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Subjetividade é a verdade.
(Johannes Climacus)
Apesar do título sugerir que este seja mais um daqueles ensaios dogmáticos, com
pretensão de validade universal, escrito por alguém que se considera tão próximo da
verdade absoluta a ponto de ter a capacidade de descrever em poucas páginas qual seja a
essência da hermenêutica protestante, quero tranqüilizar meus leitores dizendo que tal
façanha não é, nunca foi e – espero – nunca será a minha intenção.
Para explicar o meu objetivo neste ensaio, quero fazer uso de uma analogia. Vamos
imaginar que estamos em frente a uma casa, tentando olhar para o seu interior. Vamos
imaginar ainda que a porta de entrada dessa casa esteja fechada. A analogia consiste em
dizer que a hermenêutica protestante é como a visão que temos da casa. Do lado de fora
está a fachada, correspondendo à hermenêutica utilizada pelas igrejas tradicionais. Do lado
de dentro está a essência, que é justamente o objeto do nosso interesse. Minha tarefa se
resume a abrir a porta para o interior da interpretação da Bíblia (na melhor das hipóteses)
ou, alternativamente, convidar meus leitores a espiar pelo buraco da fechadura (na pior das
hipóteses). Mas com um detalhe fundamental: a porta à qual eu me refiro não é a porta da
casa observada, e sim, a porta da casa do próprio observador. O interior seria então
interioridade, ou seja, subjetividade, nas palavras de Climacus-Kierkegaard.
A idéia para este ensaio surgiu durante a leitura de um livro que já é considerado
clássico para as Ciências da Religião no Brasil: Introdução ao protestantismo no Brasil, de
Antonio Gouvêa Mendonça e Prócoro Velasques Filho, publicado pela Loyola em 1990.
Trata-se de uma coletânea de ensaios que, reunidos, fornecem uma visão global do
protestantismo brasileiro dentro de uma abordagem que combina sociologia, história e
teologia. O que nos interessa aqui é apenas o último capítulo, intitulado Catolicismo
“protestante”: as comunidades de base evangelizam o protestantismo brasileiro, escrito
pelo professor Antonio Gouvêa Mendonça, da Universidade Metodista de São Paulo.
A conclusão de Rubem Alves é que “não há livre exame”, uma vez que “a
interpretação correta já foi cristalizada num documento autoritativo”. (1979, p. 112)
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Os dois autores escrevem sobre o livre exame, ainda que cada um aborde o tema
sob uma perspectiva diferente. Enquanto Alves se concentra na formação da ortodoxia
protestante, Mendonça fala da rejeição dessa mesma ortodoxia. Contudo, é possível
perceber que tanto Alves quanto Mendonça orientam seus argumentos em relação a
algumas idéias que aparecem em ambos os textos. Partiremos agora para a análise dos
textos com base nesses pontos comuns.
O primeiro ponto é que não existe livre exame no protestantismo atual. Se, por um
lado, é bem conhecida a idéia mencionada por Mendonça de que a “Reforma afastou toda
forma excessivamente institucionalizada de leitura da Bíblia”, por outro lado, como aponta
Alves, a “proximidade física indivíduo-texto, de maneira nenhuma garante a proximidade
entre a consciência que lê e a significação do texto”. Ou seja, o livre exame do
protestantismo não implica necessariamente em livre interpretação. Neste momento,
devemos nos lembrar que até mesmo Lutero tinha seus métodos interpretativos bem
definidos, sendo que a idéia do livre exame na Reforma do século XVI parece mais
relacionada à liberdade do acesso ao texto bíblico do que à liberdade de interpretação.
Desta maneira, é possível concluir dizendo que o livre exame no sentido de livre
interpretação nunca existiu, visto que, na tradição cristã, a Igreja – tanto a Católica quanto
a Protestante – nunca deixou de ser uma instituição.
formas de dominação que visam estabelecer a verdade única. Essa unidade é de extremo
interesse para o clero, uma vez que somente através dela é que se legitima o poder nas
mãos dos sacerdotes. No caso de haver múltiplas interpretações, o poder distribuir-se-ia
igualmente entre todos os crentes, afinal, todos seriam sacerdotes (esta é, aliás, uma outra
questão importante no discurso da Reforma, e está diretamente relacionada à questão do
livre exame). Mendonça afirma que “a Bíblia perdeu seu lugar no protestantismo e se
transformou num instrumento secundário de justificação de formas ideológicas de pensar
freqüentemente autoritárias, injustas e até ímpias”. Isto é, apesar de haver entre os
protestantes a idéia de que todos são sacerdotes, existem alguns sacerdotes que possuem o
privilégio de dominar os outros por serem detentores da interpretação oficial da Igreja.
Em terceiro lugar, porque essa tese foi escrita por um teólogo brasileiro e o objetivo
do meu projeto é justamente construir um pensamento teológico a partir de pensadores
brasileiros. Buchvitz tem dado sua contribuição nesse sentido dentro de sua área, que é a
Psicanálise.
Isso reforça a afirmação de Alves, que dizia que as estruturas da razão são
“condicionadas pelas condições de vida”, não sendo, portanto, “universalmente idênticas”.
Além disso, Alves lembra a natureza simbólica da palavra ao afirmar: “A palavra sugere
uma significação. Mas ela não a contém.” Quem dá o significado à palavra (ou à Palavra) é
o próprio leitor em sua subjetividade. Nas suas conclusões, Buchvitz escreve:
Lembrando a metáfora que utilizei para explicar o objetivo deste ensaio, é possível
entender que o interior da casa a ser descoberto é o interior da própria casa, ainda que o
que se observa seja uma outra casa. Na verdade, “o eu é um Outro”, como dizia Lacan. O
problema se encontra na alienação, ou seja, quando as pessoas relacionam a verdade com a
hermenêutica oficial da Igreja. Elas transferem a subjetividade da tarefa hermenêutica para
um Outro. É o Outro alienado que vai dizer o que é verdade e o que é heresia. Isso reforça
a denúncia de Mendonça quando ele chama o sistema hermenêutico dos protestantes de
“sistema de doutrinas enrijecido e ideologizado” causando o cerceamento da “liberdade de
consciência” na leitura da Bíblia. Por tudo isso que o autor denuncia as “formas
ideológicas de pensar”.
Buchvitz termina sua tese com um parágrafo muito interessante que fala da
subjetividade como o alvo utópico da educação teológica idealizada por ele:
A minha conclusão neste ensaio em particular não será uma conclusão, pois quero
deliberadamente deixar a questão em aberto. Se não fizesse assim, eu estaria afirmando
dogmas a respeito da essência da hermenêutica protestante, o que seria uma grande
contradição com tudo aquilo que foi discutido. Afirmo que a essência da hermenêutica
protestante se encontra na subjetividade de cada intérprete que tem acesso ao texto bíblico.
Se a interpretação é alegórica ou literal, isso é uma questão secundária. A questão primária
tem a ver com a subjetividade (ou interioridade) da interpretação. O que está em jogo não
são modalidades hermenêuticas, e sim, formas individuais de conhecer a realidade por
meio de um símbolo (o texto da Bíblia). Afirmo também que o texto bíblico tem natureza
simbólica e, portanto, limitar sua compreensão a uma leitura histórico-gramatical seria
diminuir a riqueza do próprio texto. Mas é claro que essas afirmações são minhas
afirmações, e de mais ninguém. Outras pessoas poderiam interpretar a questão de outra
maneira e nunca chegaríamos a um acordo definitivo (felizmente).
Que meus leitores possam ver este ensaio como um signo e não como um
significado. Ensaio que diz o não-dito da essência-ausência de mim mesmo.
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Referências bibliográficas