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O enigma do Natal

Jesus nasceu mesmo em 25 de


dezembro
Lumen ad Viam

Por Vittorio Messori

O Ferragosto é um feriado que coincide


com a Festa da Assunção de Nossa
Senhora, em 15 de agosto,…

O Ferragosto está se aproximando e eu devo fazer uma


reparação [nota do tradutor: Ferragosto é um feriado,
no dia 15 de agosto, que coincide com o início das
férias na Itália]. Em um momento de mau humor —
neste mesmo jornal — pedi que a Igreja decidisse a favor
de uma mudança no calendário: passar para o dia 15 de
agosto, o que costumamos celebrar em 25 de dezembro.
Argumentei que um Natal no verão escaldante, nos
libertaria daquelas luzes insuportáveis, do enjoativo papai
noel com seu trenó e as renas, e até mesmo da obrigação
de dar cumprimentos e presentes.

…e é também o dia do início das férias na


Itália

Quando todo mundo já se foi, as cidades estão vazias,


para quem, onde mandar postais e entregar pacotes
enfeitados? Não são os próprios bispos que protestam
contra essa espécie de orgia do consumismo a que foi
reduzido o nosso Natal? Então, vamos surpreender os
comerciantes e transferir tudo para o Ferragosto.

Pareceu-me que não era de todo impossível, uma vez


que não foi a necessidade histórica, mas, a própria Igreja,
que escolheu o 25 de dezembro para contrastar e
substituir as festas pagãs, nos dias de solstício de
inverno. O nascimento de Cristo ao invés do
renascimento do Sol Invictus. Portanto, no início, havia
uma decisão pastoral, que poderia ser alterada tendo em
vista a mudança das necessidades.

Qumran é fonte inesgotável para os


estudiosos, pois, em 1947, foram
descobertos os famosos Manuscritos do
Mar Morto, textos compilados por uma
doutrina de judeus conhecida como
essênios, que viveram por lá do século II
a.C. até aproximadamente o ano 70 d.C.

Uma provocação, é claro, mas fundamentada no que é


(ou melhor, era) pacificamente aceito por todos os
estudiosos: o arranjo litúrgico do Natal seria uma escolha
arbitrária, sem ligação com o nascimento de Jesus, cuja
data ninguém seria capaz de determinar. Bem, parece
que os especialistas estavam errados; e, é claro, eu
também. Na verdade, hoje, graças aos documentos de
Qumran, somos capazes de determinar com precisão:
Jesus nasceu em um 25 de dezembro. Uma séria e
extraordinária descoberta, insuspeita de apologética
cristã, uma vez que a devemos a um professor judeu, da
Universidade de Jerusalém.

Vamos tentar entender o mecanismo, que é complexo,


mas, fascinante. Se Jesus nasceu em 25 de dezembro, a
concepção virginal ocorreu, obviamente, nove meses
antes. E, de fato, calendários cristãos colocam 25 de
março como o dia da Anunciação do anjo Gabriel a Maria.
Mas, sabemos por meio do próprio Evangelho de Lucas,
que apenas seis meses antes, Isabel havia concebido o
precursor, João, que seria chamado o Batista. A Igreja
Católica não tem uma festa litúrgica para a sua
concepção, mas as antigas Igrejas do Oriente celebram-
na, solenemente, entre os dias 23 e 25 de Setembro. Ou
seja, seis meses antes da Anunciação à Maria. Uma
sucessão de datas lógicas, porém, baseadas em
tradições não verificáveis, em ​eventos não “localizáveis”
no tempo. É no que acreditávamos todos, até
recentemente. Mas, parece que não é bem assim.

Zacarias e o arcanjo Gabriel

É justamente da concepção de João que devemos partir.


O Evangelho de Lucas começa com a história do casal de
idosos, Zacarias e Isabel, ela, por ora, resignada com a
infertilidade, uma das piores desgraças em Israel.
Zacarias pertencia à casta sacerdotal e um dia em que
estava de serviço, no Templo de Jerusalém, teve a visão
de Gabriel (o mesmo anjo que seis meses depois,
apresentou-se a Maria em Nazaré) dizendo-lhe que,
apesar de sua idade avançada, ele e sua esposa teriam
um filho. Eles deveriam chamá-lo de João e seria “grande
diante do Senhor”.

Lucas tem o cuidado de salientar que Zacarias pertencia


à classe sacerdotal de Abias e que quando teve a
aparição “oficiava no turno da sua classe”. Aqueles
que pertenciam à casta sacerdotal no antigo Israel foram
divididos em 24 classes que, revezando-se numa ordem
imutável, deviam prestar o serviço litúrgico no templo por
uma semana, duas vezes no ano. Sabíamos que a classe
de Zacarias era a oitava na lista. Mas quando ocorria o
seu turno de serviço? Ninguém sabia.

Bem, utilizando-se de pesquisas até mesmo de outros


especialistas, e trabalhando, sobretudo, em textos
encontrados na biblioteca dos essênios em Qumran, eis
que o enigma foi resolvido pelo professor Talmon
Shemarjahu que lecionava na Universidade Hebraica de
Jerusalém.

Entrada da Universidade Hebraica de


Jerusalém

O estudioso foi capaz de restabelecer com precisão a


ordem cronológica seguida por cada uma das 24 classes
sacerdotais. A de Abias prestava serviço litúrgico no
Templo duas vezes por ano, como as outras, e uma
dessas vezes era na última semana de setembro.

Prof. Talmon Shemarjahu (1920–2010)


Portanto, era digna de credibilidade a tradição dos
cristãos orientais que posicionavam o anúncio a Zacarias
entre 23 e 25 de setembro. Mas essa possibilidade
aproximou-se da certeza porque, estimulados pela
descoberta do Professor Talmon, os estudiosos
reconstituíram os elos daquela tradição, concluindo que
ela veio diretamente da Igreja primitiva, judaico-cristã, de
Jerusalém. Uma memória antiga e duradoura das Igrejas
do Oriente, como já fora confirmado em muitos outros
casos.

Aquilo que era pouco provável, de repente, adquire


contornos de autenticidade. Uma cadeia de eventos que
se estende por 15 meses: em setembro o anúncio a
Zacarias e no dia seguinte a concepção de João; em
março, seis meses depois, o anúncio a Maria; em junho,
após três meses, o nascimento de João; daí a seis
meses, o nascimento de Jesus. E com este evento,
chegamos justamente ao 25 de dezembro, dia que,
portanto, não havia sido fixado ao acaso.

Pois é. Parece que propor o Natal no Ferragosto é mesmo


impensável. Mais do que estarrecido, vencido, estou,
sobretudo, emocionado: depois de tantos séculos de
ferozes pesquisas sobre os Evangelhos, eles não param
de nos reservar surpresas. Que importava Zacarias
pertencer à classe sacerdotal de Abias? Nenhum exegeta
prestava atenção nisso! Detalhes aparentemente inúteis
mostram-nos, repentinamente, a sua razão de ser, seu
caráter de sinalizar uma verdade escondida, mas precisa.
E assim, a aventura cristã continua.

(Publicado no jornal Corriere della Sera no dia 09 de julho


de 2003.)

(Veja também os demais artigos da Coleção Igreja


Hoje.)

(Curta a página Vittorio Messori em português.)

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