Você está na página 1de 5

A análise lógica da psicologia*

CARL G. HEMPEL

I
Uma das tarefas mais importantes e mais discutidas da filosofia atual é a
de determinar o caráter que a teoria das ciências deve atribuir à psicologia. A
alternativa conhecida: “A psicologia é uma ciência da natureza ou uma ciência
do espírito?” ressalta bem esse problema que, transbordando o escopo da
análise epistemológica, gerou grandes controvérsias no domínio da própria
metafísica.
Neste artigo, tentamos desenvolver as linhas gerais de uma nova análise
da psicologia, [uma análise] que faz uso de instrumentos lógicos rigorosos e que
trouxe progresso decisivo ao estudo do problema que nos ocupa.**
Essa análise foi conduzida a bom termo pelo Círculo de Viena, cujos
membros (M. Schlick, R. Carnap, Ph. Frank, O. Neurath, F. Weissmann, H.
Feigl etc.), baseados em parte nos trabalhos de L. Wittgenstein 1, desenvolveram,
ao longo dos dez anos passados, um método muito bem sucedido de análise
epistemológica e crítica das diferentes ciências. Nos limitamos aqui
essencialmente à análise da psicologia, tal como fizeram Carnap e Neurath 2.
O método característico dos trabalhos do Círculo de Viena pode ser
definido brevemente: uma análise lógica da linguagem científica. Ele somente
pôde ser realizado graças ao desenvolvimento de um aparato lógico
extremamente sutil, o qual utiliza, em particular, todos os procedimentos

* Tradução parcial e provisória feita por Marcelo Fischborn a partir do original em francês
"Analyse logique de la psychologie" publicado em Revue de synthèse, vol. X, n° 1, avril 1935,
pp. 27-42. Também foi consultada a tradução de Wilfrid Sellars para o inglês, publicada em
H. Feigl e W. Sellars (eds.), Readings in philosophical analysis, New York: Appleton-
Century-Crofts, 1949, pp. 373-84. As notas de tradução estão indicadas por asteriscos.
** A edição em inglês inclui a seguinte nota do autor: “Agora (1947) considero demasiado
restritivo o tipo de fisicalismo esboçado neste artigo; a tese de que todos os enunciados das
ciências empíricas são traduzíveis, sem perda de conteúdo teórico, para a linguagem da física
deve ser substituída pela asserção mais fraca de que todos os enunciados das ciências
empíricas são redutíveis a frases na linguagem da física, no sentido de que, para cada
hipótese empírica, incluindo certamente aquelas da psicologia, é possível formular certas
condições de teste em termos de conceitos físicos que se referem a atributos físicos
observáveis mais ou menos diretamente. Mas não se assere que essas condições de teste
esgotam o conteúdo teórico da hipótese dada em todos os casos.
Para um desenvolvimento mais detalhado dessa tese, cf. R. Carnap, “Logical foundations of
the unity of science”, na International Encyclopedia of Unified Science, The University of
Chicago Press, Volume I, Number I.
1 Tractatus Logico-philosophicus, London 1922.
2 Sobre o programa e a obra do Círculo de Viena, consular as publicações seguintes:
a) Wissenschaftliche Weltauffassung. Der Wiener Kreis [Concepção científica do mundo. O
Círculo de Viena], Verein Ernst Mach (ed.), Wien 1929. – Este livro fornece um panorama

1
formais da lógica moderna.3
Em nossa exposição, que não pretende oferecer mais do que uma
orientação, nos limitamos a desenvolver os princípios grais do novo método,
sem fazer uso de procedimentos estritamente formais.*

IV

Antes de resolver a questão de saber se os objetos da física e os da


psicologia são essencialmente de mesma natureza ou de natureza distinta, é
necessário esclarecer primeiro a própria noção de objeto de uma ciência.
O conteúdo teórico de uma ciência reside em enunciados. Deve-se,
portanto, examinar se existe uma diferença fundamental entre os enunciados da
psicologia e os da física. Perguntamo-nos, portanto, pelo que é que determina o
conteúdo – também podemos dizer o “significado” – de um enunciado. Quando,
por exemplo, conhecemos o significado do enunciado seguinte: “Hoje, à 1 hora,
a temperatura de tal e tal lugar do laboratório de física era de 23,4ºC”?
Evidentemente, é quando, e apenas quando, sabemos em quais condições
qualificamos o enunciado como verdadeiro e em quais condições o declaramos
falso. (Porém neste ponto não é absolutamente necessário saber se a proposição
é verdadeira ou falsa). Assim, sabemos o significado do enunciado dado porque
sabemos que é verdadeiro quando um vaso de um certo tipo, preenchido de
mercúrio, em resumo, um termômetro com a escala Celsius, colocado à hora
indicada no lugar em questão, apresenta uma coincidência entre o nível de
mercúrio e a graduação 23,4. Ele é igualmente verdadeiro se, nas circunstâncias
correspondentes, podemos observar certas coincidências em um outro
instrumento, chamado “termômetro a álcool” e, ainda, se um galvanômetro,
conectado a um termopar, apresenta um certo desvio, quando o elemento é
colocado, no momento indicado, no lugar em questão. Há, por fim, uma longa
breve dos trabalhos do Círculo de Viena, indica as origens científicas e históricas dessa
tendência e contém uma lista bastante completa das publicações de seus membros e de
quaisquer autores da mesma tendência, até o começo de 1929.
b) Os numerosos artigos no periódico Erkenntnis, publicado a partir de 1930 (Leipzig: Félix
Meiner).
c) Os Schriften zur wissenschaftlichen Weltauffassung [Escritos sobre concepção científica
do mundo], ed. Ph. Frank e M. Schlick (Wien: Springer).
d) Os escritos da coleção Einheitswissenschaft [Unidade da ciência], ed. O. Neurath, R.
Carnap e H. Hahn (Wien: Gerold e Cº).
3 Uma exposição moderna da lógica, baseada no trabalho fundamental de Whitehead e B.
Russell, Principia mathematica, é feita em R. Carnap, Abriss der Logistik [A demolição da
lógica], 1929 (volume 2 da coleção “Einheitswissenschaft” [Unidade da ciência]). Há uma
bibliografia rica, e também referências a outros sistemas lógicos.
* As seções II e III estão provisoriamente omitidas desta tradução.

2
série de outras possibilidades que tornam verdadeiro o enunciado, cada uma
das quais é definida por uma “fórmula física de teste”*, como gostaríamos de
chamá-la. O enunciado, ele mesmo, não afirma evidentemente nada além do
que isto: todas as fórmulas de teste são válidas (não verificamos algumas delas,
no entanto, então “concluímos por indução” que as outras também são
satisfeitas); o enunciado, portanto, não é mais do que uma expressão abreviada
de todas as fórmulas de teste.
Antes de continuar a discussão, resumamos esse resultado da maneira
seguinte:
1º. Um enunciado que especifica a “temperatura” em um ponto
determinado do espaço-tempo pode ser “retraduzido”, sem mudar o significado,
em um outro enunciado – mais longo, sem dúvida – no qual o termo de
temperatura não aparece mais. Esse termo funciona, portanto, unicamente
como uma abreviação, tornando possível a descrição concisa e completa de uma
situação fatual, cuja expressão seria de outro modo muito detalhada.
2º. Esse exemplo nos mostra também que dois enunciados de
formulação** diferente podem ter, no entanto, o mesmo significado. Um
exemplo banal de enunciado com o mesmo significado que o primeiro seria este:
“Hoje, à 1 hora, em tal e tal lugar do laboratório, a temperatura era de 19,44º
Réaumur”.
De fato, as considerações precedentes mostram – registrando-o como
mais um resultado adquirido – que o significado de um enunciado é
estabelecido pelas condições de sua verificação. Em particular, dois enunciados
de formulação diferente têm o mesmo significado ou o mesmo conteúdo efetivo
quando, e apenas quando, são verdadeiros ou falsos nas mesmas condições.
Além disso, um enunciado para o qual não podemos indicar absolutamente
nenhuma condição de verificação, que não pode, nem mesmo em princípio,
submeter-se à experiência do confronto com as fórmulas de teste, não possui
rigorosamente nenhum conteúdo, é “desprovido de significado”. Neste caso, ele
não é um enunciado propriamente dito, mas um “pseudoenunciado”, isto é, um
conjunto de palavras corretamente construídas do ponto de vista gramatical,

* No original em francês está ‘formule de contrôle physique’ (p. 32), literalmente: fórmula, ou
método, físico de controle). Na versão em inglês está ‘physical test sentence’ (p. 376),
literalmente: frase física de teste. Nesta tradução para o português optou-se por um
intermediário: ‘fórmula física de teste’.
** O original em francês é ‘teneur’, que pode ser traduzido por teor ou conteúdo, enquanto que
na versão em inglês está ‘formulation’, traduzível por formulação. Devido à possibilidade, em
português, de se associar o conteúdo de um enunciado ao seu significado (em oposição à sua
expressão linguística), optou-se por seguir neste caso a versão em inglês.

3
mas sem conteúdo.4
Frente a essas considerações, nosso problema se reduz à questão da
diferença entre as condições de verificação dos enunciados da psicologia e dos
enunciados da física.
Examinemos, portanto, um enunciado que contenha uma noção
psicológica, por exemplo: “Paulo tem dor de dentes”. Qual é o conteúdo próprio
desse enunciado, isto é, quais são as condições de sua verificação? É suficiente
indicar aqui algumas fórmulas que expressam essas condições:
a. Paulo chora e faz gestos de tal e tal espécie.
b. À questão: “O que você tem?”, Paulo articula as palavras “Tenho uma
dor de dentes”.
c. Um exame mais de perto revela um molar cariado com a polpa
exposta.
d. A pressão sanguínea de Paulo, os processos digestivos, a velocidade
de suas reações apresentam tais e tais alterações.
e. No sistema nervoso central de Paulo acontecem tais e tais processos.
Essa lista poderia ser consideravelmente expandida, mas já mostra o
aspecto essencial e fundamental, a saber, que todas as condições de verificação
desse enunciado psicológico se apresentam na forma de fórmulas físicas de
teste. Isso é verdadeiro mesmo da condição b), que não faz mais do que
expressar o fato de que, sob condições físicas determinadas (propagação de
vibrações provocadas pela enunciação das palavras “O que você tem?”), um
certo processo físico ocorre no corpo do paciente (movimentos de fala de uma
certa espécie).
O enunciado em questão, que é a respeito da “dor” de um homem, é,
portanto, tal como aquele a respeito da temperatura, simplesmente uma
expressão abreviada do fato de que todas as suas fórmulas de controle se
verificam (aqui, também, verificamos apenas algumas dessas fórmulas, e
concluímos por via indutiva a validade das outras.) Podemos retraduzi-lo, sem
mudar seu conteúdo, em um enunciado que não mais contém o termo de “dor”,
mas apenas conceitos físicos
Essa análise, portanto, demonstrou-nos que um certo enunciado da
psicologia tem o mesmo conteúdo que um enunciado da física; um resultado em
contradição flagrante com a tese de que uma lacuna intransponível separa os

4 Não podemos nos estender mais sobre a forma lógica das fórmulas de teste (chamadas
recentemente de “Protokollsätze” [frases protocolares] por Neurath e Carnap). Ver sobre essa
questão: Wittgenstein, Tractatus logico-philosophius, assim como os artigos de Neurath e de
Carnap na Erkenntnis (nota 2, acima).

4
enunciados da psicologia dos enunciados da física.
O argumento indicado pode ser estendido a qualquer enunciado da
psicologia, mesmo aos enunciados que dizem respeito, como se diz, a “camadas
psicológicas mais profundas” do que o exemplo considerado. Por exemplo, a
afirmação de que o senhor Henri sofre de um grave sentimento de inferioridade
de tal e tal tipo só pode ser confirmada ou rejeitada observando o
comportamento do senhor Henri em situações diversas. Desse comportamento
fazem parte todos os processos do corpo do senhor Henri, e, em particular, seus
gestos, sua vermelhidão e sua palidez, suas palavras, sua pressão sanguínea, os
processos que se produzem em seu sistema nervoso central etc. Na prática,
quando se quer testar os enunciados da psicologia dita profunda, limita-se à
observação do comportamento corporal exterior e, sobretudo, aos movimentos
da fala causados por certas impressões físicas (as interrogações). Mas sabemos
bem que a psicologia experimental também desenvolveu métodos que permitem
às manifestações corporais delicadas, das quais não falamos, servirem para
confirmar as descobertas psicológicas feitas por métodos mais grosseiros. O
enunciado sobre o sentimento de inferioridade do senhor Henri – pouco
importa que seja verdadeiro ou valso – não significa outra coisa que isto: no
corpo do senhor Henri, tais e tais processos acontecem em tais e tais condições.
Assim, um enunciado que pode, sem mudar o significado, traduzir-se em um
enunciado da física, chamaremos de “um enunciado fisicalista”, enquanto que
reservaremos o nome de “enunciado físico” àqueles que já estão formulados na
terminologia da física atual. (Como todo enunciado é, com respeito ao conteúdo,
equivalente, ou melhor, equipolente, a si mesmo, todo enunciado “físico” é ao
mesmo tempo “fisicalista”).
O resultado das considerações precedentes pode ser resumido assim:
todo enunciado psicológico dotado de significado, isto é, verificável ao menos
em princípio, é traduzível em um enunciado em que não figura mais nenhum
conceito psicológico, mas apenas os conceitos físicos. Os enunciados da
psicologia são, portanto, enunciados fisicalistas. A psicologia é parte integral
da física. Se distinguimos a física de outros domínios, não o fazemos em razão
de princípios, mas apenas do ponto de vista da prática da pesquisa e da direção
de interesse.
Essa análise lógica, cujo resultado, como se vê, mostra certa afinidade
com as ideias fundamentais do behaviorismo, constitui a concepção fisicalista
da psicologia.*

* As seções V, VI, VII e VIII foram provisoriamente omitidas.

Você também pode gostar