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A Autoria de Hebreus e o

Texto Grego
On February 3, 2018 By Victor Leonardo BarbosaIn
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A pergunta “quem escreveu Hebreus?” até hoje


reverbera em um momento ou outro no debate teológico.
A erudição teológica, de maneira geral, possui certo
agnosticismo com relação à autoria da Carta. Talvez a
única certeza que a maioria dos teólogos possuem no
que tange a autoria da epístola é que certamente tal
epístola não provém do apóstolo Paulo.

De maneira interessante, não era esse o consenso de


grande parte da igreja no período patrístico, nem
tampouco o consenso universal da cristandade a partir
de 400 d.C. De maneira geral, a igreja defendeu
vigorosamente a autoria paulina da Epístola aos Hebreus.
Quais os motivos para tal quebra de consenso? É
possível ainda defender a autoria Paulina? É o que
veremos a seguir.

– A Igreja Primitiva e Hebreus:

As primeiras citações de Hebreus provêm bem cedo na


história da igreja. A Epístola de Clemente de Roma aos
Coríntios é recheada da fraseologia e dos temas
teológicos de Hebreus. No lado oriental da Cristandade,
de fala grega, a epístola é contada como paulina, ainda
que o estilo divergisse do estilo de Paulo. Segundo
Pateno e Clemente de Alexandria, o autor da Epístola
seria o apóstolo Paulo, porém o estenógrafo (redator) da
carta seria outro (Clemente de Alexandria sugere que foi
Lucas que atuou como o redator). Um dos mais antigos
manuscritos gregos do Novo Testamento, o papiro
66(século III depois de Cristo), coloca Hebreus logo após
Romanos. A frase de Orígenes, registrada por Eusébio de
Cesaréia em sua História Eclesiástica, é muito usada para
sustentar um desconhecimento da autoria da carta:
“Quem escreveu a carta, só Deus sabe”. Todavia, um
exame mais minucioso da frase mostra que Orígenes
defendeu a autoria paulina:

“Mas eu diria que os pensamentos são do apóstolo


[Paulo], mas o discurso e a fraseologia pertencem
a alguém que registrou que disse o apóstolo,
e anotou livremente o que o seu mestre dizia… mas
só Deus sabe quem realmente escreveu a epístola…
de acordo com alguns, que Clemente, que era bispo
de Roma, escreveu a epístola; de acordo com outros,
que foi escrita por Lucas, que escreveu o Evangelho
e os Atos”¹.

Fica claro, a partir do contexto, que Orígenes não atribui


unicamente à onisciência divina quem é o autor da
epístola, mas sim seu redator. Uma prova cabal que
Orígenes cria na autoria paulina da epístola provém de
sua declaração em sua magnum opus, Contra Celso.
Neste livro, ao refutar o filósofo pagão Celso, Orígenes
declara:

“Pois está escrito na carta de nosso Paulo aos


Coríntios, gregos, cujos costumes ainda não tinham
sido purificados: ‘Dei-vos a beber leite, não alimento
sólido, pois não o podíeis suportar. Mas nem mesmo
agora podeis, visto que ainda sois carnais. Com efeito,
se há entre vós invejas e rixas, não sois carnais e não
vos comportais de maneira meramente humanaʼ ( 1
Co 3,2-3). E este mesmo apóstolo, sabendo que
certas verdades são o alimento da alma adiantada na
perfeição, e outras, dos neófitos, são comparáveis ao
leite das criancinhas, declara: ‘Precisais de leite, e não
de alimento sólido. De fato, quem ainda se amamenta
não pode degustar a doutrina da Justiça, pois é
criancinha! Os adultos porém, que pelo hábito
possuem o senso moral exercitado para discernir o
bem e o mal, recebem o alimento sólidoʼ (Hb 5,12-14)”
(Contra Celso 3.53).²

Ainda que na igreja do ocidente houvessem dúvidas no


que tange a autoria³, tais dúvidas se dissiparam devido a
ampla aceitação da Epístola em várias igrejas, e por fim a
aceitação que a Epístola provinha do apóstolo Paulo.

– A Opinião contemporânea acerca da autoria de


Hebreus e a evidência interna:

A maioria dos estudiosos, em especial a partir do século


XVIII e e XIX, começaram a lançar dúvidas acerca da
autoria paulina de Hebreus. Dentre as maiores objeções,
há as seguintes:

1. A ausência da tradicional identificação paulina, contida


em todas as outras epístolas.

2. O estilo literário da epístola, que divergia em muito em


termos do estilo Paulino.

3. A evidência que o autor na verdade não participara do


círculo apostólico (Hb 2.3).

A primeira objeção, ainda que válida, pode ser explicada


de várias maneiras. Uma possível explicação se daria
pelo fato de aqui, Paulo não estar escrevendo para uma
igreja gentílica ou predominantemente gentílica, mas sim
para uma das igrejas mais primitivas do cristianismo: uma
igreja judaica. Aqui, Paulo não precisa reforçar sua
imagem como apóstolo, pois ao que tudo indica, todos os
ouvintes sabiam quem ele era (Hb 13.22). Aqui, Paulo fala
como “hebreu de hebreus”, seu estilo fugiria do
convencional, pois não se trata simplesmente de uma
epístola, mas sim de uma palavra de exortação (gr. του
λογου της παρακλησεως Hb. 13.22). Em Atos 13.15,
Lucas relata que Paulo e Barnabé entram em uma
sinagoga e são convidados a dar uma “palavra de
consolação” (λογος εν υµιν παρακλησεως), quem profere
a palavra, aqui, é Paulo. O contexto hebraico da carta aos
hebreus e sua natureza homilética só reforçam a autoria
paulina.

A segunda objeção, bastante válida, tem ganhado,


todavia, objeções de peso através do trabalho de David
Alan Black, professor de grego do Southeastern Baptist
Theological Seminary e através da teóloga alemã Eta
Linnemann. Em seu livreto monumental The Authorship
of Hebrews – The Case for Paul (A autoria de Hebreus –
Em defesa de Paulo). Black traça vários paralelos de
expressões gregas encontradas em Hebreus e nas cartas
paulinas, indo até mesmo a temas teológicos. De maneira
semelhante, o artigo científico de Eta Linnemann, A Case
for a Retrial of the Epistle of Hebrews (Um caso de
Reanálise da epistola aos Hebreus), mostra claramente
evidências linguísticas que estão de acordo com a
linguagem paulina.

Mesmo um exame comparativo com a tradução em


português é possível captar semelhanças temáticas e às
vezes linguísticas entre o Paulo e Hebreus. Dentre as
quais destacamos a seguir:

E eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais,


mas como a carnais, como a meninos em Cristo. Com
leite vos criei, e não com carne, porque ainda não
podíeis, nem tampouco ainda agora podeis. (1 Co 3.1-
2)

Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda


necessitais de que se vos torne a ensinar quais sejam
os primeiros rudimentos das palavras de Deus; e vos
haveis feito tais que necessitais de leite, e não de
sólido mantimento. Porque qualquer que ainda se
alimenta de leite não está experimentado na palavra
da justiça, porque é menino. Mas o mantimento sólido
é para os perfeitos, os quais, em razão do costume,
têm os sentidos exercitados para discernir tanto o
bem como o mal. (Hb 5.12-14).

Porque tenho para mim, que Deus a nós, apóstolos,


nos pôs por últimos, como condenados à morte; pois
somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos, e
aos homens. (1 Co 4.9)

Em parte fostes feitos espetáculo com vitupérios e


tribulações, e em parte fostes participantes com os
que assim foram tratados. (Hb 10.33)

Como tenho por justo sentir isto de vós todos, porque


vos retenho em meu coração, pois todos vós fostes
participantes da minha graça, tanto nas minhas
prisões como na minha defesa e confirmação do
evangelho (Fp 1.7).

Porque também vos compadecestes das minhas


prisões, e com alegria permitistes o roubo dos vossos
bens, sabendo que em vós mesmos tendes nos céus
uma possessão melhor e permanente (Hb 10.34).

Há aqui, uma interessante variante tanto a ARC quanto as


demais traduções leem “prisioneiros” ao invés de
“minhas prisões”. A variante “Minhas prisões” (gr.
Desmois mou) é atestada por 92,1% dos manuscritos
gregos de acordo com Pickering, e a segunda,
“prisioneiros” (gr. Desmois) apenas 6,3%. A frase
encontrada no texto tradicional está de acordo com o
expressão paulina de sua prisão (Fp 1.7). Assim, o texto
tradicional indica (juntamente com outras evidências)
que a visão tradicional da autoria paulina do livro de
Hebreus é muito provável.

Se for possível, quanto depender de vós, tende paz


com todos os homens (Rm 12.18)

Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual


ninguém verá o Senhor (Hb 12.14).

Depois desse comparativo, o leitor é convidado a fazer


um comparativo do epílogo de Hebreus com os demais
epílogos das outras cartas paulinas. O epílogo tem forte
sabor paulino:

Orai por nós, porque confiamos que temos boa


consciência, como aqueles que em tudo querem
portar-se honestamente. E rogo-vos com instância
que assim o façais, para que eu mais depressa vos
seja restituído. Ora, o Deus de paz, que pelo sangue
da aliança eterna tornou a trazer dos mortos a nosso
Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas, Vos
aperfeiçoe em toda a boa obra, para fazerdes a sua
vontade, operando em vós o que perante ele é
agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para
todo o sempre. Amém. Rogo-vos, porém, irmãos, que
suporteis a palavra desta exortação; porque
abreviadamente vos escrevi. Sabei que já está solto o
irmão Timóteo, com o qual, se ele vier depressa, vos
verei. Saudai a todos os vossos chefes e a todos os
santos. Os da Itália vos saúdam.

A graça seja com todos vós. Amém.

Por último, resta a objeção levantada com base em


Hebreus 2.3: “Como escaparemos nós, se não
atentarmos para uma tão grande salvação, a qual,
começando a ser anunciada pelo Senhor, foi-nos depois
confirmada pelos que a ouviram”.

A objeção é levantada pelo fato do autor parecer


pertencer a segunda geração de discípulos. Todavia, é
importante ressaltar aqui é que o autor não afirma ter
recebido a revelação dos apóstolos, mas sim a
confirmação por parte dos apóstolos. Ora, isso está
totalmente de acordo com o que sabemos de Paulo.

Confrontando a opinião corrente, Eta Linnemann dá sua


explicação de Hebreus 2.3:

“A segunda metade de Hebreus 2.3 está em aposição


com o conceito de ‘grande salvaçãoʼ. Dessa ‘grande
salvaçãoʼ eles obtém confirmação. A ‘grande
salvaçãoʼ é o sujeito, não o ‘nósʼ, no qual o autor da
epístola se coloca juntamente. Aqui, ocorre
unicamente com relação à salvação. Não significa aqui
‘ensinarʼ ou ‘fazer discípulosʼ, mas ‘estabelecerʼ,
‘confirmarʼ, ‘garantirʼ, Pois os mais jovens ouviram a
proclamação de grande salvação do Senhor
confirmada, eles são o ‘nósʼ pela qual foi garantida,
não seus pupilos. Hebreus 2.3 certamente exclui o
autor de ser inequivocadamente um jovem seguidor
de Jesus de ser o autor de Hebreus, mas não o
apóstolo Paulo, que nunca foi um inequívoco jovem
seguidor de Jesus! O que se lê aqui então não entra
em contradição com o que lemos em Gálatas 1.16-
17)”.

Conclusão

Apesar de hoje majoritariamente a autoria paulina ser


descartada, ela não ficou todavia, sem defensores de
peso na atualidade. Os argumentos levantados por David
Alan Black e Eta Linnemann são fortes o bastante para ao
menos se considerar o apóstolo Paulo como o mais
provável candidato à autoria da carta, se não provam,
realmente, que o apóstolo dos Gentios, certamente é o
autor da epístola. Certamente que optar pela defesa da
autoria paulina, terá como aliado o peso da grande
tradição cristã. Tradição essa, que como Black e
Linnemann mostram, tem muito a nos dizer.

Soli Deo Gloria.

Notas:
1. CESARÉIA, Eusebio de. História Eclesiásica. Tr. Lucy
Iamakami. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.p. 227.
2. ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. Tr. Orlando
dos Reis.2° ed. São Paulo: Paulus, 2011. p.251
3. A igreja no ocidente aceitou de maneira definitiva o
testemunho paulino de Hebreus através dos escritos de
Agostinho e Jerônimo. Na época da reforma, tanto Lutero
quanto Calvino discordavam da autoria paulina de
Hebreus. Lutero sugeriu Apolo como o mais provável
candidato. Todavia, é de se estranhar que a igreja em
Alexandria, de onde Apolo provinha, nunca sugeriu ter
sido ele o seu autor.

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