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CINEMA & FILM #1

Inverno 1966-67

EDITORIAL

"Cinema e Film" é uma revista em formação e de auto-formação: não está sendo publicada
para repetir o que já foi resolvido, mas para manifestar e verificar uma pesquisa em grupo em
desenvolvimento.

Ao prosseguir com essa pesquisa através da "Cinema e Film", queremos em primeiro lugar
arriscar a especialização e o tecnicismo, na direção sugerida pelo título. Isto é, queremos
aprofundar e ampliar o trabalho de investigação linguística e estilística do filme enquanto
entidade orgânica, fazendo uso (sem recusas enviesadas) dos instrumentos que hoje nos são
disponibilizados de diversas partes; ao mesmo tempo, queremos imergir o filme no problema
que hoje é colocado pelo cinema enquanto linguagem, enquanto meio de comunicação,
enquanto arte.

E isso tanto porque julgamos sempre útil um trabalho de análise concernente estritamente aos
elementos audiovisuais do filme, quanto porque a situação atual da crítica cinematográfica
italiana requer um estudo limitado ao cinema e ao filme, se deseja-se remediar as
generalizações e catalogações conduzidas ora por uma análise sociológica e suas relativas
deformações, ora por uma disponibilidade "passiva" do gosto.

Mas o cinema é cultura. A limitação da qual partimos não seria mais que um impasse se, além
de valer como um direcionamento para o nosso trabalho imediato, ela também não nos
impelisse à sua superação. A reflexão técnica acerca do cinema existente e a própria
implicação pessoal nos argumentos discutidos não podem, portanto, evitar que determine-se
uma eleição de "poéticas" no interior deste e que nos envolvamos na indagação geral sobre as
funções expressivas e comunicativas do cinema como um todo, para a preparação do cinema
que ainda está por vir. Em suma, a especialização é um prelúdio à disposição histórica do
cinema no abrangente campo da cultura: o fim último desta pesquisa.

DIÁLOGO 1º
com Pier Paolo Pasolini
Bom dia, caros amigos, como vão? O título da revista de vocês me agrada muito. O agrado
consiste em escutá-lo ressoar de forma ambígua e significativa: cinema e filmes (ou cinema e
filme?[1]): uma contradição? Um dilema? Uma hendíadis? O "e" é conjuntivo ou
adversativo? Será que existe, nessas duas palavras conjugadas, o mesmo valor que escutamos
em expressões análogas como "humanidade e homens", ou "indústria e produto", ou ainda
"poesia e poemas"?

Não sei se está nas intenções de vocês, mas a única forma de desemaranhar esse intrincado nó
de ambiguidade e ambivalência, desconcertante mas satisfatório, creio que seja recorrer ao
lema soberano da linguística contemporânea: "Langue e Parole[2]", no qual o "e" não é nem
conjuntivo nem adversativo mas, digamos, distintivo.

Conhecemos apenas as várias "paroles", não conhecemos a "langue": ou melhor, conhecemos


a "langue" através da experiência real das várias "paroles", ou seja, por dedução. A "langue",
portanto, é uma abstração: mas uma abstração... concreta, do momento em que esta torna-se a
realidade de um código e de uma gramática; ou seja, um objeto de estudo, constituído pelo
estudo. E é curioso porque se, por exemplo, a partir dos homens não saberíamos constituir
direito o objeto "humanidade", nem a partir dos poemas descobrir o que é a poesia, na
linguística acontece o contrário: sabemos muito melhor o que é a "langue" do que o que são
as "paroles" concretas! Nestas últimas, subsiste o mistério do ato de criação, que é
translinguístico, e não totalmente desprovido de carisma[3]; enquanto que na "langue" tudo é
definido friamente (ainda que com entusiasmo) pela razão ordenadora, que quando encontra
um código para analisar ou descrever encontra-se no momento mais típico da sua função.

No campo filme-linguístico, a razão ainda não concluiu esse trabalho que frequentemente
cumpre de forma tão solícita e agradável: ela ainda não "abstraiu" o "cinema" dos vários
"filmes". Conhecemos os "filmes" (como conhecemos o homem ou os poemas), mas não
conhecemos o "cinema" (como não conhecemos a humanidade ou a poesia). Ou então, se
sabemos um pouco o que é o cinema, o sabemos enquanto cinema-indústria, ou enquanto
cinema-fenômeno-social: isto é, como se conhecêssemos uma "langue" enquanto fato
instrumental, sem saber o que ela realmente é.

Os estudos para descobrir o que é o cinema começam nestes anos de agora: e é justo que uma
revista como a de vocês coloque já de imediato, no título, a questão.

Pergunta: Então, no que diz respeito a esta questão... nos interessam os seus esforços para
definir o cinema como "langue"... mas suspeitamos que a gramática que você elaborou, que
identifica a unidade da segunda articulação nos objetos reais de um plano – e que você chama
de "cinemas"[4] – nasça de uma exigência estilística sua...

Resposta: Vocês estão loucos. É muito desagradável, sabe, para um autor, sentir-se sempre
considerado como uma "criatura de estilo".

E que tudo com relação a ele seja reduzido à pecinhas de um jogo de compreensão da sua
carreira estilística.

Isso é desumano. É verdade que, estudando um autor, será necessário buscar também uma
unidade! Todavia, isso não deve ser feito de modo elementar, com aquele ar presunçoso e
malandro com que um funcionário do banco fala bem ou mal de um colega: isto é, com o ar
de quem é competente num "assunto" e, batendo papo com seu grupinho de amigos, remete
tudo a este assunto, de forma que a sua competência nele lhe confira a autoridade e portanto o
direito de pertencer a este grupinho.

Ou melhor, digo na cara de vocês: me ofende muito que tudo o que faço e digo seja remetido
para explicar o meu estilo. É um modo de me exorcizar, e talvez de me fazer de estúpido: um
estúpido na vida, que talvez seja bom no seu trabalho. É portanto também uma forma de me
excluir e de me fazer calar. Inconscientemente, quero dizer. Portanto, que fique bem claro
que:

as minhas tentativas de extrair dos vários filmes uma noção linguística de cinema –
analogamente ao que sempre se fez com a "langue" e as "paroles" – não é de modo algum
uma proliferação do meu fazer estético, ou seja, da minha "poética" cinematográfica. De
modo algum.

As características da minha pesquisa gramatical no cinema possuem antes uma relação


profunda e complexa – mas real e, portanto, simplificável – com o meu modo de ver a
realidade, com o meu modo de interpretar a realidade, ou seja, com a minha relação com a
realidade. Não sou de modo algum um filósofo, mas poderia também dizer: com a minha
filosofia.

Em um título meu, defini o cinema como a "língua escrita da ação". E queria dizer que: a
realidade é um cinema in natura (eu represento a mim mesmo para você, você representa a si
mesmo para mim; eu sou um plano para Aprà e Aprà é um plano para mim: dois planos fixos,
agora que estamos sentados, mas que podem se tornar um plano-sequência ou uma
panorâmica quando nos levantarmos daqui e retomarmos as nossas ações). Esse cinema "in
natura" que é a realidade é na verdade uma linguagem ("O que se deve fazer é a semiologia
da realidade!" – este é o slogan que venho gritando a mim mesmo há meses): uma
linguagem similar em algumas maneiras à linguagem oral dos homens: o cinema é, portanto
– através da sua reprodução da realidade –, o momento escrito da realidade.

Se o cinema, portanto, não é outra coisa que a língua escrita da realidade (que se manifesta
sempre em ações), isso significa que ele não é nem arbitrário nem simbólico: e representa
portanto a realidade através da realidade – concretamente, através dos objetos da realidade
que uma câmera, instante a instante, reproduz (daí a minha definição linguística dos "cin-
emas"). Bem, a esta altura podemos identificar a relação da minha noção gramatical de
cinema com aquela que é, ou ao menos que eu creio ser, a minha filosofia ou modo de viver,
que não me parece ser outra coisa que um alucinado, infantil e pragmático amor pela
realidade. E religioso, na medida em que, de forma análoga à religião, ele é fundado numa
espécie de imenso fetiche sexual. O mundo, para mim, parece ser apenas um imenso conjunto
de pais e mães, ao qual sou totalmente transportado por um respeito venerador e pela
necessidade de violar tal respeito venerador através de dessacralizações até mesmo violentas
e escandalosas (bem, são coisas que se dizem no extraordinário gênero literário que é a
entrevista).

Exprimindo-me através da língua do cinema – que, repito, não é outra coisa que o momento
escrito da língua da realidade – eu permaneço sempre no âmbito da realidade: não interrompo
a sua continuidade através da adoção daquele sistema simbólico e arbitrário que é o dos lin-
signos[5], que para "reproduzir a realidade através da sua evocação" deve necessariamente
interrompê-la.

Agora, Aprà vai se levantar, andar até a porta, sair, se afastar pelo corredor, descer as escadas,
abrir o portão que dá para a rua, pegar o carro, ligar o motor, partir, dar uma volta ao redor da
Basílica de Santos Pedro e Paulo, cair numa avenida que leva em direção à Basílica de São
Paulo... em suma, vai continuar com as ações da sua vida, que durarão o quanto durar a sua
vida. Mas haverá sempre (agora o sabemos) um olho virtual que o seguirá: uma câmera
invisível, que não deixará escapar nenhuma das suas ações, ainda que mínimas, e as
reproduzirá idealmente – ou seja, as escreverá cinematograficamente. Por mais infinita e
contínua que seja a realidade, uma câmera ideal poderá sempre reproduzi-la, na sua
infinidade e na sua continuidade. O cinema é, portanto, como noção primordial e arquetípica,
um contínuo e infinito plano-sequência.

Pergunta: Mas então, talvez, nós tínhamos razão. O que preside a sua poética literário-
cinematográfica – isto é, o seu amor sentimental, religioso e pragmático pela realidade –
preside também a sua linguística e a sua gramática do cinema.

Resposta: Sim, neste ponto aceito que se amarrem os fios de minha unidade. Mas apenas
precisamente aqui embaixo, neste nível específico.

Na realidade, a minha tradução em termos gramaticais desta minha ideia de cinema – que
deriva do que eu sou – não se combina nem se confunde com a minha tradução da mesma
ideia em termos expressivos e poéticos (isto é, concretamente, nos meus filmes). A analogia é
superficial, a questão é mais profunda.

Tentarei enunciá-la com palavras simples e um pouco ingênuas.

No fundo está, portanto, aquele meu amor pela realidade – já definido impudicamente várias
vezes. Traduzindo tal amor em termos linguísticos, sou levado a afirmar que o cinema é uma
língua que jamais se afasta da realidade (é a reprodução dela!), e portanto é um infinito
plano-sequência (a relação é a mesma entre língua oral e língua escrita). Mas este plano-
sequência é um séquito ininterrupto de planos[6] (de Aprà sentado há um longo plano fixo,
de Aprà se levantando e andando até a porta um plano panorâmico, que é porém uma
sequência muito acelerada de vários planos fixos, etc.). O monema dessa língua escrita da
realidade é portanto aquilo que em termos técnicos (que estão destinados a tornarem-se
duplos dos termos filme-linguísticos) é chamado de plano: o monema-plano é portanto a
unidade de primeira articulação[7]. Na verdade, porém, um plano não é nada mais que uma
composição de objetos, que portanto, por analogia aos fon-emas que compõem o monema
linguístico, eu chamo de cin-emas.

A minha visão do cinema como língua é portanto uma visão "difusa" e "contínua": uma
reprodução, ininterrupta e fluente como a realidade, da realidade. Aqui, portanto, o meu amor
pela realidade abraça abstratamente toda a realidade, da superfície às profundezas, dos pés à
cabeça: é uma declaração de amor como ato de fé, imperturbável e teórica. Passemos agora à
poética, ao estilo, à feitura concreta dos filmes. Nos meus filmes, o plano-sequência é
praticamente inexistente! É quase completamente ignorado: ou então, ele é tão breve que dura
por uma única ação. Nunca abarca uma série de ações. Existiria aqui, então, uma contradição
com a minha noção primordial e arquetípica do cinema, isto é, o plano-sequência
ininterrupto, que tanto alardeei como uma reprodução da realidade na sua essência e na sua
duração?

É claro que há aqui uma contradição. Mas as contradições, vocês sabem, são todas aparentes.

Na verdade, o mesmo amor irrefletido pela realidade que, traduzido em termos linguísticos,
me faz ver o cinema como uma reprodução fluente da realidade, é o que, traduzido em termos
expressivos, me fixa perante os vários aspectos da realidade (um rosto, uma paisagem, um
gesto, um objeto), quase como se estivessem imóveis e isolados do fluir do tempo.

Em suma: conceber o cinema como um infinito e contínuo plano-sequência não tem nada de
naturalista. Pelo contrário! É o plano-sequência que, concretamente (nos filmes individuais),
é um procedimento naturalista (isto por si só: certamente não é o caso se for complementado
pela oposição de outros procedimentos). Eis porque eu evito o plano-sequência: porque é
naturalismo e, portanto... natural. O meu amor fetichista pelas "coisas" do mundo me impede
de considerá-las naturais: ou as consagra ou as profana violentamente, uma a uma: não lhes
dá um justo fluir, não aceita este fluir, mas as isola e idolatra, mais ou menos intensamente,
uma a uma.

Por causa disso, no meu cinema o plano-sequência é completamente substituído pela


montagem. A continuidade e a infinidade linear daquele plano-sequência ideal que é o cinema
como língua escrita da ação faz-se uma continuidade e infinidade linear "sintética", pela
intervenção da montagem.
Ora, a diferença entre o cinema e o filme, todos os filmes, consiste propriamente nisso: que o
cinema possui a linearidade de um plano-sequência infinito e contínuo – analítica – enquanto
que os filmes possuem uma linearidade potencialmente infinita e contínua, mas sintética.

Há autores que, por um amor indulgente e naturalista pelas coisas do mundo, procuram
reproduzir em seus filmes uma linearidade analítica que tenha tanto quanto possível a mesma
duração da realidade; outros diretores, pelo contrário, são a favor de uma montagem que
torne tal linearidade o mais sintética possível (eu pertenço a esta última categoria).

Pergunta: O cinema-verdade...?

Resposta: O cinema-verdade apenas ilusoriamente aproxima-se mais do que outras


concepções cinematográficas da noção arquetípica de cinema como reprodução pura da
realidade: o cinema-verdade pode render filmes tão sintéticos/de montagem quanto Outubro
(aquele desagradável filme de Eisenstein). Marco Ferreri, que eu saiba – num filme que mais
tarde Ponti reduziu a um episódio, manipulando-o abjetamente –, já tentou fazer planos-
sequência que tivessem duração análoga às ações reais. Mas tudo isso resolveu-se em
expressionismo! Numa exasperação estilística quase obsessiva! Evidentemente o naturalismo
é coisa que corre pelas veias; e mistura-se com uma ideologia de "aceitação" resignada,
indulgente ou crepuscular. Tal soro não circula nas veias de Ferreri, evidentemente. Então, ele
reproduz a realidade na sua duração real por sadismo: isto é, a duração real de uma ação, na
sua reprodução, mostra toda a sua casualidade, isto é, a casualidade do tempo que passa – o
tempo irreal, no qual o orgânico consome-se e perece – o tempo ao qual não estamos
acostumados – e, bem, esse tempo, se reproduzido materialmente e não naturalisticamente,
revela-se em todo o seu mísero e assustador horror. Também o naturalismo é um truque e uma
manipulação. De Sica é seu mestre, seja nos nos seus filmes belos, seja nos medíocres...

Pergunta: Resta-nos ficar remoendo a sua ideia de "semiologia da realidade": poderia deixá-
la um pouco mais precisa?

Resposta: Ha, ha, ha (ri). Bem... sim. O título do livro no qual reunirei os meus ensaios sobre
cinema (muito contraditórios, porque cada um representa um momento do meu pensamento,
superado pelo seguinte) será talvez "O cinema como semiologia da realidade". Aconteceu
comigo, em suma, aquilo que aconteceria a um sujeito que estudasse o funcionamento do
espelho. Ele coloca-se perante o espelho, o observa, o examina, toma notas: e enfim, o que
vê? A si mesmo. Do que ele toma consciência? Da sua presença material e física. O estudo do
espelho o remete fatalmente ao estudo de si mesmo.

Assim acontece com quem estuda o cinema: já que o cinema reproduz a realidade, acaba
sendo remetido ao estudo da realidade. Mas de um modo novo e especial, como se a realidade
fosse descoberta através da sua reprodução, e certos mecanismos expressivos seus só
saltassem aos olhos nessa nova situação "refletida".

O cinema, na verdade, reproduzindo a realidade, evidencia a expressividade desta, que


poderia ter-nos escapado. Faz, em suma, um semiologia natural dela.

Eu parti daqui.

Tomemos novamente Aprà.

Aprà é uma realidade.

A realidade é uma linguagem.

Logo, Aprà fala, mesmo fora da sua linguagem escrita-falada (o seu Italiano de homem de
cinema).

Eu recebo informações sobre Aprà que me vêm diretamente da realidade Aprà.

Antes de tudo, há a linguagem da sua presença física, ou fisionomia.

Desta, recebo informações de caráter psicológico, ou psico-físico.

Depois, há a linguagem de seu comportamento (como está sentado, como se veste, etc.).

Desta, recebo informações de tipo social.


Por fim, há a linguagem da sua linguagem.

Linguagem metonímica e sintagmática?

E as grandes lassas[8] sintagmáticas da linguagem da realidade, seriam elas os "fenômenos"?


Mas detenhamo-nos aqui, e até Pesaro '67[9].

Pergunta: Bem... diga-nos, ao menos, quais novas sugestões você considerou ou quais
atualizações você se viu forçado a fazer depois de ler os últimos ensaios de Metz (Cahiers du
Cinéma #185) e de Barthes (entrevista publicada na Cahiers du Cinéma #147 e republicada
neste nosso número).

Resposta: Metz critica, em parte, nesse seu ensaio, a minha noção de "cinema de poesia",
dizendo que o "cinema de poesia" já existia nas origens da história do cinema. Mas, em
primeiro lugar, eu não estava falando do "cinema de poesia" stricto sensu, como sendo a
forma principal do cinema moderno; a minha era uma noção abstrata, que valia para todos os
tempos (como a "língua da poesia" é uma expressão válida tanto para a Grécia antiga quanto
para o século XVIII ou para nós). Em segundo lugar, eu mesmo já tinha dito que o cinema
das origens era um cinema de poesia. Por dois motivos: 1) porque, a não ser em estado
embrionário, ainda não estava formada uma organização industrial cinematográfica que
pretendesse uma "narrativa" convencional; 2) por causa da restrição técnica do mudo. O
advento da industrialização do cinema e do sonoro fizeram do cinema essencialmente uma
"língua de prosa narrativa" (não faço aqui um juízo de valor). Hoje, o "cinema de poesia"
ressurge: um sinal de que a indústria pode encontrar um circuito "alternativo" de distribuição,
para elites; e sinal de que uma coagida unidade linguística se desfez, de que a língua
cinematográfica está se articulando. Surgem, portanto, novas "restrições" prosódicas e novas
"permissões" métricas, diferenciando os vários tipos de cinema.

Pergunta: E quanto a Barthes?

Resposta: Ah, a entrevista dele me parece extraordinária. Gostaria de me deter nela mais
longamente, e também de ir além dos problemas estritamente cinematográficos (aliás, fiz isso
num artigo, "La fine dell'avanguardia", que está para sair no número 3-4 da Nuovi
Argomenti).
Aqui, me limitarei a dizer: sim, é justo, para fins linguísticos, tomar emprestado de Jakobson
essas duas noções prosódicas ou retóricas que são a metáfora e a metonímia (de resto, eu
mesmo, ainda que Metz me reprove, já tinha feito a mesmo operação, falando de estilemas
que se tornam sintagmas, dado que as várias "paroles" cinematográficas nascem todas
precisamente sob o signo da prosódia e da retórica; e não existem "paroles" cinematográficas
fora dos filmes narrativos, com excessão dos documentários, que, porém, sempre obedecem a
regras prosódico-retóricas). O cinema é, portanto, sem mais – Barthes tem razão, e uma razão
brilhante –, uma arte metonímica. E justamente: a natureza da sua língua não é sígnica, mas
figurativa: a sua estilização que leva à escrita como alfabeto não é uma estilização dos signos,
mas dos sintagmas, isto é, da montagem.

Mas, fazendo isso, Barthes define o cinema enquanto "arte", "obra de arte" e, no caso
específico, "arte narrativa" (no cinema "sempre acontece alguma coisa", diz ele, "sempre há
uma história"). Não sei se podemos generalizar essa definição a todo o cinema, ao cinema
enquanto língua e não enquanto linguagem artística.

Se eu quisesse reconduzir essa genial intuição de Barthes à minha teoria (tão grosseiramente
esboçada), eu diria que: "Não é o cinema que é uma arte metonímica, mas a realidade que
é metonímica".

São os "fenômenos" do mundo que são os "sintagmas" naturais da linguagem da realidade. O


cinema, "reproduzindo tais fenômenos", isto é, apresentando-se como língua escrita da
linguagem viva da realidade, é, por sua vez, metonímico. E a sua metonimicidade ao fim não
é outra coisa que a "linearidade" com que a realidade nos fala. Em suma, os planos de um
filme não são substituíveis, como o são as ilustrações de um almanaque, porque não são
substituíveis os objetos da realidade que a sequência de planos representa de acordo com a
sequência em que esses objetos apresentam-se naturalmente a nós.

Não posso substituir ou remover planos particulares; mas posso substituir ou remover
sintagmas particulares (as sequências): porque a convencionalidade e, portanto, a liberdade
do cinema reside na montagem, e não nos planos individuais. É da montagem que advém a
estilização.
Enquanto que, como eu já disse, o plano-sequência do cinema ideal que "escreve"
virtualmente a realidade na sua ininterrupta e infinita fisicalidade é linear, a montagem retém
tal linearidade, mas a reduz a segmentos: isto é, a sintetiza.

Em conclusão: existem hoje muitos autores que fazem de tudo para que "não aconteça nada"
no cinema, isto é, alinham-se ao "nouveau roman" e com certas vanguardas que falam em
"anti-romance", ou de "romance sem romance", etc. (eu não acredito nisso, porque toda
forma de arte e de linguagem artística não faz outra coisa que evocar a realidade, e sempre
acontece alguma coisa na realidade, porque o tempo passa, ou pelo menos parece passar; e
essa é a ilusão da nossa vida). Bem: suponhamos, hipoteticamente, que haja um filme onde
"não acontece" nada, ou que seja, no mínimo, o menos narrativo possível (hipótese mais
aceitável). Digamos – sejamos honestos –, um filme escrito na "língua da poesia", um filme
que seja "cinema de poesia" em grau máximo. Perante este espécime laboratorial, seria ainda
válida a definição de Barthes do cinema como arte metonímica? Um filme de poesia poderia
muito bem jogar com a contínua substituibilidade dos planos (uma série de planos justapostos
segundo um séquito lírico e não narrativo; ou então uma série de planos simbólicos, cada um
finito em si mesmo, etc. etc.).

A definição de Barthes, portanto, é esplêndida; mas serve para definir um "cinema de prosa
narrativa", como se isso fosse todo o cinema, e como se não existisse uma "língua
cinematográfica", mas existisse aquela única linguagem artística que é um conjunto de filmes
particulares.

Pergunta: Poderia nos dar algumas observações finais quanto a essas particularidades dos
seus textos "O cinema de poesia" e "A língua escrita da ação"?

Resposta: Uma conclusão um pouco mecânica, emblemática.

O cinema, enquanto língua escrita da realidade, provavelmente tem (e isso ficará mais claro
nos anos vindouros) a mesma importância revolucionária que teve a invenção da escrita.
Antes de tudo, esta última "revelou" ao homem o que é a sua língua oral. Certamente, esse foi
o primeiro passo da nova consciência cultural humana nascida da invenção do alfabeto: a
consciência da língua oral ou, simplesmente, a consciência da língua. O segundo movimento
revolucionário é o que Benevuto Terracini descreveu numa polêmica com Saussure
("Conflitti di lingue e di cultura"): ou seja, um amadurecimento do pensamento que, se antes
representava-se "naturalmente" na língua oral, pode representar-se apenas "conscientemente"
na língua escrita. Por fim, a língua escrita revelou e acentuou a "linearidade" da língua (que,
quando falada, é complementada pela entonação e pelo gestual).

Os mesmos procedimentos revolucionários que a língua escrita trouxe em relação à língua


falada, o cinema traz em relação à realidade.

A linguagem da realidade, sendo natural, estava fora da nossa consciência; a partir do


momento que nos aparece "escrita" pelo cinema, não pode deixar de exigir uma consciência.
Antes de tudo, a linguagem escrita da realidade nos fará descobrir o que é a linguagem da
realidade; e terminará enfim modificando o nosso pensamento sobre esta, fazendo das nossas
relações físicas, ao menos, com a realidade, relações culturais.

Barthes, que tanto ampliou a noção de "escrita", deve estar com água na boca com essa minha
ideia do cinema como "escrita". Não sei... Por exemplo, Barthes contrapõe a "linearidade" da
escrita com o "movimento devorador" da língua oral: será que é uma contraposição que pode
ser feita também entre a escrita da realidade e a realidade? O cinema então falaria a nós
segundo uma concentração linear, enquanto a realidade falaria a nós segundo um "movimento
devorador"? Etc., etc.... E ainda: na realidade, não existe a "árvore": existe uma pereira, uma
macieira, um sabugueiro, um cacto, mas não uma árvore. Assim, o cinema não poderá
"reproduzir" (escrever) uma árvore: reproduzirá uma pereira, uma macieira, um sabugueiro,
um cacto, mas não uma árvore. Exatamente como nas primitivas línguas cuneiformes.
Portanto, a língua do cinema – que é o produto de uma técnica unida a determinada época
humana, precisamente por esta ser técnica –, teria ela algum ponto de contato com o
empirismo dos primitivos? Etc., etc....

Então, com o cinema, a escrita perde novamente a sua "natureza sígnica" e recupera a arcaica
"natureza figural"? Que relações existem entre o empirismo devido às necessidades físicas
dos homens das cavernas e o empirismo devido às necessidades técnico-produtivas do
homem contemporâneo?

O signo, com o cinema – o im-signo[10] – recupera a sua força arcaica de sugerir


eideticamente, através da violência física da sua reprodução da realidade?
***

E, para voltar à minha pessoa, a passagem da escrita literária ao cinema é um caso de


modernidade extrema ou de regresso? Já disse que faço cinema para viver de acordo com a
minha filosofia, isto é, minha vontade de viver vitalmente sempre no nível da realidade, sem
interrupções mágico-simbólicas do sistema de signos linguísticos. Mas que horrendos
pecados não comporta tal filosofia? Já a chamei de "ação", "irracionalismo", "pragmatismo",
"religião": tudo o que sei serem os aspectos mais negativos e perigosos da minha civilização.
Os mesmos aspectos, por exemplo, de um certo fascismo!! No Vale de Josafá[11], terei eu de
responder pela minha consciência ter se curvado aos atrativos (que se identificam) da técnica
e do mito?

[Este texto é o resultado de uma série de conversas de Adriano Aprà e Luigi Faccini com
Pier Paolo Pasolini ao longo de dezembro de 1966. Ele foi inteiramente redigido por
Pasolini, substituindo a tradicional entrevista gravada.]

Traduzido do Italiano por Gabriel Carvalho

[NOTAS]

[1] Em Italiano, o substantivo "film" não varia entre singular e plural. [N. do T.]

[2] Em Francês no original. Literalmente, "Língua" e "Palavra"; mas os termos possuem um


significado teórico particular na linguística de Ferdinand de Saussure. [N. do T.]

[3] Pasolini parece usar "carisma" no sentido teológico. [N. do T.]

[4] Outra referência ao campo da linguística, ao conceito da "dupla articulação da linguagem"


de André Martinet: a primeira articulação é a decomposição do significante linguístico em
monemas, as unidades mínimas do significado; a segunda articulação é a decomposição do
significante nas unidades mínimas fonéticas, os fonemas, sons desprovidos de significado
intrínseco. Os "cin-emas" (neologismo propenso à confusão criado por Pasolini) seriam os
objetos reais que aparecem num plano fílmico, e seriam então comparáveis aos fon-emas –
elementos concretos, por si só desprovidos de significado. [N. do T.]

[5] Terminologia pasoliniana: lin-signos são signos linguísticos, em oposição aos im-signos
(signos imagéticos). [N. do T.]

[6] O termo italiano inquadratura pode se referir tanto ao enquadramento enquanto uma
característica do plano quanto ao próprio plano enquanto unidade; o traduzimos sempre como
"plano". Essa ambiguidade parece moldar o próprio pensamento de Pasolini: o "plano-
sequência da realidade" é composto de uma série de "enquadramentos", podendo assim ser
decomposto em "planos" individuais. No Italiano, o termo piano é utilizado única e
exclusivamente na expressão piano-sequenza, tomada de Bazin (plan-séquence). Uma boa
explicação etimológica (em Italiano) pode ser lida aqui:
https://www.treccani.it/enciclopedia/inquadratura_(Enciclopedia-del-Cinema)/
[Agradecimentos a Giovanna Mastena pelo esclarecimento etimológico. N. do T.]

[7] Ver a nota nº5. [N. do T.]

[8] No original, lasse, um tipo específico de estrofe comum na poesia medieval,


principalmente a francesa (laisse) mas também italiana, mais tarde retomada na poesia
moderna, que não possui um número fixo de versos (extendendo-se, assim,
indeterminadamente). [N. do T.]

[9] Provável referência à edição do Festival de Cinema de Pesaro seguinte à entrevista; Aprà
foi curador do festival durante vários anos. [N. do T.]

[10] Ver nota nº5. [N. do T.]

[11] O vale do Juízo Final. [N. do T.]

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