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Curso de Exegética Bíblica - Formação Famílias Novas

Aula 1 - 04/08

Introdução às Sagradas Escrituras

Quando começamos a estudar a Bíblia, temos várias portas de entrada. Podemos


estudá-la contando a História Sagrada, desde a criação até o Apocalipse; podemos estudá-
la a partir de uma visão meramente histórica ou sociológica; podemos considerá-la do ponto
de vista espiritual, com o fim de enriquecermos a nossa Lectio divina. Todas essas
perspectivas - e outras tantas - são válidas e enriquecem nossa compreensão da Palavra
de Deus. A Bíblia é um conjunto de livros do qual sempre se pode tirar algo novo, que nos
surpreende.
Entretanto, para empreendermos bem o caminho deste curso, precisamos antes
compreender o que são as Sagradas Escrituras, como elas surgiram e como Deus as
revelou utilizando-se de autores humanos. Precisamos ter todos esses conceitos bem
esclarecidos para não cometermos erros no caminho, que empobrecem e até pervertem o
sentido real dos textos bíblicos.
“A ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo”, disse São Jerônimo.
Infelizmente, nós, católicos, em geral, desconhecemos e muito as Sagradas Escrituras.
Temos pouco contato com ela, e, muitas vezes, quando o temos, não sabemos por onde
começar ou como utilizá-la de maneira frutífera para a nossa vida espiritual. Esse curso tem
como primeiro objetivo, portanto, ajudar-nos na aproximação da Palavra de Deus, de uma
maneira sincera, verdadeira e profunda, para que ela seja um verdadeiro alimento de nossa
vida espiritual.
Este curso também pretende ajudar-nos a conhecer as Sagradas Escrituras para
defender a nossa fé diante de contestações de religiões cristãs que afirmam que a Igreja
Católica perverteu o sentido das Sagradas Escrituras. Esse seria o caráter apologético do
curso. Pois bem, dito isso, começaremos essa aula introdutória.

Afinal, que é a Bíblia?

O documento do Concílio Vaticano II, Dei verbum, é o documento mais profundo e


extenso do magistério, em toda a história da Igreja, que trata da Palavra de Deus. É um
documento importantíssimo, e deles tiramos a seguinte definição sobre o que é a Bíblia, que
é um conjunto de livros que “escritos sob a inspiração do Espírito Santo, eles têm em Deus
o seu autor e nesta sua qualidade foram confiados à mesma Igreja” (DV 9).
Nessa definição, podemos tirar algumas conclusões: a Bíblia, como todos sabem, é
um conjunto de livros. Mas não são livros comuns, escritos apenas a partir da inteligência
humana ou do espírito humano. Não, são livros escritos a partir de uma inspiração do
Espírito Santo. Assim, podemos afirmar que o autor primeiro das Sagradas Escrituras é o
próprio Deus, apesar de a Bíblia conter diversos livros, com autores humanos distintos, em
contextos históricos muito diferentes e cada um com seu estilo próprio. Assim, podemos
afirmar algo interessante: todos os textos das Sagradas Escrituras têm dois autores, o autor
humano, que de fato redigiu o texto; e o autor divino, que inspirou o autor humano a
escrevê-lo. Veremos mais abaixo qual é a relação entre autor humano e divino.
Por ter como autor o próprio Deus, podemos reunir todos esses 73 livros num
conjunto e chamá-lo de Bíblia.
Outra questão importante trazida pela definição conciliar, é que as Sagradas
Escrituras não são livros destinados, por Deus, a qualquer instituição ou grupo de pessoas.
Deus as confiou à Igreja. É a Igreja responsável por guardar, defender e interpretar a Bíblia.
A Bíblia é um livro da Igreja e para a Igreja. Isso não quer dizer que pessoas, mesmo não
católicos, não possam ler e estudar a Bíblia e descobrir coisas novas. Mas significa que a
última palavra sempre pertence à Igreja, porque ela recebeu de Deus a responsabilidade de
guardar fielmente os textos revelados.
Por isso, nós, católicos, não temos apenas a Bíblia como fonte de Revelação.
Acreditamos também na tradição oral deixada pelos Apóstolos e no Magistério da Igreja,
responsável por fielmente interpretar e transmitir a Bíblia e a Tradição, como afirmou São
Pedro em sua segunda carta: “Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de
interpretação pessoal” (2Pd 1, 20). A Bíblia, como qualquer outro texto - mesmo uma bula
de remédio - não interpreta-se a si mesma. Duas pessoas podem ler o mesmo texto e
entendê-lo de maneiras diametralmente opostas. Em qualquer texto, precisamos de uma
chave de interpretação, que abrirá a porta do que está escrito de maneira correta. Quem dá
essa chave é a Igreja. Se não fosse ela, a Bíblia seria um texto hermético, contraditório,
capaz de justificar qualquer atrocidade ou, mesmo, imoralidade, como ocorreu muitas vezes
na história. Seria contraditório se Deus desse as Sagradas Escrituras e não nos desse, ao
mesmo tempo, um meio ou uma chave para interpretá-las da maneira correta. Deus não
nos dá apenas o peixe, mas nos dá a vara para pescá-lo. Explicado isso, precisamos
entender o que é a Revelação, já que a Bíblia faz parte da Revelação.

Que é a Revelação?

Novamente, a Dei verbum nos traz o melhor conceito de Revelação:


“Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o
mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo
encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza
divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível (cfr. Col. 1,15; 1
Tim. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex. 33, 11; Jo.
15,1415) e convive com eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com
Ele. Esta «economia» da revelação realiza-se por meio de ações e palavras ìntimamente
relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da
salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e
as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém,
a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens,
manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a
plenitude de toda a revelação” (DV 2)
Segundo essa definição, a Revelação tem como principal foco revelar a Deus
mesmo e Sua vontade, pela qual os homens se tornam participantes da natureza divina.
Isso é profundíssimo. Isso quer dizer que todas as palavras das Escrituras têm, como fim
último, nos convidar e permitir que participemos da vida divina, para que tenhamos
verdadeira comunhão com Deus.
A definição também afirma que Cristo é o ápice da Revelação e é por meio dele que
temos acesso à vida intratrinitária.
Além disso, a Revelação de Deus não se dá apenas por meio de palavras, mas,
também, por meio de obras. Assim, ao abrir o Mar Vermelho, por exemplo, Deus, mesmo
sem falar nada, já nos revelava alguma coisa. A palavra que Deus inspira a Moisés, por
exemplo, ajuda-nos a compreender essa ação divina, que pode ser sempre aprofundada.
Por exemplo, com Cristo, a abertura do Mar Vermelho ganha um significado mais profundo,
nunca imaginado mesmo por Moisés: agora, essa ação prefigurava o batismo, por exemplo.
Isso acontece com toda a Bíblia: a partir de Cristo, podemos interpretar de uma
maneira nova todo texto do Antigo Testamento. Cristo é o ápice e a fonte de todas as
Escrituras.
“Se Deus é o verdadeiro autor da Bíblia, então ela é fonte de revelação ou, em
outros termos, um livro em que Deus se manifestou ao homem. A Bíblia não é Revelação:
ela contém a Revelação; é o recipiente ou o invólucro onde se guarda a revelação para ser
usada. Se Deus decidiu manifestar-se ao homem, então foi obrigado a acomodar-se à
capacidade perceptiva do homem. O Vaticano II, repetindo uma palavra de S. Agostinho diz
que “Deus falou aos homens de modo humano”” (Josef Schabert, O mundo da Bíblia)
A partir dessa citação, esclarecemos agora as relações entre os autor humano e
divino das Sagradas Escrituras

O autor humano e divino da Bíblia

“Por mais que a Igreja encare o Espírito Santo como autor genuíno, as pessoas que
escreveram partes da Bíblia em tempos diferentes e condições diversas, são verdadeiros
autores. Diga-se logo que o conceito de ‘autor’ pode ser aplicado ao compilador ou ao
revisor duma obra composta de várias partes. Em Teologia, o autor humano é intitulado
hagiógrafo”
Às vezes imaginamos que o autor humano foi apenas um instrumento passivo nas mãos da
ação do Espírito Santo. Que a inspiração seria uma ação de Deus que anularia a liberdade,
os condicionamentos e as limitações do redator humano, como se a Bíblia tivesse sido
apenas “ditada” por Deus ao hagiógrafo, sem a necessidade de um esforço deste.
Entretanto, esse não é o modo pelo qual a Igreja entende as relações entre o autor humano
e divino. Para entendermos a correta maneira de compreender essa questão comparemos
dois quadros de Caravaggio, que retrata a inspiração de São Mateus para escrever o seu
Evangelho. O primeiro deles retrata a inspiração como um ato que não requer muito esforço
humano, como se Deus ditasse o livro:
Reparem que o S. Mateus não está tendo dificuldades em escrever. Apenas vira o
rosto para ouvir o que o anjo tem a lhe dizer. Entretanto, creio que esse quadro não retrate
da melhor forma o que é a inspiração. O quadro seguinte, também de Caravaggio, mostra
um S. Mateus rude, com extremas dificuldades de escrever, que sua, que quase nem
percebe a ação do anjo que, gentilmente, segura com ele a pena. Vemos nesse quadro o
que de fato é a inspiração: ela não anula o trabalho do homem, não tira o estilo e as
limitações de cada autor humano. Ela é uma ação do Espírito muitas vezes imperceptível,
da qual o autor humano, frequentemente, nem tem consciência:
O autor humano imprimia à sua obra o seu próprio estilo. Vemos, por exemplo, que
o estilo de Lucas é o de um homem culto, versado no grego; enquanto o grego de Marcos e
Mateus é muito mais rude.Cada autor, também, usou de uma forma literária para exprimir o
que queria: uns escreveram poemas, outros escreveram histórias; outros ainda exortações,
etc. Assim, para compreender o que Deus quis dizer é necessário compreender o que
o homem quis dizer, porque Deus fala por meio, e não apesar, do autor humano. Para
compreender melhor a mensagem de Deus, precisamos compreender a cultura, a história e
o estilo de cada autor humano:

“Partindo nas suas investigações do princípio que o hagiógrafo ao escrever o livro sagrado
é órgão ou instrumento do Espírito Santo, mas instrumento vivo e racional, observam
justamente que ele sob a moção divina usa das suas faculdades e energias de tal modo,
que todos podem facilmente reconhecer do livro por ele composto "qual a sua índole
própria, e como que as feições e traços característicos da sua fisionomia". (Pio XII, Divino
Afflante Spritu)

Essa é a verdadeira beleza das Sagradas Escrituras: nelas, há um belo entranhamento


entre o divino e o humano, que andam juntos, que não podem ser desassociados. Da
mesma forma que Deus se fez VERDADEIRAMENTE homem em Cristo, a Palavra divina
se fez VERDADEIRAMENTE humana na Bíblia. Essa analogia entre Sagradas Escrituras e
o mistério da Encarnação foi feita por Pio XII em sua Encíclica Divino Afflante Spritu:

“Como a Palavra substancial de Deus se fez semelhante aos homens em tudo, exceto no
pecado, assim também a palavra de Deus, expressa em linguagem humana, se
assemelhou em tudo à linguagem humana, exceto no erro”.

1. As línguas da Bíblia

A Bíblia fala três línguas: o hebraico, o aramaico e o grego. Em hebraico foi escrito quase
todo o AT . Algumas seções e livros, nas edições hebraicas da Bíblia, foram escritos em
aramaico; precisamente: Esd 4,8-6,18; 7,12-26; Dn 2,4-7.28; duas palavras em Gn 31,47 e
uma frase em Jr 10,11.
Em grego foram escritos originariamente Sabedoria e 2 Macabeus. Além disto, existem
livros, ou partes de livros, cujos textos originais - provavelmente em hebraico - se perderam
ou só chegaram a nós em antigas versões gregas: 1 Macabeus, Judite, Tobias, algumas
seções de Daniel (Dn 3,24-90;13-14) e os acréscimos gregos de Ester (no início, antes de
1,1; depois 3,13; depois 4,17; nos primeiros dois versículos do capítulo 5; depois 8,12 e no
fim do texto hebraico, depois de 10,3). Numa situação particular encontra-se o livro do
Eclesiástico (chamado também livro de JESUS ben-Sirac ou Sirac), que se apresenta a si
mesmo como versão grega do hebraico (cf. Prólogo do livro). O texto original hebraico, que
se perdeu desde os tempos de São Jerônimo, foi reencontrado em dois terços em 1896 e
em 1931 na Geniza do Cairo; outros fragmentos do original hebraico foram encontrados em
Qumran e em Massada. Também em Qumran vieram à luz pequenos fragmentos de um
manuscrito em hebraico e de três manuscritos em aramaico do livro de Tobias. Todo o Novo
Testamento foi escrito em grego.

2. As formas literárias
Quando entramos numa biblioteca moderna, vemos que os livros são ali classificados
segundo o tipo literário de cada um: romances e novelas, poesia, história, biografias, obras
de teatro etc. A Bíblia, produção literária de uma cultura que durou cerca de dois mil anos,
assemelha-se um pouco a uma pequena biblioteca: contém 46 livros do AT e 27 do NT, e
sobretudo abraça uma infinidade de formas literárias. Um reconhecimento implícito das
diversas formas literárias na Bíblia já estava na base da divisão hebraica do AT em «Lei,
Profetas e Escritos», e daquela cristã em «Livros históricos, proféticos e sapienciais» (AT),
em «Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Cartas e Apocalipse» (NT). Todavia, esta distinção
revelou-se extremamente sumária. Uma análise literária dos textos mais atenta, e ainda
mais a descoberta das literaturas dos povos contemporâneos ao mundo bíblico, permitiram
identificar no conjunto dos livros da Bíblia uma quantidade notavelmente mais rica de tipos
literários.

2.1 A pesquisa sobre os gêneros literários

Tal pesquisa é chamada pela moderna ciência bíblica crítica das formas. Quem a introduziu
no estudo da Bíblia e deu um contributo decisivo ao estudo dos gêneros literários no AT foi
H. Gunkel (1862-1932), professor de AT em Giessen e em Halle. Sobretudo em sua
«Einleitung in die Psalmen» (introdução aos Salmos), Gunkel expôs os princípios e os
critérios para reconhecer um gênero literário que ele vê caracterizado por: uma série de
idéias e emoções dominantes; fórmulas estilísticas e formas sintéticas particulares; um
vocabulário típico, facilmente perceptível; uma situação vital comum (em alemão «Sitz im
Leben»), da qual o gênero literário provém e na qual se repete. Daqui a definição ou melhor
a descrição de «gêneros literários» que hoje em geral se dá: Os gêneros literários são «as
várias formas ou maneiras de escrever usadas comumente entre os homens de uma
determinada época e região e colocadas em relação constante com determinados
conteúdos».
Assim, para compreendermos qualquer texto da Bíblia, precisamos saber a que gênero
literário ele pertence.
DEI Verbum:
“Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, deve-se levar em conta, entre outras coisas,
também os gêneros literários. Pois a verdade é apresentada e expressa de maneiras bem
diferentes nos textos de um modo ou outro históricos, ou proféticos, ou poéticos, bem como
em outras modalidades de expressão. Ora, é preciso que o intérprete pesquise o sentido
que, em determinadas circunstâncias, o hagiógrafo, conforme a situação de seu tempo e de
sua cultura, quis exprimir e exprimiu por meio de gêneros literários então em uso. Pois, para
corretamente entender aquilo que o autor sacro haja intencionado afirmar por escrito, é
necessário levar devidamente em conta tanto as nossas maneiras comuns e espontâneas
de pensar, falar e contar, as quais já eram correntes no tempo do hagiógrafo, como as que
costumavam empregar-se no intercâmbio humano daquelas eras”

PRÓXIMA AULA FALAREMOS SOBRE A INERRÂNCIA E O CÂNON BÍBLICO.

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