a mulher, os negros e índios, o povo
da rua e as pessoas da periferia... como os preconceitos ainda nos dividem!
● A comunhão acontece como consequência da partilha, isto é, da fração do pão. Na
própria missa a temos, pois, é necessidade avançar segundo caminho proposto pela Instrução Geral do
Missal Romano: "A verdade do sinal exige que a matéria da celebração eucarística pareça realmente
um alimento. Convém, portanto, que, embora ázimo e com a forma tradicional, seja o pão eucarístico
de tal modo preparado que o sacerdote, na Missa com povo, possa de fato partir a hóstia em diversas
partes" (321). E terminada a missa a partilha gera solidariedade, derrota a violência e edifica aquele
mundo de irmãos e não de senhores e escravos - como nos lembraria Dom Hélder - globalizando a
vida.
● Parece que o Livro do Apocalipse chama todas as pessoas àquela comunhão no
"banquete das núpcias do Cordeiro" (Ap 19,9). Deste modo, quem preside nunca deveria mudar essa
fórmula para "felizes somos nós os convidados...", reduzindo o alcance do texto bíblico e
desconsiderando aquelas pessoas que por motivos diversos naquele momento não irão se aproximar da
comunhão no banquete eucarístico; estariam elas privadas, também do festim do Reino?
● "A paz do Senhor esteja sempre convosco". Aos que nos damos mutuamente a paz, a
Igreja do Brasil, especialmente na quaresma 2.009 e ainda hoje, nos desafia a fazer desabrochar uma

203
"cultura da paz"; isto incluirá o compromisso com todas as pessoas e grupos empenhadas com a justiça:
a paz na sociedade é fruto da justiça social. Você já leu o texto base da Campanha da Fraternidade
2009? Quais são os grupos promotores da paz aí no seu bairro ou cidade?
● Que tal estudar com algumas pessoas o capítulo dois da Encíclica Ecclesia de
Eucharistia: A Eucaristia edifica a Igreja? Poderiam também reler os textos bíblicos citados no artigo,
aprofundando-os com a ajuda do Espírito Santo.
● Para os compositores... quanta necessidade têm as nossas comunidades de melodias
orantes para cantar o Pai-nosso e o Cordeiro de Deus, sem falar na importância dos cantos de
comunhão, cujo refrão retoma o Evangelho. A CNBB, com seus hinários, já abriu o caminho, mas há
muito o que fazer num país tão diversificado culturalmente como o nosso.
Quero terminar recordando este texto que une a exigência da solidariedade na sociedade à
celebração eucarística: "Aos germes de desagregação tão enraizados na humanidade por causa do
pecado, como demonstra a experiência quotidiana, contrapõe-se a força geradora de unidade do corpo
de Cristo. A Eucaristia, construindo a Igreja, cria por isso mesmo comunidade entre os homens" (EE
24).
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
10. Ritos Finais: Vão! Construam o Reino de Deus.
“Ide em paz", ouvimos na missa. "Vão para casa - nos diz a profecia – façam uma bela
refeição, bebam um bom vinho e repartam com os que não têm nada, porque hoje é dia consagrado ao
nosso Senhor. Ninguém fique triste, pois a alegria do Senhor é a força de vocês" (Ne 8,10). Há mais
de um ano estamos percorrendo juntos, passo a passo, as "ruas" dos sinais, dos gestos e das palavras,
no grande "bairro" do rito celebrado, aliás bairro central da "cidade" liturgia. E o temos feito, auxiliados
por muitos guias, homens e mulheres que, com o "mapa" da mistagogia litúrgica, nos têm testemunhado
que a liturgia é "simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde
emana toda a sua força" (SC 10). Assim, a própria celebração litúrgica é a fonte da nossa espiritualidade
cristã, pois é nela que, de modo especial, encontramos o Senhor que se faz presente para continuar sua
obra salvadora na história de cada pessoa e das comunidades, como fermento de transformação do
mundo inteiro.
Olhando bem de perto a nossa missa, tivemos oportunidade de descobri-la pessoalmente como
memorial da páscoa do Senhor, celebrada de forma consciente em uma reunião de irmãos e irmãs que,
marcados pelo cotidiano, escutam juntos a "Palavra da Aliança" e dão graças a Deus, e, enfim, tomam
parte no "pão da vida" e no "cálice da salvação".
Queremos agora nos deter nos "ritos de encerramento" ou ritos finais, como costumeiramente
os chamamos. Seriam eles importantes? Teriam significado para a vida cristã uns ritos tão simples e
breves? Deixemo-nos conduzir novamente pelo "mapa" da mistagogia litúrgica.
Rito celebrado
O missal romano nos dá uma rubrica muito clara a respeito do início da missa: essa tem início
quando o povo está reunido: "Reunido o povo". Realiza-se, pois, uma assembleia celebrante81 que, com
os ritos finais é encerrada. É uma reunião para celebrar a missa e terminar na missão: Ite, missa est. Ide
em paz, e o Senhor vos acompanhe, é a nossa tradução. É como se a missa exigisse uma sua conclusão
em envio. Deixamos nossas casas e afazeres e nos reunimos em assembleia. Agora, tendo celebrado o
memorial da páscoa do Senhor, somos enviados de volta às nossas casas e aos nossos afazeres.
Como isso se realiza?
A IGMR, diz pertencer aos ritos de encerramento quatro ações: breves comunicações,
saudação e bênção, despedida do povo e o beijo do Altar, seguido de inclinação profunda (90)82. Ao
que tudo indica esses elementos pertencem à mais antiga tradição da Igreja, ainda que com
características e importância diversas83. Tomemos, pois, cada um dos elementos.
Ao falar das "comunicações" a serem feitas ao povo - nossos avisos - o texto os qualifica de
breves e necessários, dados neste momento e não no momento da homilia ou antecedendo a oração
“depois da comunhão”, enquanto se deve realizar um profundo silêncio orante (88).
Em seguida, aquele que presidiu a assembleia a saúda e a abençoa. Pode-se, conforme o dia
e a ocasião, usar uma das vinte Bênçãos Solenes ou uma das vinte e seis Orações sobre o Povo, contidas

204
atualmente no Missal Romano de Paulo VI. Essas fórmulas serão sempre precedidas da saudação O
Senhor esteja convosco e concluídas com as palavras Abençoe-vos Deus todo-poderoso, Pai e Filho e
Espírito Santo. O povo sempre aclama Amém, confirmando e concluindo a bênção (79h). Tais fórmulas
solenes não apenas enriquecem a bênção, mas também a manifestam, unindo a fé celebrada à sua
prática: "Ó Deus, olhai com bondade os fiéis que imploram a vossa misericórdia, para que, confiando
em vosso amor de pai, irradiem por toda a parte a vossa caridade. Por Cristo, nosso Senhor"84.
Segundo a tradição, em Jerusalém, no século IV, já era costume que, ao final das orações da
comunidade, o bispo abençoasse os catecúmenos e, em seguida, todos os fiéis85. Também em Roma,
um escrito do ano 680, realça a prática de o papa abençoar os fiéis que encontrava enquanto ia
profissionalmente do altar à sacristia86.
Depois, dentro dos ritos finais, caberá ao diácono ou ao próprio presidente da celebração
despedir o povo; o n. 90 da Introdução orienta-nos na compreensão desse gesto: é "para que cada qual
retorne às suas boas obras, louvando e bendizendo a Deus". É uma despedida/envio. Assim o
compreenderam os bispos reunidos no Sínodo sobre a Eucaristia e, depois, o Papa Bento XVI: "Nesta
saudação, podemos identificar a relação entre a Missa celebrada e a missão cristã no mundo (...) a
referida saudação exprime sinteticamente a natureza missionária da Igreja; seria bom ajudar o povo de
Deus a aprofundar esta dimensão constitutiva da vida eclesial, tirando inspiração da liturgia"87. E ainda
mais, desde a Vigília pascal até o II domingo da Páscoa e, depois, em Pentecostes, acrescentam-se dois
Aleluias, os quais soam como um eco do anúncio da ressurreição do Senhor; anúncio que será
atualizado pelo testemunho dos que estão sendo enviados naquele momento da despedida/envio.
Antes de se retirarem, os ministros voltam sua atenção uma vez mais para o altar, como o
fizeram no início da celebração, venerando-o com o beijo e a inclinação profunda. A propósito, o
altar aparece sempre valorizado, como símbolo permanente de Cristo. Há, entre os sírios, o costume
de se dizer um tríplice "Adeus", em seguida ao beijo, despedindo-se do Altar: Permanece em paz, santo
altar do Senhor. Não sei se tornarei ou não a vir até junto de ti. Que o Senhor me conceda ver-te na
assembleia dos primogênitos presente no céu; eu confio nesta santa aliança. Permanece em paz, santo
e propiciatório altar (...) Permanece em paz, santo altar, mesa da vida, e pede por mim a nosso Senhor
Jesus Cristo, para que não deixe de pensar em ti desde agora e por todos os séculos dos séculos.
Amém88.
Contudo, "se houver depois da Missa alguma ação litúrgica, omitem-se os ritos finais, isto é,
a saudação, a bênção e a despedida" (170). Isto acontece quando, por exemplo, na missa da Ceia do
Senhor, com a qual se inicia o primeiro dia do Tríduo pascal, "concluída a oração após a Comunhão,
forma-se a procissão que, passando pela igreja, acompanha o Santíssimo Sacramento ao lugar da
reposição"89.
Teologia
Por primeiro queremos buscar na Bíblia inspiração teológica para fundamentar o sentido geral
dos ritos finais. Consideremos alguns exemplos que ouvimos nestes dias da Páscoa do Senhor. Maria
Madalena e Maria, mãe de Tiago, encontraram o Senhor ressuscitado, de quem receberam a missão:
"Alegrem-se! Não tenham medo. Vão anunciar aos meus irmãos que se dirijam para a Galileia. Lá eles
me verão" (Mt 28,9a.10). O Evangelista João apresenta outro encontro com o Crucificado-Ressuscitado
que gera missão: Jesus entrou, ficou no meio deles e concedeu-lhes sua paz; depois lhes mostrou as
mãos e o lado, e disse: "Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês" (Jo 20,19-21). Outro
testemunho nos é dado por Lucas, através dos chamados discípulos de Emaús. Também eles, tendo
encontrado o Senhor na "fração do pão" e enquanto lhes "falava pelo caminho", explicando as
Escrituras, voltaram apressadamente a Jerusalém, de onde tinham saído, e testemunharam aos outros
que Jesus, o crucificado, estava vivo (Lc 24,30-35). Igualmente com Paulo foi assim: "Aquele que nos
perseguia, agora está anunciando a fé que antes procurava destruir"(Gl 1,23), mas isso não se deu sem
o encontro pessoal com o Senhor no caminho de Damasco (At 9,1-19).
Portanto, segundo os textos bíblicos, as pessoas que encontraram o Senhor saíram a
testemunhá-lo, segundo o Seu mandato: "Vão e façam com que todos os povos se tornem meus
discípulos. Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo" (Mt 28,19a.20). E "os

205
discípulos saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e, por meio dos sinais que os
acompanhavam, provava que o ensinamento deles era verdadeiro" (Mc 16,20).
Ao passarmos da Bíblia para a liturgia, percebemos que a participação na liturgia em geral e
na missa em particular nos oferece a oportunidade de encontrar o Senhor vivo, sob os sinais
sacramentais (SC 7). Vamos, pouco a pouco, ficando parecidos (as) com Ele, na esperança de poder
dizer como o Apóstolo: "Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. E esta
vida que agora vivo, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl
2,20). E, assim, nos transformaremos em discípulos missionários, como nos pede o Documento da
Conferência de Aparecida.
Buscando, pois, tal "inspiração na liturgia" (SCa 51), consideremos alguns textos da missa
que procuram unir celebração e vida. Na Oração Eucarística, pedimos a força do alto para que todos
os que naquele momento "estamos reunidos e somos povo santo e pecador", possamos construir juntos
o Reino de Deus (OE V), e assim, uma vez "reunidos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos
em Cristo um sacrifício vivo", para louvor e glória de Deus Pai (OE IV). Outras dimensões da vida
missionária do povo reunido para celebrar aparecem nas Orações Eucarísticas para diversas
circunstâncias: brilhar "como sinal profético de unidade e de paz" (VI-I); "irradiar confiança e alegria
e caminhar com fé e esperança pelas estradas da vida" (VI-II); "reconhecer os sinais dos tempos" e
"partilhar as dores e as angústias, as alegrias e as esperanças, e andar juntos no caminho" do Reino (VI-
III); confortar "os desanimados e oprimidos" e ser "testemunha viva da verdade e da liberdade, da
justiça e da paz, para que toda a humanidade se abra à esperança de um mundo novo" (VI-IV). Tal
compromisso com o Reino encontrará o seu fim somente "quando fizermos parte da nova criação,
enfim libertada de toda maldade e fraqueza". Então sim, "poderemos cantar a ação de graças do
Cristo que vive para sempre" (VII), em comunhão com "os homens e as mulheres de todas as
classes e nações, de todas as raças e línguas" reunidos "para a ceia da comunhão eterna" (VIII),
realização plena daquela profecia anunciada em cada missa: "Felizes os convidados para o banquete
do casamento do Cordeiro" (Ap 19,9).
Podemos perceber como é encarnada a espiritualidade que aparece na oração mais importante
da Igreja, justamente quando ela faz memória da morte e ressurreição de Jesus, tornando o mistério
pascal fonte de vida para a pessoa, a comunidade, a Igreja inteira, toda a humanidade e a criação!
Significado dos ritos para nossa vida
Um compromisso geral que une celebração dominical e vida cotidiana pode ser assim
expresso: "para o fiel que compreendeu o sentido daquilo que realizou, a Celebração Eucarística não
pode exaurir-se no interior do templo. Como as primeiras testemunhas da ressurreição, também os
cristãos, convocados cada domingo para viver e confessar a presença do Ressuscitado, são chamados,
na sua vida quotidiana, a tornarem-se evangelizadores e testemunhas. (...) Terminada a assembleia, o
discípulo de Cristo volta ao seu ambiente quotidiano, com o compromisso de fazer, de toda a sua vida,
um dom, um sacrifício espiritual agradável a Deus. Ele sente-se devedor para com os irmãos daquilo
que recebeu na celebração, tal como sucedeu com os discípulos de Emaús que, depois de terem
reconhecido Cristo ressuscitado na “fração do pão”, sentiram a exigência de ir imediatamente partilhar
com seus irmãos a alegria de terem encontrado o Senhor"90.
Nesse sentido, procuremos apresentar outras consequências particulares para nossa vida
espiritual e para a prática pastoral e social, vindas da compreensão dos ritos finais"91.
✔ Ter sensibilidade para com a assembleia e sua capacidade de memorização, especialmente
quanto a dias e horários: aproveitar para avisar somente o que é necessário para a edificação da
comunidade, evitando, por exemplo, publicidade de comércio à porta da igreja; usar melhor os boletins
ou informativos paroquiais, ou algum cartaz'92.
✔ Acolher a bênção como concessão do Espírito Santo e, também, como envio missionário
(cf. Lc 24,50-53), pois ela nos mostra a "necessidade de proclamar as maravilhas do Senhor"93, como
pessoas consagradas a ele pelo batismo. (Aliás, saber escolher uma das 46 fórmulas propostas pelo
Missal já seria uma bênção para a comunidade).
✔ Conectar celebração e vida: com a despedida, é preciso que "os participantes saiam à rua
com um compromisso, com uma esperança, com a sensação de ter crescido na fraternidade e a decisão
206
de dar testemunho no meio do mundo"94. Normalmente esse compromisso seria apresentado na
homilia, bastaria aqui uma breve palavra que o retomasse antes de despedir a assembleia: Vão à missão!
O Senhor acompanha vocês.
✔ Aproveitar algum momento para uma catequese a respeito do Altar também seria de
grande valor para a comunidade, especialmente para aqueles que desenvolvem seu ministério ao redor
dele, a fim de não transformá-lo em mesa, balcão, apoio... "O Altar é Cristo!"95 "Em virtude da unção,
o altar torna-se símbolo de Cristo, que é o ‘Ungido’ por excelência"96. E que o Espírito Santo que
"sopra onde quer" suscite muitas outras aplicações para a vivência cristã de cada pessoa que ler este
artigo.
MISTAGOGIA EUCARÍSTICA
11. O culto do mistério eucarístico fora da missa
Considero um dom de Deus ter podido compreender passo a passo a celebração eucarística a
partir de uma perspectiva mistagógica e, assim, poder celebrá-la melhor, deixando-me iluminar pelo
seu mistério: o memorial da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Cresceu também a consciência de
que a melhor catequese eucarística é uma missa bem celebrada. E isso exige conhecimento dos ritos,
do seu sentido e da sua espiritualidade, elementos que a mistagogia nos proporcionou.
Tendo concluído a compreensão mistagógica da Celebração Eucarística com o último artigo,
Ritos Finais: "Vão! Construam o Reino de Deus", quero deter-me em outro aspecto bem querido por
muitos católicos: o culto do mistério eucarístico fora da missa, mais especificamente aquele que
acontece na solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo: missa seguida de
procissão e bênção eucarística.
Esta solenidade tem suas raízes na devoção eucarística, muito florescente a partir do século
XII; disto nos vem o destaque que tal comemoração dá à presença real de Cristo no sacramento, ou
seja, "sob as espécies eucarísticas" e, consequente, adoração das mesmas, em muitos casos, quase que
separando-as da celebração eucarística. O papa Urbano IV prescreveu-a para toda a Igreja, no dia 11
de agosto de 1264, com a Bula "Transiturus de hoc mundo". Felizmente esse documento tentava situar
a presença eucarística em seu contexto original, a celebração da morte e ressurreição de Cristo: "Este
é o memorial... salvífico, no qual reconsideramos a grata memória da nossa redenção, no qual somos
afastados do mal e revigorados no bem, e progredimos no crescimento das virtudes e das graças” 97.
Até a reforma, realizada pelo Concílio Vaticano II, esta festividade chamava-se "Santíssimo Corpo do
Senhor", e havia outra do "Preciosíssimo Sangue de Jesus", que foi suprimida pela atual "Santíssimo
Sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo". Deste modo se quis apresentar aos fiéis uma visão mais
integral do Sacramento.
Rito celebrado
Atualmente esta festa é celebrada com missa, seguida de procissão, sendo consagrada na missa
a hóstia que será levada em procissão: "logo após a Missa, a Hóstia, que nela foi consagrada, é levada
para fora do recinto eclesial"98. Assim, omitem-se os ritos finais, como normalmente são feitos, ou seja,
se celebra a missa como se faz nas solenidades, até a oração após a comunhão; a procissão e bênção
ocupam o lugar dos ritos finais.
As três orações da missa permaneceram as mesmas do missal de 1570, mas - importantíssimo!
- a liturgia da Palavra foi enriquecida: foram organizadas leituras próprias para cada um dos anos A, B
e C, favorecendo uma pregação e catequese mais amplas e, a cada ano, mais aprofundadas.
Enquanto as orações refletem sobre a eucaristia como memorial da paixão de Cristo (Oração
do dia ou Coleta), sacramento da unidade (Sobre as oferendas e prefiguração do gozo da vida divina
(Depois da comunhão), as leituras nos apresentam o mistério eucarístico a partir do êxodo (ano A), da
Páscoa e da Aliança (ano B) e do Pão da Vida (ano C)99.
A procissão que se segue à missa é muito querida ao povo e envolvida de variadas e festivas
tradições. Ela é o modelo das outras procissões eucarísticas; todas devem acontecer segundo as
orientações previstas no Ritual Romano100 e no Diretório sobre a Piedade Popular e a Liturgia, o qual
acolhe de bom grado as manifestações da devoção presentes em cada cultura, desde que isentas "de
qualquer forma de competição" no modo de se desenvolver (n. 162). Contudo, para a Igreja "têm
primazia as procissões da festa da Apresentação do Senhor, do Domingo de Ramos na Paixão do
207
Senhor, da Vigília Pascal, nas quais se comemoram os mistérios do Senhor"101, segundo o
desenvolvimento celebrativo e teológico do ano litúrgico.
Para encerrar a procissão eucarística, dá-se a bênção com o Santíssimo Sacramento, a qual
"não é uma forma de piedade eucarística por si só, mas é o momento conclusivo de um encontro cultual
suficientemente prolongado" (DPP 163), no caso a procissão, ou então quando acontece a adoração
durante a exposição prolongada do mesmo Sacramento. Por isso, a orientação pós conciliar proíbe a
exposição feita unicamente para dar a bênção ao final da missa102.
Teologia
O sentido teológico no qual se situa a celebração dessa Solenidade bem como o culto do
mistério eucarístico fora da missa não pode ser outro senão aquele mesmo que nos foi dado por Jesus:
"Fazei isto em memória de mim". Caso contrário incorreríamos no erro gravíssimo de separar a hóstia
consagrada e, consequente, devoção eucarística, do seu "supremo ponto de referência" o mistério
pascal do Senhor. Em cada missa, pois, celebramos, na tradição da Igreja, a memória do Senhor, cujos
alicerces encontram-se na tradição bíblica já do Antigo Testamento. No contexto da páscoa da
libertação da escravidão no Egito, lemos: "Este dia será para vós um memorial, e o celebrareis como
uma festa para o Senhor; nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo" (cf. Ex 12,1-14).
Por ser um memorial cada geração, ao celebrar a páscoa, faz a experiência da própria
libertação. Na noite da páscoa deve o pai dizer: "Eis o que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito"
(Ex 13,8). E, "Nós éramos escravos do Faraó no Egito, mas o Senhor nos fez sair do Egito com mão
forte" (Dt 6,21). Assim, um memorial é o perene hoje da ação libertadora de Deus em favor do seu
povo! Esta obra - o memorial da libertação - foi sendo celebrada pelas gerações do povo de Israel, até
que, chegada a plenitude dos tempos, Jesus Cristo a concluiu naquela ceia derradeira: depois de ter
dado aos apóstolos pão e vinho, sacramentos do seu Corpo e Sangue, Jesus deu-lhes uma ordem: Fazei
isto em minha memória. Comer e beber é participar da vida de Jesus Cristo, pois o cálice de bênção é
comunhão com o sangue de Cristo, e o pão que partimos é comunhão com o corpo de Cristo (1Cor
10,16). Jesus se refere à totalidade de sua pessoa. É como se ele dissesse: "Isto é o meu corpo, eu
mesmo, minha pessoa, minha existência dada por vós". Doravante os discípulos não farão mais a
memória da libertação do Egito. Sem dúvida, trata-se ainda da salvação concedida por Deus, mas o
acontecimento celebrado é a ação de Deus na pessoa de Jesus.
Ao celebrar uma ceia, Jesus deixou aos seus discípulos um sacramento da sua vida entregue:
do seu corpo dado e do seu sangue derramado. É o sacramento da Cruz, banhada na luz vitoriosa da
Ressurreição: mistério pascal! Mistério da fé! Ele instituiu o sacramento do que estava por acontecer:
sua doação total, cujo símbolo maior é a Cruz. Hoje, em cada santa missa, a Igreja torna presente o
Senhor, faz a memória d'Ele, do seu mistério pascal, fato já acontecido, único e irrepetível (Rm 6,10;
Hb 7,27; 1Pd 3,18), mas sempre atual (1Cor 11,23-26). Assim, a cada geração é dada a possibilidade
de participar do mesmo Mistério Pascal do Senhor, até que Ele venha!
Quanto à relação existente entre a Celebração Eucarística e a adoração, eis uma preciosa
indicação provinda ultimamente do magistério eclesial: "a adoração eucarística é apenas o
prolongamento visível da celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o maior ato de adoração da
Igreja. (...) O ato de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na própria
celebração litúrgica"103. E o Ritual Romano já ensinava que a presença permanente do Senhor no
Sacramento decorre da celebração da missa e sua adoração deve conduzir à comunhão sacramental.
"Assim, a piedade que leva os fiéis à adoração da Santíssima Eucaristia move-os também a participar
radicalmente do mistério pascal e corresponder agradecidos ao dom daquele que, por sua humanidade,
infunde sem cessar a vida divina nos membros de seu Corpo"104.
Os católicos, fazendo procissão pelas ruas testemunham publicamente sua fé e devoção a este
Sacramento, especialmente na Solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo
(EM 59).

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Significado dos ritos para nossa vida
A Missa. Ainda que, com relação à celebração eucarística, muitas aplicações tenham sido
apresentadas nos artigos anteriores, gostaria ainda de destacar outra, contida na Bula Transiturus de
hoc mundo, do papa Urbano IV. Participar da celebração eucarística é entrar no mistério da vida de
Jesus, e, portanto, levar vida de doação e entrega em favor dos irmãos, vida configurada a Cristo: "Este
pão é comido, mas na verdade não é consumido; é comido, mas não mudado, porque não é de modo
algum transformado naquele que come, mas, se é recebido de modo digno, aquele que o recebe é a ele
amoldado" (DH 847).
O culto do mistério eucarístico fora da missa.
❖ Perceber "que o ponto supremo da referência da piedade eucarística é a Páscoa do Senhor; de
fato, a Páscoa, segundo a visão dos santos Padres, é a festa da Eucaristia e, por outro lado, a Eucaristia
é antes de tudo celebração da Páscoa, isto é, da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus" (DPP 161). Ou
seja, a devoção decorre da celebração eucarística e para ela encaminha o fiel.
❖ Aprender, ao aproximar-se do mistério eucarístico, "a tomar como própria a causa da Igreja, a
dirigir-se a Deus sem descanso, a oferecer-se a si mesmo ao Senhor, como sacrifício agradável, pela
paz e unidade da Igreja; a fim de que todos os filhos da Igreja sejam uma só coisa e tenham um mesmo
sentimento, nem haja entre eles divisões, mas sejam perfeitos num mesmo espírito e mentalidade, como
manda o Apóstolo (1Cor 1,10)"105.
❖ Ultrapassar as barreiras criadas pelo intimismo e reconhecer que "o culto eucarístico promove
muito nas almas o amor “social”, que nos leva a antepor o bem comum ao bem particular, a fazer nossa
a causa da comunidade, da paróquia e da Igreja universal, e a dilatarmos a caridade até abraçarmos o
mundo inteiro; sabemos que em toda a parte há membros de Cristo" (MF 71).
❖ Sentir-se consolado(a) pela presença do Senhor: "Cristo é verdadeiramente 'Emmanuel', isto é,
'o Deus conosco', não só durante a oferta do Sacrifício e realização do Sacramento, mas também depois,
enquanto a Eucaristia se conserva em igrejas ou oratórios. Dia e noite, está no meio de nós, habita
conosco, cheio de graça e de verdade" (MF 69).
❖ Resgatar todo o esforço missionário cristão que está unido à procissão eucarística: levar Cristo
pelas ruas, fábricas, lojas, shoppings... Seria deficiente a espiritualidade que valorizasse o tapete e a
procissão, mas não desse testemunho de Cristo diante do mundo.
❖ Redescobrir a primazia das procissões de Ramos, das velas na Apresentação do Senhor e com
o Círio Pascal na Vigília Pascal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Anotações de aula do Curso de Atualização Litúrgica, Pontifícia Faculdade de Liturgia Nossa
Senhora da Assunção, São Paulo, janeiro de 2003.
AUGÉ, Matias. A liturgia das horas. In: Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São
Paulo: Ave Maria, 1996. p. 254-275.
BARAÚNA, Luiz J. Igreja, um povo de sacerdotes. Revista de Liturgia. (85): 8-17, jan./fev.,1988.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo. Paulus, 2012.
BUYST, Ione Liturgia das Horas (Oficio Divino) IN:. O mistério celebrado: memória e compromisso
II. Valência, Espanha: Siquem; São Paulo: Paulinas, 2002. P. 137-145.
BUYST, Ione Liturgia das Horas, oração do povo de Deus. Revista de Liturgia; São Paulo: Paulinas,
2002.
BUYST, Ione, A Missa, memória de Jesus no coração da vida, 5ª ed., 2001 Petrópolis, Vozes.

209
BUYST, Ione, Celebração do domingo ao redor da palavra de Deus, 9ª ed., 2002, São Paulo,
Paulinas.
BUYST, Ione. Assembleia litúrgica, dimensão teológica, espiritual e prático-pastoral. Centro de
Liturgia, 1995, texto mimeografado.
BUYST,I. e SILVA, J.A., O Mistério Celebrado: Memória e Compromisso I, Coleção LBT, vol. 9,
Valencia – Espanha.
CARPANEDO, Penha e GUIMARÃES, MARCELO, Dia do Senhor, Guia para as celebrações das
comunidades, S. Paulo, Edições Apostolado Litúrgico e Paulinas.
CARPANEDO, Penha. Oficio Divino das Comunidades: uma introdução. São Paulo: Paulinas, 2008.
CNBB, Orientações para celebração da Palavra de Deus, Doc.52, 3ª ed., S. Paulo, Paulinas, 1994.
CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, In: CONCÍLIO VATICANO
II. 1962-1965: Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 1998.
Documento da CNBB 43, Animação da Vida Litúrgica no Brasil, Paulinas, 1989, nº257.
Estudos da CNBB 79, Música Litúrgica no Brasil, Editora Paulus, 1999.
GUIMARÃES, Marcelo. O Oficio Divino na espiritualidade dos pais e mães da Igreja. Revista de
Liturgia, São Paulo, v.21, n. 124, p. 33-35, jul./ago. 1994.
IGMR – Instrução Geral do Missal Romano, que se acha nas primeiras páginas do Missal e que
pode ser ligeiramente diferente, pois os missais atualmente em uso trazem a versão de Paulo VI.
Uma nova versão, editada por João Paulo II, já foi publicada pela Editora Paulus: “As Introduções
dos Livros Litúrgicos”. Neste trabalho citamos as duas numerações, a antiga seguida da nova: Ex.
IGMR 19/39.
Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas: Comentários de Aldazábal. São Paulo: Paulinas, 2010.
LÉCUYER, Joseph. A assembleia litúrgica, fundamentos bíblicos e patrísticos. Concilium, (2): 5-
19, 1966.
LUTZ, Gregório. A oração dos salmos. São Paulo: Paulinas, 1982.
PALUDO, Faustino. Assembleia litúrgica. Revista de Liturgia. (81) 2-9, maio/jun., 1987.
RAFFA, Vicenzo. Liturgia das Horas. In: SARTORE, D.; TRIACCA, A.M. (org.) Dicionário de
Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992.p. 651-670.
SC – Sacrosanctum Concilium, que é a Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia.
SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA. Saltério litúrgico. Porto: Gráfica de Coimbra,
1999.
Siquem Ediciones, 2002, pp.75-88. Texto para uso pastoral e sem motivação comercial. 2 - Sobre
Sacrifício, Cf. texto publicado no Jornal de Opinião, de autoria do Pe. Johan Konings, SJ. Texto para
uso pastoral e sem motivação comercial.

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SOUZA, Marcelo de Barros. Ensaiando a festa com Deus; a assembleia litúrgica na Bíblia. Revista
de Liturgia. (109): 4-7, jan./fev., 1992.

SUGESTÃO
Achamos interessante e proveitoso, que as pessoas envolvidas nas equipes de liturgia,
equipes de celebração, equipes de canto e outras, tanto na Celebração da Eucaristia quanto da
Celebração da Palavra, bem como em todas outras ações litúrgicas, tomem conhecimento e estudem
os documentos citados ao longo deste texto:
a. IGMR – Introduções Gerais do Missal Romano. Está nas primeiras páginas do Missal e
contém as instruções para a missa.
b. As Introduções Gerais dos Livros Litúrgicos. Contém as instruções para todos os
sacramentos. Publicação Editora Paulus.
c. Documento da CNBB 43 – Animação da Vida Litúrgica no Brasil. Publicação Editora
Paulinas.
d. Documento da CNBB 52 – Orientações para a Celebração da Palavra de Deus. Publicação
Editora Paulinas.
e. Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a sagrada liturgia. Publicação das
Editoras Católicas.
f. Estudo da CNBB 79 – A Música Litúrgica no Brasil. Publicação Editora Paulus.
g. Sugerimos também “Instrução Geral sobre o Missal Romano”, Comentários de J.
Aldazábal, Edições Paulinas, que traz excelentes notas de rodapé e comentários sobre a Celebração
da Eucaristia.

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