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A LGUMAS QUESTÕES SOBRE O DOCUMENTÁRIO E OUTROS

TANTOS EQUÍVOCOS

Manuela Penafria∗

R ESUMO : Este texto é uma breve dissertação sobre aquelas que poderão ser as principais questões, assim
como os principais equívocos a respeito do filme documentário.
PALAVRAS - CHAVE : documentário; questões; equívocos.

da diversidade, equitativa ou, pelo menos, incenti-


vadora e promotora de diferentes géneros que re-
presentem a escola.
Questão 1
Mas, poderá interessar, também, a entidades fi-
ETERNA e velha questão: o que é um docu- nanciadoras que não raro colocam um orçamento
A mentário? Ou, consequentemente, qual a di-
ferença entre documentário e ficção?
bem mais modesto para o documentário que para
a ficção. Esta aparenta ser mais dispendiosa pois,
Poderia aqui citar uma bibliografia imensa logo à partida, necessitará de cenários e de pagar
onde estas questões são discutidas. Mas, tendo a atores. Interessa aos festivais de cinema, às pro-
em conta que ainda nenhuma definição é unanime- dutoras, às universidades que nas suas dissertações
mente aceite e, consequentemente, uma demarca- e teses incentivam à delimitação do objeto de es-
ção clara entre documentário e ficção não tem sido tudo, etc. Mas, haverá sempre exceções, como o
satisfatória nem contundente, o melhor modo de Festival Indie Lisboa que faz programação tendo
responder a uma questão é colocar-lhe outra ou ou- em conta a duração (curtas e longas) e não o gé-
tras questões. Assim, pergunto: quem beneficia da nero.
existência de uma definição para o documentário? Diversas serão as entidades ou pessoas para
A quem ou por que razão interessa uma separação quem uma separação entre géneros é útil, seja por
entre documentário e ficção? boas seja por menos boas motivações.
E a resposta poderá ser longa e apresentar ra- Mas, o meu propósito não é descartar nem
mificações. Uma definição e, consequentemente, esquivar-me à questão sobre a definição e sepa-
uma separação clara entre documentário e ficção ração entre géneros. Há aqui duas possibilida-
poderá interessar às escolas e estudantes de ci- des: por um lado, dentro da Academia, a discussão
nema, seja pela vontade de afirmação de uma iden- revela alguma dificuldade em lidar com objetos
tidade artística seja por necessidade de uma eficaz de estudo de contornos indefinidos fazendo pouca
gestão dos recursos humanos e materiais. Mas, aos justiça à efetiva prática cinematográfica; por ou-
estudantes interessará menos que às escolas, pois tro lado, talvez por estarem libertos de exercícios
o hibridismo é a imagem de marca da época atual. académicos, os cineastas mais facilmente aceitam
Por exemplo, para as escolas, a distribuição orça- que na sua filmografia constem objetos indefini-
mental (quando e sempre que existe) é, em nome dos. Em certa medida todos os filmes o são. Todo
∗ Universidade da Beira Interior/Labcom.IFP. O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer forma
Texto publicado originalmente na Revista Septima em: https://se de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transforma-
ptimaes.wordpress.com/2018/02/01/algumas-questoes-sobre-o-d ção da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa auto-
ocumentario-e-outros-tantos-equivocos/ rização do editor e do(s) seu(s) autor(es). O artigo, bem como a
autorização de publicação das imagens, são da exclusiva respon-

c 2018, Manuela Penafria. sabilidade do(s) autor(es).

c 2018, Universidade da Beira Interior.
Manuela Penafria

e qualquer filme pode ser entendido como uma fic- imediata seria pela autoria ou subjetividade. No
ção uma vez que nenhum filme pode substituir, entanto, aos bons jornalistas é reconhecida uma
efetivamente, a experiência vivida de um aconte- marca autoral ou subjetiva, uma marca própria sem
cimento. E, de igual modo, todo e qualquer filme que isso interfira no seu profissionalismo. Histo-
pode ser entendido como um documentário uma ricamente, desde os anos 30, década de ouro do
vez que é sempre cultural, política, social e/ou his- Movimento Documentarista Britânico, a diferença
toricamente datado e reflete o modo de ser e viver reside, essencialmente, nos procedimentos adota-
de uma determinada época. A ficção é um docu- dos para abordarem o mundo quotidiano. O au-
mento. tor de uma reportagem deverá seguir pressupos-
Ainda que mantenha uma nebulosa sobre este tos jornalísticos (apresentar o quem, o quando, o
equívoco, a melhor resposta que já encontrei é, onde, o como e o porquê e adotar procedimen-
precisamento, a de um cineasta. A propósito do tos considerados objetivos do ponto de vista jor-
seu filme Aquele querido mês de agosto (2008), nalístico, como seja a apresentação do depoimento
Miguel Gomes afirma: "Documentário? Ficção? das diferentes pessoas envolvidas num mesmo as-
A meio deste filme vemos uma ponte: a ponte ro- sunto). Para além disso, o jornalista segue um có-
mana de Coja sobre o rio Alva, da qual se atira digo deontológico. Já no documentário, embora
Paulo “Moleiro”. Sem querer parecer Confúcio, existam recursos que imediatamente lhe são asso-
diria que de qualquer uma das margens que esta ciados (como o plano-sequência) não existe qual-
ponte une se avista perfeitamente a outra. E que quer obrigatoriedade formal estabelecida à partida.
o rio é sempre o mesmo."2 Por certo, aqui o rio é Por outro lado, o documentarista não possui ne-
uma metáfora para "cinema"que possui duas mar- nhum código deontológico escrito; a ética profissi-
gens, uma é o documentário a outra a ficção. onal está apenas dependente dos critérios de cada
Dentro da Academia, Vivian Sobchack (a- realizador. Se na reportagem existe um conjunto
poiando-se em Jean-Pierre Meunier, da Université de procedimentos que devem ser aplicados, não
Catholique de Louvain, Bélgica) é quem melhor dependentes do tema; no documentário é o tema
ilumina a questão: quando mais o espectador de- que determina a forma. Documentário e reporta-
pende do ecrã para perceber e obter conhecimento gem tocam-se, mas/e/ou separam-se.
sobre o que aí se passa, mais o filme se enquadra na
classificação de "ficção"e, pelo contrário, quando Questão 3
menos o espectador depende do ecrã, mais pró-
ximo está o filme de ser um documentário. Tudo O que fazer para fazer um documentário?
isto, independentemente da catalogação efetiva do Comecemos com uma questão para responder
filme.3 à questão: se não se sabe, com clareza, o que é um
Em suma, no documentário há ficção e esta documentário, como é possível realizá-lo/produzi-
está impregnada de documentário. Por exemplo, lo? Possível resposta: partir, sempre, da observa-
podemos sempre ver os filmes de ficção científica ção daquilo que nos rodeia, seja o que nos é mais
como o melhor documento para acedermos ao ima- próximo, seja o que nos é mais distante. Observar
ginário sobre o espaço sideral e seus eventuais ha- é a primeira e melhor atitude que um realizador
bitantes. pode adotar, caso pretenda fazer um documentá-
Quem gostar de cinema tanto se importa de ir rio. O ponto de partida é encontrar no mundo um
ver um documentário como uma ficção. São os qualquer aspeto que motive um filme. Para tal, a
filmes que vêm assim catalogados. Ter os filmes, observação sobre o que existe ou acontece é fun-
logo à partida, separados por catalogações é assu- damental. Se as imagens e sons de um documen-
mir que são os espectadores que estão catalogados. tário dizem respeito ao mundo, ao que é exterior
E um espectador é, sempre, antes e acima de tudo, e existe fora dessas imagens e sons – ou seja, à
alguém interessado em cinema. vida das pessoas e acontecimentos do mundo – fa-
zer um documentário implica ter consciência que o
material de trabalho do documentarista não é ape-
Questão 2
nas o mundo, mas, também, as imagens e os sons
Outra eterna e velha questão: qual a diferença en- que, por mais ligadas que estejam a esse mundo,
tre documentário e reportagem? A resposta mais possuem uma autonomia própria. E é essa relação,
2 In: "Nota do realizador | Miguel Gomes", Doc’s Kingdom film experience. In J.M. Gaines & M. Renov (Eds.), Collecting
2008. visible evidence, University of Minnesota Press, 1999, pp. 241-
3 Vivian Sobchack "Toward a phenomenology of nonfictional 254.

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Algumas questões sobre o documentário e outros tantos equívocos

simultânea, de dependência e autonomia que é su- podemos acrescentar as novas obras que se desig-
posto ser a matéria-prima do realizador e equipa. nam de webdocumentário ou documentário intera-
A partir deste pressuposto a criação é livre. tivo. Para organizar ou re-organizar o “caos” vi-
sual e sonoro atual é ao documentário que será útil
recorrer. Mas outras manifestações se apresentam
Questão 4
no atual panorama digital e interativo que prefigu-
Na história do cinema, qual foi o primeiro docu- ram o desvio da realidade próprio da ficção: vide-
mentário? ojogos, realidade virtual,. . .
Mais uma questão de difícil resposta, pelo me- As questões aqui colocadas não esgotam aque-
nos, de uma resposta clara e definitiva. Suposta- las que poderiam ser colocadas a respeito do do-
mente, os irmãos Lumière inauguraram a vertente cumentário, outras seriam possíveis, por exemplo:
realista do cinema e Georges Méliès a ficção, o quais os recursos cinematográficos que lhe são tí-
fantástico, a fantasia. No entanto, é possível um picos; quais as suas características enquanto gé-
outro entendimento: os filmes Lumière são, no nero; qual a sua efetiva importância na história e
imediato, realistas e fantásticos. O que mostram estética do cinema; por que razões a ética se en-
em imagem, por exemplo, a saída dos operários contra mais ligada ao documentário, etc. –, mas o
da fábrica não são os próprios operários, mas uma que ressalta das questões colocadas é que as res-
imagem dos mesmos, uma sua reprodução, uma petivas respostas nunca são claras; ou são evasi-
cópia; e essa reprodução, essa cópia, como sabe- vas ou apresentam apenas possibilidades de res-
mos, pelo menos, desde Magritte com "Ceci n’est posta. Porventura, talvez nenhuma questão tenha
pas un pipe"– legenda do quadro de um cachimbo uma resposta clara. E, no caso do documentário,
– é, para o dizermos tendo em conta Méliès, uma talvez isso aconteça porque, de facto, se trata de
fantasia, uma ficção. As imagens Lumière são, em um filme indefinido por natureza ao qual se fo-
simultâneo, realistas (porque a partir delas existe ram acrescentando alguns equívocos. São estes
um reconhecimento cultural do que está em ima- que evocarei a seguir.
gem) e uma ficção (a imagem, qualquer imagem
é, logo à partida, um objeto autónomo em relação
ao que mostra, um objeto criado). Por outro lado, Equívoco 1
a própria imagem é, por natureza, realista, inde-
O termo "ficção"abarca, imediatamente, filmes di-
pendentemente de ser uma imagem que resulta de
versos – mais não seja, diversos géneros, do wes-
um evento encenado ou não encenado. Ao contrá-
tern ao drama, da ficção científica ao thriller – já o
rio da linguagem em que, por exemplo, a palavra
termo "documentário"aparenta não ter essa abran-
"cão"nos pode fazer pensar em diferentes cães, em
gência, está sempre associado a um determinado
imagem, é aquele cão e não outro. Assim, histori-
tipo de filme, aquele que possui um tema de impor-
camente, a primeira ficção e o primeiro documen-
tância social, cultural ou política, um estilo sóbrio
tário são coincidentes.
e um tom sério. Em poucas palavras: com falta de
criatividade cinematográfica. Facilmente se aceita
Questão 5 que a ficção se divide numa variedade imensa de
filmes. O termo "ficção"celebra diferentes géneros
Qual a atualidade do documentário?
e/ou interferência entre os mesmos. Já "documen-
O Youtube parece concretizar uma ideia muito
tário"parece ser um termo que esquece a sua di-
cara ao documentario: tudo filmar. As páginas
versidade para remeter para um filme que apenas
do Facebook rivalizam com as biografias e auto-
os espectadores com responsabilidade ou consci-
biografias mais clássicas. E, hoje, mais que nunca,
ência social, cultural ou política apreciam. Uma
as imagens de arquivo que apenas repousavam nos
espécie de "diz-me que filmes vês, dir-te-ei quem
arquivos oficiais, aumentaram exponencialmente.
és". A diversidade e criatividade temática e formal
A Internet é, hoje, uma imensa base de dados de
do documentário é um facto. Parece que ficção há
imagens e sons. Se o chamado “filme de compila-
muita, documentário há só um.
ção” ou "filme de montagem"sempre foi uma tra-
dição do documentário e se, hoje, a noção de "ima-
gem de arquivo"se alargou, é precisamente no do- Equívoco 2
cumentário que procedimentos mais sofisticados
de organização e re-organização de imagens e sons Para denegrir ou mesmo insultar um documentá-
se podem encontrar ou servir de inspiração. A isto rio (ou quem o fez) facilmente se diz que é uma

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Manuela Penafria

reportagem. Quando se pretende elogiá-lo, facil- mais tempo parece não contradizer um outro equí-
mente se diz que é bom porque parece mesmo uma voco já mencionado: documentário é sinónimo de
ficção. Na ficção, um mau filme é um mau filme. menor orçamento.
E um bom filme é, justamente, um bom filme. No
documentário, parece que é necessário convocar os Equívoco 5
"vizinhos"para suportar argumentos a favor e con-
tra. Um documentário representa a realidade. A ficção
assume-se, desde logo, como um desvio da reali-
dade e quando a ela se refere com maior ou menor
Equívoco 3 evidência é elogiado. No caso do documentário
abordar a realidade parece sinónimo de a represen-
Se um documentário tem uma imagem e um som
tar com veracidade, fielmente. Ora, um mapa não
cuidados, a dúvida se é mesmo um documentá-
tem uma escala 1:1, não seria nada prático e nem
rio surge com facilidade. Já na ficção, a pergunta:
por isso a sua veracidade é posta em causa.
isto é mesmo uma ficção? não é ouvida com tanta
Para terminar, algumas sugestões de visiona-
frequência. Quando a ficção se aproxima da reali-
mento, dez (as questões e os equívocos somados):
dade, fá-lo, aparentemente, de modo bem mais so-
fisticado que o documentário. Contudo, é no seio Mr. Death, the rise and fall of Fred A. Leu-
do próprio documentário que a ironia com ele pró- chter (1999), de Errol Morris.
prio tem surgido com bastante criatividade, pelos
filmes denominados mockumentary. Wolfpack (2015), de Crystal Moselle.

El Dorado XXI (2016), de Salomé Lamas.


Equívoco 4
Dark days (2000), de Marc Singer.
É sempre preciso mais tempo para fazer um do-
Santiago (2007), de João Moreira Salles.
cumentário que uma ficção. Esta afirmação tanto
pode ser entendida como uma objeção (por falta Arraianos (2012), de Eloy Enciso.
de tempo, faz-se uma ficção) ou um elogio (dedi-
car ou deixar que um tema se desenvolva durante A mãe e o mar (2014), de Gonçalo Tocha.
muito tempo é sempre melhor que criar uma ficção
A imagem que falta (2013), Rithy Panh.
e, também, melhor que apressar ou forçar a reali-
dade). Parece que na ficção, praticamente tudo se 33 (2002), de Kiko Goifman.
controla ou pode controlar, incluindo os tempos de
rodagem e montagem. E um guião previamente E um filme da UBI, Criados na Serra (2016),
programado e definido colabora para uma econo- de Maria Inês Mesquita, André Rodrigues e João
mia de tempo. Sobre este equívoco, ironicamente, Pais da Silva.

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