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A MENSAGEM DO MITO

Joseph Campbell
Entrevista concedida à Bill Moyers exibida pela TV Cultura 02/11/2004.
(Transcrito por Valéria Miguez, a partir do próprio programa).

Gênesis, primeiro capítulo: "No princípio Deus criou o céu e a terra. E a terra era vazia e
sem forma e a escuridão pairava sobre a face do abismo".

Eis a canção do mundo de uma lenda dos índios Pima: "No princípio havia apenas
escuridão por todos os lados; escuridão e água. E a escuridão se adensava em certos lugares
e depois se dispersava". "E o espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E Deus disse:
Faça-se a luz".

Este trecho é do Upanishad indiano: "No princípio havia apenas o grande ser refletido na
forma de uma pessoa. Refletindo-se não encontrou nada senão a si mesmo e sua primeira
palavra foi: Isto sou eu".

Quando Joseph Campbell era criança, seu pai o levou ao Museu de História Natural de Nova
Iorque, onde ficou fascinado pelos totens e máscaras. "Quem os fez?", perguntava ele; "e o
que significavam?" Começou a ler tudo sobre os índios. Esta busca precoce fez dele uma
autoridade mundial em mitologia e um dos professores mais interessantes do nosso tempo.
Diziam que dava vida aos ossos do folclore e da antropologia. Seu objetivo era compreender o
poder das lendas da raça humana; seus temas e princípios que estimularam nossa imaginação
através dos tempos. O deus ciumento de Abraão não é o deus das histórias da Índia que não
mostra ira nem piedade. Mas segundo Campbell mesmo que as tradições místicas sejam
diferentes, coincidem num aspecto: despertam as pessoas para uma consciência mais
profundas do ato de viver, e nos guiam através de provações e traumas, desde o nascimento
até a morte.
Certa vez, Campbell disse a seus alunos: "Se vocês realmente querem ajudar este mundo,
precisam ensinar como viver nele". E foi isso que ele ensinou.
Nos últimos verões da sua vida, em muitas conversas gravadas na biblioteca do estúdio
Lucas filmes na Califórnia, conversamos sobre como a mitologia ainda pode despertar um
senso de mistério, gratidão e até de êxtase. (Bill Moyers)

A MENSAGEM DO MITO

_Por que me preocupar com os mitos? O que eles têm a ver com minha vida?
_Minha primeira resposta seria: vá em frente, viva sua vida, é uma vida boa e você não precisa
de nada disso. Não acho que as pessoas devam se interessar por certos assuntos porque são
considerados importantes. O que eu acho é que às vezes um determinado assunto "pega" a
pessoa. E com uma boa introdução ao tema talvez você também fique envolvido. E como eu
posso ajudar quando você for envolvido? Essas informações vindas de épocas antigas que têm
a ver com os temas que sempre ajudaram o homem, a construir civilizações e inspiraram
religiões ao longo do caminho terá que descobrir tudo sozinho. Mas depois que esse assunto
lhe pega há sempre uma certa sensação que vem dessas tradições uma informação tão
profunda e enriquecedora que você não vai querer abandona-la.
_Então os mitos são histórias que narram a busca do significado, que homens e mulheres
fizeram através dos tempos para dar sentido a vida; para tocar a eternidade, para compreender
o mistério, descobrir quem somos.
_Dizem que o que nós todos estamos buscando é um sentido para a vida. Eu não creio; acho
que o que estamos buscando é a experiência de nos sentirmos vivos de tal forma que nossas
experiências no nível puramente físico tenham ressonâncias internas no mais profundo do
nosso ser e da nossa realidade. E assim chegamos a sentir o êxtase de estarmos vivos, no
fundo a questão é essa e é isso que essas pistas nos ajudam a encontrar dentro de nós
mesmos.
_Os mitos são pistas?
_Os mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana.
_Aquilo que somos capazes de conhecer, de sentir dentro de nós?
_Sim, é.
_O Sr. Mudou a definição de mito: em vez de busca do significado, experiência de significado.
_A experiência da vida. A mente a ver com o significado. Qual é o significado de uma flor? Há
uma história Zen sobre um sermão de Buda quando todos os discípulos estavam todos
reunidos e ele simplesmente mostrou uma flor. Houve apenas um homem, Kashyapa, que lhe
fez um sinal com o olhar mostrando que compreendia o que foi dito.
Qual é o significado do universo? Qual é o significado de um inseto? Simplesmente existe é
isso aí. Mas estamos tão absorvidos em fazer coisas, em atingir objetivos de valor externo, que
esquecemos que o que conta é o valor interno: o êxtase associado ao simples fato de estar
vivo.
Queremos pensar em Deus. Ora, Deus é um pensamento, é um nome, é uma idéia, mas que
se refere a algo que transcende qualquer pensamento. O mistério supremo do ser está além de
todas as categorias de pensamento. Meu amigo Heinrich Zimmer costumava dizer: "As
melhores coisas não podem ser ditas, porque transcendem o pensamento. As segundas
melhores são mal compreendidas, pois são pensamentos que devem referir-se àquilo que não
pode ser pensado. E ficamos empatados com os pensamentos. As terceiras melhores coisas
são aquelas que nós falamos". E o mito está nesse nível de referencia: são metáforas que se
referem a coisas absolutamente transcendentais. Aquilo que não pode ser conhecido.
_Ou que não pode receber um nome. Exceto na nossa frágil tentativa de revesti-lo com
palavras.
_E na nossa linguagem a palavra para designar o mais transcendental: é Deus.
_O Sr. lembra-se o que lhe passou pela cabeça na primeira vez que viu a Criação de
Michelangelo?
_Quando conheci essa obra minha noção de divindade não era tão pessoal. Essa idéia de
Deus como um velho barbudo com um temperamento meio desagradável é uma forma
materialista de se falar sobre a transcendência.
_É exatamente o oposto do que foi encontrado numa ilha no Golfo de Bombaim, algo que data
do século VIII.
_É uma caverna maravilhosa. A gente sai de uma paisagem luminosa e entra lá dentro.
Caminhando na escuridão não se enxerga nada. Mas se você continuar andando devagar, aos
poucos seus olhos se acostumam e você vê aquela coisa enorme de uns seis metros de altura
por seis de largura. A cabeça central é a máscara da eternidade. Essa é a máscara de Deus.
_A máscara da eternidade.
_Essa é metáfora pela qual a eternidade deve ser vivenciada como um esplendor.
_E aquelas duas figuras?
_Toda vez que nos afastamos da transcendência chegamos ao campo dos opostos. Esses dois
pares de opostos se apresentam como macho e fêmea, vindos desses dois lados. E o ser que
comeu o fruto da árvore do conhecimento não só do bem e do mal, mas do macho e da fêmea,
do certo e do errado, da luz e da escuridão. Tudo nesse campo do tempo é dualístico: passado
e futuro, morto e vivo, ser ou não ser, é ou não é.
_E qual é o sentido deles estares ao lado da máscara de Deus, da eternidade? O que esta
escultura nos diz?
_A máscara representa o centro, os dois representam os opostos, sempre aparecem em pares.
Tentem colocar sua mente no meio; a maioria de nós coloca a mente no lado do bem contra
aquilo que achamos ser o mal.
Creio que foi Heráclito que disse: "Para Deus todas as coisas são boas, certos e justas, mas
para o homem algumas são certas e outras não". O homem está no campo do tempo e um dos
problemas da vida é compreender os dois termos. Ou seja, eu conheço o centro e sei que o
bem e o mal são simples manifestações temporais.
_Existem mitos mais verdadeiros do que outros?
_Eles são verdadeiros em sentidos diferentes. Há toda uma mitologia baseada na
compreensão que transcende o dualismo. A nossa mitologia é baseada no dualismo. Assim,
nossa religião tende a enfatizar ética, pecado, expiação, certo e errado. Veja, ela começou com
pecado, ou seja, saindo fora da zona mitológica do Paraíso onde não existe o tempo; e o
homem e a mulher nem sequer sabem que são diferentes um do outro. Lá os dois são apenas
criaturas. E Deus e o homem são praticamente a mesma coisa: "Ele caminha no frescor da
tarde no jardim onde estamos". E então, eles comem a maçã; vem o conhecimento dos pares
de opostos; homem e mulher cobrem suas vergonhas; eles são diferentes: Deus e homem são
diferentes; e a natureza está contra o homem.
Certa vez, eu assisti uma palestra incrível de Daisetz Suzuki aquele maravilhoso filósofo
Zen, quando esteve na Califórnia. Ele tinha mais de 90 anos. Começou a ensinar na Suíça; e
eu o ouvi em Ascona. Ele ficou em pé e disse: "Deus contra o homem, o homem contra Deus,
homem contra a natureza, a natureza contra o homem, natureza contra Deus, Deus contra a
natureza. Que religião mais engraçada".
Nas outras mitologias a pessoa se coloca em sintonia com o mundo. Mas se o mundo é uma
mistura do bem e do mal você não se coloca em sintonia com ele. Você se identifica com o
bem e luta contra o mal e esse é um sistema religioso do Oriente Médio, depois da época de
Zaratustra. Está presente em toda a tradição bíblica; é assim no cristianismo, como no
islamismo. É esse negócio de não ser uno com a natureza; e até falamos com certo desprezo
das "religiões da natureza".
Veja bem, com a queda do homem no Jardim do Éden a natureza foi considerada corrupta.
É um mito que corrompe o mundo inteiro para nós. E cada ato espontâneo é pecaminoso
porque a natureza é corrupta e tem de ser corrigida; não se pode ceder a ela. Surge uma
civilização totalmente diferente; um modo de vida diferente, conforme o seu mito: se ele vê a
natureza como decaída ou como sendo ela mesma; uma manifestação da divindade e o
espírito como revelação da divindade que é inerente a natureza.
_O Sr. não acha que os americanos modernos rejeitaram essa idéia antiga da natureza como
reveladora da divindade porque ela nos impediria de dominar a natureza?
_Mas é a condenação bíblica da natureza que os americanos herdaram da sua própria religião
e trouxeram consigo. Deus não está na natureza. Deus é separado dela e a natureza não é o
Deus. Essa distinção entre Deus e o mundo não existe na base do hinduísmo, nem no
budismo.
Nunca me esquecerei de uma experiência que tive no Japão. Estar num lugar que nunca
ouviu falar da queda do homem no Jardim do Éden. Estar num lugar onde um texto Xintoísta
diz: "Os processos da natureza não podem ser malignos". E onde cada impulso natural não
deve ser corrigido, mas sim sublimado; embelezado. E aquele maravilhoso interesse pela
beleza natural e pela cooperação com a natureza, a ponto de que em alguns jardins japoneses
você não sabe onde começa a natureza e onde termina a arte. Isso foi para mim uma tremenda
experiência e é uma mitologia diferente.
_Por falar em mitologias diferentes, vamos brincar um pouco. Tirei estes trechos do seu "Atlas".
Vou ler o Gênesis e aí o Sr. identifica e lê o mito correspondente. Gênesis I: "E Deus criou o
homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou. E Deus os
abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos".
_Agora veja esse trecho de uma lenda do povo Bassari da África Ocidental. "Unumbotte dez
um ser humano e seu nome era Homem. Em seguida Unumbotte fez um antílope chamado
Antílope. Unumbotte fez uma serpente chamada Serpente. E Unumbotte disse a eles:" A terra
ainda não foi trabalhada. Vocês precisam amaciar a terra onde estão sentados ". E Unumbotte
lhes deu sementes de todos os tipos e lhes disse:" Plantem todas estas sementes "".
_Gênesis I: "E viu Deus tudo que havia criado e eis que era muito bom".
_Agora cito Upanishad: "Então ele percebeu: na verdade eu sou essa criação, pois eu a expeli
de mim mesmo. Dessa forma ele se tornou essa criação. E aquele que sabe disso se torna um
criador nessa criação".
Este é o ponto principal. Quando você sabe disso se identifica com o princípio criativo que
é o poder divino no mundo, ou seja, em você mesmo. É muito belo.
_O que o Sr. acha que estamos procurando quando aceitamos uma dessas histórias, essas
teorias sobre criação?
_Acho que estamos procurando uma forma de experimentar o mundo onde vivemos; que nos
abra para a transcendência que o inspira; e que inspira a nós mesmos dentro do mundo. É isso
que as pessoas querem; é isso que a alma pede. _Quer dizer que procuramos uma harmonia
com o mistério que anima as coisas; é isso que o Sr. chama de vasto campo de silêncio que
todos compartilhamos?
_Sim, mas não apenas para encontra-lo; precisamos encontra-lo no nosso próprio ambiente;
no nosso mundo; reconhece-lo; ter algum tipo de informação que nos permita ver a presença
divina.
_No mundo e em nós mesmos.
_Na Índia há a saudação: "anjali". Você sabe o que significa? É a saudação de prece. Quando
você entra, eles o cumprimentam com a saudação para o Deus que existe dentro de você. Elas
têm consciência da presença divina. Quando você entra num lar indiano você é uma divindade
que veio visitá-lo e você sente isso, pela maneira como eles o tratam. É um tipo de
hospitalidade que não existe quando há simplesmente uma pessoa e outra pessoa. É um
reconhecimento da identidade.
_Mas as pessoas que contavam essas histórias; que acreditavam e agiam de acordo com elas
não estavam fazendo perguntas muito mais simples como "quem fez o mundo?" Não são essas
as perguntas que as histórias sobre a criação tentam responder?
_Não. É através daquela resposta que eles percebem que o criador está presente no mundo
inteiro. Olhe essa historia que acabamos de ler: "Vejo que eu sou a criação", diz o deus.
Quando você vê que Deus diz que ele é a criação e você é uma criatura, então esse deus está
dentro de você e também dentro do homem com quem você está falando. Há então essa
percepção, dois aspectos de uma única divindade: sintonia e harmonia. É maravilhoso.
_Gostaria de lhe fazer umas perguntas sobre os aspectos que essas histórias têm em comum.
O significado do fruto proibido.
_Existe um tema recorrente nas histórias folclóricas chamadas "A única coisa proibida".
Lembre-se de Barba Azul: "Não abra aquela porta"; e sempre tem alguém que abre. No Velho
Testamento, deus dá uma única coisa proibida e ele sabe muito bem (agora estou
interpretando Deus); ele sabe muito bem que o homem vai comer o fruto proibido. Mas ao fazer
isso o homem torna-se iniciador da sua própria vida. A verdadeira vida começa com aquele
momento.
_Vejo também em algumas dessas histórias antigas a tendência humana de sempre culpar
alguém. Deixe-me ler o capítulo I do Gênesis e depois o Sr. lê a lenda dos Bassari.
Gênesis I: "E Deus disse:" Comeste da árvore que eu te ordenei que não comêsseis? E o
homem respondeu: "A mulher que me destes por companheira me deu o fruto da árvore e eu
comi". E disse o Senhor a mulher: "O que fizestes?" E a mulher disse: "A serpente me enganou
e eu comi". Essa história de culpar os outros começou cedo! Vejamos a lenda dos Bassari...
_Ela também é severa com a serpente. "Um dia a Serpente disse:" Nós também devemos
comer esses frutos. Por que havemos de passar fome?"E o Antílope disse:" Mas não sabemos
nada sobre essa fruta ". Então o Homem e sua mulher tomaram a fruta e a comeram. E
Unumbotte desceu do céu e perguntou:" Quem comeu a fruta?"E eles responderam:" Fomos
nós ". Unumbott perguntou:" Quem disse que vocês podiam comer essa fruta?"E eles
responderam:" Foi a Serpente "".
_É a mesma história. Pobre Serpente. O que o Sr. conclui do fato de que nessas histórias os
atores principais acusam outro personagem de ser o causador da queda?
_Acontece que de fato é a Serpente. E nas duas histórias a Serpente é o símbolo da vida; que
descarta o passado e continua a viver.
_Por que?
_É o poder da vida. Porque a serpente solta a pele da mesma forma que a lua solta sua
sombra. Na maioria das culturas a serpente é positiva. Na Índia até o que há de mais
venenoso, a cobra, é um animal sagrado. E a serpente Naja, o Rei-serpente Nagaraja é a
divindade mais próxima do Buda, pois a serpente representa, no campo temporal o poder de
enfrentar a morte e Buda representa, no campo da eternidade o poder da vida de viver
eternamente.
Vi uma coisa fantástica em Burma: uma sacerdotisa das serpentes, que tinha que trazer
chuva para o seu povo atraindo uma naja, um rei-cobra, para fora da toca e lhe dando três
beijos no nariz. Ali estava a naja, o doador da vida, o doador da chuva, que pertence à vida, a
cobra vista como uma figura divina e positiva, não negativa.
_Por ter sido a mulher a tentadora, as mulheres tiveram de pagar um alto preço, pois nessas
mitologias foram elas que provocaram a queda.
_Claro que foram elas. A mulher representa a vida. O homem só entra na vida através da
mulher; e assim é a mulher que nos trás para esse mundo de pluralidade, de pares opostos, de
sofrimento, etc. Creio que é uma atitude muito infantil dizer não a vida; a vida com toda a sua
dor; dizer que é uma coisa que não deveria ter acontecido. Disse Schopenhauer num dos seus
maravilhosos livros, creio que é em "O Mundo Como Vontade e Idéia": "A vida é algo que não
deveria ter acontecido. Ela é na sua própria essência e caráter uma coisa terrível, pois
precisamos matar e comer para viver". Isto é a vida sempre está em estado de pecado
segundo todos os critérios éticos.
_Como disse Zorba, o Grego: "Problema? A vida é problema. Só a morte não é problema".
_É isso. E daí as pessoas me perguntam: "Você é otimista a respeito do mundo com tudo do
que ele tem de terrível?" E eu respondo: "Sim, é fantástico exatamente do jeito que ele é".
_Mas isso não leva a uma atitude passiva diante do mal, diante do erro?
_Você participa disso. O que quer que faça é um mal para alguém.
_Explique isso para o público.
_Quando eu estive na Índia encontrei um homem chamado Sri Krishnamenom. Seu nome
místico era Atmananda e vivia em Trivandrum. Fui a Trivandrum e tive o privilégio de sentar
cara a cara com ele assim como estou sentado aqui com você. E a primeira coisa que ele me
disse: "Você tem uma pergunta?" O mestre ali sempre responde as perguntas ele não diz
nada. E eu disse: "Tenho. Uma vez que para o pensamento indiano todo o universo é divino, é
uma manifestação da própria divindade, como podemos dizer não a qualquer coisa deste
mundo? Como podemos dizer não à brutalidade, à vulgaridade, à irresponsabilidade, à
estupidez?" E ele respondeu: "Você e eu devemos dizer sim". Eu sabia através de amigos que
foram seus discípulos que esta foi a primeira pergunta que ele fez para o seu guru e durante
uma hora nós tivemos uma conversa maravilhosa sobre a afirmação do mundo. E isso me
confirmou um sentimento que eu tenho quem somos nós para julgar? E me parece que esse é
um dos grandes ensinamentos de Jesus.
_Percebo o que o Sr. quer dizer num aspecto: segundo certas doutrinas cristãs clássicas o
mundo deve ser desprezado, a vida só será redimida no além, nossa recompensa só vem do
céu; e se você afirma aquilo que deplora estará afirmando o mundo que é a nossa eternidade
no momento.
_É isso mesmo. A eternidade não é um tempo futuro, a eternidade não é uma extensão longa
de tempo, a eternidade não tem nada a ver com o tempo. A eternidade é a dimensão do aqui e
agora que é eliminada se pensarmos no tempo.
_É isso mesmo.
_Se você não conseguir isso aqui, não conseguirá em nenhum lugar; e a experiência da
eternidade aqui e agora é a função da vida. Há uma fórmula maravilhosa que os budistas têm
para o "Bodhisatva". O "Bodhisatva" é aquele cujo ser (ou "satva") é iluminação ("bodhi").
Aquele que percebe sua identidade com a eternidade e ao mesmo tempo sua participação no
tempo. E a atitude correta não é afastar-se do mundo quando se percebe como ele é terrível,
mas perceber que esse horror é simplesmente a anti-sala de uma maravilha e assim voltar a
participar dele. "A vida é sofrimento" é o primeiro dito budista; e é isso esmo. A vida não seria
vida se não incluísse a temporalidade; que é sofrimento, perda, perda, perda.
_É uma observação pessimista.
_Você tem que dizer sim para a vida e dizer que é ótimo que as coisas sejam assim. Foi assim
que Deus quis.
_O Sr. acredita mesmo nisso?
_É assim que as coisas são; e não creio que alguém tenha desejado que elas fossem assim,
mas é assim que elas são. Tem aquela linda frase de James Joyce: "A História é um pesadelo
do qual estou tentando acordar". E a maneira de acordar é não ter medo e reconhecer como eu
fiz na minha conversa com aquele guru indiano; reconhecer que tudo isso, assim como é, é
como tem que ser e é uma manifestação da presença eterna no mundo. O final das coisas é
sempre doloroso; a dor faz parte do simples fato de que o mundo existe.
_Mas se aceitarmos isso será que a conclusão final não é: "Nesse caso, não vou tentar mudar
nenhuma lei, não vou lutar em nenhuma batalha..."
_Eu não disse isso.
_Não será a conclusão lógica? As pessoas não seriam levadas ao niilismo?
_Essa não é necessariamente a conclusão a tirar. Você pode dizer: "Vou participar dessa luta;
vou entrar no exército; vou a guerra".
_Farei o melhor aqui na terra.
_Vou participar do jogo. É uma ópera maravilhosa; só que dói. Há uma frase irlandesa
maravilhosa que diz: "Isso aí é uma briga particular ou qualquer um pode entrar?" É assim que
é a vida; e o herói é aquele que participa dela decentemente seguindo o caminho da natureza
não do rancor pessoal, da vingança ou algo parecido.
Há uma história interessante sobre um samurai, um guerreiro japonês, que tinha o dever de
vingar a morte de seu senhor. E, de fato, depois de certo tempo ele encontrou e acuou o
assassino. Quando já estava preste a liquidá-lo com sua espada o homem acossado,
enlouquecido pelo terror, cuspiu na sua cara. E o samurai embainhou a espada e foi embora.
Por que ele fez isso?
_Por que?
_Porque isso o deixou enfurecido e se ele matasse o homem naquele momento teria sido um
ato pessoal; de outra natureza; não o que ele se propôs a fazer.
_Deixe-me dizer como me sinto quando leio essas histórias; seja qual for sua cultura de
origem. Fico maravilhado ao ver o espetáculo da imaginação humana tentando entender esta
vida. Com o Sr. isso também acontece?
_Eu vejo a Mitologia como a pátria das Musas, as inspiradoras da arte, da poesia. Ver a vida
como um poema; ver a si próprio participando de um poema é isso que o mito nos dá.
_O que o Sr. quer dizer com poema?
_Um vocabulário, não em forma de palavras, mas de atos e aventuras, que é conativo; que
conota algo transcendente; a ação imediata; e mesmo assim inspira todo o conjunto de modo
que você sempre se sente em sintonia com o ser universal.
_O que me interessa nisso tudo é que em vez de abalar minha fé, seu trabalho com a mitologia
libertou minha fé das suas prisões culturais.
_Libertou também a minha. E sei que ele tem esse efeito junto às pessoas que realmente
entendam a sua mensagem; cada religião é verdadeira nesse sentido, como uma metáfora do
mistério humano e cósmico. Mas quando ela fica presa a sua metáfora aí começa o problema.
_E a metáfora é...
_Veja: "Jesus subiu aos céus". Segundo a história ele subiu fisicamente aos céus. Diz a história
que sua mãe, ainda viva, adormecida subiu aos céus. Então isso é uma metáfora; não é
preciso joga-la fora, mas apenas saber o que ela quer dizer.
_E o que ela quer dizer?
_Quer dizer que ele não subiu lá para cima, ele entrou aqui dentro, que é onde você também
deve entrar e subir ao céu através do seu espaço interior até chegar a fonte de onde você veio,
de onde veio toda a vida. É esse o sentido da história.
_Assim o Sr. não estaria destruindo uma das grandes doutrinas cardeais da fé cristã clássica: a
morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus; prefigurando a nossa própria e superando o
corpo com uma verdade física superior?
_Eu chamaria isso de uma leitura errônea do símbolo. É uma leitura em termos de prosa e não
de poesia. Seria ter a metáfora em termos da sua denotação e não conotação; compreende? É
um problema puramente literário.
_A poesia alcança a realidade invisível.
_Alcança aquilo que está além do próprio conceito da realidade. É o que transcende qualquer
pensamento. É o que o leva até esse lugar e dá uma linha de conexão com o mistério que você
é. Os mitos conseguem isso. Conseguem mesmo! Segundo a forma usual de se pensar a
religião cristã não podemos nos identificar com Jesus, temos que imitar Jesus. Mas dizer "Eu
sou Deus" como Jesus disse, para nós seria uma blasfêmia. Entretanto, no Evangelho de São
Tomás, Jesus disse: "Quem beber da minha boca se tornará como eu sou e eu serei ele". Isso
é budismo! Todos somos manifestações da consciência de Buda só que não sabemos disso. A
palavra "Buda" significa "aquele que despertou"; vem de "budah": despertar. Isto é despertou
para o fato de que ele era a consciência de Buda e todos nós temos que fazer isso. Despertar
para o Jesus que há dentro de nós. Isso é blasfêmia segundo o pensamento usual do
cristianismo, mas é a própria essência do gnosticismo e do Evangelho de São Tomás.
_E o céu, o objetivo ambicionado pela maioria das pessoas está também dentro de nós?
_ O céu e o inferno estão dentro de nós e todos os deuses estão dentro de nós. Essa foi a
grande intuição dos Upanishads da Índia já no 9º milênio; no século XIX a.C. Todos os deuses,
todos os céus, todos os mundos estão dentro de nós. Eles são sonhos ampliados. E o que são
os sonhos? São manifestações em forma de imagens das energias do nosso corpo em conflito.
E tudo isso é mito. O mito é uma manifestação em imagens simbólicas, metafóricas, das
nossas energias internas mobilizadas pelos órgãos do corpo em conflito entre si. Este órgão
quer isto, aquele outro quer aquilo. O cérebro é um desses órgãos.
_Quer dizer que quando sonhamos pescamos num vasto oceano de mitologia?
_Que vai cada vez mais fundo. E você pode acaba todo enrolado com complexos e coisas
assim, mas você está em pé na beira do abismo. Lembro sempre de um provérbio polinésio:
"Em pé sobre uma baleia pescando sardinhas". Estamos em pé sobre uma baleia. A base do
ser é a base do nosso ser voltado para fora; vemos todos esses probleminhas, mas dentro de
nós; nós somos a fonte de todos eles. É esse é o grande ensinamento místico.
_Já vimos o que acontece nas sociedades primitivas perturbadas pela civilização do homem
branco. Elas se despedaçam, e desintegram, sucumbem ao vício e a doença. Não será isso
que tem acontecido conosco desde que nossos mitos começaram a desaparecer?
_Sem dúvida; é isso mesmo.
_Será por isso que as pessoas seguem uma religião mais conservadora; por querer um retorno
a religião dos velhos tempos?
_É verdade.
_Eu entendo esse desejo. Na minha juventude eu tinha estrelas fixas; elas me consolavam em
sua permanência e me davam um horizonte conhecido. Elas me diziam que havia um pai
amoroso, bondoso e justo lá em cima olhando para mim aqui embaixo; pronto para me receber;
sempre pensando nas minhas preocupações. Agora, a ciência e a medicina fizeram uma faxina
geral na fé. E eu pergunto o que acontece às crianças que não têm mais essa estrela fixa; esse
horizonte conhecido; esses mitos para apóia-las?
_Basta ler o jornal: é uma confusão. Mas o que o mito tem que nos dar neste nível imediato da
instrução sobre a vida, no aspecto pedagógico são modelos de vida. Os modelos têm que ser
adequados as possibilidades da época em que vivemos. E a nossa época vem mudando e
continua a mudar tão depressa que aquilo que era adequado há 50 anos não é mais
atualmente. Assim, as virtudes do passado são os vícios de hoje e muitas coisas que
considerávamos como vícios do passado são as necessidades morais da vida real, da nossa
época aqui e agora, mas não estão fazendo isso. É por isso que é ridículo voltar a religião dos
velhos tempos. Um amigo compôs uma canção baseada na religião antiga:
"Quero a religião antiga, vamos voltar a ela. Vamos adorar a Zaratustra, como
costumávamos adorar. Eu sou fã de Zaratustra, ele serve bem para mim. Vamos adorar a
Afrodite, ela é bela, mas volúvel, não usa camisola, mas serve bem para mim..."
Quando voltamos a religião antiga fazemos algo assim. Ela pertence a outra época, a outro
povo, a outro conjunto de valores humanos, a outro universo. Assim, naquele período antigo do
Velho Testamento ninguém fazia idéia de uma série de coisas. O mundo era um pequeno bolo
de três camadas e se resumia a uma área de algumas centenas de quilômetros em torno dos
centros principais do Oriente Médio. Ninguém tinha ouvido falar dos astecas, nem mesmo dos
chineses; e esses povos nem foram levados em consideração como parte do problema. O
mundo se transforma e assim a religião tem que ser transformada também.
_Mas me parece que é bem isso que estamos fazendo?
_É isso que devemos fazer. Mas a minha idéia do verdadeiro horror dos dias de hoje é o que
se vê em Beirute. Lá estão as três grandes religiões ocidentais: judaísmo, cristianismo e
islamismo, mas cada uma tem um nome diferente para o mesmo deus bíblico e eles não
conseguem entrar num acordo. Estão enredadas nas suas metáforas e não percebem que a
metáfora é uma mera referência.
_Então cada uma precisa de um novo mito?
_Cada uma precisa do seu próprio mito do início ao fim. "Ame seu inimigo", lembra? Abra-se,
não julgue.
_Com tudo o que o Sr. sabe sobre os seres humanos acha que pode haver um ponto de
sabedoria além dos conflitos da verdade e da ilusão? Um ponto que nos permita reconstruir
nossas vidas e desenvolver novos modelos?
_Isto está nas religiões. Todas as religiões são verdadeiras para a sua época. Se conseguir
descobrir o que é a verdade e separá-la da sua roupagem temporal, basta colocar a antiga
religião num novo conjunto de metáforas; e pronto você conseguiu.
_O Sr. vê surgir, na mídia, novas metáforas para as velhas verdades universais?
_Bem, eu acho que Guerra nas Estrelas é uma perspectiva mitológica válida. Aquele problema
é a maquina e o Estado é a maquina. Será que a maquina vai estragar a humanidade ou servir
a humanidade? E a humanidade não se origina da maquina, mas sim do coração.
"_Luke, me ajude a tirar esta máscara".
_Mas você vai morrer".
Creio que foi no Retorno de Jedi quando Skywalker tira a máscara do pai. O pai vinha
representando um desses papéis de máquina; um papel de Estado. Ele era o uniforme,
compreende? E ao retirar aquela máscara havia ali um homem não desenvolvido; uma espécie
de verme. Quando alguém é executivo de um sistema não está desenvolvendo seu lado
humano. Creio que George Lucas fez algo belíssimo.
_A idéia da máquina é que queremos que o mundo deva ser segundo o que pensamos que o
mundo deve ser?
_A primeira vez que alguém fez uma ferramenta pegou uma pedra e lascou para poder
manuseá-la e esse foi o começo da máquina. É transformar a natureza externa e colocá-la a
nosso serviço. Mas chega um momento em que ela começa a mandar em você.
Para falar a verdade eu no momento estou brigando com meu computador. Comprei um e
não deixo de pensar que ele tem a sua própria personalidade porque ele me dá respostas
arrevesadas; comporta-se de uma maneira imprevisível. Então estou personificando essa
máquina. Ela é quase viva; eu poderia mitoligizar aquele negócio.
_Há uma história ótima sobre o Presidente Eisenhower quando construíam o primeiro
computador.
_ Eisenhower entra numa sala cheia de computadores e faz uma pergunta: "Deus existe?". Daí
todas as máquinas começam a funcionar, com as luzes piscando, engrenagens girando e
depois de uns dez minutos ouve-se uma voz que diz: "Agora existe!".
Eu comprei uma dessas máquinas, IBM; e lá está ela. E como sou um especialista em
deuses, identifiquei esse deus: ele me parece um deus do Velho Testamento com um monte de
regras e nenhuma compaixão.
_Ele não perdoa, não é?
_Se ele o pegar apanhando lenha no sábado você está fora do jogo.
_Mas não seria possível assumimos em relação ao computador uma atitude como a do cacique
Pawnee? Ele disse que nas lendas do seu povo todas as coisas falam de Deus. Não era uma
revelação privilegiada Deus está em todo lugar na sua obra, incluindo o computador?
_Sim, é verdade. Veja o milagre que acontece na tela (computador). Você já olhou dentro dele?
_Não.
_É inacreditável. Há toda uma hierarquia de anjos, todos em plaquinhas e aqueles tubinhos
são um milagre; são mesmo. A gente sente um temor, uma reverência. Com meu computador
tive uma revelação sobre a mitologia. Você compra um software e nele há um conjunto de
sinais que levam a realização do objetivo. É uma vez que você escolhe, digamos DW3 e depois
apertou a tecla "entre" se começar a brincar com sinais que pertencem a outros sistemas a
coisa não funciona. Há um sistema ali, um determinado código que exige que você use certos
termos.
Assim também na mitologia: cada religião é uma espécie de software que tem seu próprio
conjunto de sinais e que funciona. Mas supunha que você escolheu uma; se você está
realmente envolvido com uma religião, realmente construindo a sua vida em torno dela é
melhor ficar com aquele software. Mas um cara como eu que gosta de ficar brincando...
_Cruzando os softwares?
_Brincando com os softwares posso experimentar, me divertir, mas nunca terei uma
experiência comparável à de um santo.
_Mas o Sr. acha que a maquina está inventando novos mitos para nós ou que nós com a
máquina estamos inventando novos mitos?
_Não. O mito tem que incorporar a máquina. Assim como os antigos mitos incorporavam as
ferramentas que as pessoas usavam; a forma dos utensílios, por exemplo, é associada aos
sistemas de poder daquela cultura. Nós não temos uma mitologia que incorpore estas novas
ferramentas. Os novos poderes estão sempre sendo anunciados por meio daquilo que as
máquinas podem fazer. Ainda vai levar tempo até podermos ter uma mitologia. O ambiente em
que vivemos muda tão depressa que não dá para se tornar mitológico.
_E como vivemos sem mitos?
_Bem, estamos vivendo. O indivíduo tem que encontrar aquele aspecto do mito que tem
relação com a conduta da sua vida. Os mitos servem para muitas funções. A função básica é
abrir o mundo para a dimensão do mistério. Se você perde isso, fica sem uma mitologia para
perceber o mistério subjacente a todas as formas. Aí entra o aspecto cosmológico do mito: ver
aquele mistério tal como se manifesta através de todas as coisas de modo que o universo se
torna uma espécie de imagem sagrada e através dela você está sempre dirigindo ao mistério
transcendental. Há também outra função a sociológica: de validar ou conservar uma certa
sociedade. É esse o lado do mito que passou a predominar no nosso mundo.
_Como assim?
_As leis éticas: as leis da vida em sociedades; todas aquelas páginas e mais páginas dos
mandamentos de Jeová sobre que roupas vestir, como se comportar com o próximo conforme
os valores dessa determinada sociedade.
Mas há uma quarta função do mito e é com essa que todos deveriam tentar se relacionarem
hoje em dia: é a função pedagógica. Como viver uma vida realmente humana em qualquer
circunstância? O mito pode ensinar.
Há uma linda história num dos Upanishads: o "Brahmavaivarta", a respeito de Indra, um deus
que na verdade é o equivalente de Jeová. Ele é o padroeiro de um certo povo e do tempo
histórico, da vida histórica, com muitas regras que todos têm de seguir.
Num dado momento um grande monstro chamado Vritra fechou todas as águas da terra,
houve uma seca terrível e o mundo estava em péssimas condições. Depois de muito tempo
esse deus Indra percebeu que tinha caixa cheia de relâmpagos e bastava lançar um raio sobre
Vritra e faze-lo explodir. E quando ele fez isso, as águas voltaram a correr e o mundo se
refrescou. Aí, ele disse: "Puxa, que grande cara eu sou!". Então, sempre pensando que era o
tal, Indra sobe na montanha cósmica, que é a montanha do centro do mundo e decide construir
ali um novo mundo, uma nova cidade e principalmente um grande palácio digno de alguém tão
grandioso quanto ele.
Chama então Vishvakarman, o principal carpinteiro dos deuses, e o incumbe de construir
esse palácio. Vishvakarman logo constrói o palácio. Só que cada vez que Indra visita o trabalho
tem idéias mais grandiosas e magníficas para o palácio. Por fim, Vishvakarman pensa: "Meus
Deuses, nós dois somos imortais e os desejos dele não têm fim. Estou preso nessa tarefa para
o resto da vida". Decide então consultar Brahma, que é o criador, e queixar-se a ele.
Brahma está sentado numa flor de lótus, símbolo da energia e da graça divina; e esse lótus
nasce do umbigo de Vishnu, que é o deus adormecido, cujo sonho é o universo. Então ali está
Brahma no seu lótus e Vishvakarman vai até a margem desse grande lago, da flor de lótus do
universo e conta sua história. Brahma então lhe diz: "Pode ir embora; deixe que eu dou um jeito
nisso".
Assim, na manhã seguinte no portão do palácio em construção aparece um belo rapaz, de
um negro azulado, com várias crianças em volta, só admirando a sua beleza. O rapaz entra e
Indra, o Rei-Deus, em seu trono lhe diz: "Seja bem-vindo, o que o trás ao meu palácio?".
"Bem", diz o rapaz, com uma voz que parece um trovão rugindo no horizonte, "me disseram
que você está construindo um palácio como nenhum Indra jamais construiu". E continua: "Já
andei olhando tudo por aqui e me parece que é verdade. Nenhum Indra antes de você jamais
construiu um palácio igual a este".
Ao que Indra responde: "O que? Indras antes de mim? Do que você está falando?" E o
jovem diz: "Indras antes de você! Já vi muitos e muitos Indras irem e virem. Pense bem, Vishu
está dormindo no oceano cósmico e do seu umbigo cresce o lótus do universo. Neste lótus
está sentado Brahma, o criador. Brahma abre os olhos e passa a existir um mundo governado
por um Indra. Ele fecha os olhos e esse mundo desaparece. Abre os olhos e o mundo passa a
existir; fecha os olhos... E a vida de um Brahma dura 432mil anos e aí ele morre. Daí volta o
lótus, outro lótus e outro Brahma. E pense também nas galáxias para além de outras galáxias,
no espaço infinito, cada uma delas é um lótus com um Brahma sentado abrindo e fechando os
olhos com seus Indras. Talvez aqui na sua corte haja algum sábio que se disponha a contar as
gotas d'água nos oceanos, ou os grãos de areia nas praias, mas ninguém poderia contar esses
Brahmas, muito menos todos esses Indras".
Enquanto ele fala, uma fileira de formigas vem atravessando o chão do palácio em perfeita
ordem. Ri ao vê-las. Indra fica de cabelo em pé e diz: "Do que você está rindo?". E o rapaz
responde: "Não me pergunte isso a menos que você esteja disposto a ficar magoado". Indra
responde: "Estou disposto. Ensine-me". Ele então diz: "Antigos Indras. Todas elas. Através de
muitas vidas elas se elevam da condição espiritualmente mais baixa até a iluminação mais alta;
daí fulminam Vritra com seu raio e pensam:" Puxa, que grande cara eu sou!". E em seguida
caem de novo lá em baixo".
Então Indra, sentado no seu trono fica totalmente desiludido. Lá esta ele, arrasado,
pensando: "Bom, é melhor parar de construir este palácio". Chama então Vishvakarman e diz:
"Você está dispensado, acabou-se a construção do palácio". Indra então decide: "Vou me
tornar um iogue; ficar só meditando nos pés de lótus de Vishu".
Mas ele tinha uma bela rainha chamada Indrani. E ao ouvir isso, ela vai até o sacerdote, o
capelão dos deuses, e diz: "Agora ele está com essa idéia na cabeça de querer ser iogue".
"Bem", diz o Brahmin "venha comigo, querida, vamos dar um jeito nisso". Eles então
conversam com Indra. Os dois sentam à frente do trono do rei e o Brahmin lhe diz: "Alguns
anos atrás escrevi um livro para você sobre a arte da política. Você está na posição de rei. Está
na posição de rei dos deuses. Você é uma manifestação do mistério de Brahma no nível do
tempo. Este é um alto privilégio. Você deve aprecia-lo, honrá-lo e tratar a vida como se você
fosse realmente aquilo que realmente é". E com essas instruções Indra desiste da idéia de se
tornar um iogue e descobre que pode representar a eternidade da vida na forma de um
símbolo: o símbolo do Brahmin e da verdade final".
Assim, cada um de nós é de certa forma o Indra da sua própria vida; e pode fazer sua
escolha: ou vai para a floresta meditar e joga tudo fora ou então fica no mundo e na vida. E
seja na vida do seu trabalho: que é o trabalho dos reis, da política e das realizações; seja na
sua vida amorosa, com sua mulher e sua família, você estará realizando a verdade. Eu acho
esse mito bonito.
_Será que chegamos a conhecer a verdade?
_Cada pessoa pode ter sua própria experiência e alguma convicção de estar em contato com
seu próprio "satyananda", seu próprio ser: a consciência e a felicidade verdadeira. Os
religiosos dizem que só passaremos por isso quando formos para o céu, ou seja, depois da
morte. Mas eu sou a favor de obter o máximo possível dessa experiência enquanto estamos
vivos.
_Nossa felicidade é agora.
_Passaremos tão bem no céu olhando para Deus que não teremos nada da nossa própria
experiência. Lá não é o lugar para se ter essa experiência. O lugar é aqui.

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