Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Oferta
Andarei mil léguas E terei dado apenas um passo.
Arrancarei o coração,
Empunhando-o como um archote E terei ofertado muito pouco.
Direi todas as palavras sábias Em todas as línguas sabidas E minha língua ainda será fraca.
Escreverei poemas a granel
Pondo neles minha luz mais recôndita
E minha arte permanecerá obtusa.
Depois de haver cumprido todos os deveres Ao final do dia, serei ainda a serva inútil.
Pois quanto mais Te busco Mais percebo a lonjura do caminho,
Quanto mais me delicio ante teus olhos próximos Mais me acabrunha a distância de Ti!
Faze-me propício cada momento hoje Assim como cada trecho do eterno depois,
Para a farta semeadura do Teu Reino E para a quieta adoração de Tua essência!
Sumário
Quando deus dá errado
1 - Quando deus morre... 17
(0 vazio do mundo)
• A metafísica do nada
• Onde Deus se insinua
2 - Quando deus se ausenta. 31
(0 vazio do cotidiano)
• Deus como objeto de consumo
• Deus reencontrado
3 - Quando deus tiraniza 45
(0 vazio do fanatismo)
• O poder divino
4 - Quando deus se pulveriza 53
(0 vazio dos falsos deuses )
• O deus institucional
• O deus ideológico
• O deus do mercado
• Deus dá esperança
Deus como Ele é
5 - Deus está na origem .. 73
• Criacionismo e evolucionismo
• A origem do mal
6 - Deus dá sentido ....... 85
• A racionalidade do sentido
• A subjetividade do sentido
• O sentido histórico
• O sentido da eternidade
7 - Deus se põe como fim 99
• A finalidade do ser no devir
• As finalidades equivocadas
8 - Deus habita em presença 109
• A natureza
• O outro
• Nosso melhor Eu
• A oraçáo e o Outro absoluto
9 — Deus se faz medida.. ,....123
• Critérios do bem, do verdadeiro e do belo
• Há um mal em nós?
10 — Deus se dá em amor. 139
• Pessoas mais perto de Deus
Primeira palavra
Deus pode ser a maior resposta, o sentido último, a meta mais alta. Pode ser nosso alvo
de perfeição e nosso aconchego mais próximo. Mas também pode se tomar um vazio,
quando se ausenta de nossa filosofia, quando contraria nossos desejos desordenados,
quando se faz um tirano à nossa miopia.
Porém não é Deus que se retira ou usa maldosamente seu poder infinito. Não é Deus
que se opõe à nossa felicidade. Ele está, Ele é, como uma rocha, lembrando a imagem dos
salmos. Sua bondade é constante, sua constância épe feita. Somos nós que imaginamos nos
ausentar de seu olhar, somos nós que lhe emprestamos nossa tirania e somos nós que
ainda não aprendemos onde está a felicidade.
Este livro pretende mergulhar o leitor numa meditação sobre Deus. Não é um tratado
teológico, mas talvez uma teologia poética, sem abandono da racionalidade.
A razão hoje anda com má reputação porque em seu nome cometeram-se abusos de
estreiteza e reducionismo da realidade. Mas também, como veremos, por interesse
daqueles que querem tomar todas as coisas obscuras e sem sentido, pulverizadas e
nadificadas. E preciso rea- bilitá-la, pois trata-se de um presente divino à criatura e ainda
é ela o maior antídoto contra o fanatismo, que nada mais é que irracionalismo.
A emoção não se opõe à razão, nem tampouco a apreensão poética da realidade. Ao
contrário, a melhor harmonia entre o sentimento, a beleza e a racionalidade é o que nos
leva mais perto da verdade e da perfeição.
Por isso, para falar de Deus, com reverência e com fidelidade à sua obra em nós, é
preciso ajustar a razão, afinar o senso estético e deixar-se tomar pela sublime emoção de
tocá-lo com os olhos da alma.
Será tudo isto rematada pretensão| Mas afinal, sou criatura, herdeira, filha... Se
posso meditar em Deus e nEle falar, se posso alcançá-lo na beleza de sua criação, se posso
racionalizar suas leis e se posso senti-lo bem perto, acariciando meu coração — éporque
Ele assim o quis, assim me fez e assim o permite.
Começarei pelo hoje, para chegar ao sempre. Na primeira parte do livro, constato o
desencanto do mundo atual e todas as doenças por que deus passa, desde a sua negação
até ao seu inchaço nas malhas do fanatismo. Então uso deus em minúscula, pois quando
desconhecido, renegado ou abusado, não se trata do Deus verdadeiro, mas apenas um seu
espantalho.
Na segunda parte, elevo-me a esse único Deus e procuro apalpá-lo por dentro e por
fora, por todos os lados — na sua imanência, quando presente em tudo e em todos e na sua
transcendência, quando em sua essência existe além, acima e adiante de tudo e de todos.
Que fontes me inspiram? Elas estão citadas em todas as partes do livro. Como o leitor
verá, muitas tradições estão presentes. Não podemos recusar nenhuma experiência
sincera de Deus, nenhuma abordagem elevada a Seu respeito. Minha convicção particular,
filosófica e religiosa, é espírita, nutre-se em Allan Kardec. Portanto, faço uma leitura
específica do cristianismo. Mas aqui não se trata de especificidade e sim de
universalidade. Sempre me identifiquei com vivências religiosas as mais diversas. Um
poema sufi, um trecho do Bhagavad Gita, um salmo bíblico, uma trova popular, um negro
spiritual — todas essas formas de expressão humana estão relacionadas a experiências
pessoais e coletivas, culturais e históricas de uma só realidade. Deus se mostra em todas
elas e em outras tantas.
Seria reduzir demais a Sua altura achar que Ele aceitasse o louvor e a gratidão apenas
de um grupo ou de uma igreja, de uma corrente ou de uma seita. Seria limitar demais a
capacidade humana de senti-Lo se apenas uma vertente religiosa, um culto específico
devesse possuir o caminho de acesso a Ele.
Por tudo isso, para melhor falar de Deus, vamos bus- cá-Lo, onde quer que seja. A
certeza de que Ele está sempre em toda parte conforta nossa alma e nos alimenta nesta
busca.
A autora
Quando deus dá errado
1 Quando deus morre (0 vazio do
-
mundo)
Deus não pode morrer, porque um de seus atributos é justamente o de ser
eterno. A mortalidade não pertence à natureza divina. Entretanto, no final do
século XIX, um louco, num livro escrito por um filósofo que de fato morreu louco —
o alemão Friedrich Nietzsche — declarou a morte de deus. E até hoje, muita gente
acreditou nesta morte, a civilização se perturbou com essa declaração, lançada a
esmo, sem justificativa ou motivo, pois a filosofia nietzscheana é feita de
aforismos, sem lógica ou argumentação, pois que abole a razão como categoria
confiável.
Não foi apenas Nietzsche que matou deus. Feuerbach, Marx, Freud e tantas
outras mentes brilhantes, enraizadas no século XIX, retiraram deus do mundo, da
história e da alma. Consideraram deus uma invenção humana, uma alienação, uma
ilusão.
O que ocorre, porém, quando deus é dado como morto, quando se quer afastá-lo
da compreensão das coisas? Aí Nietzsche, o chamado filósofo do martelo, é sem
dúvida o mais coerente com o ateísmo radical que professa: tira-se deus, tira-se o
fundamento e a inteligibilidade do universo. Tudo se torna caótico, sem sentido,
sem rumo, sem legalidade cósmica, sem medida... E perfeitamente coerente ao
mesmo tempo negar deus e negar a razão, e, ao mesmo tempo, desqualificar a
ciência e a filosofia, a moral dos valores universais e as religiões. Tudo o que
explica a realidade supõe uma inteligência por trás da razão de ser das coisas.
Mesmo que se negue a existência desse ser por trás dos seres, aqueles que
acreditam em conceitos como organização do universo, inteligibilidade do real,
finalismo das leis naturais, estão, ainda que inconscientemente, supondo uma causa
inteligente, uma origem pensante...
A ciência materialista, por isso, é ingênua, ao se supor na salvaguarda do
ateísmo. E Nietzsche, pelo mesmo motivo, é mais coerente em sua loucura: sem
deus, não há sentido, não há razão, não há ciência, não há nem mesmo filosofia.
Assim, a declaração nietzscheana da morte de deus desencadeou no mundo um
processo de morte generalizada. Hoje se fala em morte da história, morte da
ciência, morte da filosofia e do próprio sujeito. O que é isso? E que se arrancando
a base, a finalidade e a razão, consequentemente, desmancham-se as ferramentas
que supunham conhecer a realidade e o próprio conhecedor e ator da vida — o ser
humano. A crise do conhecimento, a crise de valores, a crise da ciência, a crise das
utopias (embora algumas se considerassem ateias guardavam sabores metafísicos)
— e todas as crises possíveis, assumidas hoje e que enchemas mentes e os livros
de perplexidades sem resposta, é uma crise da ausência de deus.
Se tudo é casual e incerto, se não existe nenhuma previsibilidade finalista na
natureza, se nada parece ter um sentido, estamos pendurados no vácuo — in-
sustentavelmente leves, como diz Milan Kundera, já no título de sua obra A
insustentável leveza do ser, um dos clássicos sintomáticos da literatura
contemporânea.
Mas como podemos conhecer um mundo caótico, como podemos agir neste
mundo, como podemos nos orientar no labirinto dos interesses pessoais e de
grupos, dos desejos multifacetados, dos fatos sem nexo, que nem sabemos se sáo
mesmo fatos ou apenas interpretações subjetivas (como diria Nietzsche, não há
fatos, apenas interpretações)? Como ter esperança e vontade de nos
encaminharmos para algum ideal de humanidade melhor, de mundo melhor, de
metas históricas a serem construídas, se a força das circunstâncias aleatórias
escapa de nossos dedos incertos e tudo não passa de um jogo de representações
simbólicas?
Essa é a sensação do momento em que estamos mergulhados. É claro que a
grande massa humana não partilha desse niilismo consumado (segundo expressão
de Gianni Vattimo, um dos representantes do pós-modernismo em pauta). Grande
parte da humanidade continua a crer em alguma forma de divindade, que sustenta
suas esperanças cotidianas. E a própria ciência tradicional, com seu ateísmo
presumido, ou pelo menos agnosticismo assumido, continua agindo como se o
universo tivesse uma ordem — senão ela não seria capaz de produzir uma
tecnologia que funcionasse. Quando um avião sobe e voa, quando um foguete chega
a Marte, quando um cirurgião cura uma pessoa, mesmo quando uma bomba atômica
mata milhares - a ciência nada mais faz que obedecer a leis naturais, para que os
inventos humanos funcionem. Se tudo fosse tão caótico e imprevisível, nada
funcionaria com certeza. E verdade que essa obediência às leis da física, da
matemática, da química ou da anatomia pode estar associada à desobediência a
outras leis — leis de fraternidade, de igualdade, de justiça... Mas esta é outra
questão, de que adiante falaremos.
A metafísica do nada
É impossível ao ser humano escapar da metafísica, do além do sensível, do
conceito, da abstração, da ideia... Os cientificistas do século XIX deram prova
disso: ao negar deus ou qualquer transcendência, adotaram algum elemento
metafísico para substituir o deus morto ou a alma perdida. Por exemplo, Marx e
Engels. Ateus, anti-essencialistas, no entanto, usavam a ideia da dialética, para
explicar a realidade histórica — uma dialética imanente na história, é verdade,
mas como conceito herdado de Hegel, a dialética é uma espécie de racionalidade
histórica, um sentido, que tem um finalismo... Trata-se assim de uma estrutura do
real, uma leitura além do sensível, metafísica.
Freud é outro exemplo. O médico austríaco pretendeu abolir a alma imortal,
uma essência humana além da matéria. Entretanto, a ideia do inconsciente não se
encaixa apenas na estrutura física do cérebro. A relação entre ego e superego, o
papel do inconsciente na vida psíquica do indivíduo - são também uma leitura
estrutural da psique humana, além dos neurônios e das sinapses cerebrais.
Poderíamos citar uma dezena de outros casos neste sentido. Por isso, aliás, que
os pós-modernos se põem à vontade para desconstruir o pensamento positivista do
século XIX, já que seus representantes não foram suficientemente fortes para
destruir todas as essências metafísicas.
Mas será que os niilistas consumados, a que se refere Vattimo, estão realmente
a salvo da metafísica? Veremos que não. Quando os contemporâneos se referem ao
nada, ao caos, ao vazio — ainda estão usando ideias, fazendo leituras abstratas e
metafísicas do real. Substituir deus pelo caos primogênito, o ser pelo náo-ser ou
pelo devir, a alma pelo vazio — é apenas inverter o pólo de visão das coisas.
Estamos lidando com algo ainda menos ponderável que os elementos da metafísica
clássica — porque é um algo irracional, menos demonstrável que as ideias de Deus,
de alma e de sentido.
No próprio Nietzsche, o pai do niilismo contemporâneo, há conceitos
unificadores e essencialistas, como a vontade de poder que caracteriza o ser
humano ou a lei do eterno retorno, que no fundo retoma a dialética hegeliana de
alternância de ser e náo-ser, no eterno devir... Por mais que se martele o real, nem
Nietzsche escapou de alguma forma de espírito.
Prova de que o nada se trata de um conceito metafísico (embora
auto-contraditório), está no fato de que os místicos de todos os tempos e de
várias tradições religiosas se referiram a Deus como um vazio. A sensação
nadificante do ser minúsculo diante do Ser maiusculo é muito forte nas correntes
místicas. Ao mesmo tempo, a ideia de um absoluto vazio também é recorrente.
No budismo, também há um processo de esvaziamento do eu e do cosmos.
Assim, o que caracteriza o niilismo não é o abandono de espiritualidade e de
metafísica, mas o abandono de categorias racionais para medir a realidade e a
sensação de esvaziamento de si. Anulação do eu, enquanto ser racional, ativo e
pleno. Anulação da divindade, enquanto Ser originário - por isso, o budismo é a
única religião sem deus, embora nem todos assim a considerem. Gandhi, por
exemplo, não aceitava a versão ateia do budismo.
Tanto no niilismo materialista, quanto no niilismo espiritualista, há o perigo da
inatividade, da impotência humana e portanto da passividade religiosa ou política.
Se nada somos, não podemos agir. Se não há razão para nos orientar, não há mais
parâmetros demonstráveis.
Assim o nada assume a forma de uma ameaça, é como um machado pendurado
sobre nossas cabeças, pronto a ceifar nossas esperanças, nossos ideais e mesmo a
nossa identidade individual e coletiva.
O esvaziamento, no caminho místico, pode ser parte de um processo para
atingir a plenitude. Podemos esvaziar a alma de pensamentos contraditórios, de
ilusões vãs, para nos sentirmos preenchidos por Deus. Podemos abolir nosso ego,
nos desapegarmos das ilusões, como quer a tradição budista, para alcançarmos
algo que é essencial — a iluminação, o estado de buda — que é uma espécie de
deificação.
Mas o nada não pode ser finalidade, não pode ser origem, não pode ser
permanência. A simples formulação dessa ideia embaraça a mente e provoca uma
angústia nauseante. Não é à toa que Sartre foi ao mesmo tempo autor de O Ser e o
Nada e de A Náusea. E justamente essa a sensação mais forte do mundo
contemporâneo.
Uma ausência de sentido, uma falta de perspectiva, uma sensação de
impotência diante do real'^ eis o que caracteriza nossa época. E isso porque o nada
assombra o mundo.
Lembro do livro e do filme História sem fim de Michael Ende, onde o problema a
ser resolvido por uma criança era salvar o mundo do nada, que estava devorando a
fantasia e a capacidade de sonhar do ser humano. Nada mais verdadeiro.
Esse monstro obscuro é fator de desagregação da consciência, da unidade do
real, da perspectiva histórica, da esperança de dias melhores para a humanidade.
Quando tudo se nadifica, nada sobra.
Onde Deus se insinua
Entretanto, mesmo onde e quando mais se nega deus, Deus se manifesta,
escondido dos olhos que o querem abolir. Mesmo neste mundo de perplexidades
niilistas, há sintomas de esperança e indícios de ações produtivas, de pessoas que
acreditam no futuro. Vejamos como ideias e projetos despontam anunciando
promissoras notícias, mas como a morte de deus acaba por torná-los
desenraizados.
A consciência ecológica brota como um ramo verde em nossos tempos. Até há
pouco na história, ainda náo compreendíamos a Terra como nossa morada celeste,
azul, semeada de verde, que precisa de cuidados carinhosos, para náo se exaurir,
ferida e explorada. Da Terra como nossa casa, uma só habitação, organicamente
ligada, podemos passar facilmente à sensação de ser a humanidade uma só família,
interdependente, rica e plural, mas fundamentalmente igualitária.
A ideia de unidade, de organicidade se transfere também para o conhecimento.
Como tudo se interliga na realidade, tudo deve se interligar no conhecimento.
Essas são intuições, conceitos, projetos que aparecem neste início de milênio, mas
foram anunciados pelo grande e esquecido educador checo Jan Amos Comenius, no
século XVII, já no seu tempo pacifista, ecumênico e idealizador da pansofia, a
sabedoria do todo e da pampaedia, o ensino do todo.
Mas a questão é que hoje, ao contrário do que era para Comenius, sem a origem
divina, o universo não tem unidade, é caótico, por isso toda unidade proposta do
conhecimento tenderá a ser uma unidade forçada. Sem a presença divina, a
natureza pode ser bela, útil e necessária à nossa sobrevivência, mas está longe de
ter a sacralidade inviolável que tem, se compreendida como criação. O ecólogo
mais elevado é Francisco de Assis, com seus louvores poéticos ao irmão sol, à irmã
lua, à irmã terra, nossa mãe. A natureza esvaziada de deus pode até desencadear
um respeito intelectual às suas leis, mas não um vínculo de reverência religiosa.
E estranho por isso falar em religação de saberes, se o universo está
fragmentado pelo caos. É estranho falar no planeta como nossa casa e na
humanidade como família, se tudo está vazio de alma, de raiz e de seiva...
Outra grande conquista de nossos tempos é a noção dos direitos humanos. Há
declarações internacionais e nacionais que reconhecem princípios universais de
respeito à dignidade do homem, à sua vida, à sua integridade física e moral, e a
outros direitos fundamentais de todo ser humano. Mas como pode haver princípios
unificadores reais se não há um parâmetro de justiça que se sobreponha às leis
locais, históricas, inventadas pelo homem? A noção de direitos humanos, embora
laicizada e esvaziada de menções religiosas, está fortemente enraizada no direito
natural, que deriva da ideia de uma natureza humana, dada, acima das
circunstâncias históricas, uma instância que iguala todos os seres, porque há neles
algo superior à animalidade que determina a lei do mais forte. E necessária uma
justiça que esteja além da história, numa fonte transcendente, embora seja ao
mesmo tempo descoberta e experimentada historicamente. Senão, os direitos
humanos não passam de boas, mas fracas, intenções.
Todas as propostas mais belas, todas as ideias mais emancipadoras, todas as
utopias mais esperançosas, todas as militâncias mais humanitárias tornam-se
meramente uti-litárias, enfraquecidas e facilmente abafadas pelos totalitarismos
ou pelos interesses monetários, se não se sustentam numa garantia do Absoluto,
numa visão sólida de que Deus paira como sustentáculo eterno de uma realidade
essencialmente boa, de que tais projetos e atitudes são pálidas manifestações.
É que graças a Deus, o ser humano nem sempre é completamente coerente.
Achando que podem dispensar deus, mas acreditando ainda no homem e lutando
pelo respeito à vida e pela melhoria do mundo, muitos estão na verdade a Seu
serviço, porque quando se sentem inflamados de amor à humanidade, estão
cumprindo Seu maior mandamento; quando veneram a natureza, estão em sintonia
com Sua obra e quando se empenham por um planeta melhor, estão trabalhando
pelo estabelecimento do Seu Reino na terra. Por isso que há ateus, embebidos de
fervor religioso por causas humanistas e dignas.
Mesmo quando deus morre, Deus renasce em toda parte, sobretudo no coração
humano.
2 Quando deus se ausenta (0
vazio do cotidiano)
O vazio que se deu pela morte de deus, no pano de fundo filosófico de nossa
era, se reflete no dia a dia, com uma forte sensação de ausência. Pela primeira vez
na história da humanidade, há um grande contingente de pessoas, embora não seja
a maioria, que não tem deus no seu cotidiano. Há aquelas que negam a existência de
um deus e há outras, que acreditam vagamente em algo, mas sua vida diária está
muito distanciada de qualquer vivência religiosa.
O que significa isso na prática? O primeiro efeito é a falta de esperança. Não
digo uma esperança tola, feita de uma expectativa meramente material, mas de
uma esperança de base, aquela que nunca morre, aquela que, segundo a mitologia
grega, foi um presente divino aos homens, a última dádiva que sobrou na caixa de
Pandora.
Sem deus, não há nenhuma garantia de algum dia haver justiça aqui ou em
qualquer parte. Sem deus, não há nenhum fundamento de crença irrestrita do bem.
Sem deus, não há amanhãs necessariamente promissores.
E o cotidiano, com isso, se esgota na canseira do trabalho, tão escravizante
neste contexto neo-liberal, se desfaz no desencanto das relações
desencontradas, tão próprias de um mundo de tempo corrido e sem espaço para o
cultivo de si e do outro.Que fazer com um dia a dia estafante, solitário, se não há
a possibilidade de um diálogo com um Ser que está perto e que aconchega a alma;
se não há a carícia de uma presença, enchendo o coração de conforto e paz? Que
fazer senão desmontar as relações, se não podemos enxergar a presença divina
que nos indica a bondade essencial do outro, e portanto uma permanente
esperança de atingi-la pelo amor? Que fazer senão desconfiar sempre, fechar-se
ainda mais, se não há um deus em todos os seres, que nos torna fundamentalmente
próximos, irmãos, familiares humanos?
Acordar a cada manhã e não ter a quem pedir um dia pacífico e útil; ver a glória
da luz matinal e não ter a quem agradecer a beleza que nossos olhos avistam e que
nossa alma bebe... Olhar à noite as estrelas, se a poluição o permitir, e não ter a
quem confidenciar sobre as dores sentidas e sobre as esperanças acesas!
Sofrer uma perda, uma tragédia, um problema e não poder orar, para buscar
uma força recôndita, um conforto supremo, uma bússola de inspiração! E para
quem se foi, o nada; e para a tragédia, apenas a pílula anti-depressiva.
Não é à toa que a depressão é o mal do momento. Ora, poderão dizer, mesmo as
pessoas que têm fé se encontram em estados depressivos: mas a fé pessoal
esmaece diante do nada ameaçador que paira na sociedade. É tão difícil manter a
fé, como chama que ilumina, quando nos expomos permanentemente aos ventos
enregelantes do nosso tempo!
Deus tem de ser cultivado a cada instante, para nascer em nós a cada pedra que
encontrarmos. O seu cultivo deve ser desde a prece sem palavras, que o olhar
eleva ao infinito, até às orações coletivas, partilhadas com outros de nossa fé. E
melhor ainda será cultivado, quando pudermos orar em conjunto com pessoas de
diferentes formas de fé — feito que apenas se esboça em nossos dias.
Dizia que é inédito na história humana essa ausência de deus no cotidiano. Em
todas as sociedades antigas, as divindades estavam presentes em cada passo do
desdobrar do tempo. Os ritos de passagem eram oficiados pelos deuses, as
mudanças das estações eram regidas por eles. Na sociedade que se fundou a partir
do cristianismo, Deus era cultuado a cada instante. Os dias eram nomeados
segundo as festas santas, as horas eram marcadas pelas orações.
Não se trata de fazer uma apologia nostálgica do passado, pois sabemos todos
o quanto de opressão podia haver num deus que era obrigatório, monopolizador e
institucionalizado. Apenas é preciso demonstrar o contraste com o nosso mundo.
Hoje, na sociedade capitalista, os dias são contados pelas datas de pagamento
do nosso salário e das múltiplas e opressoras obrigações financeiras, impostos,
taxas, para que possamos minimamente sobreviver com dignidade. (Os que estão
fora deste calendário se encontram na miséria e na exclusão.) As horas do dia são
vendidas às empresas ou aos governos, para funções cada vez mais polivalentes e
estafantes e cada vez menos remuneradas.
O tempo contemporâneo avança e nos espreme sempre mais numa luta
desesperada para nos mantermos no mercado de trabalho, com cada vez menos
espaço para nós mesmos, para quem amamos e para a presença de Deus.
Mesmo nos momentos do ano em que ainda subsistem festas religiosas — em
nossa sociedade de origem cristã, como a Páscoa ou o Natal — somos tomados por
um vazio completo de religiosidade. Porque essas são agora festas futilizadas por
coelhinhos, chocolates, papai-noel, compras, enfeites bregas e quase não há mais
nenhum resquício da verdadeira origem e significado destas celebrações.
E certo que tanto nesta sociedade global como na específica de cada país,
subsistem paralelamente comunidades que vivem ainda com as marcas
significativas da religiosidade cotidiana. Os judeus praticantes, por exemplo, em
seu Ionque Pur ou em sua Páscoa, os muçulmanos em seu Ramadã e preces e jejuns
e mesmo os milhões que frequentam as igrejas cristãs, simultaneamente em que
tem de viver no mundo das datas de salário e contas a pagar, reservam partes de
suas vidas para Deus, cada qual à sua maneira. (Mas veremos mais adiante, como
esse deus pode se desviar de novo para a tirania do passado.)
Deus como objeto de consumo
A ausência de deus é tão insuportável para as criaturas humanas, justamente
porque são criaturas, que quando nos deparamos com este vácuo aberto na vida, no
cotidiano, na alma, procuramos preenchê-lo de qualquer modo. E numa sociedade
onde tudo se vende e tudo se compra Ho alívio em anti-depressivos, a fuga da
realidade pelas drogas, o corpo e o desejo, o sonho e a fantasia — também
compramos e vendemos deus.
Não é um fenômeno novo este. As religiões sempre mantiveram relações
mercadológicas com a divindade. Há dois mil anos, um dos poucos atos de forte
indignação de Jesus foi justamente contra os vendilhões do templo. Observando o
comércio das coisas santas, o rabi judeu adotou uma atitude pouco habitual para
seu temperamento doce: expulsou os mercadores a chicotadas, derrubando mesas
e soltando pombas que seriam vendidas para os sacrifícios.
O movimento da Reforma, primeiro com seu antecessor Jan Huss, depois com
Lutero, ocasionou-se sobretudo como rebelião contra o comércio das indulgências,
praticado pelos papas medievais.
Em tempos épicos, porém, os abusos se davam de forma ostensiva, provocando
reações fortes das grandes almas. Francisco de Assis conduziu sua própria vida
como um libelo contra os interesses econômicos do clero.
Hoje, tudo se faz de forma descomprometida, light, quase natural. É que nunca
vivemos num período em que o mercado se tornasse tão soberano e onipresente na
vida humana. É natural que a religião também se transforme em mercadoria.
Entramos numa livraria e podemos comprar deus em doses dietéticas, em
uvrinhos de espiritualidade rala, inconsistente, facilmente consumível. Claro
que, em meio ao aluvião de inutilidades místicas, pin- çamos um ou outro título,
cujo autor vivência uma verdadeira experiência espiritual. Mas a maioria não
passa de fraude, de consolo vazio, para recuperar deu: de forma a não implicar
nenhum comprometiment mais profundo — e isso se faz em todas as corrente
remetendo-se às mais diversas tradições do Ocidente e do Oriente ou de
preferência misturando-as todas numa salada mística.
Bugigangas espirituais provocam a ilusão da presença de deus no cotidiano.
Pensamos nos agarrar a um amuleto, a um cristal, a uma mandala, a santinhos, como
se a sacralidade pudesse estar contida em objetos descartáveis, produzidos para
venda.
Mas deus não se torna consumo apenas nesta feira de livros e de objetos sem
conteúdo. Deus pode ser comercializado em qualquer templo, em qualquer lugar
sagrado.
Quando a religião se torna meio de vida e enriquecimento dos que se dizem
donos de um poder sagrado, quando promessas destes são oferecidas a troco de
dízimos e contribuições — então deus se faz barganha. E os fieis o compram,
porque têm saudades da presença divina, mas a querem de forma fácil, submissa
aos que o comercializam — estes garantem a eficácia salvadora da mercadoria. E
assim como compramos segurança, alimento e satisfação para o corpo, adquirimos
o mesmo para a alma, de forma rápida e sem esforço pessoal. Ao contrário, quando
a religião é vivida verdadeiramente é sempre exigente em relação ao engajamento,
ao compromisso, ao empenho do adepto.
É como se por um instante, abandonássemos a azáfama de nosso cotidiano e
fôssemos rapidamente garantir a sobrevivência de nossa alma. Cumprida, sem
muita adesão interior, essa necessidade premente, voltamos logo às nossas
ambições terrenas e aos nossos caprichos cotidianos, aliviados por já termos nos
desobrigado de nossos deveres espirituais.
A ausência de deus, pois, no cotidiano deste mundo pós-moderno, acaba
trazendo ao cenário da vida humana um deus pasteurizado, vendável, que pouco dá
e pouco exige, porque esperamos mais do mercado do que de deus e nos damos mais
à luta pela sobrevivência, mas também pelo supérfluo, do que à luta pelo Reino de
Deus. Esquecemo-nos daquele conselho do Cristo: “procurai em primeiro lugar o
Reino de Deus e sua justiça e todo o resto vos será acrescentado”.
Deus reencontrado
Mas como quando deus morre, Deus renasce; quando deus se ausenta, Deus
volta, porque de fato nunca se ausentou.
A própria sensação de ausência, desconforto e carência espiritual demonstra
que Deus está aqui, pois é justamente a sua presença que nos chama a
reencontrá-lo se o mandamos embora. O incômodo do vazio busca preenchimento.
Se sentimos o vazio é porque algo deveria estar lá.
Mesmo em meio a todo superficialismo que muitas vezes assume a fé
pós-moderna, Deus ainda se manifesta com força.
Depois de nos afastarmos, o motivo mais frequente de reencontro com Deus é
a dor. No momento em que nos defrontamos com o desespero, com a perda, com o
desamparo, a alma grita por Deus. Mesmo aqueles que O haviam esquecido, apelam
para Ele. É que a dor pede alívio, requer entendimento de seu sentido, clama por
socorro. Nem sempre os recursos humanos são suficientes para mitigar a dor.
Sobretudo as dores da alma têm paroxismos que nenhum ser humano é capaz de
curar. E preciso então recorrer ao poder supremo.
Dirão os ateus que na hora do desamparo, a pessoa fraqueja e se apega a essa
muleta divina, quando deveria permanecer suficientemente forte para não se
render à necessidade de consolo e sentido.
Mas a verdade é que a dor irrompe em nossas vidas como um chamado para
acordarmos para outra realidade. Ela vem, nos sacode, nos despoja de ilusões,
preconceitos, ambições e nos deixa nus diante de nós mesmos. Somos então
obrigados a nos reconheceriamos como seres carentes da divindade, como filhos
que precisam de um pai e de uma máe, e Deus oferece a proteção paterna e o
aconchego materno.
E verdade que a dor pode causar revolta, ao invés de um pedido contrito de
ajuda. Entretanto, sem que muitas vezes o saiba, o ser humano que se rebela está
ainda se relacionando com Deus. Pois a revolta pressupõe alguém contra quem se
revoltar. Se tudo fosse obra do acaso e da má sorte, a revolta não teria razão de
ser. Revoltar-se é achar que há uma vontade querendo aquilo que não queremos
aceitar.
A revolta é como uma crise de adolescente, como se ficássemos de birra com
Deus. A alma que se rebela mostra-se imatura, pois não consegue apreender o
caráter pedagógico do sofrimento, não é capaz de notar em si mesmo a causa que
atraiu a dor, como um remédio para problemas seus, que de outra forma
permaneceriam pesando em sua personalidade.
A dor, quando aceita — e aceitação não é passividade, mas atitude de superação
serena e ativa - é capaz de deslocar nossa perspectiva de vida, mudar a visão a
respeito de nós mesmos e nos tornar mais fortes, mais serenos e mais próximos de
Deus. Sobretudo a dor pode nos arrancar aquilo que mais nos distancia de Deus: o
orgulho. E que ela expõe a nossa fragilidade, o nosso desamparo de criaturas
terrenas... e não sobra mais vontade de ser melhor que o outro, de se sobrepor, de
oprimir...
Mas não é apenas a dor que pode trazer Deus de volta para nossas vidas. A
busca sincera de respostas pode colocar o ser humano na trilha desse reencontro.
Nesse sentido, a liberdade e a disponibilidade vigentes são favoráveis a um
reencontro mais sólido com Deus.
Apesar da multiplicidade de experiências religiosas ocas, porque
comercializadas, há o contraponto de que Deus não é mais apenas um deus imposto
por uma tradição, que se é obrigado a acatar. Podemos nos engajar livremente
numa jornada espiritual séria, que pode resultar numa vivência religiosa muito mais
sentida, pensada e comprometida, porque escolhida com profundidade. Podemos
aliás examinar diversas tradições, comparar, vislumbrar a unidade divina por trás
das diversas faces com que Deus se mostra. A possibilidade de conhecer
diferentes formas de fé pode despertar em nós uma fé mais profunda, menos
exclusivista, mais universal e mais unida a todos os seres humanos.
Por outro lado, por causa das críticas a deus, feitas desde poucos séculos,
podemos agora reassumir Deus mais firmemente, porque despojado dos
apetrechos inúteis que os críticos nos fizeram o favor de arrancar. Assim, os
ateus nos prestaram um bom serviço e a ausência de deus no mundo serve para nos
recolocar no caminho de um Deus mais real. Foram pessoas de fé verdadeira, mas
também descrentes que apontaram os absurdos que historicamente atribuímos a
deus. Quanto da negação de deus não é provocada justamente por uma ideia
capenga de deus?
Por isso, não nos impressionemos se deus morre ou se deus se retira, porque
Deus volta depois mais puro e mais próximo.
6 Deus dá sentido
Porque é causa, Deus dá sentido a tudo o que existe. A presença de Deus dá
sentido à vida. A vida sem sentido | um arrastar-se sem rumo, mas Deus sustenta
a vida, sendo causa e finalidade, essênciapermanência e nos entrega a
possibilidade de um projeto existencial, que apesar de ser escolha e construção
nossa, brota da sua presença em nós.
A sede de sentido, título aliás de uma obra de Victor Frankl, um dos poucos
teóricos da psicologia, que trata da questão de Deus, faz parte intrínseca da
natureza humana. Muitos explicam a existência das religiões em todas as culturas
da história, como tentativas de emprestar sentido à vida.
A questão está justamente aí. Trata-se de uma tentativa de dar sentido ao que
não tem sentido nem razão ou trata-se de achar um sentido que está lá, oculto,
latente? Alguns pensadores das academias atuais, que viram ser impossível apagar
do coração humano a dimensão religiosa, a vontade de sentido e a ânsia por Deus,
resolveram admitir a necessidade da religião, mas o fazem desta forma: é a busca
de um sentido, para o que não tem sentido. É a categoria do imaginário, conferindo
uma coerência ao que é caótico e sem explicação. Em outras palavras, por mais
benigna e desejável que seja a ideia e a sensação de sentido, não passa de uma
ilusão. Ilusão tolerável e compreensível, dadas as carências humanas, mas de que
naturalmente os sábios, que habitam certos castelos teóricos, prescindem em sua
superioridade.
A busca de sentido, porém, é imanente no ser humano. Da mitologia antiga às
teorias científicas, a humanidade está sempre procurando um porquê e um para
quê.
A ideia de sentido está ligada à inteligibilidade, a algum tipo de lógica
intrínseca das coisas. Significa que nem tudo é aleatório, caóuco, inexplicável, mas
é possível achar um fio de entendimento nos fenômenos existenciais, naturais,
cósmicos... Também do ponto de vista da subjetividade, é possível achar-se,
fundamentar-se e projetar-se para uma meta.
A racionalidade do sentido
Poderíamos dizer que há duas espécies de lógica que percorrem as filosofias
ocidental e oriental. Chamemo-las de lógica do ser e lógica do devir. A lógica do ser
afirma aquilo que é. Quando Yaweh diz a Moisés: “eu sou aquele que sou” está se
mostrando como identidade absoluta, como Ser supremo. Dai deriva a ideia da
nossa identidade individual: embora sejamos de modo relativo ao absoluto divino,
podemos afirmar a nossa identidade, do contrário não poderia haver uma relação
do eu com o Tu supremo. Esta é a tradição judaico-cristã, mas também a tradição
platônica e aristotélica. No Oriente, temos tal afirmação na filosofia
confiicionista.
Nesta lógica, há uma forte sensação de estabilidade, de permanência e solidez.
A lógica do devir — que pode ser ou não evolu- cionista, porque há também o
devir do eterno retorno - apreende aquilo que está sendo, num processo de
mutação permanente, de modo que nada se pode afirmar como ser, mas apenas
como devir. £ a velha história de Heráclito, de que jamais pomos os pés duas vezes
no mesmo rio. No Oriente, a tradição tao- ísta é talvez uma das mais aparentadas
com essa ideia. Na filosofia ocidental mais recente, foi Hegel quem retomou essa
concepção, com a sua dialética aplicada à história.
Tem-se aí uma impressão de impermanência e de fluidez.
Entretanto, as duas formas de lógica não são incompatíveis entre si, como os
partidários de uma ou de outra costumam pensar. Aliás, se nos fecharmos em
apenas uma delas, tenderemos a posições dogmáticas. A lógica do ser por si só é
incapaz de assumir as contradições e de encará-las de forma natural e positiva. É
uma lógica que sozinha pode nos dar uma visão muito estática do universo.
Por outro lado, a lógica do devir pode caminhar facilmente para um
desmanchar-se do ser, para um esgarçar-se completo da realidade. Na própria
doutrina de Hegel, existe uma semente de nihilismo, porque há um momento no
processo dialético em que o ser vai para o não-ser, para depois tornar a ser. É
verdade que podemos aplicar a imagem à semente que morre para renascer árvore
e a todos os processos de vida e morte que fazem parte do devir das coisas.
Mas para que a realidade — que tem um aspecto de impermanência e mutação,
de dinâmica e de processo — tenha um sentido, preciso haver uma instância
imutável, permanente, que entreteça a inteligibilidade do devir. Esta instância é
Deus. Ele é o Ser que não está sujeito ao devir. Se não houver um Ser que está
acima do devir, tudo se desfaz no caos.
Por isso, muitas são as experiências religiosas das mais diversas culturas que
tratam o mundo como im- permanente e ilusório e fincam o sentido e a plenitude da
existência no encontro com o Ser absoluto.
O problema da lógica do ser é quando se tomam por imutáveis outras instâncias
ontológicas que não seja Deus e o problema da lógica do devir é quando se submete
a própria divindade a uma impermanência que lhe arranca a estatura de absoluto.
Assim, podemos dizer que o sentido supremo da vida é Deus. Mas existem
sentidos provisórios, relativos, que podem ser necessários e bons.
A subjetividade do sentido
A maneira de cada ser individual dar significado e conteúdo emocional, racional
e existencial à dimensão divina em sua vida é o sentido que cada um encontra para
si mesmo.
Há infinitos caminhos para o ser humano realizar a presença de Deus em si e no
mundo. A arte, a ciência, a militância social, a vida em família, a dedicação ao
trabalho manual, o exercício honesto e humilde da liderança, a escrita, a
comunicação, a vida religiosa, as vocações mais diversas, desde que úteis,
construtivas e boas para quem as segue e para a humanidade podem ser
manifestações do Criador através de suas criaturas. E essa manifestação enche a
vida de sentido, mostrando como possuímos uma vocação máxima: a de sermos
filhos e herdeiros de Deus. Se estivermos em consonância com o sentido que Ele
imprime ao universo — que é sempre um sentido de generosidade, amor e
crescimento — sentimo-nos plenos. As frustrações e os empecilhos podem ser
circunstanciais, mas o lastro existencial jamais é de desespero e angústia.
Na subjetividade do sentido podem estar as mais diversas doutrinas
filosóficas e religiosas, científicas ou sociais — e mesmo que sejam doutrinas que
aparentemente neguem a existência de Deus, se produzem um sentido denso e
positivo, altruísta e abnegado, ainda aí há uma presença divina.
Pode-se observar isso em grandes personalidades que, seja por
condicionamento ideológico de uma época histórica, seja pela revolta contra a
imposição que as instituições religiosas sempre fizeram, ou ainda pelo ceticismo
aprendido com as ciências experimentais, adotaram o ateísmo militante ou o
materialismo dogmático, mas têm na vida um sentido de serviço ao próximo e até
uma vocação para o martírio que só uma imanência divina pode explicar. Porque se
tudo de fato se acabasse e náo houvesse nenhum sentido em nada, para que viver e
morrer por uma causa humanitária e doar-se sem reservas para o outro? Qual a
garantia e, mesmo, a esperança de uma vitória do bem, se tudo é tão aleatório e
incerto?
Não é à toa que muitos analisaram os aspectos religiosos e mesmo proféticos
das teorias e das militâncias socialistas e anarquistas.
sentido histórico
A descoberta da história não é tanto grega, é muito mais de origem judaica e,
depois, cristã. Entenda-se não a história como narrativa de uma sucessão temporal
de fatos, mas como sentido coletivo e temporalidade causal. Não importa a
interpretação que possamos dar à Bíblia, mas trata-se de um relato (ou vários
relatos) que entendem a história como um suceder de eventos em que a interação
entre a liberdade humana e a intervenção divina faz um sentido, empresta uma
inteligibilidade ao tempo.
Com o advento da mensagem cristã, este sentido se dilata. A vinda de Jesus em
si mesma representa o cumprimento de uma promessa histórica e seu anúncio do
Reino é uma ideia tão fecunda que múltiplos movimentos e doutrinas sociais,
religiosas e políticas - dos milenarismos aos socialismos — ganharam ímpeto nesses
dois mil anos, inspiradas pela busca do Reino, ora entendido como realização
íntima, ora como concretização histórica.
Desde o medieval Gioachino di Fiore, lido pelos espirituais franciscanos — a ala
mais à esquerda do franciscanismo nascente — ou por Colombo, o descobridor,
(inebriado pela busca do paraíso na terra, apesar da contaminação de suas
ambições pessoais por riqueza e glória); passando por Thomas Morus e Campanella,
com a Utopia e a Cidade do Sol, as projeções do Reino se afastavam temporal e
espacialmente da história, mas serviam de guia e meta, de inspiração e sonho para
o futuro.
Laicizadas depois, já desde o texto de Kant sobre a Paz Perpétua até o paraíso
comunista de Marx ou o Estado positivo de Comte, ainda permaneceu a ideia de que
a história iria chegar a algum lugar melhor, a alguma concretização feliz, o que
entreteceu a esperança e encheu de sentido o presente de então.
E verdade que há também a utopia negativa, aquela que prega o fim do mundo de
forma trágica e sombria, com um terrível julgamento divino, acompanhado de
trombetas sonoras ou, mais recentemente, com guerras de extermínio em massa...
Mas ainda aí, no pensamento religioso, há a redenção além, na eternidade.
O pensamento pós-moderno, porém, assim como considera uma ilusão a ideia de
sentido pessoal, também considera que qualquer sentido histórico, qualquer
finalismo, por mais tênue e por mais aparentado apenas com uma esperança, é
ingenuidade metafísica, porque assim como a vida individual, a vida coletiva não
tem sentido. E puro jogo de circunstâncias cegas, aleatórias, que não se pode
delinear com racionalidade. E se enxergamos qualquer racionalidade, trata-se de
uma projeção nossa, de um olhar que deseja ver sentido.
Eis uma explicação que não explica, apenas complica. De onde tiraríamos esta
vontade permanente de sentido, senão de uma intuição, de uma apreensão do
próprio sentido? Se fôssemos resultado sem nexo do caótico acaso, como teríamos
tanto senso de inteligibilidade?
É certo que o momento de agora, de crises tantas, pode sugerir o retrocesso, o
caos, a irracionalidade e, mais, pode parecer que tudo o que imaginamos de
progresso não tenha sido mais do que uma ilusão da belle époque. E que as crises
obscurecem a visão, perdemos a noção de continuidade, quando estamos
mergulhados numa época de aprendizado dolorido. Mas para tomarmos consciência
dos males que nos assombram, precisávamos esgotar as ilusões a respeito, pecando
e, pelo excesso de mal, nos enjoarmos...
A agressão à natureza desencadeou a consciência ecológica; a terrível exclusão
de classes e povos inteiros dos bens necessários a uma vida digna deverá
despertar a rejeição do sistema econômico vigente; o paroxismo da violência entre
as nações acordará o desejo de paz. Como diz a música de Gil: “uma bomba sobre o
Japão fez nascer o Japão da paz”.
Então, o sentido histórico das tragédias torna-se compreensível na medida que
elas são aprendizagem coletiva. A meta de melhoria e da vinda do Reino se integra
com a lentidão da liberdade humana de aprender a buscar o Reino, onde ele está,
no coração fraterno, na justiça entre todos, na paz universal.
O sentido de eternidade
Sob qualquer perspectiva — do ser ou do devir, do pessoal ou do coletivo — o
sentido da vida só pode se ancorar na eternidade. Seja a eternidade após vários
ciclos reencarnatórios, portanto múltiplas inserções no tempo, seja a eternidade
da ressurreição no final dos tempos, seja a eternidade do nirvana ou qualquer
outra forma com que se nos apresente o eterno. Na contingência da nossa finitude
humana, é difícil enxergar com olhos de eternidade... Allan Kardec usava a
metáfora da montanha. É preciso subir e olhar o vale de cima e as coisas do
cotidiano tomam a sua dimensão correta, pequenas, passageiras. Quando as
olhamos de baixo nos parecem assustadoras.
Sob a ótica da eternidade, toda tragédia se desfaz, todo erro se esvai... Deus
está lá, garantindo a felicidade, o crescimento, a harmonia de todas as coisas.
A noção de eternidade é o que nos remete para além dos limites do espaço e do
tempo e nos faz entrever que as piores facetas da realidade são tão efêmeras
como uma tempestade de verão. É o olhar de Platão para fora da caverna. Na
dimensão que nos limita, tudo são sombras; saindo fora do tempo, o sol de Deus
ilumina e nos faz enxergar a eterna beleza do ser e do devir.
Não | todos os dias que conseguimos, e não são todas as pessoas que já
aprenderam, a elevar a vista para fora da caverna e sentir o brisa do absoluto e da
eternidade. Mas a oração, o bem praticado, a vivência do amor podem nos dar esse
relance e então tudo faz tanto sentido, que mal podemos expressá-lo.
Minha vida se dobra sobre o solo se desdobra ao infinito, espalho-a de um materno colo
espelho-a de um céu bendito '
A vida, que sempre me é dada é a vida que nunca mais se enfada, pois agora a vida já sei.
A vida, o semen de anjo, o broto da divindade, a vida germina em mim e habito a fácil
verdade de uma vida e de todas as vidas sem jamais fim...
A vida que agradeço é sempre a que mereço é sempre a que teço e já não meço seu preço.
Só posso dela semear meu verso, só quero vê-la de frente e de verso, só devo preenchê-la
com o universo.
Quando
Quando meus olhos se perdem das coisas e andam ao vento, cravo a mente no que não
passa e me contento.
Quando minhas mãos se despregam de mim, repletas de coração, não há mais corpos que
me separem e os homens são o que são.
Quando minha alma se aquieta num mínimo verde ramo,
Deus farfalha entre as folhagens e O amo.
E quando o meu pensamento se embriaga de remotas estrelas, transfiguro-me em azul e
sei que um dia hei de revê-las.
E no vento que passa e que fica e no amor que me vivifica e no verde que ao sol estala e no
azul que o cosmos exala se espraia uma alma infinita...
No átomo, Deus se agita, num átimo, Deus governa, no íntimo, Deus palpita
10 -Deus se dá em amor
Definitivamente não podemos compreender Deus. Podemos rodeá-lo de
palavras, podemos invocá-lo, adorá-lo em prece e demonstrar sua existência em mil
raciocínios. Podemos louvá-lo em prosa e verso e até tocá-lo pelas descobertas da
ciência e pelas investigações da filosofia. Mas algo nos falta para que o alcancemos
inteiro. Não podemos encarcerá-lo em nossos restritos conceitos, porque Ele
transborda sempre, além das meras palavras.
Entretanto, podemos amá-lo, isto sim. Podemos chegar mais perto de
compreendê-lo através do amor com que nos ama e do amor com que o amamos.
A primeira manifestação de seu amor é a nossa própria existência. Somos,
porque Ele nos fez ser.
A segunda prova de que nos ama infinitamente é que poderia nos ter criado
jungidos obrigatoriamente à sua Vontade soberana, mas nos entregou a liberdade
de escolha, incluindo a liberdade de negá-lo, de ferir suas leis e de nos recusarmos
a assumir, pelo menos temporariamente, a herança que nos deixou.
O terceiro indício de seu amor é que nos fez nascer neste universo com um
único propósito: o de sermos felizes, se usarmos a nossa liberdade para
procurarmos a união com Ele. Pois se Ele nos ama, também nos quer, embora não
precise de nós para ser, porque já é absoluto e completo. Então depositou em
nosso íntimo uma saudade do lar celeste, uma vontade profunda de alcançá-lo. Essa
busca é o sentido da vida, o vetor que move as almas em direção ao infinito.
Podemos preencher páginas e páginas descrevendo esse amor divino por nós,
mas só saberemos do que se trata se o sentirmos. Não é algo que se apreenda
apenas pela razão, mas deve ser experimentado pelo coração.
Por isso, Deus não é uma força impessoal, permeando o universo — uma energia
cósmica diluída no todo, sem identidade e sem nome. Ele é um Ser, com vontade e
sentimento — embora sua vontade seja sempre lei e seu sentimento seja sempre
amor.
E um Ser, com quem podemos nos relacionar, conversando, orando, meditando
e, sobretudo, amando- o pura e simplesmente. Ele tem uma face, mas não é
corporal; Ele é pessoa, mas não física; Ele nos ama a cada um, a cada um conhece,
porque é autor de nossa individualidade e origem de nosso destino e está mais
próximo de nós do que nós mesmos.
Deus é Pai e é Mãe. Se no universo nos deparamos com o princípio masculino e
feminino — com a força, a virilidade e a razão e com a bondade, o acolhimento e o
perdão — então no Ser supremo, os dois princípios se conjugam e se unem.
Náo é à toa que Jesus nos ensinou a chamá-lo de Pai e todas as religiões sempre
tiveram divindades femininas - essa é a leitura de que Deus abarca o ying e oyang,
porque os dois princípios vieram d’EIe e nEle se unificam.
Deus tem uma face de justiça e majestade e uma face de misericórdia e
doçura. Mas sua justiça não é opressora e sua doçura náo é fraqueza.
Pessoas mais perto de Deus
Outra maneira de Deus mostrar seu amor por nósatravés de seres humanos que
atingiram um grau de intimidade com Ele, que conseguem manifestar dons divinos e
oferecê-los aos semelhantes. O conceito budista é o de seres que atingiram a
iluminação e que voltam por compaixão para ajudar os homens a se libertarem do
sofrimento; o conceito católico é o da santidade, e os santos têm o poder de
intercessão em favor das criaturas; o conceito espírita é o de espírito evoluído,
que tem a função de educar amorosamente os que ainda estão em atraso...
Seja como se interprete, há pessoas que, por sua estatura espiritual, podem
servir de apoio a outras tantas, inspirar multidões a buscar Deus, mudar o rumo
da história de um povo ou de toda a humanida-de. Justamente essas pessoas,
embora estejam ligadas a um dado momento histórico e a uma determinada
cultura, alcançam uma dimensão de universalidade e são mensagens vivas de
Deus ao mundo.
A infinita compaixão de Buda, a sabedoria serena e humanista de Confúcio,
a missão divina de Jesus, a entrega absoluta de Francisco de Assis, a
originalíssima vivência de Gandhi — citando apenas alguns pouquíssimos — são
exemplos disso.
Entre menos conhecidos e desconhecidos, há outros tantos que se fazem luz
no caminho de seus irmãos. Podemos ter mesmo entre nossos parentes e amigos,
pessoas que sejam tão conscientes e amorosas, que façam uma entrega tão
completa de sua vida e de seu coração aos que lhes partilham a existência, que
sentimos em sua presença, uma centelha divina.
Entretanto, é justo questionar como distinguir aqueles que realmente
espalham uma ação benéfica e se fazem mensageiros de Deus daqueles que se
arrogam representantes de deus e não o são, o que a Bíblia chama de falsos
profetas. E preciso precaver-se deles, pois o que os verdadeiros profetas nos
fazem de bem, os falsos podem nos afastar seriamente do caminho.
Quem realmente está em contato com Deus, manifesta seu amor compassivo e
terno e o amor é feito de respeito e cuidado pelo outro. O falso profeta mostra
sempre laivos de autoritarismo, de dureza de alma, de imposição fanática.
Quem sente Deus, sente-se pequeno, embora seja grande. Quem cultua o deus
da vaidade é mesquinho e quer se mostrar grande. Portanto, o homem ou a mulher
de Deus caminham no mundo com simplicidade, autenticidade e despojamento de
si. O falso profeta quer ser cultuado e exibe aparatos artificiais.
Quem está em Deus é livre e deixa os outros livres. Age pelo impulso do amor,
da generosidade, sem se apegar a regrinhas de comportamento obtuso. O falso
profeta gosta de impor regras e mandamentos, quer obediência e submissão. Por
isso, os grandes espíritos, de todas as religiões, sempre se acomodaram mal com as
instituições religiosas, fechadas e cheias de regras impostas.
Quem transmite Deus em seus atos e palavras é doce sem servilismo e
hipocrisia, é enérgico quando necessário, sem autoritarismo. O falso profeta pode
ter voz excessivamente melosa, beirando a falsidade ou sua firmeza pode ser dura
demais, chegando à tirania.
Quem vivência Deus serve ao próximo por ideal, desinteressadamente. E claro que,
como ser humano, precisa sobreviver dignamente, atuar no mundo com os
instrumentos do mundo. O falso profeta calculaperdas e danos, é interessado
financeiramente ou busca fama, prestígio, reconhecimento e poder.
Precisamos ter lucidez para perceber Deus nas pessoas que de fato estão
perto d’EIe e ter espírito crítico para notar os exploradores de deus, os capangas
da religião, que esfacelam os ideais mais nobres por seu farisaísmo, fanatismo e
desejo de poder sobre o próximo. Nossa lucidez aumenta na medida que sentimos
Deus por nós mesmos e reconhecemos como seu amor se manifesta no mundo.
Como amar a Deus|
Para conhecermos mais Deus, é preciso amá-lo.
O primeiro mandamento mosaico assim recomenda: amá-lo sobre todas as
coisas, de todo o coração, de todo o entendimento.
Mas que caminho é esse de amar a Deus? Como podemos nós, imperfeitos e
relativos, manifestar amor à Perfeição absoluta? Como diria Agostinho, temos de
amá-lo, não para acrescentar alguma coisa a Ele, mas para que nós sejamos mais
felizes, mais plenos, realizemos melhor nossa natureza divina, assumamos nossa
herança de filhos.
Essa escavação interna para fazer brotar Deus dentro de nós é uma forma de
amor a Ele, mas se de fato conseguirmos fazê-lo, imediatamente esse amor se
expande para fora, em direção do outro, abrangendo a natureza e todas as
obras da Criação.
Amar a Deus é conectar-se com a mais viva realidade, a mais profunda essência,
o mais íntimo de tudo, dentro e fora de nós.
Os antigos celtas formulavam sua sabedoria em forma de tríades e muitos
pensadores depois, como os educadores Comenius e Pestalozzi, também usaram
desse recurso. Assim resumimos aqui em três tríades, como se ama a Deus:
• Amando a si mesmo, amando os seres humanosdedicando-se ao bem de
todos.
| Contemplando a natureza, integrando-se nela e protegendo a vida em todos os
reinos.
• Buscando a perfeição no pensamento, nas palavras e nas ações, agindo com
desprendimento e sa- bendo-se sempre em busca.
Como Deus se manifesta em nós?
Quando fazemos esse movimento interno de amor a Deus, Ele nos devolve, Ele
se mostra, Ele responde. Ele destila em nosso coração a perfeita alegria. Imersos
nesse júbilo, o que nos circunda também se ilumina e sentimo-nos circundados pelo
infinito.
O infinito nos aconchega, porque Deus nele habita, porque Deus nele é.
A doçura que nos empresta envolve tudo o que vemos. Ainda que na paisagem, à
beira da estrada, haja feiúras, nada nos rasga a harmonia. As cores do crepúsculo
tomam até o asfalto. Tudo tem aroma divino. O próprio ar tem sabor de graça.
Ele nos empresta novos olhos e com eles as contrariedades da vida se
apequenam e todos os seres humanos se transfiguram. Enxergamos Deus neles e os
amamos por Deus. No momento em que a presença divina nos invade, nossa alma se
enche de mel e temos ímpetos de abraçá-los, de transfundir para todas as
pessoas, mesmo a mais remota ou a mais endurecida, a presença divina em nós.
Queremos transbordar nossos dons para brilhar nas trevas do mundo, mas
sabemos que esse dons d’Ele provêm e nada nos podemos atribuir, porque a nossa
própria existência deve ser atribuída a Ele.
Apenas proclamamos essas quatro letrinhas — Deus, que por pura convenção
humana, denominam a divindade, podemos nos dilatar no tempo e no espaço. Apenas
O chamamos e sentimo-nos nos aquietar. E então, inundados por sua força,
podemos suportar a dor com paciência, encarar a morte de frente e singrar a vida
com novo ímpeto.Na sua companhia, podemos penetrar as cavernas obscuras da
natureza humana, sem nojo, sem tédio, sem medo. Porque abaixo de todas as
crostas, vemos a pérola oculta, o diamante bruto, a centelha nunca ausente do seu
amor!
Sentimos Deus como Pai, porque Ele fecunda o universo a cada instante nos
turbilhões de estrelas e de mundos, sustentando e governando a vida... Mas nosso
Pai, porque nos fez herdeiros de sóis e planetas e nos faz depositários de dons,
com que devemos criar mais dons e ainda nos empresta o próprio poder de criar!
Sentimos Deus como Mãe, porque n Ele não gerados nossos sonhos, porque Ele
acalenta amorosamente toda a multidão de seres no infinito. Dá aconchego aos
vermes e aos homens, às flores e aos anjos, aos átomos e aos sóis! N’Ele tudo se
move, se regenera, se multiplica, se procria, se unifica.
Mas por mais que cheguemos perto d’Ele, por mais que sejamos um com Ele,
Deus sempre nos ultrapassa, sempre está além, Ser dos seres, Causa das causas,
Pai, Mãe, Criador, a quem devemos nosso ser e nosso existir, a quem buscamos aqui
e na eternidade.
Deus
0 Senhor onipotente
em que se aninha a minha alma,
pequenina e reverente!
Tu que impregnas o todo
De elã, de amor e de calma!
0 Senhor onipresente
Que meu ser em si pressente,
Deus que acolhe e dá guarida,
Fonte amiga de clemência
Tu que derramas a vida
E nela assopras consciência!
Ó Senhor onisciente,
Suave, forte e amoroso,
Criaste-nos para o gozo
De santas felicidades!
Tu és pai de humanidades.
Governo da criação,
Bem supremo de atração
Por quem suspiro saudades!