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George Knight III, Augustus Nicodemus, Solano Portela, Valdecir da Silva Santos
© OS PURITANOS 2023
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios sem permissão por escrito dos editores, salvo
em breves citações, com indicação da fonte.
PREFÁCIO
Estamos sempre afirmando que a igreja anseia por uma reforma. Anseia porque é uma
necessidade. Só não vêm essa necessidade aqueles que estão de olhos vendados. Estamos
fazendo essa afirmação porque queremos denunciar o fracasso da igreja em várias áreas. A culpa
não é só do povo ignorante da Palavra, nem dos Seminários (triste situação), nem dos teólogos
(liberais, outros acomodados), mas dos pastores e presbíteros.
Em que estamos fracassando? (1) Temos negligenciado a doutrina na pregação. O povo de
Deus não está sendo doutrinado. Os delegados de Westminster afirmavam com respeito aos
pastores e baseados na Palavra, que eles deveriam “pregar a sã doutrina”. Os pastores estão em
falta com os Credos e Confissões sobre os quais juraram. Seus sermões têm “forma de piedade”
antes de serem doutrinários e confessionais, para que a igreja se robusteça na verdade. (2) Esta
negligência doutrinária tem atingido as crianças e os jovens. Que instrução têm tido? Que
geração é a de hoje? J. MacArthur afirmou que “nunca se viu uma geração mais desconhecedora
da verdade bíblica do que a de hoje”. Por isso são presas fáceis das heresias e não sabem
responder às questões da sua fé. (3) Mas quero enfatizar uma falha grande no seio da igreja: A
falta de disciplina Eclesiástica. O capítulo 30 da Confissão de Westminster trata desta questão
fundamental à igreja. Esta é uma das marcas da igreja verdadeira, afirmam os reformados. A
Confissão de Fé de Westminster declara:
“O Senhor Jesus, como Rei e Cabeça de sua Igreja, nela instituiu um governo nas mãos dos
seus oficiais… A esses oficiais estão entregues as chaves do Reino do Céu. Em virtude disso,
eles têm, respectivamente, o poder de reter ou cancelar pecados; de fechar esse reino a
impenitentes, tanto pela Palavra quanto pelas censuras; de abri-lo aos pecadores penitentes,
pelo ministério do Evangelho e pela absolvição das censuras, quando as circunstâncias o
exigirem”.
Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou, mas
meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino
dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra, terá sido
desligado nos céus.
Depois da confissão de fé de Pedro, nosso Senhor indicou-lhe, como porta-voz dos apóstolos,
que Ele iria construir Sua igreja sobre essa sua confissão; bem como sobre aqueles apóstolos,
como pedras fundamentais, que faziam essa confissão de forma uníssona (Mateus 16:15-19).
Essas verdades são ainda mais corroboradas no comentário que Pedro fez sobre pedras que
vivem (porque creem) sendo edificadas em uma casa espiritual sobre “a pedra que vive”, em 1
Pedro 2:4. O mesmo tema foi desenvolvido por Paulo, quando ele fala sobre o fundamento dos
apóstolos e profetas unido à “pedra angular”, nosso Senhor Jesus Cristo, em Efésios 2:20.
Quando Cristo diz, então, que Ele dará as chaves do reino dos céus, essa é a primeira referência à
igreja, à natureza de sua edificação, e à atividade correlativa do uso das chaves do reino.
O segundo relato onde nosso Senhor aplica e explica um aspecto do uso dessas chaves está em
Mateus 18:15-20, que diz:
Se teu irmão pecar contra ti, vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão.
Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento
de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-o à
igreja; e, se recusar ouvir também à igreja, considera-o como gentio e publicano. Em verdade
vos digo que tudo o que ligardes na terra, terá sido ligado no céu, e tudo o que desligardes na
terra, terá sido desligado no céu. Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a
terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que porventura pedirem, ser-lhes-á concedida
por meu Pai que está nos céus. Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali
estou no meio deles.
Essas são as únicas passagens nos Evangelhos onde a palavra “igreja” é usada, e em cada caso
referem-se às “chaves do reino” e seu uso. Em Mateus 16, Jesus utiliza a frase descritiva “as
chaves do reino dos céus”, e então relata o que deve ser feito com essas chaves — ligar e desligar
na terra, relacionado com o ligar e desligar nos céus.
Em Mateus 18, a frase “as chaves do reino” não é utilizada, mas, apesar disso, elas aparecem
porque a descrição da ação das chaves é dada no verso 18, onde nosso Senhor diz: “tudo o que
ligardes na terra, terá sido ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado
no céu”. Cristo liga a referência à chave e ao uso dela à Sua declaração sobre edificar Sua igreja
e cuidar dela. Essa correlação demonstra que o uso das chaves do reino é considerado como de
importância central para o Cabeça e Rei da igreja, com relação à edificação de Sua querida
igreja, do Seu Corpo.
O conceito das “chaves do reino” já era conhecido no Antigo Testamento. É um símbolo
utilizado em Isaías 22:22: “Porei sobre o seu ombro a chave da casa de Davi; ele abrirá, e
ninguém fechará, fechará e ninguém abrirá”. A importância dessa referência do Antigo
Testamento é que ela já tem uma conotação messiânica, como ela fala sobre a casa de Davi. A
expressão simbólica, “a chave”, é usada em Isaías, embora ela não inclua a palavra “reino”; mas
a referência à casa de Davi implica a mesma coisa — ou seja, uma casa, um reino sobre o qual
Ele deve governar. Isaías também usa o conceito da maneira como o nosso Senhor o faz, em
ambos os relatos de Mateus 16 e 18 — “abrir” e “fechar”, os dois conceitos normais associados a
uma chave.
O conceito “chaves do reino” é também encontrado no Livro de Apocalipse. Em Apocalipse
3:7 nós lemos: “Estas coisas diz o santo, o verdadeiro, aquele que tem a chave de Davi.” Veja a
sequência e elo do cumprimento — a primeira referência nas Escrituras sendo à chave da casa de
Davi, a última referência sendo a chave de Davi.
E, claro, a pessoa em questão que tem as chaves é o nosso Senhor Jesus Cristo. “…que abre e
ninguém fechará, e que fecha e ninguém abrirá”. Novamente, a imagem é abrir e fechar; a chave
carregada pelo nosso Senhor — a chave de Davi.
Esse conceito é também encontrado nos evangelhos em duas outras partes, além de Mateus 16
e 18. É utilizado em Mateus 23:13, numa referência interessante ao seu uso pejorativo, ou seja,
demonstrando como ele é usado inadequadamente. “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!
Porque fechais o reino dos céus diante dos homens; pois, vós não entrais, nem deixais entrar os
que estão entrando”. Observe que Jesus está dizendo que o reino dos céus é fechado pelos atos e
ensino inadequados deles, de modo que outros não podem entrar, e nem mesmo eles próprios.
Outra referência às chaves é registrado em Lucas 11:52 (contendo palavras similares ao relato
de Mateus 23): “Ai de vós, intérpretes da lei! Porque tomastes a chave da ciência; contudo, vós
mesmos não entrastes e impedistes os que estavam entrando”. Essa passagem narra que as
chaves têm a ver com o trazer a verdade e o conhecimento à atenção dos ouvintes — indica que
eles podem reagir de forma apropriada a ela e, portanto, ter benefícios com relação ao reino.
PERDOAR E O “DESLIGAR”
Dessa forma, desligar e perdoar são duas formas de dizer a mesma coisa. Similarmente, as duas
segundas metades dos trechos dos Evangelhos de Mateus e João são duas formas de dizer a
mesma coisa. Não perdoar (as palavras em João 20:23) é fechar ou ligar (Mateus 18:18), isto é,
manter os pecados intactos. Este paralelismo análogo começa a abrir nosso entendimento de
como as chaves funcionam. O desligar, abrir, perdoar é um lado — e o ligar, não perdoar, e não
abrir é o outro lado. Portanto, a Confissão de Fé de Westminster, cap. XXX, seção II, sumariza o
significado bíblico das chaves nas seguintes palavras:
A esses oficiais são confiadas as chaves do reino do céu. Em virtude disso, eles têm,
respectivamente, o poder de reter e remitir pecados; de fechar esse reino aos impenitentes,
tanto por meio da Palavra quanto por meio das censuras; de abri-lo aos pecadores penitentes,
pelo ministério do evangelho e pela absolvição das censuras, quando as circunstâncias o
exigirem.
A partir desta perspectiva bíblica e confessional, torna-se evidente que as chaves do reino são
usadas pelo ministério inteiro da igreja conquanto seja fiel ao evangelho. Ao admitir alguém no
quadro de membros, os oficiais estão comprovando que aqueles que são admitidos, se sua
profissão de fé é genuína, entraram verdadeiramente no Corpo de Cristo e no Reino dos Céus. E
assim as chaves são cruciais e essenciais. É exatamente assim como os oficiais devem estar
interessados acerca da realidade da fé daqueles que são admitidos ao quadro de membros da
igreja, exatamente também é certo que toda reunião de conselho deve estar propensa a usar as
chaves de maneira apropriada ao admitir pessoas no rol de membros, procurando descobrir se a
confissão é genuína, sincera, se há entendimento das verdades, e se a vida não contradiz tudo
isso, ou seja, se ela é digna de crédito. Semelhantemente, e pela mesma razão, se a confissão se
torna aquém da credibilidade devido a algum pecado persistente, impenitente, a forma de ação
análoga e correspondente deve ser tomada, ou seja, a excomunhão. Cristo aguarda nosso uso das
chaves pelo desligar e pelo ligar.
UM EXEMPLO PRÁTICO
Deixe-me ilustrar com um exemplo concreto no qual eu estive envolvido com o conselho da
igreja há algum tempo. Os presbíteros, como indivíduos, em pequenos grupos, e finalmente
como um corpo, procuraram tratar com uma pessoa obstinada. Esses contatos produziram
algumas palavras afiadas da parte da pessoa e ela tentou fugir de nós e não queria nada conosco.
Na verdade nos queria fora de sua vida. Nós persistimos porque a amávamos e estávamos
preocupados com ela. Na hora apropriada, nós a intimamos a comparecer perante o conselho.
Achamo-la culpada e a repreendemos, e pedimos à congregação que orasse pelo seu
arrependimento e restauração. E ela se arrependeu.
No decorrer da questão, parecia que era um caso absolutamente sem esperança no qual não
víamos nenhum bom resultado. Mas aqueles momentos de dúvida foram dias de desconfiança,
sim, beirando à incredulidade, acerca do modo prescrito por Cristo para se alcançar um pecador
obstinado. Então, encorajamo-nos uns aos outros a crermos no Senhor e em Sua Palavra. E isso
aconteceu. Aconteceu unicamente porque a promessa de Mateus 18:19-20 foi cumprida em
nosso meio. E será cumprida no meio de vocês, também. Eu não estou lhes dizendo que o
desfecho é sempre arrependimento e restauração. Lembrem-se que até mesmo no tratamento de
nosso Senhor diretamente com os homens, Pedro foi restaurado e Judas não, e que também
Demas abandonou Paulo. Nós precisamos agir confiantes, e deixar o resultado nas mãos de
Deus. Nós não somos responsáveis pelo desfecho. A nossa responsabilidade é como nos
conduziremos em obediência ao nosso Senhor Jesus Cristo. Nós manuseamos a disciplina na
igreja com fidelidade à Palavra de Deus e com uma atitude e um relacionamento adequados, para
com nosso Senhor, para com os outros, para com a igreja, e para com a pessoa?
O TRATAMENTO DA CONFISSÃO DE FÉ
Sumarizemos, pois, nosso progresso utilizando novamente a declaração resumida da Confissão
de Fé de Westminster, capítulo XXX, seção II: “A esses oficiais são confiadas as chaves do reino
dos céus…”. Observe que a Confissão diz que as chaves são confiadas aos oficiais, não apenas
aos apóstolos: “…Em virtude disso, eles têm, respectivamente, o poder de reter e remir
pecados…”. Observe que a Confissão usa palavras análogas às palavras de João 20 e Mateus 18
(as de João são “não perdoar” e “perdoar” — e as de Mateus são “ligar” e “desligar”) para
indicar que as chaves são: reter e remir, isto é, os pecados. A Confissão declara o significado das
chaves em duas categorias porque as chaves mesmas foram estabelecidas em duas categorias.
Então, segundo a Confissão, reter pecados implica em quê? “…fechar o reino aos impenitentes,
tanto por meio da Palavra quanto por meio das censuras…”. Observe que a Confissão segue a
ordem de nosso Senhor em Mateus 18 e, por isso, eles colocaram o ligar e fechar em primeiro.
Depois a Confissão recomeça pelo outro lado, o do remir pecados: “…de abri-lo aos pecadores
penitentes, pelo ministério do evangelho” (essa é a obra primordial da pregação do evangelho e
de se trazer pessoas à comunhão da igreja) “e pela absolvição das censuras, quando as
circunstâncias o exigirem” (quando a pessoa disciplinada se arrepende, o reino que é manifestado
na igreja é aberto a essa pessoa e é declarado que as censuras acabaram). Assim, o uso das
chaves inclui ambos os aspectos, e particularmente quando a disciplina foi aplicada e o
arrependimento é manifestado.
A Confissão de Westminster refere-se a censuras. O que são elas, e a que elas se propõem? A
Confissão resume o ensino bíblico nessa questão no capítulo XXX, seção III:
As censuras eclesiásticas são necessárias para apelar aos irmãos transgressores e reconquistá-
los, para dissuadir outros de praticarem transgressões semelhantes; para purgar daquele
fermento que poderia contaminar a massa inteira; para vindicar a honra de Cristo e a santa
profissão do evangelho; e para evitar a ira de Deus, que poderia com justa razão cair sobre a
Igreja, se ela permitisse que Seu pacto e Seus selos fossem profanados por transgressores
notórios e obstinados.
Com alguma modificação na ordem e um pouco de expansão, estarei seguindo essa declaração
da Confissão como modelo para nossa apresentação no restante do texto. Como podemos
discernir ao analisarmos a declaração da Confissão, há três pessoas ou grupos de pessoas em
vista, por quem deveríamos nos interessar ao implementarmos a disciplina na igreja.
O TRANSGRESSOR — PUNIÇÃO
Antes de tudo, há o transgressor. Observe onde começa a Confissão: “…para apelar aos irmãos
transgressores e reconquistá-los”. Eu quero lembrar a vocês que, ao tratarmos com o
transgressor, na verdade nós punimos o transgressor; e assim o fazemos a fim de trazê-lo ao
arrependimento e, assim sendo, à restauração; mas, se não, para que ele seja excluído. Agora, eu
admito que, quando usamos a palavra punição, nós temos que usá-la com muito cuidado. Há
pessoas que argumentam que, porque Cristo carregou todos os nossos pecados, não podemos
nunca mais ser punidos. Agora Deus apenas nos tratará de forma diferente. E, claro, isso é
verdade no sentido absoluto, que não haverá nenhuma punição para nós na vida após a morte.
Contudo, eu não acredito que isso seja verdade no sentido temporal. Tome o caso clássico de
Davi. Mesmo depois que ele já havia se arrependido de seus pecados, e Natã lhe dissera que seus
pecados haviam sido perdoados, e ele fora aceito por Deus, o que aconteceu? Foi-lhe dito que
seu filho morreria, como punição, para mostrar de forma pública à comunidade que Deus não
trata levianamente com o pecado de tal forma flagrante. E, ainda assim, a graça de Deus é
estendida pelo fato de que Deus abençoa aquele casamento e traz, através desse casamento, o
Prometido. Isto é maravilhoso! E não devemos esquecer este aspecto.
Mas, se alguém ainda não estiver satisfeito com esse apelo ao Antigo Testamento, escrito para
nossa instrução, vamos rememorar a expressão completa encontrada no Novo Testamento, a
qual, com sua terminologia, pode ser demonstrado que seja a mais persuasiva. A passagem é 2
Coríntios, capítulo 2, verso 6: “Basta-lhe a punição pela maioria”. Aqui vemos Paulo usando a
palavra “punição” em conexão com uma disciplina imposta sobre um transgressor pela maioria.
Portanto, uma palavra usada para descrever a disciplina na igreja no Novo Testamento é uma
palavra que deveríamos usar ao reafirmarmos o ensino do Novo Testamento.
É por causa deste tipo de expressão, e também por causa da atitude do Senhor com relação a
Davi, que alguns livros presbiterianos sobre disciplina têm indicado que, particularmente no caso
de um ministro, mesmo quando ele se arrepende e é declarado seu perdão pelo presbitério, certa
censura pode ainda ser pronunciada. Isto não quer dizer que deve ser feito em toda situação, mas
é uma opção aberta ao presbitério ou outra autoridade de modo que possa ser evidente aos olhos
do mundo, como no caso de Davi, que no perdão de Deus a um pecador, a dor e o impacto do
pecado não são ignorados.
Segundo, o texto indica que o assunto é tratado na forma de discussão aberta, franca e livre,
com todos os homens em igualdade. Não apenas o partido dos fariseus foi permitido
“insurgirem-se …dizendo” (At 15:5), mas todos os apóstolos e também os presbíteros
compareceram “para examinar a questão”, e assim o fizeram com “grande” debate (At 15:6 e 7,
ênfase nossa, apenas para ressaltar a palavra “grande”, que é afirmada de forma tão específica no
relato bíblico). As igrejas presbiterianas devem seguir esse princípio, serem assembleias
deliberativas, tornando esse um ingrediente essencial em nossos presbitérios e em nossas
assembleias.
Terceiro, os apóstolos Paulo e Pedro parecem apelar a certa evidência experimental e
pragmática, pelo menos superficialmente eles podem parecer agir assim, quando contam a
respeito do que lhes têm acontecido. Todavia, não é um apelo à experiência pragmática pura e
simples, antes é um apelo à revelação que ambos receberam, e que os tem levado a agir daquela
maneira. Que revelação foi essa? A revelação que foi dada a Pedro, que ele devia ir a Cornélio,
estar disposto a aceitá-lo, pregar-lhe o evangelho e também aos outros gentios, porque Deus lhe
tinha mostrado, conforme Pedro deduziu da visão, que Deus não é discriminador e não faz
acepção de pessoas (At 10:9-20, 27-29, 34-48). Foi essa revelação que motivou a atitude inicial
de Pedro. Por isso ele fala de sua atitude no texto de Atos 15 nestes termos: “Irmãos, vós sabeis
que desde há muito Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio, ouvissem os
gentios a palavra do evangelho e cressem. Ora, Deus que conhece os corações, lhes deu
testemunho, concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós nos concedera” (At
15:7,8).
Similarmente, o mesmo ocorreu com Paulo. Paulo não decidiu: “Estes apóstolos são
antiquados e ultrapassados; eles não sabem estender a mão com liberalidade de maneira que
possamos ter uma igreja internacional, bem grande, então eu vou partir em viagens
missionárias”. Não. Quando Jesus o chamou, Ele disse para e por meio de Ananias que “este é
para mim um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como
perante os filhos de Israel” (At 9:15, 16). O Senhor tinha revelado o que ele devia fazer. Barnabé
e Paulo simples e obedientemente refletem o que Deus havia feito quando atentam para o
comando dado a Paulo na revelação de Deus, confirmado pela comunicação (revelação) direta do
Espírito Santo em Antioquia ao serem separados para a obra (At 13:2). Assim, eles também
“contaram quantos sinais e prodígios Deus fizera por meio deles entre os gentios”.
Portanto, o que Paulo e Pedro estão fazendo aqui é relembrando o quanto eles têm visto a
verdade, revelada a eles, se concretizar em suas vidas. Pedro segue exatamente esse exemplo ao
dizer: “Irmãos, vós sabeis que desde há muito Deus me escolheu dentre vós para que, por meu
intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem” (At 15:7); ou seja, Pedro
estava fazendo referência ao que Deus tinha lhe mostrado em revelação.
Perceba, entretanto, que, embora eles tenham ouvido esse relato de Pedro, como também ao
testemunho de Barnabé e Paulo no verso 12, eles não encerraram a questão até terem recorrido
ao relato escrito e permanente da vontade revelada de Deus. Mesmo o chamado privado de Paulo
e a palavra direta a Pedro através de uma visão não são presumidos por Tiago e os apóstolos
como sendo adequadas para finalizar o assunto. O que eles fazem, então?
Nós entenderemos melhor a conclusão, se entendermos a situação com a qual eles estão
lidando e o argumento das pessoas que estão insistindo na circuncisão. Pense na forma como eles
provavelmente discutiram o caso. “Deus instituiu a circuncisão com Abraão, e disse que este
seria um sinal perpétuo. Como vocês ousam dizer que não devemos colocar esse sinal em todos
que professam crer no Deus de Abraão?! Vocês estão violando a Palavra de Deus e o ensino do
Deus Soberano!” É claro, eu estou colocando palavras na boca deles, mas eu penso que essas ou
palavras similares seriam as palavras que eles teriam usado. E nós precisamos perceber o
argumento que eles pensaram que poderia ser montado.
A resposta final para qualquer argumento na igreja, e especialmente para alguém que recorre à
Palavra escrita, é mostrar que a própria Palavra de Deus provê a resposta. Então, Tiago apela às
palavras dos profetas com as palavras introdutórias “está escrito” (At 15:15), e depois começa a
citar nos versos 16-18 as palavras de Amós 9:11,12. Nessa citação estão as palavras do Senhor
“reedificarei o tabernáculo caído de Davi” e “os demais homens busquem o Senhor, e todos os
gentios sobre os quais tem sido invocado o meu nome”. Tiago, de fato, diz que isso concorda
com a revelação direta que Pedro e Paulo receberam porque, na passagem do Antigo Testamento,
já se diz que o Senhor virá a admitir gentios como gentios na casa restaurada de Davi, com o
entendimento de que Cristo veio e está fazendo essa obra aqui e agora.
A implicação, portanto, é que a partir do fato de que o Senhor nosso Deus já disse no Antigo
Testamento que os gentios iriam invocar Seu nome e vir à Sua casa como gentios ao se
cumprirem os tempos, por conseguinte não podemos argumentar que eles devem ser
circuncidados e devem tornar-se judeus para que possam ser salvos e aceitos por Ele (e pelos
cristãos). A conclusão tirada por Tiago é que Deus não apenas tem transmitido a Paulo e a Pedro
aquilo que Ele está fazendo em Cristo, mas que Ele já falou dessas coisas em Sua Palavra no
Antigo Testamento. A lição que a igreja de Cristo deve aprender do exemplo dos apóstolos (e
presbíteros) é que a verdade deve sempre ser fundamentada apelando-se à Palavra de Deus como
única regra infalível de fé e prática. Nesse caso particular, mesmo diante do êxito espetacular dos
mais importantes líderes da igreja, Pedro e Paulo, na área do evangelismo e da implantação de
igrejas, a igreja tirou tempo para se reunir com aqueles que questionavam a atividade daqueles
grandes líderes a fim de resolver o problema através de uma consideração paciente da Palavra de
Deus. Ao fazerem assim, eles esclareceram a verdade de Deus, avançaram o evangelismo e
preservaram a paz e unidade da igreja.
E, em quarto lugar, finalmente, meus irmãos, assim como a decisão deve sempre ser conforme
os princípios, assim também ela deve ser de forma pastoral. Vocês sabem que a sentença é: vocês
não precisam circuncidar os gentios para que eles sejam salvos e plenamente aceitos na igreja.
Mas, ao ler-se cuidadosamente a decisão, ela parece falar tanto (ou mais) a respeito do trato com
a consciência dos judeus, seja na comunidade cristã ou fora dela, como a respeito do princípio
em si mesmo.
Veja você mesmo a carta comunicando a sentença. Nós a encontramos em Atos 15:23-29: “Os
irmãos, tanto os apóstolos como os presbíteros, aos irmãos de entre os gentios em Antioquia,
Síria e Cilícia, saudações.Visto sabermos que alguns [que saíram] de entre vós, sem nenhuma
autorização, vos têm perturbado com palavras, transtornando as vossas almas, pareceu-nos
bem, chegados a pleno acordo, eleger homens e enviá-los a vós outros com os nossos amados
Barnabé e Paulo, homens que têm exposto a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo.
Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais pessoalmente vos dirão também estas cousas. Pois
pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo”. Ora, um ponto final
poderia ter sido colocado aqui, pois isto declara o princípio muito bem. Mas os apóstolos e
presbíteros não fizeram assim. Eles expuseram esse grande princípio no contexto seguinte, no
qual o amor e o cuidado pelos outros é claramente expresso. E então continuamos a ler: “Pois
pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas cousas
essenciais: Que vos abstenhais das cousas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne
de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas cousas fareis bem se vos
guardardes. Saúde.”
Os crentes gentios deveriam ser circuncidados? Não, nós não vamos impor-lhes maior
encargo. Isso significa que vocês podem depreciar totalmente seus amigos judeus e o zelo deles?
Não. Nós os advertimos a não menosprezar ou ignorar o zelo deles.
Portanto, esta é uma asseveração, conforme os princípios, recoberta e envolvida com uma
compaixão pastoral por pessoas que terão ainda dificuldades com a sentença e com as práticas
gentílicas pré-estabelecidas. E, por conseguinte, rogando que os cristãos inclusive se disponham
a abrir mão de alguns de seus direitos e privilégios — comer carne oferecida a ídolos, coisas que
mais tarde Paulo lhes dirá que podem fazer, por exemplo — para não ofender a comunidade
judaica e seu zelo por pureza ritual, os judeus de dentro da comunidade cristã e também os de
fora.
Esta discussão pastoral dos apóstolos e presbíteros enfatiza à igreja de Cristo o princípio de se
agir com amor e consideração pelos outros, até que a mais clara e aberta solução de acordo com
os princípios seja alcançada. E nós encontramos esta resolução não apenas aqui em Atos 15, mas
também como o princípio pastoral operativo que controla o modo de Paulo lidar com o fraco e
com o forte nas “questões de controvérsia” em Romanos 14, 15 e 1 Coríntios 8, 9 e 10.
A igreja de Cristo deve exercer sua autoridade dada por Deus, conduzindo-se pelo padrão
bíblico estabelecido para nós em Atos 15.
Augustus Nicodemus
O CONTEXTO DE CORINTO
A igreja de Corinto era uma igreja que havia sido muito abençoada por Deus em diversos
aspectos. Quando Paulo inicia essa carta, ele reconhece, no capítulo primeiro, que Deus havia
abençoado a igreja com toda sorte de bênçãos espirituais, de dons espirituais, a ponto de “não
lhes faltar nenhum dom”. Corinto era uma igreja carismática no sentido bíblico da palavra, ou
seja, tinha os “carismas” do Espírito de Deus, os dons, através dos quais desenvolvia seu serviço
prestando culto a Deus e cumprindo a sua missão nesse mundo. Infelizmente, por motivos que
desconhecemos, essa igreja, que havia sido fundada pelo apóstolo Paulo, com menos de três anos
de fundada começou a desviar-se dos padrões de conduta e de doutrina que o apóstolo havia
estabelecido por ocasião de sua fundação.
OS PROBLEMAS DE CORINTO
1. DIVISÕES.
Paulo estava no seu último ano de ministério na cidade de Éfeso, quando recebe informações
de que a igreja de Corinto não estava indo muito bem. As informações eram muitas, e poucas
delas eram boas. Paulo soube que havia divisões na igreja, que estava dividida em 4 grupos.
Grupos que se formaram em torno de personalidades, de pessoas que tinham tido uma
participação no passado recente da igreja, como o próprio Paulo e Apolo (3:4). Havia até um
grupo que talvez fosse o mais perigoso deles que era o “grupo de Cristo” (‘…e eu, de Cristo”,
1:12). Eles diziam que não eram seguidores de homem algum e sim de Cristo. Era como se
dissessem: não queremos estar debaixo da orientação ou da instrução e autoridade de qualquer
homem porque recebemos tudo diretamente de Cristo. Alguns estudiosos têm identificado esse
grupo como o “grupinho dos espirituais” que falavam em línguas e se gloriavam por terem
experiências extraordinárias; que não aceitavam a autoridade de Paulo na igreja e outras coisas
mais.
2. PROBLEMAS DOUTRINÁRIOS
A igreja tinha todas essas divisões e, além disso, tinha problemas de ordem doutrinária. Um
grupo não aceitava a ressurreição dos mortos (cap. 15). Havia um espírito faccioso naquela
igreja; existiam problemas com respeito à doutrina da liberdade cristã (10:28). “Será que posso
comer carne sacrificada aos ídolos”? Os “fortes” diziam que sim, e subestimavam os “fracos”.
Havia problemas com respeito às questões do casamento (cap. 7): O que é mais espiritual? Casar
ou ficar solteiro?
A igreja estava dividida por uma série de problemas que se refletiam no culto. Os “espirituais”
falavam línguas sem interpretação para a igreja e dessa forma não edificavam (14:5); os profetas
falavam, mas não havia ordem de quem deveria falar primeiro (14:29, 32); as mulheres
entusiasmadas estavam querendo tirar qualquer sinal de que há uma diferença entre homem e
mulher dentro da ordem da criação de Deus (11:8-9); na hora da Santa Ceia havia pessoas que
até se embriagavam (11:21) e participavam do sacramento sem ter o espírito apropriado. Corinto
era uma igreja com graves complicações. Mas, mesmo considerando isso, era uma igreja que se
gloriava de ser “espiritual”. Afinal, muitos, na concepção deles, não tinham os dons que
indicavam a presença do Espírito Santo? Muitos não estavam falando em línguas durante o culto
(Cap. 14)? Outros não estavam profetizando e trazendo palavra de revelação? A igreja pensava
que era espiritual e considerava-se assim, apesar de estar toda minada de problemas.
3. PROBLEMAS MORAIS
Entre os problemas mencionados havia também problemas morais. Havia um irmão que estava
processando outro num tribunal secular (6:4). Talvez a igreja não tenha se interessado o
suficiente. A verdade é que não chegaram a um acordo e talvez por questão de terra ou talvez de
dinheiro e negócios, esse irmão estava em litígio com outro. Por isso estava processando-o no
tribunal da cidade. Com essa atitude, estava expondo o Evangelho à vergonha diante dos ímpios
(v. 6).
Havia um grupo que estava voltando à prática da prostituição religiosa (6:18-19), o que era
comum na cidade de Corinto. Isso era praticado nos templos onde se cultuava a deusa Afrodite.
Refletindo essa separação entre espiritualidade e a conduta moral, surge um problema relatado
no capítulo 5 e que estava bem de acordo com a natureza e espírito da igreja. Havia um homem,
membro da igreja, que estava vivendo com sua madrasta. Seu pai provavelmente ainda estava
vivo, mesmo assim tinha “um caso” com a mulher de seu pai. O mais grave é que isso era do
conhecimento não só da igreja, mas também da própria sociedade de Corinto. Era algo notório e
se comentava; circulava rumores verdadeiros com respeito a esse incidente. Nos traz
constrangimento o fato de que a igreja de Corinto, como um todo, parecia não ver nada de grave
nisso: “Afinal, Deus não está em nosso meio? Vejam o que acontece nos nossos cultos!” E esse
homem continuava a viver com sua madrasta à vista de toda a igreja! Mas, o que mais
incomodava o apóstolo Paulo era a falta de uma atitude firme por parte da igreja com relação
àquela pessoa. Ou seja, a igreja deveria constatar que conduta moral e espiritualidade são duas
coisas que andam juntas. Temos de ter as duas coisas; e quando temos uma e não a outra, ou a
espiritualidade é falsa ou a moralidade é falsa. Mas a genuína espiritualidade exige uma conduta
de acordo com as verdades do evangelho.
O interessante é que Paulo não se dirige à liderança da igreja. Paulo, ao escrever, não se refere
aos líderes, mas fala à igreja como um todo. Porque mesmo que no sistema presbiteriano esses
casos tenham a ver inicialmente com o Conselho, o fato é que na base do problema, além de um
caso notório, pecado é um problema de toda igreja. É uma questão que afeta todos os membros e
que não é somente responsabilidade do Conselho olhar para a vida dos outros membros e tomar
algum tipo de decisão, mas que é responsabilidade de cada membro do corpo de Cristo zelar para
que haja pureza, santidade, que haja, no convívio da comunidade, verdadeira santidade ao
Senhor. É uma responsabilidade de nós todos e não somente do pastor e dos presbíteros. É
importante, portanto, que Paulo trata da questão dirigindo-se a toda comunidade. Talvez alguns
estranhem esse fato. Nas denominações batistas e congregacionais as questões disciplinares são
resolvidas pela assembleia. Apesar de acharmos benefícios no sistema de governo representativo,
através de pastores e presbíteros, a interpretação dessa passagem só pode ser nesse sentido: Paulo
não está se referindo aos pastores e presbíteros porque ele sabe que a responsabilidade de
vivermos uma vida santa na igreja é de cada um dos seus membros. Devemos não só zelar por
nós mesmos, mas também pelo nosso irmão, refletindo as palavras de Jesus: “Se o teu irmão
pecar, vai repreendê-lo entre ti e ele só, se ele não te ouvir, leva mais alguém, se não te ouvir,
comunica a liderança da igreja para que tomem as providências”. Mas, antes de chegar a esse
ponto, existe todo um processo intracomunitário desenvolvido pelos membros, cada um
participando e sendo responsável para que a vida da igreja ande corretamente. Se não for assim
corremos o risco de sermos participantes dos pecados alheios e incorrermos na culpa de
cumplicidade.
Assim, o apóstolo Paulo, no capítulo 5, chama a igreja à ordem e nos fala de forma
apaixonada, fala com amor pela igreja; nos fala da responsabilidade que todos temos de cuidar de
nós mesmos, de vivermos vidas santas e de, como comunidade, zelarmos para que o nome de
Cristo seja honrado e glorificado através da vida santa da comunidade dos santos. Infelizmente
nem sempre atentamos para essa maneira de Paulo abordar o problema em vista do nosso
individualismo. Mais frequentemente do que desejaríamos, ouvimos falar de piedade em termos
individuais, ou seja, piedosa é a pessoa que se fecha no seu quarto para ler e orar gastando tempo
a sós com Deus. E santidade seria algo que se desenvolveria individualmente. Quando falamos
em santificação geralmente temos a figura de uma pessoa em mente e nos esquecemos que Novo
Testamento geralmente essas coisas são contempladas à luz da comunidade. Piedade é algo que
eu exerço junto com o povo de Deus; culto não é algo que eu presto individualmente a Deus,
somente, mas algo que faço com meus irmãos. Santidade é algo comunitário. Nós crentes
caminhamos a vida de santidade juntos. Perdemos de vista esse aspecto corporativo da Igreja
apresentado no Novo Testamento. É tão importante, salutar, equilibrado e abençoador para cada
um de nós a ideia de andarmos juntos, vivermos juntos e nos santificarmos com a ajuda uns dos
outros. É nesse contexto que o apóstolo trás essas palavras.
O TEXTO
No versículo 1 e 2 encontramos o apóstolo Paulo apresentando o assunto. Ele coloca o problema
com palavras muito claras. O problema é duplo:
CONCLUSÃO
Estamos vivendo uma época em que se Paulo viesse expor essa mensagem, dessa forma, não
seria bem recebido.
1) Hoje, se diz que a verdade é relativa e que cada pessoa tem sua própria verdade. Estamos
vivendo a relativização dos valores morais.
2) Se diz que a vida de cada um é governada por aquilo que a pessoa sente que é melhor. Se a
pessoa está se sentindo bem em determinado lugar, se algo está fazendo-lhe bem, então, não
importa outras questões, outros critérios. O critério que é usado é sentir-se bem e passa a ser o
principal para governar a conduta das pessoas. O que valida uma situação ou uma conduta é eu
estar ou não me sentindo bem no que estou fazendo.
Esses conceitos têm predominado em nossa sociedade e em muitas igrejas. Há relativização na
mídia, nas músicas, nos escritos modernos, nas universidades, nos debates da ética e da
moralidade. Os formadores de opinião pública nacional estão totalmente envolvidos na pós-
modernidade que resume tudo que foi dito. Tudo isso acaba minando a vida da igreja, a
literatura, os seminários, os congressos. Às vezes, de forma sutil, nos tornamos avessos àquilo
que venha nos contrariar, que venha nos obrigar a dizer: “Isso está errado!”.
Mas temos de fazer a escolha. É um momento sério de decisão da Igreja, se vamos viver à luz
da Palavra de Deus e de seus valores absolutos ou se vamos nos deixar levar pelos “ventos” da
época.
A Palavra de Deus nos chama a viver vidas santas e retas. Nos chama a aborrecer o pecado e,
se necessário, tomar as devidas providências para que ele não tenha livre curso em nosso meio,
nas nossas vidas, nas nossas famílias. Tomar a providência necessária em amor, em espírito de
brandura, olhando por nós mesmos para que não sejamos também levados pelo pecado, mas
ajudando-nos mutuamente, levando as cargas uns dos outros para que a comunidade toda viva
vida de santidade e de alegria. O problema não é o pecado somente, mas o pecado não resolvido.
Para o pecado há perdão, resgate, redenção e libertação. O problema não é só o pecado, mas o
pecado não confessado, não reconhecido e não tratado. É contra isso que Paulo fala. Que Deus
nos ajude.
Lembremo-nos que esta mensagem é para a igreja e não para os líderes. Sempre fico admirado
com Paulo pelo fato de que quando fala de disciplina eclesiástica ele não se dirige aos pastores e
aos presbíteros apenas, mas fala para à comunidade toda. É nossa responsabilidade de orarmos e
vivermos vidas santas ajudando-nos uns aos outros a nos livrar do inimigo das nossas almas.
Esse é o pior inimigo: o pecado não tratado.
Que Deus nos dê graça e misericórdia para vivermos segundo o padrão da Palavra de Deus.1
Sermão pregado pelo Dr. Augustus Nicodemus Lopes na Primeira Igreja Presbiteriana do Recife no ano de 2000. Transcrito e
publicado com a autorização do autor.
Solano Portela
• Amabilidade no trato
• Ausência de discórdia
• Trabalho conjunto
• Propósito comum
• Discórdia
• Interesses pessoais ou políticos
• Falta de unidade
• Palavras ferinas
• Profundas controvérsias
Felizmente temos uma estrutura denominacional que foi formada em cima da experiência
relatada nas Escrituras e seguindo prescrições específicas da Palavra. Acreditamos que o nosso
presbiterianismo procede de bases bíblicas. É encorajador sabermos que nossas igrejas são
moldadas no modelo de governo interno que procedeu das Sinagogas. Nesse sentido, deveríamos
poder emular, com considerável precisão, a situação vivida pela Igreja Primitiva. As igrejas
sucederam as sinagogas, demonstrando que a estrutura ideal delas não era a reunião familiar, nas
casas. Essa configuração doméstica funcionou como uma espécie de estágio preparatório — em
época de intensa perseguição. Posteriormente, as reuniões nos lares davam continuidade ao
ministério da igreja, mas elas nunca foram vistas como células substitutas da igreja local, como
pretendem inovar alguns grupos contemporâneos, numa clara aplicação de revisionismo histórico
da pior espécie.3
Mas nossa instrução do funcionamento correto da igreja local e de suas associações não vem
dessa origem histórica ou da analogia operacional da sinagoga. Além de diretrizes específicas,
temos um exemplo importantíssimo registrado por Lucas e deixado pelos apóstolos para nosso
seguimento. São ricas as lições que podemos extrair do relato sobre o Concílio de Jerusalém,
sobre a realidade e a resolução de controvérsias. Vemos, nesse trecho, um exemplo de
decantação e de depuração doutrinária, bem como de integração exemplar e da harmonia que
deve existir e persistir na igreja. Temos, em Atos 15:1-33, um relato que é ao mesmo tempo
histórico e prescritivo.
Peço perdão aos queridos irmãos batistas, mas é praticamente impossível ler esse capítulo sem
vermos as bases do presbiterianismo refletidas no modus operandi histórico da igreja. O que
temos aqui é uma verdadeira reunião conciliar: líderes de Igrejas, atingidos por ensinamentos
conflitantes, congregam-se e se reúnem para discutir os rumos dos ensinamentos que deveriam
ser reforçados. Cristaliza-se a mensagem a ser propagada à igreja, que adentrava a sua nova era
de internacionalização, no momento em que ela se desvinculava da identidade nacional (com
Israel) que a caracterizara até a vinda de Cristo.
Se queremos aprender um pouco sobre a resolução de controvérsias em nossas igrejas e sobre
a verdadeira harmonia que deve subsistir, é possível que este seja um bom trecho da Palavra de
Deus. Os ensinamentos que podemos extrair do texto podem até nos surpreender, na medida em
que aprofundamos o nosso exame e procuramos aplicar os seus princípios à nossa situação atual.
Gostaria, neste capítulo, de examinar três pontos que nos chamam a atenção, encontrados aqui
nessa “reunião de presbitério”. Refiro-me a uma “reunião de presbitério” porque envolve mais de
uma igreja, porque o sínodo ainda não havia sido organizado e, como Pedro ainda não estava em
Roma, o Supremo Concílio ainda levaria alguns anos até ser convocado e instalado… Mas,
brincadeiras anacrônicas à parte, vemos que a grande questão que motivou a reunião relatada em
Atos 15, está colocada de forma bem objetiva e resumida no versículo 1. Essa colocação objetiva
condensada, em si, já seria uma grande lição para nós, acostumados a discursos quilométricos
que, via de regra, são dispersivos e carentes de precisão. Vemos aqui, rapidamente, que o
problema era o ensinamento de “alguns indivíduos que desceram da Judeia”. Esses ensinavam
que a salvação dependia de alguma prática pessoal. Mais especificamente, o ensinamento era:
“Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos”.
Ora, esse ensinamento contrariava o ensino dos apóstolos, de que a salvação procedia única e
exclusivamente da graça soberana de Deus, sem a interferência do esforço humano. Até o
próprio ato da crença, ensinavam os apóstolos, era um reflexo do trabalhar soberano do Espírito
Santo no coração de pecadores. Paulo já estava a escrever essas coisas, corretamente
interpretando o ensino do Antigo Testamento. Temos aqui, portanto, um ensino estranho sendo
introduzido na igreja e que atingia o próprio cerne do Evangelho. A situação não poderia ficar
por isso mesmo. Um pronunciamento maior era necessário. E é no relato que se segue que temos
o primeiro ponto, que muito nos ensina sobre a resolução de controvérsias e sobre a instalação da
verdadeira harmonia na igreja.
Temos então o resultado do encontro e o relato maior aos irmãos das igrejas representadas.
Temos novo registro de grande alegria, pela resolução da controvérsia.
Nossa oração é que possamos, mesmo com muita controvérsia, desenvolvermos o tipo de
harmonia que nos faça dizer, como eles: “…pareceu-nos bem a nós e ao Espírito Santo…” Assim
fazendo, com certeza, estaremos evitando muitos problemas de disciplina que poderiam aflorar
se as controvérsias continuarem a proliferar e se a doutrina falsa continuar a ser propagada. Com
essa abordagem positiva, estaremos estimulando a verdadeira disciplina preventiva.
Oramos, também, para que sejamos consoladores como Judas e Silas o foram. Que estejamos
abertos a ouvir os dois lados e até a reconsiderar a nossa posição, com humildade, à luz das
escrituras, seguindo o exemplo de Tiago. Que estejamos dispostos a nos sacrificar como Barnabé
e Paulo o fizeram. Que tenhamos intenso amor pelos irmãos como esses, que se reuniram nesse
concílio, vieram a demonstrar. Sobretudo, que aprendamos com a forma pela qual essa
controvérsia foi tratada: devemos notar a seriedade e consagração dos líderes envolvidos; o
respeito uns para com os outros; a ausência de sarcasmo e ironia nas palavras registradas — que
Deus nos auxilie a termos essa postura e testemunho, para a Sua glória.
1577 — Documento que reafirma e esclarece a confissão de Augsburgo e que praticamente encerrou 30 anos de controvérsias
internas na Igreja Luterana, surgidas após a morte de Lutero, sobre diversos assuntos. Posteriormente, junto com as demais
confissões luteranas, foi incorporado ao Livro de Concórdia.
Referimo-nos à Igreja Presbiteriana, mas o mesmo ponto se aplica a outras igrejas confessionais.
Muitos pregam a ideia de que a igreja atual deve ser totalmente reformulada em sua estrutura, para se aproximar da igreja
primitiva, organizando-se em células. Nada mais distante da realidade neotestamentária, como um estudo mais aprofundado pode
revelar. Note como Paulo se dirige naturalmente a uma igreja organizada com a estrutura de diáconos e presbíteros, em Filipenses
1:1: “Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos em Cristo Jesus que estão em Filipos, com os bispos e
diáconos…”.
Solano Portela
INTRODUÇÃO
Talvez você não tenha percebido, mas nossas igrejas estão sempre confrontando problemas
relacionados com a disciplina de membros. Se uma igreja é fiel e bíblica em sua aplicação, e
exercita disciplina, quando necessário, há a necessidade de que os membros compreendam as
bases bíblicas da disciplina para que essa alcance o resultado bíblico almejado. Por outro lado, se
a igreja é falha na sua aplicação, é necessário que todos se conscientizem das razões dadas pelas
Escrituras para a aplicação da disciplina e dos perigos e consequências quando ela é
negligenciada, para que não sejamos culpados de estarmos enfraquecendo o corpo de Cristo.
Disciplina eclesiástica é, portanto, um tema sempre relevante. Não se trata de um caminho
opcional à administração da igreja, mas uma trilha necessária que deve ser entendida, acatada,
apoiada e aplicada para que tenhamos saúde espiritual em nosso meio.
O exercício da disciplina na igreja é algo tão importante que os reformadores consideraram
esta questão, ao lado da proclamação da Palavra e da administração dos sacramentos, uma das
marcas que distinguem a igreja verdadeira da falsa. Essa posição ficou formalizada na
Confissão de Fé Belga (1561), um dos documentos históricos mais importantes da Fé
Reformada.1 Ou seja, a igreja falsa não somente se caracteriza pela distorção ou ausência da
pregação das inspiradas Escrituras; ou porque nela os sacramentos são antibíblicos, ou
incorretamente administrados; mas ela é também negligente na preservação de sua pureza moral
e doutrinária — não dá a importância à questão da disciplina que a Palavra de Deus dá.
Às vezes o problema está contido no processo, na maneira pela qual a igreja exercita
disciplina. Ou seja, ela não segue os passos e objetivos de disciplina eclesiástica delineados na
Palavra de Deus. Quando existe negligência nessa área, a igreja passa a abrir mão da identidade
peculiar dos seus membros perante o mundo, eles passam a se confundir, em caráter e
procedimento com os descrentes. O resultado disso é que o testemunho do Evangelho e a
autoridade na pregação, são prejudicadas.
Não queremos desenvolver um espírito de censura gratuita, no qual enxerguemos sempre o
argueiro no olho do irmão antes da trave que está no nosso. Mas precisamos despertar um senso
de comportamento bíblico que faça justiça ao nome de Cristo e que não envergonhe ao
Evangelho. Isso começa com o cuidado sobre as nossas próprias vidas e deve se estender pela
nossa igreja local.
A disciplina, aplicada em amor, pelas razões especificadas na Bíblia e com os objetivos que
ela prescreve, deve ser exercitada na esfera pessoal e apoiada e compreendida, quando já se
encontra na esfera do Conselho da Igreja, ou de outras autoridades superiores.
Nosso propósito é o de examinar alguns textos bíblicos que se relacionam com a disciplina na
igreja, entendendo o que eles pretendem nos ensinar. Alguns outros textos tratam igualmente
desse assunto, mas os que abordaremos são fundamentais à nossa compreensão. Com esse
exame, oramos para que sejamos despertados ao apreço pela pureza, tanto a nossa — como
indivíduos, como pela da igreja visível.
O PERIGO DA FALTA DE DISCIPLINA
Tendo participado da fundação de muitas igrejas e acompanhado de perto a vida de cada uma
delas, Paulo era um bom conhecedor dos seus problemas, bem como de disciplina. Ele tinha
plena convicção da necessidade de sua aplicação e dos problemas que podiam advir, quando ela
é esquecida. Nesse sentido, ele escreveu à igreja de Corinto (1 Co 5:1-13) alertando para os
perigos que se achavam presentes naquela igreja. Sob a inspiração do Espírito Santo, temos aqui
o registro de um incidente que iria servir de orientação para toda a igreja, em todas as épocas,
mostrando o que sobrevem quando a igreja é negligente na aplicação da disciplina. Nesse trecho
lemos:
1 Geralmente, se ouve que há entre vós imoralidade e imoralidade tal, como nem mesmo entre
os gentios, isto é, haver quem se atreva a possuir a mulher de seu próprio pai.
2 E, contudo, andais vós ensoberbecidos e não chegastes a lamentar, para que fosse tirado do
vosso meio quem tamanho ultraje praticou?
3 Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como
se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja,
4 em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso
Senhor,
5 entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do
Senhor Jesus.
6 Não é boa a vossa jactância. Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?
7 Lançai fora o velho fermento, para que sejais nova massa, como sois, de fato, sem fermento.
Pois também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado.
8 Por isso, celebremos a festa não com o velho fermento, nem com o fermento da maldade e
da malícia, e sim com os asmos da sinceridade e da verdade.
9 Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros;
10 refiro-me, com isto, não propriamente aos impuros deste mundo, ou aos avarentos, ou
roubadores, ou idólatras; pois, neste caso, teríeis de sair do mundo.
11 Mas, agora, vos escrevo que não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for
impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal, nem
ainda comais.
12 Pois com que direito haveria eu de julgar os de fora? Não julgais vós os de dentro?
13 Os de fora, porém, Deus os julgará. Expulsai, pois, de entre vós o malfeitor.
Desse trecho da carta de Paulo aos Coríntios, podemos destacar alguns pontos principais, que
se apresentam como um alerta à igreja contemporânea e à nossa própria vida pessoal:
A) O pecado entra em choque com o caráter santo da igreja, mas ele ocorre no seu meio.
Às vezes achamos que ignorando as manifestações do pecado, ele irá embora. Em outras
ocasiões, pensamos que o envolvimento em atividades que são direcionadas a Deus; a utilização
de um linguajar santo, existente na igreja; ou os chavões evangélicos que incorporamos ao nosso
falar, são suficientes para caracterizar a ausência de pecado em nossa igreja local. Paulo não
tinha esse pensar. Ele nos ensina que essa questão deve ser atacada de frente. Não é negando a
realidade da existência dos pecados, na igreja ou em nossas vidas, que resolvemos o problema.
Por mais antagônicas que o pecado e as manifestações pecaminosas sejam ao ambiente gerado
e desfrutado pelo Povo de Deus, a realidade é que ele ocorre. Isso é verdade em nosso meio — o
pecado se manifesta nas pessoas, às vezes, nas quais menos se esperava tal proceder; ocorre,
igualmente, nas situações mais inexplicáveis e com uma intensidade inesperada —
semelhantemente ao que estava acontecendo na igreja de Corinto. Vemos isso no versículo 1,
onde Paulo diz: “...há entre vós imoralidade e imoralidade tal, como nem mesmo entre os
gentios…”. Ou seja, contrariando tudo aquilo que deveria caracterizar uma igreja, nela se
encontrava comportamento imoral da pior espécie. Isso não deveria chocar apenas os crentes.
Paulo diz que o que estava ocorrendo naquela igreja chocaria até a visão dissoluta dos
descrentes, dos gentios, que não tinham o menor conhecimento ou temor de Deus.
B) Muitos pecados atingem um estágio público e notório. A questão de chocar até os
descrentes não era uma mera possibilidade acadêmica. Semelhantemente ao que muitas vezes
ocorre em nosso meio evangélico para nossa vergonha, o escândalo, naquela igreja, já era
público. Extraímos isso da forma como Paulo inicia esse mesmo versículo 1. Ele começa com as
palavras: “Geralmente, se ouve que há entre vós…”. Isso quer dizer que a questão não era mais
privada, de mais fácil resolução e aconselhamento, mas já se espalhara, chegando até ao
conhecimento de Paulo, que se encontrava distante. “Geralmente”, de uma maneira generalizada,
difundida; “se ouve” — diz-se, falam por aí, comentam pelas ruas, ou abertamente nas praças.
Multiplicam-se os boatos. Afloram as evidências das falhas cometidas aqui e ali.
Para tristeza da igreja, muitos pecados são verdadeiros escândalos públicos. Por mais que
muitos pecadores em desrespeito às diretrizes divinas queiram afirmar — “a vida é minha”! Por
mais que muitos desses se revoltem com a “intromissão” alheia em suas vidas, a verdade é que o
pecado no seio da igreja raramente tem consequências meramente individuais. Além das pessoas
mais próximas atingidas pelo pecado, as reverberações contrárias ao testemunho têm um longo
raio de ação.
C) Acomodação e orgulho — Na igreja de Corinto a falta de ação contra aquele escândalo
público revelava acomodação da consciência individual e coletiva ao pecado. Este é um solene
aviso para nossas igrejas, também — a acomodação termina sendo uma forma de rebeldia e
soberba. No versículo 2, Paulo se espanta que aqueles irmãos “…não chegaram a lamentar”
toda aquela demonstração de vida em pecado. Paulo diz ainda que eles se achavam
“ensoberbecidos”, ou seja, se orgulhavam da postura tomada em vez de estarem conscientes do
pecado e do mal que era causado ao testemunho do evangelho. Quem sabe, diziam — “a nossa
igreja é pacífica, vivemos todos em harmonia, cada um cuida de sua vida…”. Tudo nessas
afirmações pode revelar acomodação com o pecado, fundamentada em um orgulho mortal. Por
isso é que Paulo, referindo-se à ausência de disciplina naquela igreja, escreve: “…não é boa a
vossa jactância…” (v.6). Eles nada haviam feito, portanto, para “…tirar do meio” o que havia
praticado aquilo que o próprio Paulo chama de “ultraje” e “infâmia” (v.3).
Quando a disciplina não é exercitada, nossas consciências vão sendo cauterizadas. Nos
conformamos ao modo de comportamento do mundo. Deixamos de nos chocar, de identificar o
contraste, com a forma de vida prescrita ao servo de Deus. Paulo prescreve que a ação correta era
a exclusão daquele membro (v. 5) — ele deveria ser “entregue a Satanás”, ou seja considerado
como descrente, pois o seu modo de vida não testemunhava qualquer conversão verdadeira.
Nessa condição estaria, portanto, não sob o domínio da igreja visível, mas sob o domínio de
Satanás. Neste momento, devemos enfatizar uma outra questão importante. Essa constatação e
formalização não era para ser feita individualmente; não cabia a um determinado membro da
igreja, ou a qualquer um, pronunciar o julgamento. A inferência é que essa decisão era uma
decisão corporativa. Nesse sentido, creio, as nossas decisões conciliares, as decisões do Conselho
da Igreja, observam e preservam esse espírito, ou seja, a igreja representada, reunida
corporativamente, pela autoridade e no poder de Cristo. No versículo 4 Paulo se inclui nesta
reunião, quando escreve: “…em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o
poder de Jesus, nosso Senhor…”.
D) O perigo especificado — Qual a consequência para a igreja, se continuasse abrigando o
pecado em seu seio? O que acontece com nossas igrejas, quando convivemos pacificamente com
o pecado? Paulo escreve (vv. 6 e 7): “…Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa
toda? Lançai fora o velho fermento, para que sejais nova massa, como sois, de fato, sem
fermento.” A igreja era para ser uma “massa sem fermento” — pura. A admissão de um pouco
de fermento, apenas, atingiria toda a massa. Como analogia, podemos dizer que uma igreja, nesta
situação, semelhantemente à massa levedada, pode até inchar e ter a aparência muito saudável e
atraente, mas deixa de ser “massa pura”. O ensino claro é que deixar que o comportamento
incompatível com a fé cristã permaneça no seio da igreja, sem disciplina, significa colocar em
risco a saúde espiritual de toda a comunidade.
E) As marcas da Igreja — Como é que a igreja deve ser conhecida pelos demais fiéis e pelos
observadores do mundo? Sabemos que a igreja abriga pecadores. Muitas vezes ela é referida
como um “hospital de pecadores”. Será que essa expressão está correta? Se falamos do prédio,
do local, verdadeiramente, na igreja, temos tanto os convertidos pelo evangelho da graça, como
não convertidos; temos tanto os interessados, como os interesseiros. Mas se por “igreja” nos
referimos à membresia na igreja visível, creio que estaria faltando a palavra “arrependidos” na
expressão — ou seja, a igreja poderia ser apresentada como um “hospital de pecadores
arrependidos”. Descrever a igreja apenas como um hospital pode confundir um pouco a questão.
A igreja não é a UTI de um hospital, não é o abrigo de pacientes terminais sobre os quais não
resta mais a mínima esperança; não é a ala de isolamento de uma doença contagiosa e incurável,
sobre a qual não existe a menor perspectiva de cura.
Se vamos utilizar a analogia de que a igreja é um “hospital de pecadores”, deveríamos
reconhecer que ela seria a ala de recuperação desse hospital. Uma ala cheia de pecadores
anteriormente marcados e condenados por sua condição incurável, mas agora milagrosamente em
fase de recuperação por causa do sangue de Cristo Jesus. Não havia esperança até que a
intervenção milagrosa foi realizada pelo Salvador. Esses pecadores, convictos de que o mal foi
extirpado, se esmeram no reconhecimento daquele que operou neles e se empenham nas seções
de recuperação, de fisioterapia, de higiene mental que o próprio autor da cura prescreveu. Alguns
negligenciam os passos de recuperação ou voltam aos focos de contágio e são por isso advertidos
e encaminhados de volta aos pontos que devem observar. Outros, inscrevem-se nessa ala,
declaram-se curados, mas a evidência transparece que a cura auto-proclamada não é real. Os
sintomas e os efeitos da doença estão presentes. Os responsáveis pelos setores daquela ala devem
reconhecer a ausência de cura naquele paciente, declarar isso publicamente aos demais, e
preservar o caráter de recuperação que caracteriza aquele ambiente, com a exclusão do doente
crônico e terminal. Paulo não admite a contaminação e, portanto, ensina (v. 8) que a igreja deve
ser conhecida pela “…sinceridade e verdade…” e não pelo “…fermento da maldade e da
malícia”.
F) O esclarecimento quanto à associação — Paulo reconhece que o mundo é constituído de
impuros. Ele diz que não está ensinando que a igreja deva se isolar do mundo. Existindo no
mundo, ela terá contato com “…avarentos, ou roubadores, ou idólatras…” (v.10). Mas ele
reforça que não deve haver “associação com impuros” (v.9) e explica a quem ele chama de
impuro, no versículo 11 — é aquele que “…dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento, ou
idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador…”. Ou seja, é aquele que professa a fé cristã,
mas que tem comportamento imoral (“impuro”); ou o que tem afeição descabida pelas suas
próprias posses materiais (“avarento”); ou o que distorce a religião verdadeira por sua prática ou
ensinamentos (“idólatra”); ou o que tem o hábito de caluniar ou de espalhar boatos
(“maldizente”); ou o que está sob o domínio de substâncias que impedem o comportamento
racional (“beberrão”) — nas quais estão a bebida alcoólica e, certamente, no nosso contexto, as
drogas —, em vez de sob o controle do Espírito Santo; e, finalmente, o que demonstra ganância e
não respeita a propriedade alheia (“roubador”).
Infelizmente essa relação de pecados parece descrever muitos dos nossos membros em seus
estados atuais, não nas situações prévias à conversão. Nos esquecemos que a distinção é
colocada muito claramente pelo próprio Paulo, no capítulo seguinte (6) desta mesma carta à
igreja em Corinto, quando ele, após descrever várias classes de pecadores, nos versos 9 e 10,
coloca, no verso 11: “…e tais fostes alguns de vós; mas fostes lavados, mas fostes santificados,
mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus”. Paulo era
realista e sabia que a igreja era constituída de pecadores, mas pecadores resgatados e convertidos
de seus pecados. Tanto naquela época, como hoje, a distinção entre a igreja e o mundo necessita
ser clara e preservada pela aplicação da disciplina nos moldes da Palavra de Deus.
G) A rigidez da disciplina — A disciplina, portanto, não era algo opcional. Havia a
necessidade de se exercitar “julgamento interno” (v.12) contra o “malfeitor”, expulsando-o do
seio da igreja (v. 13). Esse julgamento deveria ser evidente a todos e deveria ser claramente
entendido pelo próprio disciplinado, isto é, ele deveria mesmo sentir que a comunhão fraterna
havia sido atingida pelo seu pecado. Por isso Paulo coloca essa determinação, que nos parece até
rígida demais: “com esse tal, nem ainda comais”. Mas qual seria a intenção de Paulo? Porque
tanta “dureza” aparente?
Muitas vezes nós mesmos, ou membros de nossas igrejas, até cheios de boas intenções,
confundem o desejo legítimo de restauração do disciplinado com um apoio pessoal que, no
cômputo final, se revela prejudicial ao mesmo. Muitos membros não se limitam a indicar, ao
disciplinado, que estão em oração por ele, mas colocam “panos quentes” na ação do Conselho;
diminuem a carga da disciplina; fazem tudo para parecer que as coisas estão normais — “a
amizade continua a mesma…”. Essa atitude para com os disciplinados, sendo alvos de um
aconchego e atenção, após a disciplina, não somente mina a autoridade da igreja, mas realmente
age contra o próprio bem do disciplinado. Ele deixa de sentir os efeitos danosos da falta de
comunhão que o seu pecado causou.
A advertência de Paulo é dura, mas devemos orar a Deus por sabedoria para saber como
aplicar essa exortação com relação a membros disciplinados por pecados graves nas nossas
igrejas. É necessário que eles sintam que algo mudou no relacionamento. A “amizade não pode
continuar a mesma”, se a base da comunhão — o Espírito Santo, está sendo desrespeitado ou
ignorado pelas ações do disciplinado. É necessário, até, que ele anela pela restauração da
situação prévia, mas que reconheça que o estágio de desconforto e rejeição foi causado
exatamente pelo seu próprio pecado. É preciso que a comunhão procedente do Espírito seja
restaurada de forma real e não apenas superficialmente. Isso se dará mediante o arrependimento
sincero e o verdadeiro testemunho de uma conversão real.
H) O objetivo final — Se a disciplina tem o objetivo inicial de demarcar claramente as linhas
e de enfatizar a pureza da igreja, o seu objetivo final nunca pode ser esquecido ou perdido de
vista — a restauração, a salvação do pecador restaurado. Paulo especifica isso no versículo 5:
“…a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus”. O objetivo era a salvação daquela
alma disciplinada. Essa deve ser também, a nossa visão: (1) consciência da necessidade da
disciplina; (2) percepção dos perigos da falta de aplicação; (3) apoio à sua aplicação precisa, no
comportamento anticristão contumaz; (4) oração e desejo de arrependimento ao disciplinado.
Assim foi na igreja de Corinto. Assim continua a ser até os nossos dias.
Os passos ensinados pelo Nosso Senhor Jesus Cristo, para aplicação em nossa vida
comunitária, como membros da igreja visível, são esses:
A) Passo 1 — Contato individual, um a um. Em Mt 18:15, lemos: “Se teu irmão pecar
contra ti, vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão”. Não devemos
esperar que a parte ofensora venha pedir perdão, quando pecar contra nós. Jesus nos ensina que
nós, quando ofendidos, devemos tomar a iniciativa para ter uma conversa discreta e individual
com o nosso ofensor. Essa admoestação, em si só, já é importante para o nosso crescimento em
santificação. Abordar ao ofensor vai contra o nosso orgulho, mas é uma atitude típica da
humildade que Cristo requer de nós, como cristãos. Cristo não oferece garantias de que teremos
sucesso, mas se o ofensor der ouvidos à nossa admoestação individual, ganhamos o irmão, no
sentido de que o impedimos de que ele cometesse pecados mais sérios contra outros, bem como
no sentido de que construímos um relacionamento mais sólido, em Cristo, com aquele irmão ou
irmã. Tiago 5:20 nos ensina: “Aquele que converte o pecador do seu caminho errado salvará da
morte a alma dele e cobrirá multidão de pecados”.
B) Passo 2 — Contato com dois ou três. O versículo 16 aprofunda o contato e o
envolvimento corporativo no processo de disciplina. Ele deve ocorrer se o contato individual for
infrutífero, se o irmão ou irmã não der ouvidos à abordagem prescrita anteriormente. O v. 16 diz:
“Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento
de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça”. Quando é a hora certa de passar do
passo 1 ao passo 2? Devemos pedir a Deus discernimento e sabedoria para ver quando não há
mais progresso no contato individual e está caracterizado que a parte ofensora não “quer ouvir”.
Nesse caso, a abordagem deve ser exercitada com mais uma ou duas pessoas, como
“testemunhas”. Serão testemunhas do problema ocorrido, ou testemunhas do contato que está
sendo realizado? Creio que não são testemunhas do problema, pois se existissem a questão já
seria pública e não segregada às duas pessoas, como indica o v. 15. São pessoas que deverão
testemunhar e participar do encaminhamento do processo de disciplina, da exortação, do
aconselhamento, objetivando que o faltoso “ouça”. Não são testemunhas silentes. O verso fala
do “depoimento” delas. Às vezes esses irmãos podem até discernir e esclarecer mal-entendidos,
falta de percepção ou sentimentos e até motivações errôneas (como ira, intolerância, inveja ou
vingança) na pessoa que se considera ofendida. Sendo esse o caso verifica-se a necessidade de
que essas questões e sentimentos sejam biblicamente trabalhados, antes que o processo de
confrontação seja levado à frente.
C) Passo 3 — Contato com a Igreja. O versículo 17 apresenta uma mudança enorme no
encaminhamento da questão. O faltoso recusou a admoestação individual e conjunta de dois ou
três membros. Jesus então determina: “…se ele não os atender, dize-o à igreja…”. O “dizer à
igreja”, em uma estrutura presbiteriana, equivale a relatar ao Conselho. Em uma estrutura
congregacional, a relatar à Assembleia. Em qualquer situação, o relato, agora, deve ser feito pelo
primeiro irmão ou irmã e pela outra ou outras testemunhas, envolvidas no Passo 2. A
continuidade da frase, nesse mesmo versículo, mostra que o propósito de “dizer à igreja”
continua sendo o de admoestação. Não é só uma questão de veicular notícias, mas visa a
exortação do ofensor, que agora será feita “pela igreja”, ou pelos representantes constituídos e
eleitos pela Igreja. Infelizmente, muitos pecados públicos e já amplamente divulgados no seio da
comunidade são tratados a partir desse estágio. Possivelmente aqueles mais próximos ao faltoso
não aplicaram os passos 1 e 2 ao primeiro sinal da ofensa. A igreja é surpreendida com o pecado
realizado, divulgado e comentado. Resta, aos oficiais, retomar o processo a partir desse passo.
Humanamente falando, quem sabe, pecados maiores não teriam sido evitados se a abordagem
individual, prescrita por Jesus, tivesse sido realizada.
D) Passo 4 — Exclusão. No final do versículo 17, Jesus diz “…se recusar ouvir também a
igreja, considera-o como gentio e publicano”. A recusa no atendimento das admoestações, a
atitude de arrogância e desafio às autoridades, retratada em 2 Pe 2:10-11 e Judas 7-8, deve levar
o faltoso à exclusão da igreja visível. Ele ou ela deve ser considerado como um descrente
(“gentio”) e deve cair da comunhão pessoal da mesma forma que os coletores de impostos
(“publicanos”) eram desprezados pelos judeus. Somente evidências de arrependimento e
conversão real poderão restaurar essa comunhão cortada pela disciplina. Com essa exclusão
vão-se também os privilégios de membro, como a participação na Santa Ceia, e os demais. Jesus
demonstra a necessidade de respaldar essa drástica atitude na sua própria autoridade e na do Pai.
Isso ele faz nos vv. 18-19, mostrando o seu acompanhamento e o do Pai, nas questões da igreja
que envolvem a preservação de sua pureza. Ele fecha essas instruções com a promessa de sua
presença na congregação do Povo de Deus (v. 20). Essas são palavras de grande encorajamento
para que a igreja não negligencie a aplicação do processo de disciplina, em cada um desses
passos.
Note que Paulo está comissionando a Tito para que exerça sua autoridade, como líder da
igreja, ensinando, exortando e repreendendo os membros da igreja para que não sejam
difamadores e briguentos. Antes, devem ser obedientes, cordatos, corteses, não somente para
com os crentes, mas para com os descrentes também. Ele relembra a Tito que características
condenáveis já fizeram parte da personalidade e do modo de vida de muitos de nós, antes da
salvação, mas pela graça e misericórdia de Deus fomos regenerados pelo Espírito Santo e
transformados para as boas obras. Devemos, portanto evitar discussões fúteis e sobre assuntos
secundários ou que não levam a lugar nenhum. Nesse sentido, a pessoa facciosa, que quer causar
divisão, deve ser admoestada uma e duas vezes, mas depois disso deve ser evitada, ou seja,
excluída, por recusar as advertências e por preferir viver em pecado.
Não podemos compreender este “evitar”, no contexto da igreja, a não ser quando entendido
sob o prisma da disciplina formal, eclesiástica, corporativa e não individual. Nossas igrejas
convivem, entretanto, com pessoas em seu meio que demonstram exatamente esse tipo de
caráter. Lembro-me de uma pessoa, em uma das igrejas pelas quais passei, que era conhecida por
todos como faccioso, iracundo, descortês, sempre envolvido em alguma disputa insensata ou
inconsequente. As pessoas diziam: “ele é assim mesmo”. Creio que ele próprio dizia, para si
mesmo, “eu sou assim mesmo”. Nós nos esquecemos que o mesmo Deus que nos salvou, realiza
sua obra em nossas vidas. Nunca podemos “ser assim mesmo”, se isso não significa um traço
peculiar neutro de nossa personalidade. Se estamos nos referindo a manifestações pecaminosas
sistemáticas, a exteriorizações constantes do pecado que contariam o caráter do cristão e o fruto
do Espírito, devemos nos corrigir seguindo as prescrições da Palavra de Deus (Rm 12:1-2). Sem
a transformação, se demonstramos conformação com um caráter pecaminoso aceitável pelo
mundo, somos passíveis de disciplina da parte da igreja.
B) Os que ensinam doutrinas falsas bem como os que as praticam, devem ser
disciplinados. Novamente, Paulo, em Rm 16:17-20, ensina que a igreja deve afastar os que
causam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina por ele ensinada. Certamente isso se
aplica àqueles que distorcem a fé cristã verdadeira e que, em seu liberalismo teológico, rejeitam
pontos cardeais de doutrina. O texto diz:
17 Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em
desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles,
18 porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com
suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos.
19 Pois a vossa obediência é conhecida por todos; por isso, me alegro a vosso respeito; e quero
que sejais sábios para o bem e símplices para o mal.
20 E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás. A graça de nosso
Senhor Jesus seja convosco.
Paulo especifica o perigo existente nas palavras daqueles que procuram os seus próprios
interesses, mas falam suavemente, com palavras de elogio, enganando o coração dos incautos.
Os que ensinam “em desacordo com a doutrina” devem ser alvo de cuidadosa disciplina,
especialmente se estão em posições de liderança na igreja, com o potencial de desencaminhar a
muitos. No livro de Malaquias (2:8-9) temos uma menção sobre essa responsabilidade dos
líderes: “Mas vós vos desviastes do caminho; a muitos fizestes tropeçar na lei; corrompestes o
pacto de Levi, diz o Senhor dos exércitos. Por isso também eu vos fiz desprezíveis, e indignos
diante de todo o povo, visto que não guardastes os meus caminhos...”
No livro de Apocalipse, 2:12-16, João registra as palavras de Cristo, advertindo a Igreja de
Pérgamo contra aqueles que procuram incitar o povo de Deus a práticas contraditórias à fé
Cristã. O versículo 17, do mesmo capítulo, mostra que o aviso é para todas as nossas igrejas. O
trecho diz:
12 Ao anjo da igreja em Pérgamo escreve: Estas coisas diz aquele que tem a espada afiada de
dois gumes:
13 Conheço o lugar em que habitas, onde está o trono de Satanás, e que conservas o meu nome
e não negaste a minha fé, ainda nos dias de Antipas, minha testemunha, meu fiel, o qual foi
morto entre vós, onde Satanás habita.
14 Tenho, todavia, contra ti algumas coisas, pois que tens aí os que sustentam a doutrina de
Balaão, o qual ensinava a Balaque a armar ciladas diante dos filhos de Israel para comerem
coisas sacrificadas aos ídolos e praticarem a prostituição.
15 Outrossim, também tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaítas.
16 Portanto, arrepende-te; e, se não, venho a ti sem demora e contra eles pelejarei com a
espada da minha boca.
A menção à doutrina de Balaão, no v. 14, identifica o ensinamento dos que possuem motivos
pessoais, rasteiros, aqueles que, mesmo com linguajar que aparenta honrar a Deus, não estão
preocupados com a santificação da igreja, mas se empenham em destruir as linhas demarcatórias
de comportamento que identificam o povo de Deus e os distingue do mundo. Na ocasião a
questão era o comer “coisas sacrificadas aos ídolos” e o envolvimento nos festivais pagãos que
envolviam a “prática da prostituição”. Em nossos dias não seria a adoção da cultura mundana do
prazer e da cobiça, no seio da igreja?
No trecho, a doutrina dos nicolaítas é igualmente condenada (v. 15). Essa é também uma
menção aos que advocavam uma vida dissoluta e imoral no seio da igreja. Na carta anterior (à
igreja de Éfeso) as obras dos nicolaítas foram condenadas. Agora a menção é contra a sua
doutrina. Tanto o ensinamento dissoluto como a prática mundana caem sob a condenação. É
importante verificarmos que a condenação e a chamada ao arrependimento vem para toda a
igreja (v. 14 e 16), por não exercitar a disciplina e por conservar tais pessoas em seu meio, não
apenas para os seus líderes. Não adianta colocar a culpa nos presbíteros e pastores; a
responsabilidade é individual, de cada um de nós.
A) A disciplina deve ser exercitada com precaução e deve ser divulgada. Em 1 Tm 5:19-
22, temos o ensinamento de que as denúncias devem ser substanciadas. Elas não devem ser
aceitas levianamente:
19 Não aceites denúncia contra presbítero, senão exclusivamente sob o depoimento de duas ou
três testemunhas.
20 Quanto aos que vivem no pecado, repreende-os na presença de todos, para que também os
demais temam.
21 Conjuro-te, perante Deus, e Cristo Jesus, e os anjos eleitos, que guardes estes conselhos,
sem prevenção, nada fazendo com parcialidade.
22 A ninguém imponhas precipitadamente as mãos. Não te tornes cúmplice de pecados de
outrem. Conserva-te a ti mesmo puro.
Cautela é prescrita especificamente para as denúncias contra os oficiais (v. 19 — “duas ou três
testemunhas”), mas o princípio de que deve haver substância e provas, nas denúncias, é
genérico. O outro ensino desse trecho é de que a disciplina dos que “vivem no pecado” (v. 20) se
exercite “na presença de todos”. Isso significa que ela não deve ser alvo de uma resolução
velada, apenas. A disciplina aplicada deve ser divulgada a toda igreja, com toda seriedade e
propriedade que o caso requer. Paulo dá uma razão para isso — “para que também os demais
temam”. A disciplina tem essa característica didática de proclamar e provocar o temor do
Senhor, livrando membros do pecado para uma vida em santidade e conformidade com a pureza
de Cristo.
Os cuidados exagerados, nos dias de hoje, com “os direitos do disciplinado”, com a imagem
pessoal do indivíduo, terminam por levar a aplicação de uma disciplina em segredo, que
contraria essas determinações da Palavra de Deus, e que contribui para diminuir a sua eficácia.
Um outro aspecto deve ser abordado aqui. Trata-se do caso de pessoas que foram
protagonistas de pecados públicos e notórios, às vezes sérios e comprometedores do testemunho,
mas que, ao serem chamadas à disciplina, já se encontram acometidas do verdadeiro
arrependimento. Será legítima a aplicação de disciplina, nesses casos? Não é o arrependimento
evidente e suficiente? Não há injustiça, no afastamento da comunhão, nesses casos? Se o
arrependimento real faz parte da postura desse crente em questão, concordamos que um dos
objetivos da disciplina já teria sido atingido. Entretanto, a responsabilidade da igreja institucional
é aferir as manifestações externas — ela não pode penetrar no foro íntimo, só Deus. Nesse
sentido é apropriado um período de observação, para que haja a constatação e permanência da
contrição verdadeira; para que se verifique a verdadeira humildade, na submissão ao governo da
igreja. Acima de tudo, acreditamos, se o pecado foi público e causou danos ao testemunho, o
objetivo abordado por este ponto que estamos discutindo — a disciplina como uma ação
desencorajadora ao pecado dos outros fiéis (“para que também os demais temam”) ainda poderá
ser atendido, com a disciplina mesmo do arrependido (que deverá ser branda, mas notória).
Nesse sentido, muitos Conselhos entendem que o Código de Disciplina da igreja faculta a
suspensão, ou afastamento, por tempo determinado. Este é um ponto controvertido, pois vários
entendem que o afastamento deveria ser sempre indeterminado. Mas quando o propósito é deixar
evidente a reação da igreja ao pecado, mesmo quando o arrependimento já se fez presente ou
quando a reversão do mal praticado não é mais possível, cremos que o Código de Disciplina
abriga a suspensão por tempo determinado.2
A) A disciplina deve ser exercitada em amor e o seu objetivo final é o arrependimento do
disciplinado. Dois trechos nos falam a esse respeito. O primeiro é 2 Ts 3:6-15:
6 Nós vos ordenamos, irmãos, em nome do Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo
irmão que ande desordenadamente e não segundo a tradição que de nós recebestes;
7 pois vós mesmos estais cientes do modo por que vos convém imitar-nos, visto que nunca nos
portamos desordenadamente entre vós,
8 nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em labor e fadiga, de noite e de
dia, trabalhamos, a fim de não sermos pesados a nenhum de vós;
9 não porque não tivéssemos esse direito, mas por termos em vista oferecer-vos exemplo em
nós mesmos, para nos imitardes.
10 Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quer trabalhar, também
não coma.
11 Pois, de fato, estamos informados de que, entre vós, há pessoas que andam
desordenadamente, não trabalhando; antes, se intrometem na vida alheia.
12 A elas, porém, determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando
tranquilamente, comam o seu próprio pão.
13 E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem.
14 Caso alguém não preste obediência à nossa palavra dada por esta epístola, notai-o; nem vos
associeis com ele, para que fique envergonhado.
15 Todavia, não o considereis por inimigo, mas adverti-o como irmão.
Nesse trecho Paulo volta a reforçar que o caminhar cristão deve ser o seguir “a justiça, a fé, o
amor e a paz com os que, de coração puro, invocam o Senhor” (v. 22). Nesse sentido as
“questões insensatas e absurdas” devem ser não somente evitadas, como repelidas, quando
introduzidas no seio da igreja (v. 23), pois só geram contendas. Contenda não deve fazer parte
da postura do servo de Deus. Esse deve ser brando e capaz de ensinar com paciência (v. 24). A
disciplina deve ser exercitada em mansidão (v. 25), com o objetivo de que Deus conceda aos
disciplinados “não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas também o
retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele para
cumprirem a sua vontade” (v. 26).
Esse retorno à sensatez significa, se estamos fora dos caminhos de Deus, a percepção de que o
pecado, na vida do cristão, representa um corpo estranho, um modo de vida incompatível com o
seu chamado e com a sua missão. Significa o reconhecimento de que nada somos. Significa
abrirmos mãos de todos os nossos pretensos direitos. Significa reconhecermos que merecemos
realmente o pior e que fizemos por merecer até a incompreensão e rejeição de muitos. Significa
nos jogarmos, sem reservas e sem demandas, nas misericórdias de Deus, suplicando o derramar
abundante de sua bondade sobre as nossas vidas, mas sem qualquer reivindicação de nossa parte.
Como essa sensatez é difícil de ser atingida, por alguns que se dizem arrependidos! Muitas
vezes, em paralelo à admissão de pecado, ouve-se quase que simultaneamente uma justificativa
qualquer: “Errar é humano…”; “Mas Davi também pecou…”; “Conheço tantos que têm o
mesmo pecado…”; “Ninguém foi me visitar…”. Temos a tendência de achar justificativas mil,
de racionalizarmos nossas ações, de procurarmos explicações para o inexplicável. Damos uma de
“revoltados”, quando somos alvo de disciplina. Jogamos a culpa no pastor, no Conselho, nos
amigos, procurando e denunciando suas áreas de fraqueza para tirar o enfoque do fato que,
naquela situação, aqueles que nos advertem estão anunciando e cumprindo a Palavra de Deus, e
não exercitando suas próprias opiniões. Tudo isso é evidência de que ainda estamos trilhando o
caminho de Satanás; ainda estamos presos aos laços do diabo; o verdadeiro arrependimento
ainda se encontra à frente.
O objetivo final da disciplina é a restauração do disciplinado e isso se dá, com o retorno à
sensatez; com a constatação da gravidade do nosso pecado; com a confissão e o arrependimento
verdadeiro.
CONCLUSÃO
Vivemos em uma era sem restrições e sem limites. Por isso, talvez, a questão da disciplina na
igreja é tão incompreendida e até negligenciada. Muitos questionam o direito de aplicação da
disciplina — “com que direito?” Outros se revoltam quando a recebem. É preciso que saibamos
que o direito e a autoridade procede do Senhor da Igreja, que a comandou. É preciso que nossos
olhos sejam abertos para que verifiquem que a rejeição à disciplina é um grande mal para aquele
que a rejeita. A recusa em sua aceitação ou a revolta significa agir contra o objetivo maior, que é
o reconhecimento do pecado, o arrependimento sincero e a restauração à plena comunhão da
igreja visível.
A Confissão de Fé de Westminster registra a importância da disciplina trazendo todo um
capítulo (XXX) sobre a questão. As seções III e IV, mostra a sabedoria e o embasamento bíblico
dos teólogos que escreveram a Confissão. Eles dizem o seguinte:
“As censuras eclesiásticas são necessárias para chamar e ganhar para Cristo os irmãos
ofensores, para impedir que outros pratiquem ofensas semelhantes, para purgar o velho
fermento que poderia corromper a massa inteira, para vindicar a honra de Cristo e a santa
profissão do Evangelho e para evitar a ira de Deus, a qual com justiça poderia cair sobre a
Igreja, se ela permitisse que o pacto divino e os selos dele fossem profanados por ofensores
notórios e obstinados.3 Para melhor conseguir estes fins, os oficiais da Igreja devem proceder
na seguinte ordem, segundo a natureza do crime e demérito da pessoa: repreensão, suspensão
do sacramento da Ceia do Senhor e exclusão da Igreja”.4
Neste capítulo, examinamos textos bíblicos que falam claramente sobre a necessidade de
preservarmos nossas vidas em sintonia com as diretrizes de Deus, em santificação e pureza,
contribuindo para a edificação do corpo de Cristo. Esses mesmos textos especificam a
necessidade de disciplina, que vai desde a autodisciplina, partindo para a admoestação individual
e chegando até a exclusão. O testemunho da igreja demanda fidelidade às diretrizes bíblicas,
nesse sentido. Num mundo sem regras, Deus, em sua misericórdia, coloca a sua igreja como
baluarte para que os seus padrões sejam reforçados e seguidos. Supliquemos que Deus nos
preserve em pureza, na plena comunhão de sua igreja e que compreendamos e defendamos o
exercício da disciplina, quando necessária.
A Confissão de Fé Belga é um dos três documentos conhecidos como “As Três Formas de Unidade” (os outros dois são o
Catecismo de Heidelberg , 1563, e Os Cânones de Dordrecht, ou Dordt, 1619) adotados por muitas igrejas Reformadas. Ela diz o
seguinte, sobre essa questão, em seu Artigo 29: “As marcas pelas quais a verdadeira igreja é conhecida, são estas: Se nela se
prega a pura doutrina do evangelho; se os sacramentos são administrados de maneira pura, conforme instituídos por Cristo; se
a disciplina eclesiástica é exercida como punição ao pecado: resumindo, se todas essas questões são administradas de acordo
com a pura Palavra de Deus, rejeitando-se todas as coisas que contrariam isso; e se Jesus Cristo for reconhecido como o único
Cabeça da Igreja. Por essas características pode-se, com certeza, conhecer a verdadeira igreja, da qual nenhuma pessoa tem o
direito de se separar”.
O Código de Disciplina da Igreja Presbiteriana do Brasil, em seu capítulo III, art. 9.º, indica os tipos de penalidade que podem ser
aplicadas, conforme o caso e a ofensa: A primeira é a Admoestação — que deve ser aplicada verbalmente ou por escrito. A
segunda é Afastamento — Ou seja o impedimento de participação na comunhão; o impedimento do exercício do ofício (para
oficiais — se for o caso, diz o Código, também da comunhão da igreja). Esse afastamento seria por tempo indeterminado, até
prova do arrependimento, ou até que pena mais severa fosse aplicada, dependendo do caso. Ocorre que o Art. 134 trata da
restauração do disciplinado e fala da possibilidade de “ter sido aplicada penalidade com prazo determinado”. Por esse artigo,
então, é perfeitamente possível o afastamento por prazo determinado (alíneas “a” e parágrafo único). As duas últimas
penalidades especificadas são: Exclusão — Quando o membro for incorrigível ou contumaz, representando a exclusão do rolde
membros; e Deposição — do ofício (refere-se aos casos de ministros, presbíteros ou diáconos).
1 Co 5; 1 Tm 5:20; 1 Tm 1:20; Jd 23
Mt 18:17; 1 Ts 5:12; 2 Ts 3:6,14-15; 1 Co 5:4-13
Valdeci da Silva Santos
INTRODUÇÃO
Disciplina eclesiástica é um termo em risco de extinção no atual vocabulário cristão. Desde que
os princípios do pós-modernismo encontraram lugar no seio da igreja,1 qualquer conceito que
ameace o individualismo e a liberdade de escolha quanto ao estilo de vida, comportamento, etc.,
é logo taxado de arcaico, passé. A dicotomia prática de muitos cristãos gera a ilusão de que a
igreja não tem nada a ver com o procedimento “secular” de seus membros. Nessa “nova era”
antropocêntrica, a igreja é vista como uma organização altamente dependente do indivíduo, e que
precisa conservá-lo ao custo de várias exceções. O medo da impopularidade leva muitos líderes à
cumplicidade e pecados são justificados em nome de uma atitude mais “humana.”2 Por outro
lado, o que dizer daqueles que, em nome do zelo pela disciplina, cometeram injustiças e
causaram mais males que bens?3 Em todo esse contexto, a disciplina tem uma vida curta e a
tolerância consagra-se como a virtude da moda.4 Porém, o que acontece com uma igreja sem
disciplina?
O termo “disciplina,” em geral, é empregado em vários sentidos. Podemos usá-lo para referir-
nos a uma área de ensino, ao exercício da ordem, ao exercício da piedade5 ou a medidas
corretivas no seio da igreja. O objetivo deste artigo é delinear alguns fatores da importância da
disciplina eclesiástica entre os membros do corpo de Cristo. O autor está plenamente consciente
de que um artigo como este não coloca um ponto final no diálogo sobre o assunto. Porém, o que
motiva esta reflexão é a esperança de que a mesma seja útil para elucidar a muitos quanto ao
aspecto bíblico-teológico da disciplina.
I. ERRANDO O ALVO
A igreja cristã tem sido acusada de ser o único exército que atira nos seus feridos.6 O grau de
verdade dessa acusação é, muitas vezes, devido a mal-entendidos com relação à disciplina
eclesiástica. Tais mal-entendidos estão presentes em pelo menos dois grupos: 1) os que aplicam a
disciplina, e 2) os que sofrem a aplicação da mesma. Como cada caso deve ser analisado
individualmente, só nos cabe aqui listar os mal-entendidos mais comuns em relação à disciplina
eclesiástica.
A. DISCIPLINA E DESPOTISMO
Com a subida ao poder do Partido Nacional na África do Sul, em 1948, a segregação foi
legalizada em nome da disciplina. Como resultado, foi sancionado o aprisionamento de negros
sem nenhum julgamento formal.7 Isso não foi disciplina, mas despotismo.
A história da Igreja Medieval apresenta uma vasta galeria de ilustrações da confusão entre o
uso da disciplina e o exercício do despotismo.8 Seria isto apenas um fenômeno do passado?
Infelizmente basta familiarizar-se com os círculos eclesiásticos para se descobrir que o espírito
medieval ainda está vivo e ativo na mente e atitude de alguns líderes modernos. Há aqueles que,
como resultado da ganância pelo poder, seguem o caminho de Balaão e amam a injustiça (2 Pe
2:13,15). Esses estarão sempre prontos a “disciplinar” por motivos interesseiros (Jd 16). Não se
deve esquecer, porém, que a culpa de Edom consistiu no fato de que “perseguiu o seu irmão à
espada, e baniu toda a misericórdia; e a sua ira não cessou de despedaçar, e reteve a sua
indignação para sempre” (Amós 1:11).
B. DISCIPLINA E DISCRIMINAÇÃO
A confusa identificação entre disciplina e discriminação pode ser vista sob dois aspectos: 1) no
abandono do disciplinado por parte da igreja, e 2) na recusa do disciplinado em receber a
disciplina. Para se evitar o primeiro erro é imprescindível que a família cristã não desista de um
dos seus membros que caiu. Paulo exorta a igreja para que manifeste perdão, conforto e
reafirmação de amor para com o arrependido, para que “o mesmo não seja consumido por
excessiva tristeza” (2 Co 2:7-8). Outra razão para esta exortação é para que “Satanás não alcance
vantagem” sobre a igreja, criando amargura, discórdia e dissensão (v. 11).
Há sempre a possibilidade de que o disciplinado não se submeta à disciplina, e acuse a igreja
de discriminação. Tal atitude apenas manifesta ignorância e estupidez (Pv 12:1 — tradução
literal). Segundo as Escrituras, é o pecado e a determinação em segui-lo que gera discriminação,
e não a disciplina (1 Co 5:5 e 1 Tm 1:20).
C. DISCIPLINA E ARBITRARIEDADE
“Com que direito fizeram isso?” Tal é a pergunta que constantemente se ouve em casos de
disciplina. Essa pergunta revela um mal-entendido comum entre disciplina e arbitrariedade. Ou
seja, é como se aqueles que aplicam a disciplina não tivessem nenhum direito de fazer tal coisa
debaixo do sol. “Aliás,” alguns argumentariam, “não somos todos pecadores?”
Primeiramente, é preciso lembrar que toda atitude pecaminosa precisa ser corrigida, mas há
algumas que requerem correção pública. Por exemplo, em Mateus 18:16-17 o evangelista fala
daqueles que se recusam a abandonar o pecado mesmo diante de uma amorosa exortação
pessoal. Na sua Primeira Carta aos Coríntios 5:1-13, Paulo descreve as pessoas cujas práticas
trazem escândalo à igreja, e na Primeira Carta a Timóteo 1:20, na Segunda Carta a Timóteo 2:17-
18 e na Segunda Carta de João 9–11 são mencionados os que dissimulam ensinos contrários ao
Evangelho. Por outro lado, na Carta aos Romanos 16:17 o apóstolo recomenda disciplina aos que
causam divisões na igreja e, ao escrever a Segunda Carta aos Tessalonicenses 3:6-10 ele
prescreve disciplina eclesiástica para aqueles que se deleitam na preguiça. Há um princípio claro:
“Os pecados que foram explicitamente disciplinados no Novo Testamento eram conhecidos
publicamente e externamente evidentes, e muitos deles haviam continuado por um período de
tempo.”9
Com relação à autoridade, é importante lembrar que a autoridade na disciplina nunca vem
daquele que a aplica, mas daquele que a ordenou, ou seja, o Cabeça e Senhor da Igreja (Ef 1:22-
23). Além do mais, a pergunta a ser feita dever ser: “Com que direito um membro da Igreja do
Cordeiro profana o sangue da aliança e ultraja o Espírito da graça?” (Hb 10:29). Também, “Que
direito temos nós de tomar o corpo de Cristo e fazê-lo um com a prostituição?” (1 Co 6:15).
Nenhum direito nos é dado, mas sim a responsabilidade de amar o pecador e vigiar para que
também não caiamos (1 Co 10:12).
Concluindo, somente a ignorância, equívocos, ou dureza de coração poderiam levar alguém a
deturpar os princípios bíblicos sobre a disciplina eclesiástica e justificar sua ausência entre os
membros do corpo de Cristo.
B. OS PASSOS DA DISCIPLINA
Biblicamente, a disciplina na igreja tem um triplo objetivo: 1) restabelecer o pecador (Mt
18:15; 1 Co 5:5 e Gl 6:1); 2) manter a pureza da igreja (1 Co 5:6-8) e 3) dissuadir outros (1 Tm
5:20). É este triplo propósito que aponta para os passos a serem seguidos em uma aplicação
correta da disciplina eclesiástica. Esses passos são especialmente mencionados em Mateus
18:15-17.
1. Abordagem individual
O v. 15 (Se teu irmão pecar vai argui-lo entre ti e ele só…) ensina que a confrontação é um
tarefa cristã. Uma das melhores coisas a se fazer por um irmão em pecado é confrontá-lo em
amor (Pv 27:5-6). Mas é sempre arriscado confrontar alguém, pois nunca se pode prever a reação
do mesmo. Jesus, todavia, dirige nossa atenção para a alegre possibilidade de que tal irmão nos
ouça. Além do mais, o termo grego ελεγξον (“arguir, instruir, confrontar,” v. 15) também pode
ser traduzido como “trazer à luz, expor.”10 É significativo o fato de que esse é o mesmo termo
usado em João 16:8 para descrever o ministério do Espírito em relação àqueles que estão no
mundo, em convencê-los (confrontá-los) “do pecado, da justiça, e do juízo.” Assim, antes de
confrontar um irmão, podemos sempre clamar por socorro Àquele cujo ministério de
confrontação é sempre eficaz.
2. Admoestação privada
No caso de o ofensor não atender à confrontação individual, Jesus ordena que haja
admoestação privada (v. 16). Nesse caso, um número maior de pessoas é envolvido. A princípio,
pode parecer que o objetivo desse passo é intimidar o ofensor. Uma atenção maior, porém, leva-
nos a entender que o propósito do mesmo pode ser o de conscientizar o ofensor quanto aos
prejuízos de sua atitude para com a comunidade do corpo de Cristo. Em outras palavras, nosso
pecado traz consequências pessoais e coletivas. Além do mais, Jesus afirma que as outras
pessoas envolvidas nesse processo serão testemunhas. Isto é uma referência à prática
veterotestamentária de não se condenar alguém com base apenas em uma opinião pessoal (ver
Nm 35:30, Dt 17:6 e 19:15). Com isto, a objetividade do caso é preservada, o que diminui as
chances de injustiça, e o ofensor é beneficiado.
3. Pronunciamento público (v. 17)
Tal proceder nunca é violação de segredos, pois o ofensor deliberadamente recusou os
caminhos prévios do arrependimento. Diante de tal pronunciamento cada membro do corpo de
Cristo deve orar pelo pecador, evitar comentários desnecessários (2 Ts 3:14-15) e vigiar a si
próprio (1 Co 10:12). Tal oficialização pública da disciplina traz implicações temporárias em
relação aos sacramentos (1 Co 11:27).11
4. Exclusão pública
O último recurso da disciplina é o da excomunhão (do latim ex, “fora,” e communicare,
“comunicar”), na qual o ofensor é privado de todos os benefícios da comunhão. Nesse caso, o
ofensor é tido como gentio (a quem não era permitido entrar nos átrios sagrados do templo do
Senhor) e publicano (que eram considerados traidores e apóstatas: Lc 19:2-10). Com estes não há
mais comunhão cristã, pois deliberadamente recusam os princípios da vida cristã (1 Co 5:11). Se
o seu pecado é heresia, ou seja, o desvio doutrinário das verdades fundamentais ensinadas nas
Escrituras, eles não devem nem mesmo ser recebidos em casa (2 Jo 10-11).
É claro que cada um desses passos envolve dor, tempo, amor e transparência. Nenhum deles é
agradável e eles só prosseguem diante de dureza de coração do ofensor, ou seja, a recusa ao
arrependimento. Há porém o conforto de saber que a presença e o poder de Jesus são reais
mesmo no contexto desse processo (Mt 18:19-20). Assim, a disciplina eclesiástica “não é uma
atividade a ser realizada facilmente, mas algo a ser conduzido na presença do Senhor.”12
C. DISCIPLINA E EVANGELISMO
A disciplina evidencia o amor cristão pelo pecador, ainda que esse pecador seja um dos
membros da igreja. Esse amor pelo pecador cristão também reflete o amor da mesma pelo
pecador incrédulo. A disciplina eclesiástica ressalta a seriedade do pecado. Sem a visão dessa
seriedade, a igreja não é corretamente motivada a buscar a redenção do pecador. Há uma relação
entre disciplina eclesiástica e evangelismo.
Uma igreja sem disciplina torna-se um impecilho para o avanço do evangelho. Essa relação
vital entre evangelismo e disciplina é clara à luz de 1 Co 5:12-13. O evangelismo é dirigido aos
que estão fora dos portões da igreja e que estão escravizados pelo pecado. A disciplina é dirigida
àqueles que estão dentro dos portões da igreja e que estão se sujeitando ao domínio do pecado.
Assim, ambos (evangelismo e disciplina) almejam a liberdade do pecador e a concretização do
triunfo histórico da graça sobre o pecado na vida do mesmo (Rm. 6:1-23). Uma igreja sem
disciplina proclama uma liberdade desconhecida, ou rejeitada, pelos seus próprios membros.
Como diz Barnes, “há pouca vantagem em uma greja que tenta vencer o mundo se ela já tem se
rendido ao mundo.”17
CONCLUSÃO
Laney adverte para o fato de que “a disciplina é como um medicamento muito forte: pode trazer
a cura ou causar maior dano.”18 Nenhum profissional médico, porém, se recusa a aplicar um
medicamento que pode curar o seu paciente apenas porque o mesmo é forte. Também, nenhum
doente faz opção pela morte ou pela continuidade da doença se a vida e a cura podem estar tão
próximas.
Uma séria reflexão bíblica sobre a disciplina eclesiástica evidencia dois princípios básicos.
Primeiro, que a disciplina na igreja não é uma opção, mas sim uma ordenança e,
consequentemente, uma bênção divina (Hb 12:5-7). Segundo, que a disciplina requer profundo
amor por parte da igreja que a aplica e semelhante humildade e quebrantamento por parte
daquele que é disciplinado (2 Co 2:5-11).
Ver Os Guinness, Dining With the Devil: The Megachurch Movement Flirts With Modernity (Grand Rapids: Baker, 1993).
Ver Guilherme de Barros, “O Pastor da Esquerda Evangélica,” Vinde (Julho 1997): 7-12. Nessa entrevista, o bispo Robson
Cavalcanti teoriza sobre casos em que a poligamia poderia ser considerada uma atitude mais humana. O presente autor discorda
do bispo e crê que a questão retórica a ser levantada não é se condenar a poligamia “seria humano,” mas sim se a prática atual da
mesma “é bíblica.”
Essa é uma constante referência à obra clássica de Nathaniel Howthorne, The Scarlet Letter.
Josh N.D. McDowell, Tolerating the Intolerable: A Mandate of Love (Wheaton, Illinois: Josh McDowell Ministry).
Richard J. Foster, Celebração da Disciplina: O Caminho do Crescimento Espiritual, trad. Luiz Aparecido Caruso (São Paulo:
Vida, 1983).
Carl J. Laney, “The Biblical Practice of Church Discipline,” Biblioteca Sacra (Outubro-Dezembro 1986): 353-64.
Compton’s Interactive Encyclopedia, 1997 (The Learning Company, Inc. CD).
Justo L. González, The Story of Christianity (Nova York: HarperSanFrancisco, 1984), 277-359.
Wayne Grudem, Systematic Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1994), 896. Minha tradução. A única exceção a esse princípio
foi “o pecado secreto de Ananias e Safira (At 5:1-11). Nesse sentido a atuação extraordinária do Espírito Santo resultou em
grande temor entre os membros da igreja.”
F. F. Bruce, ed., Vine’s Expository Dictionary of Old and New Testament Words (Nova Jersey: Fleming H. Revell, 1981), 283-4.
R. N. Caswell, “Discipline,” em New Dictionary of Theology, eds. S. B. Ferguson, D. F. Wright, e J. I. Packer (Downers Grove:
InterVarsity, 1988), 200.
Grudem, Systematic Theology, 898. Minha tradução.
John R. W. Stott, Christ the Controversialist: A Study in Some Essentials of Evangelical Religion (Londres: Tyndale Press,
1970), 160. Minha tradução.
Confissão de Fé de Westminster, XXI.i.
John Calvin, Institutes of the Christian Religion, ed. John T. McNeill (Filadélfia: Westminster, 1960), 4:7:4. Minha tradução.
Caswell, “Discipline,” 200. Minha tradução.
Peter Barnes, “Biblical Church Discipline,” The Banner of Truth 414 (Março 1998): 20. Minha tradução.
Laney, “The Biblical Practice of Church Discipline,” 363.
Apêndice
O século XVII foi um período turbulento na história da Inglaterra, marcado por mudanças
políticas, sociais e religiosas significativas. No início do século, a Igreja da Inglaterra era a igreja
estabelecida, e adotava uma forma de protestantismo conhecida como anglicanismo, que
combinava elementos tanto católicos quanto reformados. No entanto, um grupo de reformadores
dentro da igreja, conhecido como puritanos, sentia que a igreja precisava de uma maior
“purificação“ das influências católicas e rituais considerados não bíblicos.
Muitos puritanos, influenciados pela teologia reformada, buscavam uma igreja mais simples e
centrada na Bíblia. Eles queriam eliminar elementos cerimoniais e hierárquicos que
consideravam desnecessários e contrários às Escrituras. Além disso, havia uma crescente
insatisfação com o governo da igreja, que era fortemente influenciado pelo rei e pelos bispos, e
muitos puritanos viam a necessidade de uma maior participação dos membros da igreja na
tomada de decisões.
FUNDAMENTO BÍBLICO
O sistema de governo eclesiástico presbiteriano é fundamentado principalmente na interpretação
das Escrituras que enfatiza a liderança colegiada por meio de anciãos ou presbíteros. Os
presbiterianos argumentam que essa forma de governo encontra apoio nas narrativas e
ensinamentos do Novo Testamento, especialmente nas cartas de Paulo e nos Atos dos Apóstolos.
Aqui estão algumas questões bíblicas e referências que são frequentemente invocadas para
sustentar esse sistema de governo:
1. Presbíteros como líderes da igreja: O Novo Testamento apresenta anciãos ou presbíteros
(também conhecidos como bispos ou pastores) como líderes fundamentais nas igrejas locais.
Eles eram responsáveis por ensinar, pastorear e tomar decisões em questões disciplinares e
administrativas. Essa liderança colegiada é vista como uma das principais características do
presbiterianismo. Desisões disciplinares no âmbito da igreja local são tomadas pelo que
normalmente é denomidado de Conselho ou Consistório local (veja: Atos 14:23; 20:17; 1
Coríntios 5; Tito 1:5-7; 1 Pedro 5:1-2).
2. Decisões tomadas em assembleias sinodais: Os presbiterianos também destacam a
importância das assembleias ou concílios de presbíteros para tomar decisões conjuntas em
questões que afetam a igreja em sua totalidade. Essas assembleias sinodais são consideradas
como um modo de preservar a comunhão e a unidade entre as igrejas (veja: Atos 15, o Concílio
de Jerusalém, como um exemplo notável de uma assembleia sinodal em que os apóstolos e
presbíteros se reuniram para resolver uma questão teológica e disciplinar).
3. Igualdade entre as igrejas locais: Os presbiterianos enfatizam a igualdade e
interdependência entre as igrejas locais. Cada igreja é vista como parte de uma comunhão maior,
e as decisões importantes são tomadas em conjunto por representantes de diferentes igrejas (veja:
As cartas de Paulo frequentemente tratam da unidade do corpo de Cristo e do funcionamento
harmonioso dos membros, independentemente de suas origens locais. Por exemplo, 1 Coríntios
12:12-27; Efésios 4:1-6).
4. Responsabilidade e participação dos membros: Os presbiterianos enfatizam a
responsabilidade e participação ativa dos membros da igreja nas decisões importantes. Os
presbíteros são eleitos pelos membros e devem prestar contas a eles e a Deus por seu serviço
(veja: Mateus 18:17-18 que destaca o papel dos membros em questões de disciplina e tomada de
decisões).
O CONCÍLIO DE JERUSALÉM
O Concílio de Jerusalém, registrado em Atos 15, é frequentemente citado pelos presbiterianos
como um exemplo bíblico que sustenta o sistema de governo presbiteriano. Essa passagem
apresenta um evento crucial na igreja primitiva, no qual os apóstolos e anciãos se reuniram para
resolver uma questão teológica e disciplinar que estava causando controvérsia entre os cristãos,
conforme podemos observar resumidamente no capítulo 15 de Atos.
Versículos 1-5: Alguns homens judeus vieram à igreja de Antioquia, ensinando que, para
serem salvos, os gentios (não judeus) precisavam ser circuncidados de acordo com a tradição
judaica. Isso gerou uma grande dissensão e contenda, pois Paulo e Barnabé eram radicalmente
contrários a esses ensinamentos.
Versículos 6-12: A questão foi levada aos apóstolos e aos anciãos em Jerusalém para ser
resolvida. Pedro se levantou e testemunhou que Deus havia mostrado claramente que Ele estava
aceitando os gentios por meio da fé, sem impor a eles a observância da lei judaica. Tiago, irmão
de Jesus e líder da igreja em Jerusalém, concordou com Pedro e citou profecias do Antigo
Testamento que falavam sobre a inclusão dos gentios no povo de Deus.
Versículos 13-21: Tiago propôs uma solução para a controvérsia, e a assembleia concordou.
Eles enviaram uma carta para a igreja de Antioquia, declarando que não era necessário impor a
circuncisão e a observância da lei judaica aos gentios convertidos. No entanto, eles
recomendaram, especialmente aos gentios, que eles evitassem certas práticas consideradas
impuras e ofensivas, como a idolatria e a imoralidade sexual.
Versículos 22-35: A carta foi enviada com Paulo e Barnabé de volta a Antioquia, e eles
compartilharam as boas novas com a igreja local, trazendo consolo e edificação aos irmãos.