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ESCOLA “MATER ECCLESIAE”

CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 1: ANTROPOLOGIA E GENERALIDADES

O estudo dos últimos acontecimentos que afetarão o indivíduo e o gênero humano, deve começar por uma
apresentação do que é o homem, sujeito de tais acontecimentos.

Lição 1: Que é o homem?

1. O ser humano é composto de corpo material e alma espiritual.


Há quem pergunte: qual a diferença entre alma e espírito?
Responderemos que o espírito é um ser dotado de inteligência e vontade, mas sem corpo, sem dimensões
materiais, sem forma, sem tamanho. Há três tipos de espírito, como se pode ver abaixo:

Espírito

[não criado: Deus


para existir sem corpo: o anjo (bom ou mal)
criado
para se aperfeiçoar no corpo: alma humana

São Paulo, em lTs 5,23, parece distinguir três componentes (espírito, alma e corpo) no ser humano. - Na
verdade, porém, o Apóstolo não intencionou ensinar antropologia, mas aludiu ao ser humano, usando uma das
maneiras de falar da sua época. De resto, a palavra “espírito” (pneuma) nos escritos paulinos tem mais de um
sentido, podendo designar o Espírito Santo (cf. Rm 5,5) como também a vida da graça no cristão (cf. l Cor 2,14s).
O corpo é mortal, pois consta de elementos materiais, que, com o tempo, se vão desgastando.
A alma humana, sendo espiritual, é imortal por si mesma; sendo simples, ela não se decompõe. Pode, sem
dúvida, ser aniquilada por Deus, que a criou a partir do nada. Sabe-se, porém, que Deus não destrói as criaturas que
Ele fez com muito amor.
Em cada ser humano há uma só alma (espiritual), que é responsável por todas as funções - vegetativas,
sensitivas e intelectivas - dessa pessoa. Não há duas ou três almas no mesmo indivíduo.
Corpo e alma, embora sejam distintos um do outro, são complementares entre si; formam um só todo
psicossomático. Nenhuma atividade do homem é meramente psíquica ou meramente somática. Embora a alma seja
espiritual e imortal por si mesma, ela precisa do corpo para desenvolver suas potencialidades. Uma vez separada do
corpo após a morte, ela usufruirá dos valores adquiridos enquanto unida ao corpo.

2. A doutrina assim apresentada nada tem que ver com dualismo. Este implica antagonismo entre partes
opostas. Ocorre nas teorias maniquéia, órtica, pitagórica e no hinduísmo, que têm a matéria como algo de
intrinsecamente mau e o espírito como algo de bom por sua natureza mesma. A doutrina cristã rejeita o dualismo,
pois afirma que a matéria é, como o espírito, criatura de Deus e, por conseguinte, ontologicamente boa. Mas nem
por isso a doutrina cristã cai no monismo, que identifica entre si matéria e espírito. - Entre dualismo e monismo
situa-se a dualidade; esta professa a distinção de espírito e matéria, mas não os julga antitéticos entre si, e, sim,
complementares. Analogamente homem e mulher são criaturas distintas uma da outra, mas não antagônicas, e, sim,
feitas para se complementar mutuamente.

Recapitulando esquematicamente:
Dualismo: dois princípios opostos entre si por sua própria natureza ou no plano ontológico;
Dualidade: dois princípios distintos, mas não opostos entre si, e, sim, complementares;
Monismo: uma só realidade com facetas diversas.

Ora corpo e alma formam uma dualidade, e não dualismo nem monismo. A dualidade de corpo e alma é
afirmada em Mt 10,28: “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei, antes, aquele que
pode destruir a alma e o corpo na geena”.
Frente a recentes concepções monistas, a Igreja se pronunciou.

Lição 2: A palavra oficial da Igreja


Aos 17/05/l979 foi promulgada uma Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, que incute a
distinção entre corpo e alma. Eis as suas afirmações principais:
“Esta Sagrada Congregação, que tem a responsabilidade de promover e defender a doutrina da fé, propõe-
se hoje recordar aquilo que a Igreja ensina, em nome de Cristo, especialmente quanto ao que sobrevêm entre a
morte do cristão e a ressurreição universal:
1) A Igreja crê é numa ressurreição dos mortos (cf. Símbolo dos Apóstolos).
2) A Igreja entende esta ressurreição referida ao homem todo; esta, para os eleitos, não é outra coisa se
não a extensão, aos homens, da própria ressurreição de Cristo.
3) A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual, dotado de
consciência e de vontade, de tal modo que o eu humano subsista, ainda que sem corpo. Para designar esse
elemento, a Igreja emprega a palavra alma, consagrada pelo uso que dela fazem a S. Escritura e a Tradição. Sem
ignorar que este termo é tomado na Bíblia em diversos sentidos, Ela julga, não obstante, que não existe qualquer
razão seria para o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente indispensável um instrumento verbal para sustentar
a fé dos cristãos.
4) A Igreja exclui todas as formas de pensamento e de expressão que, se adotadas, tornariam absurdas ou
ininteligíveis a sua oração, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, realidades que, na sua substância,
constituem lugares teológicos.
5) A Igreja, em conformidade com a Sagrada Escritura, espera a gloriosa manifestação de Nosso Senhor
Jesus Cristo (cf. Constituição Dei Verbum 14), que Ela considera como distinta e diferida em relação àquela
condição própria do homem imediatamente após a morte.
6) A Igreja, ao expor a sua doutrina sobre a sorte do homem após a morte, exclui qualquer explicação que
tire o sentido á Assunção de Nossa Senhora naquilo que ela tem de único, ou seja, o fato de ser a glorificação
corporal da Virgem Santíssima uma antecipação da glorificação que está destinada a todos os outros eleitos.
7) A Igreja, em adesão fiel ao Novo Testamento e á Tradição, acredita na felicidade dos justos que estarão
um dia com Cristo. Ao mesmo tempo Ela crê numa pena que há de castigar para sempre o pecador que for privado
da visão de Deus, e ainda na repercussão dessa pena em todo o ser do mesmo pecador. E, por fim, Ela crê existir
para os eleitos uma eventual purificação prévia á visão de Deus, a qual no entanto é absolutamente diversa da pena
dos condenados. É isto que a Igreja entende quando Ela fala de inferno e de purgatório.
Nesta Declaração chamam-nos a atenção especialmente
- o item 3: afirma a separação de corpo e alma na morte e a subsistência, sem corpo, da alma humana,
elemento espiritual, dotado de inteligência e vontade (núcleo da personalidade);
- os itens 5 e 6: ensinam que não coincidem entre si a hora da morte de cada indivíduo e a parusia ou
manifestação final de Jesus Cristo. Se alguém morrer em 1993, não creia que assistirá imediatamente ao fim do
mundo, alegando que, após a morte não há futuro nem passado. A ausência de futuro e passado ou o regime da
eternidade é de Deus só. A criatura que deixa este mundo, emancipa-se do tempo, mas não passa a viver o regime
da eternidade; a sua duração será medida pelo EVO ou por uma sucessão de atos psicológicos, como se dirá no
Módulo 32 deste Curso (onde se encontra, de novo, transcrito o texto da Congregação para a Doutrina da Fé).

Lição 3: Observações de orcem geral

Antes de entrarmos nas diversas unidades do tratado dos Novíssimos, importa-nos tecer algumas
considerações de ordem geral:

3.1. A ênfase modifica-se

Nota-se que os antigos cristãos voltavam sua atenção especialmente para a consumação do universo ou o
fim do mundo. Esperavam para breve a segunda vinda de Cristo e o juízo final. É o que se depreende das epístolas
de São Paulo, onde se lê:
“Quando o Senhor ao sinal dado, á voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os
mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida, nós, os vivos, que estivermos lá, seremos arrebatados com
eles nas nuvens para o encontro com o Senhor nos ares” (1Ts 4,16s).
Este texto, com suas imagens, exprime a esperança que S. Paulo alimentava, de ainda estar vivo quando
Cristo voltasse no fim dos tempos.
Os antigos cristãos ansiavam por esse evento final, rezando: "Maranatha! Senhor, vem!" (cf. l Cor 16,22;
Ap 22,20).
Vejam-se ainda os seguintes textos:
“O fim de todas as coisas está próximo. Levai, pois, uma vida de autodomínio e de sobriedade, dedicada á
oração” (1Pd 4, 7).
“Esperai com paciência e fortalecei o vosso coração, porque a vinda do Senhor está próxima” (Tg 5,8).
Todavia, já que os decênios se passavam e o fim da história não ocorria, foi-se deslocando a atenção da
consumação do mundo para a consumação de cada indivíduo. Com outras palavras: foi prevalecendo o interesse
pela morte pessoal como encontro com o Senhor. Mais e mais foi-se empalidecendo a expectativa da próxima
vinda de Cristo como Juiz Universal. A piedade medieval deixou-nos vários escritos sobre a morte e os
acontecimentos finais concernentes ao ser humano individual; a meditação sobre os mesmos incitava os fiéis a uma
vida santa e fervorosa.
No século XX, porém, nem a consumação do universo nem a do indivíduo merecem a atenção da
sociedade em geral. Instaurou-se a aversão generalizada á temática da morte e de seus concomitantes; registra-se a
tendência a afastar qualquer sinal de tais realidades, como se dirá mais explicitamente no Módulo 2 deste Curso.
Tal tendência, porém, representa uma fuga ilusória. “A morte é a única certeza que o ser humano possa
ter desde que nasce", diz-se comumente. Dai a importância de nos dedicarmos a tal tema nos Módulos deste Curso.

3.2. Sobriedade nas afirmações

A morte e a vida póstuma suscitam facilmente a imaginação de cristãos e não cristãos. Muitas estórias e
lendas populares se propagam em torno do assunto: os mortos voltam, enviam mensagens, assustam os vivos...,
como narram muitos escritores e mestres. Essas estórias que geralmente têm seu fundamento na fantasia dos vivos
ou, não raro, em fenômenos parapsicológicos, consolam ou apavoram. Correspondem, de certo modo, a uma
necessidade do ser humano, que quer continuar em contato com os seus semelhantes falecidos.
A Igreja, consciente de que a imaginação pode tornar infantis ou ridículas as verdades da fé, pede aos
pregadores que se mantenham sóbrios e discretos ao descrever o além. Digam o que é certo, enfatizando-o bem;
proponham o hipotético como hipotético e abstenham-se de ir além de tais limites, criando concepções ou imagens
da própria fantasia.

Eis palavras do Concilio de Trento datadas de 1563:

“O Sacrossanto Sínodo prescreve aos Bispos vigiem para que a autêntica doutrina do purgatório, recebida
dos Santos Padres e dos Santos Concílios, seja pelos cristãos aceita na fé, sustentada, ensinada e apregoada com
diligência. Junto á gente simples, porém, as pregações populares devem ser isentas das questões difíceis e sufis, que
não são de utilidade para edificar e das quais não se retira proveito para a piedade. Não permitam os Bispos que se
divulguem e se discutam pontos incertos ou aparentemente falsos. Proíbam como escandalosos e ofensivos aos fiéis
os famas que derivam de mera curiosidade, ou nutrem superstições ou se inspiram de lucro vergonhoso"
(Denzinger-Schònmetzer, Enchiridion Symbolorum...n 1820 [983]).

3.3. Topografia do Além


A mentalidade judaica antiga, associada ao sistema geocêntrico, criou certa topografia do Além;
imaginou o céu "lá em cima" e o inferno "lá em baixo" (inferno vem de infra, em baixo). É espontâneo ao ser
humano conceber o Além como uma edição melhorada e ampliada do aquém: teria seus jardins, suas luzes, flores,
instalações materiais... É preciso que o fiel católico se dê conta de que tais imagens são meras projeções subjetivas,
destituídas de fundamento objetivo. O Apóstolo São Paulo observa: “O que os olhos não viram, os ouvidos não
ouviram e o coração do homem jamais concebeu, eis o que Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2,9).
A necessidade de sobriedade do discurso escatológico tornar-se-á sempre mais clara á medida que
prosseguirem os estudos deste Curso.

Lição 4: Plano do Curso


O tratado dos Novíssimos divide-se em duas panes com suas sub-partes, como se segue:
Morte
Juízo final
Purgatório
Individual Inferno
Limbo das crianças
Escatologia
Segunda vinda de Cristo (parusia)
Ressurreição da carne
Juízo final
Céu novo e terra nova
Coletiva

A Escatologia individual diz respeito aos acontecimentos que afetarão cada indivíduo no fim da sua
jornada terrestre. A Escatologia coletiva compreende a consumação da história e do universo ou os acontecimentos
relacionados com o fim dos tempos.
Os Módulos deste Curso desenvolverão cada uma das unidades do tratado, seguindo a ordem atrás
proposta.

PERGUNTAS
1) Pode-se dizer que o ser humano consta de corpo, alma e espírito?
2) Corpo e alma se distinguem entre si?
3) Qual a diferença entre dualismo, dualidade e monismo?
4) Podemos localizar o céu e o inferno?
5) Há vantagens em pensar nos acontecimentos finais?

O TEMPO

São palavras de Sêneca (65 d.C.), filósofo estóico, preceptor do Imperador Nero:
“Meu caro Lucílio, reivindica a posse de ti mesmo. Teu tempo até agora te era tomado, roubado; ele te
escapava. Recupera-o e cuida dele. A verdade, ei-la.- nosso tempo, arrancam-nos uma parte dele, desviam outra
parte e o resto nos escorre entre os dedos. Todavia é mais digno de censura perdê-lo por negligência. E, para quem
considera bem, uma boa parte da vida decorre em feitos desajeitados; outra parte decorre na vadiagem; a vida
inteira passa enquanto fazemos coisas diferentes daquelas que deveríamos fazer.
Poderias citar-me um homem que dê valor ao tempo, que reconheça o valor de um dia, que compreenda
que ele morre diariamente? Nosso erro está em julgar que a morte está diante de nós. No que se refere ao essencial,
ela já passou. Uma parte da nossa vida está atrás de nós e pertence á morte.
Por conseguinte, caro Lucilio, faze o que dizes: segura cada hora. Serás assim menos dependente do
amanhã, pois tu te terás apoderado do dia presente. Os homens adiam a vida para mais tarde. Enquanto o fazem, a
vida se escoa.
Lucílio, tudo se acha fora do nosso alcance. Somente o tempo nos pertence. Este bem fugidio,
escorregadio, é a única coisa de que a natureza nos fez proprietários. E o primeiro que sobrevem, no-lo arrebata! As
pessoas são loucas: diante do mínimo presente, de quase nenhum valor cada qual se sente obrigado a retribui-lo, ao
passo que ninguém se julga obrigado em virtude do tempo que lhe é concedido, tempo que é a única coisa que
homem algum pode retribuir, seja ele o mais grato dos homens" (Sêneca, Carta a Lucilio 1 § 2).

A MORTE QUE NÃO É MORTE

“Não devemos chorar a morte dos entes queridos. Não é certo lamentar-se como particular desgraça o que
se sabe atingir a todos. Seria desejar subtrair-se ao destino geral, não aceitar a lei comum, não reconhecer a
igualdade de natureza, seguir os sentimentos carnais e ignorar a finalidade do corpo. Haverá algo mais tolo do que
desconhecer o que se é, querer parecer o que não se é?... algo de menos inteligente do que, sabendo o que deve
acontecer, não lograr suportá-lo quando acontece? A própria natureza nos interpela e nos retira da dor com um
modo de consolar que lhe é todo próprio. De fato, não há sofrimento tão profundo, tormento tão acerbo que não
ache algum lenitivo; e é a natureza que oferece aos homens, precisamente porque são homens, desligando seu
espírito da dor, mesmo nas situações mais tristes e lutuosas. Houve povos, dizem, que se afligiam com o
nascimento de um homem, ao passo que celebravam festivamente sua partida. Isto não é totalmente destituído de
significado, pois acreditariam dever lamentar os que se põem ao leme do barco em mar tempestuoso, como é a
vida; pensariam, ao contrário, não ser errado alegrar-se com os que escapavam ás borrascas da vida. Mesmo nós,
cristãos, esquecemos o dia do nascimento de nossos santos e festejamos o de seu retorno á pátria.
De acordo com a ordem natural, portanto, não é justo dar excessivo lugar ao pesar, se não se deseja
reclamar uma especial exceção ao curso da natureza, recusando-se a sorte comum. A morte, com efeito, é comum a
todos, sem distinção de pobres e ricos. E, embora tenha vindo ao mundo por culpa de um só homem, passou a
todos, a ponto de devermos considerar autor da morte o que foi principio do gênero humano. Mas igualmente por
obra de um só veio para nós a ressurreição! Não haveria então que desejar subtrair-nos ao flagelo trazido pelo
primeiro, para que assim possamos obter a graça do segundo. Cristo, diz a Escritura, veio para recuperar o que
estava perdido, afim de reinar deste modo não só sobre os vivos, mas também sobre os monos. Em Adão nós
caímos, fomos expulsos do paraíso e morremos: como poderá o Senhor reconduzir-nos a si, se não nos encontra em
Adão? Neste decaímos sob o poder do pecado e da morte, em Cristo nos tornamos justificados. A morte é um
débito comum; todos devemos suportar-lhe a paga...
Considero um ultraje que se faz á piedosa memória dos defuntos o considerá-los perdidos e o preferir
esquecê-los antes que confortá-los com nossos sufrágios; o pensar neles com temor e não com amor e
benevolência; o temer recordá-los, ao invés de procurar-lhes a paz; o nutrir enfim mais receio do que esperança,
quando se pensa em seus méritos, como se lhes competisse mais o castigo do que a imortalidade.
Vem contudo a objeção: ‘Mas perdemos os nossos caros!’ Sim, porém não é esta a sorte que
comungamos com a terra e com os elementos: a de não reter para sempre o que nos foi emprestado por algum
tempo? A terra geme sob o arado, é frustrada pela chuva, batida pela tempestade, ressecada pela geada, queimada
pelo som; tudo isto, para que frutifique e dê a colheita de cada ano. Apenas se reveste de múltiplos encantos e logo
deles vem desfeita. De quanta coisa se vê privada! Mas não irá lamentar a perda de seus frutos, pois os produziu
para perdê-los. Nem se recusa a produzir outros no futuro, embora lhes vão ser de novo tirados. O céu também, ele
não está sempre fulgurando com a grinalda das estrelas, nem a aurora sempre o ilumina ou o douram os raios de
sol, mas bem regularmente se torna velado pela fria neblina da noite. Que há de mais grandioso que a luz, de mais
esplendoroso que o sol? Pois ambos desaparecem cada dia e nós suportamos isto sem reclamar, pois sabemos que
voltarão. Aqui se mostra a paciência que deves ter quando também se vão os que te são caros. Não te entristeces
quando os astros desaparecem. Por que há de afligir-te a morte do homem?
(S. Ambrósio, Sobre a Morte de seu irmão Sátiro).

MÓDULO 2: A MORTE (I) - A FILOSOFIA

Entramos agora na primeira unidade da Escatologia individual: a morte.


A morte é, sem dúvida, um dos fenômenos que mais falam ao homem. O seu caráter inexorável e os
mistérios que a cercam, sempre atraíram os pensadores. Bem se entende isto: uma das necessidades mais
imperiosas que o homem ressente, é a de explicar a sua presença neste mundo; para tanto, é preciso perscrutar o
significado da etapa final, que é a morte; é preciso responder á questão: "Para onde vamos?"
A morte é mesmo alguma coisa que perpassa toda a vida do homem na terra, como
já o verificava o filósofo Sêneca (65 d.C. aproximadamente) :

"Que indivíduo me poderás apontar... consciente de que todos os dias vai morrendo ? Com efeito, nós nos
enganamos precisamente por considerar a morte como algo de futuro; uma grande parte dela já se passou. Todos os
anos já vividos estão em poder da morte" (epistola 1,2).
Por isto, desde a antigüidade se dizia que a Filosofia tende primeiramente a ensinar o homem a morrer; é
o que afirma Platão, o filósofo grego (430-348 a.C.):
"Aqueles que, no sentido preciso do termo, se aplicam a filosofar, exercitam-se a morrem e a idéia de
estar um dia morto é, para eles, menos que para os outros, motivo de temor" (Phaidon 67s).
Muito variadas no decorrer dos séculos foram as tentativas de explicar o sentido da morte, fora do
Cristianismo. Examinaremos as principais, para melhor perceber o significado da mensagem que a Revelação cristã
trouxe sobre o assunto.

Lição 1: Pessimismo perante a morte

A morte apareceu aos homens, desde a antigüidade, como um mal. Eis algumas modalidades desse
pessimismo:

1.1. Na literatura grega pré-cristã

Alguns pensadores gregos deploravam a morte como algo que projeta sua sombra sobre toda a vida do
homem, e dela faz uma ilusão ou um sonho, uma comédia ou uma tragédia. A prova de que a morte é um mal, é
que ela não afeta os deuses; de fato, a mitologia atribuía aos deuses (Júpiter, Mercúrio, Marte, Vênus...) orgias,
bacanais, guerras..., não, porém, a morte; os homens fazem as mesmas coisas e morrem, de modo que a diferença
entre os deuses e os homens estaria na athanasia, imortalidade, que privilegia os deuses.
A morte coloca o homem numa região de sombras e incertezas chamada Hades. Ver ainda a propósito o
Módulo 6 deste Curso.
Não faltava quem procurasse temperar estas impressões com um precário consolo: a vida mesma, diziam
alguns gregos, é um bem duvidoso, cheio de fadigas e penúrias, de modo que, por vezes, melhor seria ao homem
não ter nascido ou ter morrido imediatamente após o parto; repetiam o axioma: "Aquele que os deuses amam,
morre jovem". Conseqüentemente, o suicídio podia ser tolerado como libertação do sofrimento. Não obstante,
confessavam, quando se aproxima a morte, não há quem queira morrer!

1.2. No estoicismo greco-romano


O pessimismo tomou forma mais atraente na escola estóica. Esta ensinava que a morte é algo de
indiferente, pois só há um bem ia virtude) e um mal (o vício). Por conseguinte, o estóico devia convencer-se de que
morrer é um acontecimento natural, que não amedronta; o suicídio, desde que "razoavelmente justificado", seria
plenamente licito.
Pregando a apatia (apatheia), o estóico se tornava estranho não só á morte, mas á própria vida; não era um
entusiasta nem um amigo do viver. Por isto, certa vez, o fundador do Estoicismo - Zenão de Citio (262 a.C.) - tendo
levado um tombo que lhe parecia fatal, considerou-se feliz por terminar a sua vida e atirou-se nos braços da morte
exclamando: "Já vou ter contigo; por que me chamas?"
Um tal desprezo da morte, como se esta não contrariasse os íntimos anseios do homem, era artificial e
violento. O Estoicismo, querendo negar o caráter sinistro do fenômeno, vem a ser a expressão de um desespero
agudo.

1.3. Entre povos primitivos

Vários povos primitivos da África, da Ásia e da Oceania conceberam a morte como conseqüência da
violação da ordem de coisas originária; os primeiros homens terão desobedecido á Divindade, acarretando a
catástrofe da morte. E o que se depreende de certas lendas, que, através da sua roupagem mitológica, transmitem tal
concepção. Eis cinco dessas narrativas:
Várias tribos de New South Wales (África) contam que os homens foram originariamente destinados a
não morrer. Todavia foi-lhes proibido aproximar-se de determinada árvore oca. Ora abelhas selvagens fizeram sua
colmeia nessa árvore, e as mulheres se propuseram tirar o respectivo mel. Apesar das admoestações dos homens,
uma mulher atacou a árvore com o seu machado; então saiu da árvore não o mel desejado, mas uma enorme
coruja... Era a morte, que dai por diante está livre para percorrer o mundo e reivindicar para si tudo o que ela possa
tocar com as asas.
Os Bagandas da África Central narram que Kintu, o primeiro homem, depois de Terra superado vários
testes, obteve a licença de se casar com Nambi, uma das filhas de Mugulo (o Céu ou o Alto). O pai da jovem
deixou que ela viesse com seu consorte para a terra, trazendo ricos presentes, entre os quais uma galinha. Ao
despedir-se do casal, mandou que se apressassem por sair, aproveitando o fato de que o irmão de Nambi, chamado
Warumbe ia Morte), estava fora de casa; recomendou-lhes também que não voltassem para apanhar o que quer que
tivessem esquecido. Durante a caminhada, porém, Nambi verificou que chegara a hora de dar de comer á galinha;
já que esquecera o milho, consentiu em que Kintu voltasse á casa para buscá-lo. Mugulo, o pai, ao rever o genro,
irritou-se pela desobediência; Warumbe, a Morte, estando de novo em casa, fez questão de acompanhar Kintu; toda
a resistência foi inútil; a Morte desceu com o casal para a terra, onde até hoje habita com os homens.
Os pigmeus contam coma Divindade (Mugasa) a principio criou dois rapazes e uma moça, com os quais
vivia em amizade na floresta, como um pai com seus filhos, num lugar de toda bonança: nada faltava aos homens,
nem tinham que recear alguma perspectiva de morte. Mugasa apenas lhes proibira que procurassem ver a sua face.
Habitava uma tenda, diante da qual diariamente a jovem tinha que depositar lenha para o fogo e um jarro d’água.
Um dia, porém, a moça, vencida pela curiosidade, escondeu-se atrás de uma árvore, ficando á espreita do "Pai", que
havia de aparecer. De fato, ela o pôde ver, quando estendia o braço reluzente de ornamentos a fim de apanhar o
jarro. A menina alegrou-se então profundamente e guardou o segredo do ocorrido. Mugasa, porém, percebera a
desobediência. Chamou os três irmãos á sua presença e lhes censurou a falta, predizendo-lhes que havia de os
deixar; para o futuro, a indigência e a morte pesariam sobre eles. Os prantos das três criaturas não conseguiram
deter a sentença; certa noite, Mugasa partiu rio acima, e não foi mais visto. Quanto ao primeiro filho que nasceu á
mulher, morreu após três dias de existência...
Graciosa é a história que narram os japoneses: o príncipe Ninighi se enamorou pela princesa "Florescente
como as Flores". O pai da jovem, que era o Deus da Grande Montanha, consentiu em seu casamento, e deixou-a
partir com sua irmã mais velha "Alta como as Rochas". Esta porém, era tremendamente feia, de sorte que o noivo a
mandou voltar para casa. Em conseqüência, o velho deus amaldiçoou o genro, e declarou que sua posteridade seria
frágil e delicada como as flores!
Os Bataks de Palawan (Filipinas) contam que o seu deus costumava ressuscitar os mortos. Todavia certa
vez os homens o quiseram enganar, apresentando-lhe um tubarão enfaixado como um cadáver. Quando a
Divindade descobriu a astúcia, amaldiçoou os homens, condenando-os a ficar sujeitos ao sofrimento e á morte.
Taislendas podem ser tidas como expressões paralelas ao relato do pecado original apresentado no livro
do Gênesis c.3.

1.4. No Existencialismo Moderno

Os pensadores existencialistas dos séculos XIX/XX deram ao pessimismo a sua forma mais veemente.
Para eles, a angústia é nota dominante da vida humana. "O arrepio da angústia corre incessantemente através do ser
humano" (Martin Heidegger, 1976). O homem passa do nada para o nada, e a vida presente não tem sentido. Disto
se origina, no baixo Existencialismo, a tendência a gozar desenfreadamente dos bens deste mundo.
De modo especial, interessa o pensamento de Karl Jaspers li lg6g), que, sem abandonar o pessimismo,
quis valorizar a morte humana nos seguintes termos:
A morte, penetrando antecipadamente todas as ações do homem, impõe a este o dever de viver a cada
momento de modo a poder enfrentá-la com segurança. O indivíduo é assim convidado a mobilizar, em cada um dos
seus atos, todas as suas energias; a morte leva á plenitude este profundo esforço; consuma o próprio homem e a sua
vida. A morte, porém, é o ponto final posto á existência; de modo nenhum é passagem para uma vida melhor.
Jaspers julga que, se a existência se prolongasse depois da morte, o sentido e a seriedade da morte seriam
rebaixados.
Reconheçamos, porém, que é precária a consumação que se possa dar á vida na terra mediante o
"estimulo" da morte, termo negativo apenas. Somente Deus e a vida eterna podem oferecer ao homem a sua
autêntica consumação.

1.5. Na sociedade contemporânea

Até o começo do século XX a morte era algo que a família do moribundo acompanhava, geralmente em
sua residência: depois de ter posto em ordem seus interesses terrenos, o paciente se deitava para morrer, e recebia o
reconforto da sua fé religiosa, cercado de amigos, familiares e empregados da casa. O falecimento era ato público,
que os sobreviventes acompanhavam com seriedade e certa solenidade.
Nos últimos decênios, porém, o conceito e a realidade da morte vêm sendo mais e mais evitados. A
palavra “morte” tornou-se uma palavra-tabu banida. Os cemitérios, que antigamente costumavam ficar contíguos á
igreja paroquial, em lugar central da cidade, passaram para a periferia das cidades; tomam o aspecto de jardins ou
de torres cilíndricas, que dissimulam a realidade da morte. As pessoas morrem freqüentemente em hospitais, e não
em casa de família, em parte por causa do progresso da assistência médico-hospitalar, em parte também por causa
das condições habitacionais das grandes cidades, onde predomina o regime de apartamentos. Isto faz que o paciente
morra, não raro, sem o conforto da presença de seus familiares, em ambiente estranho e frio.
Examinemos agora a corrente - muito menos densa - de pensadores não cristãos que procuravam ver na
morte algo de positivo.

Lição 2: Otimismo frente á morte

2.1. Entre os gregos pré-cristãos

Encontra-se entre os gregos o ideal do herói. É aquele que morre com dignidade por uma causa nobre,
especialmente pela pátria (pólis) ou pelos amigos. A sua morte era tida como vitória gloriosa, que o herói associava
ao seu nome. Em conseqüência, merecia o louvor dos pósteros, junto dos quais a sua memória permanecia
imortalizada; julgava-se que os defuntos podiam ouvir algo desse louvor prolongado na terra. Assim “morrer
belamente” era o ideal do herói grego.
Havia também na cultura helenista correntes dualistas, que consideravam o corpo cárcere ou sepulcro.
Conseqüentemente, tinham da morte um conceito alvissareiro, pois ela seria a libertação da alma prisioneira da
matéria, e possibilitaria ao indivíduo expandir plenamente a sua vitalidade. Assim pensavam os órticos, os
pitagóricos, Platão (em algumas de suas obras) e, no inicio da era cristã, os neoplatónicos e os gnósticos. Para estes
últimos, a existência no corpo era simplesmente morte, e a deposição do corpo era o inicio da verdadeira vida.
Muito significativa é a seguinte passagem do Corpo Hermético, escrito gnóstico 1 do século III d.C.:
“Em primeiro lugar, é preciso rasgares a túnica que trazes..., a morte viva, o defunto sensitivo, o sepulcro
portátil” (7,2).

2.2. Na Filosofia moderna

Alguns autores esperam, após a morte, nova vida semelhante á presente. São os reencamacionistas, que
julgam que, através de sucessivas encarnações e desencarnações, a alma humana se vai purificando e
aperfeiçoando. Ver Módulo 7 deste Curso.
Friederich Nietzsche (+ 1900), sem professar o espiritismo, apregoa um “eterno retorno” ou interminável
renascer do ser humano; queria, com isto, dissipar o terror que as idéias de Morte e Juízo Supremo lhe suscitavam.
O eterno retorno possibilitaria a formação do "super-homem", ou seja, do homem dotado de poder sobrenatural,
que dita as normas ao universo inteiro, á Verdade e á Moralidade, á Natureza e á História.
1
A Gnose dos três primeiros séculos da era cristã era um conjunto de escolas ecléticas, em que se tundiam elementos da cultura helenista, da mística oriental e
do judaísmo. Caracterizavam-se todas pelo dualismo ou pelo repúdio á matéria e a exaltação do espírito.
O problema que filósofos pagãos e autores não cristãos tanto discutiam sem chegar a explicação
satisfatória, é iluminado pela Revelação cristã, que propõe sobre o assunto uma visão muito tranqüila, digna
realmente de um Deus Sábio e Bom, como se verá no Módulo seguinte.

PERGUNTAS

1) Escolha uma das concepções relativas á moral apresentadas neste Módulo. E faça-lhe os comentários
que lhe ocorrerem. Procure avaliar a diferença que possa haver entre tal modo de ver a moral e as suas aspirações
pessoais.
2) Você se identificaria com algumas das sentenças pessimistas ou otimistas?
3) Que faltava ao homem antigo para entender a moral?

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CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 3: A MORTE (II) - CONCEITO CRISTÃO

Lição 1: O conceito cristão da morte

l. Para o cristão, a morte não deixa de ser um fenômeno natural. Compreende-se que é dê a separação de
corpo e alma, visto que os órgãos corpóreos (coração, pulmões, fígado...) se vão desgastando, a tal ponto que, cedo
ou tarde, o organismo já não pode preencher as funções da vida; por isto a alma - principio vital (espiritual e
imortal) – se separa do corpo.
Todavia a morte brutal e dolorosa, como ela é atualmente, decorre do pecado dos primeiros pais. A S.
Escritura ensina-o enfaticamente:
"Deus não fez a morte nem experimenta alegria quando perecem os vivos. Criou todas as coisas para
que tenham existência"(Sb 1,13s).
"Deus criou o homem para a imortalidade, e o fez imagem de sua própria natureza. Foi por inveja do
diabo que a morte entrou no mundo" (Sb 2,23s).
"Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a
todos os homens, porque todos pecaram" (Rm 5,12).

2. Eis porém que o Deus de bondade, que criou o homem, não o abandonou á sua triste sorte. Em tempo
oportuno, o próprio Deus assumiu a carne humana; tomou sobre si a morte com todas as angústias precursoras e
ressuscitou; assim Jesus Cristo venceu a morte e dela nos libertou.
O Senhor obteve o triunfo sobre a morte em favor do gênero humano, a fim de que cada indivíduo saiba
que, embora deva morrer dolorosamente em conseqüência da culpa original, a morte não é para ele mera sanção,
mas é a passagem para a vida definitiva. Diz o Apóstolo:
“Pois que seus filhos participam da carne e do sangue, também Ele quis ser parte na carne e no sangue,
a fim de, por sua morte, reduzir á impotência aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, e libertar os
que, por temor da morte, estavam sujeitos á escravidão durante toda a vida" (Hb 2, 14; cf. 2Tm 1, 10).
Jesus assim se apresenta como o segundo Adão, que nos comunica a vida, e vida sem fim, em oposição ao
primeiro Adão, que nos transmitiu a morte. Cf. Rm 5,12-17.

3. Jesus nos comunica a sua vida mediante o Batismo; este nos incorpora a Cristo Cabeça (cf. l Cor 12,12)
ou nos enxerta na verdadeira Videira (cf. Jo 15,1-5). Isto quer dizer que a vida de Jesus se prolonga no cristão; é-
nos dada sob a forma de um gérmen, que tende a expandir-se cada vez mais através das nossas atividades e
transfigurar o corpo no dia em que este ressuscitar.

4. Esta situação leva o cristão a fazer uma revisão dos valores do mundo presente. Não há propriamente
morte para o cristão. Ele sofre, sim, as misérias da carne como os demais homens; mas as suas mazelas são as de
um membro de Cristo; o que quer dizer que elas, fazendo sofrer, levam á verdadeira vida e á glória definitiva. “O
corpo do regenerado torna-se a carne do Crucificado”, diz S. Leão Magno (+ 461). Quanto mais esse corpo se
configura ao de Jesus pelo padecimento, tanto mais também se lhe assemelhará na glória futura; todo sofrimento,
portanto, vem a ser um rejuvenescimento ou uma antecipada participação da glória de Cristo, como diz São Paulo:
“Trazemos incessantemente em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste,
também ela, em nosso corpo” (2Cor 4, l0).
Sofrer e morrer significam, para o cristão, estender á sua carne os sofrimentos e a morte de Cristo
vitorioso; por isto o mesmo Apóstolo pode afirmar:
"Enquanto o nosso homem exterior vai definhando, o nosso homem interior se vai renovando de dia a
dia” (2Cor 4,16).
O cristão pode muito bem dizer: assim como, para quem não tem fé, a vida presente é toda dominada pela
tremenda perspectiva da morte, que lhe vai absorvendo as energias, assim, para o cristão, a morte presente é toda
iluminada pela perspectiva da vida que não é meramente futura, mas que ele já possui em gérmen e que nele vai
desabrochando progressivamente até a ressurreição gloriosa. É o que o gráfico abaixo significa:

> = velho homem


< = Novo homem
O ângulo que se fecha, representa a vida corpórea, biológica, sujeita ao definhar e á morte, ao passo que o
ângulo que se abre designa nossa vidáespir1tlual, elevada á filiação divina pelo Batismo e os demais sacramentos.
É em consideração desta que o Senhor Jesus pode dizer:
“Quem comer do pão que desce do céu, não morrerá” (Jo 6,50).
“Quem crê em mim, mesmo que estivesse morto, há de reviver, e todo aquele que vive e crê em mim,
jamais morrerá” (Jo 11,25s).
“Em verdade, em verdade eu vos digo: quem Ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou, possui
a vida eterna..., passou da morte para a vida” (Jo 5,24).
Vejamos agora

Lição 2: As conseqüências do conceito cristão

1. Um fato que exprime tipicamente a mudança da escala de valores decorrente do conceito cristão de
morte é o seguinte:
Em sua Retórica (11, 12s), o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) procura caracterizar a juventude e a
velhice da vida humana. Afirma então que os jovens vivem para os valores morais e artísticos; concebem um ideal
de virtude e de heroísmo, cuja beleza os atrai e ao qual se entregam sem medir forças e bens materiais. Numa
palavra: vivem para o belo (pros tò kalón), não para o útil ou o interesse pessoal (tó symphéron).
A razão disto é que sentem em si uma vitalidade ardorosa, ainda não contraditada por reveses.
Consequentemente, para Aristóteles, os anciãos, experimentando em si o definhar lento das forças físicas,
vivem não mais para um ideal de beleza e bravura, mas para o interesse particular; vivem para aquilo que lhes
possa trazer proveito físico e conservar a existência. Numa palavra: vivem não mais para o belo, mas para o útil ou
o interesse pessoal (pròs tò symphéron).
Esta caracterização do ancião não deixa de impressionar; é uma desdita ás aspirações mais espontâneas e
nobres da natureza humana. E lógica, porém, aos olhos da razão natural: a vida é o fundamento de qualquer ideal
que o homem possa conceber. Ora Aristóteles e seus contemporâneos só conheciam a vida neste corpo; por isto
julgavam que as aspirações variam de acordo com o grau de vitalidade que o homem experimenta nas sucessivas
fases da sua existência terrestre.
O quadro é triste. Pergunta-se, porém: será que o homem está necessariamente fadado a renegar seus
ideais mais nobres?
A esta pergunta responderemos apontando o caso de outro pensador - o Apóstolo São Paulo - que viveu
três séculos após Aristóteles e tomou conhecimento da mensagem cristã. Esta lhe inspirou um modo de ver bem
diferente das concepções do filósofo grego. Com efeito; basta notar que o Apóstolo escreveu treze cartas, sendo as
três últimas ias Pastorais: 1/2 Tm e Tt) datadas dos anos de Paulo sexagenário, encarcerado em Roma e consciente
de que estava prestes a ser condenado á morte. Pois bem; ao passo que nas dez epístolas anteriores o Apóstolo
empregara vinte vezes o adjetivo kalón (belo e bem moral), nas três pastorais ele o usou vinte e quatro vezes, e
geralmente como aposto aos diversos substantivos com que descrevia a vida cristã 2.
A mente de S. Paulo aparece assim impregnada pelo ideal da beleza e pelas aspirações supremas na idade
decrépita, muito mais ainda do que no vigor dos anos. O Apóstolo assim punha em xeque as previsões do filósofo
grego. - E qual a razão deste contraste? - É que justamente o Apóstolo percebia o sentido que a morte tomou após
Cristo, sentido que o homem antes de Cristo não podia perceber: Paulo já não considerava a morte como fim da
existência humana, mas como passagem para outra vida, muito mais rica e fecunda do que a terrestre; por isto
também, quanto mais próximo se achava da morte, tanto mais afirmava os valores nobres, pois sabia que o seu
definhar na vida terrestre era, na realidade, um rejuvenescimento para a vida definitiva.

2
Assim bela luta (2Tm 4,7); bela milícia (1Tm 1,18; 2 Tm 3,3); bela doutrina (1Tm 4,6); bela testemunho (1Tm 3,7); bela lei (1Tm 1,8); belo fundamento
(1Tm 6,19); belo ministro (de Cristo) (1Tm 4,6)...
Eis como a morte, para o cristão, importa um autêntico desabrochar, em vez de extinção da personalidade.
Ela pode e deve ser dita “transfiguração” do discípulo de Cristo.
2. Conscientes deste valor da morte, os antigos cristãos chamavam-na o seu natalício propriamente dito.
Bem se entende isto, pois a morte é a consumação do Batismo ou da regeneração sacramental iniciada na pia
batismal e desdobrada lentamente nesta existência terrestre. É por isto que S. Inácio de Antioquia (+ 110
aproximadamente), condenado a ser lançado ás feras no Coliseu de Roma, escrevia aos fiéis amigos que
tencionavam interceder junto ás autoridades romanas para lhe evitar o martírio:
“É bom para mim morrer a fim de me unir ao Cristo Jesus... Aproxima-se o momento em que serei dado
á luz... Não ponhais empecilho a que eu viva, não queirais que eu morra” (Aos Romanos 6, 1s).
O cristão, sim, só é homem perfeito na medida em que é filho do dia, da luz, da vida definitiva. É desta
que ele vive, trazendo-a arraigada em seu intimo. Em conseqüência, a morte pode tornar-se meta ardentemente
desejada, como revela o mesmo S. Inácio:
“Escrevo a vós, possuído do amor da morte...; há, em mim, uma água viva que fala e dentro de mim diz:
‘Vem para o Pai’” (Aos Romanos 7,2).3
3. Estas verdades podem ser expressas ainda do seguinte modo: o cristão nasce em duas etapas. A
primeira ocorre após nove meses de gestação no seio materno; o bebê que então vem á luz, chora, porque perde o
aconchego e a proteção de que desfrutava no seio materno. Aos poucos, porém, vai-se adaptando ao novo
ambiente, adquire sua autonomia e encontra seu lugar ao sol; aí prepara novo tipo de aconchego, ao qual
espontaneamente se apega e do qual não quer ser desinstalado; vive então uma nova fase de sua gestação, já não
aos cuidados de sua mãe, mas sob os seus próprios cuidados; sim, o que nasceu do seio materno, foi um ser ainda
embrionário, cheio de potencialidades não desabrochadas; estas são desdobradas e atualizadas pelo indivíduo no
decorrer desta vida terrestre; é ele quem vai definir sua estatura física e espiritual ou sua configuração definitiva.
Quando o Pai o julga Oportuno, chama-o para a mansão definitiva num momento dito "morte", que na verdade é a
segunda etapa do nascimento dessa pessoa; é então que acaba de nascer, pois se acha com a sua personalidade
acabada. Desta maneira vê-se mais uma vez que a morte, para o cristão, não é propriamente morte, mas passagem
para a plenitude da vida.
4. Deve-se mesmo dizer que, em seu sentido mais profundo, a morte, abraçada em união com a de Cristo,
é a resposta positiva e generosa que o cristão dá ao convite do Pai, em oposição á recusa que o primeiro homem
deu ao mesmo convite (incorrendo por isto na condenação á morte). Sereno, pois, e alegre caminha o cristão na
terra de encontro ao seu nascimento para a vida eterna. Na realidade, só há um tipo de angústia que o afeta: o
pecado, pois este significa justamente separação de Deus ou da verdadeira vida. Diante do pecado, sim, o cristão
ressente todo o horror que a perspectiva da morte física suscita no não cristão. Caso, porém, esteja isento de
pecado, o discípulo de Cristo não se deixa abalar pelas vicissitudes desta peregrinação nem pela própria morte;
sabe que nada disto lhe pode tirar o verdadeiro tesouro que ele traz em seu intimo, vida que Deus lhe deu e que só
Deus, ou a sua infidelidade voluntária, podem extinguir. A convicção desta verdade levava o Apóstolo a dizer:
“Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o
perigo, a espada?... Em todas estas coisas somos mais do que vencedores, graças àquele que nos amou. Pois estou
convencido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem as coisas presentes nem as
futuras, nem as potestades, nem a altura nem a profundidade nem qualquer Outra criatura nos poderá separar do
amor que Deus tem para conosco em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8,35.37-39).
Ou ainda:
“Tudo é vosso... tanto o mundo como a vida e a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso; vós, porém,
sois de Cristo, e Cristo é de Deus (Pai)” (1Cor 3,21-23).
S. Agostinho, de resto, faz notar muito bem que, se não fosse a precedente sorte de Cristo, o cristão de
modo nenhum ousaria tomar tal atitude diante da morte: “O cálice do sofrimento é amargo e salutar; se o médico
não o tivesse bebido primeiramente, o doente recearia tocá-lo” (Sermão 329,2).

PERGUNTAS
1) Qual a relação entre morte e pecado, segundo a s. Escritura?
2) Que fez Deus para tirar o homem da condenação à morte definitiva?
3) Como o cristão que vive o seu Batismo, encara os valores desta vida e a própria morte?
4) Como se pode dizer que a morte é o martírio do cristão?
6) Qual é a desgraça de que o cristão deve realmente ter horror?

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CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

3
A água viva de que fala Inácio, é símbolo da Espírito Santo, Conforme Jo 7,37-39.
MÓDULO 4: A MORTE (III) – QUESTÕES COMPLEMENTARES

Impõe-se agora o estudo de algumas noções complementares relativas á morte no sentido cristão.

Lição 1: Morte-termo final

1. A morte coloca o homem num estado definitivo e imutável. O homem fica sendo para sempre amigo ou
inimigo de Deus, conforme as disposições que tenha ao deixar este mundo; somente enquanto peregrina na terra,
pode merecer ou desmerecer o Sumo Bem.
Esta verdade se encontra no Evangelho: Jesus admoesta os discípulos a que vigiem, pois a atitude que
tiverem assumido nesta vida em relação a Deus, definirá a sua sorte definitiva. É o que incutem as parábolas das
dez virgens (Mt 25,1-13), dos dez talentos (Mt 25,14.30), do ricaço e de Lázaro (Lc 16,18-31), o quadro do juízo
final em Mt 25,31.46...
A mesma idéia ressoa na pregação dos Apóstolos; ver Gl 6-10; 1Cor 15,24; 2Cor 5,10; 6,2; Hb 3,13. A
tradição cristã a repetiu sempre, e o Concilio do Vaticano I (1870), suspenso antes de concluído, estava para
promulga-la em suas definições teológicas, nos seguintes termos:
“Depois da morte, que é o remate da nossa caminhada, todos teremos logo de nos apresentar perante o
tribunal de Cristo, a fim de que cada qual receba a retribuição do que tiver feito de bem ou de mal quando estava
no corpo (2Cor 5, l0); depois desta vida mortal, não há mais possibilidade de penitência e justificação” (Mansi-
Petit, Conc. t. LIII, 175).
2. Levanta-se agora a pergunta: não se poderia imaginar que, após a morte, a alma humana continue a
merecer e desmerecer, sujeita á mutabilidade que caracteriza a vida na terra? - A rigor, respondemos que sim. A
Palavra de Deus, porém, nos ensina que a morte é a entrada numa situação definitiva. S. Tomás de Aquino procura
ilustrar tal proposição do seguinte modo:
Até a morte, mas somente até a morte, a natureza humana se acha completa (alma e corpo) e dotada das
faculdades que concorrem para a sua evolução (sentidos, inteligência e vontade). Ora é lógico que a decisão do
homem relativa ao fim supremo seja tomada pelo homem em sua natureza completa. O homem não é espírito só,
mas espírito destinado a vivificar um corpo e desenvolver-se mediante o corpo.
Verdade é que, depois da ressurreição, o corpo estará de novo unido á alma. Por que então não poderá
haver mudança de opções após a ressurreição? – Respondemos dizendo que a reunião de corpo e alma após a morte
é algo a que a natureza humana não tem, por si mesma, direito; é dom gratuito de Deus. O corpo então não servirá
de instrumento mediante o qual a alma mude as suas inclinações; ao contrário, as condições do corpo se adaptarão
ás disposições, boas ou más, da alma, em vez de as influenciar; os justos terão um corpo glorioso, ao passo que os
réprobos terão um corpo dito “tenebroso”.
3. A irrevogabilidade de um destino é algo que nós, peregrinos na terra, dificilmente concebemos; tudo o
que conhecemos neste mundo, se nos apresenta como transitório; não temos a experiência do definitivo ou da
morte. Por isto é que, fora das Escrituras Sagradas, nunca, nas crenças religiosas da humanidade, se encontra a
noção de sorte póstuma irrevogável ou definitiva.
Entregues ao próprio raciocínio, o pagão e o filósofo foram, muitas vezes, levados a imaginar a vida
humana á semelhança do ritmo da natureza. Nesta a morte não parece ser definitiva, mas sempre seguida de nova
vida; ao inverno sucede regularmente novo nascimento da vegetação na primavera; ao Ocaso cotidiano do sol
segue-se sempre nova aurora. Em conseqüência, o homem, considerando-se como parcela da natureza, julgou sua
vida sujeita ao ritmo do renascimento na carne mortal, destinada a recomeçar sua peregrinação na terra. A teoria da
metempsicose ou das reencarnações sucessivas, daí resultante, tomou mais de uma forma através da história.
Seu berço é a Ásia. Os hindus a professavam na religião dos Vedas; desta, a doutrina passou paro
budismo. Do Oriente, a metempsicose entrou no sistema de vários filósofos gregos: Pitágoras, Empédocles, Platão,
os neoplatónicos... Ainda hoje está muito em voga na Teosofia, no Esoterismo, no Espiritismo... O assunto será
explicitamente abordado no Módulo 7 deste curso.

Lição 2: A universalidade da morte e exceções

Não há dúvida de que, segundo a S. Escritura, todos os homens estão sujeitos ao império da morte. Ver
Hb 9,27: "Foi estabelecido, para os homens, morrer uma só vez; após o quê, vêm o juízo".
l Cor 15,22: "Assim como todos morrem em Adão, todos recuperarão vida em Cristo". Cf. Rm 5,12.
Todavia o Apóstolo São Paulo afirma que serão dispensados da morte aqueles que estiverem vivos por
ocasião da segunda vinda de Cristo. Haverá, pois, exceção em favor deles. É o que se lê em:
1Cor 15,51s: “Eis que vos digo um mistério. Nem todos morreremos, mas todos seremos transformados,
num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final”.
Vê-se que o Apóstolo, referindo-se ao último dia, distinguia duas categorias de cristãos: os que já tiverem
morrido, e os que ainda estiverem vivos; aqueles ressuscitarão, ao passo que estes terão seus corpos transfigurados,
sem passar pela morte: “nem todos morreremos, mas todos seremos transformados” 4.
lTs 4,15.17: "Dizemo-vos segundo a palavra do Senhor: nós, que vivemos, que somos deixados até a
volta do Senhor não teremos primazia sobre aqueles que estiverem mortos. O Senhor mesmo descerá do céu,
quando for dado um sinal, o grito do Arcanjo, o toque da trombeta divina, e os mortos ressuscitarão primeiro, pelo
poder de Cristo; a seguir nós, os vivos, os sobreviventes, seremos arrebatados com eles nas nuvens, de encontro ao
Senhor nos ares. E assim estaremos sempre com o Senhor".
De novo o Apóstolo distingue os mortos e os sobreviventes por ocasião da volta de Cristo: aqueles
ressuscitarão e estes, sem provar a morte, irão com os ressuscitados ao encontro de Cristo.
2Cor 5,1-3: “Sabemos que, se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruída, teremos no céu um
edifício, obra de Deus, morada eterna, não feita por mãos humanas. Tanto assim que gememos pelo ardente desejo
de revestir por cima da nossa morada terrestre a nossa habitação celeste - o que será possível, se formos
encontrados vestidos, e não nus”.
Mais uma vez refere-se o Apóstolo á segunda vinda de Cristo. E diz que os fiéis poderão encontrar-se
então em duas condições: ou despidos (isto é, almas sem corpo, o que será o caso dos já falecidos) ou vestidos (isto
é, almas unidas aos respectivos corpos, o que será o caso dos sobreviventes).
A exceção, assim claramente admitida pelo Apóstolo, tinha certo significado outrora, quando se esperava
para breve a segunda vinda de Cristo. Em nossos dias, porém, já impressiona menos, visto que a ansiosa
expectativa se dissipou. Muito mais ênfase atualmente se deve atribuir ao encontro com Cristo no final da
peregrinação terrestre de cada indivíduo.

Lição 3: Conseqüências práticas

3.1. As misérias desta vida


O fato de que a morte e seus precursores (doenças, misérias desta vida) se tornaram, depois de Cristo,
instrumento de Redenção e glória, inculca aos cristãos o valor não somente da morte, mas também dos sofrimentos.
Aceite, pois, o cristão as misérias cotidianas (doenças, cansaço, penúria...) em união consciente com
Cristo; e tais misérias se lhe tomarão via para maior intimidade com Deus. Nenhuma é meramente casual. Elas
podem ser suportadas com tibieza e pouco mérito, mas também podem ser precioso elemento de santificação para
quem as abrace com generosidade e amor.

3.2. Assistência aos gravemente enfermos


É de enorme importância assistir a uma pessoa gravemente enferma enquanto ainda está lúcida; trata-se
de proporcionar-lhe os subsídios necessários para que morra no amor a Deus; o último ato consciente e livre,
anterior á morte, decide de todo o futuro póstumo desse indivíduo. Sem dúvida, o Senhor não falta ao moribundo
com auxílios especiais, a fim de que atravesse com as devidas disposições tão importante etapa. Registram-se casos
de conversões maravilhosas no momento final desta peregrinação; a misericórdia de Deus, derramando-se
pacientemente sobre o pecador, move por fim moribundos empedernidos 5.

3.3. Morte correlativa ao tipo de vida


Muito temerário seria fazer da misericórdia divina um pretexto, mais ou menos consciente, para
negligência e tibieza na vida espiritual. É sábio crer que cada um morre como viveu. Quase cada ato do homem, no
decorrer desta vida, deixa uma marca ou um vestígio em sua personalidade; e a morte não faz senão manifestar
definitivamente esse tipo de personalidade do indivíduo. Por conseguinte, os últimos instantes não são algo de
essencialmente novo na vida do homem; mas, preparados pelas fases anteriores desta peregrinação, vêm a ser o seu
desabrochamento normal e a sua última expressão. Na morte a pessoa recapitula toda a sua vida e a entrega ao Pai
Celeste; ora, a menos de uma intervenção extraordinária de Deus, não pode recolher senão o que tenha semeado
dia-a-dia na terra. Os atos cotidianos, aparentemente transitórios, pela morte se tornam imperecíveis, depondo para
sempre em abono ou desabono do seu autor.
Surge então a pergunta:

3.4. Como nos preparamos para a morte?


Respondemos que a melhor preparação para a morte é a vida de cada dia, vivida quando estamos lúcidos
ou precisamente quando a morte ainda parece distante. É nos dias bons que nos preparamos para os dias finais e
para a morte, e não apenas quando as faculdades mentais e físicas começam a desfalecer (pois então é mais difícil
4
São Paulo, ao talar dos acontecimentos finais, costuma referir-se apenas à sorte dos justos.
5
Há quem julgue que, antes de morrer, Deus propõe aos Pecadores uma visão global de toda a sua vida passada, visão na qual percebem o vazio das obras
más. Tal sentença é um tanto arbitrária, pois não há revelação alguma a respeito.
pensar, ler, orar...). A ação de sedativos e analgésicos dificulta o raciocínio e obnubila a mente. A tendência a
afastar o pensamento da morte é paradoxal, pois na verdade "a morte é a única certeza que temos desde a infância".
Cada qual viva como desejaria morrer, prestando atenção ás coisas que realmente terão algum valor
naquele momento e distinguindo-as bem de bagatelas e ninharias, que nada significarão no momento final, mas que
muito empolgam e apaixonam no decorrer desta caminhada. Procure o cristão julgar tudo como Deus julga, ou seja,
a partir da eternidade; coloque-se assim na rota e na luz do definitivo, e a morte não será um susto nem uma
desinstalação. Assuma o cristão as provações desta vida como aprendizado para o instante terminal. Trabalhe por
deixar este mundo um pouco melhor do que o encontrou, pois este aspecto entrará na prestação de contas que cada
qual fará a Deus. Ame os irmãos com sinceridade e benevolência. E principalmente ore, pois o contato com Deus
cultivado na oração é a mais viva antecipação do grande encontro final.
É tradicional pedir a Deus que nos preserve da morte subitãnea e imprevista. É para desejar que estejamos
tão maduros na fé que vamos conscientemente ao encontro da morte. A nossa vida de cada dia é como um livro, do
qual escrevemos diariamente uma página; no fim da redação, é oportuno que tenhamos um espaço de tempo e
lucidez de espírito para rever esse livro, corrigir o que nele esteja errado ou inadequado, e ainda melhorar o que
precise de ser melhorado; assim o cristão poderá entregar aos pósteros o livro de sua vida emendado e rematado - o
que será, sem dúvida, um grande presente.
Possa ainda cada qual morrer reconfortado pelos últimos sacramentos, exclamando as palavras finais da
Escritura Sagrada: “Vem, Senhor Jesus!”(Ap 22,20).
A boa morte é fruto de graça especial ou do dom da perseverança final. Não é algo que se possa merecer,
mas algo que o Senhor concede, atendendo ás orações dos seus fiéis. Merecer o dom da perseverança final seria o
mesmo que merecer a graça - o que é contraditório ia graça é sempre gratuita). A oração, porém, humilde e
confiante obtém o grande dom; por isto, pedir a graça de uma boa morte é coisa freqüentemente recomendada pelos
Santos e teólogos. Aliás, ao invocarmos diariamente a Virgem Santíssima na "Ave Maria", pedimos-lhe que rogue
por nós "agora e na hora da nossa morte".

PERGUNTAS
1) Após a morte, será possível mudar de opção ou converter-se para Deus? Explique bem.
2) Todos hão de morrer, sem exceção?
3) Que podemos fazer, no plano espiritual, em prol dos gravemente enfermos?
4) É recomendável afastar da mente o "pensar na morte"?
5) Como o cristão se pode preparar para a morte?

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MÓDULO 5: A MORTE (IV) - QUESTÕES COMPLEMENTARES

Abordaremos neste Módulo mais algumas questões complementares relativas á morte: 1) iluminação da
mente na hora da morte? 2) angústias anteriores á morte; 3) a nephesh do Antigo Testamento e as Testemunhas de
Jeová.

Lição 1: Iluminação da Mente?


Alguns teólogos julgam que, no momento decisivo em que o ser humano deixa este mundo, a sua mente é
iluminada com claridade que nunca teve até então; essa iluminação singular lhe permite fazer uma opção final,
consciente e radical como nunca, por Deus ou contra Deus e sua santa Lei.
1. Tal hipótese não se pode basear nem na S. Escritura nem na Tradição cristã. Ela se apoia, antes, em
motivos de conveniência ditados pela fé e pela razão. Tais razões vêm a ser:
a) O momento exato da morte, sendo de importância decisiva para todo o futuro do indivíduo, deve ser
especialmente lúcido, de modo que a pessoa possa fazer uma escolha tão convicta e voluntária como nunca. Os
autores lembram os casos freqüentes de morte repentina, morte que colhe a pessoa talvez num estado de más
disposições éticas; por, que não admitir que a Providência Divina conceda a esses indivíduos (e por que não a
todos?) a ocasião de repensar suas disposições pecaminosas e, eventualmente, retratá-las?
b) Tal iluminação da mente faria da morte do indivíduo uma autêntica consumação da sua existência
anterior. No decorrer da vida terrestre, nossas opções são imperfeitas e mutáveis; na hora da morte elas seriam
plenamente confirmadas ou radicalmente contraditadas pela personalidade do moribundo. O pecado ou o amor
anteriores receberiam solene chancela ou profunda desdita.
c) Existe uma desproporção entre os atos limitados e condicionados da nossa vontade nesta vida e as
conseqüências vultosas e definitivas de tais atos no além. Tal desproporção seria superada, se, no fim da nossa
existência terrestre, nos fosse dada a oportunidade de fazer uma escolha plenamente lúcida e responsável.
Em última instância, vê-se que os três argumentos dizem a mesma coisa: durante esta vida, não temos as
condições ideais para fazer uma escolha que tenha repercussões para todo o sempre.
2. Ora tal afirmação pode ser impugnada por exagerar a inépcia ou incapacidade do homem peregrino na
terra. Com efeito; contra a teoria da iluminação da mente do moribundo apresentam-se as seguintes ponderações:
a) Não se pode negar que já durante a vida presente o ser humano possui a liberdade suficiente para
cometer um pecado mortal; vejam-se, por exemplo, os catálogos de pecados que, segundo São Paulo, excluem do
Reino de Deus o pecador: 1Cor 6,9-11 ; 15 50; Gl 5,19-21; Ef 5,5. Supondo a responsabilidade do cristão, Jesus
Cristo instituiu o sacramento da Penitência, que é obrigatório nos casos de pecado mortal. O Direito Canônico, por
sua vez, prescreve sanções contra os indivíduos que cometam culpas graves. Além do mais, observemos: se a
primeira escolha ainda é titubeante ou superficial e imperfeita, a repetição dos mesmos atos vai tornando tal
escolha sempre mais intensa e consciente (admitem-se raras exceções).
b) Pode acontecer que, na hora da morte, o ser humano tome uma decisão contrastante com as decisões
anteriores de sua vida, seja para melhor (em virtude do brilho da graça), seja para pior (ninguém está certo da sua
perseverança final). Mas tal opção contrastante e brusca parece constituir uma exceção; a natureza humana é lenta e
progride paulatinamente em suas resoluções; a experiência ensina quanto custa praticar pequenas renúncias ou
mudar os hábitos rotineiros, mesmo quando a pessoa percebe a grande necessidade de o fazer. É normal, pois, que
na hora da morte a suprema decisão seja consentânea com as decisões que marcaram o roteiro de vida do indivíduo.
Somente por intervenção extraordinária de Deus alguém pode "dar uma guinada de 180” precisamente na hora da
morte. Ora não se deve postular o extraordinário como se fosse algo de ordinário.
Em vista disto, a hipótese da iluminação na hora da morte perde muito do seu poder atraente. Seja ou não
uma realidade, ela não dispensa o cristão de afirmar que todo o decorrer da sua vida terrestre tem a índole de um
julgamento... e julgamento de conseqüências definitivas. Diz-se sabiamente que cada um morre como viveu. É
preciso que o homem se converta para Deus diariamente, e de maneira sempre mais coerente, a fim de que tenha
condições naturais para dizer um Sim convicto e resoluto ao Pai na hora da morte. É mister que cada qual se
prepare, mediante as muitas e pequenas decisões particulares, para a grande e última decisão da morte. Quem quer
morrer santamente, viva de tal modo, e não se refugie na esperança de um dom extraordinário de Deus na hora da
morte, pois isto seria tentar a Deus.
3. Em conclusão, pode-se dizer: a hipótese de especial iluminação na hora da morte pode ser aceita; será
de consolo para quem receie pela sorte das pessoas desaparecidas tragicamente; servirá também de apoio àqueles
que, embora procurem viver corretamente, têm medo de ser colhidos pela morte num momento de fraqueza; enfim,
ajudará todos a conceber grande confiança em 'Deus (que é sempre mais misericordioso do que nós ousamos
imaginar).
Todavia a hipótese da iluminação não pode servir de amparo á indolência; no plano da salvação, qualquer
Oportunidade pode ser a última e decisiva; não há de ser desperdiçada sob o pretexto de que outra chance ocorrerá
ainda mais fecunda, posteriormente. Todo e qualquer apelo da graça há de ser considerado como o último que Deus
nos dirige. Estas observações põem em plena luz a enorme seriedade da vida presente:
“Nesta se decide de modo irremediável um destino eterno. Cada dia, cada hora, cada minuto se inscreve
indelevelmente na eternidade. Cada ação, cada palavra, cada pensamento - em suma, qualquer ato nosso, exterior
ou interior que parece esvair sem deixar vestígio, no decurso de poucos instantes - modela algum traço da nossa
personalidade definitiva” (G. Biffi, L'al di là, p. 103).

Lição 2: As angústias anteriores á morte

No Módulo 3, ao propor o conceito cristão de morte, dizíamos que a morte violenta e dolorosa, como
atualmente ocorre, é conseqüência do pecado dos primeiros pais. Isto implica que as doenças e os sofrimentos
ligados á morte sejam derivados do pecado original. A propósito convém observar:
1) Não se julgue que toda doença seja castigo de pecados pessoais do indivíduo enfermo; recair-se-ia na
posição dos amigos de Jó, que, ao vê-lo prostrado, o intimavam a acusar seus pecados; tal posição, aliás, ainda era a
dos Apóstolos, que, ao verem um cego de nascença, perguntaram a Jesus quem havia pecado: ou ele ou os pais
dele? Cf. Jo 9,1-3. – Na verdade, o sofrimento pode ser provocado por outras criaturas (assim as guerras, as
injustiças sociais...); pode ser devido também a calamidades naturais incontroláveis (enchentes, secas, incêndios...);
pode ter causa ainda na fragilidade física do ser humano, que se cansa, contrai moléstias, etc.
2) O cristão sofre á semelhança do não cristão. Pode ser que a perspectiva da morte o angustie; angustiou
o próprio Cristo como homem ia. Mt 26,37s; Jo 12,27; 13,21; Mc 14,36s; Hb 5,7). Procure, porém, superar a dor
mediante uma visão de fé; todo sofrimento humano já foi assumido e resgatado por Cristo; tem valor salvífico e
santificante para quem o suporta, e função co-redentora em prol dos irmãos; sofrendo com Cristo, o cristão
“completa em sua carne o que falta á Paixão de Cristo em favor do seu Corpo que é a Igreja”(Cl l,24);isto é, dá
novo suporte e novo contexto á Paixão de Cristo, estendendo-a até os dias atuais, afim de beneficiar os pecadores e
carentes. Consciente do rico sentido que o sofrimento e a morte podem assumir, o cristão dirá com São Paulo:
“Para mim, morrer é um lucro... Desejo partir para estar com Cristo” (Fl 1,21.23).

Lição 3: “Nephesh” e Testemunhas

1. As Testemunhas de Jeová afirmam que a morte põe o termo final á existência do homem. Deus pode
criar de novo a este (desde que seja Testemunha de Jeová). O fundamento desta tese é pretensamente a própria S.
Escritura: no Antigo Testamento a palavra nephesh ocorre 750 vezes e tem, segundo as Testemunhas, o sentido de
alma; ora como a nephesh morre, conforme textos do Antigo Testamento, a alma humana morre. Esta doutrina é
capital para as Testemunhas; entre outros exemplos, citam Ez 18,4: “Eis que todas as almas a mim pertencem.
Como a alma do pai, assim também a alma do filho a mim pertence. A alma que pecar, essa morrerá”.
Ora a palavra nephesh tem vários significados em hebraico: pode ser traduzida por hálito, garganta, alma,
ser vivo, cadáver... Em conseqüência, é falso ensinar que a alma morre, com base na interpretação das
Testemunhas. Tanto o Antigo como o Novo Testamento professam sobejamente a sobrevivência de um núcleo da
personalidade após a morte; esta sobrevivência é adormecida e inconsciente nos livros bíblicos mais antigos,
tornando-se lúcida nos escritos mais recentes. Basta citar alguns poucos textos:
Gn 15,15: Deus promete a Abraão que, após a morte, o Patriarca se reunirá aos seus pais.
Gn 28,5s: Abraão morreu e foi reunido á sua parentela.
Gn 35,29: Isaque morreu e reuniu-se á sua parentela.
Gn 49,33: Jacó expirou e foi reunido aos seus.
SI 73,23s: “Estou sempre contigo... Tu me conduzes com teu conselho e com tua glória me atrairás”.
SI 16,8: “Minha carne repousa em segurança, pois não abandonarás minha nephesh (alma) no cheol, nem
deixarás que teu fiel veja a corrupção do sepulcro”.
Mt 6,19s: “Não acumuleis tesouros sobre a terra... onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para
vós tesouros nos céus... onde os ladrões não arrombam nem roubaram”.
Lc 23,43: “Jesus respondeu (ao ladrão arrependido): ‘Em verdade te digo: hoje estarás comigo no
paraíso’”.
Da parte das Testemunhas e de outros crentes, cita-se ainda o texto de Ecl 9,5s:
“Os vivos sabem ao menos que morrerão; os mortos, porém, não sabem, nem terão recompensa, porque
sua memória cairá no esquecimento... Eles nunca mais participarão de tudo o que se faz debaixo do sol”
Estes dizeres datam do século IV a.C. (muito provavelmente), época em que a revelação da sorte póstuma
ainda era muito pálida. Ela se efetuou lentamente entre os judeus por causa do perigo de culto aos mortos, que era
usual entre os pagãos vizinhos de Israel. O autor do Eclesiastes compartilhava a crença no cheol, lugar subterrâneo
no qual os mortos estariam sempre adormecidos e inconscientes. Dai as afirmações de Ecl 9,5s.
Tal fase da história cedeu à plena revelação da sorte póstuma. Assim, por exemplo, no Antigo Testamento
mesmo o livro da Sabedoria professa consciência lúcida naqueles que passaram para o além:
“Os justos vivem para sempre. Recebem do Senhor sua recompensa; cuida deles o Altíssimo. Receberão
a magnífica coroa real, e, das mãos do Senhor o diadema de beleza” (Sb 5, l5s).
Além disto, tornou-se clara a idéia de ressurreição dos mortos nos últimos livros do Antigo Testamento.
Ver Dn 12,2s:
“Muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio,
para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a
muitos a justiça, hão de ser como as estrelas por toda a eternidade” Ver também 2Mc 7, 9. 11. 14.36.
O Novo Testamento é muito explícito ao prometer a visão de Deus face-á-face como recompensa dos
justos. Ver 1 Jo 3 2:
“Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos
que, por ocasião desta manifestação, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é”
Ver também 1Cor 13,12; Mt 5 8.
Estes dados evidenciam bem que não se deve isolar um texto bíblico do seu contexto, não levando em
conta os antecedentes e paralelos que contribuem para elucidar o sentido de tal passagem. A alma humana, sendo
espiritual, é, por sua natureza mesma, imortal, independente da sua conduta santa ou pecadora

PERGUNTAS

1) Que vem a ser a “opção final” no contexto deste Módulo?


2) Quais as razões que apoiam a hipótese da opção final?
3) Que se pode apresentar, como argumentos, em contrário dessa hipótese?
4) Como o cristão encara os sofrimentos que precedem a morte?
5) O Antigo Testamento professa a destruição do ser humano pela morte?
6) A Bíblia professa a inconsciência das pessoas após a morte?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 6: A MORTE (V) – GREGOS, JUDEUS E CRISTÃOS

Para melhor compreender o que há de belo e inédito na mensagem do Evangelho, importa ao cristão
colocá-la sobre o seu pano de fundo, ou seja, sobre os antecedentes do Cristianismo. Desta maneira salta mais os
olhos o que há de novo, e também o que há de perene, na Boa-Nova de Jesus Cristo.
É o que faremos neste Módulo, comparando entre si o pensamento grego pré-cristão, o pensamento
hebraico e o pensamento cristão no tocante á morte.

Lição 1: O Pensamento Grego

O século V antes de Cristo foi em Atenas (Grécia) o século de Péricles (495-429 a.C.), o maior estadista
ateniense, que favoreceu enormemente a cultura e a democracia. Sob o seu governo, em 441 a.C., o teatrólogo
grego Sófodes escreveu o drama Antigona, representado pela primeira vez no teatro de Dionisio, ao pé da Acrópole
de Atenas; o cenário natural dessa peça era estupendo, pois compreendia o mar com suas baias, suas ilhas, e as
montanhas do Pireu no fundo. Nessa representação teatral, Sófodes quis cantar o hino do homem rei das criaturas
visíveis. Tal texto é otimista ao descrever profusamente a atividade do homem na terra e no mar, mas esbarra, no
final, com a perspectiva da morte inexorável, diante da qual o homem tem de capitular. Eis o hino de Sófocles:
“O CORO - Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior maravilha é o homem.
Através do mar que começa a clarear, impelido pelo vento do sul, ele (o homem) avança e passa sob as vagas
volumosas que rugem em forno dele. A divindade superior a todas as outras, a Gué imortal 6, inesgotável, ele
consegue cansá-la com seus arados que, ano após ano, vão e voltam por cima dela, revolvendo-a com animais de
raça eqüina.
E a tribo dos pássaros ligeiros, ele a apreende e captura; as hordas de animais selvagens e os seres
marinhos do oceano, o homem inventivo apanha-os nas dobras das redes tecidas. Ele domina também, por meio de
armadilhas, o animal agreste, montanhês; e, o cavalo de pescoço felpudo, o homem há de conduzi-lo sob o jugo que
o mantém preso dos dois lados, fazendo o mesmo com o incansável touro das montanhas.
E a língua, e o pensamento alado e os costumes controlados, ele os aprendeu da mesma forma como
soube fugir das investidas, em pleno ar das penosas geadas e das chuvas importunas, pois que ele é fecundo em
recursos; nada lhe falta absolutamente para qualquer instante do futuro que dele se aproxima; somente diante de
Hades7 não encontrará ele meios de fugir; mas, apesar disto, ele imaginou um modo de curar as doenças contra as
quais nada podia fazer para defender-se delas.
Dotado, em sua habilidade, de uma engenhosidade inesperada, ele pende ora para o mal, ora para o bem,
confundindo as leis da terra e o direito que jurou pelos deuses observar quando se acha á frente de uma cidade; ele
se torna indigno de tal cargo quando pratica o mal em sua audácia. Não se assente em meu lar não tenha nenhum
pensamento comum comigo, aquele que age dessa maneira” (Antígona, I vv. 333-375).
Em síntese, o canto quer dizer que muita coisa grande e bela existe, mas nada é maior do que o homem.
Se há muita coisa misteriosa e surpreendente no mundo, nada é mais surpreendente e misterioso do que o homem,
merecedor de toda reverência. Ele rasga a Terra (Gué) com arados e cavalos... a Terra, que é a maior das deusas,
sempre fecunda... Também pássaros, feras, peixes lhe estão submissos... Só não lhe toca uma habilidade: a de
escapar do Hades ou da Morte.
A morte era, sim, para os gregos, o diferencial entre os deuses e os homens, pois a mitologia atribuía aos
deuses orgias, bacanais, guerras e crimes, mas isentava-os da morte, conferindo-lhes aathanasia (imortalidade); os
homens tinham também suas orgias e guerras, mas eram implacavelmente sujeitos á morte. Isto entristecia
profundamente os gregos.
Com Outras palavras: os mestres gregos ensinavam ás crianças de boa família as virtudes que perfaziam o
ideal da felicidade (eudalmonia): a virilidade, o autodomínio, a paciência heróica, a justiça, a sensatez... O retrato
esboçado era atraente. Apesar de tudo, porém, o homem grego não se dava por plenamente satisfeito com tal
proposta. Através da literatura helênica encontra-se uma nota triste. Com efeito o oráculo de Delphos preceituava:
Gnothl seautón, "conhece-te a ti mesmo". Esse conhecer-se implicava tomar conhecimento de que o homem é
mortal; é mortal, e não deus; somente os deuses são imortais. Um abismo separa dos deuses os homens; eles não
são da mesma estirpe. Diz Píndaro (+ 438 a.C.) explicitamente:

6
Gé (gué), em grego, é a terra, tida com deusa-mãe sempre fecunda, pois todos os anos ela dá seus frutos.
7
Hades, em grego, era a região subterrânea dos mortos ou a própria Morte...
“Nós outros, mortais, só desejamos da parte dos deuses bens que nos estejam proporcionados.
Conheçamos bem a nossa estrada, a porção que nos foi assinalada. Não queiras, ó arma minha, desejar uma vida
sem fim” (Pitesinas 3,59).
A felicidade dos homens era finita, a dos deuses sem fim. A tristeza podia levar á resignação e ao
desânimo. Foi o que se deu, por exemplo, na escola de Epicuro (341-320 a.C.); este era um homem doente que,
sentado num jardim, ensinava com voz comedida, semblante suave e tranqüilo. Não aspirava á imortalidade e, por
isto, apregoava o gozo desta vida mortal. E como? - A felicidade está na ataraxia, imperturbabilidade, que decorre
da fuga...; é preciso fugir de todas as atividades de Ordem técnica ou profissional, retrair-se de todos os
empreendimentos e viver ás ocultas; quem se envolve em tarefas, cria para si aborrecimentos e perturbações; dai a
necessidade de as evitar. O sábio não deseja coisa alguma; ele basta a si mesmo; sob este aspecto, ele é como os
deuses; ai está, conforme Epicuro, a nova forma de imitar os deuses. São palavras do mestre ao discípulo Meneceu:
“Medita todos estes ensinamentos... Medita-os dia e noite, tu a sós e também com um companheiro de
virtude. Se o fizeres, não experimentarás a mínima perturbação, nem dormindo nem acordado, e viverás como um
deus entre os homens” (66,5- l0).
Assim vemos como o pensamento grego podia, de um lado, valorizar o homem e seus empreendimentos
(como faz Sófocles), mas, de outro lado, era sujeito a capitular diante da frustração que a inexorável Morte lhe
podia suscitar. A morte era a grande bofetada infligida ao homem pelo curso natural das coisas, irônico e
enganador.
Passemos agora ao pensamento hebraico, que era inspirado não pela mitologia, mas pela crença num só
Deus, que se revelou a Abraão e aos Patriarcas.

Lição 2: O Pensamento Hebraico

Encontra-se na literatura hebraica um texto paralelo ao de Sófocles, se bem que caracterizado por matizes
diferentes. E o salmo 8 atribuído ao rei Davi (século X a.C.), cujo texto é o seguinte:
Javé, senhor nosso, como é magnifico o teu nome par toda a terra! Teu esplendor sabre os céus é
proclamado pela boca das crianças e dos pequeninos! Estabeleceste, contra os teus inimigos, uma fortaleza tara
reprimir o adversário e o rebelde. Quando veja o céu, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que Tu fizeste... Que
é a homem para que se lembres dele, e o filho de Adão, para que venhas visitá-lo? Tu o fizeste um pouco inferior a
um Deus, Coroando-o de glória e beleza. Tu o estabeleceste sobre as obras de luas mãos, Tudo colocaste debaixo
de seus pés: ovelhas e bois, todos eles e até as feras do campo; as aves do céu e os peixes do oceano, que
percorrem as sendas dos mares. Javé, Senhor nosso, como é magnifico o teu nome par toda a terra!”
Em poucas palavras: o salmista eleva um canto de louvor a Deus, ao contemplar á noite o céu do Oriente.
Ao perceber a grandeza e a sabedoria do Criador no conjunto das criaturas, das quais o homem é o rei, o cantor
sagrado se expande em admiração e gratidão.
É digna de nota a estrutura do Salmo:

Deus grande Homem grande


v v 2-5 Mundo grande Mundo pequeno
v v 6-10
Homem pequeno Deus Grande
Deus é sempre grande. O homem, pequeno no grande conjunto das criaturas, é aprofundado e
reconhecido como grande no conjunto das criaturas pequenas.
Comparando o texto do Salmo com o de Sófodes, verificamos que o salmista começa não com o louvor
do homem ou da criatura, mas corri o louvor de Deus. E também louvando a Deus que o salmo termina. Deus é o
Alfa e o Omega. Tudo é envolvido por Ele.
Após verificar a pequenez corpórea do homem no conjunto das demais criaturas visíveis, o autor sagrado
afirma que o homem foi posto um pouco abaixo de Deus (Elohim); eis uma ousadia não arrogante, mas santa,
baseada na revelação bíblica, segundo a qual Deus fez o homem á sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-28).
A seguir, o salmista, como Sófocles, enumera as criaturas sujeitas ao homem (pássaros, feras, peixes...);
há, porém, uma diferença: segundo Sófodes, é o homem quem tudo submete a si, ao passo que, segundo o autor
bíblico, é Deus quem tudo submete ao homem.
Como se vê, o homem ora é pequeno, ora é grande. O mundo ora é grande, ora é pequeno. Nessa troca de
grandeza e pequenez, somente Deus é estável, o referencial permanente de todas as criaturas. A grandeza do
homem, feito á imagem e semelhança de Deus, é bem explanada pelo filósofo francês Blaise Pascal (+1662):
“Os corpos todos, o firmamento, as estrelas, a terra e seus reinos não têm o valor do mínimo dos espíritos,
pois o espírito conhece isso tudo e conhece a si mesmo, ao passo que os corpos nada conhecem. Todos os corpos
juntos, todos os espíritos juntos e tudo o que eles produzem, não valem o mínimo ato de caridade. Pois este se situa
num plano infinitamente mais elevado. Não hei de avaliar a minha dignidade a partir do espaço que ocupo, mas a
partir do meu exercício de pensar. Pelo seu espaço, o universo me compreende e me traga como se fosse um mero
ponto; mas pelo pensamento unanimamente compreendo o espaço” (Pensées, ed. Brunschvicg n-s 739 e 348).
Ou ainda:
“O homem é um caniço apenas, o mais fraco da natureza... mas é um caniço pensante. Um vapor, uma
gota d’água bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do
que aquilo que o mataria, pois ele sabe que morre; ao contrário, a vantagem que o universo tem sobre o homem, o
universo a ignora. Por conseguinte, toda a nossa dignidade consiste no pensar” (Pensées, n- 347).
Voltando ao texto do salmo 8, devemos acrescentar que, embora diferisse de Sófocles em alguns pontos,
o salmista concordaria com ele ao reconhecer o caráter inexorável da morte; o autor sagrado a tinha também como
uma bofetada, que reduzia o homem à condição de sombras (refaim) inconscientes, relegadas para o cheol
subterrâneo e incapazes de receber qualquer sanção.
Passemos agora ao Novo Testamento.

Lição 3: O Pensamento Cristão

O salmo 8 é considerado um salmo eminentemente messiânico, o que quer dizer que as suas afirmações
só são plenamente verídicas se aplicadas ao Messias.
Na verdade, os escritos do Novo Testamento se comprazem em aplicar o salmo 8 a Jesus Cristo,
verdadeiro homem (além de verdadeiro Deus), que exerceu o domínio sobre as criaturas visíveis. Veja-se Hb 2,5-9:
“Não foi a anjos que Deus sujeitou o mundo futuro... A esse respeito houve quem afirmasse: Que é o
homem, para que dele te lembres? Ou o filho do homem, para que o visites? Fizeste-o, por um pouco, menor que os
anjos; de glória e de honra o coroaste, e todas as coisas colocaste debaixo dos seus pés. Se Deus lhe submeteu todas
as coisas, nada deixou que lhe ficasse insubmisso. Agora, porém, ainda não vemos que tudo lhe esteja submisso.
Vemos todavia a Jesus, que foi feito, por um pouco, menor que os anjos, por causa dos sofrimentos da morte
coroado de honra e de glória. E que pela graça de Deus ele provou a morte em favor de todos os homens”.
O Novo Testamento acrescenta algo de novo ao Antigo e ao pensamento de Sófodes: a própria morte, o
homem Jesus Cristo a venceu: “É preciso que Ele (Cristo) reine até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo
dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele (Cristo)...
E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe
submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,25-28). Cf. Ef 1,22.
Em 1Cor15,26 está dito que a vitória sobre a morte ainda não está consumada. Só estará plena, quando o
último cristão ressuscitar. - Por conseguinte, a vitória de Cristo sobre a morte é dada ao cristão. Assim se dissipa a
tristeza que obscurecia o quadro otimista de Sófodes e do salmo 8. A ressurreição de Cristo é o penhor da
ressurreição de todos os homens.
Ora, certa vez no Areópago, praça central da Atenas de Sófodes, São Paulo anunciou aos gregos o ideal
do homem novo, mais forte do que a morte. Escarneceram-no então, pois parecia tratar-se de uma fábula ou de uma
utopia. Sim; eis o que se lê em At 17,30-33:
Paulo disse: “ ‘Deus fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio do homem a quem
designou, dando-lhe crédito diante de todos ao ressuscita-lo dentre os mortos’. Ao ouvirem falar da ressurreição
dos mortos, alguns começaram a zombar enquanto outros diziam: ‘A respeito disso vamos ouvir-te outra vez’. Foi
assim que Paulo se retirou do meio deles”.
Após esta experiência, Paulo dizia que nada mais queria saber senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo
crucificado (cf. l Cor 2,1s). A sabedoria meramente humana não atinge o desígnio transcendental de Deus. Este é
belo e grande demais para que o homem por si só creia que é verdade!

PERGUNTAS
1) Queira fazer breve comentário do texto de sófocles e do pensamento grego relativo ao homem.
2) Queira comparar o pensamento hebraico (sl 8) com o pensamento grego referente ao homem.
3) Que novidade trouxe a mensagem cristã a esse fundo de cena?
4) Como o cristão encara a morte?
5) Por que os atenienses rejeitaram a pregação de Paulo? Ver At17,17b-18 e At17 32.

ESCOLA “MATER ECCLESIAE”


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 7: A REENCARNAÇÃO
Reencarnação significa a volta de um espírito ou elemento psíquico á carne ou ao cor. Supõe que
determinado espirito tenha animado um corpo em vida anterior; ter-se-á chamado e, após certo intervalo, haverá
retornado á terra assumindo outro corpo.
As reecarnações são regidas pela lei do Karma, que, conforme os seus defensores, obriga todo indivíduo a
pagar (expiar) em encarnação posterior as falhas cometidas na vida presente; seria uma lei cega. Deixaria de se
exercer desde que a pessoa não tivesse mais pecado a expiar; isto lhe permitiria desencamar-se definitivamente.
A tese da reencarnação luta com a grande dificuldade de, em estado psíquico normal, ninguém ter
consciência ou reminiscência de já haver existido no corpo em uma pré-vida.
Ora, para quem ignora o motivo pelo qual está destinado a se purificar neste mundo (ou pelo qual se
reencarnou), é vã a sanção ou a reencarnação. A justiça humana exige que o réu castigado saiba por que é punido; o
bom senso se revolta contra uma punição que não tenha explicação. Para que eu me possa emendar dos erros pelos
quais sou punido, devo saber quais foram. Até mesmo o cão que é castigado por ter sujado a casa, é instruído a
respeito da falta que cometeu.
Não obstante, os reencamacionistas julgam poder valer-se de razões de ordem psicológica, filosófica e
bíblica para firmar a sua tese. - Examinemos, pois, tais argumentos.

1. Razões de Ordem Psicológica

Há pessoas que, em sono hipnótico ou em transe, recebem a ordem de narrar sua vida pregressa e,
de fato, relatam episódios ou mesmo enredos de vida que bem parecem corresponder a uma encarnação
anterior. Nisto parece haver urna prova da reencarnação.

Que dizer?
As pesquisas sobre as narrações de vida pregressa feitas em sono hipnótico permitem dizer que se
trata de fenômenos letárgicos, assim explicáveis: habitualmente temos consciente apenas l/8 dos
conhecimentos que adquirimos desde a infância; os 7/8 restantes ficam no inconsciente, como que ignorados.
Contudo, por efeito de um choque psicológico forte, as noções latentes podem aflorar á mente e combinar-se
de muitas maneiras, dando ocasião a que o indivíduo fale e proceda como se houvesse mudado de
personalidade. É o que se verifica, por exemplo, quando alguém é colocado em estado de transe: um
hipnotizador que possua domínio sobre o seu paciente, pode sugerir-lhe que experimente as situações mais
estranhas e ridículas: o hipnotizado sentirá então sucessivamente calor e frio com os sintomas típicos destas
situações; fará convictamente as vezes de soldado, de General e de Rei, de ricaço e de mendigo, de acordo
com as sugestões que o operador lhe quiser incutir; retrocederá no tempo, comportando-se como criança,
tomando voz infantil, mostrando-se tagarela e caprichoso; tentará engatinhar, escreverá com letra de
aprendiz de escola primária. E, se o hipnotizador insistir, conseguirá que o seu paciente "ultrapasse o limiar
da vida presente", contando episódios de uma vida anterior á atual, episódios que, uma vez analisados, se
evidenciam como fatos ocorridos ao hipnotizado na existência atual, mas diversamente associados entre si
pela fantasia... Da mesma forma, o operador poderá fazer que o paciente antecipe o futuro ou a velhice,
tomando a voz rouca e trêmula de um ancião. Vale a pena registrar o seguinte: o hipnotizador que em
Shreveport (Luisiana) conseguiu levar diversas pessoas á vidas pregressas, cometeu um descuido ao
enfrentar o quarto paciente : em vez de lhe dizer: "Quero que você retroceda... mais... e mais... através do
tempo... até outro lugar...", disse "mais... e mais até outro mundo". O paciente então anunciou
imediatamente que era um ser estranho chamado "C", que vivia na Lua e que realizava viagens
interplanetárias num disco voador!
Também é significativo este particular: em geral, as pessoas que dizem recordar-se de suas existências
passadas, apresentam-se como personagens importantes. O observador Douglas Home declarava que já tivera a
honra de encontrar ao menos doze Maria Antonieta, rainha da França, seis ou sete Maria Stuart, rainha da
Inglaterra, multidão de São Luis e outros reis, uns vinte Alexandres e Césares, nunca, porém, se defrontara com
personagens insignificantes... Ora quem entra numa clínica de doentes mentais tem fácil oportunidade de conversar
com muitos "vultos eminentes" da história passada. As pretensas afirmações de reencarnação não serão, pois, em
vários casos, expressões requintadas da megalomania de indivíduos psicopatas?

1.2. O fenômeno da paramnésia

Muitas pessoas que vão, pela primeira vez, a determinado lugar, têm a impressão de já haver estado ai,
reconhecendo o ambiente com suas características. Pergunta-se: como explicar tal fenômeno, dito de paramnésia,
senão pela reencarnação? Em vida pregressa, a pessoa já teria visitado tal lugar.
- A propósito, podem-se fazer quatro ponderações, que dispensam a reencarnação:
a) Ás vezes a pessoa não esteve conscientemente no lugar, mas lá esteve inconscientemente; ora o
inconsciente (mesmo o de uma criança de colo) colhe impressões e as guarda latentes. Digamos, pois, que uma
criança seja levada a uma praça pública ou a um cemitério; trinta anos mais tarde supostamente, essa pessoa volta a
tal ambiente; compreende-se que o reconheça imediatamente... Afirmará conscientemente já ter visitado o lugar - o
que será verdade, não, porém, numa encarnação anterior.
b) Pode acontecer também que a pessoa tenha visto imagens do lugar em fotografias de livros ou filmes -
o que leva a crer que já tenha estado no lugar.
c) Existe também a explicação pela hiperestesia. Há pessoas cujo inconsciente é capaz de ler o
inconsciente de outrem. Ora, se vou ao Japão pela primeira vez e tenho a impressão de já ter estado lá, posso
perguntar-me se nunca me achei ao lado de uma pessoa que já tivesse estado no Japão. Caso positivo (o que é
plausível), eu terei percebido inconscientemente o que o amigo vira conscientemente e trazia no seu inconsciente.
d) Acontece também que há muitos objetos semelhantes, de modo que, ao dizermos que já vimos algo,
podemos estar confundindo esse algo com algum semelhante.
Em suma, há várias explicações para o fenômeno da paramnésia dotadas de base científica; a única
destituída de fundamento seria o recurso á reencarnação.

2. Razões de ordem filosófico-religiosa

2.1. A desigualdade de sortes

Um dos mais freqüentes argumentos filosóficos é o das desigualdades. Uns nascem ricos, sadios e muito
prendados, ao passo que outros vêm ao mundo doentes, aleijados e pobres... ora, dizem-nos, isto só se pode
explicar pelo fato de que uns e outros viveram encarnações anteriores; então, por seus méritos ou deméritos
(sancionados pela lei do Karma), obtiveram sorte feliz ou desgraçada para a sua presente encarnação. Com efeito, a
lei do Karma ensina que todo ato mau cometido é uma divida contraída que deverá ser paga; se não o for nesta
existência mesma, será paga na seguinte ou nas seguintes.

Respondemos:
a) É gratuito o pressuposto de que todos os homens devem ter começado a existir em iguais condições
físicas e psíquicas. Deus é soberanamente livre para criar quem Ele queira e como Ele queira. o mundo inteiro está
cheio de criaturas variegadas; não há sequer duas folhas ou duas flores absolutamente iguais entre si. É
precisamente esta variedade que faz a beleza e a harmonia do universo. - O que a justiça divina nos assegura, é que
cada criatura, dentro da sua própria realidade, recebe as graças necessárias para chegar á plenitude da perfeição;
sem dúvida, o Senhor Deus chama cada ser humano á perfeição e lhe oferece os subsídios necessários para atingi-
la.
b) É falso fazer coincidir a felicidade com saúde, dinheiro e sucesso temporal... Muitos daqueles que
possuem tais bens, são inquietos e sofrem não raro dolorosos dramas íntimos ou públicos: ao contrário, muitos
daqueles que não os possuem, são tranqüilos e serenos e comunicam aos outros paz, magnanimidade e valores
morais. Em última análise, a grandeza de alguém não está no ter, mas no ser; pode alguém ter muitos bens
materiais, mas ser um monstro, como também pode alguém não ter muitos bens materiais, e ser uma grande
personalidade. Ora a grande personalidade é herdeira da felicidade máxima, que é a vida eterna.
De resto, é-nos muito difícil aquilatar a felicidade dos homens, pois é certo que não há quem não tenha
sua cruz a carregar. A cruz é escola ou instrumento de purificação ou engrandecimento, como já ensinavam os
antigos gregos mediante o trocadilho páthos máthos (sofrimento é escola ou educação); ct. Hb 5,8. É certo, porém,
que, ao permitir seja cada um tentado, o Senhor Deus se encarrega de lhe dar a graça necessária para superar o mal
e dele tirar o proveito respectivo (cf. l Cor l0,13).
c) A Lei do Karma é a aplicação da lei da causalidade física ao mundo moral: "É lei sem exceção, que
rege o universo inteiro, desde o átomo invisível e imponderável até os astros; consiste em que toda causa produz o
seu efeito, sem que nada possa impedir ou desviar o efeito, uma vez posta a causa" (ver F.M. PALMES,
Metapsiquica y Espiritismo, Barcelona 1950, p. 482). É cega, automática e não inteligente, exatamente como as leis
físicas. o que se faz terá inevitavelmente as suas conseqüências, sem possibilidade de perdão.
Ora não há prova de que exista a lei do Karma, como não há prova da reencarnação. Trata-se de lei
fatalista, mecanicista, que não se coaduna com a bondade de Deus nem com a liberdade do homem; no Evangelho
Deus aparece como Pai..., o Pai que, conforme a parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-32), perdoa imediatamente
ao filho que se mostra arrependido. Pode-se mesmo dizer que tal lei leva ao absurdo; com efeito, segundo o Karma,
toda pessoa sofredora nesta vida deveria estar pagando graves pecados de encarnação anterior; seria um grande
pecador reencarnado, ao passo que todo indivíduo sadio e rico deveria estar colhendo os frutos positivos das
virtudes praticadas em existência pregressa (seria uma pessoa muito benemérita) - o que é contraditado pela
experiência.
d) Ainda a respeito do sofrimento, não podemos apontar a causa precisa pela qual cada criatura sofre... e
sofre tais e tais males; aliás, nenhum sistema filosófico ou religioso o pode explicar de maneira cabal. Apenas
podemos afirmar, segundo a doutrina católica, que Deus, em seu plano sumamente sábio, não se engana nem
comete injustiça; um dia, todos saberemos o porquê dos desígnios do Senhor. Entrementes pode-se dizer que o
sofrimento nem sempre é punição de pecados pessoais, mas é sempre providencial; vem a ser ocasião de
crescimento interior, de modo que quem não sofre, se amesquinha ou se fecha no egoísmo; a natureza humana é tal
que ela se beneficia enormemente no cadinho do sofrimento. A justiça de Deus consiste em ministrar a todo
homem os subsídios necessários para carregar a sua cruz com grandeza de alma, de modo que adquira méritos.

2.2. O inferno

O conceito cristão de inferno, dizem, é contrário ao conceito de um Deus bom e perfeito. ora a tese da
reencarnação o evita.
Na verdade, a doutrina concernente ao inferno não derroga em absoluto á Bondade de Deus. o que torna o
inferno inaceitável a muitos dos nossos contemporâneos, é a concepção falsa que dele têm. É o que se depreenderá
das explanações abaixo.
Jesus deu claramente a entender que, após a peregrinação terrestre, duas são as formas de vida possíveis
para o homem: uma bem-aventurada; a outra, infeliz. Assim, por exemplo, falam as parábolas do joio e do trigo
(Mt13,24-30), da rede do pescador (Mt 13,37-40), dos convidados á ceia (Lc14,16-24), das dez virgens (Mt 25,1-
12). Na história do mau rico e do pobre Lázaro (Lc 16,19-31), o contraste é inculcado com a máxima veemência:
na vida póstuma poderão inverter-se os papéis que atualmente cabem aos indivíduos. As duas sortes são também
apresentadas com muita ênfase no quadro do juízo universal, em Mt 25 33.46.
O inferno nada tem a ver com imagens populares de tanque de enxofre fumegante, nem é algo criado por
Deus. Vem a ser a frustração total ou a separação de Deus resultante de livre opção da criatura na terra.
Com outras palavras: todo ser humano foi naturalmente feito para o bem... e para o Bem que não acabe ou
o Bem Infinito - Deus. Este, explícita ou implicitamente, exerce atração sobre todo homem, á semelhança do Norte
que atrai a agulha magnética da bússola. Se alguém, usando da sua livre vontade, diz Sim a esse Norte (- Deus),
encontra repouso e plenitude (a bem-aventurança celeste)... Se, porém, voluntariamente lhe diz Não e no dia da
morte é encontrado pelo Senhor nessa atitude de repulsa consciente e voluntária, terá o definitivo distanciamento de
Deus; o Senhor respeitará a sua opção negativa e não o forçará a voltar para Deus. E este estado que se chama
inferno; a própria criatura a ele se condena, sem que o Senhor Deus necessite de proferir alguma sentença. Além
desta dolorosa frustração, há no inferno o que a Sagrada Escritura chama fogo..., fogo, porém, que não é o da terra.
Tal estado é definitivo e sem fim, porque a alma humana é, por si mesma, imortal. o mesmo só
terminaria:
- se o Senhor aniquilasse a criatura (o que seria contrário á Sabedoria do Criador; Deus não destrói o que
Ele faz);
- se o Senhor forçasse a vontade da criatura a dizer-lhe um Sim póstumo, contrário á livre opção da
mesma (ora, o Senhor, que deu a liberdade ao homem, não lha retira);
- se o Senhor cessasse de amar a criatura e deixasse de lhe aparecer como o Sumo Bem; então o pecador
se fecharia em si mesmo ou no seu egoísmo, sem experimentar a atração de Deus; ele não sofreria inferno. Eis,
porém, que o Senhor não pode deixar de amar o homem, porque Ele é incapaz de se contradizer; Ele não pode dizer
Não após ter dito Sim; o seu amor é irreversível.
Eis o que se entende por inferno numa lúcida concepção. Vê-se que tal estado, longe de ser incompatível
com a santidade de Deus, resulta precisamente do fato de que Deus ama a criatura... e a ama divinamente, isto é,
sem se poder desdizer e sem poder retirar-lhe o seu amor; cf. 2Tm 2,11-13.
Vê-se, pois, que não há necessidade de reencarnação para remover o "inferno indigno de Deus". Importa
frisar que, no decorrer da sua peregrinação terrestre, o homem recebe do Senhor todas as graças necessárias para se
santificar e chegar á plenitude da vida.

3. Razões de ordem bíblica

Os escritos do Novo Testamento estão intimamente associados ao pensamento judaico pré-cristão. ora
este não admitia a reencarnação das almas. Sendo esta doutrina professada por filósofos gregos, os judeus se
fecharam a ela, pois eram infensos a qualquer tipo de sincretismo religioso. - Foi nesse ambiente que Jesus pregou
o seu Evangelho.
Feita esta observação, passemos ao exame sucinto dos textos bíblicos geralmente citados em favor da
reencarnação.

3.1. João Batista e Elias


Mt 17,10-13: Os judeus julgavam que Elias não morrera, mas fora arrebatado aos céus (ct. 2Rs 2,11) e,
por isto, voltaria á terra para revelar e ungir o Messias. Ora, nos tempos de Cristo, politicamente agitados, o profeta
Elias era esperado em Israel com particular insistência. Pois bem; Jesus respondeu que João Batista fizera as vezes
de Elias por reproduzir as atitudes fortes e destemidas do profeta (ct. Lc1,17). o próprio João Batista negou
peremptoriamente ser Elias, quando os enviados dos judeus o interrogaram (cf. Jo1,21). À luz destas ponderações,
entenda-se também o texto de Mt 11,14s.
Mais: no momento da Transfiguração apareceram a Jesus, Moisés e Elias (cf. Mt 17,3). ora, naquele
tempo João já fora executado por Herodes ou já morrera. Por conseguinte, deveria aparecer a Jesus João Batista e
não Elias, conforme a doutrina da reencarnação, pois esta ensina que, quando o espírito se materializa, sempre se
apresenta na forma da última encarnação. - Donde se vê que João Batista não era a reencarnação de Elias.
3.2. Jesus e Nicodemos

Jo 3,3: o advérbio grego ánothen, que por vezes é traduzido por de novo, reaparece em Mt 27,51, para
significar que, por ocasião da morte de Jesus, o véu do Templo se cindiu ánothen, isto é, de cima a baixo (não de
novo).
Nicodemos não entendera as palavras de Jesus; fiel aos ensinamentos judaicos, julgava impossível a
reencarnação: "Como pode um homem nascer sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e voltar
a nascer?" (Jo 3,4). Jesus logo dissipou a dúvida, explicando que não se tratava de renascer no sentido biológico,
mas, sim, de nascer de outro modo, ou seja, pela água e pelo Espírito: "Em verdade, em verdade te digo: quem não
nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus" (Jo 3,5). Positivamente, Jesus tinha em vista o
Batismo, que torna o homem filho de Deus.

3.3. Jesus e o cego de nascença

Jo 9,ls: os judeus julgavam que todo mal é conseqüência de um pecado. Por conseguinte, no caso de um
cego de nascença, pensariam num pecado dos pais (que, segundo a mentalidade do clã, seria punido sobre os
filhos), ou num pecado do próprio cego; esta última hipótese deveria parecer-lhes absurda, pois sabiam que as
crianças nascem sem ter cometido previamente nem bem nem mal (cf. Rm 9,11). Assim perplexos, lançaram suas
interrogações a Jesus, sem se dar ao trabalho de procurar terceira solução para o caso. ora, Jesus respondeu sem
abordar o aspecto especulativo da questão, elucidando diretamente a situação concreta que lhe apresentavam: nem
uma hipótese nem outra, mas um desígnio superior de Deus ("... para se manifestarem nele, cego, as obras de
Deus").
De resto, a Escritura é diretamente contrária á reencarnação quando, por exemplo, afirma: "Foi
estabelecido, para os homens, morrer uma só vez; depois do quê, há o julgamento" (Hb 9,27). Notemos também as
palavras de Jesus ao bom ladrão: "Hoje mesmo estarás comigo no paraíso" (Lc 23,43). os textos muito enfáticos em
que Jesus e os Apóstolos anunciam a ressurreição dos mortos, o céu e o inferno, são outros tantos testemunhos que
se opõem á reencarnação: vejam-se Mt 5,22; 13,50; 22,23-33; Mc 3,29; 9,43-46; Jo 5,26s; 6,54; 1Cor 15,13-19.
Sobre a reencarnação na Tradição da Igreja e a rejeição da mesma por parte de escritores cristãos e
Concílios, ver Curso de História da Igreja por Correspondência, Módulo11.

CONCLUSÃO
Comparando entre si a tese da reencarnação e a proposição cristã da ressurreição, verificamos que entre
uma e outra há duas diferenças de base ou estruturais. Com efeito:
1) A doutrina cristã da ressurreição supõe um Deus, Pai Bondoso, que toma a iniciativa de criar e também
de salvar a criatura. Esta salvação, Deus a oferece ao homem no decurso de uma vida passada na terra, vida durante
a qual a graça do Salvador solicita a criatura para a felicidade eterna. Em vista disto, a Sabedoria Divina provê para
que nenhum auxilio falte ao homem no decorrer de sua peregrinação terrestre. Em conseqüência, terminada esta
vida, é justo que a criatura humana entre na sua Sorte definitiva: a ressurreição da carne permitirá que o ser
humano, em sua identidade psicossomática, tenha a sua justa sanção. - Tal concepção é profundamente religiosa,
pois reconhece o primado de Deus sobre a criatura e o caráter gratuito da salvação. o mesmo não se pode dizer da
mentalidade reencarnacionista. Com efeito; esta atribui ao homem o poder de se remir, de se tornar perfeito por
seus esforços, fazendo praticamente abstração do auxilio divino. Pouco ou nada entra em linha de conta de um
reencarnacionista a noção de Deus, Pai bondoso e providente, que deu existência aos homens, quis compartilhar e
consagrar o sofrimento e a morte do homem, e sem o qual a criatura nada absolutamente pode. Não admira, pois,
que a reencarnação tenha sido outrora, e ainda hoje seja, freqüentemente professada dentro de uma filosofia
panteísta ou monista. Sim, as crenças hindus, que inspiram muitos reencarnacionistas, cancelam a distinção entre o
Divino e o humano, entre o Infinito e o finito, ensinando que a Divindade "se realiza" no homem, "vai tomando
consciência de si" no homem, á medida que este evolui ou se aperfeiçoa. Esta tese parece explicar que a criatura
possa por si chegar á união com a divindade; todavia é ilógica, pois coloca o finito e o Infinito na mesma linha; ora
Deus, que por si só é o ilimitado, não pode vir a identificar-se com o finito e o contingente.
2) A cosmovisão suposta pelo reencarnacionismo é pessimista em relação á matéria, tida como cárcere ou
sepulcro da alma (soma = sema, em grego). A grande aspiração de muitos grupos reencarnacionistas é libertar-se
do corpo e, consequentemente, deste mundo material e de sua história; por isto, muitos povos que professam a
reencarnação, não evoluíram em sua civilização, mas vivem em condições de miséria, porque não lhes interessa
vincular-se aos bens materiais.
Ao contrário, a tese da ressurreição dos corpos é otimista em relação á matéria, tida como criatura de
Deus e parte integrante do ser humano. A este titulo, o corpo humano deverá ressuscitar e participar da sorte
definitiva da alma humana. Por isto também o cristão se sente impelido a trabalhar neste mundo material que Deus
lhe deu, a fim de o configurar ao desígnio do Criador. o cristão julga que a história tem um sentido dinâmico e
caminha para a sua plenitude, que será o Reino de Deus; está longe de ser uma cadeia de ciclos monótonos e
repetitivos, dos quais é preciso escapar.
Na base destas considerações, pode-se afirmar que a doutrina da reencarnação, apesar dos seus aspectos
místicos, não se sustenta nem aos olhos da razão nem diante da psicologia e das experiências humanas.

PERGUNTAS
1) Que se entende por reencarnação?
2) É provada a reencarnação por relatos feitos em sono hipnótico?
3) A desigualdade das sortes humanas prova a reencarnação?
4) Conciliam-se a doutrina do inferno e a Misericórdia de Deus?
5) A Sagrada Escritura favorece a reencarnação?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÉNCIA OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 8: O JUÍZO PARTICULAR


O fato de que a morte coloca ò homem num estado definitivo, implica um julgamento, logo após a morte,
que assinale ao indivíduo a respectiva sorte. É o que realmente se dá no chamado "juízo particular".

Lição 1: Fundamentação Bíblica e Tradição

1.l. Fundamentação Bíblica

A Sagrada Escritura, embora, ao falar de juízo, geralmente se refira ao juízo universal, em algumas
passagens dá a entender que, logo após a morte, há a determinação da sorte de cada indivíduo.
1) Em Lc16,19~31, a parábola do ricaço e de Lázaro leva a concluir que cada qual, ao deixar este mundo,
recebe a devida sanção. Lázaro é levado ao seio de Abraão, ao passo que o avarento sofre a grande decepção. Isto
pressupõe uma sentença de Deus sucessiva á morte; e sentença definitiva, pois, conforme a parábola, o mau não
pode passar para o lugar do justo, e vice-versa; sentença anterior ao Juízo final, pois os irmãos do ricaço ainda
vivem na terra.
2) Em Lc 23,43 as palavras do Senhor ao bom ladrão: "Hoje estarás comigo no paraíso" insinuam que,
logo após a morte, o indivíduo, julgado e isento de culpa, goza da bem-aventurança destinada aos justos.
3) Muito expressivo é o texto de São Paulo em 2Cor 5.6s: "Bem sabemos que residir neste corpo é viver
em exílio, longe do Senhor, pois é a fé que guia nossa caminhada, não a visão clara. Por isto enchemo.nos de
coragem e preferimos exilar-nos do corpo para residir junto ao Senhor".
O Apóstolo associa, de um lado, residir no corpo, estar em exílio longe do Senhor e caminhar (viver) na
fé; doutro lado, exilar-se do corpo (morrer), residir junto ao Senhor e caminhar na visão (de Deus). Donde se
depreende que, logo após a morte, antes mesmo da ressurreição dos corpos, os justos gozam do prêmio definitivo
ou da visão de Deus - o que não deve ocorrer sem um julgamento prévio. Da mesma forma se deve entender a
passagem da Fl 1,23, em que o Apóstolo identifica morrer e estar com Cristo.

1.2. A Tradição
A existência do juízo particular estava associada, na mente dos antigos, a outra questão: antes do juízo
universal (no fim dos tempos), pode-se crer que os falecidos entram na sua sorte definitiva? Ou deveremos admitir
que ficam em estado de sonolência, enquanto a história vai correndo, até a consumação dos séculos?
As hesitações a respeito foram sendo superadas na base do próprio testemunho bíblico em favor da tese
da retribuição imediata. Eis significativos dizeres de São Cipriano (+ 258), bispo de Cartago e mártir:
"Consideremos, irmãos caríssimos, que renunciamos ao mundo e provisoriamente habitamos aqui como
hóspedes e estrangeiros. Abracemos o dia que endereça cada qual ao seu domicilio, dia que, libertados desta vida e
soltos dos laços do século, nos restitui ao paraíso e ao reino... Espera-nos lá grande número de parentes, irmãos,
filhos; anseia por nós uma família avultada e numerosa, já cena da sua salvação e ainda solicita da nossa" (De
mortalitate 26).
Ora a convicção de que logo após a morte se dá a retribuição definitiva a todo ser humano, implica um
julgamento, ou seja, o juízo particular.
O magistério da Igreja houve por bem definir a imediata sanção após a morte em mais de uma ocasião.
Assim o Concilio de Lião 11 (1274), na França, declarou que as almas dos fiéis defuntos são sem demora (mox)
recebidas no céu, ao passo que as dos réprobos sem demora (mox) passam para o inferno (D.-S. n 856-659 [464]).
Em 1336, o Papa Bento XII promulgou definição mais explícita, da qual se destaca o trecho seguinte:
"Por esta Constituição, que há de valer para sempre, definimos com autoridade apostólica que, por
disposição geral de Deus.
as almas de todos os santos que deixaram este mundo antes da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,
as almas dos santos apóstolos, mártires, confessores, virgens e dos outros fiéis falecidos depois de ter
recebido o santo Batismo de Cristo, dado que nada tenha havido a purificar quando morreram ou nada haja a
purificar quando futuramente morrerem, ou - caso tenha havido ou haja algo a purificar - uma vez purificadas após
a morte,
as almas das crianças que tenham renascido ou que futuramente hajam de renascer pelo dito Batismo de
Cristo, e que venham a morrer antes do uso do livre arbítrio,
essas almas todas, logo depois da morte e da purificação de que precisem, mesmo antes da ressurreição
dos corpos e do juízo geral, após a Ascensão do Salvador Nosso Senhor Jesus Cristo aos céus,
foram, estão e estarão no céu, possuidoras do Reino dos céus e do paraíso celeste com Cristo, gozando do
consórcio dos santos anjos,
e, depois da Paixão e Morte do Senhor Jesus Cristo, viram e vêem a essência divina numa visão intuitiva,
face-a-face, sem que alguma criatura lhes seja objeto intermediário de visão. A essência divina se lhes mostra
imediatamente, sem véu, clara e abertamente. Por esta visão da essência divina deleitam-se; vendo e deleitando-se
assim, as almas dos defuntos são realmente bem-aventuradas; possuem a vida e o descanso eternos. igualmente as
almas daqueles que futuramente hão de morrer contemplarão a mesma essência divina e por ela se deleitarão antes
do juízo geral. Esta visão da essência divina e o deleite conseqüente lhes tornarão desnecessários os atos de fé e
esperança, na medida em que a fé e a esperança são virtudes teologais próprias. Depois de iniciados a visão
intuitiva, face-á-face, e o deleite dessas almas, visão e deleite, sem interrupção ou cessação, continuam e
continuarão até o juízo final, e do juízo final para todo o sempre.
Além disto, definimos que, por disposição geral de Deus, as almas dos que morrem em pecado atual e
mortal, logo depois da morte, descem ao inferno, onde são atormentadas pelas penas infernais.
Não obstante, no dia do juízo todos os homens em seus corpos comparecerão perante o tribunal de Cristo,
para prestar contas de seus atos próprios, a fim de cada qual refira o que tiver feito de bom ou de mau em seu corpo
(2 Cor 5, l0)” (D-S. n 1000-1002 [530s]).
Nesta declaração, muito significativa, são de notar:
O verbo inicial definimos, que dá ao documento a autoridade máxima; a expressão não obstante, que
inicia a última frase. Tem por função realçar a importância do juízo universal, importância que poderia parecer
desmentida pelas afirmações anteriores, as quais implicitamente, sim, professam um juízo particular (note-se que o
Papa emprega duas vezes no texto a expressão juízo geral).
Um século após Bento XII, o Concilio de Florença, em 1439, promulgava semelhante declaração, visando
de novo propor aos gregos as verdades de fé que deviam abraçar para gozar da comunhão da Igreja:
"As almas daqueles que, depois do batismo, não se tiverem maculado em absoluto com alguma mancha
de pecado, assim como as almas que, depois de contraída alguma mancha de pecado, tiverem sido purificadas ou
no corpo ou fora do corpo..., essas almas todas sem demora são recebidas no céu e vêem claramente o próprio Deus
em sua Unidade e Trindade, como Ele é; umas, porém, vêem mais perfeitamente do que outras, conforme a
diversidade de méritos de cada qual.
Quanto ás almas daqueles que morrem com pecado atual e mortal ou com o pecado original apenas, sem
demora descem ao inferno, onde são punidas por penas que variam para cada qual" (D.-S. nos 1304-1306 [693]).
O Concilio do Vaticano I (1670) incluíra no seu programa de estudos algumas definições a respeito dos
novíssimos, definições, porém, que não chegaram a ser editadas em virtude da inesperada interrupção dos
trabalhos. Nos arquivos do Concilio encontra-se o seguinte projeto, que devia ser submetido á discussão dos
teólogos:
"Depois da morte, sem demora somos apresentados ao tribunal de Deus, para que cada qual refira o que
tiver feito de bom ou de mau em seu corpo".
São estas e semelhantes manifestações do magistério extraordinário da Igreja, associadas ao ensinamento
comum dos bispos, que levam os teólogos hoje em dia a afirmar a realidade de um juízo particularimediatamente
subseqüente á morte.
Á guisa de complementação, pode-se perguntar: porque há dois julgamentos sobre o homem - o particular
(após a morte imediatamente) e o universal (no fim dos tempos)? Deus precisa de julgar o homem duas vezes? -
Em resposta, dizemos que, em caso nenhum, Deus pondera o bem e o mal que o homem praticou, para proferir
finalmente uma sentença judiciária. Em ambos os casos, trata-se de manifestar a realidade da vida de cada um ou
ao próprio indivíduo (no juízo particular) ou á totalidade do gênero humano (no juízo universal). Com efeito; todo
homem tem sempre dois aspectos: é pessoa singular e é membro de uma sociedade; como pessoa singular, o
homem toma conhecimento nítido de si mesmo no juízo particular, e, como membro da sociedade, a sua vida é
revelada (com todas as influências e irradiações que teve) aos demais homens no juízo universal.
Estas noções ainda serão esclarecidas na Lição seguinte e nos Módulos 35 e 36 deste Curso.

Lição 2: Como se dá o juízo particular

O juízo particular não se realiza como os julgamentos em tribunais da terra. Nele não há processo, pois
todo processo é a investigação de feitos mais ou menos desconhecidos - o que não tem cabimento em Deus
oniciente. Também não há acusador (demônio) e defensor (anjo da guarda) atuando em tribunal, pois na verdade o
homem morre com a sua sentença já lavrada; cada um, através dos atos de sua vida, vai tomando posição e
definindo a sua sorte definitiva.
Então pergunta-se: em que consistirá o juízo particular?
Deus derrama sua luz sobre a alma logo após a morte, de modo que ela toma nítida consciência do que foi
realmente a sua vida terrestre; reconhece o sentido e o valor, os méritos e deméritos da sua existência; torna-se-lhe
claro tudo que ela fez e omitiu, de bem e de mal, até os últimos pormenores.
Assim, portanto, pode-se dizer que o homem, logo após a morte, se torna o seu próprio juiz. Ele se
identifica com o juízo retíssimo que Deus, a todo momento, formula a seu respeito. Nesta vida o homem se julga;
mas muitas vezes ele encobre ou dissimula, aos próprios olhos, com muita arte, os motivos de suas ações;
preconceitos próprios, opiniões alheias... obscurecem o seu modo de ver. Eis, porém, que, logo após deixar este
mundo, a pessoa se vã tal como é, sem poder dissimular a realidade; tudo se lhe torna transparente. Muita coisa que
lhe parecia pequenina ou indiferente, toma grande vulto, e vice-versa.
De uma intuição tão clara procede inevitavelmente a sentença do julgamento, sentença que tem por
autores Deus e o próprio homem.
A sentença resultante do juízo particular é imediatamente executada..., executada sem uma intervenção
violenta de Deus, mas por uma exigência da própria alma julgada. Com efeito; o amora Deus, comprovado pelo
juízo, a impele irresistivelmente á bem-aventurança divina (o céu) ou ao estágio previamente necessário para obter
a visão de Deus (o purgatório); de modo análogo, o ódio ao Criador, uma vez comprovado, faz que a alma se afaste
para longe do Senhor. S. Tomás compara a sorte das almas julgadas á dos corpos que, por seu próprio peso, são
levados a procurar o lugar que lhes convém: desde que desatados de todo vinculo, voam pelos ares, caso sejam
leves; ou precipitam-se por terra, caso sejam pesados.
Notemos ainda que o fato de ver-se a si mesmo sob a luz de Deus não implica, para o homem, ver a SS.
Trindade ou Cristo face-á-face; tal visão seria simplesmente o céu... Deus está presente ao homem nesta vida
mesma; sua presença, porém, é um tanto encoberta para a criatura ofuscada pelas coisas sensíveis. Ora, logo após a
morte, será dado ao homem experimentar, de maneira nova e muito viva, essa presença de Deus, e justamente de
Deus enquanto é o Santo, o incompatível com a mínima sombra de imperfeição.
Uma antecipação, por excelência, do juízo particular é dada ao cristão em cada confissão sacramental; por
esta, o Senhor, na pessoa do sacerdote, julga seu filho, e normalmente o absolve, fazendo-o beneficiar-se da
misericórdia. Terminado o tempo da misericórdia, que é esta vida, o Senhor julgará conforme toda a justiça; é,
portanto, afim de que a justiça de Deus o possa recompensar após a morte que muitas e muitas vezes, no
sacramento da Penitência, o cristão procura identificar-se com- o juízo de Deus, tentando ver sua conduta como
Deus a vê.

PERGUNTAS

1) Lago depois da marte, ficaremos adormecidos ou inconscientes?


2) Quais os fundamentos bélicos para se afirmar o judo particular?
3) Cite algum documento do magistério da Igreja relativo ao julgo particular.
4) Deus precisará de nos julgar duas vezes, ou seja, logo após a morte e no fim das tempos?
5) Como se deve entender o juba particular?
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 9: A BEM-AVENTURANÇA CELESTE(I) - NOÇÃO

O destino normal de todo homem, após a morte, é entrar no gozo do seu Senhor (cf. Mt 25,23), desde que
não haja mais nenhum resquício de pecado a expiar no purgatório. Trata-se da suma bem-aventurança ou "daquilo
que o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, o coração humano jamais perscrutou" (1Cor 2,9).
Procuremos aprofundar tal realidade.

Lição 1: Fundamentação Bíblica e Tradição

1-1- Nas Escrituras

A promessa de vida futura e bem-aventurada ocorre em todos os livros do Novo Testamento. Uma ou
outra passagem, porém, requer particular atenção:
1) Mt 5,8; 1Cor13,12; 1Jo 3,ls. Estes textos anunciam aos justos a visão de Deus face-à-face. São Paulo
realça a diferença entre o "conhecer a Deus" que desfrutamos nesta vida (em espelho e de modo confuso), e a
intuição direta ou face-à-face da vida futura:
“Atualmente vemos como que num espelho, de modo confuso; veremos, porém, face-à-face. Agora
conheço em parte; herde conhecer porém, como sou conhecido"(1cor 13,12).
Essa visão direta de Deus preencherá todas as aspirações da criatura.
São João também fala da visão de Deus, apresentando, porém, outros particulares:
“Vede com que o amor o Pai nos amou: trazemos o titulo de filhos de Deus e na realidade o somos!...
Caríssimos, já agora somos filhos de Deus, mas ainda não foi manifestado o que um dia seremos. Sabemos que,
quando Ele se manifestar, ser-lhe-emos semelhantes, porque O veremos tal como Ele é” (1Jo 3,1.3).
Somos filhos de Deus, porque enxertados no Filho pelo Batismo (cf. Rm 6, 3.6; Gl 3,26-29), mas ainda
nos sentimos sujeitos ao pecado e ás suas conseqüências. Aguardamos, portanto, a plenitude da nossa filiação
divina, que se dará quando Cristo reaparecer neste mundo; então seremos totalmente configurados a Cristo e o
veremos em sua realidade intima, divina, "tal como Ele é"; vendo o Filho, veremos também o Pai, pois “a vida
eterna consiste em que os homens conheçam o Pai e o seu enviado, Jesus Cristo” (Jo 17,3).
Vale a pena notar ainda o texto de 2Cor 5,6-8:
“Cheios de segurança e sabendo que, enquanto permanecemos neste corpo, estamos longe do Senhor pois
caminhamos na fé, e não na visão, cheios de segurança (digo), preferimos deixar este corpo e habitar junto do
Senhor”.
Nesta passagem, o Apóstolo contrapõe fé (conhecimento através dos véus) e visão (intuição direta).
2) Lc14,16-24; Mt 25,1-12; 22,1-14; Lc12,37; 13,29:
Jesus freqüentemente apresenta a felicidade definitiva sob a figura de uma grande ceia..., ceia nupcial. -
Qual o significado desta imagem?
Na vida presente, sentar-se á mesa de alguém é sinal de amizade e intercâmbio cordial. Ora a vida celeste
será comunhão intima dos justos com o Senhor e entre si. O Senhor, como Rei ou como Esposo, nutrirá os justos
sem intermediário, sem véu, não com alimento material, mas com a sua própria Vida e Verdade. Como em toda
ceia, também no encontro da vida futura haverá um colóquio face-á-face entre o Criador e a criatura. Disto não
poderá deixar de provir alegria e bem-estar imensos para o homem.
De resto, é máxima antiga, vigente já entre os pagãos, que "contemplar é comer"; contemplar a Verdade é
participar da Verdade, identificar-se com a Verdade 8. Conseqüentemente, a visão que os justos no céu terão de
Deus, bem pode ser comparada a um “comer da mesa de Deus”.
3) Os textos de Ap 21 e 22 completam os dizeres atrás, pois, usando de imagens diversas, descrevem em
colorido muito vivo a bem-aventurança celeste.
4) A referência ao paraíso em Lc 23,43; Ap 2,7 significa não um local, mas um estado de plena
felicidade, capaz de satisfazer a todas as aspirações do ser humano.

1.2. Tradição

8
A Escritura associa entre si os conceitos “comer” e “ver, contemplar” em Ex 24,9-11; SI 34.9; Gn 3,6s; Lc 24,35.
O magistério da Igreja resumiu em algumas declarações o ensinamento da Escritura e da Tradição a
respeito da bem-aventurança celeste. Notemos a fórmula do Papa Bento XII na Constituição Benedictus Deus
(1336) já citada no Módulo 8:
“(Os bem-aventurados) viram e vêem a essência divina 9 em visão intuitiva ou face-à-face, sem que a
visão de alguma criatura se interponha; a essência divina se lhes mostra imediatamente, sem véu, clara e
abertamente; vendo-a, nela se deleitam; por tal visão e fruição, as suas almas são realmente felizes, possuem a vida
e o repouso eterno” (D.-S. n 1000 [530]).
O Concilio de Florença, em 1439, explicitou com precisão:
“(Os bem-aventurados) vêem claramente o próprio Deus, em sua Unidade e Trindade, tal como é” (D.-S.
n 1305 [693]).
Procuremos aprofundar estes dados colhidos nos documentos-fontes da fé.

Lição 2: Em que consiste a bem-aventurança celeste

No céu, dizíamos, os justos têm a intuição direta de Deus. É isto que constitui a essência (o essencial) da
bem-aventurança celeste. Todavia a contemplação de Deus não exclui a felicidade que possa provir de fontes
acessórias, ou seja, da visão das criaturas e da posse de outros bens. A felicidade decorrente destes bens criados é
chamada bem-aventurança acidental.
Examinemos sucessivamente um e outro aspecto da vida futura.

2-1- O essencial da bem-aventurança celeste

No céu os justos verão a Deus face-à-face, e em Deus terão a intuição das criaturas, na medida em que
são reflexos e expressões da Sabedoria e da Perfeição do Criador.
Expliquemo-lo.

A. A visão de Deus face-à-face

Como pode o ser humano, criatura de capacidades limitadas, ver diretamente a Deus, que é a Perfeição
Infinita? A própria Escritura ensina muito enfaticamente que nenhuma criatura pode, por suas próprias faculdades,
ver diretamente a Deus:
Moisés, por exemplo, pediu a Deus: "Mostra-me a tua glória!" Ao que Javé respondeu: "Faça graça a
quem a faço; e faço misericórdia a quem a faço... Não poderás ver minha face, pois o homem não me pode ver e
permanecer em vida" (Ex 33,18.20). Moisés pedira demais; só lhe foi dado ver o reflexo da glória de Deus, que
passava! Cf. Gn 28,30; Ex 3,6; 20,19; Jz 6,22; 13,22; Is 6,5.
Os escritos do Novo Testamento repetem o mesmo: somente por favor gratuito de Deus é que as criaturas
podem ter a intuição direta da Perfeição Divina:
"Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho
O quiser revelar" (Mt 11,27; cf. Jo 4,46; 1,18; 1Cor 2,11 ).
São Paulo escreve: “(Deus)... que habita uma luz inacessível, que nenhum homem viu nem pode ver, a
quem sejam dados honra e poder eternos! Assim seja!” (l Tm 6,16).
Eis, porém, que Jesus Cristo anunciou: “Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão a Deus”
(Mt 5,8).
Para que isto se torne possível, Deus robustece o intelecto dos justos no céu, infundindo-lhe a chamada
"luz da glória"10. Esta substitui a fé infusa, á luz da qual conhecemos Deus nesta vida. A luz da glória eleva, dilata e
corrobora a inteligência, tornando a alma apta, "proporcionada" (se assim podemos dizer) e ver Deus como Deus vê
a Si mesmo. Ora, conhecer a Si mesmo, a Suma Perfeição, e, conseqüentemente, amar a Si mesmo, a Suma Beleza,
eis em que consiste a felicidade de Deus. Daqui se segue que, mediante a luz da glória, a alma humana entra em
participação da vida bem-aventurada de Deus, participação tão real e intima quanto isto é possível á sua condição
de criatura. Percebe-se assim um pouco qual seja a grandeza e a dignidade da vida dos justos no céu. 11

B. Observações complementares

Dito isto, três observações se impõem:

9
A “essência divina”, na terminologia da época, significa a realidade intima (essencial) de Deus,
10
Escreve a teólogo de Louvain Leanardo Léssio S.J,: “Como a luz corporal faz que o olho do corpo se estenda á vastidão deste mundo e, de modo admirável, a apreenda dentro da sua capacidade, assim aquela luz espiritual e divina faz que a mente,., se possa dilatar e como que receber dentro de si toda a imensidão
de Deus” (De Summo bono, 1,I,c, 8, n 444).
11
A infusão da luz da glória é explicitamente inculcada pelo magistério da Igreja. Com efeito: houve teologos, como também almas misticas, que, desejando acentuara união da criatura com a Criador, negaram a infusão da luz da glória... Contra os begüinos e beguardos, por exemplo, procedeu o Concílio ecumênico
de Viena (França) em 1311, condenando a proposição: “Qualquer criatura intelectual é naturalmente bem-aventurada por si mesma; o homem não precisa da luz da glória para se elevar à visão e ao gozo beatifico de Deus”
1) Os bem-aventurados verão Deus face-à-face. Por conseguinte, contemplarão claramente as três pessoas
da SS. Trindade e seus predicados. Deus não se mostra fragmentariamente aos justos porque Ele é a Unidade e a
Simplicidade mesmas. Mas os justos, embora vejam Deus todo, inteiro, não o verão totalmente, isto é, não
contemplarão Deus de maneira exaustiva; nenhuma intel19ência criada está á altura de conhecer a Perfeição Divina
de maneira exaustiva. Com outras palavras: os bem-aventurados vêem o Infinito, sabendo que Ele é o Infinito, mas
não o conhecem de maneira infinita. Nada há em Deus que não seja contemplado pelos justos no céu, mas nada há
em Deus que seja contemplado tão perfeitamente quanto é contemplável, em toda a sua riqueza de ser. Os bem-
aventurados apreendem, mas não compreendem, a Infinita Perfeição Divina. Isto quer dizer que Deus será sempre
novo para os bem-aventurados; vê-lo e contemplá-lo nunca lhes causará fastio 12.
Mesmo no céu, o Criador fica sendo um mistério que ultrapassa o alcance da criatura. Dondo se segue
que a atitude fundamental dos bem-aventurados é a adoração; vêem e adoram, segundo Ap 4,9-11. É, aliás, no ato
de adoração a Deus que se funda a dignidade do homem; adorar a Deus nada mais é do que a expressão da verdade.
2) Mais: a visão de Deus no céu admite graus de perfeição diversos: uns contemplam com grande
penetração e nitidez, enquanto outros com menos perspicácia.
E qual o motivo da diferença?
Certamente não é o maior ou menor acume da inteligência das criaturas, pois, neste caso, o homem
dotado de inteligência mais aguda seria, por isto mesmo, mais premiado no céu do que outro, de inteligência menos
penetrante. - O que faz os diversos graus de perfeição da visão beatifica são os diversos graus de amor com que as
criaturas deixam este mundo. Onde há mais amor de Deus, há mais desejo dever e possuir a Deus, e é a este desejo
que o Senhor corresponde, manifestando-se e dando-se á criatura no céu. Podemos ainda dizer: a visão beatifica
será um ato todo movido pelo amor da criatura a Deus; e será visão tão penetrante quanto ardente for o amor em
que ela se basear. Doutro lado, o amor há de redundar da visão de Deus; amor e complacência não poderão deixar
de encher as almas bem-aventuradas.
Este principio explica que pessoas de inteligência bastante limitada possam chegar a eminente grau de
glória celeste, como também podem ter grande afinidade com Deus já nesta vida; ao contrário, pessoas muito
talentosas podem ter pouco entendimento das coisas de Deus nesta vida e menos afinidade com Deus na outra vida,
se lhes falta um ardente amor a Deus; é o amor que abre o olho da mente para os mistérios de Deus tanto neste
mundo quanto na existência póstuma, pois Deus é Amor (1Jo 4,8)..., Amor que se dá a conhecer a quem ama.
3) É de notar ainda que, vendo Deus face-á-face, os bem-aventurados contemplam também os modos
finitos pelos quais Deus pode ser imitado e espelhado por criaturas. Com outras palavras: vendo a Deus, o Sumo
Artífice, os justos verão os artefatos produzidos por este Artífice ou verão as criaturas (ao menos aquelas que mais
interessam a cada bem-aventurado no céu).
Em 1528 um Concilio regional de Paris declarava:
“Aos bem-aventurados é manifestado uniformemente o divino espelho, no qual resplandece tudo o que
lhes interessa”.
Este texto bem se entende: toda causa contém em si os efeitos que dela procedem. Por conseguinte, tudo o
que foi, é ou será criado (criaturas reais) e também tudo o que poderia ser criado (criaturas meramente possíveis),
tudo isto se acha contido na Perfeição Divina. Vendo esta, os justos verão ao menos os efeitos criados cujo
conhecimento corresponda a algum desejo seu legitimo.
Assim se verifica que no céu o nosso conhecimento obedecerá a uma ordem inversa da que ocorre na
terra; neste mundo, primeiramente tomamos conhecimento das criaturas, e, através destas, nos elevamos ao
Criador; ao contrário, na vida celeste veremos diretamente a Deus e, em Deus, as criaturas (aliás, é assim que o
próprio Deus conhece as criaturas: contempla a sua infinita Perfeição e, nesta, os seres criados, como reflexos ou
modos de participação da infinita Perfeição divina).
A visão de Deus projetará sobre as criaturas a verdadeira luz, de sorte que perceberemos o valor genuíno
de cada uma delas, sem nos deixar iludir pela beleza ou pela desarmonia aparentes. Mais precisamente: os bem-
aventurados contemplam em Deus o grande plano de salvação dos homens concebido desde toda a eternidade,
plano que compreende a permissão do pecado, a Encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo, o dom da
Eucaristia, das Escrituras Sagradas, a vida misteriosa da Igreja, a maneira, aparentemente desconcertante, como
Deus provê á redenção dos homens; o bem-aventurado contempla em Deus, também, a história das obras que ele
tenha empreendido na terra, os caros parentes e amigos que haja deixado.
É S. Agostinho quem nos diz:
“Os bem-aventurados verão a Deus e tudo aquilo que agora não vemos, mas aceitamos na fé segundo a
exígua medida da capacidade humana. Aqui prestais fé, lá vereis" (De civitate Dei, 20,21,1).
Examinemos agora:

2.2. A bem-aventurança acidental

12
Poderíamos ainda dizer: a céu é a participação da criatura no colóquio que Pai e Filha, na Espírito Santo (Amor), entretém eternamente entre si. O ritmo da vida Trinitária se torna o ritmo de vida dos bem-aveuturados; estes são envolvidos no fluxo e refluxo, no intercâmbio, que se verifica entre as três Pessoas
Divinas.
Pergunta-se: além da posse direta de Deus, quais os bens que ainda poderiam causar alguma felicidade,
embora acidental, aos justos no céu?
Eis as fontes donde se deriva essa bem-aventurança acidental:

Bem-aventurança acidental{ 1 e 2

1) comum a todos os justos { bens da inteligência; bens da vontade; bens do corpo bens da convivência
celeste.

2) própria de certos justos{ martírio (mártires); doutrina teológica eminente (doutores); virgindade
(virgens)
Percorramos brevemente os diversos títulos:

2.2.1. Bem-aventurança acidental comum a todos os justos

l) Bens da inteligência: como dito atrás, Deus corresponderá ás legitimas aspirações dos bem-
aventurados, dando-lhes a conhecer criaturas e acontecimentos que de perto lhes dizem respeito. Entre outras
coisas, é certo que os bem-aventurados têm conhecimento das preces que neste mundo lhes são dirigidas, pois
Deus, que fez os homens solidários entre si, não permite que essa comunhão seja dissolvida pela morte; por isto
pedimos aos justos que intercedam por nós no céu, e Deus lhes dá a conhecer nossas orações para que, de fato, eles
rezem por nós ao Pai
Além das noções assim reveladas, contribuirão para a felicidade dos justos os conhecimentos adquiridos
na terra: qualquer verdade conhecida na vida presente, mas relegada ao esquecimento, reviverá no céu e tornar-se-
á fonte de alegria (note-se bem: qualquer verdade, seja religiosa, seja científica, seja histórica, seja cultural...).
2) Bens da vontade: da contemplação deriva-se, na terra e no céu, o deleite da vontade nos objetos
contemplados. Tal deleite não será perturbado por contrariedade alguma. As almas conscientes de não ter
alcançado a bem-aventurança a que outras chegaram, não experimentarão inveja nem pesar. Também a sorte infeliz
de outras criaturas, quer vivam neste mundo, quer no inferno, não afetará a felicidade dos justos no céu. A razão
disto é que a vontade e as tendências dos justos no céu estarão plenamente identificadas com a santíssima vontade
de Deus; tudo o que os bem-aventurados no céu conhecem, conhecem-no como Deus o conhece, ou seja, através do
prisma da justiça perfeita, da sabedoria infinita, da misericórdia absoluta; verão, pois, em todos os erros das
criaturas algo de abominável, sim, mas algo que não causa detrimento á perfeição do universo ou á harmonia final
da história; verão mesmo nas falhas das criaturas algo de que o Deus Santo toma ocasião para manifestar seus
atributos sumamente adoráveis.
Tenhamos por certo também que nenhum desejo dos justos no céu deixará de ser saciado; cada qual será
tão feliz quanto for capaz de o ser13.
3) Bens do corpo. Após a ressurreição, o corpo permanecerá unido á alma e participará da sua glória. A
reconstituição do ser humano em sua estrutura completa não poderá deixar de acarretar particular alegria para os
bem-aventurados.
4) Bens da convivência celestial. Os justos se regozijarão por se encontrarem com Cristo, com a Virgem
Santíssima, com os Santos; alegrar-se-ão por estar de novo com familiares e amigos, unidos na intimidade de Deus;
reconhecer-se-ão e se comunicarão uns com os outros, sem a mínima sombra de egoísmo ou imperfeição.

2.2.2. Bem-aventurança própria de certos justos

Os teólogos admitem que os mártires, os doutores da fé, as virgens e os cônjuges fiéis ao seu casamento
possuirão recompensa especial, pois o martírio, o ensinamento fecundo das verdades da fé, a virgindade e a
fidelidade conjugal implicam um heroísmo singular.

PERGUNTAS
1) Cite e comente brevemente dois textos bíblicos referentes á bem-aventurança celeste;
2) Como pode a criatura ver face-á-face o Criador Infinitamente perfeito?
3) Que se entende por “visão de Deus apreensiva, mas não compreensiva”?
4) Há graus de perfeição na visão de Deus? Por quê?
5) Na bem-aventurança celeste, que será essencial e que será acidental?

13
Não se pode dizer que um cálice pequena, contendo licor até o alto, está menos cheio do que um cálice grande nas mesmas condições: ambos estão
simplesmente cheios. Assim no céu todas são simplesmente felizes, cada qual, porém, no seu grau.
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS(ESCATOLOGIA)

MÓDULO10: A BEM-AVENTURANÇA CELESTE (II)


QUESTÕES COMPLEMENTARES

Após ter formulado em palavras pálidas o que seja a bem-aventurança celeste, consideremos algumas
questões complementares dai decorrentes.

Lição 1: "Ver a Deus" - aspiração de todos os homens

Desde remota antigüidade, os homens sempre exprimiram o desejo de ver a Divindade, tal como eles a
entendiam; a Divindade teria a face da Beleza Infinita... E o que atestam a filosofia dos hindus, o platonismo grego,
as religiões ditas "de mistérios". Para os pagãos, a visão de Deus significa salvação, plenitude de vida... Entre os
israelitas, que professavam a fé no Deus vivo, era intenso o desejo de ver a face de Deus; cf. Ex 33,17-23; SI 17,15;
Jo 14,8. Todavia nem a pagãos nem a judeus foi concedido ver a face de Deus neste mundo. Cristo é que nos
mereceu a realização deste anseio natural mediante o seu sangue. Esta mensagem, expressa no Novo Testamento,
corresponde a uma das aspirações mais espontâneas da natureza humana.
Para o cristão, a futura visão de Deus já tem seu fundamento nos dons que o Batismo lhe comunicou e
que nele vão desabrochando durante esta vida; a visão beatifica não é senão a consumação de uma caminhada
iniciada na terra. Com efeito, já neste mundo o cristão, em estado de graça, participa da vida divina; possui dentro
de si o princípio que a habilita a ver Deus como Deus vê a si mesmo. A continuidade entre a vida presente e a
futura é expressa mediante significativas imagens tiradas dos livros sagrados:
sementeira - messe: Gl 6,8s; 2Cor 9,6;
habitação de peregrino no estrangeiro - entrada na pátria: 2Cor 5,6s;
habitação em tenda - casa definitiva: 2Cor 5,1-4;
posse velada- posse revelada: Cl 3,3s.

É Jesus quem diz:


“Aquele que beber da água que lhe darei, jamais terá sede; ao contrário, a água que lhe darei, tornar-se-á
nele uma fonte de água que jorrará para a vida eterna” (Jo 4,14).
Tal água sempre foi entendida como símbolo da graça conferida pelo Batismo. Também chamam a
atenção estas outras palavras do Senhor:
“Em verdade, em verdade, eu vos diga: aquele que ouve a minha palavra e crê..., possui a vida eterna”
(Jo 5,24).
São muito significativas as formas verbais de presente e de futuro.
Todavia, por mais que se reconheça a continuidade existente entre a graça na terra e a glória no céu, é
preciso afirmar que as notas de dessemelhança ainda são maiores. Eis outra imagem que ajuda a perceber a
semelhança e a dessemelhança entre os dois termos: entre a larva e a borboleta há, sem dúvida, continuidade de
vida; todavia na primeira nada se nota da riqueza de cores e agilidade que caracterizam a segunda; há mesmo um
contraste de aparências; a larva é feia, quase repugnante, ao passo que a borboleta é muito bela e atraente; é
surpreendente o fato de que o mesmo principio vital se pode revestir de aspectos tão diferentes. Assim a vida
celeste, embora já se tenha iniciado para nós neste mundo, fica sendo um mistério, do qual só podemos falar em
termos que mais dessemelhança implicam do que a afinidade com a vida futura; trata-se, com efeito, de algo que o
olho não viu, o ouvido jamais ouviu...
A noção de bem-aventurança celeste ainda suscita algumas questões:

Lição 2: Progresso na visão beatifica?

Como dito, a bem-aventurança celeste consiste essencialmente na visão de Deus e das criaturas
contempladas em Deus; acidentalmente, a isto se acrescentará o gozo de outros bens.
Pergunta-se: a visão beatifica admitirá aumento e progresso ou será estática?
Em resposta, ponderamos o seguinte:
Para que houvesse progresso na visão de Deus, seria necessária a intensificação da luz da glória. Ora esta
é dada em proporção do amor com que cada pessoa morre. O amor, porém, não pode crescer na outra vida, já que
só neste mundo é dado ao homem adquirir méritos. Donde se segue que, desde a sua entrada no céu, o justo lança
sobre Deus um olhar tão penetrante quanto o permite o seu grau de amor; á semelhança de uma flecha, a alma justa
penetra no oceano de luz tão longe quanto a leva o ímpeto do amor. A visão beatifica torna-se assim um ato
definitivo; nenhum vestígio de progresso o pode afetar. S. Agostinho, referindo-se ao céu, fala “daquela felicidade
imutável em que os nossos pensamentos não divagarão mais, passando de um objeto a outro e voltando ao que
tiverem deixado; com um só olhar, abraçaremos todos os objetos do nosso conhecimento” (De Trinitate 15, 16).
De resto, não se pode dizer que vida implica necessariamente mudança. Toda mudança supõe
imperfeição, pois é passagem do menos perfeito para o mais perfeito ou do mais perfeito para o menos perfeito. Por
conseguinte, a vida perfeita não é senão a posse estável da plenitude que lhe compete. Longe de coincidir com
sonolência ou paralisação, é ato, e ato cheio de vitalidade; ato, porém, que nada tem a buscar ou adquirir mediante
alguma mudança. - Somente a vida imperfeita conhece busca pelo fato de não estar ainda no seu termo ou de não
ter atingido a plenitude á qual ela tende.
Quanto aos bens que constituem a bem-aventurança acidental, não há dificuldade em reconhecer que
podem variar ou também multiplicar-se, ocasionando aumento de felicidade para os justos. Assim as noticias dos
acontecimentos nobres que se desenrolam neste mundo, suscitam novos e novos motivos de júbilo para os cidadãos
celestes. É o que o próprio Jesus insinua quando afirma haver grande alegria no céu cada vez que se converte um
pecador (cf. Lc15,10). Assim é que, ao menos até a ressurreição dos corpos, se aumentará acidentalmente a alegria
dos justos no céu.
É de notar, porém, que a alma justa só se deleita nesses novos bens pelo fato de estar unida a Deus; as
criaturas só têm para ela o valor que lhes compete á luz de Deus. A complacência que o bem-aventurado tem no
Senhor, ele a estende a tais objetos, que lhe representam o próprio Deus sob a forma de imagens ou reflexos. É
preciso mesmo dizer que, vendo a Deus só, a alma já possui essencialmente toda a bem-aventurança de que é
capaz.

Lição 3: Repouso e atividade no céu

Pode-se insistir na dificuldade já ligeiramente abordada: a perspectiva de que a contemplação de Deus no


céu se faz num ato sem progresso ou variação, gera a idéia de monotonia ou tédio. Esta parece corroborada pela
expressão "repouso eterno" com que se designa a vida celeste. Donde o espanto que alguns concebem diante da
noção de felicidade atrás proposta.
Que dizer a isto?
Não há dúvida, toda vida implica dinamismo e ação. - O dinamismo, porém, do céu difere de qualquer
atividade terrestre pelo fato de que se realiza sem implicar defeito ou carência, sem implicar aperfeiçoamento; é
simplesmente a afirmação, de perfeição, de uma vida que chegou ao seu pleno desenvolvimento. Em outros termos:
é dinamismo que tem semelhança com a vida do próprio Deus; esta nada pode adquirir, visto que é intensa e
perfeita em grau infinito. Assim entendida, a bem-aventurança celeste significa altíssima atividade, sem a luta nem
a evolução inerentes ao nosso estado de peregrinos neste mundo. Tal existência não produzirá nada de material,
pois toda a vitalidade dos justos se concentrará no exercício das suas funções de conhecer e amar. O produzir algo
de material supõe carência e atendimento a carências.
Podemos acrescentar que tédio ou fastio só podem sobrevir ao homem quando este se ocupa com o
próprio eu ou com os bens limitados desta vida; qualquer valor finito é inadequado à capacidade infinita do espírito
humano, que, cedo ou tarde, nele percebe a pequenez e insuficiência. Caso, porém, o homem se aplique face-á-face
ao conhecimento e ao amor de Deus, entra em contato como Bem que nenhuma limitação traz em si e, por
conseguinte, nenhum fastio pode gerar.

Lição 4: Impecabilidade e liberdade

Dado que uma criatura veja a Deus face-á-face, sua vontade encontra o objeto adequado de suas
aspirações infinitas. Seus desejos se dão por plenamente saciados, de sorte que afastar-se de Deus para aderir a
outro bem (que seria necessariamente um bem finito) se lhe apresenta como verdadeira insensatez, ato de todo
impraticável. Dai se segue que nenhuma tentação, muito menos algum pecado, pode perturbar a felicidade dos
justos no céu. Estes se acham definitivamente confirmados no amor de Deus e na entrega total ao Senhor.
Todavia essa adesão definitiva não implica extinção da liberdade de arbítrio. Ela procede de um ato
voluntário e espontâneo da criatura; esta vê na aplicação incondicional da sua inteligência e do seu amor ao Sumo
Bem não a mutilação, mas o desabrochar consumado da sua vitalidade ou o gênero de vida correspondente ás suas
mais intimas aspirações.
Á luz destas idéias, entendemos que o céu seja prêmio para o homem, sem deixar de ser, ao mesmo tempo
ou, melhor, em primeiro lugar, glorificação de Deus. Estes dois termos - glória de Deus e felicidade do homem -
parecem ás vezes estar em conflito entre si. Na verdade, isto não ocorre; eles são harmoniosamente inseparáveis um
do outro. O ideal e a felicidade do homem consiste em reproduzir em si a imagem e a vida de Deus; é este o destino
implantado no intimo mesmo da criatura humana, principalmente do cristão. Ora, tal ideal, o indivíduo o atinge de
maneira perfeita no céu; ele então está no seu ideal; é, portanto, feliz. Todavia este fato mesmo implica que o
homem represente e proclame, por todo o seu ser, a Perfeição de Deus - e isto vem a ser a glorificação do Criador.
No céu dá-se o encontro do objeto exemplado (criatura) com o respectivo exemplar (o Criador). Deste
encontro não pode deixar de resultar alegria, glória para ambos, conforme o famoso axioma da Filosofia: "Simile
simili gaudet. O semelhante se alegra á vista do semelhante". Está claro que, para Deus, se trata de glória
totalmente acidental; para o homem, porém, ela é essencial. Ademais a glória do homem será totalmente derivada
da glória de Deus e devida a esta; por isto o céu é, primeiramente, o estado de perfeita glorificação do Criador par
parte das criaturas, criaturas felizes por serem o reflexo da infinita Perfeição do Criador.
Tal é o termo que o cristão aguarda para o fim de seus dias. Ele sabe, sem dúvida, que avia para tal meta é
semeada de escolhos e tribulações. Todavia a palavra do Senhor e a experiência mesma da caminhada lhe ensinam
que as dificuldades não são senão um aspecto da vida presente; na realidade, qualquer renúncia que o cristão faça
para possuir a Deus, encontra imediata resposta por parte do Bem Infinito, que já agora se vai comunicando aos
fiéis. É justamente na base desta doação mútua, antecipada e progressiva, que se dilata e encoraja o coração do
peregrino!
“Feliz o homem que em Ti encontra sua força! Felizes aqueles que planejam ir em peregrinação!
Caminharão com força sempre crescente, Verão a Deus em Sion! Felizes, Senhor, os que habitam a Tua casa E te
louvam sem interrupção!” (Salmo 84,5s.8)

APÊNDICE

Transcrevemos, a seguir, palavras do Pe. Júlio Fragata S.J., Superior Provincial da Província Portuguesa
da Companhia de Jesus, falecido aos 27/12/1985. A consciência do que é a vida futura, lhe inspirou afirmações de
grande coragem e edificação nos meses anteriores á sua morte.
Aos 30/05/85, nas vésperas de ser operado de um câncer do estômago, escrevia no seu “Diário
Espiritual”:
“Tenho sentido certa alegria em deixar este mundo como, onde e quando o Senhor quiser, entregando-lhe
totalmente todo o meu fim de carreira. Mas hoje, na Eucaristia, senti que, assim como Jesus, deixando este mundo,
começou a fazer ainda maior bem nele, também só desejo deixar este mundo para que, do outro mundo, tenha
ocasião de fazer ainda maior bem. Só passando a fazer bem se dá real glória a Deus; e creio que o Senhor disporá
que termine a minha vida neste mundo quando estiver em circunstancias de fazer do outro mundo, maior bem neste
mundo. Quero pedir a Nossa Senhora que me ampare nesta vida, que nela seja de tal modo purificada que, ao sair
deste mundo, possa logo começar a fazer maior bem aqui. Senti rápida, mas elevada consolação neste pensamento”.
O Pe. Manuel Morujão, Superior da Comunidade jesuíta de Braga, de que era membro o Pe. Fragata,
atestou:
“Das idéias que mais freqüentemente lhe ouvi repetir nos seus últimos meses, era o sublinhar insistente
que a sua partida para a Casa do Pai seria um bem para nós, que por nós iria interceder junto de Deus, que de lá
nos poderia ser mais útil e fazer maior bem. Poucos meses antes da sua partida conversávamos á mesa sobre qual
seria a nossa ocupação na eternidade. De súbito nos interrompeu, com voz de quem conhece a verdade por
dentro: ‘No céu ama-se! O descanso eterno é sumamente ativo em amor, em Deus-Amor’”.
Eis um depoimento que bem ilustra a convicção da temática que nestes Módulos expusemos; ela se torna
sumamente fecunda e gratificante para quem a aceita na fé.

PERGUNTAS

1) Que comentários lhe sugere a fórmula "Ver a Deus"? 2) A visão beatifica terá sua evolução e seu
progresso? 3) Que entende você por "repouso eterno"? A vida futura será repouso ou atividade? 4) Os justos no céu
são livres? Podem pecar? Explique bem. 5) Que significa o axioma. "O semelhante goza com a presença do
semelhante"?

ESCOLA “MATER ECCLESIAE”


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 11 : O PURGATÓRIO (II)


FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA E TRADIÇÃO

“Purgatório” é o estado (não o local) em que as almas dos fiéis que morrem no amor a Deus, mas ainda
portadoras de inclinações desregradas e resquício do pecado, se libertam destas escórias mediante uma purificação
do seu amor. O purgatório vem a ser uma concessão da misericórdia divina, que não quer condenar a quem o ama,
mas não pode receber em sua santíssima presença (na visão face-á-face, 1Cor 13,12j qualquer sombra de pecado.
Examinemos os fundamentos e o significado da doutrina do purgatório.
Lição 1: Purgatório - Fundamentação Bíblica

Que nos dizem os mananciais escriturísticos a respeito do purgatório?


São dois os principais textos que vêm ao caso:
a) 2Mc 12,39-45: Verifica-se que, já antes de Cristo, os judeus conceberam a noção de uma expiação
póstuma e do sufrágio em favor dos mortos a ser realizados pelos vivos. O texto que vamos transcrever a seguir,
pertence á integra ou ao Cânon da Bíblia segundo a Tradição católica(M ^) 14. Os protestantes não o aceitam; mas,
como quer que seja, é o testemunho de como evoluiu o pensamento do povo judeu no tocante á vida póstuma. As
noções relativas aos últimos fins só aos poucos foram-se clareando no Antigo Testamento; o 2 -o livro dos Macabeus
nos séculos II/I a.C. mostra como o conceito de purificação póstuma foi atingido pelos judeus, que o transmitiram
aos cristãos. Leiamos:
"Os soldados de Judas saíram, como o requiriam a necessidade, para recolher os cadáveres dos que
haviam tombado e coloca-los nos jazigos de seus pais, nos sítios dos seus parentes. Então encontraram debaixo da
túnica de cada um dos mortos objetos consagrados aos ídolos de Jâmnia, coisas proibidas pela Lei dos judeus.
Ficou assim evidente a todos que haviam tombado por aquele motivos. Todos, pois, glorificaram ao Senhor justo
juiz, que manifesta as coisas ocultas, e puseram-me em oração, implorando que o pecado cometido encontrasse
completo perdão. E Judas, com a sua nobreza de ânimo, exortou o povo a se conservar afastado do pecado, tendo
eles visto com os próprios olhos as conseqüências do pecado dos que haviam tombado. Depois ajuntou, numa
coleta individual, cerca de duas mil dracmas de prata, que enviou a Jerusalém para que se oferecesse um sacrifício
propiciatório. Com ação tão bela e nobre ele tinha em consideração a ressurreição, porque, se não cresse na
ressurreição dos mortos, teria sido coisa supérflua e vã orar pelos defuntos. Além disso, considerava a magnífica
recompensa que está reservada àqueles que adormecem com sentimentos de piedade. Santo e pio pensamento! Por
isso, mandou oferecer o sacrifício expiatório, para que os mortos fossem absolvidos do pecado" (2Mc 12,39.45).
Em síntese o texto diz que, no dia seguinte ao da vitória sobre o general pagão Górgias, Judas Macabeu
(+160 a.C.) descobriu, debaixo das túnicas de seus soldados mortos, pequenos ídolos que se haviam apoderado no
saque de Jâmnia; eram objetos impuros, que a Lei proibia ao israelitas guardar consigo. Acreditava, porém, que "os
soldados haviam morrido piedosamente" - o que insinua que a sua culpa não fora grave, ou, caso o fosse, dela se
tinham arrependido antes de morrer. Não obstante, depois da morte ficaram-lhes aderências do mal, das quais
deviam ser purificados, afim de poderem conseguir "a bela recompensa". E Judas julgava que, em vista desta
purificação, lhes podiam ser úteis os sufrágios dos vivos; por isto mandou oferecer um sacrifício expiatório em
Jerusalém. - Vê-se assim claramente esboçada a noção de purgatório ou de purificação póstuma, apoiada pelos
sufrágios dos vivos.

b) 1Cor 3,10-15. Escreve São Paulo:

"Segundo a graça que Deus me conferiu, eu, como sábio arquiteto, pus o alicerce; outro depois constrói
sobre ele. Veja, porém, cada qual como constrói. Por certo, ninguém pode pôr outro alicerce diferente daquele que
foi posto, que é Jesus Cristo. Se alguém constrói sobre esse alicerce com ouro, prata, pedras preciosas, madeira,
feno, ou palha, a obra de cada um tomar-se-á, no seu tempo, manifesta; o Dia a tornará conhecida, aquele dia que se
revela com o fogo; e o fogo avaliará a qualidade do trabalho de cada um. Aquele cuja obra construída sobre o
alicerce resistir, esse receberá a sua paga; aquele, pelo contrário, cuja obra for queimada, esse há de sofrer o
prejuízo; ele próprio, porém, salvar-se-á, mas como que através do fogo”.
O texto trata dos pregadores do Evangelho que edificam sobre Cristo, e não sobre fundamento estranho
ou falso. Uns, porém, constróem com zelo (servindo-se de ouro, prata, pedras preciosas...), isto é, trabalham com
empenho e ardor; outros, com negligência e tibieza (com madeira, feno, palha...). O dia do Senhor ou o dia do juízo
revelará o tipo de obra ou o afinco de cada um dos operários. Enquanto os primeiros nada terão a temer, os outros
sofrerão detrimento, isto é, padecerão penas; mas não deixarão de se salvar ("como que através do fogo"); salvar-
se-ão depois de provar a angústia devida ás suas obras imperfeitas. Ora isto insinua o tipo de salvação que ocorre
mediante o purgatório (o fogo, porém, neste contexto não é senão o símbolo do juízo de Deus; não se pode falar de
“fogo do purgatório”).
Alguns autores citam também o texto de Mt 5,25s:
“Assume logo uma atitude conciliadora com o teu adversário, enquanto estás com ele no caminho, para
não acontecer que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz ao oficial de justiça, e, assim, sejas lançado na prisão.
Em verdade te digo: não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo”.
Jesus dá a entender que, após a vida presente ("o caminho", pode haver um cárcere (metáfora), donde o
homem réu sai depois de era expiado por completo. Esse "cárcere" póstumo, donde a criatura sai após ter expiado,
seria imagem do purgatório póstumo.
14
Os dois livros dos Macabeus são ditas deuterocanânicos par razões já explicadas no Módulo 4 da Curso de Diálogo Ecumênico. Têm a mesma autoridade
que as livros "protocanônicos".
Vê-se assim que a Escritura fornece os dados que constituem a estrutura da doutrina do purgatório.

Lição 2: A Tradição

A Palavra escrita de Deus há de ser lida no contexto da Palavra viva ou oral do mesmo Deus, pois Deus
falou e não escreveu. A escrita é posterior á oral e deve-se aos santos homens que o Espírito inspirou.
Ora verificamos que desde os primeiros séculos os cristãos praticaram os sufrágios pelos defuntos, já
usuais nos tempos de Judas Macabeu (século 11 a.C.); principalmente ao celebrarem a Eucaristia, recomendavam
ao Senhor os irmãos falecidos.

2.1. Os antigos escritores cristãos

Com efeito. São João Crisóstomo (+ 407) refere que "os Apóstolos instituíram a oração pelos mortos e
que esta lhes presta grande auxilio e real utilidade"(In Philipp.III, 4). Em outra passagem o Santo corroborava a
afirmação, dizendo:
"Façamos nossos sufrágios pelos defuntos e celebremos a sua memória. Se os filhos de Já foram
purificados pelo sacrifício oferecido por seu pai, como duvidaremos de que nossas oferendas pelos mortos lhes
proporcionem alivio? Sem hesitação, portanto, demos nossos sufrágios àqueles que já se foram e por eles
ofereçamos nossas preces” (In 1Cor4l,5).
É de notar que S. João Crisóstomo reduz autoridade dos Apóstolos o costume de rezar pelos mortos (mais
de uma vez, aliás, colhemos na literatura dos primeiros séculos a noticia de que tal ou tal praxe é devida á
instituição dos Apóstolos). Pergunta-se: terão os Apóstolos deixado também o seu testemunho escrito a tal
respeito? - O único texto que se pode apresentar é o de 2Tm 1,18:
“Que o Senhor conceda a Onesíforo encontrar misericórdia da parte do Senhor naquele dia!”
O contexto dá a entender que o Onesiforo, dedicado amigo do Apóstolo, já falecera.
O Senhor mencionado pela primeira vez (com artigo) é Deus Pai; na segunda menção (sem artigo, em
grego), o Senhor é Cristo Jesus, Juiz do mundo. Conforme alguns comentadores, São Paulo estaria fazendo uma
prece em favor do defunto; estaria, sim, pedindo a Deus Pai, que seu discípulo Onesiforo obtivesse misericórdia no
juízo final. Todavia esta interpretação não é unânime.
No século 11 também é sóbria a documentação; s escritores cristãos se dedicavam mais á Apologética
(frente ao Império Romano perseguidor e aos hereges) do que ás descrição dos costumes das comunidades cristãs.
Logo, porém, no início do século III encontram-se as Atas do Martírio de S. Perpétuo de Cartago
(África), muito significativas. A mártir ai aparece orando por seu irmão Dinócrate, que morrera jovem; pedia fosse
ele transferido do lugar de padecimento em que se achava, para "um lugar de refrigério, de saciedade e de alegria".
Finalmente, viu Dinócrate, de coração puro, revestido de bela túnica, a gozar de refrigério, saciedade e alegria,
como uma criancinha que sai da água e se dispõe a brincar (cf. Passio S. Perpetuae VII s) - Não podemos atribuir
demasiada importância aos símbolos que esta narrativa apresenta. Consideraremos apenas o testemunho que ela dá,
de oração em favor de um defunto.
Na mesma época Tertuliano atesta o uso de sufrágios na Liturgia oficial de Cartago: referindo-se, por
exemplo, a um defunto, diz que, no intervalo ocorrente entre a morte e o sepultamento do mesmo, fora beneficiado
pela "oração do sacerdote"(De anima 51). O mesmo escritor, contrário ás segundas núpcias, argumentava contra
estas, sugerindo o embaraço em que se deveria encontrar um viúvo casado de novo, todas as vezes que tivesse de
fazer as habituais preces e oblações em favor de sua primeira esposa (cf. De exhortatione castitatis 51). O mesmo
embaraço afetaria também viúva que tivesse contraído novas núpcias e quisesse orar por seu primeiro marido no
dia do aniversário da sua morte (cf. De monogamia 10).
Pouco depois, o bispo de Cartago S. Cipriano refere-se á oferta do sacrifício eucarístico em sufrágio dos
defuntos como sendo praxe recebida de herança dos bispos seus antecessores ia. epístola 1,2). Nas cartas desse
santo pastor, não é rara a expressão "Offerre sacrificium pro alíquo, sacrificium pro dormitione eius" (oferecer o
sacrifício por alguém ou por ocasião dos funerais de alguém).

2.2. A Liturgia

Encontramos também nas mais antigas coleções de preces litúrgicas o testemunho do costume de orar
pelos defuntos.
Assim Didasalia ("Doutrina" atribuída aos doze Apóstolos), redigida nos primeiros decênios do século III
para o uso dos cristãos da Síria, ordena:
“Ao fazerdes as vossas comemorações, reuni-vos, lede as Sagradas Escrituras e oferecei preces a Deus;
oferecei também a régia Eucaristia... tanto em vossas assembléias como nos cemitérios. O pão puro que o fogo
tiver purificado e que a invocação tiver santificado, oferecei-o orando pelos mortos”.
Os chamados "Cânones de Hipólito", que referem em substância a Liturgia do século III, contêm uma
rubrica concernente á "anamnese" (memorial, sufrágios) em favor dos defuntos: "Caso se faça a memória em favor
daqueles que faleceram...".
Na primeira metade do século IV, o bispo Serapião de Tmuis, no Egito, fez-se autor de uma coletânea
litúrgica, em que se lê a seguinte fórmula de intercessão pelos falecidos:
"Por todos os defuntos dos quais fazemos comemoração, assim oramos: ‘Santifica essas almas, pois Tu as
conheces todas; santifica todas aquelas que dormem no Senhor; coloca-as em meio ás santas Potestades (anjos),-
dá-lhes lugar e permanência em teu Reino’”.
O mesmo Serapião consignou uma prece a ser dita por ocasião do enterro do defunto:
“Nós Te suplicamos pelo repouso da alma do teu servo (ou da tua serva) N.; dá paz ao seu espírito em
lugar verdejante e aprazível, ressuscita o seu corpo no dia que determinaste”.
As Constituições Apostólicas foram compiladas no fim do século IV por um autor que recolheu
documentos bem mais antigos. - No livro VIII da coleção se lê:
“Oremos pelo repouso de N., a fim de que o Deus bom, recebendo a sua alma, lhe perdoe todas as faltas
voluntárias e, por sua misericórdia, lhe dê o consórcio das almas santas”.

2.3. A arqueologia

A epigrafia, isto é, as inscrições funerárias dos antigos cemitérios cristãos atestam, de modo muito vivo, a
praxe de orar pelos mortos.
Um dos testemunhos mais remotos é o chamado "Epitácio de Abércio", de fins do séculoII. - Abércio era
bispo de Hierápolis, na Frigia (Ásia Menor); mandou insculpir numa lápide os dizeres que haviam de recobrir o seu
túmulo: trata-se de alguns traços biográficos que terminam com a seguinte advertência: "Mandei escrever estas
coisas eu Abércio, na idade de 72 anos. O irmão que as compreender, queira orar por Abércio".
Por volta de 268/g foi gravada no cemitério de Priscila em Roma a seguinte inscrição: "Este túmulo,
Iperéquio preparou-o para a sua benemérita esposa Albínula. Deus alivie o teu espirito!” .
No mesmo cemitério lê-se em outro túmulo a seguinte prece atribuída á defunta aí sepultada:" Rogo-vos,
irmãos, todas as vezes que aqui vierdes a orar e a rogar insistentemente ao Pai e ao Filho, lembrai-vos da cara
Agape, afim de que o Deus todo-poderoso guarde Agape pelos séculos".
Em Alexandria (Egito) uma inscrição assim exclama: “Que o Senhor se recorde da dormição (morte) e do
repouso de Makara, a muito meiga! Aquele que lê, ore por ela!”
Encontrou-se no Egito até mesmo um epitáfio que pede as preces da Santa Mãe de Deus em favor do
defunto: "Pela intercessão... da Mãe de Deus (Theotokou), dá, ó Deus, o repouso á alma do bem-aventurado
Marino, sacerdote e ministro da Igreja".
No século IV são numerosas as inscrições que manifestam a prática dos sufrágios. A titulo de ilustração,
seguem-se apenas duas, de origem copta (egípcia):
"Eu, João, diácono, deixei minha mãe viúva. Vim para a cidade de Cós; ai morri; levaram-me e puseram-
me neste túmulo. Lembrai-vos de mi, bem-amados, a fim de que Deus me perdoe!”.
“Jejuai todos por mim, a fim de que Deus seja misericordioso para minha alma!”.
Os testemunhos dos escritores cristãos, da Liturgia e da Arqueologia até aqui citados demonstram
claramente quanto a prática de orar pelos mortos está arraigada na piedade dos cristãos. Perguntamo-nos agora:
qual o significado desse costume?

Lição 3: O sentido da oração pelos mortos

A oração em favor de um defunto supõe que a alma dessa pessoa precise de sufrágio ou ainda não tenha
atingido a meta definitiva.

Como entender isto?


Tal cristão morreu na amizade ou na graça do Senhor, mas ainda contaminado por aderências ao pecado,
isto é, por más inclinações, que as faltas antigas, mesmo depois de perdoadas, deixaram em sua alma. Tal pessoa,
por um motivo ou por outro, não empregou, durante a vida terrestre, a energia necessária par extirpar as suas
tendência desregradas.
Por estar na amizade de Deus, a pessoa que assim morre, é chamada á visão beatifica. Contudo não pode
sustentar a presença de Deus face-á-face quem traga em si a mínima sombra de impureza. Por isto a Justiça Divina
lhe concede um estágio e purificação preliminar ao céu, que é o purgatório.
Cientes disto, os cristãos na terra oferecem a Deus preces e atos meritórios em favor das almas do
purgatório. O Senhor, aceitando esses sufrágios, propicia ás almas a graça necessária par que se deixem penetrar
mais profundamente pelo amor de Deus, que nelas deve consumir as impurezas deixadas pelo pecado. Tal é o
sentido das orações em favor dos defuntos, tema que será mais explicitamente abordado no Módulo seguinte.
Os sufrágios assim feitos não derrogam á obra satisfatória de Cristo. Com efeito.
l) a satisfação prestada por Cristo ao Pai não dispensa o cristão de satisfazer por seus pecados pessoais.
"Deus que te criou sem ti, não te salva sem ti", diz S. Agostinho. Todavia a satisfação que o cristão presta, não é
independente da de Cristo; é apenas a frutificação dos méritos de Cristo no cristão. É Cristo quem nos dá a graça de
satisfazer;
2) os sufrágios (orações e obras meritórias) que apresentamos a Deus em favor dos falecidos, também são
frutos dos méritos do Salvador; é a imagem de Cristo vivendo no cristão que dá valor de salvação ás preces e ás
boas obras deste e lhe possibilita acesso ao Pai.
PERGUNTAS
1) Qual a diferença entre livros “protocanônicos” e “deuterocanônicos”?
2) Que se pode deduzir de 2Mc 12,3g.46 com relação aos sufrágios pelos mortos?
3) Que se encontra no Novo Testamento sobre o mesmo assunto?
4) Cite e comente três dos testemunhos da Tradição que lhe pareçam mais significativos.
5) Qual o sentido dos sufrágios pelos defuntos? Entram em choque com a expiação
de Cristo?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATALOGIA)

MÓDULO 12: O PURGATÓRIO (II) MAGISTÉRIO E TEOLOGIA

Estudamos os testemunhos da Escritura e da Tradição referentes á existência do purgatório; ver Módulo


11. Vejamos agora os pronunciamentos do magistério da Igreja; a seguir, passaremos ao aprofundamento teológico
da doutrina.

Lição 1: O Magistério da Igreja

O Magistério da Igreja colheu e exprimiu os testemunhos da Escritura e da Tradição em documentos, que


equivalem a definições doutrinárias.
Eis, por exemplo, um trecho da Constituição Benedictus Deus do Papa Bento XII promulgada em 1338:
"As almas... dos fiéis falecidos..., dado que nada tenha havido a purificar quando morreram ou nada haja a
purificar quando futuramente morrerem ou caso tenha havido ou haja algo a purificar uma vez purificadas após a
morte... essas almas, logo depois da morte e da purificação de que precisam..., foram, estão e estarão no céu"
(Enquirídio, DS no 1000 [530]).
Como se vê, este documento ensina a necessidade eventual de purificação que, sendo transitória, prepara
a entrada na visão celeste.
O Concilio de Lião II (1264) declarou:
"Se (os cristãos que tenham pecado) faleceram realmente possuídos de contrição, antes, porém, de ter
feito dignos frutos de penitência por suas obras más e por suas omissões, suas almas, depois da morte, são
purificadas pelas penas purgatórias ou catartéricas... Para aliviar estas penas, são de proveito os sufrágios dos fiéis
vivos, a saber o sacrifício da Missa, as orações, esmolas e outras obras de piedade que, conforme as instituições da
Igreja, são praticadas habitualmente pelos cristãos em favor de outros fiéis" (Enquiridio, DS n° 1304 [693]).
O Concilio de Trento (1545-1563) reafirmou a existência do purgatório nos termos do anterior.
Prescreveu aos Bispos "fizessem que os fiéis mantenham e creiam a sã doutrina sobre o purgatório" e "sejam
excluídas das pregações populares á gente simples as questões difíceis e sutis e as que não edificam nem aumentam
a piedade. Igualmente não seja permitido divulgar nem discorrer sobre assuntos duvidosos ou que trazem a
aparência de falso. Sejam ainda proibidas como escandalosas e prejudiciais aquelas coisas que têm em vista
provocar a curiosidade ou que têm o sabor de superstição ou torpe lucro" (Enquirídio, DS n o 1820 [983]).
Vê-se que o Concilio procurou evitar que se confunda a doutrina da fé com expressões da fantasia
popular, que era exuberante no fim da Idade Média e provocou a réplica do protestantismo.
Fazendo eco á constante doutrina da Igreja, o Concilio do Vaticano II (1962-65) na Constituição Lumen
Gentium professou mais de uma vez a existência do purgatório. Seja citado o texto seguinte:
“Até que o Senhor venha na sua Majestade..., alguns dos seus discípulos peregrinam sobre a terra; outros,
já tendo passado por esta vida, estão-se purificando, e outros vivem já glorificados, contemplando claramente o
próprio Deus, uno e trino, tal como é” (no 49; ver nos 50 e 51).
Embora se achem em situações diversas (em via de consumação ou já consumados), os fiéis constituem
uma só grande família, ou seja, "a Comunidade de todo o Corpo Místico de Jesus Cristo" (ib. n o 50), pois "todos os
que são de Cristo, tendo o seu Espirito, formam uma só Igreja e nela estão unidos entre si" (n° 49). A morte não
implica interrupção da comunhão eclesial; não extingue a comunhão vital existente entre os fiéis peregrinos na
terra, os irmãos que já se encontram na glória celeste e aqueles que ainda estão a purificar-se após a morte (cf. n°
51). É na base desta verdade que se admite a possibilidade de que os vivos rezem pelos mortos (a titulo de sufrágio)
e os justos no céu rezem pelos irmãos peregrinos (Deus faz que eles, na glória, tenham conhecimento das nossas
preces e necessidades).
Não resta dúvida, pois, de que a doutrina do purgatório constitui um dogma de fé, que a Igreja ensina por
seu magistério ordinário e extraordinário.
Importa agora verificar com exatidão qual o conteúdo desse ensinamento da fé.

Lição 2: Que é propriamente o purgatório?

Exponhamos passo a passo a doutrina:

1) O amor a Deus, num cristão, pode coexistir com tendências desregradas e pecados leves (ao menos,
semideliberados). Há, sim, em todo indivíduo humano um lastro inato de desordem: egoísmo, vaidade, amor
próprio, covardia, negligência, moleza, infidelidade... acham-se tão intimamente arraigados no interior do homem
que chegam por vezes a acompanhar as suas mais sérias tentativas de se elevar a Deus e dar a Deus o lugar
primacial que lhe toca na criatura. A psicologia das profundidades ensina que essas tendências nem sempre são
conscientes, mas muitas vezes atuam no nosso subconsciente ou no inconsciente.
2) Mais: todo pecado (principalmente quando grave, mas também a falta leve) deixa na alma resquícios
de si ou uma inclinação má (metaforicamente:... deixa uma cicatriz, deixa um pouco de ferrugem na alma,
dificultando-lhe a prática do bem). Com efeito; o pecado implica sempre uma desordem. Quando, após o pecado
(grave ou leve), a pessoa se arrepende e pede perdão a Deus, o Pai do céu perdoa (o Senhor nunca rejeita a
contrição sincera). Mas o amor do pecador arrependido, por mais genuíno e leal que seja, pode não ser suficiente
para extinguir todo resquício de amor desregrado, egoísta, existente na alma. Em conseqüência, o pecador
arrependido recebe o perdão do seu pecado, mas ainda deve libertar-se da desordem deixada pelo pecado em sua
alma; quantas vezes se verifica que, mesmo após uma confissão sincera e contrita, o cristão recai nas faltas de que
se arrependeu! Isto se deve ao fato de que ficou no seu íntimo a raiz ou o principio do pecado. Figuradamente,
pode-se dizer que o cristão arranca a folha e o caule da tiririca, mas dificilmente arranca também o caroço ou a raiz
da tiririca; esta se manifesta dentro em pouco, através de novos pecados. Para extirpar o principio do pecado
remanescente, o cristão deve excitar mais intensamente o amor a Deus. Ora este estimulo do amor a Deus se realiza
mediante a satisfação ou atos de penitência que despertem e fortaleçam o amor a Deus no intimo do cristão.
Notemos bem: a satisfação assim entendida não deve ser comparada a uma multa mais ou menos
arbitrária imposta por Deus ou a um castigo vingativo; é, antes, um auxilio medicinal; é também uma exigência do
amor do cristão a Deus, amor que, estando debilitado, pode ser corroborado e purificado.
Exprimindo estas verdades em termos precisos, o Concilio de Trento em 1547, frente ás objeções
protestantes, fez importantes declarações. Rejeitou, por exemplo, a sentença segundo a qual "a todo pecador
penitente que tenha recebido a graça da justificação, é de tal modo perdoada a ofensa e desfeita e abolida a
obrigação de pena eterna que não lhe fica pena temporal a padecer ou neste mundo ou no outro, no purgatório,
antes que lhe possam ser abertas as portas para o reino dos céus" (Enquirídio, DS n° 1580 [840]).
O Concilio de Trento declarou ainda:
"No tocante á satisfação, é de todo falso e alheio á Palavra de Deus afirmar que a culpa nunca é perdoada.
Com efeito, nas Escrituras Sagradas encontram-se claros e famosos exemplos que... refutam este erra com plena
evidência" (DS 1689 [904J).
A culpa é perdoada, sim. Mas a Escritura mostra que, mesmo depois de perdoada, o Senhor Deus exige
satisfação ou reparação da ordem violada pelo pecado. Esta exigência se compreende muito bem se levamos em
conta o seguinte:
Quem rouba um relógio, pode pedir e receber o perdão do respectivo proprietário, mas este exigirá que a
ordem seja restaurada ou que o relógio volte ao seu dono.
Quem difama caluniosamente o próximo, pode pedir e receber o perdão deste, mas a pessoa difamada
exigirá que se restaure a fama a que tem direito.
Também os pecados meramente internos (de pensamento e desejo) alimentam ou suscitam a desordem
interna do pecador, de modo que este tem que restaurar ou introduzir a ordem em seu intimo mediante atos de
penitência ou renúncia. Tenhamos em vista os seguintes casos:
Davi, culpado de homicídio e adultério, foi agraciado ao reconhecer o delito; não obstante, teve que sofrer
a pena de perder o filho do adultério (cf. 2Sm 12,13s);
Moisés e Aarão cederam a pouca fé em dados momentos da sua vida; por isto foram pelo Senhor privados
de entrar na Terra Prometida, embora não haja dúvida de que a culpa lhes tenha sido perdoada (cf. Nm 20,12s; 27,
12-14; Dt 34,4s).
Em outros casos, o perdão é estritamente associado a obras de expiação:
Assim o profeta Joel, com a conversão do coração, exige jejum e pranto (cf. Jl 2, 12s).
O velho Tobit ensina a seu filho que a esmola o libertará de todo pecado e da morte eterna (cf. Tb 4,11s).
Algo de semelhante é anunciado por Daniel ao rei Nabucodonosor (cf. Dn 2,24).
3) Levemos em conta também que, mesmo após haver recebido o perdão de seus pecados, o homem fica
sendo responsável pela desordem que o pecado geralmente acarreta para o próximo e para o mundo. As palavras e
as ações de um homem têm freqüentemente dimensões muito mais amplas do que as do momento presente; seus
efeitos escapam ás previsões e ao controle de quem as produz. Não é raro que no decorrer de sua peregrinação
terrestre o homem deixe marcas de sua atividade que continuarão atuantes mesmo depois da morte do respectivo
sujeito.
4) A justa satisfação pode ser prestada pela criatura ou na vida presente (processo este que é normal e
deveria ser considerado por todos os cristãos como programa de vida aqui na terra); o penitente então se empenha
corajosamente por livrar-se de suas tendências desregradas e tornar puro o seu amor a Deus e ao próximo. Ou, se
não o consegue nesta peregrinação (por motivo de covardia, tibieza ou outro qualquer), compreende-se logicamente
que deverá chegar a essa pureza na vida póstuma, antes de entrar na visão face-á-face de Deus. Então a criatura se
arrependerá por ter condescendido com a moleza e a indefinição; a alma terá consciência de que devia ter sida mais
coerente e menos leviana; tomará consciência de que foi cercada pelo amor de Deus no decorrer de toda a sua vida
e o ignorou ou esbanjou (amarga consciência). Esta verificação não poderá deixar de lhe ser dolorosa, de mais a
mais que a alma perceberá que, por causa de sua indefinição na terra, lhe será adiada ou postergada a sua entrada
no gozo definitivo de Deus; ser-lhe-á duro averiguar que faltou ao encontro marcado com Deus justamente após a
morte, quando os fiéis mais fome e sede têm de Deus.
Aprofundando ainda estas idéias, podemos dizer: é devagar ou lentamente que o homem se torna,
segundo todas as dimensões do seu ser, aquilo que ele já é no núcleo de sua personalidade. Em outros termos: uma
decisão generosamente abraçada pela vontade do homem não costuma penetrar e mover instantaneamente todas as
camadas da personalidade; ela muitas vezes encontra, no fundo da consciência ou também no inconsciente do
indivíduo, uma resistência mais ou menos tenaz, resistência que provem de atos e hábitos do passado do sujeito. É
essa resistência que deve ser vencida, de modo a exigir da alma o empenha cada vez mais enérgico do seu amor,
afim de que este possa penetrar toda a respectiva personalidade.

5) Para ilustrar o que seja a purificação, pode-se citar a seguinte lenda hindu:
Certo mendigo, sentado á margem da estrada, viu certa vez a carruagem do rei aproximar-se.
(mediatamente pôs-se a pensar que chegara o seu grande dia, pois o monarca haveria de tirá-lo da sua miséria.
Aconteceu, porém, que, descendo da carruagem, o rei se lhe chegou e pediu-lhe um pouco de trigo! O mendigo
sentiu terrível decepção, mas não se pôde furtar ao soberano; catou, pois, entre os grãos da sua bolsa o menor de
todos, e o entregou ao rei... Todavia, quando o pobrezinho no fim do dia, abriu a sacola para fazer o balanço da
jornada, verificou que, entre os seus grãos de trigo, havia um de ouro; era o menor de todos! Compreendeu então
que fora mesquinho e que, se ele tivesse dado tudo ao rei, estaria rico de ouro e livre de apuros. Imediatamente
então pôs-se a repudiar o egoísmo e a incompreensão; purificou-se dos mesmos, prometendo a si nunca mais ceder
aos maus sentimentos...
Esta imagem elucida, ao menos á distância, o que se pode entender por purificação: é o repúdio decidido
e radical de toda incoerência alimentada, mais ou menos conscientemente no decorrer da vida terrestre.

Lição 3: Noções Complementares

1. Paradoxalmente o purgatório é também um estágio de vida cumulado de alegria... Com efeito, esta
jorra da consciência que a alma tem, de que ela pertence ao amor de Deus de modo irreversível. Ela sabe que é o
amor que a purifica e que nela cresce para penetrá-la por completo.
Deve-se mesmo dizer que a alma no purgatório não deseja evitar este estado, pois reconhece que é um
dom da misericórdia divina sem o qual ela não poderia atingir a sua consumação.
S. Catarina de Gênova (+ 1510) deixou no seu "Tratado sobre o Purgatório" as seguintes reflexões, que
merecem ser levadas em conta:
"Paz nenhuma é comparável á das almas no purgatório, excetuada a dos Santos no céu; e essa paz
aumenta incessantemente pela influência progressiva de Deus sobre essas almas e á medida que os empecilhos
desaparecem. A ferrugem do pecado é o obstáculo...; quando esta ferrugem se vai, a alma reflete cada vez mais
perfeitamente o verdadeiro Sol que é Deus. Sua felicidade aumenta na proporção em que a ferrugem diminui...
As almas do purgatório não podem desejar outra coisa senão permanecer onde estão, como Deus em
justiça dispôs... Não podem dizer consigo mesmas: ‘Esta alma será libertada antes de mim’ ou ‘Eu antes dela’...
Acham-se tão satisfeitas com as disposições de Deus a seu respeito que amam tudo o que agrada a Deus" (Tratado
do Purgatório, cap. l e 2).
2. Vemos, portanto, que não devemos comparar o purgatório ao inferno. Neste as almas se acham
incompatibilizadas.com o amor e fixadas para sempre na aversão a Deus e ao próximo. Enquanto o purgatório é
rico de esperança e caridade serenas, o inferno é a retorsão de todos os valores humanos e cristãos.
No inferno, além da ausência de Deus, admite-se algo que a S. Escritura chama “fogo”, aguilhão físico e
real cuja natureza os teólogos não sabem explicar com exatidão. Fala-se também de "fogo do purgatório", todavia
isto não é senão uma metáfora para designar o sofrimento decorrente da d ilação da visão face-á-face.
O conceito de "fogo do purgatório" provocou no século XV (época do Concilio de Florença) decidida
repulsa por parte dos cristãos orientais separados de Roma; a estes o fogo do purgatório lembrava um inferno
provisório, ou seja, um aberração doutrinária.
Os cristãos do Oriente até o século XVIII aceitavam sem dificuldades a idéia de uma purificação póstuma
no sentido aqui exposto (sem menção de fogo). A partir do século XVIII, porém, sob a influência de autores
protestantes, têm hesitado em sua posição doutrinária. Não obstante, ainda hoje muitos aceitam uma purificação
póstuma, evitando descer a pormenores e reconhecendo a eficácia da oração e dos sufrágios pelos defuntos.

PERGUNTAS
1) Que disse o Concilio de Trento a respeito do purgatório?
2) Se Cristo já prestou satisfação pelos nossos pecados, por que se diz que devemos presta-la?
3) Em que consiste o purgatório póstumo?
4) É possível evitar o purgatório póstumo?
5) O purgatório tem semelhança com o inferno?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 13: SUFRÁGIOS PELOS DEFUNTOS

Após tratar do purgatório, cabe-nos abordar um tema correlativo, que é o dos sufrágios 15 pelos defuntos.
Vejamos qual o seu sentido e como se explicam os honorários ou as espórtulas que por vezes estão conexos com
tais sufrágios.

Lição 1: Rezar pelos monos

1. Quando alguém morre, a Igreja considera a possibilidade de que ainda tenha resquícios de pecado, dos
quais se deve purificar (nos termos explicados no Módulo 12). Por conseguinte, ela institui sufrágios ou orações em
favor dos falecidos; com outras palavras: a Igreja pede a Deus que os fiéis defuntos sejam prontamente isentos de
qualquer mancha de pecado leve que lhes impeça a visão de Deus face-à-face 16.
O fundamento teológico dos sufrágios pelos defuntos é o seguinte: As almas do purgatório não podem
acelerar o processo de sua purificação, pois são incapazes de merecer algo (o período de méritos é somente a vida
presente). Contudo os cristãos na terra podem ser-lhes úteis em virtude da Comunhão dos Santos (ou Comunhão
dos bens sagrados), que une todos os membros da Igreja entre si; já que todos os fiéis - militantes, padecentes e
triunfantes - formam o Corpo de Cristo, os méritos de uns beneficiam os outros. Assim podem os fiéis na terra
satisfazer pela almas no purgatório (ao passo que estas podem apenas "satis-padecer"). Os sufrágios aplicados às
almas do purgatório fazem com que estas sejam mais profundamente penetradas pelo amor de Deus, que nelas há
de consumir as impurezas do pecado.
2. Notemos a propósito que a comunicação de bens espirituais entre os fiéis não conhece classes nem
privilégios; todos os bens espirituais da Igreja circulam entre todos os membros desta. Por isto não é adequada a
expressão "as almas mais abandonadas no purgatório"; não há alma abandonada.
Mais explicitamente: não se deve imaginar o purgatório como se fosse um cárcere onde se encontrem
prisioneiros de origens diversas; os que têm família numerosa e rica, aí recebem mais visitas e presentes, ou seja,
passam melhor do que aqueles que pertencem a famílias pobres ou negligentes; poderão sair da prisão mais cedo do
que os seus companheiros indigentes. Evitemos transpor tal imagem, com suas categorias e classes, para o além-
túmulo. O purgatório, de cedo modo, transcende os conceitos que adquirimos neste mundo; pertence aos sábios e
15
“Sufrágio”, na linguagem civil, é um voto que aprova determinada causa. Na linguagem teológica, sufrágios são as orações que a Igreja formula em favor
dos falecidos.
16
Se alguém morre em pecado mortal ou voluntariamente avesso a Deus, tem a sua sorte definida: o seu final é o inferno. Ver Módulos 15.16 deste Curso.
misteriosos desígnios salvíficos de Deus, a respeito dos quais a Revelação Divina é sóbria. Por isto não devemos
crer que uma alma do purgatório pela qual ninguém reza - ou porque não tem familiares na terra ou porque só tem
familiares incrédulos ou pobres -, é " uma alma abandonada"; na verdade, ela está envolvida pela infinita
misericórdia de Deus, à qual a Igreja sempre eleva suas preces em favor de todos os que carecem (doentes,
moribundos, viajantes, crianças que morrem sem o Batismo, almas do purgatório...).
Assim vemos como é infundada a alegação seguinte: "As almas de famílias pobres que não têm dinheiro
para mandar celebrar Missas, sofrem mais, e mais tempo, no purgatório, do que as almas dos ricos! O dinheiro é
decisivo até no purgatório!" Não creiamos que essas regras de lógica terrestre e comercial sejam observadas
também por Deus. O Senhor seria mesquinho se atendesse menos solicitamente aos interesses daqueles que menos
dinheiro têm; herança monetária não significa primazia para alguém diante de Deus. Jamais poderemos esquecer
que a graça e a misericórdia de Deus têm o primado sobre as obras dos homens. As almas dos pobres, por
conseguinte, são amadas por Deus como todas as demais.
Acontece, porém, que entre nós e as almas do purgatório há o dever de sufragar... e de sufragar segundo
determinada ordem : impõem-se à nossa caridade primeiramente aqueles que nos estão mais próximos (parentes,
amigos, colaboradores, benfeitores...). A uma família cristã toca o dever de sufragar as almas, a começar pelos
membros defuntos dessa família.

Lição 2: Como sufragar?

Evidentemente a S. Missa, sendo o sacrifício da Cruz perpetuado para beneficiar os homens através dos
séculos, é o meio mais eficaz para ajudarmos as almas do purgatório. Esta doutrina sempre foi professada e posta
em prática pela Igreja. É oportuno observar que não se pode oferecer a Comunhão Eucarística como tal nem pelos
vivos nem pelos defuntos; a Comunhão, enquanto sacramento, age apenas sobre o cristão a quem é dada; ninguém
pode receber os sacramentos pelos outros. Todavia, na medida em que é obra boa e meritória, a S. Comunhão pode
ser oferecida por vivos e defuntos (o mérito que adquiro ao comungar fervorosamente, posso oferecê-lo em favor
de meus irmãos)...
Também têm valor de sufrágio as orações particulares e comunitárias dos fiéis, a paciência nas provações
de cada dia, os sacrifícios generosamente empreendidos por amor a Deus e ao próximo. Às obras boas,
principalmente às que são praticadas com fervor, correspondem méritos preciosos, que podem ser aplicados em
prol dos defuntos.
Notemos ainda que não nos é possível avaliar a duração do purgatório, pois este não está submetido ao
sistema de anos e dias que na terra observamos, considerando os movimentos dos astros. No purgatório a duração é
representada pelos atos espirituais (atos de conhecimento e amor) que as almas praticam. Cada um destes atos é
uma unidade de duração ou um instante espiritual, e cada qual desses instantes pode corresponder a vinte, trinta ou
sessenta horas do nosso tempo solar (como uma pessoa pode permanecer horas contínuas absorvida por um único
pensamento); os atos sucessivos dos espíritos constituem a série dos instantes espirituais chamada “evo” ou
“eviternidade”. Ora, já que não se vê qual a proporção vigente entre o tempo solar e o evo dos espíritos, torna-se-
nos impossível avaliar a duração do purgatório para alguma alma. Cada qual traz em si afetos desregrados, que
estão arraigados com maior ou menor profundidade, e assim opõem resistência ao amor de Deus, que quer penetrar
até o mais íntimo da alma.
Os sufrágios podem ter efeitos retroativo; aplicam-se aos fiéis na medida em que deles necessitem. Se
alguém reza por uma alma que já se acha na glória do céu, as suas preces beneficiarão quem ainda precise delas.
Aos 17/05/1.979 a Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, publicou uma Instrução sobre Questões
Escatológicas, na qual é reafirmada a validade dos sufrágios pelos mortos contra qualquer tentativa de os omitir:
"A Igreja exclui todas as formas de pensamento e de expressão que, se adotadas, tornariam absurdas ou
ininteligíveis a sua oração, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, realidades que, na sua substância,
constituem lugares teológicos".
Com outras palavra: a Liturgia é um "lugar teológico", isto é, um documentário que atesta a fé da Igreja.
Ora, desde remotas épocas, a Liturgia supõe a purificação póstuma e pratica os sufrágios pelos mortos.

Lição 3: Espórtulas ou honorários

1. Nos primeiros decênios do Cristianismo, por motivos diversos, era costume só se celebrar uma S.
Missa em cada igreja por domingo ou por dia. Então todos os fiéis manifestavam sua participação na Missa
oferecendo o pão e o vinho do rito sagrado ou outras dádivas naturais (trigo, vinho, óleo, frutas...) destinadas ao
sustento do clero e dos irmãos necessitados. Os cristãos se empenhavam generosamente por fazer sua oblação na S.
Missa.
Aos poucos o número de presbíteros e de fiéis foi aumentando, de sorte que uma só Missa não bastava em
cada igreja para satisfazer às necessidades e à devoção do povo de Deus. Em conseqüência tornou-se impossível
que todos os fiéis oferecessem sua oblação em cada S. Missa. Mais ainda: o número de oblações eucarísticas foi
aumentando para atender a intenções próprias de um cristão ou de uma comunidade em particular: sepultamento ou
aniversário de um defunto, ação de graças por benefícios recebidos, súplicas especiais... As Missas assim
celebradas eram chamadas votivas. Por ocasião destas, os fiéis interessados é que ofereciam a matéria do sacrifício
eucarístico, ao mesmo tempo que indicavam a intenção pela qual seria oferecida a S. Missa. Ver Módulo 14 (frutos
da Missa) do Curso de Diálogo Ecumênico.
2. Quanto à oferta de dinheiro na igreja, pode-se notar o seguinte:
Nas igrejas antigas havia geralmente um tronco ou um cofre destinado a receber as esmolas dos fiéis que
beneficiam os ministros do altar e os pobres da comunidade. Ainda no século V, S. Agostinho, fazendo eco de
testemunhos de bispos e escritores anteriores, atesta o costume de se darem esmolas em dinheiro no cofre de cada
igreja. Aos poucos as oblações dos dons naturais feitas por ocasião da S. Missa foram sendo, em parte, substituídas
pela oferta de dinheiro. Os motivos para tanto foram vários: era mais fácil manipular o dinheiro do que pão, vinho,
óleo, leite, frutas (simplificava-se e facilitava-se a procissão de ofertório); o número de Comunhões foi diminuindo
a partir do século IV, de modo que se tornavam desnecessárias grandes ofertas de pão e vinho (aos pobres da
paróquia se poderia atender mediante dinheiro, e não necessariamente dons naturais). S. Agostinho refere que em
certos lugares se levavam quantias de dinheiro ao altar por ocasião do ofertório das Missas por defuntos.
A princípio, essa oblações monetárias destinavam-se a toda a comunidade paroquial, e não ao sacerdote
pessoalmente. A partir do século VIII, há testemunhos explícitos de que a esmola era dada ao sacerdote celebrante,
para que este aplicasse a S. Missa pelas intenções do doador. Assim, por exemplo, a artigo 42 da Regra dos
Cônegos de S. Crodegango, bispo de Metz (743-766), autorizava o sacerdote a receber uma esmola por sua Missa.
Há indícios, porém, de que esta praxe é mais antiga. Assim, por exemplo.
S. Seda Venerável (+ 735) refere que, em 679 aproximadamente, os fiéis fora da Missa davam aos
sacerdotes uma esmola, a fim de que celebrassem a Eucaristia para pedir determinada graça (espiritual ou
temporal).
S. João, o Esmoler, bispo de Alexandria (610-616), a pedido de um pai de família, celebrou uma S.
Missa para obter a volta de seu filho afastado de casa (graça esta que realmente foi obtida).
Ultragota, esposa do rei Quildeberto (511-518), deu esmola junto ao túmulo de S. Martinho de Tours,
pedindo a celebração de Missas.
S. Bento (+ 547) por suas próprias mãos deu a um sacerdote uma esmola destinada à celebração de uma
Missa por duas monjas.
Segundo S. Epifânio (+ 403), um judeu, convertido em 347, entregou dinheiro ao bispo que o batizava,
dizendo-lhe: "Oferece por mim".
No século XI o costume de dar ao sacerdote celebrante uma esmola era tão comum que até mesmo as
crianças o conheciam. As crónicas narram, por exemplo, o seguinte episódio: S. Pedro Damião, menino, tendo
encontrado uma moeda, apressou-se por levá-la a um sacerdote afim de que este celebrasse uma Missa pelo
repouso da alma de seu pai falecido.
Sabe-se também que no século XI eram tão freqüentes os donativos em dinheiro para obter a celebração
da S. Missa em favor de intenções particulares (sufrágio de defuntos ou por outras intenções) que dois Concílios
regionais em Roma, respectivamente nos anos de 826 e 863, recomendaram aos sacerdotes que não recebessem na
igreja ou em recinto sagrado os numerosos fiéis que se interessavam por oferecer seu óbolo (espórtula) e pedir a
celebração da S. Missa por determinada intenção. As autoridades da Igreja também pediam aos sacerdotes que não
aceitassem mais de um espórtula por Missa nem assumissem compromissos de celebração de Missa que não
pudessem cumprir.
3. No decorrer dos séculos, principalmente nos séculos XV, XVI e XVII, levantaram-se vozes que
acusavam de simonia ou mercantilismo a prática das espórtulas. Tal suspeita é infundada; a espórtula não é preço
da Missa: ela não significa "troca de bens materiais por realidades espirituais". Positivamente ela exprime a fé e a
generosidade de quem oferece; ele significa mais íntima participação do doador na celebração da S. Missa. Em
conseqüência dessa mais íntima participação, compreende-se que o doador tenha parte também mais íntima e ampla
na aplicação dos frutos da S. Missa; a intenção ou as intenções por ele indicadas são especialmente beneficiadas
pela celebração da S. Eucaristia (o Senhor atende aos seus fiéis na proporção das disposições com que estes O
invocam). É, pois, como símbolo da fé e generosidade que se deve considerar a espórtula da S. Missa. É para
desejar que quem oferece a espórtula, o faça em profundo espírito religioso, lembrando-se de que assim participa
de maneira especial da oblação e, por conseguinte, também dos frutos da S. Missa (seria muito oportuno que os
doadores de espórtula não se limitassem a dá-la, mas estivessem presentes à celebração mesma da S. Missa). Deve-
se lamentar que a consciência disto nem sempre se encontre viva nas pessoas que pedem a celebração da Missa;
muitos são aqueles que apenas dão sua espórtula, sem comparecer posteriormente ao ato litúrgico (quando bem o
poderiam fazer).
O Direito da Igreja, no cânon 947, reza: "É preciso afastar da prática das espórtulas da Missa tudo o que
tenha sabor de comércio ou mercantilismo". A S. Igreja, mediante minuciosas prescrições, tem-se mostrado assaz
severa no cumprimento deste cânon. 4. A prática das espórtulas se justifica por ser um dos meios de manutenção
das paróquias e do clero. Já que a Igreja não pode dispensar subsídios financeiros para realizar sua obra
evangelizadora, as espórtulas atendem (assaz modestamente, aliás) a tal necessidade. Hoje em dia, porém,
conscientes de que tal praxe nem sempre é entendida por cristãos ou não cristãos, muitos sacerdotes e bispos vão
dispensando espórtulas e taxas do culto, e procuram providenciar por outras vias (o dízimo, por exemplo) aos
interesses pecuniários da S. Igreja.
Vê-se, pois, que o costume de mandar celebrar a S. Missa pelos defuntos (oferecendo-se mesmo uma
espórtula por ocasião do ato litúrgico) nada tem de interesseiro ou indigno. Não se deve a visão deturpada da
mensagem evangélica, mas, ao contrário, deriva-se das linhas centrais da Revelação bíblica e, em particular, do
Novo Testamento.

PERGUNTAS
1) Que é que se chama "sufrágios pelos defuntos"? Qual a sua finalidade?
2) Existem almas abandonadas no purgatório?
3) São prejudicadas as almas do purgatório cujos familiares são pobres ou incrédulos?
4) Qual o melhor modo de sufragar as almas?
5) Justificam-se as espórtulas de Missa? Explique o sentido que elas têm.
6) Como se avalia a duração do purgatório?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO14: ASINDULGÊNCIAS
O tema das indulgências, que freqüentemente suscita mal-entendidos, será especialmente considerado
nestas próximas lições.

Lição 1: Indulgências - que são?

Para ter noção do que são as indulgências na Igreja, devemos aprofundar sucessivamente quatro
proposições doutrinárias, a saber:
1) Todo pecado acarreta a necessidade de expiação ou reparação.
2) Em vista da reparação, existe na Igreja o tesouro infinito dos méritos de Cristo, que frutificou nos
méritos da Bem-aventurada Virgem Maria e dos demais Santos.
3) Cristo confiou à sua Igreja o poder das chaves para administrar .o tesouro da Redenção.
4) Fazendo uso deste poder, a Igreja, em determinadas circunstâncias, houve por bem aplicar os méritos
de Cristo aos penitentes dispostos a expiar os pecados.
Examinemos mais profundamente estas proposições.

l.l. Necessidade de expiação

Como já foi dito no Módulo 12, o pecado não é somente a transgressão de uma lei, mas é também a
violação da ordem de coisas estabelecida pelo Criador. Por isto, para que haja plena remissão do pecado, é
necessário não somente que o pecador obtenha de Deus o perdão, mas também que repare a ordem violada (é o que
se chama "expiação"). Assim quem rouba um relógio, não precisa apenas de pedir perdão a quem foi lesado, mas
deve também devolver o relógio ao seu proprietário. Quem caluniou alguém, não deve somente pedir-lhe perdão,
mas haverá de restaurar o bom nome e a fama de quem foi injustiçado. Mesmo os pecados meramente internos de
pensamentos e desejos exigem, além do perdão de Deus, também a restauração da ordem interna do pecador, pois
os pensamentos e desejos culposos excitam ou alimentam paixões e afetos desregrados no íntimo do respectivo
sujeito.
A necessidade dessa reparação é muito lógica. Dizia sabiamente S. Agostinho: "Aquele que te criou sem
ti, não te salva sem ti” 17. - A própria Escritura dá a ver que o Senhor Deus, mesmo após haver perdoado a culpa do
pecador exigiu a reparação da ordem violada. Ver os textos citados no Módulo 12, deste Curso.

1.2. O tesouro dos méritos de Crista confiado à Igreja


Em vista da expiação dos pecados, existe na Igreja um tesouro infinito de méritos que Cristo adquiriu
mediante a sua Paixão e Morte; esse tesouro frutificou nos méritos da Bem-aventurada Virgem Maria e das Santos.
É chamado "o tesouro da igreja".
17
Verdade é que nenhuma criatura faz algo de bom sem a graça de Cristo (cf. Jo 15,5), mas é preciso que a criatura corresponda à graça que lhe oferecida.
Cristo confiou à sua Igreja das chaves para administrar o tesouro da Redenção, como se depreende de
textos, como o de Mt 16,16-19; 18,18; Jo 20,22s, estudados no Módulo 17 do Curso de Diálogo Ecumênico.

1.3. A aplicação .dos méritos de Cristo ou a instituição das indulgências


Consciente do poder das chaves que Cristo lhe concedeu, a Igreja, no decorrer dos tempos, resolveu
aplicá-lo em favor dos cristãos penitentes que ainda tivessem de prestar expiação por seus pecados.
Com efeito. Sabemos que nos primeiros séculos os pecadores que desejassem a absolvição de suas faltas,
deviam primeiramente prestar satisfação por elas, tentando extirpar do seu íntimo as raízes do pecado. Por
conseguinte, a Igreja lhes impunha uma penitência que, para ser medicinal, costumava ser rigorosa (assim, por
exemplo, uma Quaresma de jejum, em que o penitente se vestia de sacos e cilício); essa penitência tinha por
objetivo excitar e fortalecer, no penitente, o amor a Deus que extinguiria o amor ou as tendências desordenadas
existentes no sujeito. Em conseqüência, julgava-se que, quando o pecador era absolvido (na Quinta-feira Santa,
geralmente), ficava isento não apenas da culpa, mas também das raízes do pecado; teria o seu amor purificado ou
teria reparado a ordem violada em seu íntimo.
Acontece, porém, que essa praxe penitencial, com o tempo, se tornou insustentável; não só exigia
especiais condições de saúde, mas também acarretava conseqüências penosas para todo o resto da vida de quem a
ela se submetesse. Eis por que aos poucos foi sendo modificada.
Com efeito; a partir dos século VI foi introduzido novo costume: o pecador, tendo confessado suas faltas,
recebia logo a absolvição, mas, depois disto, ainda prestaria uma satisfação correspondente à gravidade de suas
culpas, afim de extinguir dentro de si todo apego ao pecado.
Este novo modo de administrar o sacramento da Reconciliação ainda era assaz penoso; a dura e
prolongada penitência (jejum, cilício...) não podia ser praticada por todos os pecadores.
Consciente disto, a Igreja instituiu as "comutações" ou "redenções" de penitências. Estas têm seu
fundamento na própria S. Escritura: a Lei de Moisés enumerava casos em que as obrigações dos fiéis eram
legitimamente comutadas e mitigadas, desde que se tornassem demasiado onerosas 18.
Em que consistiam propriamente as comutações de penitências na Igreja do século IX?
Como dito, a Igreja é a depositária dos méritos de Cristo que frutificaram nos méritos da SS. Virgem e
dos Santos, constituindo o tesouro da Igreja. Ora os Bispos julgaram oportuno, a partir do século IX, aplicar esses
méritos em favor dos pecadores absolvidos que se deviam submeter a rigorosas penitências. As duras obras de
penitência foram sendo substituídas (comutadas) por outras obras mais brandas, obras às quais a S. Igreja associava
diretamente os méritos satisfatórios de Cristo; assim, em lugar de jejuns, podiam ser impostas orações; em vez de
longa peregrinação, o pernoitar num santuário; em vez de flagelações, uma esmola...
A estas obras mais brandas a Igreja, num gesto de indulgência, anexava algo da expiação sumamente
meritória do Senhor Jesus. Foram chamadas "obras indulgenciadas" (enriquecidas de indulgências). A remissão da
pena satisfatória obtida pela prática de tais obras tomou o nome de "indulgência".
Compreende-se, porém, que tal indulgência não se ganhava de maneira mecânica; era sempre necessário
que o penitente, ao realizar toda obra indulgenciada, já tivesse recebido a absolvição de seus pecados, e nutrisse em
si o horror ao pecado e o fervido amor a Deus que ele teria se fosse prestar uma quarentena ou mais de jejum e de
cilício... Sem tais disposições, não ganharia a indulgência proposta.
No século XI os bispos começaram a conceder indulgências gerais, isto é, oferecidas a todos os fiéis, sem
se exigir a intervenção direta de um sacerdote. Em outros termos: os Bispos determinaram que, prestando tal ou tal
obra (visita a um Santuário, orações especiais, esmolas...), os fiéis poderiam obter a remissão da satisfação
correspondente aos seus pecados já absolvidos. Assim quem colaborasse na construção de um santuário ou
peregrinasse a tal lugar sagrado, lucraria uma indulgência de 100 dias, 1 ano, 7 anos (isto é, os frutos da penitência
realizada durante cem dias, um ano, sete anos), desde que o fizesse com o horror ao pecado que animava os
penitentes da Igreja antiga.
Esta praxe ficou em vigor até os tempos recentes na Igreja. Quando, antes do Concílio do Vaticano 11
(1962-1965), se falava de "indulgência de 100, 300 dias, ou um ou mais anos", não se designava um estágio no
purgatório, pois neste não há dias nem anos. Com essa contagem indicava-se o perdão da expiação que outrora
alguém prestaria fazendo 100, 300 dias, um ou mais anos de penitência rigorosa, avaliada segundo a praxe da Igreja
antiga. Em nossos dias a terminologia mudou, como se dirá adiante.

Lição 2: Reflexões teológicas


As considerações até aqui propostas comprovam que a Igreja, ao instituir as indulgências, teve em vista
auxiliar os seus filhos que tenham obtido o perdão de seus pecados, mas ainda devam prestar reparação pelos

18
Ver Lv 5, M7.ll: "Se o homem não tiver recursos para oferecer uma rês de gado miúdo, trará a Javé, em sacrifício de reparação pelo pecado que cometeu,
duas rolas ou dois pombinhos, um deles para sacrifício pelo pecado e o outro para holocausto... Se ele não tiver recursos para oferecer duas rolas ou dois
pombinhos, trará como oferenda pelo pecado cometido um décimo de medida de flor de farinha; não porá nela azeite nem incenso, pois è um sacrifício pelo
pecado".
mesmos. A Igreja reconhece que na Comunhão dos Santos os fiéis vivos podem obter indulgências em favor dos
irmãos falecidos que no purgatório ainda tenham de prestar satisfação por pecados cometidos nesta vida.
É muito importante notar que ninguém pode lucrar indulgência sem que tenha previamente confessado as
suas faltas graves (as obras indulgenciadas não obtêm o perdão do pecado como tal) e sem que excite em si o
espírito de contrição que o levaria a prestar as rigorosas penitências da Igreja antiga; sem este ânimo interior, nada
se pode adquirir. Donde se vê que a praxe das indulgências está longe de reduzir a religião a formalismo e
mercantilismo.
Deve-se observar também que a Igreja nunca vendeu o perdão dos pecados, nem vendeu indulgências. O
perdão dos pecados, como dito, sempre foi pré-requisito para as indulgências. Mais: quando a Igreja indulgenciava
a prática de esmolas, não intencionava dizer que o dinheiro produz efeitos mágicos, mas queria apenas fomentar a
caridade ou as disposições íntimas do cristão como fator de purificação interior. Não há dúvida, porém, de que
pregadores populares e muitos fiéis cristãos dos séculos XV/XVI usaram de linguagem inadequada ou errônea ao
falarem de indulgências. Foi o que deu origem aos protestos de Lutero e dos reformadores. Na verdade, é muito
difícil ganhar uma indulgência plenária. Quem, ao recitar breve prece indulgenciada ou ao fazer visita a um
santuário, pode ter certeza de estar contrito dos seus pecados a ponto de não lhes ter mais o mínimo apego? O velho
homem, mais ou menos arraigado em cada cristão, é caprichoso e sorrateiro; para dominá-lo, é necessária assídua
vigilância com o auxílio da graça.

Lição 3: A praxe atual


Após o Concílio do Vaticano II, o Papa Paulo VI procedeu a uma revisão da instituição das indulgências,
que era e é válida, mas se prestava a equívocos, principalmente pela contagem de dias, meses e anos de
indulgência...; esta terminologia supunha condições históricas que haviam caído no esquecimento do público,
Eis alguns traços da respectiva Constituição Indulgentiarum Doctrina datada de 1967:
1) A Igreja continua a conceder indulgências plenárias e indulgências parciais. Aquelas significam a
remissão de toda a satisfação correspondente a pecados já absolvidos; estas, a remissão de parte desta satisfação.
Fica, porém, abolida a indicação de dias e anos de indulgência parcial. O valor das indulgências parciais é
doravante expresso em termos mais compreensíveis.
Com efeito. Sabemos que toda boa obra (prece, esmola, mortificação...) tem anexo a si um determinado
mérito; se alguém realiza tal obra em espírito de contrição, adquire a remissão de uma parte de sua satisfação
purgatória. Pois bem; Paulo VI determinou que as pessoas que praticam uma ação indulgenciada pela Igreja, obtêm
(além da remissão anexa ao ato bom como tal) uma igual remissão devida à intervenção da S. Igreja. Isto significa,
em última análise, que a medida das indulgências parciais é a medida do arrependimento e do amor a Deus com
que alguém pratica a ação indulgenciada; se o cristão a realiza com ânimo rotineiro e tíbio, pouco lucra; ao
contrário, quanto mais fervor ele empenhar na execução da obra indulgenciada, tanto mais também será ele
indulgencia do.
Vê-se como esta disposição é apta a fazer do instituto das indulgências um estímulo para o afervoramento
da piedade dos fiéis.
2) Para que alguém possa lucrar indulgência plenária, requer-se que, além de executar a obra
indulgenciada, faça uma confissão sacramental, receba a Comunhão Eucarística, ore segundo as intenções do Sumo
Pontífice (um "Pai Nosso" e uma "Ave Maria", por exemplo) e não guarde o mínimo apego a qualquer pecado
ainda que seja leve.
Se alguém puder cumprir, mas de fato não cumprir estas condições, só lucrará indulgência parcial.
A confissão sacramental pode ser efetuada alguns dias antes ou (se não houver pecado grave) depois da
obra indulgenciada. A S. Comunhão, porém, e a oração pelo Sumo Pontífice deverão ocorrer no dia mesmo em.
que se realizar a obra.
Basta uma Confissão sacramental para se adquirir mais de uma indulgência plenária. Requer-se, porém,
uma comunhão e uma oração pelo S. Padre para cada indulgência plenária.
3) O novo catálogo de indulgências assinala várias obras de piedade como indulgenciadas. Antes do mais,
porém, propõe três grandes concessões:
a) É concedida indulgência parcial a todo cristão que, no cumprimento de seus deveres e no suportar as
tribulações da vida presente, levante a mente a Deus com humildade, confiança, proferindo ao mesmo tempo
alguma invocação piedosa (com os lábios ou só a mente).
b) É concedida indulgência parcial ao cristão que, movido por espírito de fé e misericórdia, coloca a sua
pessoa ou os seus bens ao serviço dos irmãos que padecem necessidade.
c) É concedida indulgência parcial ao cristão que, movido por espírito de penitência, se abstenha
espontaneamente de algo que lhe seja licito e agradável.
Mediante estas três normas, a Igreja visa a estimular os seus filhos a uma vida fervorosa, animada por
espírito de fé, de amor e de configuração a Cristo.
PERGUNTAS
1) Que se entende por expiação ou reparação? Qual o seu papel na vida do cristão?
2) Que é o “tesouro da Igreja”?
3) Como teve origem o instituto das indulgências?
4) Houve ou há venda do perdão de pecados?
5) Que se entende hoje por "indulgência plenária" e "indulgência parcial"?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 15: O INFERNO (I)

O inferno não é senão a última conseqüência da recusa livre e espontânea do Bem Infinito.
A noção de inferno é freqüentemente mal entendida, de modo a suscitar perplexidade e revolta em muitos
cristãos e não cristãos. O problema assim existente se deve à insuficiente compreensão da verdade; é um modo
antropomórtico ou infantil de entender o inferno que provoca dificuldades. Em conseqüência, procuraremos
averiguar os genuínos ensinamentos da fé, percorrendo três etapas: 1) o testemunho da Escritura e da Tradição; 2)
em que consiste propriamente o inferno; 3) questões particulares.

Lição 1: Escritura

Vejamos o que na Escritura Sagrada se encontra a respeito da sorte daqueles que morrem voluntariamente
avessos a Deus ou em pecado mortal.
1. No Antigo Testamento, existe uma insinuação do inferno em Is 66,24 (séc. VI/Var a.C.). O profeta,
referindo-se aos idólatras no dia em que o Senhor vier julgar a terra, atribui ao Senhor os seguintes termos:
“(Os peregrinos que vierem a Jerusalém) verão os cadáveres dos homens que se revoltaram contra mim;
o seu verme não morrerá, o seu fogo não se extinguirá; serão para todos um espetáculo de horror”.
Este texto alude à topografia da Terra Santa. A S.O. de Jerusalém havia um vale outrora pertencente a um
proprietário chamado Hinnom; donde a designação que lhe cabia, de Ge-hinnom (ge = vale). Nesse local os reis
Acaz (733-727 a.C.) e Manassés (696-641 a.C.) praticaram o culto do idolo Baal Moloque, que consistia em imolar
e queimar crianças em honra da divindade (cf. 2Rs 16,3; 21,6; 23,10); essa prática se prolongou até os tempos de
Jeremias (t 581?), de modo que o Ge-hinnom passou a ser tido como lugar de maldição; cf. Jr 7,31s; 19,6s.
É a esse vale do Ge-hinnom (em português, geena) que (saías alude na passagem atrás citada; entende-o
como símbolo da sorte que tocará aos ímpios após o juízo universal e a restauração do Reino de Deus. A menção
do fogo é metafórica; explica-se pelo cenário mesmo do Ge-hinnom. Também a referência aos vermes é figura de
linguagem: no Oriente não era raro encontrarem-se insepultos e invadidos pelos vermes os cadáveres de homens
amaldiçoados ou malquistos.
Fogo e verme cuja ação não se extinguirá, eis doí> elementos que se tornaram usuais no Antigo
Testamento para designar a futura sorte dos ímpios; cf. Jt 16,17; Eclo 7,17; 21,9.
A sanção póstuma também é afirmada por Dn 12,2, que alude à ressurreição dos pecadores nos seguintes
termos:
"Muitos dos que dormem na poeira da terra, despertarão, uns para a vida eterna, outros para a confusão e
o opróbrio eternos".
2. No Novo Testamento, os textos ainda são mais explícitos.
Por suas parábolas, principalmente, Jesus dava a entender que, após a peregrinação terrestre, duas são as
formas de vida possíveis para o homem: uma bem-aventurada, outra infeliz. Assim, por exemplo, as parábolas do
joio e do trigo (Mt 13,24-30. 36-43), da rede do pescador (Mt 13,47-50), dos convidados à ceia (Lc 14,16-24), das
dez virgens (Mt 25,1-12; cf. Lc 13,27-29). Na estòria do ricaço e de Lázaro o contraste é indicado com toda a
veemência: aquele é sepultado e aparece em meio a tormentos, ao passo que Lázaro é recebido no seio de Abraão.
As duas sortes são apresentadas também com muita ênfase no quadro do Juízo universal em Mt 25,33-46.
Jesus ainda diz claramente:
"Em verdade vos digo: todos os pecados serão perdoados aos homens, mesmo as blasfêmias que tiverem
proferido. Mas aquele que tiver blasfemado contra o Espírito Santo, jamais obterá perdão,- é réu de pecado eterno"
(Mc 3,28s).
O pecado contra o Espírito Santo não é outro senão o endurecimento mesmo ou a obstinação do homem
que, após uma culpa grave, reluta contra o chamado de Deus; fecha-se ao acesso da graça. Visto que explicitamente
recusa penitência e perdão, não pode ser agraciado; Deus não lhe força a vontade. Tal pecado é dito "contra o
Espírito Santo", porque ao Espírito Santo costumam ser atribuídas as inspirações da graça. Diz ainda o Senhor em
Jo 5,28s:
“Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros, ouvirão a voz do
Filho do Homem e sairão; os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida,- os que tiverem
cometido o mal, para uma ressurreição de julgamento (krísis)”
A palavra krísis, nos escritos de S. João, significa julgamento no sentido pejorativo de condenação; ver Jo
3,17.
Merece atenção também o texto de Mc 9,47s, em que Jesus alude a Is 66,24: "Se teu olho te escandalizar
arranca-o. Melhor é entrares com um só olho no Reino de Deus do que, tendo os dois olhos, seres atirado na geena,
onde o verme não morre e o fogo não se extingue".
Os Apóstolos repetidamente afirmavam as duas sortes: bem-aventurança ou penas sem fim. Tenhamos em
vista os seguintes textos:
Gl 5,19-21: "As obras da carne são manifestas: fornicação, impureza, libertinagem.., invejas, bebedeiras,
orgias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais unanimamente vos previno, como já vos preveni: os que
tais coisas praticam, não herdarão o Reino de Deus”.
Ef 5,5: “É bom saberdes que nenhum fornicário ou impuro ou avarento - que é um idólatra - tem herança
no Reino de Cristo e de Deus”.
2Cor 4,3s: "Se o nosso Evangelho permanece velado, está velado para aqueles que se perdem, para os
incrédulos, dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligência”.
Ver ainda: 1Cor 6,9s; 2Cor 2,15s; 13,5; 1Tm 5,6.11-15; 2Tm 2,12-20; 2Pd 2,1-4.12; 3,7; Jd 6.12; Tg
2,13; 4,4-8; 5,3; Ap 21,8.27; 22,15.

Lição 2: A Tradição Cristã

A Tradição cristã foi enfática em atestar a existência do inferno. Entre outros, podem-se notar os dizeres
de São Policarpo (t 156), bispo de Esmirna, que, ameaçado de martírio pelo fogo, respondia ao procônsul:
“Tu me ameaças com um fogo que só arde uma hora e pouco depois se extinguirá: com efeito, ignoras
que o fogo do juízo e da pena eterna está reservado aos ímpios” (Martírío de S. Policarpo 2,3).
O autor anónimo da Epístola a Diogneto (século III), referindo-se aos mártires, diz o seguinte:
“Verás, ainda na terra, que Deus reina nos céus. Começarás a falar dos seus mistérios. Amarás e
admirarás os que são torturados por não quererem renegar a Deus. Condenarás a impostura e o erro do mundo,
quando tiveres compreendido que o verdadeiro viver está no céu, e, desprezando aquilo que aqui parece morte,
temeres a morte real reservada aos condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem
entregues. Então admirarás os que suportam, por causa da justiça, o fogo momentâneo, e os considerarás felizes
quando tiveres compreendido tal fogo” (10, 7s).
Verdade é que nos séculos III-VI existiu na Igreja uma corrente dita "origenista" (discípulos de Orígenes
de Alexandria, + 250), que defendia a temporalidade do inferno e a restauração (apokatástasís) 19 de todas as
criaturas no estado de bonança inicial. Tal corrente, sustentada principalmente por monges de pouca cultura, foi
condenada pelo Sínodo regional de Constantinopla em 543, Sínodo que o Papa Vigílio aprovou. Eis o cânon mais
significativo de tal assembléia:
“Se alguém disser ou sustentar que o suplício dos demónios e dos homens ímpios é temporal, e terá fim
após certa duração, ou que haverá a restauração e reintegração dos demónios ou dos homens ímpios, seja anatema"
(D.-S. no 411).
Dentre outras declarações do magistério da Igreja, citamos aqui o Símbolo de Fé atribuído a S. Atanásio e
que deve datar do século V:
“Os que tiverem praticado o bem, irão para a vida eterna; os que tiverem cometido o mal, irão para o fogo
eterno. Tal é a fé católica, e quem não a professa fiel e firmemente, não se pode salvar” (D.-S. n o 76).
Em nossos tempos, o Papa Paulo VI, tendo em vista hesitações existentes sobre pontos da fé católica,
promulgou aos 29 de junho de 1968 o "Credo do Povo de Deus", no qual se lê o seguinte trecho:
“Jesus Cristo subiu ao céu, e virá de novo, mas desta vez com glória, para julgar os vivos e os mortos,
cada um segundo os seus méritos: os que corresponderam ao amor e à misericórdia de Deus, irão para a vida
eterna; os que os recusaram até o fim, irão para o fogo que não se extinguirá jamais" (n o 12).
Ainda mais solenemente a Igreja se pronunciou no Concílio do Vaticano II, mediante a Constituição
Lumen Gentium (datada de 1965), na qual se faz a seguinte declaração:
"Como desconhecemos o dia e a hora, conforme a advertência do Senhor vigiemos constantemente, a fim
de que, terminado o único curso de nossa vida terrestre (cf. Hb 9,27), possamos entrar com Ele para as bodas e
mereçamos ser contados com os benditos (cf, Mt 25,31-46) e não sejamos mandados, como servos maus e
preguiçosos (cf. Mt 25,26), para o fogo eterno (cf. Mt 25,41), para as trevas exteriores, onde haverá choro e ranger
de dentes (cf, Mt 22,13 e Mt 25, 30)" (no 48).
19
A palavra apokatástasis (restauração) ocorre em At 3,21, mas em sentido diverso do que lhe atribuíram os origenistas. A "restauração de todas as coisas" em
At 3,21 significa, como se deduz do contexto,"a realização definitiva de tudo o que Deus disse pela boca dos santos profetas".
Este texto faz ressoar as metáforas das Escrituras Sagradas para afirmar a dupla possibilidade de
existência - bem-aventurada ou não - após a morte. Além do quê, rejeita a tese reencarnacionista, afirmando um só
curso de vida terrestre para cada indivíduo humano.
De resto, a proposição da existência do inferno fora preparada na mente dos antigos cristãos por
premissas da literatura greco-romana que, do seu modo, professavam um castigo póstumo dos malvados em lugares
subterrâneos e mediante o fogo. A propósito convém notar o que diz Minúcio Félix, autor cristão do século III:
"Os homens são informados pelos livros dos sábios e pelos cânticos dos poetas a respeito desse rio de
fogo, cujo percurso sinuoso e flamejante rodeia de muitos círculos os pântanos do Estige. Que isso tudo está
reservado para suplícios eternos, eles o souberam p61as indicações dos demónios e os oráculos dos profetas. Eis
por que, entre eles, Júpiter mesmo jura respeitosamente pelas ripas em chamas e pelo abismo sombrio: sabe de
antemão que pena está destinada a ele e a seus adeptos e estremece de horror. Tais tormentos não terão nem medida
nem termo. Lá um fogo inteligente queima os membros e os restaura; dilacera-os e alimenta-os. Assim como o
fogo dos relâmpagos toca os corpos sem os destruir, como o fogo do Etna, do Vesúvio e outros semelhantes ardem
sempre, sem jamais se extinguir, assim esse fogo vingador não se nutre com detrimentos daquilo que ele corrói,
mas devora os corpos e se alimenta sem os consumir" (Octavius 35).
Michel Carrouges, que estudou atentamente a literatura clássica, chega a concluir que a imagem do
inferno "é em nós um arquétipo que não pode ser banido. É um verdadeiro espectro que sobe das regiões mais
íntimas e mais profundas da natureza humana... Desde a mais alta antigüidade até os tempos modernos, uma longa
série de quadros suscita diante de nós o horizonte de um mundo maldito, império dos monstros e do horror
absoluto" (L'Enfer. Paris 1950, p. 13).
Não há dúvida, as descrições da literatura antiga não cristã estão imbuídas de muita fantasia e
teatralidade, de sorte a provocar certo menosprezo de um conceito que, quanto podemos julgar, é muito espontâneo
e generalizado na consciência dos povos. A própria literatura cristã, durante séculos, acentuou com colorido muito
vivo os aspectos trágicos do inferno, recorrendo a imagens "dantescas", que, em vez de esclarecer a verdade da fé,
só contribuíam para obnubilá-la, dificultando a aceitação da mesma por parte do grande público. Eis por que nosso
intento, nas páginas seguintes, será depurar de metáforas imaginosas o conceito de inferno, pondo em relevo o seu
genuíno sentido; através desse estudo, perceber-se-à que o inferno, longe de ser incompativel com o amor de Deus,
se coaduna perfeitamente com este, quase como decorrência lógica do fato de que ele nos ama irreversivelmente.

PERGUNTAS
1) Como os escritos do Antigo Testamento esboçam o conceito de inferno?
2) Qual a origem da metáfora de vermes no inferno?
3) Cite e comente brevemente três textos do Novo Testamento que falam de inferno.
4) Quem são os origenistas? Que é a apokatàstasis (restauração) e como foi julgada- pelo magistério da
Igreja?
5) Cite dois pronunciamentos da Igreja sobre a sorte final dos réprobos.
6) As expressões dantescas da literatura antiga - não cristã e cristã - podem ser tomadas ao pé da letra?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 16: O INFERNO (11) - REFLEXÃO TEOLÓGICA

Lição Única: Aprofundamento Teológico

Estabelecida a existência do inferno, vejamos como o havemos de conceber.


Em última análise, o inferno é um mistério: mistério na medida em que o próprio pecado constitui um
mistério, o "mistério da iniqüidade" (lTs 2,7), pois, na verdade, o inferno não é senão a última conseqüência do
pecado. Todavia até certo grau o mistério pode ser penetrado pelo cristão. É o que faremos, considerando dois
aspectos bem nítidos que o inferno apresenta. Com efeito, todo pecado implica dois elementos: um Não dito a
Deus, e um Sim à criatura. Conseqüentemente no inferno distingue-se: a pena de condenação, ou seja, o definitivo
afastamento de Deus, e a pena dos sentídos, correspondente à adesão às criaturas.

l. Pena da condenação
O principal tormento do inferno é algo de negativo, a saber: a carência da visão de Deus 20. Assim como a
felicidade do céu consiste na posse ou na visão de Deus, assim a desgraça póstuma consiste na separação de Deus.

20
Aqui começa o desconcertante para quem se apoiar muito em concepções humanas ou infantis afim de representar o inferno. Este se caracteriza, em grau
máximo, não pela transposição de figuras deste mundo para o além-túmulo, mas pela negação ou pela privação... privação de Deus. Não imaginemos, pois,
que o tormento do inferno provem dos demónios, que, como carrascos, fustigariam as homens cem tridentes e enxofre fumegante.
E por que esta separação é de tal modo dolorosa?
A resposta procede por etapas.

l) Deus é o Criador do homem. Criou por pura liberalidade, a fim de fazer-nos participantes da sua bem-
aventurança. Donde se seguem duas verdades de grande alcance:
a) no. mais íntimo do homem está embebida uma tendência para o bem, e o Bem Infinito, que, em última
análise, é Deus. O homem nada quer nem faz que, sob certo ponto de vista, não lhe pareça bom. Mesmo o suicídio,
que é a total autodestruição do homem peregrino, só é desejável na medida em que pareça um bem ou um alívio
para a criatura desesperada. Só a pessoa tarada pode querer o mal como mal. Em suma, o homem é essencialmente
um clamor dirigido a Deus.
b) Os preceitos que Deus dá ao homem, não são determinações arbitrárias, mas são indicações da via que
o homem deve seguir para chegar ao Bem Infinito.
2) Sobre este fundo de idéias, o pecado é não somente uma desobediência à lei de Deus, mas também
uma violação da tendência natural da criatura ao Criador. Pelo pecado grave o homem, com pleno conhecimento de
causa e vontade deliberada (ou seja, empenhando toda a sua personalidade), se afasta de Deus, abraçando um bem
finito como seu fim supremo. Nestes termos, o pecado não é apenas injúria ao Criador, mas também violentação da
natureza humana. Embora deseje algum bem-estar no pecado, o pecador não encontra paz nem alegria no estado
em que ele se projeta; cedo ou tarde percebe a desproporção existente entre qualquer criatura (volúpia, dinheiro,
fama...) e a capacidade insaciável do seu próprio espírito. Enquanto, porém, se acha neste mundo, o pecador pode
recorrer a paliativos: passando mais ou menos febrilmente de uma criatura a outra, procura encobrir aos próprios
olhos a sua verdadeira situação de alma, nunca "tem tempo" para se encontrar consigo mesmo e perceber seu
drama.
3) Admita-se, porém, que venha a morrer nesse estado de aversão a Deus e adesão à criatura... Que se dá
então?
A alma do pecador se vê colocada diante da sua realidade sem a poder encobrir nem dissimular. Toma
plena consciência de que se separou livremente de Deus, que a chamava à participação da sua vida divina: perdeu o
Bem sem limites. Em outros termos: após a morte, com um olhar penetrante, a alma do pecador avalia a sua
capacidade de infinito e percebe que jamais será preenchida; apodera-se de tal alma a impressão de ser um vazio
imenso, destinado a ficar sempre aberto. Doravante existirá em contínua contradição consigo mesma: a natureza
dessa alma clamará incessantemente pelo Criador; o clamor, porém, ficará vão, pois tal alma, por sua livre vontade,
se terá para sempre incompatibilizado com o Senhor. Natureza pedindo o Sumo Bem com todas as suas fibras, e
vontade livre repudiando a Deus, eis as duas tendências que dilaceram o réprobo.
Mal podemos avaliar quanto essa situação é tormentosa, porque neste mundo nunca tomamos plena
consciência da profundeza da nossa alma.
4) O estado do réprobo implica que, justamente na ocasião em que a criatura percebe ser Deus o mais
atraente de todos os bens, ela está possuída de aversão voluntária contra o mesmo Deus. Este estado violento,
contraditório, ainda é aguçado pelo fato de que, somente pela força que o Senhor lhe confere, é que o pecador se
pode voltar contra o Senhor; somente enquanto carregado pelo amor de Deus é que o réprobo pode nutrir ódio
contra Deus. E o réprobo tem plena consciência dessa contradição viva.
5) O ódio a Deus redunda inevitavelmente em ódio a todas as criaturas. Verdade é que os réprobos têm de
comum entre si a revolta contra o Criador: todavia este laço não os emancipa de seu egoísmo supremo. Não
amando o Sumo Valor que é Deus, são absolutamente incapazes de amar algum valor inferior ou alguma criatura,
por mais solidários que com ela se sintam; não se podem, pois, consolar mutuamente; no inferno não tem aplicação
o princípio de que "sofrimento compartilhado é sofrimento pela metade". Cada qual dos réprobos quisera mesmo
que todos os anjos e todos os homens fossem igualmente condenados. Não sem lazão tem-se conseqüentemente
caracterizado o inferno como a absoluta carência de amor, estado em que a indigência fundamental do homem -
amar - é frustrada.
Note-se que há um de ódio que nobilita quem o cultiva: é a reação de uma alma diante do mal que quer
dominar. Nao é este, porém, o ódio do réprobo diante de Deus: o pecador experimenta verdadeira sede do Bem
lnifito: todavia, vê-se incompatibilizado com Deus; e em conseqüência disto é que concebe ódio. Tal ódio, em
última análise, é proveniente do amor, mas de um amor desvirtuado; o réprobo se assemelha ao amante que
persegue furiosamente o objeto dileto que lhe escapa; odeia por não se consolar com a separação do bem-amado.
Ora, um tal ódio, longe de ser desonroso para Deus, é, antes, uma homenagem, embora involuntária, prestada pelo
pecador Àquele que é a Beleza, a Vida, a Luz; Deus é enaltecido por tal ódio; conseqüentemente, é reto dizer-se
que o inferno inteiro, por seu ódio, proclama a grandeza de Deus; canta, do seu modo, a perfeição do Amor
Infinito.
6) O réprobo sente e detesta veementemente a sua penosa situação. É incapaz, porém, de arrependimento,
em virtude da irrevogabilidade das disposições com que o homem é afetado pela morte. Diz-se, pois, que o pecador
sente remorso do seu pecado; não, porém, arrependimento. O que significa: sente dor do pecado enquanto é causa
de suas penas, não enquanto é ofensa a Deus. A dor nele só faz excitar contínuas blasfêmias. Para que o réprobo
concebesse contrição, deveria conceber amor de Deus e humildade; ora, isto lhe é impossível, pois está cativo no
pecado, e, tudo que ele julga, julga-o conforme a sua inclinação depravada.
7) Não há dúvida, a pena de condenação admite graus: quanto mais obtinado é o pecador em procurar
satisfazer-se neste mundo à revelia de Deus, tanto mais aguda há de ser a dor que sofrerá quando, depois da morte,
tomar consciência da irreparável perda incorrida. Está na ordem reta das coisas que, quanto mais o homem se afasta
de Deus, tanto mais experimente quão doloroso é distanciar-se do Único Bem. É, aliás, o que ensina o próprio Jesus
em Lc12,45-48; Mt10,15; 16,27; cf. 2Cor 5,10; Ap18,7.
Também contribuirá para intensificar a dor do réprobo o fato eventual de ter sido, em certo período de sua
vida, fervoroso e fiel à graça, ou o de ter sido chamado à santidade maior (qual é a do sacerdócio ou a da Vida
Religiosa). Nestes dois casos é de supor no indivíduo um coração muito capaz de amar, o qual com particular
veemência deve experimentar o contraste entre o que poderia ser e o que de fato é; um coração mais dilatado não
pode deixar de experimentar um vazio mais profundo; um coração mais levado ao amor é também mais capaz de
ódio, visto que este, no inferno, não é senão um amor degenerado em aversão.
Não há dúvida de que, se a alma no inferno pedisse perdão a Deus, seria imediatamente agraciada. O
Senhor perdoa todo e qualquer pecado, como o pai do filho pródigo tudo perdoou a seu filho (cf. Lc15, 11-32). É
preciso, porém, que a criatura queira receber o perdão; Deus não o impõe, não contraria as disposições da criatura.
8) O estado infernal é plenamente compatível com o amor de Deus. Sim, precisamente porque Deus ama -
e ama irreversivelmente - é que o réprobo no além pode verificar, com toda a clareza, que Deus é o Sumo Bem, ao
qual ele disse um Não voluntário e definitivo. Se Deus subtraisse seu amor ao réprobo e o "esquecesse", este não
sentiria dilaceração íntima, mas estaria voltado unicamente para os seus ídolos voluntariamente escolhidos. O amor
de Deus é -Sim, Sim uma vez por toas; ora isto vem a ser extremamente consolador para o homem peregrino na
terra, mas é extremamente doloroso para quem lhe disse um Não definitivo (esta recusa não é acompanhada por
Deus, que continua a amar; cf. 2Tm 2,11-13). Não se brinca com o amor de Deus. O cristão tem plena consciência
disto, mas guarda plena confiança, porque quem sinceramente procura a Deus apesar de suas falhas, jamais será
frustrado.

2, Pena dos sentidos

1. Juntamente com a pena maxima, que e o afastamento de Deus, o reprobo experimenta uma sanção
positiva: a chamada "pena dos sentidos".
A Sagrada Escritura apresenta-a como fogo (cf. Mt 5,22; 18,8s; Ap 20,4; 21,8). É certo, porém, que não
se trata do fogo comum terrestre, pois este consome e devora as criaturas que atinge. Os teólogos o explicam do
seguinte modo: em toda culpa grave, o homem de certa maneira "diviniza" alguma criatura (seu corpo ou bens
externos); subordina-se a essa criatura, pedindo-lhe o que só Deus poderia conceder, isto é, a felicidade. Pois bem;
o homem que termine a sua peregrinação terrestre em tal estado, passa a experimentar o jugo das criaturas; nisto há
uma humilhação para a alma; já que todo pecado tem sua raiz no orgulho, compreende-se que a sanção do pecado
tenha algo que contrarie o orgulho. De resto, é difícil explicar a maneira como se exerce essa represália das
criaturas sobre os réprobos. Nem é necessário descer a pormenores sobre o assunto.
2. A propósito costuma-se perguntar o que julgar da famosa visão do inferno com que foi agraciada
Lúcia, a vidente de Fátima.
Eis o teor exato da visão, na descrição mesma de Lúcia:
"A primeira visão foi a do inferno!
Ao dizer as últimas palavras..., a Virgem abriu de novo as mãos como nos dois meses passados. O feixe
de luz reflexa pareceu penetrar na terra e nós vimos como que um mar de fogo e nele mergulhados os demónios e
as almas, como brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana, as quais flutuavam no incêndio,
levadas pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, como
as fagulhas nos grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero, que
horrorizavam e faziam estremecer de pavor... Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de
animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes como negros carvões em brasa.
Esta visão durou um momento, graças á nossa boa Mãe, que antes nos tinha prevenido com a promessa de
nos levar para o céu; se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor. Assustados e como que a
pedir socorro, levantamos os olhos para Nossa Senhora, que nos disse com bondade e tristeza: 'Vistes o inferno,
para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu
lmaculado Coração. Se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz’.”
Esta visão faz parte do chamado "segundo segredo de Fátima". Ela sugere duas observações:
1) As aparições de Fátima e suas respectivas mensagens não pertencem ao depósito da fé cristã. Trata-se
de revelações particulares, que os fiéis católicos têm a liberdade de aceitar ou não. Não há dúvida, em Fátima têm
sido derramados numerosos benefícios espirituais e corporais sobre os homens - o que parece abonar a
autenticidade das aparições. Mas, mesmo assim, estas não se impõem necessariamente à fé. Veja-se a propósito
Curso sobre Ocultismo, Módulo 31. 2) A descrição do inferno, no segredo de Fátima, é feita segundo a clássica
maneira, pois se destinava a um público afeito a tal modo de conceber a sorte dos pecadores; em 1917 era nos
termos acima que se falava do inferno; uma linguagem mais abstrata ou erudita estava fora de uso na catequese;
seria talvez fadada a não ser compreendida. Caso a Virgem SS. tenha realmente suscitado tal visão do inferno, Ela
nada insinuou no campo da teologia; apenas adaptou-se ao entendimento dos destinatários, ficando entendido que
os leitores posteriores fariam a respectiva "tradução" do texto, tradução proposta neste Módulo.
É certo, porém, que a devoção ao Coração lmaculado de Maria é altamente recomendável; pode obter a
conversão de numerosos pecadores.
A temática continuará a ser abordada no próximo Módulo.

APÊNDICE
Antecipando uma questão que será abordada no Módulo seguinte (n9 17), pp. 93 e 94 (Quantos se
perdem?), transcrevemos abaixo na íntegra o texto do Concílio do Vaticano II que será mencionado naquelas
páginas:
“Visto que desconhecemos o dia e a hora, conforme a advertência do Senhor vigiemos constantemente, a
fim de que, terminado o único curso de nossa vida terrestre (Hb 9,27), possamos entrar com Ele para as bodas e
mereçamos ser contados com os benditos (cf. Mt 25,31-46), e não nos seja ordenado, como a servos maus e
preguiçosos (cf. Mt 25,36), apartar-nos para o fogo eterno (cf. Mt 25,41), para as trevas exteriores, onde haverá
choro e ranger de dentes (Mt 22,13 e 25, 30). Pois, antes de reinarmos com Cristo glorioso, todos nós
compareceremos diante do tribunal de Cristo para que cada um receba conforme o que tiver feito, por meio do
corpo, o bem ou o mal (2Cor 5, lo). E no fim do mundo os que praticaram o bem, compartilharão a ressurreição da
vida, mas os que cometeram o mal, a ressurreição do juízo (Jo 5,29; cf. Mt 25,46)”. Constituição Lumen Gentium
no 48.

PERGUNTAS

1) Que se entende por "pena de condenação"? Explique bem.


2) Qual a diferença entre remoso e arrependimento?
3) Que se entende por'logo do inferno"?
4) Como julgar a descrição do inferno feita pela Irmã Lúcia de Fátima?
5) No inferno existe solidariedade?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 17: O INFERNO (III) - QUESTÕES COMPLEMENTARES

A doutrina até aqui exposta será esclarecida, de novo modo, pelo estudo de questões complementares, que
passamos a considerar.

Lição 1: A Duração do Inferno

Pergunta-se:

1) O inferno não terá fim?


A fé responde negativamente. Com efeito, a alma humana é imortal. Isto quer dizer que a sua sorte
póstuma será tão duradoura quanto a própria alma.

2) Não poderia, porém, haver uma mudança na sorte da alma condenada?


Poderia havê-la se a alma quisesse trocar sua aversão por amor..., amor a Deus e ao próximo. Todavia
acontece que, após a morte, a alma não pode mudar de disposições, como atrás foi dito. Ver Módulo 4 deste Curso.
Deus, por sua parte, não intervém nesta obstinação, mas respeita-a, já que é a atitude livremente abraçada
por uma criatura que o Senhor fez para ser livre. Não força a criatura a participar de uma vida (comunhão com
Deus) que ela rejeita. Tal é o peso que o Criador dá á livre opção do homem; não o quer rebaixar, tratando-o como
autómato. Constranger a criatura livre seria, sim, propriamente um castgo infligido por Deus, seria ferir a maior
dignidade do homem. Ademais, como observa o teólogo Prof. M. Schmaus, o réprobo não poderia suportar um
colóquio com o Amor, que ele odeia...
3) E Deus não aniquilaria o réprobo?
Sem dúvida, Deus poderia pôr termo á desgraça do condenado, recorrendo ao aniquilamento. Todavia isto
seria menos condizente com a Sabedoria divina.
Com efeito, o Senhor criou o homem para ser, e ser sempre (claro está que... á semelhança do Exemplar
divino, o qual é sempre feliz).
A modalidade de ser feliz, Deus a entregou á livre opção do homem; este a pode frustrar. Contudo, o bem
fundamental que é ser, existir, Deus o quis tomar a Seus exclusivos cuidados; o Criador o dá irrevogavelmente; não
o retira, mesmo que o homem não cumpra a sua parte, abusando do dom do Benfeitor. O homem existirá sempre,
como Deus planejou bondosamente, mesmo que, em conseqüência de uma livre opção sua, não exista feliz. E -
note-se - esta existência imortal, ainda que vivida num estado de desgraça, não deixa de ser um bem; continua a
representar um valor no conjunto das criaturas, não é um absurdo que deva ser aniquilado. Com efeito, o réprobo,
justamente por uma desventura, proclama que Deus é bom; a sua dor provem precisamente do fato de que ele
reconhece em Deus a Perfeição Máxima; do seu modo, pois, ela afirma veementemente a grandeza e a §ondade do
Criador; por conseguinte, tem um significado positivo no plano do universo. E por isto que Deus conserva a
existência do réprobo; embora destituída de sentido para o indivíduo, é muito expressiva no conjunto da criação;
entra no coro de louvor que todas as criaturas, cada qual na sua modalidade, cantam a Deus; ao passo que os anjos e
justos no céu reconhecem a Perfeição Divina e, percebendo-se familiares a ela, se sentem sumamente felizes, os
réprobos reconhecem igualmente a Perfeição Divina, mas, percebendo-se incompatibilizados com ela, se sentem
sumamente felizes. Por uma disposição estupenda da Sabedoria Divina, o inferno representa o modo próprio como
as criaturas, mesmo rebelando-se contra Deus, realizam, não obstante, o fim comum que Deus pré-estabeleceu a
todo ser: proclamar a glória do Criador,

Lição 2: Outras Questões

2.1. Pena medicinal?


Há quem afirme que tqda pena, para ser razoável, tem que ser medicinal, isto é, promover a emenda do
réu. A luz deste princípio, o inferno, não sendo corretivo para os réprobos, careceria de sentido.
Pelas considerações propostas, evidencia-se que a dificuldade é inconsistente: o inferno tem sentido, não
por visar á correção do homem, mas á proclamação da Perfeição de Deus. Claro está: para que o homem moderno
admita esta asserção, é preciso que se desembarace do modo de ver antropocêntrico que domina a mentalidade
contemporânea, e se coloque num ângulo visual teocêntrico. O mundo não foi feito primeiramente para promover a
felicidade do homem, mas para afirmar a glória de Deus; este é o seu fim principal, que justifica plena e
soberanamente a existência de qualquer criatura. O Senhor, porém - e isto é importante -, quis fazer que a
glorificação do Criador incluisse em si a felicidade do homem, caso este aceitasse livremente o plano de Deus.
Dado, contudo, que não o aceitasse, o homem não deixaria de proclamar a glória de Deus, embora o fizesse num
estado de rebeldia e infelicidade; a Santidade, o Amor, a Verdade e a Justiça são valores independentes da bem-
aventurança particular do homem, embora sejam os constitutivos normais desta bem-aventurança, sempre prontos a
promovê-la.

2.2. Por que Deus criou... sabendo...?


Uma questão, porém ainda se põe. Dado que o inferno seja sem fim, pergunta-se: por que criou Deus tais
indivíduos que Ele sabia haveriam de se condenar?
Em resposta dir-se-á: Deus quis criar seres mais dignos do que os irracionais; quis houvesse também
criaturas inteligentes e livres, mais fiéis reflexos da Perfeição Divina. Este desígnio implicava naturalmente num
grande "risco": dar liberdade de arbítrio a seres limitados era "sujeitar-se" a ver o livre arbítrio empregado
deficientemente ou para o mal. O risco era inevitável. De fato, ele redundou em desastre, como ainda redunda, no
decorrer da história... A rigor, Deus também poderia impedir que o risco se atualizasse, não permitindo que o
"poder agir mal" se tornasse uma realidade. Se o impedisse, porém, faria obra menos digna da Bondade Divina,
pois estaria de certo modo mutilando um Dom concedido ao homem.

2.3. Mitigação...?
É sentença comum dos teólogos que as penas do inferno, hierarquizadas em graus de intensidade maior
ou menor, não conhecem mitigação. O conceito de vida definitiva implica que a pena seja para os malvados o que o
prêmio é para os bons; ora, como a glória dos justos não é suscetível de aumento, assim a dor dos réprobos não é
capaz de qualquer mitigação; em caso contrário, a sentença de Deus não poderia ser dita irreformável; a vida
definitiva não seria definitiva.

2.4. Quantos se perdem?


E haverá muitas almas no inferno?
Somente Deus pode responder com precisão a esta questão.
Hoje em dia, porém, os teólogos julgam mais e mais que a Misericórdia Divina oferece meios ocultos de
salvação a todos os homens, até aos que parecem morrer em irredutível obstinação. Acreditam, portanto, que
mesmo as pessoas que vivem longe de Deus, recebem cedo ou tarde (ao menos na hora da morte) a graça que as
solicita á conversão.
O autêntÍco cristão crê no inferno, mas tem profunda confiança em sua salvação eterna. Aliás, era assim
que procedia S. Paulo: quando em suas cartas falava da sorte póstuma, parecia seguro de que a morte seria, para
ele, a consumação de um processo de união com Deus iniciado e, todos os dias, desenvolvido aqui na terra (cf. Fl
1,21-23; 2Cor 5,1-5). Quem procura a Deus fiel e perseverantemente (apesar das falhas da sua natureza humana),
não será frustrado; encoitrar.se-á um dia com o Senhor face á face.
Nos últimos tempos alguns teólogos perguntam se de fato existem réprobos. Não negam a possibilidade
de haver inferno, mas julgam que não se realizará; o inferno seria mera hipótese, pois na verdade todos os homens
se salvariam.
O Concílio do Vaticano 11 abordou esta questão e, depois de um estudo detido, a respectiva Comissão
Teológica esclareceu que, segundo o Evangelho, haverá de fatoréprobos; sim, Jesus em Mt 25,46 diz que "os
ímpios irão para o tormento eterno", estando o verbo no futuro e não no condicional. Eis o que se lê nas Atas do
Concílio: "Ao abordar o § 49 da Constituição Lumen Gentium, um dos padres conciliares pediu que se dissesse
explicitamente que há de fato réprobos, de modo que a condenação não pareça ser mera hipótese.
Resposta da Comíssão Teológíca Redatora: 'A proposta não se enquadra bem no contexto do § 49. De
resto, o § 48 cita palavras do Senhor no Evangelho que falam dos réprobos em forma de futuro'" (Acta Synodalia
Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II, Vol. III, Pars VIII, pp. 144s).
De passagem, ainda notamos um argumento derivado da psicologia para negar a realidade do inferno: o
homem não teria as condições psicológicas necessárias para cometer uma culpa realmente grave ou mortal
enquanto peregrino neste mundo. Em resposta, podemos afirmar que, de fato, há pessoas que não chegam á plena
maturidade assim, não teriam razão de ser as normas do Direito e os processos judiciários no mundo civil.

2.5. O local do inferno


Ouve-se por vezes dizer que os réprobos são punidos em lugar subterrâneo; mais precisamente: no centro
do globo terrestre, donde procedem as chamas dos vulcões. Esta crença, bastante antiga, atestada mesmo pela
literatura pagã, é expressa também pelo nome inferno, equivalente ao termo latino inferi (= lugares inferiores).
Tais conjecturas são totalmente despropositadas. Não se deve imaginar uma topografia do além, pois está
careceria de todo fundamento.
Determinar o local do inferno pertence mais aos objetos da curiosidade do que aos da ciência teológica.
Muito mais importante para o cristão é avivar em si a consciência de que o inferno é primeiramente algo
de imanente ou interior ao homem; se a pena máxima do inferno é a de não amar, bem se vê que o homem, já desde
esta vida, pode ser, em seu íntimo, portador do inferno21.
De modo geral é de desejar se desembarace a noção do inferno de certas concepções um tanto infantis ou
grosseiras, para dar-lhe um caráter mais interior e espiritualizado (a realidade do inferno ultrapassa toda a nossa
imaginação; é um mistério). O inferno, como se viu, não é uma pena meramente vindicativa, arbitrária da parte de
Deus, pena que poderíamos julgar imposta, mitigada e até ab-rogada conforme maior ou menor benevolência do
Juiz Divino para com a criatura. Não; o inferno, em seu aspecto mais genuíno, é sanção que o homem pronuncia
sobre si mesmo com pleno conhecimento de causa e empenho de sua vontade livre; pronunciada primeiramente a
titulo provisório, esta sentença se torna irrevogável pela morte, e o próprio Deus não faz senão reconhecê-la, e
reconhecê-la em toda a sua irrevogabilidade: "Quem não crê, já está julgado" (Jo 3,18), diz o Senhor, referindo-se
àqueles que vivem neste mundo. Ao passo que a mentalidade primitiva e fantasista dos pagãos e de certos cristãos
tende a fazer do inferno a obra de Deus Carrasco, a genuína visão cristã apresenta o inferno como obra do homem
violentador, e carrasco de si mesmo.
"Não serei meu próprio carrasco!"

Lição 3: Conclusão
A reflexão sobre o inferno não deixa dúvida de que ele participa do "mistério da iniqüidade": como pode
o homem, feito por Deus e para Deus, de múltiplos modos ainda solicitado pelo Criador, rejeitar deliberadamente o
Bem Infinito para aderir ao mesquinho e transitório?
Contudo, a noção de inferno projeta luz sobre três pontos da nossa fé:
1. O enorme alcance da liberdade humana. Deus não nos salva sem a aquiescência da nossa liberdade ou á
revelia da mesma. A propósito escreve M. Jouhandeau: "Instituí um interrogatório ao Eterno. E, se nele há alguma
21
A propósito vêm as seguintes observações de Carrouges, L'Enfer, p. 84: "A realidade mais profunda do inferno çristão, Dostoievski a explica com palavras
do Staretz Zósimo: "Que é o inferno?" E o sofrimento de não mais poder amar. Este sofrimento básico, o réprobo o escolhe no decorrer da vida presente; ela
decida inexoravelmente a sua vida futura. Não é no dia seguinte ao da morte que alguém pode começar a amar. Quem viveu no ódio, é pela morte para sempre
cristalizado no ódio.”
fraqueza, julgo tê-la descoberto. Deus tanto amou o homem que o criou livre e imortal, e, criando-me assim, Deus
dividiu comigo o seu poder... Toda a grandeza de Deus e do homem está nesse dom, que Deus me deu, de poder
odiá-lo sempre... Onde estou eu, aí está a minha livre vontade, e, onde está a minha livre vontade, potencialmente
está o inferno absoluto e eterno... Assim o inferno não é obra de Deus, mas do homem. Se o homem não
compreende o inferno, isto significa que ele não compreendeu jamais o seu próprio coração" (Algèbre des valeurs
morales 1935, pp. 221-226-229).
2. A infinita sabedoria de Deus. Esta sabe conciliar o respeito absoluto á liberdade humana como
desfecho feliz de toda a história; o livre arbítrio criado, exercend.o-se com sua deficiência, não'chega a
comprometer a vitória final do Bem sobre o mal; antes mesmo, quando se exerce deficientemente, concorre de
modo próprio a proclamar a excelência do Bem.
3. O infinito amor de Deus e a hediondez da sua antítese - o pecado. Este já aparece como tremenda
realidade se se considera o remédio que Deus lhe quis opor: o pecado conseguiu desencadear no centro da história a
Encarnação, a Paixão e a Morte do Filho de Deus; o amor do Criador não se conformou com a perspectiva de
perder o homem para todo o sempre, mas quis resgatá-lo de tão estupenda forma. Para quem esta prova positiva de
amor não basta, fica ainda outro sinal condizente com o anterior: a existência do inferno. "O amor é forte como a
morte", afirma a Sagrada Escritura (Ct 8,6); o que quer dizer: o amor, quando genuíno, não se contenta com meio-
termos, mas abraça as medidas extremas; o amor de Deus, portanto, foi até á morte de cruz e não se retira da
criatura nem mesmo no inferno. Em outros termos: Deus não subtrai o amor que Ele deu á criatura quando a tirou
do nada, e, justamente porque não o subtrai, é que dá ocasião a que o réprobo ressinta para todo o sempre a imensa
tristeza de se ter incompatibilizado com esse amor, que a continua a sustentar e atrair.
É o que justifica as palavras inscritas por Dante sobre o portal do inferno:
“A justiça animou meu sublime Arquiteto; Fui feito pelo Poder divino, A suma Sabedoria e o primeiro
Amor".
Palavras que Lacordaire assim comentava:
"Não, não vos enganeisi o amor não é brincadeira. Ninguém é impunemente amado por um Deus;
ninguém é impunemente amado até o patíbulo. Não é a justiça que se apresenta sem misericórdia, mas é o amor. O
amor - nós o experimentamos sobejamente - importa na vida ou na morte, e, se se trata do amor de um Deus,
importa na eterna vida ou na eterna morte".
No cristão fiel, a revelação do inferno suscita a profunda gratidão ao Deus que o remiu de tão tremenda
sorte merecida por nosso primeiro pai:
"Que diremos nós depois disto tudo ? Se Deus está por nós, quem será contra nós? Ele, que não poupou o
próprio Filho, mas o Entregou á morte por todos nós, como não nos terá dado com Ele todas as coisas?" (Rm 8,31).

PERGUNTAS
1) O réprobo no inferno pode arrepender-se?
2) Qeus aniquila os réprobos? Qual o significado da existència dos réprobos no conjunto das criaturas?
3) E grande o número dos que se perdem ?
4) O inferno poderia ser mera hipotese, que nunca se realizará ?
5) Como combinar o amor de Deus e a existència do inferno?
6) Quer fazer alguma reflexão pessoal sobre o inferno?

ESCOLA “MATER ECCLESIAE”


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO l8: O LIMBO DAS CRIANÇAS (I) NOÇÃO

Até aqui consideramos a sorte póstuma dos adultos; terão a bem-aventurança celeste (após o eventual
estágio do purgatório) ou a definitiva frustração no inferno. Pergunta-se, porém: que acontece com as crianças que
morrem antes do uso da razão ou sem a capacidade de efetuar conscientemente o bem e o mal? É a esta questão que
passamos a responder, considerando o que se chama "o limbo das crianças". Examinaremos a noção de limbo e o
pensamento dos teólogos contemporâneos com relação a tal assunto.

Lição 1: Noção de Limbo das crianças

Afim de expor claramente tal conceito, faz-se necessário recordar a doutrina do pecado original.

1.l. O pecado original


A fé ensina que os primeiros pais foram elevados ao estado de justiça original 22; gozavam, sim, da graça
santificante, que os elevava à filiação divina no plano sobrenatural 23; além do quê, possuíam os dons
preternaturais24 da imortalidade, da integridade (isenção de cobiça desregrada), da impassibilidade (isenção de
sofrimento) e da ciência moral infusa (conhecimento necessário para poder responder a um convite de Deus).
Ocorre, porém, que os primeiros pais perderam, por desobediência a Deus, esses dons gratuitos, que
dignificavam e harmonizavam a natureza humana. Esta feito é dito "pecado original originante". A conseqüência é
que só puderam gerar uma prole perfeita do ponto de vista anatômico ou fisiológico, mas desordenada em suas
tendências naturais e espontâneas; os apetites sensitivos não obedecem à razão, a tal ponto que o próprio Apóstolo
São Paulo verifica: "Não consigo entender o que faço, pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto" (Rm
7,15). Pois bem; a ausência dos dons originais e a conseqüente desordem existente em toda criança que nasce, é
chamada "pecado original originado". Este não implica em culpa da criança, mas é conseqüência da culpa dos
primeiros pais; a criança nasce destoante do modelo que estava traçado para todos os filhos de Adão.
Para regenerar tais crianças e dar-lhes a graça de Deus, que seus genitores não lhe puderam comunicar,
existe o sacramento do Batismo instituído por Cristo (cf. Jo 3,5; Mt 28,19s). Pelo Batismo a criança é habilitada a
gozar da bem-aventurança sobrenatural ou da visão de Deus face-a-face logo após a morte 25.
Que acontece, porém, ás crianças que morrem sem Batismo?... Crianças cujo número é, sem dúvida,
considerável.

1.2. Elabora-se a doutrina

Os Padres gregos antigos e S. Agostinho (+ 430) eram severos neste particular. S. Agostinho, tendo em
vista os palagianos (que eram excessivamente otimistas ao considerar as possibilidades da natureza humana), foi
fortemente movido por pessimismo: não podia conceber um estado intermediário entre a glória do céu e a
condenação do inferno; para ele e outros escritores cristãos da antiguidade, a natureza humana afetada pelo pecado
original só podia merecer o inferno26.
Tais concepções baseavam-se, em grande parte, numa imperfeita noção de pecado original; este era, de
certo modo, equiparado a um pecado consciente e voluntário.
Foi preciso que no século XI S. Anselmo de Cantuaria (1033-1100) elaborasse mais precisamente o
conceito de pecado original e de seus efeitos para que se pudesse esclarecer melhor a sorte das crianças mortas sem
Batismo. S. Anselmo acentuou que o pecado original não é um ato explícito e culposo da criança, mas consiste na
privação dos dons originais (atrás mencionados), privação que torna a criança destoante do ideal que Deus lhe
traçou.
Deste princípio os teólogos posteriores deduziram que o pecado original só pode ter conseqüências
privativas para as crianças que com ele morram. Com outras palavras: tais crianças não poderão gozar da visão de
Deus face-à-face, pois esta supõe a elevação da criatura acima de sim mesma ou a filiação sobrenatural; todavia,
não sofrerão pena póstuma.
Já, porém, que não merecem condenação alguma, deve haver um estado intermediário, em que as
criancinhas mortas sem Batismo gozem da felicidade que compete à natureza humana como tal (não elevada ao
plano sobrenatural). verão e amarão a Deus tanto quanto é possível à inteligência e à vontade humana como tais...
É a esse estado póstumo que, a partir do século XIII, se dá o nome de limbo, limbo das crianças (do latim
límbus - orla de uma veste, zona), pois a alguns teólogos medievais parecia estar situado à margem do inferno dos

22
Esta doutrina é de fé, embora hoje encontre certa contestação. O que não é de fé, é o número dos primeiros homens; a Bíblia fala de Adão e Eva para indicar
o homem e a mulher como tais, sem tencionar definir o número de indivíduos respectivos.
23
Pode-se dizer que toda criatura, por sua própria natureza, é filha de Deus, pois traz algum vestígio da perfeição do criador. Todavia no inicio da história os
primeiros pais foram elevados a um grau de comunhão com Deus, ou de filiação divina, dito sobrenatural, porque ultrapassava as exigências de toda natureza
criada.
24
Preternatural é o dom que prolonga a natureza além (praeter) das suas capacidades naturais, mas não a eleva acima dela mesma. Assim o não morrer busca
ou violentamente desenvolve as potencialidades da natureza na linha mesma a natureza.
25
Isto não significa que se tornam anjos ou anjinhos, como se costuma dizer. Não são anjinhos senão na medida em que reproduzem a inocência dos anjos.
Entre a natureza do ser humano e a do anjo, não há transição.
26
São palavras do S. Doutor: "O Senhor virá e fará dois grupos, um à direita e o outro á esquerda... Não há lugar intermediário onde possas colocar esses
pequeninos. Por isto quem não estiver á direita, sem dúvida estará á esquerda (cf. Mt 25,31-36)" (sermão 14,3). "Por conseguinte, quem não entrar no reino,
certamente será entregue ao fogo eterno" (De peccatorum mentis 1,28). S. Agostinho, porém, concedia ser a pena das crianças a mais branda de todas na outra
vida
réprobos27. - O limbo seria um estado definitivo, que não cederia, por ocasião do juízo final, à visão beatifica ou
celeste.
A doutrina do limbo assim concebida tornou-se assaz comum na teologia católica dos séculos posteriores.
Pergunta-se: como os teólogos, mais precisamente, entendem o limbo?
Prevalece o pensamento de S. Tomás de Aquino (+ 1274), segundo o qual o limbo,
de modo nenhum, implica em castigo ou alguma pena positiva: seria unicamente a privação da visão beatifica ou
celeste. Dever-se-ia mesmo dizer: a alma no limbo é feliz por possuir o fim último ou a bem-aventurança da qual é
capaz a natureza humana como tal: vê a Deus, não face-á-face, mas analogicamente ou segundo o espelho das
criaturas.
Tal visão de Deus é muito mais perfeita do que a que se possa obter na terra pela razão natural; é isenta
dos entraves que a corporeidade costuma suscitar ás atividades do espírito (sabemos que neste mundo não nos
podemos deter por muito tempo em contemplação, pois o cérebro e os órgãos corpóreos se cansam). Vendo a Deus
por suas faculdades naturais, as almas das criancinhas gozam de alegria e bem-aventurança profundas. Por isto as
almas no limbo devem ser tidas como bem-aventuradas. São palavras de S. Tomáz de Aquino: "Essas crianças
nunca foram proporcionadas à vida eterna; esta não lhes era devida nem em virtude dos princípios da natureza
nem em razão de algum ato pessoal que as proporcionasse a tão grande bem. Por isto não experimentarão aflição
por estarem privadas da visão de Deus (sobrenatural); ao contrário, regozijar-se-ão por tudo que de bens naturais
receberão da bondade divina” (In II Sententíarum, distinctio 334, quaestio 2, articulus 2, ad 2).
Completando o quadro de bem-aventurança do limbo, o teólogo jesuíta Leonardo Léssio (+ 1623), insigne
professor em Louvain (Bélgica), julga que as almas no limbo possuem elevado conhecimento das realidades
materiais e espirituais; assim iluminadas, louvam, amam e agradecem ao Criador por todo o sempre:
"Na renovação (final) dar-se-á aos pequeninos um conhecimento muito mais perfeito do que o que
possuímos nesta vida. E isto, para que aquela inumerável multidão de crianças não seja ociosa dentro dos seus
limites, nem pareça estar em vão no mundo, mas conhecendo a si e às outras criaturas, reconheçam claramente
Aquele que as criou e criou o mundo inteiro; conhecendo, hão de amá-lo, hão de louvá-lo e por toda a eternidade
lhe darão graças pelos benefícios recebidos" (De Perfectionibus Dívinis 1. XII, c. XXII n 0 144s. Parisis 1881p.
444).
No século XVII, o Cardeal Sfrondati chega a sustentar que a inocência pessoal, jamais perdida pelas
criancinhas do limbo, constitui, da parte de Deus, um benefício maior do que a graça sobrenatural em certos casos,
pois esta não raro é dada depois de cometido o pecado pessoal:
"O benefício da inocência pessoal e da isenção do pecado é tão grande que as criancinhas prefeririam ser
privadas da glória celeste a cometer um só pecado; e todo cristão deve pensar assim. Por conseguinte, não há
motivo de nos queixarmos ou afligirmos a respeito desses pequeninos, mas convém antes louvar e agradecer a
Deus a propósito dos mesmos" (Nodus praedestinationis dissolutus. Romae 1687, p. 120).
No dia da ressurreição universal, as almas do limbo serão de novo unidas aos seus corpos, que passarão a
participar da sorte daquelas. As crianças ressuscitadas serão mesmo configuradas a Cristo, na medida em que Jesus
se tornou, pela Encarnação, a Cabeça do gênero humano, o Homem-Modelo.
Como se pode perceber, tais sentenças explicativas do limbo são muito pessoais ou próprias dos
respectivos autores; carecem de sólido fundamento na Escritura e na Tradição da Igreja.
Examinemos agora o embasamento da doutrina do limbo nas fontes da fé católica.

Lição 2: Fundamentação Bíblica e Magistério

Como chegaram os teólogos a conceber a noção de limbo atrás proposta?


Deve-se dizer que ela carece de fundamento na Escritura Sagrada; deve-se, antes, a um raciocínio
elaborado pela teologia de séculos posteriores. Com efeito...

2.1. Na Escritura Sagrada

Não há referência ao limbo das crianças.

27
A linguagem teológica fala também do limbo dos Pais, estado em que os justos do Antigo Testamento aguardavam o redentor para poder entrar na bem-
aventurança celeste; é claro que este estado não implicava tormentos. Deixou de existir depois que Cristo abriu a todos os justos o ingresso no Reino de Deus.
E ao limbo dos Pais que o Credor se refere quando ensina que Jesus Cristo, tendo morrido na Cruz, desceu aos infernos (ou á mansão dos mortos), o Senhor
quis anunciarás almas justas que o esperavam, a boa noticia da Redenção.
Inferno (- região infra ou inferior), limbo (= orla, zona, limitrófe) são denominações baseadas na topografia que os antigos faziam do além. Julgavam que
acima da terra está o lugar dos bem-aventurados ou o céu. Abaixo de nós, ou seja, no centro da terra acha-se o lugar dos que não participam da visão beatifica:
e o inferno (« lugar inferior) em sentido amplo. Nesta região muitos distinguiam três compartimentos: o mais profundo seria o dos réprobos (inferno
estritamente dito); contíguo a este, haveria o limbo (orla) das crianças, que não teriam esperança de passar para a visão beatifica; por fim, acima da zona das
crianças, estaria o limpo (orla) dos Pais, que tinham esperança segura de entrar nos céus.
O Senhor fala em Lc 16,22 do seio de Abraão, que é, conforme o vocabulário judaico, o lugar onde as
almas dos justos do Antigo Testamento esperavam a vinda do Redentor (= limbo dos Pais). Tal lugar não tem que
ver com o limbo das crianças.
A respeito dos pequeninos mortos sem Batismo, o texto mais significativo é o de Jo 3,5; "Se alguém não
renascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus", diz o Senhor.
Excluídas do céu ou da visão beatífica, as criancinhas estarão por Jesus condenadas ao inferno? S.
Agostinho, em controvérsia com os pelagianos, julgava poder deduzir isto dos textos referentes ao juízo final (cf.
Mt. 24,36-25,46). Nestes Jesus só fala de prêmio e punição, sem menção de meio-termo. É, porém, evidente que
tais passagens visam unicamente aos adultos ou àqueles cujas obras podem ser julgadas; fica fora da perspectiva do
Evangelho a sorte das criancinhas que não têm o uso da razão.

2.2. Tradição e Magistério da Igreja

A Tradição cristã, baseando-se principalmente no conceito da justiça perfeitíssima de Deus, chegou aos
poucos a formular noção do limbo, como vimos atrás.
Nos séculos XVII/XVIII os jansenistas assemelharam as crianças mortas sem batismo aos réus de pecado
grave pessoal e afirmavam que a sorte póstuma de uns e outros seria o inferno. O Papa Pio VI em 1794 condenou
tal posição, tendo em vista os jansenistas do Sínodo de Pistoia; estes afirmavam que a doutrina do limbo era uma
reviviscência do pelagianismo28. Pelo que Pio VI declarou o seguinte:
"É falsa, temerária e injuriosa ás escolas católicas a doutrina que rejeita, como se fosse fábula pelagiana, o
lugar inferior (pelos fiéis geralmente chamado limbo das crianças), onde as almas dos que morrem apenas com o
pecado original são punidas pela pena do detrimento sem algum tormento do fogo; a rejeição provém de que tal
doutrina admite que, negada a pena do fogo, se deve afirmar um lugar e estado intermediário, isento de culpa e
pena, entre o reino de Deus e a condenação eterna, como imaginavam os pelagianos" (Constituição “Auctorem
Fidel”, Denzinger-Schònmetzer 2626 [1526]).
Para muitos intérpretes do texto, Pio VI na declaração acima intencionou confirmar a doutrina do limbo,
tachando-a de comum entre os fiéis e as escolas teológicas do seu tempo. Outros, porém, julgam que o Pontífice
apenas tinha em mira rejeitar a acusação jansenista de que o limbo é doutrina pelagiana (= herética).
Pouco antes do Concílio do Vaticano 11, doze bispos de países diversos pediram que o Concílio tratasse
da sorte das crianças mortas sem Batismo, esclarecendo a doutrina católica sobre o limbo. A Faculdade de Teologia
dos Carmelitas Descalços em Roma elaborou longa exposição sobre o assunto. Também a Comissão de Teologia
preparatória do Concílio redigiu um capítulo "De sorte infantium absque baptismo decedentium", colocado no
"Schema Constitutionis de deposito fidei pure custodiendo". Todavia o assunto não foi considerado pelos padres
conciliares, precisamente porque a S. Igreja não intenciona definir alguma proposição sobre o assunto. Fica a cargo
dos teólogos apresentar as sentenças que mais condigam com o conjunto das verdades da fé.
Na falta de definitiva intervenção da autoridade pontifícia ou do magistério extraordinário da Igreja, em
nossos dias vai aumentando o número de teólogos que propõem a revisão da doutrina do limbo.
Esta nunca foi definida pelo Magistério da Igreja; não é artigo de fé; é, portanto, livre o debate sobre o
assunto. No Módulo seguinte, proporemos os principais argumentos atualmente apresentados contra a existência do
limbo ou em favor da salvação das crianças na bem-aventurança celeste. (Deus não está ligado aos sacramentos; na
sua Misericórdia Infinita. Ele pode conceder às criancinhas a plena felicidade ou a visão face-à-face).

PERGUNTAS

1) Que é o "limbo dos pais"?


2) Que é o pecado original?
3) Como se entende o limbo das crianças?
4) É estado de castigo ou de felicidade?
5) Quais os fundamentos bíblicos da doutrina do limbo?
6) Que declarou o Papa Pio VI a respeito do limbo?
7) O limbo constitui artigo de fé?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

28
O pelagianismo (séc. V) admitia um estado intermediário entre o céu e o inferno para as crianças mortas sem batismo; seria um estado de felicidade que só
não teria o nome do "reino dos céus". Note-se, porém, que os pelagianos admitiam esse estado ou limbo apenas para guardar as aparências de admitir algo
como o pecado original; mas, por certo, não admitiam o pecado original. Ao contrário, a doutrina católica do limbo se baseia sobre a noção do pecado original.
MÓDULO 19: O LIMBO DAS CRIANÇAS (II) – DISCUSSÃO
Eis os principais argumentos apresentados contra a existência do limbo das crianças.

Lição 1: Felicidade natural?

Como dito no Módulo anterior, os teólogos que admitem o limbo, como S. Tomás de Aquino, afirmam
que este é um estado de felicidade natural; as almas aí gozam da visão de Deus correspondente às suas faculdades
naturais de percepção.
Objeta-se, porém : o conceito de felicidade natural destoa do conjunto das verdades da fé. Com efeito;
desde o início da história, Deus quis elevar o homem à ordem sobrenatural, concedendo-lhe dons que o tornavam
filho de Deus em sentido especial (ver Módulo anterior). O pecado dos primeiros pais deu origem à natureza
humana elevada (à ordem sobrenatural) e decaída. Após Jesus Cristo, existe a natureza humana elevada, decaída e
redimida. Por conseguinte, nunca o Senhor Deus tratou com a natureza humana como tal ou com o homem "vivente
racional apenas"; o plano de Deus sempre considerou o homem como um vivente racional enriquecido por dons
gratuitos sobrenaturais e chamado a viver desses dons sobrenaturais apesar dos abusos da liberdade humana 29. A
íntima comunhão com Deus concedida aos primeiros homens foi perdida pelo pecado inicial, mas foi (em parte, ao
menos) restaurada por Cristo, de modo que toda a história da salvação é a história do homem dotado da graça
sobrenatural. Neste contexto não se entende que haja no final da história um estado de felicidade meramente
natural; nunca a ordem meramente natural foi sujeito dessa história. Em conseqüência, parece despropositado
admitir a existência do limbo.

Lição 2: "Deus quer que todos os homens se salvem" (1Tm 2,4)

1. Comumente enumeram-se três meios de obter a salvação: o Batismo de água (sacramento), o de sangue
(martírio) e, na falta de um e outro, o Batismo de desejo, o qual pode consistir num simples ato interno do
indivíduo. Ora o desejo é impossível a uma criança ainda destituída do uso da razão; também o sacramento e o
martírio estão freqüentemente fora do seu alcance. Donde se segue logicamente que milhões de criancinhas deixam
de atingir a bem-aventurança celeste sem culpa própria, unicamente por circunstâncias independentes da sua
vontade, até mesmo - diga-se - por negligência dos pais e tutores 30.
2. Pergunta-se então: poder-se-á ainda afirmar a vontade salvífica universal de Deus, se não se admite que
Deus abra um pouco mais a via de salvação para as criancinhas, concedendo-lhes, além do Batismo de água e do de
sangue, um terceiro meio de purificação (correspondente ao Batismo de desejo dos adultos)?
A incompatibilidade já parecia flagrante ao teólogo alemão Henrique Klee (1800-1840) e a seus
discípulos. Por conseguinte, Klee e sua escola admitiam que, na hora da morte, Deus- concede às criancinhas que
não possam ser batizadas, uma iluminação repentina, que as habilita a desejar o sacramento do batismo;
ultrapassando as leis da natureza, o Senhor faz que possam praticar um ato plenamente consciente e livre de desejo
do batismo.
3. Pode-se notar que, no plano de Deus, a vontade de salvar todos os homens, inclusive as crianças, é
primacial. Diz o Senhor Jesus: "O vosso Pai, que está nos céus, não quer que se perca nem mesmo um destes
pequeninos" (Mt 18,14).
Em relação a essa vontade salvífica universal, a necessidade do Batismo vem a Ter importância
subordinada; é um meio para obter a salvação, mas não há de ser necessariamente o único meio. Deus deve ter
outros recursos - desconhecidos a nós, mas reais - para prover à salvação das crianças que morrem sem Batismo.
Entre estes outros meios, os teólogos assinalam:
a oração da Igreja por todas as necessidades da humanidade. Com efeito, a Igreja, na sua Liturgia,
principalmente na celebração da S. Eucaristia, apresenta a Deus preces pela salvação de todos os homens e pela
redenção do mundo inteiro. Ora uma tal universalidade de intenções não pode deixar de beneficiar também os
pequeninos que faleçam sem batismo. Por conseguinte, é plausível admitir que a intercessão, jamais interrompida,
da Igreja supra, em favor dessas criancinhas, os efeitos do Batismo, obtendo-lhes a visão de Deus face-a-face;
o oferecimento que os pais façam de seus filhos moribundos a Deus, na impossibilidade de os mandar
batizar. Desde que ocorra esta impossibilidade, recomenda-se aos genitores que ofereçam seus filhos a Deus com fé
e com desejo de os ver participar da visão de Deus face-à-face. De modo especial, pode-se dizer que o ato de
consagração da criança ao Senhor, feito pelos pais antes ou depois do nascimento da mesma, ou a bênção que a
mulher pede à Igreja antes de dar à luz, podem suprir os efeitos do batismo, caso o recém-nascido venha a falecer
antes de receber o sacramento (sem culpa dos pais);

29
Como se sabe, sobrenatural, em Teologia, não quer dizer extraordinário, milagroso... Significa, sim, um Dom que ultrapassa as exigências de qualquer
natureza criada ou de qualquer criatura; é a elevação do homem a tão intima comunhão com Deus que ele jamais a poderia pleitear.
30
Afirma-se geralmente que uma terça parte das criancinhas morre antes da idade da razão. Destas, quantas recebem o Batismo ou o martírio?
o sofrimento e a morte das criancinhas não batizadas são, em virtude da Paixão voluntária de Cristo,
um "quase-sacramento" de reconciliação, um certo Batismo de penitência, que supre o Batismo de água. Ora, sendo
este "quase-sacramento" a sorte comum dos mortais, segue-se que todas as crianças, mesmo impossibilitadas de
receber o batismo, são purificadas e admitidas à visão beatifica.

Lição 3: A Solidariedade com Cristo

O gênero humano é um todo cujos membros são solidários entre si, como ensinam as ciências históricas,
sociológicas, psicológicas, etc. De modo especial, os homens são solidários, no plano da fé, com dois Chefes ou
Cabeças: o primeiro e o segundo Adão (Jesus Cristo). É o que se deduz de Rm 5,12-21: por nossa união com o
primeiro Adão, prevaricador, fomos todos constituídos pecadores e réus de morte: e, por nossa comunhão com
Cristo, fomos dotados de nova santidade e vida. Note-se, porém, que "onde abundou o delito, aí superabundou a
graça" (v. 20); o primeiro Adão e nossa solidariedade com ele não eram senão tipo do segundo Adão e da nossa
comunhão com Ele (cf. Rm 5,18). O que quer dizer que a solidariedade com Cristo deve ser muito mais benéfica
para todos os homens do que maléfica foi a solidariedade com Adão.
Ora este princípio deve influir na nossa maneira de apreciar a sorte eterna das criancinhas que morram
sem Batismo. Se as julgarmos relegadas para o limbo, não deveremos confessar que a sua solidariedade com o
primeiro Adão foi muito mais íntima do que a sua comunhão com Cristo?
Ponderando estas verdades, pode-se corroborar a tese de que uma criança morta com o pecado original ou
sem o Batismo não fica isenta da influência de Cristo Redentor; Deus há de prover, por vias a nós ocultas, à
salvação dessa criança. Quem admitisse a perda de tal pequenino, colocaria maior ênfase na solidariedade com o
primeiro Adão do que na comunhão com o segundo.

Lição 4: O Princípio da Misericórdia

Pergunta-se: por que a doutrina do limbo se impôs na Idade Média e nos séculos subseqüentes?
Porque, apesar de suas lacunas, ela possui um autêntico valor. Com efeito, S. Agostinho no século V
admitia que as crianças mortas sem Batismo iam para o inferno; apenas, para valorizar a misericórdia divina,
julgava que no inferno padeciam "pena muito leve".
Os teólogos medievais quiseram isentar as crianças do castigo do inferno e atribuir-lhes certa bem-
aventurança; desta forma salvaguardariam melhor a justiça e a bondade de Deus. Foi assim que conceberam a
doutrina do limbo. Note-se que esta veio a ser o abrandamento de uma posição extremamente dura dos antigos
mestres. Ela se implantou por causa de sua índole benigna e misericordiosa. Em 1794, Pio VI intencionou defendê-
la contra um retorno, da parte dos jansenistas, ao rigor de S. Agostinho. Vê-se, pois, que a teologia católica, no
tocante ás crianças mortas sem Batismo, caminhou no sentido da misericórdia.
E, se a doutrina do limbo hoje ainda apresenta suas dificuldades, isto se deve ao fato de que não se
tiraram as últimas conclusões do princípio da misericórdia que a implantou. Os pensadores ficaram a meio-
caminho, procurando um estado intermediário entre o céu e o inferno ou, em outras palavras, procurando conciliar
certa felicidade póstuma com a privação da visão beatífica. Ora tal conciliação é impossível, porque a privação da
visão beatífica é o que constitui o inferno e porque tal conciliação não corresponde suficientemente ao desígnio
salvífico universal de Deus.
Tais dificuldades só poderão ser superadas, caso se admita até as últimas conseqüências o princípio da
misericórdia.
É também de observar que os teólogos que pleiteiam a salvação das crianças mortas sem batismo de
modo nenhum são movidos por sentimentalismo ou pela imagem de um Deus "Papai bonachão", cuja doce
misericórdia seria capaz de abonar qualquer atitude ou opção da criatura. Os referidos teólogos não pretendem
negar o inferno e a perdição de um adulto que morra em aversão contra Deus. O adulto, em condições normais, é
responsável por seus atos; Deus o respeita em suas opções, mesmo quando se afastam do Sumo Bem. O mesmo,
porém, não se dá no caso de uma criança; destituída do uso da razão, ela não é sujeito de responsabilidade e culpa;
por isto a ela o Supremo Juiz não pedirá contas do que tenha feito; é a solidariedade com Cristo Redentor que a
deve assinalar, mais do que a solidariedade com o primeiro Adão.
A nova sentença também não significa que se possa protelar sem grave motivo o Batismo das crianças. O
sacramento fica sendo a via normal instituída por Cristo para prover à salvação dos homens; afastar-se
voluntariamente dessa via é temerário, é tentar a Deus. Cumpram, pois, os genitores e pastores de almas as suas
partes, proporcionando sem demora o Batismo aos pequeninos atenderão assim a uma exortação do S. Ofício
datada de 18/02/1958: "As crianças hão de ser quanto antes batizadas" (Acta Apostolicae Sedis 50 [1958] p, l14).
Além disto, aos 20/10/1980 a Congregação para a Doutrina da Fé publicou uma Instrução sobre o
Batismo das crianças, reiterando a tradicional doutrina da Igreja.
Em conclusão, verificamos que
1) a doutrina do limbo das crianças não é de fé;
2) por conseguinte, é lícito admitir que Deus, por meios invisíveis a nós, aplique às criancinhas que
morrem sem Batismo, os méritos de Cristo..., Cristo com quem todas as criaturas são especialmente solidárias,
visto que todas foram criadas nele, por Ele e para Ele (Cl 1,16s);
3) a oração universal da Santa Mãe Igreja, solícita das intenções de toda a humanidade, há de ser valioso
recurso para obter a plena salvação das crianças que morrem sem Batismo;
4) a hipótese da repentina iluminação da mente das crianças antes de morrerem exige milagres contínuos
da parte de Deus - o que a torna pouco provável.

PERGUNTAS
1) Que é ordem natural? Que é ordem sobrenatural?
2) Que se entende por "felicidade natural"? Que é que se pode objetar ao conceito de limbo "felicidade
natural"?
3) Quais os meios de que Deus se valeria para salvar as crianças que morrem sem Batismo?
4) Explique em que consiste nossa solidariedade com Cristo e as suas incidências na questão do limbo.
5) O princípio da misericórdia implica num "Deus bonachão"? Como se aplica ao caso da salvação das
crianças mortas sem batismo?

ESCOLA “MATER ECCLESIAE”


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 20: A SALVAÇÃO FORA DA IGREJA VISÍVEL (I) - HISTÓRICO

Prosseguindo o estudo iniciado no Módulo anterior, consideraremos a salvação dos adultos que morram
sem Batismo.
Por "adultos" entender-se-ão os indivíduos que, tendo atingido a idade do discernimento, são plenamente
responsáveis por seus atos. Ficam, portanto, fora de consideração os mentalmente alienados. A respeito da salvação
destes, não se movem grandes dificuldades teóricas. Com efeito:
1) o adulto que, por deficiência qualquer, nunca tenha chegado a gozar de suas faculdades mentais, é
pelos teólogos simplesmente equiparado a uma criança irresponsável; Deus provê à sua salvação como à de um
pequenino;31 ver Módulo 19;
2) o adulto que, após certa idade, perca por completo o uso da razão, cai abaixo da linha da
responsabilidade moral; obtém a sorte eterna que mereça em virtude do seu último ato lúcido;
3) quanto àqueles que têm a responsabilidade diminuída pela moléstia, são por Deus julgados na medida,
variável, em que possam responder por cada um de seus atos. Somente o Senhor, que perscruta as consciências,
sabe discernir o valor moral dessas ações.
Voltemos, pois, nossa atenção para a sorte dos indivíduos responsáveis que faleçam sem o sacramento do
Batismo.

Lição 1: A Salvação pelo Cristo Manifestado

A via normal que encaminha o homem ao fim último que Deus lhe destinou, à bem-aventurança
sobrenatural, é o sacramento do Batismo (Batismo de água). A fidelidade à vida sacramental constitui a antecipação
da vida celeste.
Todavia, desde a antiguidade se reconhecem dois outros meios que podem eventualmente suprir o
sacramento do Batismo:
1) o martírio (Batismo de sangue), ou seja, a entrega da própria vida em testemunho da fé. Tal ato supõe,
no grau mais intenso de que seja capaz o indivíduo, amor a Deus e ódio ao pecado. É assim a mais perfeita
imitação do sacrifício de Cristo. Por isto purifica a alma, tornando-a apta a passar imediatamente à visão de Deus.
O martírio foi sempre considerado o ideal da perfeição, e o mártir foi a primeira figura de Santo venerada na
história da Igreja;

31
Os autores chegam a dizer que duas terças partes do gênero humano morrem nas condições de irresponsáveis morais. Esta elevada cifra que, à primeira
vista, causa espanto, deduz-se do seguinte modo: conforme os médicos, mais numerosos são os fetos que, por um motivo qualquer, morrem no seio materno do
que os que chegam a nascer; reduzindo as proporções, diga-se que a metade dos indivíduos humanos morre no selo materno. Dentre os que nascem,
considerem-se os que morrem antes da idade da razão e os que, mesmo chegando à idade de adultos, permanecem irresponsáveis, nunca atingindo o uso de
suas faculdades mentais. Conclui-se então que, de fato, perto dos dois terços dos indivíduos humanos morre sem poder optar consciente e livremente por sua
sorte eterna. A título de ilustração confirmativa, note-se que, na Suécia, a partir de lg46, o morticínio de crianças no seio materno é oficialmente reconhecido e
autorizado pelo Governo. Para isto, basta que a respectiva genitora apresente "válidos" motivos de ordem médica, eugênica, social ou humanitária; "presumida
debilidade de saúde por parte da gestante" já é razão suficiente para que o Estado autorize e patrocine o morticínio da prole por intervenção de um médico. Em
outros países do mundo existe legislação igualmente liberal, ensejando milhões de abortos por ano.
2) o desejo do Batismo (Batismo de desejo, ou em voto), válido caso seja impossível a recepção do
sacramento como tal.32
Houve dúvidas na tradição a respeito da suficiência do Batismo de desejo. Alguns autores, antigos e
medievais, não a queriam reconhecer, exigindo água ou sangue para a purificação da alma; julgavam que nem
mesmo os catecúmenos (pagãos que se preparavam para o Batismo) entravam no céu, caso morressem antes de
receber o sacramento.
Todavia, também em época antiga se faz ouvir a sentença mais larga:
Em 392, o Imperador Valentiniano 11 fora assassinado antes de ter podido receber o sacramento do
Batismo. Em sua oração fúnebre, o bispo S. Ambrósio (+ 397) assim se exprimia:
"Quanto a mim, perdi aquele que eu estava para gerar para o Evangelho. Ele, porém, não perdeu a graça
que pediu... Sei quanto estais aflitos por não ter ele recebido os mistérios do Batismo. Mas dizei-me; que temos em
nosso poder senão a vontade e o desejo? Ora, em tempos passados ele manifestou o desejo de ser iniciado antes de
entrar na Itália e declarou o seu intento de se fazer logo batizar por mim. Foi principalmente por isto que pensou
em chamar-me. Não possui ele então a graça que desejou, que pediu? Sem dúvida, pois que a pediu, recebeu-a'"
(De obítu Valentíníaní Consolatio 29, 51).
A sentença de S. Ambrósio, compartilhada por outros Padres, se implantou entre os teólogos medievais: a
boa vontade, ou o desejo do Batismo, é eficaz desde que não seja possível a recepção do sacramento. O conceito
mesmo de justiça divina parecia exigir tal proposição: o Senhor não pode abandonar uma alma que Lhe esteja
unida, nutrindo em si fé e amor a Deus, mas a quem não é dado cumprir tudo que em sua fidelidade ela desejaria. 33
Hoje em dia os teólogos não põem em dúvida a eficácia do Batismo de desejo.

Lição 2: A Salvação pelo Cristo Desconhecido

A doutrina de que o mero desejo do Batismo, em certas circunstâncias, tem valor salvífico, deixa margem
a uma questão ulterior, assaz complexa.
Com efeito, pergunta-se: Para a salvação, requer-se o desejo explícito do sacramento ou bastará talvez o
desejo implícito? Em outros termos: o desejo salvífico, para ser concebido, exigirá no indivíduo o conhecimento
prévio do Batismo, ou poder-se-á alargar o conceito de desejo do Batismo, de sorte a se dizer que um indivíduo que
nunca tenha ouvido falar do sacramento, mas viva conforme a sua consciência, possui o voto do Batismo, e, em
virtude deste, consegue a vida eterna?
Eis o delicado problema, cujo debate vai proposto a seguir:
Os teólogos, com poucas exceções, até a Idade Moderna, só quiseram reconhecer eficácia santificadora ao
voto explícito do Batismo. Esta posição implica que só podem alcançar salvação aqueles a quem chegue, por uma
via qualquer (ordinária ou extraordinária), a pregação do Evangelho. Ora, em terras pagãs tal exigência deixa de se
preencher no caso de muitos indivíduos, o que significa a sua exclusão da bem-aventurança celeste. Tal é a
doutrina, por exemplo, de Melquior Cano O.P. (t 1560) e Éstio (+1613).
Em particular quanto a S. Tomás, pode-se notar que, embora admitisse a eficácia do voto implícito do
Batismo (cf. S. Teol. III 69, 4 ad 2), era inclinado a crer que Deus não raro dispõe as circunstâncias de modo a
suscitar nos pagãos que vivam de boa fé ("homens que crescem nas florestas, em meio aos lobos", diz o Santo
Doutor), o voto explícito do Batismo; com este fim, comunica-lhes em dado momento da vida uma luz interior ou
faz chegar até eles um emissário que lhes dá a conhecer os rudimentos do Evangelho, modo que, em prêmio de sua
honestidade natural, possam desejar o Batismo como tal; dois casos pareciam típicos a S. Tomás: o do pagão
Cornélio, a quem Deus, por via extraordinária, mandou o Apóstolo Pedro, pregador do Evangelho e do Batismo; o
dos macedónios, que, em virtude de uma aparição a S. Paulo, foram visitados pelo missionário (cf. At 10;16,9) 34 -

32
Na Teologia recente, distingue-se entre desejo explícito e implícito, como se verá adiante. Nos primeiros séculos da Igreja, por desejo salvífico entendia-se o
desejo explícito, que supõe o conhecimento explícito de Cristo.
33
Para ilustrar o modo de pensar da Teologia medieval, vão aqui referidas as respostas que o Papa lnocêncio III (+ 1216) deu a dois bispos que o interrogaram
a respeito de acontecimentos contemporâneos. a) Um judeu, em artigo de morte, tendo em sua companhia judeus apenas, atirara-se à água, pronunciando as
palavras da fórmula batismal. Que dizer de tal "Batismo"? - perguntava o bispo de Metz. O Papa respondeu que não podia ser considerado válido, porquanto
Cristo, em Mt 28,19, supõe e exige que sujeito e ministro do Batismo sejam pessoas diversas uma da outra. Todavia, acrescentava que, "se tal homem tivesse
morrido logo a seguir (ao mergulho), teria passado sem demora para a pátria (eterna), em virtude, sim, da sua fé no sacramento, não, porém, por efeito do
sacramento da fé". b) A propósito de um sacerdote que acabara de morrer, verificara-se que não fora validamente batizado. Que pensar da sorte de tal alma?
interrogava o bispo de Cremona. Inocêncio III respondia: "Sem hesitar, asseveramos que, pelo fato de ter (tal sacerdote) perseverado na fé da Santa Madre
Igreja e na confissão do nome de Cristo, foi purificado do pecado original e possui a bem-aventurança da pátria celeste." E, em apoio da sentença, citava
testemunhos de S. Ambrósio e S. Agostinho. Estas duas declarações de Inocêncio III, que sancionam eloqüentemente a eficácia do Batismo de desejo, foram
inseridas na coleção de Leis ou Decretos de Gregário IX (+ 1241).
34
Assim em De Veritate 14,11 ad 1:
"Cabe à Divina Providência prover cada homem do que é necessário à salvação, contanto que este não lhe ponha obstáculo. Se, pois, o indivíduo de que
falamos, segue a indicação de sua razão natural na procura do bem e na fuga do mal, é preciso asseverar com segurança que Deus lhe revelará por uma
inspiração interna as verdades que é necessário crer, ou então que lhe mandará um pregador da fé, como enviou Pedro a Cornélio". Veja-se também In Rm
10,18. Em III Sent, dist. 25, q. 2, a. 2, sol. 2 ad 3, S. Tomás admite que, antes da vinda de Cristo, Deus enviou anjos a homens pagãos para lhes trazerem
revelações religiosas, em particular para lhes comunicarem o desígnio da Encarnação futura.
Alguns teólogos, anteriores e posteriores a S. Tomás, julgavam que o emissário extraordinário poderia ser mesmo
um anjo.
Esta opinião do Santo Doutor é particularmente interessante por mostrar quanto ainda na Alta Idade
Média (séc. XIII) se prezava o voto explícito do Batismo.
A partir do século XVI, porém, a descoberta do Novo Mundo e a verificação de que muitos pagãos vivem
e morrem sem jamais entrar em contato com um missionário, deram impulso a opiniões mais largas.
O Concílio de Trento (1545-1563) ainda não fazia distinção entre voto explícito e implícito do Batismo:
"A purificação, depois de promulgado o Evangelho, não se pode obter sem a água da regeneração ou o
desejo desta, como está escrito: 'Se alguém não renascer da água e do Espírito Santo, não poderá entrar no reino de
Deus' (Jo 3,5)" (D.S. no 1524 [796]).
Na teologia pós-tridentina, apesar de algumas vozes contrárias, foi-se reconhecendo cada vez mais o valor
salvífico do voto implícito, doutrina que hoje em dia não sofre contestação.

Lição 3: Como... pelo Cristo Desconhecido?

Admitida a eficácia do desejo implícito, fica-nos a pergunta: Em que circunstâncias ele de fato se
verifica? Não há dúvida, freqüentes (principalmente em terras pagãs) são os casos de pessoas que passam a vida
inteira sem ouvir, nem ler uma única palavra a respeito de Cristo e de sua Igreja. Outros há (mormente em terras
civilizadas) que ouvem ou lêem, sim, algo da mensagem do Evangelho, mas esta lhes é proposta imperfeitamente,
destituída dos chamados "critérios de credibilidade", ou seja, dos sinais que a fazem aparecer digna de fé; em
conseqüência, um exame atento da doutrina de Jesus não se lhes apresenta como dever de consciência; o Evangelho
não lhes suscita problema religioso, de sorte que quem o rejeita, pode mesmo, de boa fé, julgar estar repelindo o
erro.
É nesses casos, sem dúvida, que se verifica o "desejo implícito" como via de salvação eterna.
E de que modo se verifica?
No início de sua vida moral todo jovem é, em dada ocasião, 35 solicitado a optar por ou contra algum bem
humano honesto (obediência à autoridade, respeito aos objetos de outrem, passatempo lícito); vê-se, então, diante
do imperativo: “Faze o bem, evita o mal”.36 Ora, se o indivíduo escolhe o bem, mesmo sem pensar em Deus ou no
seu último fim, ele, em verdade, está optando pelo Bem absoluto, sem o qual nenhum bem criado subsiste, está
inconscientemente optando por Deus, Fim último da vida humana.
Com outras palavras: alguém que, embora desconheça o Evangelho, decide sinceramente praticar o bem
segundo os ditames que a sua consciência reta (de boa fé) lhe indica, está implicitamente seguindo a Deus; se
soubesse que o Batismo é via de salvação instituída por Deus, tal pessoa o pediria; por isto diz-se que tem o voto
implícito do Batismo.
Não há dúvida de que a primeira e tão frágil adesão a Deus pode, e deve, ser corroborada no decorrer dos
tempos. Para consegui-lo, importa que o jovem, nos seus atos subseqüentes, proceda segundo a consciência,
abraçando o que venha a conhecer como preceito do Bem e evitando o que perceba ser contrário a este. A
perseverança pode tornar-se ocasião para que Deus lhe revele um pouco mais da Verdade, aproximando-o
gradativamente da plena mensagem do Evangelho. Certo, porém, é que, pela fidelidade à consciência mantida
incólume até o fim da vida, ou restaurada pelo arrependimento sincero após as faltas eventuais, tal indivíduo
chegará à bem-aventurança sobrenatural, ao consórcio dos justos no céu, embora jamais tenha professado
explicitamente a fé católica. Ver a propósito: Concílio do Vaticano II, Constituição Lumen Gentium n o 16; Const.
Gaudium et Spes no 22.
Estas idéias levam à importante conclusão de que estão na via de salvação muitos e muitos homens que
em absoluto não têm ligação visível com a Igreja: pagãos, cidadãos que vivem sob propaganda e pressão
anticatólicas, concidadãos nossos aos quais a mensagem do Evangelho nunca tenha sido proposta de modo a
suscitar neles o "problema religioso" ou um "caso de consciência", pessoas simples que não falam de Deus, mas
que são incapazes de algum deslize moral; todos estes, caso estejam realmente de boa fé, procurando atender
fielmente aos ditames da consciência, fazem parte de uma só comunhão junto com aqueles que professam

35
Esta dada ocasião pode-se verificar mais cedo ou mais tarde (entre os 7 e l0 anos de idade), conforme o desenvolvimento físico da criança.
36
"Faze o bem; evita o mal." E na base deste princípio universal, que qualquer indivíduo ouve em sua consciência, que Deus se revela a todo homem. Para
uns, os mais destituídos de meios de erudição, a Revelação divina fica apenas nesse princípio e em poucas conclusões práticas, imediatas, deduzidas do
mesmo; esses poucos conhecimentos constituem então a via de salvação para tais indivíduos. Outros são levados, por um agente exterior ou por uma
iluminação interior mais intensa, a ver explicitamente que o dito princípio significa a existência de Deus, e de um Deus Providente. salvam-se então na medida
em que aderem a esta visão. Para os católicos, o princípio básico é, por especial disposição divina, desdobrado nos doze artigos da fé e nos preceitos da Moral
cristã. Os fiéis de Cristo, assim dotados de mais luz e responsabilidade, são também munidos de mais poderosos auxílios divinos para se salvarem pois
recebem os sacramentos da Igreja. A todos os homens, portanto, Deus se comunica, não sempre por mensageiros visíveis, sempre, porém, pela voz da
consciência. Por conseguinte, para encontrar a Deus, o indivíduo não é essencialmente dependente do seu âmbito de vida (âmbito de vida que muitas vezes não
lhe é dado escolher) ; a sua consciência, voz de Deus, lhe fala em toda parte... O Senhor nem sempre é manifesto fora, mas sempre dentro de nós!
explicitamente a religião católica; são membros invisíveis da "Igreja, fora da qual não há salvação"; são membros
da Igreja, sem que eles mesmos o saibam e sem que esta tão pouco o saiba. 37
É claro que esta afirmação não justifica a proposição: "Todas as religiões são boas; qualquer delas é capaz
de salvar o homem". Não há dúvida de que qualquer religião pode salvar o homem, caso este nela persevere,
julgando aderir à Verdade e cumprir assim um dever de consciência. Desde o momento, porém, em que lhe surjam
dúvidas sobre a autenticidade de suas crenças, tal indivíduo, em consciência, terá obrigação de inquirir a Verdade;
já não lhe bastará ser adepto de uma religião "qualquer". 38 Caso encontre a luz da mente, a consciência
conseqüentemente lhe ditará que a abrace, ou seja, que se converta ao Catolicismo; caso, porém, não chegue à
evidência apesar de sinceros esforços, alcançará a salvação eterna aderindo àquilo que julgue ser Verdade.
(Continua no próximo Módulo).

PERGUNTAS
1) Enumere e explique três tipos de Batismo que os antigos cristãos reconheciam.
2) Como os medievais concebiam a salvação daqueles que de boa fé vivessem fora da Igreja Católica?
3) Que é o desejo implícito de Batismo?
4) Todas as religiões são equivalentes entre si? Basta professar uma religião qualquer?
5) Por que existe em consciência a obrigação de procurar chegar à verdade religiosa?

“PARTICIPANDO DA CIDADANIA DO CÉU...”

"Os cristãos não diferem dos demais homens pela terra, pela língua, ou pelos costumes. Não habitam
cidades próprias, não se distinguem por idiomas estranhos, não levam vida extraordinária. Além disto, sua doutrina
não a encontraram em pensamento ou cogitação de homens desorientados... Mas, habitando, conforme a sorte de
cada um, cidades gregas e bárbaras, e acompanhando os usos locais em matéria de roupa, alimentação e costumes,
que manifestam a admirável natureza de sua vida, a qual todos reputam extraordinária.
Habitam suas pátrias; como estrangeiros, participam de tudo como cidadãos, mas tudo suportam como
estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Casam-se e procriam, mas
nunca lançam fora o que geraram. Têm a mesa em comum, não o leito. Existindo da carne, não vivem segundo a
carne. Na terra vivem, participando da cidadania do céu. Obedecem às leis, mas as ultrapassam em sua vida. Amam
a todos, sendo por todos perseguidos. Desconhecidos, são assim mesmo condenados. Mas quando entregues à
morte, são vivificados. Na pobreza, enriquecem a muitos; desprovidos de tudo, sobram-lhes os bens. São
desprezados, mas no meio das desonras sentem-se glorificados. Difamados, mas justos; ultrajados, mas benditos.
Injuriados, prestam honra. Fazendo o bem, são punidos como malfeitores; castigados, rejubilam-se como
revivificados. Os judeus hostilizam-nos como alienígenas, os gregos os perseguem, mas nenhum de seus inimigos
pode dizer a causa de seu ódio.
Para resumir numa palavra, o que é a alma no corpo, são os cristãos no mundo: como por todos os
membros do corpo está difundida a alma, assim os cristãos por todas as cidades do universo. Habita a alma no
corpo, mas não procede do corpo; assim os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível é
enclausurada num corpo visível; os cristãos conhecidos enquanto estão no mundo, têm uma religião que permanece
invisível. A carne odeia a alma sem ter recebido injúria, mas apenas porque não a deixa gozar os prazeres; aos
cristãos odeia o mundo sem ter sido injuriado por eles e só porque renunciam aos prazeres. A alma ama o corpo e
os membros que a odeiam; também os cristãos amam os que os odeiam.
A alma está encerrada no corpo, mas é ela que o sustenta. Os cristãos, por sua vez, estão encerrados no
mundo como num cárcere; mas são eles que o sustentam. A alma habita um tabernáculo mortal. os cristãos
peregrinam através de bens corruptíveis, na expectativa da celeste incorruptibilidade.
Maltratada quanto a alimentos e bebidas, a alma se aperfeiçoa; também os cristãos, afligidos por castigo,
cada dia mais aumentam em número. Deus colocou-os num posto tal que não lhes é lícito desertar.
Não foi, como já disse, invenção terrestre o que se lhes transmitiu; nem julgam Ter sob sua vigilante
guarda uma concepção mortal. Não lhes foi confiada a dispensação de mistérios humanos.

37
Vê-se, pois, que até hoje é válido o axioma dos primeiros Padres: "Fora da Igreja, não há salvação." Esta máxima, devidamente entendida, de modo nenhum
faz coincidir o número dos justos com o dos membros visíveis da Igreja Católica. Hoje em dia, com razão, tende-se a rejeitar a nomenclatura "Corpo" e
"Alma" da Igreja para designar respectivamente os membros visíveis e os membros invisíveis da mesma. Alma e corpo são inseparáveis, como que co-
extensivos entre si; por isto, quem pertence à Igreja, pertence a alma e corpo da Igreja, sendo a pertença, porém, em certos casos manifesta, em outros latente.
É de crer que, em muitos grupos religiosos, a massa do povo, pouco instruída, segue de boa fé seus chefes religiosos, e não se propõe o problema da
"verdadeira religião". Entre os estudiosos é mais fácil surgirem dúvidas sobre a autenticidade de sua seita, dúvidas que naturalmente tiram a boa fé; todavia,
Newmann podia afirmar que vivera muitos anos como erudito e teólogo anglicano, sem jamais ter concebido a mínima hesitação sobre a veracidade de sua
religião. Diz-se que a quase totalidade dos hereges e cismáticos que não se ocupam com a Igreja Católica, está de boa fé.
38
Sufocar as dúvidas religiosas é culpa do homem não somente contra Deus, mas também contra a própria natureza humana. Com efeito, a dignidade do
homem, feito para se orientar pela inteligência, pede que este procure a Verdade, não se deixe ficar numa filosofia inconsistente, amorfa, sustentada pela
moleza de caráter, o comodismo, a tendência ao gênero de vida mais fácil. Mais vale ser quente ou frio do que ser morno (cf. Ap 3,16).
Mas foi o próprio Deus invisível, verdadeiramente Senhor e Criador de tudo, que do alto dos céus
colocou entre os homens a Verdade, o Logos santo e incompreensível, e o inseriu firmemente nos seus corações.
Não, como pode alguém conjecturar, enviando aos homens algum ministro, anjo, ou príncipe, algum daqueles que
governam as coisas terrenas ou dos que têm a seu cargo o cuidado das coisas celestes, e sim mandando o próprio
Artífice e Autor de tudo, aquele por meio de quem criou as coisas." (Epístola a Diogneto, Séc, II).

ESCOLA "MATTER ECCLESIAE"

CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 21: A SALVAÇÃO FORA DA IGREJA VISÍVEL (II)


DOCUMENTOS ATUAIS
Após percorrer o histórico do problema, deter-nos-emos sobre documentos recentes da Igreja relativos à
salvação dos que estão fora da Igreja visível.

Lição 1: Uma Carta de1949

Após a segunda guerra mundial, nos Estados Unidos levantaram-se as vozes de pessoas que rejeitavam o
desejo implícito do Batismo como via de salvação. – Em conseqüência, a Congregação do Santo Ofício, órgão da
Igreja destinado à preservação das verdades da fé, enviou uma carta ao Arcebispo de Boston (U.S.A.), datada de 8
de agosto de 1949, em que afirmava:
"Entre os mandamentos de Cristo não é de pouca importância aquele que preceitua nos incorporemos pelo
Batismo ao Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja, e prestemos nossa adesão a Cristo e ao seu Vigário, (vigário)
pelo qual o próprio Cristo na terra governa, de modo visível, a Igreja.
Por conseguinte, não se salvará quem, consciente de que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo,
não obstante se recuse a se lhe submeter e denegue obediência ao Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra.
Todavia... para que alguém possa obter a salvação eterna, não se requer sempre que seja atualmente
incorporado à Igreja como membro, mas é necessário, ao menos, que lhe esteja unido por desejo e voto.
Este desejo, porém, não deve ser sempre explícito, como ele o é nos catecúmenos. Dado que o homem
esteja envolvido em ignorância invencível, Deus aceita igualmente o desejo implícito, o qual é assim chamado por
estar incluído naquelas boas disposições de alma que levam alguém a querer conformar sua vontade com a vontade
de Deus.
Estas verdades são claramente ensinadas na Carta Dogmática "A respeito do Corpo Místico de Jesus
Cristo", publicada pelo Sumo Pontífice o Papa Pio XII aos 29 de junho de 1943 (AA.S. XXXV 1943 193ss). Nesta
Carta Pio XII "tanto reprova aqueles que excluem da salvação eterna os que, por desejo implícito apenas, estão
unidos à Igreja, como rejeita aqueles que falsamente asseveram que os homens podem ser salvos tão bem numa
religião como em qualquer outra'" (D. S, nos 3866-3873).
Como se vê, este texto reafirma a doutrina do desejo implícito, que pode existir num não-católico, até
num ateu, que, de mente tranquila, siga os preceitos que a sua consciência cândida e sincera lhe aponta. Pode
acontecer que alguém seja ateu por só ter visto ou ouvido caricaturas de Deus e da religião; julga então que é seu
dever rejeitar a religião "ópio do povo" e a imagem de um Deus "tapa-buraco" ou "Papai bonachão"; fazendo isto,
porém, não está rejeitando o verdadeiro Deus (que tal indivíduo não conhece), mas, sem o saber, está seguindo as
normas de Deus, se faz corretamente tudo o que a sua consciência lhe aponta (se, por exemplo, observa a lei
natural, se não foge de sacrifícios para respeitar o que lhe parece ser a verdade ou o bem)...
Sem dúvida, é muito difícil a um observador definir quem está ou não está de boa fé no erro; as condições
subjetivas do foro da consciência escapam à criatura humana; só Deus é juiz das consciências. É o que nota o Papa
Pio XI na alocução Singulari Quadam:
"É preciso igualmente ter por certo que os que estão na ignorância da verdadeira religião, disto não têm
culpa aos olhos do Senhor caso essa ignorância seja invencível. Quem, porém, seria tão presunçoso que ousasse
indicar os limites de tal ignorância, dados os caracteres e as diversidades dos povos, das regiões, dos espíritos e de
inumeráveis outros fatores?"
Não há critério universal, aplicável aos homens de todos os tempos e todas as regiões, mas o julgamento
exato das consciências é obra de Deus só. De resto, já os teólogos anteriores a Pio Xl faziam a mesma advertência:
Suarez (+ 1617) e os autores de Salamanca (séc. XVI11), por exemplo, julgavam que, mesmo num país onde a fé
católica é professada sem oposição, pode haver indivíduos que estejam fora de toda influência do Catolicismo e,
por conseguinte, não concebam dúvida sobre a veracidade de sua seita.
Perspectivas muito confortadoras estas... Nem se poderia conceber que a verdade fosse outra. Com efeito,
se Cristo veio ao mundo para salvar e não para condenar (cf. Jo 3,17), a existência da Igreja visível de Cristo não
poderia ser motivo de condenação para a maioria do gênero humano, que não lhe pertence visivelmente, mas pode
pertencer-lhe invisivelmente.
A este propósito, convém citar as notícias segundo as quais se verifica uma diminuição relativa dos
católicos em algumas partes do mundo.
A triste impressão que, à primeira vista, causam esses dados, tem seu contrapeso na doutrina acima. Os
frutos da Redenção e da Cruz de Cristo se estendem muito além das cifras indicadas pelas estatísticas de progresso
do Catolicismo nos seus vinte séculos de pregação. Não se queiram avaliar unicamente pelos dados numéricos,
colhidos em observação humana, os efeitos do sacrifício de Cristo; a luz e a vida do Redentor penetraram
realmente, e estão latentes, mas eficazes, nas regiões e nas populações mesmas em que aos nossos olhos parece
haver trevas e morte espirituais. Contudo por vontade de Cristo, a fim de assegurar a Redenção dos povos em
termos copiosos e normais, não deixam os católicos de procurar todas as nações e todos os indivíduos, ensinando-
lhes o Evangelho e batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Cf. Mt 28,19s).

Lição 2: O Concílio do Vaticano II

O Concílio do Vaticano 11 (1962.1965) deu sua chancela e seus matizes à doutrina até aqui exposta.
Vejamo-lo por etapas:
O Concílio quis, antes do mais, evitar todo relativismo religioso.
Por isto afirmou que:

1. A Igreja é necessária à salvação


"Apoiado na S. Escritura e na Tradição, o Santo Sínodo ensina que esta Igreja peregrina é necessária para
a salvação. O único Mediador.., confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo como
por uma porta. Por isto, não podem salvar-se aqueles que, sabendo que a Igreja Católica foi fundada por Deus
através de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiseram nela entrar ou nela perseverar"
(Const. Lumen Gentium, no 14).
2. Somente na Igreja Católica existe a plenitude dos meios de salvação
"Somente através da Igreja Católica de Cristo, auxílio geral de salvação, pode ser atingida toda a
plenitude dos meios de salvação. Cremos também que o Senhor confiou todos os bens do Novo Testamento ao
único colégio apostólico, a cuja frente está Pedro, a fim de construir na terra um só Corpo de Cristo, ao qual é
necessário que se incorporem plenamente todos os que, de alguma forma, pertencem ao povo de Deus" (Decreto
Unitatis Redintegratio no 3).

3. Fora da Igreja Católica existem muitos elementos de salvação


"Alguns - e até muitos e exímios - elementos ou bens, com os quais a própria Igreja é edificada e
vivificada, podem existir fora do âmbito da Igreja Católica: a Palavra escrita de Deus, a vida da graça, a fé, a
esperança, a caridade e outros dons anteriores do Espírito Santo e elementos visíveis. Tudo isso, que provém de
Cristo e a Cristo conduz, pertence por direito à única Igreja de Cristo"(Decreto Unitatis Redintegratio n o 3).
Tais elementos de salvação esparsos em comunidades cristãs não-católicas fundamentam uma comunhão
imperfeita com a Igreja de Cristo e tendem por si a estabelecer a comunhão perfeita de todas as denominações
cristãs entre si.
4. A Igreja de Cristo, com todos os fatores de santificação, subsiste apenas na Igreja Católica confiada a
Pedro
"Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja Católica governada
pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, embora fora de sua estrutura visível se encontrem
vários elementos de santificação e verdade. Estes elementos, como dons peculiares da Igreja de Cristo, impelem à
unidade católica"(Const. Lumen Gentium no 8).
5. O desejo explícito de Batismo incorpora à Igreja
"Os catecúmenos que, movidos pelo Espírito Santo, querem por vontade explícita incorporar-se à Igreja,
por este mesmo desejo a ela se ligam. Com amor e desvelo a Mãe Igreja já os abraça como seus"(Const. Lumen
Gentium no 14).

6. O desejo implícito também é salvífico


"O Salvador quer que todos os homens se salvem (cf, l Tm 2,4). Aqueles, portanto, que sem culpa
ignoram o Evangelho de Cristo e a Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da
graça, cumprir por obras a sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a salvação
eterna. E a Divina Providência não nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, ainda não
chegaram ao conhecimento expresso de Deus e se esforçam, não sem a divina graça, por levar uma vida reta. Tudo
o que de bom e verdadeiro se encontra entre eles, a Igreja julga-o como uma preparação evangélica dada por
Aquele que ilumina todo homem para que enfim tenha a vida"(Const. Lumen Gentíum n o 16).
O texto é assaz enfático ao dizer que as pessoas de boa vontade que ignoram o Evangelho são, não
obstante, movidas pela graça de Deus para praticar o bem e seguir a consciência sincera. Ninguém se salva senão
por Cristo e por sua obra redentora.
Notemos também que o Concílio considera com olhos otimistas os elementos positivos existentes fora do
Catolicismo: são uma preparação para o Evangelho, regida pela Providência Divina, que quer a salvação de todos
os homens.
Tal é a doutrina da Igreja sobre a salvação dos que não lhe pertencem visivelmente. Vê-se que suscita
otimismo e confiança, sem ceder ao relativismo e indiferentismo religioso.

PERGUNTAS
1) A Igreja Católica confiada a Pedro é uma entre outras sociedades religiosas, todas equivalentes entre
si?
2) Como se relaciona a Igreja Católica com as denominações cristãs não católicas?
3) Como a Igreja vê os elementos religiosos existentes fora do Catolicismo?
4) Pode alguém salvar-se fora da Igreja visível, independentemente da mediação de Jesus Cristo?
5) Você saberia a diferença existente entre "Estar de boa fé..."e "professar a verdadeira fé"?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 22: O NÚMERO DOS QUE SE SALVAM

Abordaremos neste Módulo a questão que já os Apóstolos propuseram a Jesus: "Senhor, serão poucos os
que se salvam?" (Lc 12,23). Todavia só teremos em vista os adultos responsáveis, católicos e não católicos. A
salvação das criancinhas falecidas sem chegar ao uso da razão já foi estudada nos Módulos 18 e 19 deste Curso.
A questão do número dos que se salvam, recebeu soluções múltiplas na Tradição cristã. Pode-se notar,
porém, entre os teólogos uma tendência a admitir vias cada vez mais largas de acesso dos homens a Deus.

Lição 1: A Sentença Rigorista

Os escritores antigos e medievais julgavam (poder-se-ia dizer: unanimemente) que a maioria os homens
não consegue a salvação eterna. Dizeres semelhantes aos de São João Crisóstomo (Í 407), aqui transcritos, não são
raros na antiga literatura cristã:
"Quantos pensais serão salvos em nossa cidade? O que estou para afirmar é doloroso,- não obstante, hei
de o dizer. Entre tantos milhares de pessoas, não há cem que chegarão á salvação; e mesmo desta cifra não tenho
certeza, tal é a perversida e entre os jovens, a negligência entre os anciãos". 39
Não há dúvida, os Padres geralmente reconheciam, com S. Agostinho, que o número absoluto dos que se
salvam é muito elevado;40 julgavam-no, porém, de pouca monta em comparação da massa imensa dos réprobos.
E quais as razões em que se baseava essa sentença estreita?
O argumento da malícia humana, apontado por S. João Crisóstomo, parecia corroborado por alguns textos
da Sagrada Escritura, que passamos a analisar:

1.1. Mt 22,14

Este versículo costuma ser traduzido: "Muitos são chamados, poucos são escolhidos". Os autores antigos
e vários dos modernos interpretam este texto no sentido de que muitos são os homens chamados à fé, mas poucos
os que, de fato, entram na vida eterna.
A exegese do texto estaria correta?
Parece que não; a interpretação não condiz com o contexto do Evangelho. Com efeito, em Mt 22,1-13
Jesus propõe a seguinte parábola: Um rei, tendo preparado um banquete nupcial, à hora oportuna mandou chamar
os respectivos convidados; estes, porém, se recusaram a comparecer, alegando motivos diversos; então o soberano
resolveu puni-los e, afim de realizar o banquete, enviou seus servos a recolher nas ruas e praças todos os
indivíduos, bons e maus, que encontrassem; encheu-se assim a sala do festim. Quando, porém, estavam a comer, o
rei, passando entre os convivas, viu alguém que não tinha veste nupcial. Ofendido, deu ordem para que lhe atassem
39
In Act h. 24. S. João Crisóstomo falava aos fiéis de Antioquia (Ásia Menor).
40
"Pauci in comparatione pereuntium, in suo vero numero multi" (S. Agostinho, De correptíone et gratia 10,28; cf. Contra Cresconium 3,66,75). A S.
Escritura fala, sim, de muitos (Mt 8,11) ou de uma multidão inumerável (Ap 7,9; cf. 19,1.6) dos que se salvam.
pés e mãos e o atirassem às trevas fora da sala. Dito isto, Jesus acrescenta no v. 14 (conforme a tradução habituali:
"Com efeito, muitos são chamados, mas poucos escolhidos". Ora notemos a falta de nexo entre a história anterior e
a interpretação que se tem dado à conclusão (v. 14): a parábola, em lo-13, leva justamente a entender que muitos
são os que gozam para sempre da felicidade celeste (permanecem na sala do banquete), ao passo que poucos
(representados por um só) dela são excluídos. Por isto propõe-se outra e melhor interpretação:
As línguas semitas, pobres como eram, não possuíam as partículas necessárias para significar
explicitamente o comparativo e o superlativo do adjetivo; contentavam-se, pois, com as expressões de grau normal,
devendo o sentido autêntico das mesmas ser deduzido das exigências do contexto. 41 Ora, admite-se que em Mt
22,14 há uma dessas formas de comparação dissimulada; "muitos" e "poucos", portanto, não designam duas
quantidades consideradas em si mesmas, mas dois grupos, que, confrontados um com o outro, deveriam ser ditos "a
parte maior" e "a parte menor". Por conseguinte, a tradução fiel do texto seria: "Em maior número são os
chamados, em menor número os escolhidos".
E quem são esses "chamados" e "escolhidos" que Jesus compara entre si?
Conforme o contexto, os "chamados" são os que receberam a vocação à fé cristã e vivem na Igreja (ceia
da vida eterna antecipada, onde se espera a inspeção ou o julgamento do Rei); "escolhidos" são os que
permanecerão definitivamente no Reino de Deus, depois que o Senhor Jesus Cristo tiver procedido ao juízo
universal, no fim dos tempos; por ocasião deste, uma parte dos cristãos impenitentes serão separados; em
conseqüência, o número dos que gozarão da felicidade celeste ("escolhidos") se tornará inferior ao dos que neste
mundo terão sido "chamados" à fé. É, portanto, bem coerente com a trama da parábola dizer: "Mais numerosos são
os chamados (à fé e à Igreja), menos numerosos os escolhidos (os recebidos na bem-aventurança celestial)". A
diferença, porém, entre o número dos primeiros e o dos segundos pode ser de pouca ou de grande monta; Jesus não
o diz; em todo caso, na parábola é simbolizada pelo número "um"...
Assim é que se chega à conclusão de que o famoso texto de Mt 22,14 nada diz sobre o número dos que se
perdem; significa, sim, que não se salvam todos os que recebem os pré-requisitos para tal; poderão constituir um
grupo maior ou menor do que o dos bem-aventurados. Todavia, quais os termos exatos da diferença, o Senhor não
o quis revelar em Mt 22, como, aliás, também não o quis quando diretamente interrogado sobre o assunto em Lc
13,23.

1.2. Lc 13,23s

“Alguém diz a Jesus: Senhor, serão poucos os que se salvam ? E Ele lhes responde: Esforçai-vos por
entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que haverá muitos que procurarão entrar por ela e não o conseguirão".
Em Lc 13,24 Jesus, sem dúvida, fala de muitos que não poderão entrar pela porta estreita. Haverá nestes
dizeres uma insinuação da tese rigorista?
O interlocutor do Mestre propusera-lhe uma questão muito habitual entre os judeus; cf. 4 Esdr 8,1; 9,15s.
O Senhor, porém, recusa-se a dar uma resposta direta, a qual seria pouco útil aos ouvintes; interessa-Lhe, antes,
desfazer a falsa concepção do israelita, que julgava assegurada a salvação dos filhos de Abraão, ao passo que a
grande massa dos gentios se perderia. 42 É em vista disto que evoca a imagem da porta estreita, pela qual muitos
não conseguirão passar; entre estes Jesus insinua que bem poderão estar os seus ouvíntes (judeus que se julgavam
garantidos), caso não se mostrem fiéis à Palavra de Deus. A resposta do Senhor é, pois, uma exortação ao zelo dos
interlocutores, não a solução do problema proposto.
Eis, porém, que o texto de Lc13,23s tem um paralelo mais explícito em

1.3. Mt 7,13s

"Entrai pela porta estreita; pois larga é a porta e espaçosa é a via que leva à perdição, e numerosos são os
que por aí passam. Com efeito, estreita é a porta e restrita a via que leva à vida, e poucos são os que a encontram".
Nesta passagem Jesus verifica um fato inegável: poucos são os que se impõem uma séria disciplina moral
e religiosa (os que neste mundo enveredam por uma senda estreita); ao contrário, numerosos são os que escolhem o
prazer desenfreado, ou seja, a estrada larga; enquanto os primeiros, em cifra relativamente exígua, se acham na via
para a salvação, a multidão destes caminha para a perdição. É tudo que Jesus afirma... Note-se, porém, que via ou
estrada ainda não é termo; com o auxílio da graça, o viandante errado pode mudar de senda antes da chegada; não é
mesmo lícito abstrair da Misericórdia de Deus, quando se considera o homem peregrino nesta Terra; muitos, depois
de ter começado pela via do erro, nela não perseveram; as tribulações têm justamente por papel mostrar ao pecador

41
Eis alguns exemplos de comparativos semíticos dissimulados: lCor 9,43.45.47; Mt 5,29s; 18,6s: Lc17,2; 18,15. Superlativos dissimulados; Mt 22,36.38;
Lc1,42. E principalmente no texto grego que se percebe o semitismo.
42
Eis dois testemunhos de origem judaica: "O Altíssimo fez este mundo em vista de muitos; o futuro, porém, em vista de poucos... Na verdade, muitos foram
criados, mas poucos serão salvos" (4 Esdr 8,1-3). "Mais numerosos são os que perecem do que os que se salvam, como mais abundante é a onda do que a gota"
(ibid. 9,15).
o caráter ilusório dos bens terrenos e incitá-los a mudar de caminho. Retenha-se, pois, que em Mt 7,13 Jesus, sem
tencionar definir o número dos futuros bem-aventurados, exorta os ouvintes a que, em boa hora, optem pela vereda
certa e segura da salvação.
Eis os principais argumentos bíblicos geralmente aduzidos para comprovar a exigüidade do número de
bem-aventurados; são precários, insuficientes.
Quanto ao argumento de Tradição, notemos que não constitui uma proposição de fé. Afirmando o
pequeno número dos que se salvam, os antigos e medievais tinham em vista principalmente despertar nos fiéis
maior zelo pela salvação definitiva.

Lição 2: A Tese mais Benigna

Até o século XVIII prevaleceu fortemente a sentença rigorista. No século XVIII, porém, verifica-se, por
parte de alguns autores, nova atitude na maneira de considerar o problema.

2,1. Por que a mudança?

Já no séc. XVI os novos panoramas geográficos (as descobertas de novas terras) haviam suscitado
igualmente novos panoramas teológicos. Tomava-se conhecimento da existência de milhares e milhares de homens
que viviam e morriam na completa ignorância do Cristianismo; dever-se-ia admitir, conforme a tendência antiga,
que se perdiam no inferno? Quão grande então seria o número de réprobos e quão frustrado pareceria o sacrifício
do Filho de Deus!
Este primeiro abalo da opinião tradicional foi acentuado pela crise jansenista (séc. XVII/XVIII. Esta
criou, entre os próprios católicos, uma mentalidade excessivamente rigorista, que evidentemente já não
corresponde ao espírito do Evangelho e que, sem demora, pedia reação decidida.
Tais são os fatores que no séc. XVIII comunicaram a alguns teólogos a tendência a reformar posições de
certo rigor assumidas pelos antigos e medievais.

2.2. As sentenças inovadoras

No tocante ao número dos bem-aventurados, uma das primeiras vozes inovadoras foi a do Ven. José de S.
Bento O.S. B. (Í 1723), religioso converso espanhol; como fruto de revelações particulares de que fora agraciado,
escreveu alguns opúsculos, onde ensinava que "o número dos homens que se salvam é muito grande, incalculável;
ultrapassa o dos réprobos, graças à potência, à sabedoria e à benevolência infinitas de Cristo, o qual certamente não
sofreu e derramou o seu sangue em vão, nem em vão ressuscitou e quebrantou o insolente domínio de Satanás
sobre a espécie humana". Quatorze teólogos foram incumbidos de examinar os escritos do dito irmão; outros
doutores em Teologia os inspecionaram igualmente; nenhum, porém, os condenou; vários chegaram mesmo a
aprová-los!
Todavia, a tese ainda devia suscitar reação severa. O Pe. Giuseppe Gravina S.J., escrevendo em 1762
(Palermo), defendia, como opinião verossímil, que o número dos bem-aventurados, em comparação com o dos
réprobos, é muito mais elevado. A tese, porém, foi condenada pelo S. Ofício aos 22 de maio de 1772 43. Para
impugnar o Pe. Gravina, levantaram-se diversos autores, entre os quais o camaldulense A. Gardini, que redigiu a
obra de título significativo: "Dissertatio theologica adversus novitates P.J.M. Gravinae S.J. caeli ianuas reserantis
non solum haereticis et schismaticis, verum etiam hebraeis, mahommedanis etc." 44 Veneza 1767. Pouco depois de
Gravina, Marmontel, na França, defendia a mesma tese no livro "Bélisaire" (1767); o arcebispo de Paris, porém,
Cristóvão de Beaumond, seguindo o parecer dos teólogos da Sorbonne, o condenou em 1768.
Nos decênios subseqüentes, e por todo o século XIX, não faltaram autores que impugnassem
energicamente a opinião larga de Gravina, procurando dar ainda mais vigor à tese antiga. Doutro lado, porém,
.foram-se multiplicando os adeptos da nova sentença, sem que a Igreja cogite em censurá-los. É o que faz que
atualmente em Teologia se considere ponto de livre debate a questão do número dos bem-aventurados.

2.3. Os Argumentos em prol da Sentença Benigna

1) A razão mais suasiva é a seguinte: A honra de Deus, o sucesso da Redenção, a glória de Cristo, além
disto, a bondade e a misericórdia de Deus, pedem que a mor parte do gênero humano não sofra a condenação

43
Há quem julgue que a condenação pronunciada pela Igreja sobre Gravina visava apenas a um aspecto de sua tese. Já que o autor ensinara: "E verossímil que
os escolhidos, em comparação dos réprobos, são muito mais numerosos", o Santo Oficio teria proscrito apenas o advérbio muito, não o predicado mais
numerosos.
44
Dissertação teológica contra as novidades do Pe. J. M. Gravina S. J., que abre as portas do céu não somente aos hereges e cismáticos, mas também aos
hebreus, aos maometanos, etc.
eterna. Haveria proporção entre o sacrifício do Filho de Deus, preço da salvação humana, e a vitória definitiva do
mal sobre o bem na maioria dos indivíduos? Seria este resultado compatível com a Sabedoria e a Majestade de
Deus?45
O argumento não deixa de causar impressão. Todavia, não é dirimente. Com efeito, aquilo que parece
oportuno e sábio aos olhos do homem, nem sempre é realmente tal, portanto nem sempre é norma para
reconstituirmos o plano de Deus; o homem está longe de poder aquilatar plenamente os valores que estão em jogo
na história; somente a Revelação lhe pode proporcionar um juízo cabal a este respeito; onde ela silencia, a
sabedoria humana é incapaz de suprir a lacuna. Há mesmo teólogos que, pensando como Monsabré no texto abaixo,
denegam força conclusiva à razão de conveniência enunciada:
"Uma só alma que se salve, é uma obra-prima para a qual concorrem todas as perfeições divinas, em
harmonia com a liberdade humana; uma só criatura glorificada e admitida à visão beatífica é uma maravilha de
beleza, mais surpreendente e mais encantadora do que todas as maravilhas da terra e do céu reunidas. Aqui não se
trata de contar, mas de pesar: non numerando, sed ponderando. Um só eleito pesa mais na balança da glória divina
do que o inferno todo inteiro" (Carême de 1889. Cll Conferénce).
2.) À razão de conveniência acrescentam um argumento de analogia: os teólogos julgam que a maioria
dos anjos se salvou; por que então não afirmar que o mesmo se verificará com o gênero humano?
A ilação peca pelo vício, já denunciado, de querer incutir leis ao soberano proceder de Deus,
independentemente de qualquer revelação do próprio Senhor sobre o assunto. Ademais, a analogia se apóia numa
premissa conjetural, pois a Revelação não se manifesta sobre o número de anjos fiéis; serão realmente a maioria?

Lição 3: Conclusão

Deus, em Sua Sabedoria, houve por bem não remover a ignorância do homem sobre o assunto. E o
silêncio no caso é, para nós, autêntico benefício. A segurança, dada por Deus, de que o maior número se salva, teria
sido, talvez, um fomento da lei do menor esforço, uma ocasião de langor espiritual. Quantos repousariam sobre
essa quase certeza da salvação como que sobre um travesseiro mole..., o que seria nocivo tanto ao seu progresso
espiritual quanto à santidade da Igreja e à glória de Deus! Doutro lado, a revelação de que a maioria se perde
(suposto que tal fosse a realidade) acarretaria desespero e revolta; seria igualmente um freio ao zelo pela salvação.
Em vista destas possíveis conseqüências, os documentos da fé conservaram, sobre o tema que nos
interessa, o silêncio salutar a que o Divino Mestre mesmo recorreu quando interrogado sobre o assunto: saber o
número "misterioso" não é de vantagem ao homem; todavia, ser-lhe-á sempre útil aplicar-se zelosamente ao labor
espiritual; donde a exortação do Senhor a seguirem todos, desde o início de sua conversão, a via árdua da
disciplina (cf. Lc 13,23s).

PERGUNTAS
1) Que significa "Muitos são chamados, poucos escolhidos"?
2) A "porta estreita da salvação" quer dizer que poucos se salvarão?
3) E o caminho estreito.., que significa?
4) Por que a opinião dos antigos mudou com referência ao número dos que se salvam?
5) Quais os argumentos em prol da sentença benigna?
6) Que valor têm?
7) Que conclusão você tira do debate?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"

CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 23: A SEGUNDA VINDA DE CRISTO (PARUSIA) (I)


ESCRITURA E TRADIÇÃO

45
O Pe. Faber propõe muito bem o argumento no seguinte texto: "A transcendente magnificência de Deus nos levaria a supor de antemão que o número dos
eleitos, que constitui uma das maiores glórias da criação, deve estar bem acima de tudo que possamos esperar; será que a experiência mesma de todos os
tempos não justifica esta previsão? Será que Deus não deu sempre mais do que promete, ultrapassando mesmo as nossas esperanças?... Será admissível que os
efluxos de Sua bondade se detenham ou podemos nós supor que Ele mude repentinamente, e isto ao se tratar não só da nossa felicidade eterna, mas da honra
de Seu Filho bem-amado e dos interesses de Sua própria glória? Esta última hipótese é tão contrária ao que observamos que, para admiti-la, seria preciso fosse
revelada" (Traduzido do texto francês de "Le Créateur et la créature" III 2.)
Após o estudo da Escatologia Individual ou dos últimos acontecimentos que dizem
respeito ao indivíduo como tal, iniciamos a abordagem da Escatologia Universal, Comunitária ou Cósmica. Com
outras palavras, estudaremos a consumação do universo, que compreende quatro temas: a segunda vinda de Cristo
(ou parusia), a ressurreição da carne, o juízo universal, a renovação da natureza irracional.
A consideração da parusia dar-se-á por etapas: 1) fundamentos e significado deste evento; 2) sinais
precursores e concomitantes da segunda vinda; 3) época ou data respectiva.

Lição 1: Fundamentos bíblicos

A fé cristã ensina que o mundo presente caminha para o seu ocaso; como a história
do gênero humano na Terra teve seu princípio, assim conhecerá sua consumação 46. E acrescenta que o Consumador
será aquele mesmo Senhor que, por sua primeira intervenção visível neste mundo, ocasionou a "plenitude dos
tempos" (cf. Gl 4,4; Ef 1, l0; Mc 1,15): Jesus Cristo verá segunda vez e rematará a obra iniciada em sua vinda
anterior, pondo um fecho definitivo a toda a história.
Vejamos, pois, em que termos esta expectativa se acha documentada na Bíblia. A volta gloriosa de Cristo
é afirmada na Sagrada Escritura em sentenças muito claras; constitui mesmo a mensagem que norteia a atitude dos
cristãos neste mundo. E, sim, a palavra de orientação que sela a vida terrestre de Cristo e abre a existência dos
discípulos peregrinos na Terra:
"Tendo eles (os Apóstolos) os olhos fitos no céu enquanto se ia (o Senhor), eis que lhes apareceram dois
varões vestidos de branco, os quais lhes disseram: Homens da Galléia, por que vos detendes a olhar para o céu ?
Esse Jesus que vos deixou, arrebatado aos céus, voltará da mesma forma como O vistes subir aos céus" (At 1, l0s).
A mensagem dos dois anjos não era nova para os Apóstolos; o próprio Senhor a antecipara:
"O Filho do homem há de vir na glória de Seu Pai, com os anjos, e então retribuirá a cada um conforme
as suas obras" (Mt 16,27).
"Quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os anjos com Ele, sentar-se-á sobre o Seu trono de
glória, e todas as nações serão reunidas perante Ele" (Mt 25, 31s). Os escritores do Novo Testamento, ao
anunciarem a segunda vinda de Cristo, empregaram termos que, na sua época, tinham significado muito rico:

a) Parusia, Epifania, Apocalipse (vocábulos derivados do mundo grego)

O Evangelho refere:
"Os discípulos, à parte, aproximaram-se de Jesus e perguntaram-Lhe:”... Qual o sinal da Tua vinda (tes
ses parousias) e do fim do mundo ?" (Mt 24,3). Em sua resposta, dizia Jesus:
"Como o relâmpago procede do oriente e atinge até o Ocidente, assim será a vinda (he parousía) do Filho
do homem". (Mt 24, 27; o mesmo termo reaparece em Mt24, 37. 39). "Parousia". O vocábulo é repetido, com o
mesmo significado, por S. Paulo (1Cor 15,23; 1Ts 2,19; 3,13; 4,15; 5,23; 2Ts 2,1.85), S. Tiago (5,7s), S. Pedro
(2Pd 1,16; 3,4,12), S. João (1 Jo 2,28). Tornou-se, pois, caro aos escritores cristãos, e não somente aos antigos, mas
também aos modernos.
Isto se explica pelo fato de que "parousia" tinha sentido técnico no grego de outrora. Com efeito, na
linguagem administrativa do Império greco-romano, designava a visita de personagens eminentes, geralmente de
um rei ou imperador, a determinada região. Por ocasião de sua "parousia", o soberano recebia homenagens de Deus
ou Salvador, assim como presentes avultados; o dia da "parousia" por vezes era considerado dia sagrado e dava
início a nova era da história local 47. Da linguagem política o termo foi introduzido no vocabulário religioso,
46
Já no plano natural, a ciência ensina que a existência da Terra, com suas condições propicias à vida, não se protrairá indefinidamente, mas terá (talvez, sim,
dentro de prazo muito longo) o seu fim. A lei da degradação da energia, ou entropia, o implica: toda transformação de energia acarreta uma perda irreparável
da mesma, o que faz com que o movimento perpétuo seja impossível; qualquer fenômeno físico, qualquer reação química, qualquer conversão de calor em
movimento ou vice-versa importam um depauperamento definitivo o capital de energia do universo. Por conseguinte, a Terra e o universo tendem a um estado
de equilíbrio geral, temperatura uniforme e repouso, em que a vida em absoluto não poderá subsistir. A confirmação desta previsão se tem nas estrelas ditas
"anãs brancas"; acham-se em proximidade de extinção, sendo a sua temperatura interna pouco mais elevada que a da sua superfície. Abstração feita de teorias
científicas, interessa-nos aqui a verificação de que a história deste mundo, já por seus fatores naturais, tende para um fim. Não tratamos da hipótese de ser a
matéria do nosso globo reconstituída por Deus de sorte a poder abrigar novo gênero humano, nem da possibilidade de existirem, no presente ou no futuro,
outros mundos habitados.
47
Assim, em Tegéia encontrou-se uma inscrição datada do ano 69 a partir da primeira "parousia" do Deus (lmperador) Adriano (117-38) na Grécia: "...no ano
69 da primeira parousia do deus Adriano na Grécia". Um papiro do séc, III a. C. menciona uma contribuição pública destinada a se oferecer ao rei uma coroa
de ouro por ocasião de sua "parousia". Este documento concorre para ilustrar o pensamento de S. Paulo. Não pode deixar de chamar a atenção o fato de que o
Apóstolo também conhece um nexo entre "parousia (= epipháneia)" e coroa; mas, ao passo que os soberanos deste mundo eram coroados por ocasião de sua
parusia, Paulo esperava receber do Senhor Jesus vindouro uma coroa não de ouro e, sim, de justiça e de glória eterna ; cf. l Ts 2,19; 2Tm 4,8. Outro papiro,
ocultado dentro da múmia de um crocodilo sagrado, refere que, em vista de uma "parousia" de Ptolomeu 11 Soter, foi arrecadada entre a gente de certa
localidade do Egito, em cerca de 11 3 a.C., grande quantidade de trigo, o que exigiu dos funcionários assíduo trabalho de dia e de noite. Esta expectativa
diurna e noturna de uma parusia do rei ilustra bem a atitude que Jesus quer suscitar nos cristãos diante da perspectiva de sua grande parusia; com efeito, o
Senhor, no Evangelho, se refere aos justos que clamam a Deus dia e noite, á espera da vinda do Filho do homem (cf. Lc 18.7s). Em recordação de uma visita
de Nero, as cidades de Corinto e Patras (Grécia) mandaram cunhar cada qual uma moeda, trazendo respectivamente as inscrições "Adventus Aug (usti) Cor
(inthi)" e "Adventus Augusti". O termo "adventus" representa a tradução latina de "parousia". Ainda em 537/8 da era cristã um pequeno latifundiário da aldeia
Afrodite, no Egito, escrevia ao governador da Tebaida: "Para nós é objeto de oração, de dia e de noite, sermos julgados dignos de vossa benéfica parousia".
principalmente pelas religiões ditas "de mistérios", para significar a "vinda solene" da divindade através dos ritos
sagrados.
A luz destes precedentes, o conceito de "parousia" de Cristo nos escritos do Novo Testamento e da igreja
antiga é eloqüente: diz que o Senhor Jesus, Aquele mesmo que foi crucificado na plenitude dos tempos, fará
entrada neste mundo, no fim dos séculos, como Rei e Soberano de todos os povos; uma alegria de triunfo se
apossará então dos seus súditos, e uma nova era, um mundo novo, terá início. 48
Mas não é somente isto o que "parousia" de Cristo, no Novo Testamento, quer exprimir.
Etimologicamente, "parousia" significa presença ("pára-ousia": qualidade de estar junto). Os filósofos
gregos designavam por "parousia" a presença da forma na matéria; a forma penetra, sim, a matéria, dá-se toda a ela,
a fim de constituírem ambas uma substância; para ilustrar tal tipo de presença, recorriam à analogia da luz que
penetra o ar, com ele constituindo a atmosfera iluminada. Ora, "parousia", também neste seu sentido etimológico e
filosófico, explica fielmente o que os cristãos aguardam: não é estritamente a vinda de alguém que esteja longe da
nossa Terra, mas, antes, a manifestação de uma presença, já latente, do Senhor neste mundo (presença comparável
à da luz no ar). Com efeito, embora Cristo no dia da Ascensão tenha subtraído aos discípulos seu aspecto visível,
Ele permanece ininterruptamente entre os homens, prolongando sua obra na Igreja e nas almas justas (Corpo
Místico). "A graça é a semente da glória", ensinam os teólogos, o que quer dizer: os dons criados e o Dom Incriado
(o próprio Deus), dos quais procede a bem-aventurança dos justos na glória eterna, já estão em posse dos fiéis nesta
vida, à semelhança, porém, de um germe que aguarda o seu pleno desabrochar. Assim a vida do cristão é realmente
participação da vida de Cristo; é presença do Senhor neste mundo. 49 Por conseguinte, o que se espera, pode ser
igualmente dito "a manifestação da parusia" do Senhor ("he epipháneia tes parousías autou", diz S. Paulo em 2Ts
2,8) ou simplesmente, "a revelação do Senhor Jesus ("he apokálypsis tou Kyriou lesou") conforme 2Ts1,7.
Estes dois termos - epipháneia, manifestação, e apokálypsis, revelação se repetem nos escritos do Novo
Testamento paa designar o aparecimento final de Cristo. 50 Exprimem muito claramente a consciência que os
cristãos têm, de uma presença velada do Senhor no mundo. E note-se que, para S. Paulo, a revelação, ou queda dos
véus, é objeto de um anelo ardente dos justos e de todas as criaturas irracionais (que o Apóstolo personifica, usando
de belo artifício literário): o mundo inteiro aguarda ansiosamente a manifestação ("apokalypsis") da glória dos
filhos de Deus, que coincidirá com a manifestação da glória do Filho de Deus. 51

b) Dia do Senhor (expressão derivada do mundo judaico).

Esta denominação tem sua história bem significativa. Formou-se entre os judeus ameaçados e oprimidos
por nações estrangeiras nos séc. IX/VIII a.C.; por ela exprimiam a expectativa de que num "grande dia" (o dia do
Senhor) Javé52 interviria em favor do seu povo (povo justo e puro), inflingindo punição aos adversários de Israel
(idólatras, por conseguinte reputados injustos e imundos); cf. Jl 4,1-21; Sf 3,9-20; Zc 12,1-14. Após o julgamento
das nações assim concebido, instaurar-se-ia na Terra o reino visível de Deus, abrangendo todos os povos sob o
primado de Israel; uma era nova se iniciaria, era do Messias, do Grande Rei de Israel, caracterizada por paz e
bonança paradisíacas (cf Is 2,2; Jr 22,20; 30,24; 48-47; 49,39; Ez 38-16; Os 3,5; Mq 4,1; Dn lo-14)1
Ora, a expressão foi adotada pelas escritores do Novo Testamento, os quais, porém, lhe atribuíram um
conteúdo novo, desembaraçando-a de concepções nacionalistas. O significado nacional que lhe davam os judeus foi
posto de parte, visto que o povo de Deus, o verdadeiro Israel, já não coincide com o Israel segundo a carne, mas
recruta-se dos homens de todas as nações; a solene intervenção de Deus na História, característica do "dia do
Senhor", foi mais claramente concebida como sendo a volta gloriosa do Redentor, que julgará todos os povos; esse
grande dia, "o dia do Senhor Jesus Cristo" (cf. l Cor1,8; Fl 1,6; Lc 17,24), implicará em exaltação para os justos de
qualquer tribo, povo, língua, nação (cf. Ap 5,9) e, ao contrário, condenação para os pecado tanto não israelitas
como israelitas; o dia do Senhor Jesus porá fim à era presente, dando início à fase consumada do Reino de Deus.

48
E interessante notar o testemunho do critico protestante A. Deissmann: "Podemos agora dizer que a melhor interpretação da esperança de "parousia" dos
primeiros cristãos é o antigo dístico (da liturgia) do Advento: "sis, teu Rei vem a ti (ó povo de Deus)!".
49
Esta doutrina é, do seu modo, expressa por S. Paulo, quando afirma que a vida dos cristãos está oculta e se manifestara quando Cristo mesmo Se manifestar
no fim dos tempos: "Procurai as coisas do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus; afeiçoai-vos ás coisas do alto, não ás da Terra; estais mortos e
vossa vida se acha oculta com Cristo em Deus. Quando Crista, vossa vida, aparecer, então aparecereis, também vós, com Ele na glória" (Cl 3,1-4).
50
Epipháneia era, desde remota antigüidade pagã, um termo importante da linguagem religiosa; significava a manifestação da divindade oculta, manifestação
quer direta quer indireta (por meio de algum portento). Datando já da era cristã, encontrou-se uma moeda comemorativa da visita do deus Imperador Adriano
(l17-38) em Nicópolis (Grécia), a qual trazia a inscrição "Epipháneia Augustou", Epifánia (vinda) de Augusto. S. Paulo adotou a expressão epipháneía em 2 Ts
2,8; lTm 6,14; 2Tm 1,10; 4,1-8; Tt 2,13. No decorrer dos séculos, o nome "Epifania" foi como que reservado á Liturgia para designar a primeira vinda de
Cristo; tenha-se em vista a festa de 6 de janeiro, que é um paralelo á festa do Natal. Apokalypsis ocorre em 2Ts 1,7; 1 Cor1,7; lPd 1,7.13; 4,13. O termo passou
para as línguas modernas quase somente para designar o último livro da Sagrada Escritura.
51
"A criatura espera com ardente desejo a manifestação ("ten apokálypsin") dos filhos de Deus. Com efeito, a criação foi sujeita à vaidade.., com a esperança
de ser também ela libertada da servidão da corrupção, para ter parte na liberdade gloriosa dos filhos de Deus. Pois sabemos que até hoje a criação inteira geme
e sofre dores de parto" (Rm 8,19-22).
52
O nome Jahweh, Javé (- Aquele que é), com que Deus se revelou aos judeus (cf. Ex 3,15) passou para o grego e o latim respectivamente sob as formas
Kyrlos e Dóminus. Donde a tradução portuguesa Senhor e, conseqüentemente, dia do senhor.
Eis brevemente como se afirma na Sagrada Escritura a segunda vinda de Cristo. A tradição cristã atribuiu
a esta doutrina um significado profundo e bem justificado, como se verá a seguir.

Lição 2: A Tradição Cristã

Os cristãos posteriores aos Apóstolos continuaram a professar a expectativa da segunda vinda de Cristo.
Eis, por exemplo, como se encerra a Didaqué, catecismo de fins do século 1:
Vigiai sobre vossa vida. Não deixeis apagar vossas lâmpadas nem solteis o cinto de vossos rins, mas estai
preparados, pois não sabeis a hora na qual Nosso Senhor vem.
Reuni-vos freqüentemente para procurar a salvação de vossas almas, pois todo o tempo de vossa fé não
vos servirá de nada se no último momento não vos tiverdes tornado perfeitos.
Com efeito, nos últimos dias se multiplicarão os falsos profetas e os corruptores; as ovelhas se
transformarão em lobos e o amor em ódio.
Com o aumento da iniqüidade, os homens se odiarão, se perseguirão e se trairão mutuamente e então
aparecerá o sedutor do mundo como se fosse o filho de Deus. Ele fará milagres e prodígios e a terra será entregue
em suas mãos e ele cometerá tais crimes como jamais se viu desde o começo do mundo.
Então toda criatura humana passará pela prova de fogo e muitos se escandalizarão e perecerão. Mas
aqueles que permanecerem firmes na sua fé serão salvos por aquele que os outros amaldiçoam (pelo amaldiçoado).
Aparecerão os sinais da verdade: primeiro o sinal da abertura no céu, depois o sinal do som da trombeta e,
em terceiro lugar a ressurreição dos mortos; mas não gloriosa para todos, segundo a palavra da Escritura: O Senhor
virá e todos os santos com Ele.
Então verá o mundo a vinda do Senhor sobre as nuvens do céu.
Dentre. os documentos da Tradição cristã, vai aqui apenas salientado o seguinte: o Concílio regional de
Sens (Gália) em l140 rejeitou a proposição do famoso teólogo Abelardo, segundo a qual se poderia dizer que Deus
Pai, e não o Filho feito homem, virá consumar a história; cf. Denzinger-Schònmetzer, Enquirídio n o 737 (384).
Também a Liturgia contempla freqüentemente "o Juiz que virá", e anseia por essa vinda como penhor da
salvação definitiva. Nos primeiros séculos, as igrejas eram construídas com a sua fachada voltada para o Oriente,
onde se esperava que Cristo reaparecesse, como o sol que se levanta na aurora.
O ano litúrgico abre-se com as semanas do Advento, que invocam a vinda de Cristo não só no Natal, mas
também no seu retorno glorioso. Também a Vigília de Páscoa se refere à segunda vinda de Cristo, pois esta será a
consumação da Ressurreição ou da vitória de Cristo sobre a morte; além do quê, os antigos cristãos julgavam que
Cristo voltaria precisamente na hora em que ressuscitara dentre os mortos.
Notemos ainda que diariamente, ao celebrar a Eucaristia - antecipação sacramental dos bens definitivos -,
a Igreja evoca a parusia, momento em que a posse de tais bens será manifesta e consumada:
"Todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor a vossa morte,
enquanto esperamos a vossa vinda".

PERG UNTAS
1) Que é parusia?
2) Que relação tem a parusia com epipháneia e apokálypsis do Senhor Jesus?
3) Que vem a ser o dia do Senhor?
4) Como a Liturgia encara a parusia?
5) Presença latente e presença patente de Cristo. Estas expressões significam algo para você?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 24: A SEGUNDA VINDA DE CRISTO (PARUSIA) (II)


REFLEXAO TEOLÓGICA
Tendo estudado os fundamentos bíblicos e tradicionais da segunda vinda de Cristo,
passamos a considerar o signifícado teológíco da mesma. O fato da volta do Senhor é de importância capital para o
entendimento da personalidade de Jesus Cristo e de sua obra (o Cristianismo). E o que procuraremos desenvolver
em quatro etapas.

Lição 1: Parusia - dissipação de dúvidas e incompreensões

Jesus apresentou a sua segunda vinda como a elucidação das dúvidas e incompreensões que sua presença
neste mundo suscitava outrora e suscita ainda hoje. Com efeito, embora destituído de prerrogativas humanas (cf. Já
7,15; Mt13,54-57), reivindicava para Si autoridade doutrinária igual à do próprio Deus; tal atitude foi motivo para
que O entregassem ao tribunal do Sumo Sacerdote Caifás, o qual Lhe perguntou: "És o Messias, o Filho do Bendito
(Deus)?" Ao que Jesus respondeu: "Sou-o. Vereis o Filho do homem assentar-se à direita de Deus Todo-Poderoso e
descer sobre as nuvens do céu" (Mc 14,61s). Resposta decisiva para o decreto de condenação do Senhor...
A manifestação pública do Messias, da Verdade e do seu Reino, não foi acolhida pelos chefes de lsrael,
pelos homens que a deviam transmitir ao mundo; ao contrário, tornou-se motivo de revolta e condenação. Jesus
aceitou as conseqüências da confissão da Verdade: permitiu que obcecação e erro prevalecessem no tribunal dos
homens, permitiu que as trevas procurassem, e ainda hoje procurem, sufocar a Luz. Todavia, permitindo a rejeição
da "Boa Notícia", o Senhor não podia deixar de ter em vista uma ulterior manifestação da Luz e do Bem,
manifestação que encerraria a história com chave de ouro, pois seria reconhecida por todos os homens e
condenaria, em termos definitivos, o erro e o mal. A segunda vinda, gloriosa, removidos os véus da carne mortal,
esclareceria todo o mistério da primeira permanência de Jesus entre os homens, mistério da Luz que refulgiu nas
trevas e não foi aceita (cf. Jo 1,5), mistério da aparente impotência portadora da força e da autoridade de Deus (cf.
2Cor 12,9s). Aquele Homem que, encarnando a Verdade e a Vida, era então ju19ado e condenado pelos juízes
deste mundo, tornar-se-ia, em nome da mesma Verdade, o Juiz universal (cf. Mt 24,27; 26,64); mostrar-Se-ia como
o verdadeiro Senhor da história e do mundo.
É o que faz que a figura de Jesus não possa ser entendida, caso se faça abstração de sua segunda vinda; o
Senhor há de ser dito não somente "Aquele que é e que era", mas também "O que há de Vir" (cf. Ap 4,3); omitido o
terceiro tempo, não se compreendem nem o "era" nem o "é", ou seja, a história de Cristo e a da Igreja.

Lição 2: Parusia - Norte da vida do cristão

A parusia do Senhor norteia essencialmente a atitude do cristão neste mundo.


Em termos bíblicos: conforme à. Paulo, o cristão é essencialmente alguém que "se converteu dos ídolos
para servir ao Deus vivo e verdadeiro e esperar dos céus o Seu Filho, Jesus" (cf, l Ts 1,9s), ou, ainda, "alguém que
ama a vinda do Senhor" (2Tm 4,8); segundo S. João, o discípulo de Cristo neste mundo é como a esposa que, na
ausência do esposo, não pode deixar de anelar ardentemente pela volta do mesmo (cf. Ap 22,17-20).
À luz da fé, o cristão sabe que, pela Morte e Ressurreição do Senhor Jesus, teve início uma nova fase da
história; o gênero humano foi, em raiz, emancipado do jugo daquele que merecera o título de "Príncipe deste
mundo" (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11), já que o homem a ele se entregara pela culpa original; a amizade entre o
homem e Deus foi, por. conseguinte, restaurada. Todavia, a obra da Redenção ainda não atingiu o termo derradeiro.
O Reino de Deus já foi implantado, mas, junto com ele, ainda subsistem redutos e agentes do principado de
Satanás; trava-se agora uma- luta cerrada entre duas forças antagônicas: o "Mistério de Cristo" (cf. Ef 3,4),
identificado com o Senhor e sua Igreja, e o "Mistério da lniqüidade" (cf. 2Ts 2,7), representado por Satanás e seu
exército; e note-se que este último, sabendo-se mortalmente ferido pela Cruz do Salvador e destinado à derrota
final, procura concentrar todas as suas forças, esmera-se em sagacidade e, à medida que os tempos passam, se
mostra cada vez mais ferrenho na luta. E esta pugna que caracteriza, e caracterizará cada vez mais, a história dos
séculos após a Ascensão do Senhor (tenham-se em vista as cenas do Apocalipse de S. João, as quais são expressões
simbólicas da história da Igreja). Ora, o caráter de luta, de transição árdua, não pode deixar de imprimir à vida
cristã uma nota conseqüente, igualmente típica: o anseio profundo de que se consume a obra iniciada pelo
Redentor; o que equivale a dizer: o anelo de que volte o Cristo como prometeu, e, profligando por completo os
influxos de Satanás, comunique o vigor e o encanto da verdadeira vida, por enquanto sempre ameaçada, não
somente às almas, mas também aos corpos humanos e a todas as criaturas materiais que constituem o cenário onde
vive o homem (cf. Rm 8,19-23).
Em outros termos poder-se-ia dizer: o cristão sabe que o Senhor foi glorificado junto ao Pai pela
Ascensão (cf. Jo 17,5); conhece igualmente a admoestação do Apóstolo a seguir Cristo, a Cabeça (cf. Cl 3,2). Vê-
se, não obstante, detido neste mundo, onde ainda deve sofrer as armadilhas do Maligno, que inexoravelmente o
procura seduzir, apresentando-lhe "vida falsa" em troca de "vida verdadeira". Na medida em que tem consciência
disto (infelizmente esta consciência encontra-se por vezes atenuada), o cristão não pode deixar de se sentir
dilacerado no mais íntimo do seu ser e sequioso da consumação.
Nesta perspectiva, pois, se compreende bem que Cristianismo implica essencialmente Esperança. Não
fora esta, fundada, aliás, numa sólida promessa de Cristo, e a vida cristã, combate de atleta no estágio, seria de todo
insustentável.

Lição 3: Parusia e bivalência da vida cristã

À luz da parusía, a vida cristã toma um caráter bivalente: é algo de intermediário entre a esperança da
posse e a posse mesma; dois mundos opostos - miséria e riqueza sobrenaturais - interferem na vida da Igreja e de
cada cristão; a glória do céu é derramada nas almas mediante os sacramentos, glória, porém, em semente, oculta,
que tende a desabrochar aos poucos, até se refletir, no último dia, sobre o corpo ressuscitado. 53
A nota "dialética" da vida cristã aparece assaz claramente no capítulo 6 de Rm: na primeira parte (6,1-11),
o Apóstolo usa de formas verbais do indicativo pretérito, inculcando que os cristãos, pelo sacramento do Batismo,
morreram e ressuscitaram com Cristo; isto é tão enfaticamente afirmado que se julgaria não haver dúvida sobre o
caráter consumado da morte e da ressurreição dos leitores. Logo a seguir, porém, (6,12-23), S. Paulo passa a falar
em imperativos e optativos, para recomendar que morte e ressurreição se tornem um fato na vida cotidiana do
cristão; por conseguinte, morte e ressurreição realizados no sacramento ainda são um programa a ser conquistado
na vida prática.54 Para o cristão, pois, valem, com mais razão, plenamente, como norma, a máxima que já os
pagãos, em seu bom senso, conceberam: "Torna-te o que és", ou seja: traduze pela prática, em corpo e alma, aquilo
que és na alma desde o dia do teu Batismo.
E não somente o Batismo, mas todos os demais sacramentos, em grau máximo a Eucaristia, propiciam ao
cristão uma participação antecipada nos bens celestes; todos eles o põem em contato com a morte e a ressurreição
do Senhor, preparando-lhe a alma e o corpo para o transe derradeiro e a ressurreição gloriosa. É pelos sacramentos,
e por excelência pela Eucaristia, que se antecipam no tempo presente a "parousia" do Senhor e a restauração final
de todas as coisas. Jesus apresenta mesmo a Eucaristia como o fermento da ressurreição, o remédio da
imortalidade;55 também na Eucaristia, dois elementos irracionais, o pão e o vinho, são transformados, ou
transfigurados (elevados à dignidade de Corpo e Sangue de Cristo), em prenúncio e penhor da transfiguração que
tocará, a todas as criaturas materiais no fim dos tempos.
E este caráter ambíguo, "paradoxal", da vida cristã que a torna por vezes pouco inteligível a quem se
aproxima da Igreja; um tesouro em vasos da argila (cf. 2Cor 4,7), eis algo que não corresponde à expectativa
meramente natural do homem; quem considera a Esposa de Cristo apenas com o bom senso humano, surpreende-se
por não ver sempre o fulgor de um te tesouro que lhe dizem estar latente atrás das manifestações humanas do
Cristianismo. E o que se tem dado repetidamente no decorrer dos séculos; basta lembrar o povo judaico, que, em
virtude de sua mentalidade nacionalista, pouco transcendente, rejeitou a "Boa Notícia" de um Messias que, pela
cruz, chegasse à glória; querendo possuir imediatamente o que está reservado à volta do Senhor, escandalizou-se
diante da dilação, e tropeçou... A consciência da dilação e o anseio que ela dita, são, pois, essenciais ao
Cristianismo!
Não obstante a sua tensão íntima para o desfecho da história, o cristão não deixa de considerar o mundo
presente e suas indigências. E mesmo plasmando a sociedade conforme os princípios cristãos, sem paixão nem
animosidade, que o discípulo de Cristo prepara o encontro com o Senhor; subtraindo-se às tarefas do momento, ele
se excluiria igualmente da gloriosa renovação futura; com efeito, estaria desobedecendo a Cristo, o qual confiou
aos seus fiéis o encargo de ser o sal da terra e a luz do mundo (Mt 5,13s); entregou aos seus discípulos a missão de
configurar os séculos!

Lição 4: Parusia - expressões próprias

A expectativa escatológica dos cristãos se afirmou desde os inícios da Igreja em alguns particulares muito
significativos. Assim:

4.1. Marana tha


O brado Marana tha, "Vinde, Senhor", foi formulado na primeira hora, quando viviam os Apóstolos, pois
pertence à língua aramaica. Terá sido uma fórmula de saudação característica dos cristãos, uma das expressões
mais espontâneas da mentalidade do Evangelho. Tornou-se tão usual entre os fiéis que passou para os países de
língua grega sem mesmo ser traduzida; com efeito, ela encerra a primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios (16,22)
e o último livro da Sagrada Escritura (cf. Ap 22,20, em grego) 56.

4.2. "Paroikíai", paróquias

53
E o que insinua S. Paulo em Rm 8,18: "Jylqo que os sofrimentos do tempo atual não têm proporção com a glória futura que será manifestada em nos' (a
expressão grega diz mais precisamente: ".., manifestada de dentro para fora de nós")
54
. Eis parte do texto paulino: ' Rm 6,3s: "Então ignorais que todos os que fomos batizados no Cristo Jesus fomos mergulhados em Sua morte? Fomos
consepultados com ele pelo Batismo na morte, a fim de que como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim nós também caminhemos em vida
nova". ' Rm 6,12-14, porém, já apresenta outro aspecto do Batismo: "Portanto, que o pecado não reine em vosso corpo mortal... Nem ofençais os vossos
membros ao pecado mas oferecei-vos a Deus como mortos que voltam á vida... Com efeito, o pecado não deve mais ter império sobre vós".
55
"Quen1come a minha carne e bebe o meu sangue, possui a vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia" (Jo 6,55). S, lnàcio de Antioquia (t cerca de 110)
alude à Eucaristia como sendo o pharmakon athanasias e o antídotos tou me apothaneín, o remédio da imortalidade e o antídoto que supera a morte (epist, aos
Efésios 20,2).
56
Uma antiga oração cristã, redigida em grego, provavelmente no séc, I, a ser dita depois da Eucaristia, assim concluía: "Venha a graça e passe este mundo!
Hosana ao Filho de Davl! Se alguém é santo, aproxime-se; se não o é, faça penitência. Marana tha. Amém" (Didaqué 10,6).
Em breve os núcleos de cristãos atribuíram a si a designação de paroíkía (donde "paróquias", em
português), termo quequer dizer: morada em terra estrangeira, ou morada de peregrino (cf. Fl 3,20).
A título de ilustração, eis algumas noções complementares:
Na linguagem jurídica profana, pároikos (donde pároco) era o estrangeiro domiciliado em terra alheia.
A edição latina dita "Vulgata" da Bíblia traduz paroikía por peregrinatio, peregrinação, termo fiel à idéia
de transitoriedade incluída na palavra grega.
A chamada 2a epístola de S. Clemente Romano (meados do séc, II) exorta os leitores a abandonarem ten
paroikían tou kosmou toutou ou seja, o instável gênero de vida deste mundo, para cumprirem a vontade de Deus
(5,1). Semelhante recomendação encontra-se em escritos dos séculos II/III; cf, o Pastor de Hermas, Sim, l,1; epíst.
A Diogneto 5,5; Tertuliano, Apolog. 38,3; De corona 13; De ressurr. cara. 47; Clemente de AI., Pedagogo 3,8.
Como designação de células cristãs o termo já ocorre em fins do séc. I; cf. a inscrição da epístola de S.
Clemente Romano; Eusébio, Híst. eccles. 5,18,9.

4.3. A Virgindade e o Celibato

Desde os primeiros decênios, a virgindade começou a ser estimada entre os cristãos. É surpreendente
verificar este fato, principalmente se considera a mentalidade dos homens no meio dos quais surgiu e cresceu o
Cristianismo: nem os judeus nem os pagãos greco-romanos apreciavam devidamente o ideal da vida virginal; os
primeiros viam na geração carnal a única vereda de salvação, o meio de dar o Messias e a Redenção ao mundo. 57
Do seu lado, os romanos só conheciam um estado de virgindade provisório, abraçado em vista do serviço do
templo, constituindo uma espécie de casta sacerdotal feminina, reduzida ao número de duas, quatro ou seis virgens:
eram as Vestais de Roma; é claro que a virgindade assim vivida não tinha repercussão no ritmo da vida social. Na
Grécia, o Estado cobrava dos celibatários um imposto especial...; em Roma, uma das principais funções dos
censores públicos era punir os celibatários. Eis, porém, que, muito ao contrário, entre os cristãos a virgindade
passou a ser apregoada desde cedo, não apenas como um modo de vida, mas como um ideal.
De fato, São Paulo recomendava a vida una baseando-se na perspectiva do futuro encontro com Cristo;
"passa a figura deste mundo" (1Cor 7,31); daí o uso moderado dos bens deste mundo e até a renúncia a um lar, para
que possa haver total entrega às coisas de Deus (cf. l Cor 7,25-35).
Ademais, a vida una é, conforme o Senhor mesmo, a forma de vida celeste que a parusia inaugurará para
todos os justos; cf. Mt 23,30.

4.4. O Martírio
Por fim o martírio, embora se verifique também fora do Cristianismo, é, entre os cristãos, outra expressão
da sua esperança num mundo novo; o mártir, morrendo voluntariamente, proclama o caráter precário, desregrado e
caduco da ordem de coisas atual e, na medida do possível, procura entrar desde já no Reino de Deus consumado (o
que não seria possível sem uma graça especial do Senhor). Este sentido do martírio é bem ilustrado pelo fato de que
o primeiro mártir, S. Estêvão, e muitos dos posteriores, por ocasião de seus padecimentos, tiveram a visão do
Senhor glorioso (experimentaram antecipadamente a parusia de Cristo) 58.

PERGUNTAS
1) Como a parusia do Senhor dissipará dúvidas e incompreensões?
2) Como a parusia polariza a expectativa do cristão?
3) Que se entende por "bivalência da vida cristã"?
4) Que significa Marana tha? Que importância tem para o cristão?
5) Que significa paroikía (- paróquia) ?
6) Queira comentar a vida una apresentada por São Paulo em 1Cor 7,25-35.

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 25: A SEGUNDA VINDA DE CRISTO (PARUSIA) (III)


SINAIS PRECURSORES
Examinemos agora os sinais tidos como precursores da segunda vinda de Cristo, pois a S. Escritura
enuncia alguns, cujo sentido nem sempre é muito claro.
57
E com razão, pois Deus prometera que da linhagem de Israel nasceria o Redentor. O Antigo Testamento apresenta mais de um caso de mulheres que
deploram não dar á luz; julgavam-se amaldiçoadas por Deus; notem-se a história de Sara (Gn 16,1-6), a da filha de Jefté (Jz 11,29-40), a de Ana, mulher de
Elcana (1Sm 1,1-20). Cf, também Ex 22,15s; Dt 22,23.29; Edo 42,9.
58
2. Cf. At 7,55s: "(Estêvão), que estava cheio do Espírito Santo, tendo fixado os olhos no céu, viu a glória de Deus e Jesus em pé á direita de Deus, e disse:
'Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem em pé á direita de Deus"'.
Lição Única: Os Sinais Precursores

Cinco sinais têm sido depreendidos do texto sagrado.

l. A pregação do Evangelho no mundo inteiro

Jesus advertiu:
"Esta boa notícia do reino (de Deus) será proclamada no mundo inteiro, em testemunho a todas as nações;
e, a seguir virá o fim" (Mt 24,14; cf. Mc 13, lo: "É preciso que antes o Evangelho seja proclamado a todas as
nações").
Estas palavras querem dizer que, antes que termine a história, será dada a todos os povos a ocasião de
optar por ou contra Cristo. A profecia, porém, não implica que a todos os indivíduos será dado conhecimento do
Evangelho; apenas se refere às nações como tais, como coletividades.
Difícil seria dizer se esta condição prévia para a volta de Cristo já se acha realizada em nossos dias.

2. A conversão dos judeus


Dentre todos os povos, há um a respeito do qual a Sagrada Escritura tem uma predição, de vulto ainda
não realizada: Israel.
Para quem considera a história, não deixa de ser um enigma a existência dos judeus, prolongada até hoje
(mesmo ainda mais conscientemente afirmada em nossos dias), embora a sua pátria, no ano 70 da nossa era, haja
sido conquistada pelo braço estrangeiro e desde então nunca mais lhes tenha sido integralmente restituída. Os
judeus dispersaram-se pelo mundo inteiro, passando a viver em meio a outras nações, sem, porém, jamais se deixar
assimilar. Este fenômeno é muito estranho se considera a sorte que tiveram os povos antigos vizinhos de Israel,
outrora opressores e vencedores dos judeus: fenícios, assírios, babilônios, medos, persas; hoje não sobrevivem
como tais.59
A situação de Israel não se deixa explicar unicamente por fatores sociais ou políticos; ela só pode ser
cabalmente ilustrada à luz da Teologia, ou seja, se reconhece a este povo especial missão dentro do plano de Deus.
É S. Paulo, em Rm 9-11, quem dá a perceber:
O povo fie Israel foi outrora separado por Deus para ser o depositário da verdadeira fé; dele deveria sair o
Messias e, por conseguinte, a salvação para o mundo inteiro. Em vista disto, Israel foi repetidas vezes abençoado e
agraciado por Deus; os demais povos, mergulhados na idolatria, só alcançariam Redenção participando dos bens de
Israel, o que, sem dúvida, daria aos judeus no reino messiânico o primado (baseado não em algum direito natural
deste povo, mas na liberalidade divina). Ora, aconteceu que a nação escolhida cumpriu parcialmente a sua missão;
conservou a verdadeira fé, os ritos provisórios do Antigo Testamento, até dar à luz a carne do Redentor. Tendo,
porém, gerado a Este, Israel negou-se a reconhecê-lo, já que entendia as promessas feitas aos Patriarcas num
sentido muito humano, que pouco condizia com a mensagem de Cristo. Em conseqüência, a Boa Nova foi
apregoada aos gentios, que a receberam, de sorte que hoje o povo de Deus, o verdadeiro Israel, consta dos filhos
daqueles que outrora eram pagãos, ao passo que Israel, como coletividade, é incrédulo; os papéis se inverteram...
Todavia, com isto não está encerrada a missão dos judeus na história deste mundo. Os israelitas, momentaneamente
alheios ao reino do Messias, continuam a ser bem-amados por Deus; pertencem a uma raiz e a uma estirpe santas,
de tal modo abençoadas que somente por enxerto nesse tronco judaico é que os filhos dos antigos pagãos
conseguem a salvação eterna. Em outros termos: os dons e as promessas de Deus a Israel são irrevogáveis, de sorte
que se deverão ainda cumprir; a nação judaica como tal (não apenas representada por um ou outro membro) deverá
reconhecer o seu Salvador, Jesus Cristo, e assim entrar no pleno gozo da salvação messiânica outrora prometida aos
Patriarcas e à sua posteridade carnal. A oração de Cristo: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem!" (Lc
23,34) há de ser mais eficaz do que o clamor: "Corra o seu sangue sobre nós e sobre os nossos filhos!" (Mt 27,25).

59
É de interesse notar que os judeus não somente não se fundiram com os outros povos, mas hoje são, apesar de todas as perseguições, ainda mais numerosos
do que no inicio da era cristã. Com efeito, no séc. l depois de Cristo viviam no império romano entre seis e sete milhões de judeus; sofreram, porém, baixas
sucessivas e consideráveis em conseqüência da dura sorte que lhes tocou após a destruição de Jerusalém, em 70. Em começos do sèc. IX, não havia mais que
dois milhões de judeus no mundo, espalhados pela Europa e a África. Em meados do séc. XIX, após a Revolução Francesa, já atingiam o número de quatro
milhões, dos quais 3.250.000 na Europa. Em 1880 eram oito milhões; em 1900, dez milhões. Hoje as estatísticas referem um total de dezesseis milhões de
judeus no mundo inteiro.
São, pois, nos nossos dias quase três vezes mais numerosos que no tempo de Cristo. Extraordinária multiplicação, maravilhosa tenacidade! Em 70, Jerusalém
foi ocupada pelos romanos. Estes, por ocasião de uma rebelião judaica de 132 a 135, arrasaram por completo a cidade; em conseqüência, os judeus foram
espalhados em todas as direções do mundo, ficando-lhes vedado o regresso á Palestina. Na Idade Média eram poucos os israelitas que habitavam a Terra
Santa; em 1267, Moisés Ben Nahman Girondi referia haver apenas duas famílias judias em Jerusalém; no séc. XV verificou-se entre os judeus um movimento
de volta á Palestna, procedente da Alemanha, da Espanha e de Portugal. Tendo sido a Palestina dominada pelo sultão Selim 1, abriram-se, em 1517, as portas
do pais para os judeus do Oriente. Na primeira metade do séc. XIX a população israelita da Terra Santa contava 12.000 habitantes; em 1880, 35.000; no inicio
do séc. XX, 70.000; e, ao explodir a guerra mundial de1914, 85.000. Em 1955 contavam-se1.716.000 no Estado de Israel, sendo atualmente cerca de
4.000.000.
É por este motivo que Israel não se confunde nem dissolve, por mais perseguido e disperso que esteja
entre as outras nações; há de se conservar até a consumação da história, para reconhecer, finalmente, o Messias e
integrar o reino de Deus. Sua existência misteriosa através dos séculos até nossos dias não é senão o sinal religioso,
que está indelevelmente marcado sobre Israel.
E por que terá Deus permitido a obcecação, ao menos temporária, do povo que outrora escolheu? S. Paulo
o explica: a Providência permitiu que, momentaneamente, se mostrasse infiel, a fim de que nem judeus nem filhos
de pagãos se possam algum dia vangloriar de ter merecido, de certo modo, por sua fidelidade, os dons de Deus:
"Desobedeceram por causa da misericórdia que vos foi feita (a vós, filhos de pagãos), a fim de que também eles
obtenham misericórdia. Com efeito Deus encerrou todos os homens sob o sinal da desobediência, para poder fazer
misericórdia a todos" (Rm 11,31s.).
Por conseguinte, Deus, querendo dar a salvação a todos os homens, dispensa-a de tal sorte que todos
tenham a consciência de a receber gratuitamente, por estupenda misericórdia.
Destas considerações se segue que a história não se consumará, ou o Cristo não voltará, antes que os
judeus, como povo e coletividade, se convertam ao Evangelho (cf. Rm 11,26). Com isto, é claro, não está dito que
todos os indivíduos judeus deverão abraçar a verdadeira fé (analogamente, hoje acontece que a nação judaica como
tal não é cristã, ao passo que indivíduos judeus o são). 60

3. Perseguições, grande apostasia, o Filho da Perdição


Outro sinal da próxima volta do Senhor serão os esforços que, antes da hora decisiva, Satanás fará para
demolir a obra de Cristo. O Evangelho refere que o maligno tentou o Redentor logo no início de Sua vida pública
(cf. Mt 4,1-11 ), e tudo fez para estorvar a missão de Jesus, aguçando os fariseus contra a pessoa do Salvador. Ora,
essas tentativas, frustradas em Jesus Cristo, o Maligno continua a desencadeá-las contra os membros de Cristo no
decorrer dos séculos; atua-se ininterruptamente a inimizade entre a Serpente ou o Dragão (Satanás) e a Mulher (a
Igreja); cf. Gn 3,15; Ap 12,1-6. Ao conjunto de artifícios do Maligno, que, sucedendo-se uns aos outros,
acompanham, e até o fim acompanharão, a história da Igreja, S. Paulo chama o "Mistério da Iniqüidade" (2Ts 2,7);
em 51, quando escrevia aos tessalonicenses, o Apóstolo afirmava que tal mistério já estava em atividade.
No fim dos tempos, porém, a onda perseguidora há de recrudescer extraordinariamente em intensidade.
Serão ainda mais numerosos do que hoje os que dirão: "Eu sou o Cristo" (cf. Mc 13,6); e tais pseudo-profetas
saberão dar-se ares de legados de Deus, realizando prodígios que seduzirão a muitos. Verificar-se-á então, mais do
que nunca, que. os filhos das trevas são mais industriosos que os filhos da luz para realizar seus intentos (cf. Lc
16,8). Em conseqüência, grande apostasia da fé, considerável diminuição da caridade se verificarão no mundo (cf.
Mt 24,12; Lc 18,8; 2Ts 2,3).
O mistério da iniqüidade atingirá o auge da sua eficiência quando aparecer o que São Paulo chama "o
homem do Pecado, o Filho da Perdição, o Adversário" (cf. 2Ts 2,3s), o que São João diria "o Anticristo por
excelência" (cf. lJo 2,18.22; 4,3; 2Jo 7).
A identidade desse Filho da Perdição ou do Anticristo tem sido discutida pelos teólogos, que hoje tendem
a relativizar tais conceitos; sim, para São João "Anticristo” é todo aquele que nega o Cristo (ver textos citados); já
havia Anticristos no século 1. E o que nos leva a não nos deter mais longamente sobre o assunto. O debate sobre o
mesmo torna-se vago por falta de indicações bíblicas precisas; também não afeta a atitude do cristão, que, em
qualquer hipótese, há de ser a da vigilância e prontidão para responder ao Senhor Jesus quando este o chamar para
a vida consumada e definitiva. Mais pormenores sobre o assunto se encontram nos Módulos 29 e 30 deste Curso.
Não há dúvida de que as violências infligidas aos cristãos bradam por si mesmas à Justiça Divina,
pedindo restauração da ordem. No Apocalipse esse clamor é personificado; S. João diz que, junto ao altar de Deus
no céu, as almas dos mártires, com voz forte, suplicam seja feita justiça sobre. a Terra. Em resposta é-lhes dito que
aguardem "ainda um pouco, até se completar o número de seus companheiros de serviço e de seus irmãos que
também devem ser condenados à morte" (6,11). Ora, a recrudescência das perseguições concorre para se preencher
o número dos mártires em vista dos quais Deus prolonga a história deste mundo; todo mártir cristão contribui, de
maneira particular, para se completar a medida de expiação devida à justiça divina pelos pecados do mundo (o
primeiro mártir, nesta perspectiva, foi Cristo, cujos sofrimentos os fiéis estendem e completam em sua carne; cf. Cl
1,24). Por conseguinte, os sofrimentos dos cristãos perseguidos hão de ser tidos como as dores de parto de um novo
mundo, como o sinal de que se aproxima a queda do mundo atual; cf. Rm 8,22; Mt 24,8; Jo 16,21.

4. Situação caótica no mundo


Em seu sermão escatológico, o Senhor caracteriza como "início das dores (do parto)" uma situação
confusa no mundo inteiro, motivada pelo desencadeamento de flagelos:
"Haveis de ouvir falar de guerras e rumores de guerra; não vos deixeis alarmar. Pois é preciso que isso
tudo aconteça, mas ainda não será o fim. Com efeito, levantar-se-á nação contra nação, reino contra reino, e haverá
60
Não há dúvida de que o movimento de adesão dos judeus ao Cristianismo ainda é de pouca monta. Em todo o séc. XIX foram batizados 204.540 israelitas,
dos quais 57.300 na Igreja Católica No séc. XX têm sido mais numerosas as conversões.
pelo mundo fome, epidemias e terremotos. Isto tudo será o começo das dores (do parto) " (Mt 24, 6-8). Dado o
estilo apocalíptico deste texto, é difícil definir o seu sentido exato.

5. As duas Testemunhas apocalípticas


Uma tradição exegética antiga afirma que o Senhor Jesus, em sua segunda vinda, será precedido por duas
testemunhas - Elias e Henoque, ou também Elias e Moisés, como no seu primeiro advento teve S. João Batista por
precursor.
Esta tese se apóia em Ap 11 : ao descrever uma cena que alguns julgam ser a do fim do mundo, S. João
afirma que dois varões aparecerão sobre a Terra e durante 42 meses apregoarão a Verdade; possuirão mesmo o
poder de realizar prodígios semelhantes aos que Moisés e Elias outrora obtiveram de Deus; 61 acabarão vitimados
pelo Adversário, que os matará; ressuscitarão, porém, após três dias e meio e serão elevados aos céus.
Atualmente, porém, o capítulo 11 do Apocalipse é interpretado em sentido diverso:
"As testemunhas representam a Igreja na sua função de dar testemunho (cf. At 1, 8); a mensagem do
Evangelho é simbolizada por dois varões, em parte por referência á lei bem conhecida, expressa em Dt 19,15
("Sobre a palavra de duas testemunhas.., será estabelecida toda causa"; lei que o próprio Jesus cita em Jo 8,17), em
parte por correspondência à imagem de Zc 4,2s... 62. O testemunho da Igreja, dado pelos mártires e confessores,
pelos santos e os doutores, pela palavra e pela vida de todos aqueles em quem o Cristo vive e fala, é uma profecia
contínua (cf. Ap 19, l0), que dura através dos 1260 dias do triunfo do paganismo ou da incredulidade em geral. As
testemunhas do Apocalipse, descritas com traços de Moisés, Elias, Jesus, filho de Josedeque, Zorobabel - e, muito
mais duvidosamente, de Henoque - representam todos aqueles que, nos tempos de S. João e nos séculos futuros, se
achem animados do espírito destes personagens" (E. B. Allo, L'Apocalypse. Paris 1921, p. 142).
Conforme Allo, e outros intérpretes, o número de 1260 dias, equivalente ao de 3 112 anos e ao de 42
meses, metade de 7 anos, significa um período de penúria e sofrimento (o número 7 exprimiria bonança e plenitude
na mentalidade antiga); é o período de combate contra o erro em prol da verdade, que caracteriza a história da
Igreja entre a primeira e a segunda vinda de Cristo. E, pois, durante 1260 dias, isto é, durante toda a sua história,
que a Igreja (representada pelas duas testemunhas) apregoa o Evangelho neste mundo. E é durante três dias e meio,
isto é, em segmentos de sua história, que a Igreja sucumbe aqui e ali aos golpes do Adversário, em virtude de
perseguições, heresias ou cismas nesta ou naquela região. A voz da Igreja, porém, será finalmente vitoriosa.
Na base desta interpretação, já não se pode incluir a volta de Elias e outro justo do Antigo Testamento
entre os sinais precursores da segunda vinda de Cristo.
Em nossos dias, as denominações protestantes exploram muito os sinais precursores da parusia para
afirmar que estamos no fim dos tempos. Deve-se dizer, porém, que os escritos bíblicos que os apresentam, estão,
em grande parte, redigidos em estilo apocalíptico; este utiliza certas figuras de linguagem estereotipadas, que não
devem ser tomadas ao pé da letra; erraria quem lhes quisesse dar o valor de estritas profecias. Daí a grande
sobriedade que os teólogos recomendam, quando se trata de definir prenúncios e data do fim do mundo.

PERGUNTAS
1) Como se relaciona a história de Israel com a história da salvação?
2) Os judeus estão implicados na previsão paulina do fim do mundo?
3) Que dizer dos demais sinais precursores da parusia?
4) Que diria você a quem lhe quisesse apontar prenúncios de próximo fim do mundo?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 26: A SEGUNDA VINDA DE JESUS (PARUSIA) (IV)


“PROFECIAS”

Após considerar os sinais tidos como precursores da parusia, passamos a examinar as predições que se
têm feito e fazem a respeito da data desse evento e do fim do mundo. Veremos que periodicamente, em épocas
calamitosas, e não somente em nossos dias, os homens são propensos a admitir a proximidade do término da
história, com flagelos e acidentes múltiplos. Trata-se de uma necessidade psicológica ou de uma reação espontânea

61
Elias fez descer fogo do céu sobre os inimigos de Javé (cf. 2 Rs 1, l0 e Ap 11,5); fechou os céus a fim de que não chovesse (cf. l Rs 17,1 e Ap
11,6a); além disto, vestia-se de um saco, como as duas testemunhas (cf. 2 Rs1,8 e Ap 11,3). De Moisés lê-se que converteu águas em sangue e feriu a terra,
compragas diversas; cf. Ex 7,17-11, l0 e Ap
11,6b.
62
"Vejo um candelabro todo de ouro, que tem o seu reservatório de azeite no alto do tronco principal e que traz sete lâmpadas com sete canais".
à inclemência dos tempos; os homens assim criam para si uma garantia ou segurança meramente humana na falta
de perspectiva de tempos melhores.
Não será inútil percorrer a lista das principais "profecias" já enunciadas sobre o assunto. Esta visão de
conjunto facilitará um juízo sobre o que se deva pensar no tocante à data do fim do mundo.

Lição Única: As Diversas Previsões

1. Na Antiguidade pagã

O mundo pagão, nos decênios que cercam o nascimento de Cristo, estava impregnado de forte expectativa
de catástrofe e renovação; o que em muitos indivíduos produzia acentuado pessimismo; em outros, ao contrário,
esperança jubilosa.
O brilho e a prosperidade que o Império romano atingira sob Augusto (+ 14) e Tibério (+ 37), começaram
a declinar rapidamente sob Calígula (t 41), monarca pouco idôneo; Cláudio (t 54) permitiu que mulheres
depravadas (Messalina, Agripina) e seus cortesãos cometessem crimes de ambição e vingança que muito
infelicitavam a vida pública. A isto pareciam associar-se estranhos fenômenos na natureza; falava-se de cometas de
mau agouro recém-avistados, chuvas de sangue, partos monstruosos, pestes, inundações, raios que espedaçavam
estátuas de Imperadores e templos da divindade. Em conseqüência, julgava-se que o mundo caminhava para o seu
fim. Não faltavam, porém, vozes que procuravam reerguer os ânimos abatidos; do Oriente soprava uma onda de
expectativa otimista: pelos oráculos das Sibilas (figuras mitológicas e proféticas dos orientais) propalava-se a idéia
de que viria uma nova fase da história; um ser divino-humano, nascido de uma virgem, apaziguaria a cólera da
divindade provocada pelos homens e introduziria no mundo uma era de bonança, era de Saturno - ou de ouro. Esta
crença, recebida diretamente da Sibila de Cuméia, foi adotada e elegantemente formulada pelo poeta romano
Virgílio (+19 a.C.) em sua famosa quarta écloga.
Aos olhos da fé, esta expectativa de renovação no liminar da era cristã tem caráter providencial.
Suscitando-a, Deus preparava os ânimos para receberem o Salvador, que haveria de ser apregoado ao mundo como
a resposta autêntica aos anseios do gênero humano; poria, de fato, um fim e um novo início na História universal.

2. Entre os judeus antigos


Contemporaneamente ao que se dava entre os pagãos, também no povo judaico era forte a crença de que
próximo estava o "dia do Senhor", ou seja, a vinda do Messias, que havia de se tornar o Chefe religioso e político
de seu povo. Libertaria a este e exerceria julgamento punidor sobre os pagãos que o oprimiam, restaurando, por
fim, a era paradisiaca (cf. 4 Esdr 5,1-20; 5,35-7,45). Donde o grande número de falsos messias que surgiram pouco
antes e depois de Cristo.

3. Entre os cristãos do século I


Não há dúvida de que as idéias ventiladas por pagãos e judeus concorriam para avivar entre os fiéis a
expectativa de que o Senhor Jesus não tardaria a voltar; tenham-se em vista as epístolas aos Tessalonicenses, aos
Hebreus e a 2Pd (6o/8o decênios d.C.), em que os Apóstolos procuraram reanimar os pusilânimes, que, diante da
demora de Cristo, perdiam a esperança, e também a fé, no Evangelho. Em Tessalônica, os cristãos, esperando o
Senhor de um dia para outro, já não trabalhavam mais, entregando-se ao ócio .e às divagações da fantasia; isto
disseminava a inquietude entre os irmãos e acarretava graves desordens morais (cf. 2Ts 3,10-12).

4. No Cristianismo até o inicio da Idade Média


A tensão escatológica chegou ao extremo em fins do séc, II e inicio do III na Ásia Menor. Montano e suas
duas profetisas, Priscila e Maximila, apregoaram a vinda iminente do Paráclito, prometido por Jesus em Jo 16;
acabar-se-ia então o mundo presente para dar lugar ao Reino de Deus. Demonstrações de fanatismo se produziram
em conseqüência.63
Todavia, a expectativa de um iminente fim do mundo se foi dissipando com o decorrer dos tempos. Isto
não impedia que certos cristãos procurassem, por cálculos e conjeturas, perscrutar a época da catástrofe final, que,
se não estava às portas, não podia tardar muito... Assim:
O Ps. Barnabé, em fins do séc, I ou inícios do II, afirmava que o ano 6000 após a criação do mundo, seria
o ano terminal da história. Razão alegada: conforme Gn 2,2, Deus consumou o mundo em seis dias; ora um dia

63
Eis o que refere Hipólito Romano no inicio do séc. III
"Um bispo na Síria persuadiu muitos irmãos a irem para o deserto ao encontro de Cristo, com suas esposas e seus filhos; estes vaguearam pelas montanhas e
ao longo das estradas; pouco faltou para que o Governo os mandasse prender como salteadores.. No Ponto, outro bispo, homem piedoso e humilde, mas
demasiado confiante em suas visões, teve três sonhos e pôs-se a profetizar: "Acontecerá isto e aquilo". E, por fim: "Sabei, irmãos, que o juízo se realizará
dentro de um ano, e, caso não aconteça o Que vos digo, não deis mais fé às Escrituras, mas proceder como bem quiserdes". Ora, nada do previsto se verificou;
o bispo se viu confuso, os irmãos se escandalizaram, as virgens se casaram e os que haviam vendido seus campos foram obrigados a mendigar" (In Danielem
3,18s.)
para Deus equivale a mil anos dos homens, segundo SI 90,4. Donde se seguia que, no seu ano 6000, a história deste
mundo deveria estar consumada (cf, epist, 15,4). Sto, Irineu (+ cerca de 202) repetia a mesma tese; 64
S. Hipólito de Roma (Í 235), partindo dos mesmos princípios, ainda precisava que o ano final seria o de
SOO, já que entre Adão e Cristo haviam decorridos 5500 anos; 65
S. Ambrósio (+ 397) e S. Hilário de Poitiers (+ 367) apoiavam a tese do Ps. Barnabé sobre o fato de que
Jesus se transfigurou sobre o Tabor seis dias depois de Ter dito aos discípulos: "Em verdade vos digo: há alguns
aqui presentes que não provarão a morte antes de ter visto o Filho do homem vindo em seu reino" (cf. Mt 16,28 e
17,1). A transfiguração, produzida seis dias mais tarde, significaria, no caso, a volta do Cristo glorioso; 66
S. Gaudêncio de Bréscia (t após 405) indicava o ano 7000 (!) após a criação como data para a ressurreição
universal. Apoiava-se no preceito da Lei mosaica que manda cessem todas as obras deste mundo no 7 o dia da
semana e entrem os fiéis no repouso de Deus (cf. Ex 12,16); ora, já que um dia de. Deus equivale a mil anos dos
homens (cf. SI 90,4), o ano 7000 seria o da cessação definitiva das obras deste mundo e o da ressurreição dos
corpos;67
No séc. V a idéia da iminência do fim do mundo foi de novo avivada pelo desenrolar dos acontecimentos:
invasões dos Godos assolavam o Império Romano e sua capital, até que, em 576, Odoacre se apoderou de Roma,
destituindo o último Imperador, Rômulo Augusto. A queda da cidade que até então fora um foco de civilização,
união e bem-estar entre os povos, parecia ser prognóstico eloqüente de que o mundo não subsistiria; como poderia
continuar a história sem a orientação de Roma? Estes anseios são calorosamente testemunhados por S. Jerônimo (+
420), S. João Crisóstomo (Í 407), S. Leão Magno (+ 461);68
Ainda nos séc. VI/VII, S. Gregório Magno (Í 604) em suas pregações indicava como próxima a vinda de
Cristo, já que as guerras e as misérias da época pareciam ser os sinais precursores da parusia 69.

3. Na Idade Média
No séc. X fizeram-se ouvir pressentimentos de próximo fim do mundo, pressentimentos cujas proporções
têm sido por vezes exageradas por historiadores e romancistas. Alguns escritores e pregadores medievais julgavam
que no ano 1000 o Anticristo seria desencadeado sobre o mundo e, em breve, se teria o juízo universal; a sentença
se baseava principalmente em Ap 20,1-15, texto que fala de um reino milenário de Cristo, após o qual se deve dar a
ressurreição final.70
Em fins do séc. XII, o Abade Joaquim de Fiore (+ 1202) distinguia três idades do mundo: a do Pai,
correspondente ao Antigo Testemunho; a do Filho, que duraria desde o início da era cristã até 1260, já que 42 são
as gerações indicadas na árvore genealógica de Cristo em Mt 1,17 (gerações a cada uma das quais Joaquim de Fiore
atribuía 30 anos) ; em 1260 começaria nova fase, a do Espírito Santo, caracterizada por um entendimento mais
profundo e espiritual das Escrituras Sagradas; seria a era definitiva, norteada pelo "Evangelho eterno" de que fala
Ap 14,6. Estas idéias encontraram larga difusão, principalmente em círculos dados à alegoria e a um espiritualismo
unilateral.
Das obras de S. Tomás (+1274), colhe-se a informação seguinte: alguns doutores medievais julgavam que
os astros cessarão de se mover no fim dos tempos, para ocupar exatamente a mesma posição que tinham no início
do mundo, de sorte que nenhuma trajetória astral ficará incompleta. Ora, os sábios atribuíam então a duração de
36.000 anos à revolução de alguns corpos celestes. Donde se previa que a história ainda duraria mais 30 mil anos
aproximadamente! A S. Tomás um futuro tão extenso parecia pouco provável.. 71
O séc. XV foi mais uma vez marcado por expectativas de consumação iminente. O desejo de nova era,
lançado ao público por Joaquim de Fiore e seus numerosos amigos, encontrava terreno propício para grassar em
meio às desordens religiosas e políticas dos séc. XIV e XV (transferência dos Papas para Avinhão, grande Cisma
do Ocidente cristão; novas teorias relativas ao governo da Igreja, do Estado). A evocação do fim do mundo servia
freqüentemente de tema aos pregadores para excitar os homens à penitência e ao mútuo entendimento. S. Vicente
Ferrer (+1418), talvez mais por artifício oratório, assinalava-lhe o ano de 1412. Principalmente em fins do séc. XV
esperava-se uma intervenção apocalíptica de Deus; oráculos e profecias aterradores se difundiam febrilmente; as
numerosas narrativas de fenômenos portentosos excitavam nas imaginações o desejo de os ver, mesmo à custa de
64
Adv. Haer. 5,23,2
65
ln Danielem 4, 23.
66
. Cf. Sto. Ambrósio, In Lc 7,7; Sto. Hilàrio, In Mt17,2.
67
Serm. 10
68
Cf. S. Jerónimo, Ep. 71,11 (o Santo Doutor comenta 2Ts 2,5); Latâncio (t após 317) já antes escrevera: "Ebta (Roma) é a cidade que ainda tudo sustenta".
(Divinae Institutiones 7,25,5i. Vejam-se também S. João Crisóstomo, in Mt 20,6; In lo 34,3: S. Leão Magno, serm. 19.1.
69
Moral 17,9,11.
70
Muito significativo é o episódio seguinte: Na Lorena corria o rumor de que o mundo terminaria em 970, pois nesse ano a sexta-feira santa cairia a 25 de
março, festa da Anunciação do Anjo a Maria; ora, certos cristãos não podiam compreender que o mesmo
dia assinalasse simultaneamente a conceição e a morte do Senhor. Felizmente, porém, houve quem demonstrasse que o mesmo "paradoxo" já se verificara
mais de uma vez, particularmente em 908, sem que o mundo, por isto, tivesse cessado de existir!
71
Cf. Suma Teol. Supl. III 91, a.2 ad 8.
árduas peregrinações e penitências; falava-se de um Papa angélico, etc. Os ânimos fermentavam cada vez mais... A
explosão deu-se realmente em 1517, não por uma catástrofe cósmica (fim do mundo), mas pela irrupção do
luteranismo e da reforma protestante. Esta, sem dúvida, pôs fim a muitos valores veneráveis da Idade Média, e deu
ocasião a que novos valores surgissem por obra da autêntica Reforma, empreendida pelo Concílio de Trento
(1545.63).

6. Na Idade Moderna
Não faltam igualmente indivíduos e correntes de pensamento que se propõem prever a data final. Assim:
Pico de Mirandola (+1494) humanista famoso, colocava a volta de Cristo no ano de 1994, baseando-se
em pressupostos de mística neoplatónica e cabalística:
Tiago Nacchiante O.P. (+ 1569), bispo de Chioggia, predizia o fim do mundo para o ano de 1800;
Sobre a dita "Profecia de S. Malaquias", veja-se nosso Curso sobre Ocultismo, Módulo 32.
Cornélío a Lapide (+ 1637), exegeta católico, em 1626 julgava que próximo estava o fim do mundo,
apelando, entre outras razões, para um oráculo comum entre os turcos: a religião de Maomé haveria de durar mil
anos; ora, pouco faltava para se preencher esse prazo; o Islamismo, pois, haveria de mover em breve a última
perseguição contra a Igreja e sofrer o seu golpe mortal pela vinda de Cristo.
João Bengel (+1752), exegeta luterano da corrente pietista, propunha o seguinte cálculo, todo baseado
em presumidas indicações cronológicas da Bíblia:
Desde a criação do mundo até o nascimento de Cristo decorreram 3943 ou, redondamente, 3940 anos.
Ora, segundo 1Pd 4,7, "o fim de todas as coisas está próximo"; o que significa que a era iniciada por Cristo deve
ser de menor duração que a anterior. Esta nossa era cristã, porém, certamente há de compreender, antes do juízo
universal e da consumação do mundo, os 2000 anos de que fala Ap 20 (um milênio, durante o qual Satanás
permanecerá ligado no abismo, e outro milênio, em que os santos reinarão com Cristo sobre a Terra); por
conseguinte, o início do primeiro milênio não podia distar muito da época em que Bengel vivia (1740 + 2000 -
3740; a era cristã devia durar menos de 3940 anos!). Ulterior precisão: o número 7 tem preponderância nas
indicações cronológicas da Sagrada Escritura, donde Bengel julgava poder concluir que a duração total da História
será de 7777 anos. Ora, se esta é a duração total da história, não se pode atribuir à era cristã extensão maior do que
7777 - 3940, isto é, 3837 anos; o que implicava que o primeiro milênio devia começar no ano 3837 - 2000, ou seja,
em 1837. Por conseguinte, vivendo no séc. XVIII Bengel esperava para 1837 a próxima vinda de Cristo, que
inauguraria uma nova ordem de coisas, provisória, até a consumação definitiva da história no ano de 3837 (7777, a
partir da criação do mundo).
Os adventistas foram fundados por Guilherme Miller (+ 1849), que, depois de aderir ao racionalismo de
sua época, se convertera à corrente protestante dos batistas. Partia do princípio de que todas as profecias bíblicas
referentes ao Messias se devem cumprir ao pé da letra. Ora, já que o Messias foi pobre e mal recebido em sua
primeira vinda, há de voltar uma segunda vez à Terra, e estabelecerá um reino glorioso milenário, que será a
realização verbal da era messiânica profetizada pelo Antigo Testamento; terminado o milênio, verificar-se-á o juízo
final (cf. Ap 20).
E quando se dará a vinda inaugurativa do reino milenário?
Miller lia em Dn 8,14; "(A abominação durará) até duas mil e trezentas tardes e manhãs; a seguir, o
santuário será purificado". Neste texto muito enigmático, tomando as "tardes e manhãs" por anos, julgava que
Cristo viria instaurar o milênio no ano 2300 a partir da data do oráculo, ou seja, a partir de 457 a.C.; o que equivalia
a dizer que o Senhor voltaria para instaurar justiça e paz no ano 1843 da nossa era ou, mais precisamente, entre
março de 1843 e março de 1844. Quando em 1831 a profecia de Miller começou a ser propalada, suscitou muitos
adeptos entusiastas, principalmente entre batistas e metodistas, os quais passaram a ser chamados adventistas (uma
chuva de asteróides, em 1833, parecia ser o abalo de estrelas - prenúncio do fim). Todavia, o ano de 1843 trouxe a
grande decepção aos 50.000 discípulos! Miller continuou a afirmar que o Senhor não tardaria; S. Snow refez os
cálculos, anunciando o fim do mundo para 22 de outubro de 1844; em conseqüência, em certas regiões dos EEUU.
da América do Norte, camponeses e operários abandonavam o trabalho e passavam as noites ao relento, esperando
com impaciência febril a vinda de Cristo: a desilusão sofrida ainda foi mais amarga. Os adventistas até hoje
conservam a crença no próximo regresso do Senhor; alguns dizem que o prazo previsto por Daniel de fato terminou
em 1844, mas que Cristo ainda está a purificar o santuário; virá logo depois de completar esta obra.
Os "Sérios Estudiosos da Bíblia" ou, a partir de 1931, as "Testemunhas de Jeová", fundados por Charles
Russell (+1916), sofreram a influência dos adventistas. Conforme os cálculos fantasistas de Russell, os sete dias da
criação (cf. Gn 1) significam que o mundo durará um múltiplo de sete; a cronologia bíblica revela que não estamos
longe de findar este período. Pois que deve haver um paraíso terrestre de 1.000 anos antes da consumação, Russell
afirmava que a sua geração não passaria sem ter visto o Reino de Deus. Aguardava, pois, a segunda vinda de
Cristo, espiritual e invisível, para 1874; a partir deste ano até 1914, o Senhor faria a colheita dos seus fiéis; em
1914 inauguraria o reino milenário, ao qual no ano de 2914 se seguiriam os céus novos e a Terra nova. Russell
repartia a história do mundo em três fases: a antiga, desde a criação até o dilúvio; a atual, subdividida em período
patriarcal (do dilúvio até o Patriarca Jacó), período judaico (de Jacó até Cristo), período cristão (desde Cristo até o
início do milênio); a fase futura compreenderia o milênio (1914-2914) e a era do mundo renovado, definitivo. O
cálculo foi refeito: apontaram o ano de 1925; depois, o de1975! Mas até hoje nada do previsto aconteceu!
Em 1917, já que as profecias não se cumpriam, Alexandre Freytag (+ 1947) separou-se da seita e fundou
o ramo dissidente dito "dos Amigos do Homem" ou "dos Amigos do Eterno" ou "dos Discípulos de Cristo". Pôs-se
a pregar e escrever, anunciando a vinda próxima do Reino de Deus, no qual todos os homens habitariam em vilas
dotadas de todo o conforto e higiene; não haveria nem proprietários nem patrões; tudo seria dado a todos
gratuitamente...; haveria vegetação abundante, temperatura amena e uniforme em todo o globo, etc.

7. Em nossos dias
Ultimamente a proximidade do ano 2000 tem inspirado a vários videntes novas "profecias"; há quem
preveja três dias de trevas, que somente velas bentas poderão iluminar. "Uma só vela será suficiente para os três
dias, mas nas casas dos ímpios não arderão. Durante os três dias de trevas os demônios aparecerão com as formas
mais odiosas e espantosas. Ouvir-se-ão pelos ares as blasfêmias mais horríveis. Nuvens vermelhas como o sangue
percorrerão o céu; os estrondos do trovão sacudirão a terra; raios sinistros sulcarão as nuvens em uma época em
que eles nunca se produziram... O sangue correrá com tanta abundância que os homens o terão até a cintura. A terra
se transformará num imenso cemitério... Haverá prodígios diabólicos nos ares. Corpos se elevarão no ar...".
Há vários paralelos deste tipo de "profecia", que não tem o caráter de autenticidade, mas de invenção
fantasiosa. As autênticas profecias, que são as bíblicas, são sóbrias e recatadas. Como dito, tais "profecias" são uma
réplica natural e espontânea à ingratidão dos tempos; popularmente se diz: "Só Deus pode dar um jeito neste
mundo!".

PERGUNTAS
1) Você já tem ouvido "profecias" a respeito do fim do mundo?
2) Que atitude tem tomado ao ouvi-las?
3) Que é que essa multidão de previsões lhe sugere numa reflexão serena?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 27: A SEGUNDA VINDA DE CRISTO (PARUSIA) (V)


INCERTEZA DA DATA

Tendo percorrido algumas das "profecias" relativas ao fim do mundo ("profecias" sugeridas pela
necessidade de encontrar uma "saída" para tempos ingratos), vejamos o que os textos do Novo Testamento
certamente ensinam a tal respeito.

Lição 1: "Não toca a vós..." (At 1,7)

O próprio Cristo declarou explicitamente não pertencer à Sua missão revelar aos homens o dia da parusia;
tal conhecimento ser-lhes-ia pernicioso mais do que vantajoso. Assim, em seu sermão escatológico, dizia:
"Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém os conhece, nem mesmo os anjos do céu, nem mesmo o Filho,
mas, sim, o Pai só" (Mc 13,32).
A exegese deste texto já fez correr rios de tinta desde os primórdios da Igreja. Provém de Sto. Agostinho
a interpretação hoje geralmente aceita pelos exegetas católicos: é na qualidade de Mestre dos homens que o Filho
diz ignorar a época do juízo universal; o Filho não a sabe porque não pertence à sua missão de Doutor e Salvador
comunicar este segredo de Deus aos homens, ou seja, porque está fora do depósito de verdades a serem reveladas
(cf. Sto. Agostinho, in Ps 36 Migne 36,355).
Ainda aos Apóstolos que perguntavam quando se consumariam as suas expectativas messiânicas,
respondeu o Senhor:
"Não toca a vós ter conhecimento dos tempos e momentos que o Pai fixou por Sua própria autoridade "
(At 1 , 7).
E a Igreja deseja que se respeite o plano divino de deixar oculta aos homens a época da parusia. Diante de
tudo o que se tem propalado sobre o assunto, ela será sempre um baluarte de paz, exortando os homens a que, sem
se deixar perturbar por "rumores". se empenhem com zelo por fazer a cada momento o que é, certa e
indubitavelmente, da vontade de Deus. Foi para assegurar essa tranqüilidade de alma que a Igreja mais de uma vez
se viu obrigada a se pronunciar contra os pregadores de "novidades".
Vão aqui transcritas duas declarações do Magistério da Igreja dirigidas aos que anunciam a doutrina do
Evangelho.
Um Concílio regional de Milão em 1365 assim admoestava:
"Não apregoem como coisas certas a época de vinda do Anticristo e a data do juízo final, já que pelos
lábios do Senhor foi dito: Não toca a vós ter conhecimento dos tempos e momentos. Nem ousem, a partir das
Escrituras Sagradas, procurar adivinhar o futuro e indicar determinado dia para determinado acontecimento.
Também não afirmem temerariamente ter-lhes sido isso revelado por Deus".
O 5o Concílio universal do Latrão, em 1516, decretava:
"Mandamos a todos os que estão, ou futuramente estarão, incumbidos da pregação, que de modo nenhum
presumam afirmar ou apregoar determinada época para os males vindouros, para a vinda do Anticristo ou para o
dia do juízo. Com efeito, a Verdade diz: Não toca a vós ter conhecimento dos tempos e momentos que o Pai fixou
por Sua própria autoridade. Consta que os que até hoje ousaram afirmar tais coisas mentiram e, por causa deles,
não pouco sofreu a autoridade daqueles que pregam com retidão. Ninguém ouse predizer o futuro apelando para a
Sagrada Escritura, nem afirmar o que quer que seja, como se o tivesse recebido do Espírito Santo ou de revelação
particular, nem ouse apoiar-se sobre conjeturas vãs ou despropositadas. Cada qual deve, segundo o preceito divino,
pregar o Evangelho a toda criatura, aprender a detestar o vício, recomendar e ensinar a prática das virtudes, a paz e
a caridade mútua, tão recomendada por nosso Redentor".
O Papa João XXII, em 1318, condenou semelhantes erros dos chamados Fraticelli:
"Há muitas outras coisas que esses homens presunçosos descrevem como que em sonho a respeito do
curso dos tempos e do fim do mundo, muitas coisas a respeito da vinda do Anticristo, que lhes parece estar às
portas e que eles anunciam com vaidade lamentável. Declaramos que tais coisas são, em parte, heréticas, em parte
doentias, em parte fabulosas. Por isto nós as condenamos com os seus autores, em vez de as divulgar ou refutar"
(D.-S, no 916 [490]).

Lição 2: O Pensamento de Cristo

Alguns textos do Novo Testamento têm sido explorados pela chamada "Escola escatologista" (Weiss,
Schweizer, Loisy e outros) afim de firmar a tese de que Jesus, na realidade, esperava e ensinava ser iminente a
instauração do reino glorioso de Deus.
Examinemos mais detidamente o assunto.
Nos Evangelhos, as afirmações de Jesus referentes à vinda do Reino de Deus se podem distribuir em
quatro seções:
1) uma primeira série de textos apresenta o Reino de Deus como já presente entre os homens:
"Desde os dias de João Batista até hoje, o reino de Deus é tomado por força, e são os violentos que dele
se apoderam" (Mt 11,12; cf. Lc 16,16).
"Se expulso os demónios pelo Espírito de Deus, o reino de Deus veio a vós" (Mt 12,28; cf. Lc11,20).
"Tendo-Lhe os fariseus perguntado: Quando virá o Reino de Deus?, Jesus respondeu-lhes e disse; O
Reino de Deus não vem de maneira a ser observada, de sorte a se poder dizer: Eis que aqui está; ou: Ali está; o
Reino de Deus está dentro de vós" (Lc 17,20s).
2) Em outra série de textos o Reino de Deus aparece como realidade que cresce lentamente antes de
atingir a sua consumação. É o que indicam as parábolas do grão de mostarda que se torna uma árvore considerável
(Mt 13,31s); do fermento que penetra e levanta a massa (Mt13,33; Lc13,20s); do trigo e do joio que devem crescer
conjuntamente (Mt 13,24-30).
Jesus declara explicitamente que o Evangelho será pregado no mundo inteiro antes do fim do mundo: Mt
24,14; cf. Mt 26,13; 28,19s.
A fundação da Igreja, a entrega do primado a Pedro, a promessa da assistência do próprio Jesus e do
Espírito Santo insinuam em Cristo a consciência de que ainda estava distante a consumação da História.
3) Uma terceira categoria de textos inculca que, embora o fim do mundo seja uma realidade inelutável, o
seu dia e a sua hora devem, conforme o plano de Deus, ficar velados aos homens; vejam-se as passagens citadas na
lição 1 deste Módulo.
4) Há ainda uma quarta série de textos, que anunciam uma catástrofe iminente e tremenda, a qual
terminará com a manifestação do Filho do homem. Assim; "Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra.
Em verdade vos digo: não tereis percorrido as cidades de Israel antes que venha o Filho do homem" (Mt 10,23),
"Em verdade vos digo: há alguns aqui presentes que não provarão a morte antes de ter visto o Filho do
homem vindo em seu reino" (Mt 16,28).
Depois de falar da grande catástrofe, acrescenta Jesus: "Em verdade vos digo: esta geração não passará
antes que tudo isto aconteça, O Céu e a Terra passarão; as minhas palavras, porém, não passarão" (Mc 13,30s; cf
Mt 24,21 ; Lc 21,25,33).
Ao Sumo Sacerdote que lhe perguntava se era o Filho de Deus Bendito, Jesus respondeu: "Sou-o. E vereis
o Filho do homem assentado à direita do Poder (=de Deus) e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14,62; cf. Mt
26,64).
Ora, que dizer destas quatro séries de textos?
As três anteriores se concatenam entre si muito harmoniosamente:
a primeira ensina que o Reino de Deus já desceu à Terra com a vinda do Redentor e se encontra em sua
fase inicial, ainda latente ou germinal na Igreja;
a segunda fala da propagação desse Reino no mundo pela pregação dos discípulos o crescimento será
lento e nunca deixará de ser entrevado pelos adversários (o joio);
a terceira série acena para a consumação gloriosa do Reino, fazendo observar, porém, que sua época é
imperscrutável aos homens.
Um exame atento dos textos da quarta série leva a concluir que tais textos não se referem à história da
Igreja e à sua consumação, mas à catástrofe que se deu no ano de 70, quando de fato ainda viviam muitos
contemporâneos de Jesus: a tremenda queda de Jerusalém sob os golpes do general romano Tito.
Como se explica, porém, que Jesus se refira a este acontecimento próximo usando de termos que evocam
a sua segunda vinda e o fim do mundo?
Para se entender isto, tenha-se em vista uma particularidade do estilo profético: o Profeta, na Sagrada
Escritura, costuma ver e descrever acontecimentos futuros, distantes uns dos outros, como se fossem realizar todos
na mesma época; bastava que os mais próximos fossem tipos dos mais remotos para que o vidente predissesse
acontecimentos próximos e remotos no mesmo discurso sem marcar o intervalo que os separaria entre si. O Profeta
assemelhava-se a um observador que de longe contempla uma região montanhosa; percebe as cristas das
cordilheiras, sabe descrevê-las, mas não distingue os vales que medeiam entre os picos; os muitos planos verticais,
próximos e longínquos, lhe parecem coincidir numa única perspectiva. Esta particularidade de estilo já se nota nos
textos do Antigo Testamento em que os Profetas descrevem a libertação do exílio babilônico (fins do séc. VI a-C-)
e a libertação messiânica, a Redenção (na era cristã): aquela sendo tipo desta, uma era anunciada com traços
literários e históricos que competiam à outra (cf, principalmente Is 40-66). Ora, foi também o que se deu nos
discursos de Jesus: a guerra judaica de 66 a 70, que terminou com a ruína de Jerusalém, constituiria um juízo
tremendo proferido sobre os judeus, seria uma eloqüente demonstração de que o Filho do homem é, de fato, o Rei e
o Juiz que os judeus rejeitaram na sua primeira vinda. É o que permitia a Jesus tomar essa próxima catástrofe como
tipo da catástrofe final, em que a todos os povos Cristo se manifestará como Juiz universal e Rei triunfante; a ruína
próxima de Jerusalém seria o fim de um mundo, da nação judaica, e assim prefigurava o longínquo fim do mundo,
das nações. Em conseqüência, o Senhor, adotando o estilo profético, entrelaçava traços do acontecimento "tipo" e
do "antítipo", isto é, do juízo próximo, parcial (sobre os judeus) e do juízo remoto universal; encontram-se, pois,
num único discurso frases que apresentam a catástrofe como iminente (cf. Mt 24,32-35) e outras que a põem à
distância (cf. Mt 24,14), ou sentenças que se referem à ruína de Jerusalém com expressões atinentes à parusia final
(cf. Mt 1O,23; 16,28; 26,64). Naturalmente, não é sempre fácil distinguir um e outro acontecimento com seus
respectivos traços no quadro único em que Jesus os apresenta.
Em conclusão, verifica-se que não se pode atribuir a Jesus a famosa atitude assim descrita pelos
escatologistas: "Jesus pregava o Reino, mas o que veio, foi a Igreja". - Na verdade, a Igreja, com a sua longa
duração e seu paulatino amadurecimento, estava bem nas cogitações de Jesus. Os textos em que o Senhor prediz
catástrofe iminente, são relativos à queda de Jerusalém no ano de 70. 72

Lição 3: O Pensamento dos Apóstolos

Desenvolveremos dois aspectos: a última hora do mundo e a esperança de S. Paulo.


3,1. A Última Hora do Mundo
No epistolário dos Apóstolos encontra-se a menção de que estamos na hora derradeira da história (1 Jo
2,18), nos fins dos séculos (1 Cor lo,11 ), nos últimos dias (2 Tm 3,17; 2 Pd 3,3; Tg 5,3); afirma-se, por
conseguinte, que o Senhor está próximo (Tg 5,8; Fl 4,5; Hb l0,37; Ap 22,7,lis) ou que o fim de todas as coisas se
avizinhou (1 Pd 4,7).
Terão os Apóstolos S. Pedro, S. Paulo, S. Tiago e S. João ensinado que em breve se verificaria o fim do
mundo?
Esta conclusão não corresponderia à mente dos ditos autores. Os Apóstolos, tendo em vista transmitir um
ensinamento religioso, falavam de um fim dos tempos "teológico", não meramente "cronológico".
E que significa o fim dos tempos na linguagem teológica?
Após o dom do Espirito Santo no dia de Pentecostes, todos os meios de salvação prometidos desde os
primórdios da história já se acham concedidos; não se aguarda mais nenhuma instituição nova para justificar e
santificar os homens; a graça habitual que o cristão traz na alma, é a semente mesma da glória eterna; o Senhor está
próximo; habita, velado, nos seus fiéis. Por conseguinte, a história sagrada entrou na sua fase definitiva; em outros
termos: a história chegou à sua última etapa religiosa, teológica, a qual pode, sem dúvida, abranger mais de uma
72
De resto, pergunta-se: como poderiam ter as gerações humanas continuado a acreditar em Cristo e na sua mensagem, desde que tivessem verificado um erro
do "Profeta" tão grave como o que Lhe atribui a Escola Escatologista?
etapa da história profana.73 O mundo poderia Ter acabado no dia seguinte a Pentecostes, voltando então Cristo
como Juiz universal, e nada teria faltado dos dons salvíficos que Deus prometeu aos homens. Pode terminar nos
nossos tempos, como também poderá continuar por muitos séculos, sem que se mude o caráter definitivo do regime
cristão iniciado em Pentecostes; nem revelação dogmática nem sacramento novo são aguardados. Se a história
ainda se desenrola, é, unicamente, para que se preencha o número de bem-aventurados que Deus, em Seu plano
eterno, há por bem chamar ao reino celeste (cf. Ap 6,9-11).
São estas as idéias que ditaram e que explicam as expressões dos Apóstolos atrás referidas. Quando estes
aludem ao fim dos tempos no sentido natural ou cósmico, confessam a incerteza da data; haja vista o texto de 1Ts
5,2-4 já citado. S. Pedro, por sua vez, escreve:
"Há uma coisa, caríssimos, que não deveis ignorar; é que, para o Senhor, um dia é como mil anos e mil
anos são como um dia, Não, o Senhor não retarda o cumprimento de Sua promessa, como imaginam alguns, mas
usa de paciência para convosco, não querendo que alguém pereça e, sim, que todos façam penitência, Todavia, o
dia do Senhor virá como um ladrão" (2Pd 3,8-10).
S. Pedro repete o princípio do Antigo Testamento: o que pode parecer longo aos homens, deve ser dito
breve aos olhos do Eterno (cf. SI 90,4).
S. João, no Apocalipse, inculca a mesma incerteza:
"Lembra-te, pois, do ensinamento que recebeste e ouviste: guarda-o e arrepende-te. Se não vigiares, irei
ter contigo como um ladrão, sem que saibas a que hora irei Ter contigo" (3,3).

3.2. A Esperança de São Paulo


Em particular, as epístolas paulinas levariam a crer que o Apóstolo se julgava ser daqueles que, ainda em
vida, verão o Senhor a voltar à sua glória. Com efeito, escreve:
"Eis que vos dizemos conforme a palavra do Senhor: nós, os vivos, os sobreviventes por ocasião da vinda
do Senhor, não anteciparemos os que estiverem mortos; pois o Senhor mesmo, ao sinal dado, à voz do Arcanjo, ao
toque da trombeta divina, descerá do céu; então os que estiverem mortos no Cristo, ressuscitarão em primeiro
lugar; a seguir nós outros, os sobreviventes, os que tiverem sido deixados, seremos arrebatados com eles nas
nuvens ao encontro do Senhor nos ares. E assim estaremos para sempre com o Senhor" (1Ts 4,15-17).
"Eis que vos digo um mistério: não adormeceremos (morreremos) todos, mas seremos todos
transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao toque da última trombeta; pois a trombeta soará e os
mortos ressuscitarão, incorruptíveis, e nós seremos transformados" (lCor 15,51s).
Como se hão de entender estas afirmações paulinas?
Quem conhece o estilo do Apóstolo, sabe que S. Paulo tem a tendência habitual a se incluir no grupo de
seus interlocutores ou no grupo das pessoas de quem ele fala; assim é que, em vez de se exprimir propriamente na
segunda ou na terceira pessoa do plural, o Apóstolo não raro usa impropriamente do pronome da primeira pessoa
("nós").74 Foi o que se deu nas duas passagens acima: intencionando referir-se aos que estiverem vivos por ocasião
da parusia (próxima ou remota... ; a época não vinha ao caso), o Apóstolo empregava a expressão "nós". Este
pronome, porém, devido, como é, a uma figura de linguagem, de modo nenhum quer ser tomado ao pé da letra,
como se o Apóstolo se julgasse futura testemunha do fim do mundo. Esta interpretação é exigida pelo fato de que,
nas mesmas duas epístolas citadas, S. Paulo conta com a possibilidade (1Ts) ou com o fato mesmo (1Cor) de já ter
morrido, quando Cristo voltar. Haja vista
1Ts 5,9s: "Deus não nos destinou para a cólera, mas para a aquisição da salvação por Nosso Senhor Jesus
Cristo, o qual morreu por nós, a fim de que, quer estejamos vivos, quer mortos, vivamos juntos com Ele".
Entenda-se o final como se segue: "quer vivos, quer mortos" por ocasião da parusia, "vivamos"
finalmente na eternidade "juntos com Ele". Donde se vê que o Apóstolo não exclui a possibilidade de morrer antes
da parusia.
l Cor 6,14: "Deus, que ressuscitou a Cristo, ressuscitará também a nós por Seu poder..
2Cor 4,14: “... sabendo nós que Aquele que ressuscitou a Jesus Cristo, ressuscitará também a nós, e nos
apresentará a Ele convosco”.
Nestas duas passagens, o Apóstolo se inclui no número dos que ressuscitarão, isto é, dos que de fato
estarão mortos quando o Senhor reaparecer.
Muito significativo é também o texto de Fl 3,1Os, em que o Apóstolo exprime sua esperança de
participar, em sua carne, dos sofrimentos, da morte e da ressurreição de crista;
"... a fim de O (Cristo) conhecer, a Ele e ao poder da sua ressurreição, e a fim de participar dos seus
sofrimentos, tornando-me semelhante a Ele em sua morte, com a esperança de chegar à ressurreição dos mortos.”
Seria, portanto, precipitado e injusto afirmar, na base dos dois primeiros textos citados, que S. Paulo
ensinava a iminência da parusia. Todavia bem se pode admitir que tanto Paulo como os demais Apóstolos
73
Diz sabiamente S. Agostinho: "Esta última hora é longa; não obstante, é a última" (In 1Jo 3.3).
74
Figura de linguagem que em Retórica é dita enallagè (= inversão, em grego) de pessoa. Considerem-se como exemplos particularmente significativos os
textos de 1Ts 5,5.8-10; 1Cor 4,6; 6,14; 2Cor 4,14.
compartilhavam a expectativa ardente dos primeiros discípulos de Cristo, expectativa de que o Senhor voltaria em
breve; com efeito, o "Marana tha (Vinde, Senhor)" é a palavra final tanto de 1Cor (16,22) como do Apocalipse de
S. João (22,20).
PERGUNTAS
1) Como entender o texto de Mc 13,32?
2) Como a Igreja tem considerado "profecias" posteriores a Cristo relativas ao fim do mundo?
3) Que pensar da afirmativa dos escatologistas: "Jesus pregava o Reino, mas veio a Igreja"?
4) Que quer dizer "a última Hora" na linguagem do Novo Testamento?
5) São Paulo esperava ver Jesus Cristo voltar em sua glória?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 28: REINO DE DEUS E PROGRESSO HUMANO

Em meados do século XX, o tema "parusia" tomou nova configuração. Os autores reconhecem que as
alusões bíblicas à segunda vinda de Cristo estão vasadas, em grande parte, no estilo apocalíptico 75. Por conseguinte,
dão menos atenção aos pormenores literários dos textos escatológicos do Novo Testamento, e levantam uma
questão importante, de índole filosófico-teológica, a saber: a atividade humana, fonte de progresso científico e
tecnológico, vem construindo desde já o Reino de Deus neste mundo? Pode o Reino de Deus identificar-se, de
algum modo, com este mundo, cuja civilização é sempre mais esmerada? Que relação existe entre o trabalho
humano e a consumação cristã da história?
A controvérsia teve origem na França pouco antes da segunda guerra mundial (1939-1945) e ardeu após
esta, deslocando-se o seu cenário da França para a Alemanha. Examinemos os termos principais do debate e as
respectivas pistas de solução.

Lição 1: Escatologistas e Encarnacionistas (la fase)

Os teólogos católicos admitem todos alguma relação entre a história profana ou as atividades temporais
do homem e a realização do Reino de Deus. Neste ponto distinguem-se do pensador calvinista Karl Barth (1886-
1968), que negava qualquer relação entre a atividade humana e a vinda do Reino de Deus; um abismo
intransponível separaria uma da outra. Barth era coerente com Lutero (+ 1546): para este, o homem e o mundo
foram profundamente deteriorados pelo pecado original, de modo que a atividade profana do homem carece de
valor diante de Deus.
Os católicos dividiram-se em duas correntes: a escatolo9ista e a encarnacionista. Consideremo-las de
perto.

1.l. Os Escatológistas
Afirmam a transcendência do Reino de Deus; este ultrapassa os bens e as categorias de progresso deste
mundo. Por ora tem índole interior e invisível; o trabalho humano pode ser valioso para construir o Reino; mas a
sua contribuição positiva nem sempre é perceptível. Muito mais perceptível é a antítese entre a sabedoria deste
mundo e a de Deus; é o escândalo ou a loucura da cruz (cf. l Cor 1,23); é o aparente fracasso dos cristãos. Tais
teólo90s parecem pessimistas, insistem sobre o trabalho e a oração dos cristãos, mas julgam que os frutos
respectivos não se avaliam por resultados visíveis.
Louis Bouyer, um convertido do Protestantismo ao Catolicismo, é, dentre os teólogos franceses, um dos
mais extremados; eis como se exprime:
"Tudo o que fazemos por graça de Cristo, contribui para a edificação do Corpo de Cristo. O Apóstolo,
que sofre e pena através de seus esforços e seus fracassos, constrói muito realmente o templo de Deus" (La Vie
Intellectuelle, t, 16, n. l0 [1948] 35).

1.2. Os Encarnacionistas
Os Encarnacionistas acentuam a correspondência entre o visível e o invisível; em conseqüência, julgam
que a atividade visível e bem sucedida do homem neste mundo prepara progressivamente o Reino de Deus, Eis a
propósito as palavras de Gustave Thils: "Se temos fé na eficácia do Espírito, se cremos que Deus é mais poderoso
do que o mal, se admitimos que a graça de Cristo é mais ampla do que o pecado de Adão, podemos crer que o peso

75
Por estilo apocalíptico entende-se um modo de narrar caracterizado por figuras e símbolos; descreve a vinda de Deus ao mundo para julgar os povos,
propondo catástrofes cósmicas e abalo da natureza, que não devem ser tomados ao pé da letra, pois constituem apenas a moldura dentro da qual se coloca a
cena grandiosa da vinda solene de Deus ao mundo.
de bem realizado no mundo por obra do Espírito vai aumentando continuamente e leva os homens a maior unidade
orgânica, maior universalidade, maior paz, maior liberdade, maior santidade" (Teologia della Storia, 2 a edição,
revista, p. 76s).
O Reino de Deus escatológico aparece assim em continuidade (que não exclui transformação do
imperfeito em perfeito) com os resultados positivos que o homem vai obtendo ao longo da história. A mudança de
estruturas sociais teria influxo valioso na edificação do Reino de Deus. A construção do mundo civil ou profano
seria, de certo modo, a construção do próprio Reino de Deus.
Os encarnacionistas apelam para os dizeres de 2Pd 3,13 e Ap 21,1, que falam de céus novos e terra nova;
o emprego das palavras céus e terra indicariam continuidade entre o mundo presente caduco e o definitivo; doutro
lado, o adjetivo grego kainós aí utilizado significa novidade relativa, à diferença do adjetivo neós, que implicaria
novidade absoluta.
Os encarnacionistas também se valem de Rm 8, 19-22: "A criação em expectativa anseia pela revelação
dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade - não por seu querer, mas por vontade daquele que a
submeteu -, na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória
dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente".
Este texto sugeriu a alguns intérpretes a concepção de que o mundo é um imenso seio materno, que
contém em seus primórdios o mundo futuro posto em gestação, até o dia em que será dado plenamente à luz. Entre
os encarnacionistas, conta-se o Pe. Teilhard de Chardin S. J.: para este, a história profana é uma contínua ascensão,
humanização, amorização..., que leva ao ponto ómega: o termo culminante desse processo ascendente seria a
condição prévia da parusia de Cristo.
Os encarnacionistas querem dialogar com o marxismo, segundo o qual "a religião é o ópio do povo";
pregando uma bem-aventurança ultra-terrestre, ela desinteressaria (ou alienaria) o homem das suas atividades
terrestres. Ao paraíso celeste da religião o marxismo opõe o paraíso terrestre.
Está claro que a tese encamacionista católica é apta a dissipar as objeções marxistas. Isto, porém, não
basta para torná-la, sem mais, aceitável aos fiéis católicos.

Lição 2: O Concílio do Vaticano II

O Concílio não quis resolver a controvérsia entre escatologistas e encarnacionistas. Todavia rejeitou as
teses marxistas e o apelativo de "ópio do povo":
"A Igreja ensina que a esperança escatológica não diminui a importância das tarefas terrestres, mas, antes,
apóia o cumprimento das mesmas com novas motivações...
Ainda que rejeite absolutamente o ateísmo, a Igreja declara com sinceridade que todos os homens, crentes
e não crentes, devem prestar sua colaboração à construção adequada deste mundo, no qual vivem
comunitariamente" (Constituição Gaudium et Spes no 21).
Quando se discutia o texto desta Constituição (sobre a Igreja e o mundo moderno), o Cardeal Frings,
arcebispo de Colônia (Alemanha), aos 27/10/l964, opôs-se fortemente a qualquer insinuação favorável à tese
encarnacionista. Dizia então:
"O progresso do mundo não se converte imediatamente em Reino de Deus; o verdadeiro progresso do
gênero humano consiste em que a fé, a esperança e a caridade se desenvolvam em atividades que levem ao Reino.
Igreja e mundo só se identificarão entre si no fim dos tempos ou no Reino de Deus; são e têm que permanecer
distintos um do outro durante o tempo de peregrinação".
A estas intervenções do Cardeal Frin9s deve-se a redação do n o 39 da Constituição Gaudium et Spes:
"Ainda que o progresso terreno deva ser cuidadosamente distinguido do crescimento do Reino de Cristo,
contudo é de grande interesse para o Reino de Deus, na medida em que pode contribuir para organizar a sociedade
humana".
Estas afirmações são explicitadas pelo Credo do Povo de Deus, promulgado por Paulo VI aos
30/06/19.68:
"Confessamos que o Reino de Deus, iniciado na terra na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura
passa; que o seu crescimento próprio não pode ser confundido com o progresso da civilização e da ciência ou da
técnica humanas; mas consiste em conhecer sempre mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em
esperar sempre mais ardentemente os bens eternos, em responder sempre mais decididamente ao Amor de Deus, e
em distribuir sempre mais generosamente a graça e a santidade entre os homens" (n o 27).

Lição 3: Após o Concílio (2a fase da controvérsia)

Após o Concílio, o encarnacionismo se deslocou da França para a Alemanha e os países latino-


americanos, dando or19em ao que se chama "Teologia Política" e "Teologia da Libertação".
l. Teologia Política... O teólogo católico Johannes Baptista Metz é o principal autor desta corrente.
Forjou a expressão "escatologia criadora" ; esta quer dizer que as atividades do homem em prol de um mundo
melhor vão criando (vão tornando mais próxima) a vinda do Reino de Deus. Tais atividades, julga Metz, não
podem deixar de ter um cunho político, dada a importância do político dentro das estruturas da sociedade humana.
Assim se originou o conceito de Teologia Política.
2. Teologia da Libertação... O assunto é explanado em nosso Curso de Doutrina Social da Igreja,
Módulos 37 e 38.
3. Do lado do Escatologismo, sobressaiu o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar. Critica o
encarnacionismo, principalmente o de Teilhard de Chardin, pelo equívoco de Ter transferido um esquema de
evolução biológica para a área da história e para o nível do espírito. Na verdade, a história não é regida por leis
biológicas, mas pelo jogo da liberdade humana. Além disto, o fator moral-religioso e o contato com Deus são
responsáveis por muitos eventos históricos; estes, portanto, não se devem considerar apenas à luz das leis da Física
e da Biologia. Von Balthasar opõe-se também à identificação de progresso técnico e progresso dos valores
humanos (morais e religiosos). Pergunta: será que os avanços da técnica implicam sempre avanço dos valores
humanos propriamente ditos? Na verdade, o progresso científico e tecnológico tem sido ambíguo, pois vem
ocorrendo, não raro, em detrimento da dignidade da pessoa humana; o fascínio de descobrir e dominar a natureza
tem levado, muitas vezes, a subordinar ou sacrificar o homem à máquina e a interesses particulares; tenham-se em
vista, entre outros exemplos, a inseminação artificial entre seres humanos e as tentativas de hibridismo entre o
homem e o macaco...
Os escatologistas de língua alemã rejeitaram a acusação de pessimistas; apenas querem enfatizar que a
esperança cristã não pode estar fundada Sobre o progresso da ciência. Os escatologistas não são arautos de
decadência moral ou de catástrofes; afirmam tão somente que ignoram qual será o estágio final da história terrestre.
E certo, porém, que o futuro ultra-terrestre será esplendoroso, pois corresponderá ao Reino de Deus consumado; daí
a firmeza da esperança cristã. Com outras palavras ainda: a instauração do Reino será uma dádiva gratuita e
soberana de Deus; por isto não é lícito dizer que terá condicionamentos terrestres ou que está ligada aos avanços da
ciência e da técnica do homem.
Quanto aos textos bíblicos que anunciam céus novos e terra nova, insinuando continuidade entre o mundo
presente e o futuro, os escatologistas observam que fazem eco a textos do Antigo Testamento 76; os profetas
anunciam a era messiânica como um retorno ao paraíso 77. Ora o paraíso descrito em Gn 2 não é um lugar, mas um
estado, em que se achavam os primeiros pais; por isto o paraíso escatológico previsto por textos do Novo
Testamento não há de ser entendido como um lugar, mas como um estado de intimidade do homem com Deus.
Algo de semelhante se diga com relação a Rm 8,19-22. O v. 20 refere-se ao paraíso e à queda dos
primeiros pais, que sujeitou as criaturas inferiores à insensatez do homem. Por conseguinte, ser liberto dessa
sujeição não significará um fenômeno geográfico, mas a restauração da ordem ética violada pelo primeiro pecado.
Vê-se, pois, que a expressão "céus novos e terra nova" é insuficiente para fundamentar a continuidade
entre o mundo presente e o futuro.
Após quanto acaba de ser dito, podemos passar a uma

4. Conclusão

O debate entre encarnacionistas e escatologistas põe em evidência os seguintes pontos:


1) Entre o mundo presente, em que o homem desenvolve suas atividades culturais, e o Reino de Deus
escatológico, não há nem ruptura estrita nem continuidade absoluta.
2) O Reino de Deus já se iniciou no mundo com a vinda do Messias: os seus valores são principalmente
de ordem espiritual e moral.
3) Estes valores, porém, devem espelhar-se no trabalho do homem, realizado com a graça de Deus.
Negligenciar a reta ordem da sociedade, entregando-a à iniqüidade seria gravemente culposo para o cristão, como
lembra o Concílio do Vaticano II:
"O Concilio exorta os cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a procurar desempenhar fielmente as suas
tarefas terrestres, guiados pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que, sabendo não termos aqui
cidade permanente, mas buscarmos a futura, julgam poder negligenciar os seus deveres terrestres, sem perceberem
que mais estão obrigados a cumpri-los por causa da própria fé, de acordo com a vocação à qual cada um foi
chamado. Não erram menos aqueles que, ao contrário, pensam que podem entregar-se de tal maneira às atividades
terrestres, como se elas fossem absolutamente alheias à vida religiosa, julgando que esta consiste somente nos atos
do culto e no cumprimento de alguns deveres morais, Este divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana de
muitos deve ser enumerado entre os erros mais graves do nosso tempo... Portanto não se crie oposição artificial
76
Cf. Is 65,17: "Vou criar novos céus e nova terra; as coisas de outrora não serão lembradas".
77
Ver Is 11,6s: "Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um
menino pequeno os guiará. A vaca e o urso pastarão juntos; juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi". Cf. Is 65,25.
entre as atividades profissionais e sociais, de uma parte e, de outra, a vida religiosa" (Const. Gaudium et Spes n o
43).
4) Os valores morais que preparam a vinda do Reino de Deus, não são apenas os da última geração da
história, mas a soma dos esforços que no decorrer da história fazem os cristãos, para "completar em sua carne o que
falta à Paixão de Cristo" (Cl 1,24).

PERGUNTAS

1) Qual o pensamento dos escatologistas em relação à história profana e civil?


2) Como pensam os encarnacionistas no tocante ao mesmo assunto?
3) Como se pronunciou o Concílio do Vaticano II a respeito?
4) Qual a solução do problema "escatologismo ou encarnacionismo"?
5) Que é Teologia Política"?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 29: O ANTICRISTO

Costuma impressionar os cristãos a perspectiva de um Anticristo ou um pujante Adversário de Cristo, que


deverá manifestar-se no fim dos tempos. Todavia tal expectativa permanece obscura. Verifica-se que os textos
bíblicos sobre os quais se apoia tal concepção, são suscetíveis de mais de uma interpretação. Redigidos em estilo
apocalíptico, usam de muitas figuras literárias, entre as quais personificação de conceitos abstratos e de realidades
coletivas.
Examinemos, pois, estas passagens bíblicas para compreender o que objetivamente significam.

Lição 1: Os Sinóticos

No seu sermão escatológico diz Jesus:


"Surgirão numerosos falsos profetas, os quais seduzirão muita gente" (Mt 24,11).
"Surgirão falsos cristos (messias) e falsos profetas, os quais realizarão portentos e prodígios notáveis, de
modo a seduzir, se fosse possível, até os escolhidos, Eis que de antemão vo-lo anuncio" (Mt 24,24s).
No sermão do Senhor, os falsos messias e profetas, sedutores dos últimos tempos, aparecem como
verdadeira legião, mas legião acéfala; Jesus não menciona um chefe que possa ser dito "O ANTICRISTO".
Ainda é de notar que Jesus não fala de Anticristo(s), mas de pseudocristos, embora os falsários sejam
inimigos (antitéticos) a Cristo; o termo técnico e clássico Anticristo se deve a época posterior, isto é, a S. João, que
escreveu no fim do séc. I (cf. lJo 2,18.22; 4,3; 2Jo 7).
Em conclusão: o Anticristo, no Evangelho, não aparece nem com este título nem sob a forma de
indivíduo único. Não falta, porém, a predição de que, no fim dos tempos, adversários de Cristo surgirão, mais
numerosos e astutos que nunca, usurpando o nome e os poderes do Messias (= Cristo).

Lição 2: Escritos joaneus

S. João, nas suas epístolas, por quatro vezes menciona explicitamente o Anticristo, tanto no singular
como no plural:
"Filhinhos, esta é a última hora. Assim como ouvistes, vem um (não: o) Anticristo; já agora existe grande
número de anticristos; é o que nos diz que esta é a última hora" (lJo 2,18);
"Quem é o mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo (Messias)? Eis o Anticristo: aquele que
nega o Pai e o Filho" (lJo 2,22);
"Todo espírito que não confessa Jesus, não é de Deus; tal espírito, porém, é o do Anticristo, do qual
ouvistes dizer que vem e que já agora está no mundo" (lJo 4,3);
"Muitos sedutores apareceram no mundo, os quais não professam que Jesus Cristo se encarnou; ei-lo, o
Sedutor e o Anticristo" (2Jo 7).
A respeito destes textos, é de se notar que S. João, o primeiro escritor a usar da palavra Anticristo na
literatura cristã,78 emprega este termo tanto no singular como no plural. Mesmo, porém, quando o toma no singular,
atribui-lhe sentido coletivo, pois o aplica a todo e qualquer indivíduo que negue a Jesus Cristo, isto é, que deturpe o
sentido ortodoxo da Encarnação; Anticristo, para S. João, é, pois, todo e qualquer herege. Suposto este conceito,
78
O termo composto pode significar tanto "Aquele que é contrário a Cristo (ao Messias)" como "Aquele que se coloca em lugar do Cristo". Praticamente não
há muita diferença entre estes dois sentidos.
assim se interpretaria a advertência do Apóstolo nos versículos acima citados: "Ouvistes dizer que vem um
Anticristo? Com efeito, a tradição judaica já vo-lo insinua... Em verdade, porém, vos asseguro: desde que
irromperam no mundo erros e heresias a respeito de Jesus Cristo, o Anticristo já fez sua aparição; e notar que não é
um só, mas são muitos os Anticristos, são tantos quantos negam a messianidade de Jesus; na realidade, um
Anticristo não é senão um negador do Cristo".
Donde se conclui: também nas epístolas de S. João o Anticristo é uma coletividade, cujos membros se
sucedem através dos séculos; é a coletividade de todos os que se acham animados do espírito de mentira ou de
oposição a Cristo.
No Apocalipse, S. João não fala explicitamente de Anticristo(s), mas apresenta duas figuras de Bestas,
fantásticas, adversárias de Cristo (13,1-8.11-17); estas combatem na Terra contra a Igreja e, por fim, são projetadas
no lugar de perdição. Portanto, a noção de Anticristo não é alheia ao Apocalipse; todavia, dois são aí os Anticristos.
Mais ainda: conforme os melhores exegetas, eles significam duas coletividades, a saber: o poder político que em
qualquer época seja contrário à Igreja, coisa que sempre existiu e existirá (ao menos em surtos periódicos); e o
poder das falsas religiões ou filosofias que, também por todo o decorrer da história, travam luta contra a Verdade
trazida por Cristo. As duas Bestas do Apocalipse realizam prodígios, suscitando a admiração dos homens, marcam
com sinal próprio seus adoradores, blasfemam soberbamente etc., à semelhança do que se lê nos textos
escatológicos do Evangelho e de S. Paulo. Todavia, o Apocalipse não conhece o Anticristo individual.

Lição 3: As califas de São Paulo

S. Paulo propõe em 2Ts 2,3-10 a famosa descrição do Adversário e do Obstáculo que o detém.
Esta passagem não menciona os muitos falsos profetas ocorrentes no Evangelho, e parece incutir a noção
de um Inimigo individual, caracterizado como " Homem do pecado, Filho da perdição (homem destinado à ruína
temporal e eterna), Adversário, Iníquo", nomes que, de resto, não se conseguiram impor na tradição, mas cederam
ao termo de S. João: Anticristo. A função do Iníquo será imitar o Cristo com o fito de O combater: arrogante e
sacrílego, realizará milagres e far-se-á entronizar como Deus.
Como entender a descrição de tal personagem?
Embora apresente muitos traços que favorecem a crença num Anticristo individual, ela pode ser
interpretada na linha do Evangelho e de S. João acima reproduzida. Eis como então se explicaria o texto paulino:
O Adversário, agente que atua pelo poder de Satanás (Cf. v. 9), parece ser contemporâneo a S. Paulo
mesmo, pois o Apóstolo julgava que, em 51 da nossa era, ele só não se manifestava em público, visto estar detido
por um Obstáculo. Existia, pois, mas coibido e velado, pronto a se manifestar em toda a sua pujança; e este estado
latente inegavelmente se protrai até os nossos dias, devendo mesmo prolongar-se até que seja removido o
Obstáculo, ou seja, até os últimos tempos. Na base desta verificação, julga-se que o Adversário "paulino" não pode
ser um indivíduo humano, mas deve ser uma coletividade de inimigos que vem atravessando os séculos:
"anticristos" se sucedem a "anticristos", assumindo diversos tipos conforme as respectivas épocas em que vivem;
Satanás, porém, é impedido de desenvolver por eles toda a malícia que intenciona; e tal estado de coisas durará até
o fim dos tempos, quando, por permissão de Deus, se desencadeará todo o furor do Maligno e de seus agentes
multiplicados.
Mais ainda: verifica-se que o Adversário, assim entendido, há de ser identificado com o "Mistério da
iniqüidade" (outra expressão paulina que designa a coletividade das forças malignas), mistério que também em 51
"já se achava em atividade" (Cf.. v. 7). S. Paulo personificou o Mistério da iniqüidade, dando-lhe os títulos de
"Adversário, Iníquo..."; este proceder é muito habitual no estilo apocalíptico, que tende a representar coletividades
como se fossem indivíduos: assim as duas Bestas de Ap 13 são o símbolo de todos os artifícios humanos (políticos
e filosóficos) anticristãos; as duas testemunhas de Ap 11 significam o conjunto dos pregadores do Evangelho
através dos séculos; o rei de Tiro, em Ez 28, designa a cidade capital e o reino de Tiro; o Faraó, em Ez 29-32,
representa todo o Egito. E não há dúvida de que o texto apocalíptico de 2Ts 2, por muito original que pareça, na
realidade repete expressões clássicas da literatura apocalíptica do Antigo Testamento, a ponto de poder ser
considerado como um tecido de fórmulas proféticas... tomadas de empréstimo. 79 De resto, o Apóstolo, ao expor
suas idéias, comprazia-se em atribuir a um indivíduo o que ele reconhecia convir a muitos; cf. l Cor 4,6.
Em favor da identificação do Iníquo (sujeito masculino) com o Mistério da Iniqüidade (sujeito neutro, em
grego), aponta-se ainda o fato de que o Apóstolo, do outro lado, designa o Obstáculo igualmente sob a forma
79
As figuras bíblicas a que S. Paulo alude, são principalmente Antioco Epifanes; o rei de Tiro, e Gog, rei de Magog. A respeito de Antioco, ímpio peseguidor
da verdadeira fé no séc. II a. C., escreve Daniel: "O rei procederá como bem quiser, elevar-se-á e exaltar-se-á acima de todo deus; contra o Deus dos deuses
dira coisas monstruosas, e será bem sucedido, até que a cólera chegue ao auge, pois o que foi decretado se cumprira" (Dn 11. 36: cf. 7. 25: 9. 27). Ao rei de
Tiro, personificaçao do reino de Tiro, escreve Ezequiel em nome de Deus: "Teu coração se exaltou e disseste: 'Sou um deus, ocupo um trono de deus no
coração dos mares'. Na verdade, porém, és um homem e não Deus; não obstante, queres ter um coração semelhante ao coração de um deus" (Ez 28,2).
Semelhante tipo ímpio é o do rei tirânico da Babilónia apresentado em Is 14,13s. Gog, rei de Magog, é personagem desconhecido na história, mero símbolo
literário. Ezequiel, nos capítulos 38s, o introduz como o chefe do exército dos inimigos de Deus, que no fim dos tempos fará uma incursão devastadora sobre o
povo de Deus. Em sua soberba, e apesar do seu aparato pomposo, Gog, com seus súditos, será exterminado pelo Senhor Deus. Os nomes "Iniquo, Homem do
Pecado ou da Iniqüidade" podem ter sido sugeridos a S. Paulo por SI 89,23; 94,20.
masculina (- Aquele que detém, v. 7) e sob a forma neutra (- Aquilo que detém, v..6). Há, pois, entre as duas forças
que se opõem, um paralelismo de designações; isto insinua que, assim como o Obstáculo já era contemporâneo a S.
Paulo e ainda perdura, assim também o Adversário, o Iníquo, existe desde o início do Cristianismo e ainda aguarda,
latente, o tempo de sua parusia. Donde mais uma vez se conclui que o Anticristo há de ser uma coletividade, e não
um indivíduo.
Acrescentam, porém, os autores que a concepção coletiva não exclui no fim dos tempos tenha o poder
maligno seu expoente máximo nas atividades de um homem, o qual será como que a "encarnação" de todos os
artifícios da iniqüidade. Não se restrinja, porém, o conceito de Anticristo a este indivíduo.

Lição 4: Origem de um "Anticristo individual"

A idéia de um Anticristo individual parece ter origem não nas Escrituras do Novo Testamento, mas na
tradição judaica. Não há dúvida de que os israelitas, nos últimos
A respeitoséculos antes de Cristo, tendiam a dar sentido literal às descrições muito figuradas de Ez 27;
38s; Dn 11 ; a partir do séc. II a.C., inseriam sempre nas suas cenas apocalípticas a imagem sinistra de um
indivíduo que recapitularia em si todo o poderio do mal. Ademais, aconteceu que em 63 a.C. o general romano
Pompeu se apoderou de Jerusalém e profanou o Templo de Javé, reproduzindo os traços do grande Adversário, o
Profanador, que já cem anos antes fora Antíoco Epifanes (175-164 a-C-). Ora, a figura de Pompeu, sobrepondo-se à
de Antíoco, veio corroborar, na mente dos judeus, a idéia do Homem Iníquo, perseguidor no fim dos tempos; os
salmos ditos de Salomão, apócrifo provavelmente escrito na época do general romano, aludem a Pompeu como
sendo o Pecador (2,1), o Dragão soberbo (2,29), o Ímpio (17,13). Pois bem; é na linha desta tradição judaica que se
situa o texto de S. Paulo, 2Ts 2: o Apóstolo não fez senão repetir os traços literários do grande Perseguidor e
Sedutor, sem, por isto, exigir para as suas palavras a interpretação estritamente literal que as fontes judaicas,
utilizadas pelo Apóstolo, não pedem; o que Paulo certamente queria incutir é que, nos últimos tempos, a mais
violenta das perseguições será desencadeada sobre o povo de Deus, consoante o que claramente dizem os escritos
escatológicos do Antigo Testamento (cf. Ez 38s; Jl 4,1-13; Zc 12,1-lo). Quanto a S. João, ele alude, como acima foi
dito, à expectativa judaica de um Perseguidor (Anticristo); corrige-a, porém, pela afirmação de que o Anticristo já
veio e é múltiplo, pois múltiplos são os hereges que aparecem.
Entre os cristãos subseqüentes, os traços do Perseguidor, a crença no Anticristo individual, se pautaram
sobre figuras da história e da literatura posterior a Cristo; não raro a concepção se fundia com a expectativa romana
do Nero redivivo: o Imperador matricida, o primeiro e típico Perseguidor da 19reja, ressuscitaria no fim dos
tempos, para seduzir os fiéis e ser definitivamente punido por Cristo. Assim ainda pensavam contemporâneos de S.
Agostinho (+ 430) e Sulpício Severo (t cerca de 420).80
Seria descabido enunciar outras tentativas feitas pelos autores cristãos para descrever o Anticristo futuro
ou identificá-lo no decorrer da história; esses esforços foram por vezes demasiado arbitrários. Retenha-se apenas
que o caráter individual ou coletivo do Anticristo não modifica as concepções gerais da escatologia cristã; aos
católicos fica a liberdade de optar por uma ou outra opinião. A Igreja recomenda principalmente sobriedade nas
elucubrações atinentes a este assunto.

PERGUNTAS
1)Que se depreende do Evangelho de Mateus a respeito do "Anticristo"?
2) Que diz S. João sobre o Anticristo?
3) Como entender o "Homem do Pecado" em 2Ts 2?
4) Que é o mistério da iniqüidade segundo 2Ts 2?
5) Afinal que se pode dizer de seguro sobre o Anticristo?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 30: O OBSTACULO AO MISTERIO DA INIQUIDADE

80
Cf. S. Agostinho, De civltate Dei 20,19:
"Julgam que, ao dizer: Já agora está ativo o mistério da iniqüidade, o Apóstolo tinha em vista Nero, cujos feitos pareciam ser os do Anticristo. Donde não
poucos suspeitam que Nero há de ressuscitar e ser o Anticristo. Alguns, porém, crêem que Nero não foi mono, mas, sim, arrebatado, de sorte a ser tido por
mono; permanece vivo no vigor da idade que tinha quando o deram por extinto; ficará oculto até ser revelado no tempo devido e restabelecido no trono. A
mim tanta presunção por pane dos que conjeturam, causa grande surpresa". Eis o testemunho de Sulpdo Severo: "Crê-se que, embora se tenha traspassado com
uma espada, (Nero) foi curado de sua chaga e conservado em vida, conforme o que dele está escrito: A sua chaga mortal foi curada (Ap 13,3); no fim dos
tempos há de ser lançado (no mundo) para consumar o mistério da iniqüidade" (Hist. soer. 2,29).
No módulo 29, dizíamos que S. Paulo, em 2Ts 2, admite a existência de um Obstáculo, designado ora sob
a forma masculina (ho katéchoon), ora sob a forma neutra (to katéchon), que, desde os primórdios da Igreja até o
fim dos tempos, impede a manifestação de todo o ódio, de toda a impiedade, característicos do "Mistério da
iniqüidade". O apóstolo, pressupondo nos seus leitores tessalonicenses o conhecimento exato (talvez comunicado
por pregação oral) do que era tal Obstáculo, não se demorou na descrição do mesmo.
Por isto o problema do Obstáculo ainda é mais obscuro que o da figura do Anticristo. Apresentamos as
principais opiniões propostas pelos autores.
l) A interpretação que mais voga teve na antigüidade e ainda é sustentada por estudiosos modernos, vê no
Obstáculo neutro o Império romano, no Obstáculo masculino o Imperador romano. Com efeito, Roma, outrora, era
um baluarte da ordem do mundo, contra a irrupção da iniqüidade e da barbárie. Depois da queda de Roma, dizem
os autores que o ideal do Império romano se prolongou no sacro império dos francos, no dos germanos, e ainda
subsiste hoje nas diversas formas de governo que combatem a injustiça, a desordem, e procuram assegurar a paz e o
bem-estar no mundo. Quando deixar de haver governos defensores e fautores do bem no mundo, então a injustiça e
a iniqüidade irromperão por toda a parte e desenfreadamente; tal será a hora do "Iníquo"... Note-se que S. Paulo,
referindo-se ao poder civil devidamente administrado, o apresenta como lugar-tenente de Deus para promover o
bem (cf. Rm 13,1s). - Nada se pode objetar de sério contra esta interpretação.
2) O Obstáculo são os carismas e a graça do Espírito Santo; assim pensavam alguns escritores gregos
antigos, aos quais se opunha S. João Crisóstomo (+ 407), preferindo a interpretação acima dada.
3) Teodoro de Mopsuéstia (+ 428) e Teodoreto de Ciro (+ 458) identificavam o Obstáculo com o decreto
divino que fixou o tempo próprio para a manifestação do Iníquo. Todavia, poder-se-á dizer que a19u m decreto de
Deus será posto de parte ou removido?
4) S. Efrém (t 373) e Calvino (t 1564), apoiando-se em Mt 24,14 ("Esta Boa Nova do Reino será
proclamada no mundo inteiro"), propunham a idolatria ainda existente e a incompleta difusão do Evan9elho no
mundo.
5) S. Agostinho (t 430) e Éstio (t 1613) opinavam: o que detém o Ímpio, é o fato de que a grande
apostasia que o deve preceder ainda não se verificou; S. Tomás (+ 1274) se exprimia em termos positivos: ... é o
fato de que ainda existe espírito cristão nas sociedades (In 2Tes c. 2, lect. 1).
6) Dentre os modernos, alguns, sem cabimento, apontam para o profeta Elias, o próprio Apóstolo Paulo, o
filósofo pagão Sêneca, como sendo o Obstáculo.
7) Intérpretes recentes dizem ser o Templo de Jerusalém com sua liturgia (que subsistiram até o ano 70
d.C.) o Obstáculo neutro, ao passo que o Empecilho masculino seria o Apóstolo Tiago, o santo e conceituado bispo
da Cidade Santa. Neste caso, S. Paulo, em 2Ts 2, se teria referido não ao fim do mundo, mas à ruína da nação
judaica sob os golpes dos romanos; estes haveriam sido detidos por homens de virtude e oração, intercessores junto
a Deus em favor do povo israelita.
8) Entre os exegetas modernos, há também quem identifique o Obstáculo de 2Ts 2 com as duas
testemunhas de Ap 11, pois também estas, conforme S. João, desenvolvem o papel de entraves do poder maligno.
Ora, as duas testemunhas apocalípticas simbolizam todos os bons pregadores do Evangelho que combatem na
história a influência do erro e do mal. Em virtude, pois, da identificação, o Obstáculo são os idôneos arautos do
Evangelho existentes através dos séculos; quando a "Boa Mensagem" tiver sido anunciada no mundo inteiro (cf. Mt
24,14), os pregadores deixarão de exercer sua atividade e então surgirão os falsos profetas e messias (o Anticristo
coletivo) para perder as almas.
A esta sentença, que goza de certa autoridade, poder-se-ia objetar apenas que não observa a diferença
entre o aspecto masculino e o aspecto neutro do Obstáculo.
9) Um dos últimos e mais famosos comentadores de 2Ts, B. Rigaux, ju1ga que São Paulo, ao falar de um
Obstáculo, retomava simplesmente um tópico da literatura bíblica e rabínicá. Com efeito, diz o citado exegeta, os
judeus costumavam ensinar que a vinda do Messias e a consumação dos tempos estavam sendo diferidas por um
obstáculo qualquer, que eles não sabiam definir com precisão; os profetas Ageu (1,4-11; 2,14) e Zacarias (1, l0s;
3,1-10) indicavam o triste estado do Templo de Jerusalém após o exílio (séc. VI); Malaquias (3,1.24) se referia em
geral aos pecados do povo; Joel (2,12-17) e Daniel (11,27.36) anunciavam que era preciso que a perversidade
chegasse ao auge antes que o Messias se manifestasse. Ora Paulo, por sua vez, se teria referido a um empecilho da
consumação dos tempos, sem, porém, ter recebido luzes especiais sobre o sentido exato desse obstáculo. Em
conseqüência, o exegeta moderno não deveria pedir ao texto de 2Ts 2 indicações que o Apóstolo mesmo não quis
exprimir. Todavia Rigaux ainda observa que Paulo não costumava contentar-se com afirmações vagas; ao
contrário, o Apóstolo tendia a dar conteúdo bem definido às suas palavras. Por isto admite que Paulo soubesse a
que objeto se referia; julga, porém, não estar em condições de explicar o pensamento do Apóstolo. "Por muito
desconcertantes que pareçam tais conclusões, elas têm a grande vantagem de não ir além do que dizem os textos"
(Rigaux, Les Epítres aux Thessaloniciens. Paris 1956, 277-9).
l0) Eis, por fim, a interpretação que mais exigências parece conciliar.
O pensamento de S. Paulo se move inegavelmente no terreno da escatologia judaica e cristã; como
Daniel, no Antigo Testamento, e S. João, no Apocalipse, ele descreve uma luta entre o Bem e o Mal que tem sua
repercussão sobre a Terra, mas cujo teatro principal é o mundo invisível, celeste. Com efeito, no Apocalipse o
Dragão, também dito a Serpente antiga, Diabo, Satanás, o Sedutor da Terra toda, aparece como o Perseguidor da
Igreja ia Mulher que dá à luz); em oposição a este Adversário e à milícia demoníaca por ele chefiada, é apresentado
outro personagem, S. Miguel, à frente de um exército angélico, o qual vence o poder maligno (12,1-18). Conforme
Daniel, é também S. Miguel, o chefe da milícia celeste, o tutor do povo de Deus, quem toma a si a causa da nação
santa, principalmente nos tempos da grande tribulação, pouco antes da ressurreição dos mortos (10,13-21; 12,ls).
Conseqüentemente, a tradição judaica, em seus apócrifos, sempre atribuiu função capital a S. Miguei Arcanjo na
defesa do povo de Deus.81 Ora, por que não admitir que S. Paulo compartilhava tais conceitos? Em 2Ts 2,9, o
Homem da iniqüidade consegue realizar prodígios e seduzir, porque, em última análise, é Satanás quem lhe
empresta poder ia iniqüidade neste mundo é assim apresentada como repercussão da iniqüidade no mundo
invisível). Não será, pois, fora de propósito crer que o Apóstolo tenha des19nado como aliado da Igreja visível um
tutor invisível, como Obstáculo do Maligno através dos séculos um poder angélico; este seria o Arcanjo S. Miguel
(Obstáculo no sentido masculino) e seu exército de espíritos bons (Obstáculo no sentido neutro). Os anjos
constituem, sim, um poder imortal, coestensivo a toda a História. No fim dos tempos, porém, Deus permitirá que os
anjos bons subtraiam a sua tutela ao verdadeiro Israel que são agora os cristãos (cf. Rm 9,6-8).
Esta interpretação não somente parece corresponder bem à mente paulina, assaz impregnada de tradições
judaicas, mas também observa a distinção entre aspecto masculino e aspecto neutro do Obstáculo.
Eis tudo quanto se possa dizer de seguro ou, ao menos, de sério, sobre o Anticristo e o Obstáculo.

PE RG U NTAS
1) Por que é difícil identificar o Obstáculo mencionado em 2Ts 2? 2) Escolha uma das interpretações
propostas e justifique sua escolha. 3) Que acha você pessoalmente do estudo deste assunto para a sua vida cristã?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 31: A RESSURREIÇÃO DA CARNE (I)- ESCRITURA

A fé ensina que, por ocasião da segunda vinda de Cristo, os mortos ressuscitarão, tanto os justos como os
ímpios. Isto quer dizer que a sorte definitiva não afetará apenas a alma, mas também o corpo ou a matéria, do ser
humano.
Examinemos, a propósito, a doutrina bíblica, os pronunciamentos da Igreja e o significado da ressurreição
da carne.

Lição 1: Antigo Testamento e Sobrevivência

Antes do mais, importa um esboço de antropologia semita.

l.l. Antropologia Semita


Notemos que os antigos judeus professavam duas concepções antropológicas: uma, para falar do homem
durante a vida terrestre; a outra, para se referir ao homem no além.
Com efeito. Ao considerarem o homem vivo na terra, os semitas adotavam um esquema unitário:
designavam o ser humano como basar, nefesh ou ruach:
Basar significava carne propriamente, mas indicava o homem como um todo frágil e mortal; cf. Gn 6,3;
SI 56,5; Is 40,6; Jr 17,5.
Nefesh significava a respiração vital, o hálito e, por conseguinte, a garganta. Por extensão, designava o
próprio homem na medida em que é animado por um princípio vital, princípio que não se percebe mais na hora da
morte, porque não se percebe o hálito.
Ruach designava também o ser humano enquanto é vivificado por um sopro de Deus e, por isto, pensa,
sente e tem paixões.
Qualquer destes três vocábulos designava o homem vivo inteiro como se fosse um todo monolítico.
Quando, porém, os israelitas consideravam o homem após a morte, distinguiam nele duas partes
componentes: o corpo morto ou o cadáver, que era depositado no sepulcro, e um núcleo adormecido ou
inconsciente da personalidade, chamado refaim (sombras), que descia ao cheol ou à região subterrânea dos mortos.
Eis alguns testemunhos dessa crença:

81
Cf. Henoque etiópico 20,5; Testamento de Levi 5; Testamento de Daniel 6; Assunção de Moisés 10,2.
Gn 25,8-10: "Abraão expirou, morreu numa velhice feliz, idoso, e foi reunido à sua parentela. (saque e
lsmael, seus filhos, enterraram-no na gruta de Macpelá, no campo de Efron, filho de Seor, o heteu, que está de
fronte de Mambré. E o campo que Abraão comprara dos filhos de Het; nele foram enterrados Abraão e sua mulher
Sara". - O texto quer dizer que o cadáver de Abraão foi sepultado em Macpelá, onde fora enterrada Sara e somente
Sara. Algo, porém, de Abraão, os refaim (sombras), foi reunir-se à sua parentela no cheol ou na região dos mortos.
Gn 47,35: Ao saber que seu filho José fora pretensamente devorado por uma fera, exclamou Jacó: "É em
luto que descerei ao Cheol para junto de meu filho". - Isto supõe que, embora o corpo de José tivesse sido devorado
por um animal, os refaim do mesmo José estariam na região dos mortos.
Gn 49,29-33: Antes de morrer, Jacó diz que se vai reunir aos seus, enquanto o cadáver deverá ser
sepultado em Macpelá.
A palavra refaim vem de rafa, ser débil, lânguido. Só se usa na forma dual que indica, no caso, certo
anonimato. Os refaim estão adormecidos: Jó 3,13.17s; 14,21s; 17,16. Não louvam a Deus: Is 38,18; SI 88,11s; Eclo
17,22s. Por conseguinte, no cheol não havia sanção nem para os bons, nem para os maus.
Aos poucos, porém, esta concepção primitiva e desanimadora foi cedendo a outra, mais evoluída e
estimulante.
É o que se verifica nos chamados "salmos místicos", em que o autor sagrado julga que Deus não pode
permitir que o seu servidor fiel seja privado de consciência, com os infiéis, e, por isto, incapacitado de receber a
justa sanção. Veja-se:
SI 16,10s: "Não abandonarás minha vida (nefesh) no cheol nem deixarás que teu fiel veja a cova.
Ensinar-me-ás o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença, e delícias à tua direita perpetuamente".
SI 49,16: "Deus resgatará minha vida (nefesh) das garras do cheol e me tomará".
SI 73,23s: "Quanto a mim estou sempre contigo. Tu me agarraste pela mão direita. Tu me conduzes com
teu conselho e com tua glória me atrairás".
Como se vê, nestes três salmos, é expressa a esperança de que o Senhor libertará do cheol o justo e o
levará consigo para a verdadeira vida. O nefesh adquire mais substância e identidade, aproximando-se do conceito
grego de alma (psyché).
Verifica-se outrossim que o justo arrebatado do cheol goza de felicidade e tem suas aspirações à vida
saciadas. Quanto ao cheol, se Deus lhe retira as almas dos justos, vai sendo concebido como o lugar dos ímpios,
que aí sofrem as conseqüências da impiedade; com outras palavras... o cheol vai tomando o sentido de inferno,
como foi apresentado nos Módulos 15-17 deste curso.

1.2. A retribuição póstuma

As linhas de antropologia até aqui apresentadas mostram que nos seus séculos mais antigos os israelitas
não concebiam retribuição póstuma, mas, sim, a inconsciência dos refaim após a morte. Tal doutrina era como que
uma "bofetada" para aqueles que quisessem guardar fidelidade ao Senhor na vida presente; depois da morte não
teriam destino diferente do dos infiéis. Julga-se que o Senhor Deus não quis revelar a realidade consciente e
grandiosa da vida póstuma aos antigos israelitas por causa do perigo de culto ou endeusamento dos antepassados
como ocorria entre os povos pagãos vizinhos de Israel. Tal fase provisória devia ceder à plena revelação da vida
póstuma, sem a qual a, vida presente não se explica, pois a ordem é violada neste mundo muitas vezes em favor dos
maus e para grande decepção dos bons.
No século 1 a.C. já se professa a crença na alma imortal por si mesma e capaz de receber a justa sanção
na vida póstuma. Dá testemunho disto o livro da Sabedoria, escrito no Egito por um judeu lá residente: afirma a
retribuição de justos e pecadores no além, como se depreende dos textos seguintes:
"Os justos vivem para sempre, recebem do Senhor sua recompensa, cuida deles o Altíssimo. Receberão a
magnífica coroa real, e, das mãos do Senhor, o diadema da beleza, com sua direita Ele os protegerá, com seu braço
os escudará" (Sb 5, 15s).
"A alma (psyché) dos justos está nas mãos de Deus; nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos
insensatos parecem morrer... mas eles estão em paz. Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua
esperança estava cheia de imortalidade; por um pequeno castigo receberão grandes favores. Julgarão as nações,
dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre. Mas os ímpios serão castigados segundo os seus
raciocínios; desprezaram o justo e se afastaram do Senhor" (Sb 3,1-4. l0).
O texto não fala de ressurreição dos corpos, mas apenas de sobrevivência da alma lúcida no além. A razão
pela qual a ressurreição não é mencionada, é que o autor escrevia no Egito, terra de cultura helenística para a qual a
volta da alma ao corpo seria punição e desgraça. Todavia na mesma época os judeus residentes na terra de lsrael
professaram nitidamente a ressurreição dos corpos. Tenham-se em vista os seguintes dizeres:
Dn 12,2s : "Muitos dos que dormem no solo poeirento, acordarão, uns para a vida eterna, e outros para o
opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento, e os que
ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas por toda a eternidade".
2Mc 7 registra as últimas palavras dos irmãos macabeus condenados a morrer por causa da sua fé:
"Tu, celerado, nos tiras da vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressurgir para uma vida eterna, a
nós que morremos por suas Leis" (v.9).
"Do céu recebi estes membros, e é por causa de suas leis que os desprezo, pois espero dele recebê-los
novamente (v.II).
"É desejável passar para a outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as esperanças de ser
um dia ressuscitados por Ele "(v.14).
"Nossos irmãos, após ter suportado uma aflição momentânea por uma vida eterna já estão na Aliança de
Deus. Tu, porém, pelo julgamento de Deus, hás de receber os justos castigos da tua soberba" (v.36).
É também 2 Mac que, testemunhando indiretamente a existência do purgatório, alude explicitamente à
ressurreição dos mortos:
"Tendo feito entre os seus homens uma coleta de duas mil dracmas, (Judas Macabeu) enviou-a a
Jerusalém para ser convertida num sacrifício expiatório do pecado. Bela e nobre ação, inspirada pela idéia da
ressurreição! Com efeito, se ele não esperasse que esses soldados mortos houvessem de ressuscita j fora coisa
supérflua e vã orar pelos defuntos"82 (l 2,43s).
Com o decorrer dos tempos, a fé na ressurreição se firmou cada vez mais em lsrael. Para o judeu em
particular, esta fé era corolário lógico da crença numa justa sanção póstuma; com efeito, a mentalidade israelita,
sempre propensa a afirmar o concreto, dificilmente podia conceber sorte feliz para as almas que estivessem
separadas do corpo; estariam condenadas a viver uma vida mutilada. Assim, pois, encontram-se no Evangelho
testemunhos da fé israelita na ressurreição dos mortos:
Conforme Mt 14,2, Herodes julgava ser Jesus o próprio João Batista ressuscitado; outros confundiam o
Senhor com algum dos antigos profetas redivivo (cf. Lc 9,8); Marta admitia, sem dúvida, que seu irmão Lázaro
ressuscitaria no último dia (Jo 11,23.25). Os fariseus, que representavam a facção tradicionalista de lsrael, faziam
mesmo da ressurreição um dogma de fé, que a ninguém era lícito negar. Todavia, o partidos dos "livres
pensadores" de lsrael, ou seja, dos saduçeus, imbuídos de princípios filosóficos gregos, rejeitava peremptoriamente
a ressurreição, o que criava intransponível barreira entre eles e os fariseus (cf. Mt 22,23-33; At 23, 6-10; 26,5-8).
Observa-se, nos textos do Antigo Testamento, a transição da idéia de refaim, sombras inconscientes
póstumas, para a de alma (psyche] dotada de imortalidade e lucidez mesmo separada do corpo pela morte. O fato
de que a noção de psyché imortal tenha vindo à consciência dos judeus em terra helenista ou no Egito não depõe
contra a veracidade desta doutrina. Deus pode revelar a verdade aos homens em qualquer terra e através de
qualquer canal. Não existe uma filosofia oficial (como seria a filosofia semita) para o Senhor Deus; qualquer
sistema de raciocínio, também de origem grega, pode ser válido instrumento da Revelação divina, desde que diga a
verdade.
A veracidade da distinção de corpo e alma e da ressurreição da carne no último dia da história, esboçada
claramente no fim da era pré-cristã, torna-se ainda mas nítida nos escritos do Novo Testamento, que a professam
eloqüentemente.

Lição 2: Novo Testamento e ressurreição

2.1. Os Evangelhos

Na pregação de Jesus, três são os principais aspectos postos em realce:


a) a ressurreição será universal; tanto os justos como os pecadores ressuscitarão:
"Não vos admireis, pois vem a hora em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho do
Homem, e sairão; os que tiverem praticado o bem, ressuscitarão para a vida; os que tiverem cometido o mal,
ressuscitarão para a condenação" (Jo 5,28).
Assim concebida, a ressurreição da carne se apresenta como a plena eflorescência dos dons que o Senhor
outorga ao homem no decorrer da sua vida terrestre.
b) Jesus afirmou também algo do modo da futura ressurreição: implicará a glorificação dos corpos. Este
ensinamento era bem oportuno frente à concepção dos saduceus, que negavam a ressurreição justamente porque a
definiam, à semelhança de alguns pagãos, como a volta das almas a um corpo mortal e às circunstâncias da vida
presente. A glorificação acarretará um gênero de vida semelhante ao dos anjos, o que quer dizer: de todo isento das
vicissitudes e indigências da carne mortal:
"Os filhos deste século esposam e são esposados; aqueles, porém, que tiverem sido julgados dignos de
tomar parte no mundo futuro e na ressurreição dos mortos, não esposarão nem serão esposados; também não
poderão morrer pois serão semelhantes aos anjos e serão filhos de Deus, uma vez ressuscitados"(Lc 20,34-36).
A ressurreição prometida por Deus é, pois, algo que transcende muito as mais otimistas concepções dos
homens!
82
c) penhor da transfiguração dos corpos é a Sagrada Eucaristia. Jesus apresenta este dom não apenas como
alimento da alma, mas como o próprio remédio da carne mortal; não em vão o corpo de Cristo glorioso é dado ao
corpo do cristão enfermiço; aquele há de ter uma ação sobre este, a ação de vivificar e transfigurar:
"Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o Seu
sangue, não tereis a vida em vós. Aquele que come a Minha carne e bebe o Meu sangue tem a vida eterna, e eu o
ressuscitarei no último dia " (Jo 6,53s). d) Em Mt 27, 51-53 narram-se episódios que têm chamado a atenção dos
leitores: "(Quando Jesus morreu), o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo, a terra tremeu e as
rochas se fenderam. Abriram-se os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram. E, saindo dos
túmulos após a ressurreição de Jesus, entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos".
Que significam estes dizeres?
- O Evangelista faz questão de notar as conseqüências escatológicas e inovadoras da morte de Jesus: o
véu do Templo se rasgou, em sinal de que a antiga Aliança fora ultrapassada; a terra e as rochas se abalaram, em
resposta da natureza à obra salvífica de Jesus. Quanto à ressurreição dos mortos, que terá ocorrido após a
ressurreição de Jesus, significa a vitória de Jesus sobre a morte; os Profetas já haviam predito que a morte seria
vencida pelo Messias (cf. Is 26,19; Ds 12,2; 2Mc 7,9-14). Notando tais fenômenos, o Evangelista quis realçar o
significado teológico da morte de Jesus: é a vitória do Senhor, predita pelo próprio Jesus em seu sermão
escatológico (cf. Mt 24,27-29) e perante o Sinédrio que o julgava (cf. Mt 26,64). A morte de Jesus foi mensagem
de redenção para os justos do Antigo Testamento, que aguardavam a vinda do Salvador (cf. lPd 3,19). Assim
vemos que, redigidos em consonância com os Profetas e os escritos apocalípticos, os episódios mencionados hão de
ser entendidos como portadores de profunda mensagem teológica.

2.2. Nas epístolas paulinas


S. Paulo continuou a anunciar a ressurreição, embora explicitamente reconheces-se, com os pagãos,
quanto o corpo se opõe às aspirações do espirito: "Homem infeliz que sou! Quem me libertará deste corpo de
morte?" (Rm 7,24).
Também nas epístolas paulinas se podem distinguir diversos aspectos do dogma particularmente
focalizados:
a) a ressurreição dos cristãos é conseqüência de sua união com Cristo no Corpo Místico. Se tão íntima foi
a nossa solidariedade com o primeiro Adão que todos dele herdamos a morte, espiritual e corporal, não menos
estreita pode ser a nossa união com o segundo Adão; deste, portanto, havemos de herdar a vida, tanto espiritual
como corporal, e vida muito mais rica do que a que perdemos por obra do primeiro homem; na dispensação da
salvação, Deus quis seguir uma norma estupenda: "Onde abundou o pecado, aí superabundou a graça" (Rm 5,20).
Por conseguinte:
"Se apregoa que Crísto ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há
ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas, se Cristo não
ressuscitou, vã é a nossa pregação, vã também a vossa fé" (1Cor 15,12-14; cf. 20-22. 42-49).
b) exemplar do corpo renovado dos fiéis é o corpo do próprio Cristo glorioso; o que bem se entende, pois
o Pai, desde toda a eternidade, nos predestinou a nos configurarmos à imagem de Seu Filho, afim de que seja Este o
Irmão mais velho numa longa série de irmãos (cf. Rm 8,29):
"Do céu esperamos como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo tornando-
o semelhante ao seu corpo glorioso" (Fl 3,20),
c) penhor da ressurreição gloriosa é, juntamente com a Eucaristia, o Espírito de Cristo (ou o Espírito
Santo), comunicado aos fiéis pelos sacramentos. Pela incorporação a Cristo, que se dá por excelência mediante a
Eucaristia, os cristãos passam a viver do Espírito de Cristo; o que quer dizer: passam a ser movidos na ordem
sobrenatural pelo mesmo Espírito Santo que Se derramou sobre a santíssima humanidade de Cristo e que é dito
atualmente a Alma do Corpo Místico; o corpo de Cristo vive do Espírito de Cristo (Espírito Santo), diria Sto.
Agostinho. Ora, é justamente esse Espírito de Cristo comunicado aos fiéis pela carne de Cristo (pela Eucaristia) que
os assegura de sua ressurreição:
"Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos reside em vós, Aquele que ressuscitou a
Cristo dentre os mortos ressuscitará também vossos corpos mortais, por causa do seu Espírito, que habita em vós"
(Rm 8,11).
É de notar ainda que, para S. Paulo, a comunhão com a carne e o Espírito de Cristo implica não somente
participação futura na glória do Senhor, mas exige também participação atual na Paixão de Jesus; em outros
termos: a comunhão sacramental, antes de levar à ressurreição, faz passar pela morte do Senhor, morte
cotidianamente afirmada:
"Trazemos incessantemente em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste
igualmente em nosso corpo. Com efeito, embora vivos, somos continuamente entregues à morte por causa de Jesus,
a fim de que a vida de Jesus se manifeste também em nosso corpo" (2Cor 4, l0s).
"... para O conhecer a Ele e aos efeitos de Sua ressurreição, e participar dos Seus sofrimentos, tornando-
me semelhante a ele em sua morte, a fim de chegar, se possível, à ressurreição dos mortos" (Fl 3, l0s ). Cf. Rm 6,6;
1Cor 15,30.
d) Quanto ao momento da ressurreição, São Paulo fez eco às palavras de Jesus, que a situam no último
dia da história:
1Cor 15,22: "Assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém,
em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo por ocasião de sua vinda (parusia)".
1Ts 4,16: "Quando o Senhor, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu,
então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida, nós, os que estivermos vivos, seremos arrebatados
com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor nos ares".
Neste texto S. Paulo admite que, entre a morte do homem e a parusia, a alma humana subsiste sem corpo.
É esta subsistência sem corpo que constitui a chamada "Escatologia intermediária".
Veja-se ainda 2Cor 5,1-3:
"Sabemos que, se a nossa morada terrestre (esta tenda) for destruída, teremos no céu um edifício, obra de
Deus, morada eterna, não feita por mãos humanas. Tanto assim que gememos pelo desejo ardente de revestir por
cima da nossa morada terrestre a nossa habitação celeste o que será possível se formos encontrados vestidos e não
nus".
Nesta passagem, o Apóstolo distingue os que estiveram vivos (vestidos do seu corpo) no dia final, e os
que estiverem mortos ou nus (isto é, despojados de seus corpos). De novo a subsistência da alma sem o corpo e a
Escatologia intermediária são assim professadas.

2.3. A Escatologia intermediária


A existência da alma sem corpo entre o dia da morte do indivíduo e o juízo final é ilustrada por outros
textos:
Lc 23,43: Jesus promete ao bom ladrão: "Hoje estarás comigo no paraíso". Hoje, isto é, antes da
ressurreição no último dia.
Lc 16,19"31: A parábola insinua a sobrevivência de bons e maus após a morte e antes da ressurreição dos
corpos.
Fl 1,23: "O meu desejo é partir e estar com Cristo". São Paulo tem em vista a união com Cristo posterior
à morte e anterior à ressurreição dos mortos, que ocorrerá somente no fim dos tempos (cf. Fl 1,20s).
Em conclusão: a ressurreição dos corpos no último dia é professada nos livros tardios do Antigo
Testamento e, mais enfaticamente ainda, nos escritos do Novo Testamento.

PERGUNTAS
1) Como os judeus, em seus livros mais antigos, entendiam a vida póstuma?
2) Por que tinham tal concepção?
3) Como se foi desenvolvendo o pensamento judaico relativo à sorte póstuma?
4) Como a antropologia judaica acompanhou a evolução da escatologia?
5) O Novo Testamento professa a Escatologia intermediária? Cite textos bíblicos.
6) Quando se dará a ressurreição conforme o Novo Testamento?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 32: A RESSURREIÇÃO DA CARNE (II)


TRADIÇÃO E MAGISTÉRIO
Examinaremos alguns testemunhos da Tradição e do Magistério da Igreja atinentes à ressurreição.
Depois passaremos à consideração do significado teológico da mesma.

Lição 1: Tradição e Magistério da Igreja

1.1. A Tradição
O ensinamento da Escritura sobre a ressurreição se prolongou através dos séculos na Igreja.
Os antigos Padres e escritores cristãos expuseram-no repetidamente, procurando não raro defendê-
lo contra as objeções de pagãos e hereges. A ressurreição lhes parecia decorrer da munificência de Deus,
que, tendo criado o corpo, não o quis, após o pecado, deixar entregue ao mal, privado de restauração
côngrua; assim, por exemplo, argumentava Tertuliano (+ após 220):
“Áo dizer (Jesus) que veio para salvar o que perecera, que julgas havia perecido? O homem, não há
dúvida. O homem, todo ou apenas em parte? Certamente todo... Por conseguinte, todo ele será salvo, já que
todo ele pereceu pelo pecado... Quão indigno de Deus seria dar salvação a parte do homem apenas! Faria
menos do que os príncipes deste mundo, cuja indulgência plena é sempre apregoada. O demónio pareceria
forte por Ter prejudicado e derrubado o homem inteiro, ao passo que Deus seria julgado mais fraco do que
ele, por não reerguer o homem inteiro. Ademais, o próprio Apóstolo ensina que onde o delito abundou, aí a
graça superabundou (Rm 5,20) " (Sobre a Ressurreição da Carne 34 e 36).
Não raro os Padres punham em realce o ritmo de vida, morte e vida nova que rege muitos
elementos da natureza. Sem dúvida, esta observação não é argumento apodíctico da ressurreição dos corpos
humanos; todavia, mostra a consonância e harmonia que este dogma tem com as obras de Deus. Eis como
Minúcio Félix (início do séc. III escrevia a um pagão:
"Considero mesmo ser para nosso grande consolo que a natureza inteira prenuncia silenciosamente
a futura ressurreição. O sol se põe e nasce de novo; os astros declinam e voltam a aparecer,- as flores
morrem e revivem. Assim os corpos, no sepulcro, como as árvores no inverno, ocultam o seu vigor sob uma
aridez aparente. Por que te apressas, desejando que ainda em pleno inverno revivam e ressurjam? É preciso,
esperemos a primavera dos corpos" (Octavius 340).
Ainda merecem atenção, como testemunhos da fé, alguns documentos da Arqueologia cristã.
Antes do mais, note-se o nome dado ao local de sepultura dos defuntos: cemitério, palavra
proveniente do grego koimetérion - dormitório. Neste termo se exprime bem a consciência de que a morte,
para os cristãos, é, na verdade, um "sono", algo de transitório, a que sucederá uma vida nova e revigorada.
Nos antigos cemitérios cristãos encontram-se não poucos símbolos da ressurreição, que a piedade
dos fiéis derivava geralmente da Sagrada Escritura; tais são: Jó, assentado sobre a podridão, mas intrépida
testemunha da vida futura (cf. Jó 19,25-27); Ezequiel a vivificar os ossos ressequidos (cf. Ez 37,1-10); Daniel
ileso na fossa dos leões, ou seja, vitorioso das garras da morte (cf. Dn 14,27-42); os três jovens incólumes na
fornalha ardente (cf. Dn 2,19-25)j Jonas deglutido pelo peixe, mas restituído à luz após três dias de
ocultamento (cf. Jn 2,1-11); Lázaro ressuscitado (cf. Jo 11,1-44).
Outras imagens dos cemitérios cristãos eram inspiradas pela natureza irracional: a fênix, pássaro
lendário muito caro aos antigos;83 a águia, cuja juventude é sempre renovada, conforme SI 103,5; o ovo,
donde nova ave se origina; a árvore verdejante... Imagens às quais se poderiam acrescentar ainda outras, do
mesmo significado, ocorrentes na literatura cristã: o carvão, que se transforma em diamante; a crisálida,
que, encerrada no seu casulo, se apresta a irromper sob a forma de borboleta multicolor etc.
Segue-se belo texto de S. Agostinho (+ 430), que alude principalmente à ressurreição realizada pelo
Batismo e a vida ética do cristão, em preparação da ressurreição corporal:
"É nessa esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer: 'Se ressuscitastes com Cristo...' Como
ressuscitamos, se ainda morreremos? Que quer dizer o Apóstolo: 'Se ressuscitastes com Cristo? Acaso
ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas falava aos vivos, aos que ainda não morreram... os
quais, contudo, ressuscitaram; que quer dizer?
Vede o que ele afirma: 'Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas que são do alto, onde Cristo
está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a terra. Porque estais
mortos!”
É o próprio Apóstolo quem está falando, não eu. Ora, ele diz a verdade, e, portanto, diga-a também
eu... E por que também a digo? Acreditei e por causa disto falei.

83
Dizia a tradição que a fénix, sendo o único individuo de sua espécie, durava 500 anos. Estando a ponto de se extinguir, deixava a lndia, onde vivia, ia ao
Lhano, onde se provia de substâncias aromáticas, e, carregando estas, passava para Heliòpolis, no Egito; sobre o altar dos sacrifícios desta cidade fazia para si
um túmulo de incenso, mirra e outras essências; vinda a hora, morria. De seus restos mortais, porém, no dir seguinte nascia um verme, o qual, nutrindo-se da
substância do pássaro morto, tomava asas, e, após três dias, voltava para a lndia; era a fênix ressuscitada!Que éreis vós? Filhos de homens. Que SOIS vós?
Filhos de Deus.
Se vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu, também não
ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que não morra. Que quer dizer: morra para
que não morra? Converta-se, para não ser condenado.
Se ressuscitastes com Cristo, repito as palavras do Apóstolo, procurai o que é do alto, onde Cristo
está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a vossa vida
está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também aparecereis
com ele na glória. São palavras do Apóstolo. A quem ainda não morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda
vive mal, digo-lhe que se converta. Se vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem, ressuscitou.
Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que está sobre a terra. Até quando és
terra e à terra tornarás? Até quando lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te tornas inimigo daquele
de quem diz o Salmo: Os inimigos dele lamberão a terra.
Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais a
mentira? Que mentira buscais? O mundo.
Quereis ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor,
sacrílego, manchado por todos os vícios, soterrado por todas as torpezas e maldades, mas não queira ser
feliz. Sei que todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz, isso não quereis procurar.
Tu, aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz feliz. Por que buscas a
ilusão? E com tudo o mais que aqui procuras, quando procuras mundanamente, quando o fazes amando a
terra, quando o fazes lambendo a terra, sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa. alguma da terra te faz feliz.
Por que não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? Ó filhos dos homems, até quando
sereis pesados de coração, vós que onerais com as coisas da terra o vosso coração? Até quando foram os
homens pesados de coração? Foram-n o antes da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse o Cri sto. Até
quando tereiso coração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a mentira? Querendo tornar-vos
felizes, procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o que desejais, é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante (no versículo do salmo):
‘Até quando sereis pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais amentira? Sabei - o quê?
- que o Senhor engrandeceu o seu Santo'.
Ó Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fome, a sede, a fadiga, dormiu, realizou coisas
admiráveis, padeceu duras coisas, foi flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado,
pregado no lenho, transpassado pela lança, posto no sepulcro; mas no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o
sofrimento, morrendo a morte. Eia, tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto quis o
Pai engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à sua
direita. Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não o poderás ser. Nesta vida não
podes ser feliz, ninguém o pode. Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que desejas. Que
desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside ela.
Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não existência, haveria
de te dizer: Por que estás a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual apenas hás de descer, na qual
nada encontrarás!
Que responderia a tal conselheiro? Procuro ouro. Ele te diria: Não nego que exista o que desejas,
mas não existe onde o procuras.
Assim também, quando dizes: Quero ser feliz. Bo,a coisa queres, mas aqui não se encontra. Se aqui
a tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da tua morte: vindo de
outros páramos, que achou aqui senão o que existe em abundância? Sofrimentos, dores, mortes. Comeu
contigo do que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que encontrou em tua
morada.
Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos, onde ele mesmo é o pão.
Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela, não só não rejeitou a tua mesa, mas prometeu-te a
sua.
E que nos diz ele?
Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não recusei os males da vossa.
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, dá-lo-á. Prometeu-nos sua vida, mas é ainda mais
incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: À minha mesa vos convido. Nela ninguém
morre, nela está a vida verdadeiramente feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba.
Eia para onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo, para a ceia
eterna, para a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não quereis crer
que vos darei a minha via? Retende, como penhor, a minha morte.
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, morramos com Cristo pela conversão dos
costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quando chegarmos àquele que veio até
nós, e quando começarmos a viver com aquele que por nós morreu" (Sermão sobre a Ressurreição de Cristo,
Migne latino 1104-1107).

1.2. Magistério da Igreja


São numerosas as afirmações do magistério da Igreja relativas à ressurreição. Basta lembrar os
Símbolos de Fé lo Apostólico e o Niceno-Constantinopolitano) recitados na Liturgia Eucarística. O último
pronunciamento é o da Congregação para a Doutrina da Fé datado de 17/05/1979, que vai, a seguir,
transcrito:
"Esta Sagrada Congregação, que tem a responsabilidade de promover e de defender a doutrina da
fé, propõe-se hoje recordar aquilo que a Igreja ensina, em nome de Cristo, especialmente quanto ao que
sobrevém entre a morte do cristão e a ressurreição universal.
l) A Igreja crê numa ressurreição dos mortos (cf. Símbolo dos Apóstolos).
2) A Igreja entende esta ressurreição referida ao homem todo; esta, para os eleitos, não é outra
coisa senão a extensão, aos homens, da própria Ressurreição de Cristo.
3) A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual,
dotado de consciência e de vontade, de tal modo que o eu humano subsista, ainda que sem corpo. Para
designar-esse elemento, a Igreja emprega a palavra "alma", consagrada pelo uso que dela fazem a Sagrada
Escritura e a Tradição. Sem ignorar que este termo é tomado na Bíblia em diversos significados, Ela julga,
não obstante, que não existe qualquer razão séria para o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente
indispensável um instrumento verbal para sustentar a fé dos cristãos.
4) A1Igreja exclui todas as formas de pensamento e de expressão que, se adotadas, tornariam
absurdos ou inintel19íveis a sua oração, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, realidades que, na
sua substância, constituem lugares teológicos.
5) A Igreja, em conformidade com a Sagrada Escritura, espera'a gloriosa manifestação de nosso
Senhor Jesus Cristo' (cf. Constituição Dei Verbum 1, 4), que Ela considera como distinta e diferida em
relação àquela condição própria do homem imediatamente depois da morte.
6) A Igreja, ao expor a sua doutrina sobre a sorte do homem após a morte, exclui qualquer
explicação que tirasse o sentido à Assunção de Nossa Senhora naquilo que ela tem de único; ou seja, o fato.
de ser a glorificação corporal da Virgem Santíssima uma antecipação da glorificação que está destinada a
todos os outros eleitos.
7) A Igreja, em adesão fiel ao'Novo Testamento e à Tradição, acredita na felicidade dos justos que
estarão um dia com Cristo. Ao mesmo tempo Ela crê numa pena que há de castigar para sempre o pecador
que for privado da visão de Deus, e ainda na repercussão desta pena em todo o ser do mesmo pecador. E,
por fim, Ela crê existir para os eleitos uma eventual purificação prévia à visão de Deus, a qual no entanto é
absolutamente diversa da pena dos condenados. É isto que a Igreja entende quando Ela fala de Inferno e de
Purgatório.
Pelo que respeita à condição do homem após a morte, há que precaver-se particularinente contra o
pqrigo de representações fundadas apenas na imaginação e arbitrárias, porque o excesso das mesmas entra,
em grande parte, nas dificuldades que muitas vezes a fé cristã encontra. No entanto, as imagens de que se
serve a Sagrada Escritura merecem todo o respeito. Mas é preciso éaptar o seu sentido profundo, evitando o
risco de as atenuar dem'asiadamente, o que equivale não raro'a esvaziar da própria substância as realidades
que são indicadas por tais imagens" (texto transcrito também no Módulo 1 deste cu rso).
Os itens 4 e 5 tencionam reafirmar que, ao sair do tempo, a alma humana não entra na eternidade.
Eternidade significa, a rigor, vida sem começo e sem fim ou posse simultânea de toda a existência do sujeito.
Ora só Deus é eterno. O ser humano, após a vida temporal, não se torna eterno; a sua existência não é
avaliada pelos critérios da eternidade porque a alma não terá fim, mas teve começo. A existência humana,
após esta vida temporal, é aferida pelos critérios do evo; que se define claramente através do seguinte
quadro:
Tempo:
implica existênciaque tem começo e fim;
mutabilidade no ser;
mutabilidade no agir.

Evo:
existência que tem começo, mas não tem fim;
imutabilidade no ser;
mutabilidade no agir.
Eternidade:
existência sem começo e sem fim;
imutabilidade no ser,
imutabilidade no agir.

O evo é, pois, a existência de quem não muda seu ser, isto é, não conhece a deterioração da sua
natureza ou não experimentaa morte, mas muda em seu agir, pois não esgota as suas potencialidades num só
ato (exerca atos sucassivos de conhacimento e amor, que constituem a trama do seu agir). Por isto o evo é
também chamado "tempo psicológico".
A eternidade não conhece mutabilidade alguma, pois Deus não evolui e exerce toda a sua atividade
num só ato, que é perfeito e cabal.
O tempo implica mutabilidade no ser e no agir, pois tudo o qua é temporal começa e acaba.
Na base de tais observações, verifica-se qua é errônao dizer que a alma humana, deixando este
mundo, entra no regime da etemidada e, por isto, não tam mais que asparar o juízo final e a ressurreição dos
corpos. Não, a alma humana, mesmo separada do corpo após a morte, conhece a sucessão... ou exerce o seu
agir de maneira sucessiva (ato após ato). A sucessão é natural ou congênita à alma humana, pois ela teve
começo (foi criada) e, por isto, a sua existência é um contínuo desenvolver-se.
São estas reflexões que levam a rejeitar a tese da ressurreição do homem logo após a morte e a
ambígua expressão "Missa da Ressurreição" (para designar a Missa do 7 o dia).

PERGUNTAS
1) Que significa a palavra cemitério? Explique bem.
2) Que é que a fênix simboliza e como o simboliza?
3) Queira sintetizar a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé datada de 1979.
4) Quem sai do tempo entra na eternidade? Por quê?
5) Explique o que é o evo.

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CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 33: A RESSURREIÇÃO DA CARNE (III) SIGNIFICADO

Estudaremos, a seguir, o significado do artigo de fé: "Creio na ressurreição da carne".

Lição 1: Característica do Cristianismo

O artigo da ressurreição da carne constitui uma das verdades características do Cristianismo. É o que
resulta claramente do contraste, verificado na história, entre as repetidas afirmações do Magistério da Igreja e o
repetido escândalo dos filósofos diante dessa verdade. Com efeito, desde os inícios da Igreja, a razão humana
sempre tendeu a contradizer ao genuíno conceito de ressurreição. Lemos na Sagrada Escritura que já a negavam:
entre os judeus, a facção saducéia; cf. Mt 22,23; At 4,1s; 23,8;
entre os pagãos, os filósofos epicureus de Atenas, aos quais S. Paulo pregou o dogma, recebendo a irónica
resposta: "Ouvir-te-emos outra vez sobre esse assunto" (At 17,32). A seu turno, o procurador romano Festo, ao
ouvir o Apóstolo falar de ressurreição, exclamou: "Perdeste a razão, ó Paulo! A excessiva erudição já te torna
mentecapto!" (At 26,24; cf. 8,23);
entre os cristãos da idade apostólica, em Corinto, havia quem quisesse rejeitar o dogma, o que provocou a
bela exposição de lcor15. Em Éfeso, Himeneu e Fileto desvirtuaram o conceito de ressurreição, tirando-lhe o que
possa ter de desconcertante; afirmavam, sim, que a ressurreição já se verificara, pois se realizaria no plano
meramente espiritual, no sacramento do Batismo (cf. 2Tm 2,17).
Em inícios do séc. III Tertuliano observava que, quando se tratava de negar a ressurreição da carne, se
punham de acordo entre si todas as escolas filosóficas. No séc. V, S. Agostinho podia verificar: “Não há ponto em
que tanto se contradiga a fé cristã como o dogma da ressurreição da carne”. Não foram, pois, a carne e o sangue
que incutiram ao homem a genuína esperança de ressurreição.

Lição 2: O corpo, criatura de Deus


A doutrina cristã distancia-se tanto do materialismo como do espiritualismo unilaterais. Está claro que o
materialismo, afirmando, sim, a matéria e o corpo, mas negando a existência de Deus, é radicalmente oposto ao
Cristianismo.
Todavia não é mais conciliável com a fé o puro espiritualismo; o cristão se caracteriza não propriamente
pela fé na imortalidade da alma (esta já era, do seu modo, professada pelos pagãos Pitágoias, Sócrates e Platão),
mas, sim, estritamente pela profissão da ressurreição do corpo. Para o discípulo de Cristo o homem não é alma só,
mas alma e corpo, que constituem um único indivíduo; embora reconheça que o espírito é mais nobre do que a
matéria, o cristão julga não poder excluir da sanção final, da glorificação definitiva, a matéria mesma; ao contrário,
justamente pelo fato de que é no corpo que, em grau máximo, se manifestam miséria e caducidade, o discípulo de
Cristo afirma que certamente a carne conhecerá sua salvação, a emancipação de tudo que nela hoje se encontra de
desarmonioso.
O cristão, pois, professa a mais otimista das concepções que se possam propor a respeito do mundo e do
homem.
E qual a razão de ser desse otimismo?
Deus é o autor da carne e do corpo humano. Ele os destinou a ser templo da própria Divindade. Todavia
refere o Gênesis (c. 2) que o homem disse Não a Deus, afastando-se do Criador pelo pecado. O Senhor, porém, não
quis que esta fosse a última palavra da história. Na plenitude dos tempos, Deus Filho assumiu a carne humana no
seio de Maria Virgem, e santificou-a pelo seu contato de menino, trabalhador, lutador e vítima mortal aqui na terra;
ressuscitou, porém, dando sentido novo a todas as misérias da vida humana Desta forma Jesus Cristo santificou a
existência do homem na carne com tudo o que ela tem de grande e, também, de pequeno e doloroso; fez das
misérias da carne motivo de volta a Deus, caso o homem as abrace em união com o Salvador, ou seja, em espírito
de penitência e de amor ao Pai Celeste.
A última conseqüência desta mensagem é que não somente o espírito está destinado a se unir a Deus,
proclamando a Perfeição Divina para todo o sempre, mas também o corpo do homem é chamado a testemunhar, do
seu modo, a glória do Senhor; o Criador não quis que alguma de suas criaturas, nem mesmo a matéria utilizada
como instrumento do pecado, pudesse ser definitivamente considerada presa e sede do mal; também o corpo é
valioso aos olhos de Deus. Por conseguinte, o homem, depois de pagar o tributo à morte, experimentará os efeitos
da Misericórdia; o que quer dizer entre outras coisas; recuperará a vida por nova união de alma e corpo, união
absolutamente necessária para que o homem seja homem e preencha por toda a eternidade o lugar que lhe compete
na hierarquia dos seres.
Para se entender bem a importância que a fé cristã atribui à nova união de alma e corpo no fim dos
tempos, não seria demasiado frisar que o Criador concebeu o homem como ponto de encontro do mundo espiritual
e do material; destinou-o a ser o mediador entre as criaturas meramente corpóreas e Deus, o puríssimo Espírito; e,
esta função, o homem a preenche justamente enquanto consta de alma e corpo; no homem se recapitula toda a
criação; o homem é a miniatura do universo, reconheciam já os sábios pagãos. Não seria, pois, harmonioso que,
uma vez encerrada a história, no quadro definitivo das criaturas o homem não figurasse em sua estrutura
característica, espiritual e corpórea, para ser representado unicamente por sua alma, a qual por si só não exprime
adequadamente o significado do homem no conjunto dos seres criados.

Lição 3: Ressurreição iniciada no Batismo

Aprofundando ainda o ensinamento da fé, deve-se dizer que a ressurreição dos corpos prometida pelo
Redentor lança os seus germens em cada indivíduo no momento em que este recebe o sacramento do Batismo. O
Batismo é, sim, a participação inicial do pecador na morte e na ressurreição de Cristo. Este princípio, o cristão deve
fazê-lo desabrochar durante a sua peregrinação terrestre, afirmando em todos os seus atos a morte ao pecado e a sua
ressurreição com Cristo para uma vida toda dedicada ao Pai; um dia, quando Deus o houver por bem, o corpo
pagará tributo à morte e poderá usufruir, por sua vez, dos efeitos renovadores do Batismo: essa morte do corpo do
cristão não será mais do que a morte de Cristo, estendida até o extremo, a tal membro de Cristo; será, por
conseguinte, estágio prévio para a ressurreição com o Senhor, para a plena expansão da vida batismal. O Batismo
(ou a Redenção) deve implicar na comunicação da glória de Deus não somente à alma, mas também ao corpo do
cristão, já que em Cristo alma e corpo foram glorificados. É Sto. Ambrósio quem o afirma: não por causa de Si,
mas por causa de nós, é que Jesus ressuscitou; o que quer dizer: enquanto Deus, Cristo não precisava de ressuscitar;
ressuscitou, sim, enquanto homem, e por causa dos homens, isto é, para que a carne humana (em Jesus e nos irmãos
de Jesus) vencesse a morte, da qual era presa. 84

Lição 4: Sepultamento dos corpos

Estas considerações esclarecem suficientemente a reverência que a Igreja dispensa aos cadáveres nos seus
ritos de sepultamento.
84
"Se não havemos de ressuscitar, Cristo morreu em vão, Cristo não ressuscitou. Com efeito, se não ressuscitou em nosso favor, certamente não ressuscitou,
Ele que não precisava ressuscitar em Seu favor... A Ele não era necessária a ressurreição, já que os vínculos da morte não O detinham. Embora estivesse morto
conforme Sua natureza humana, estava livre mesmo na região dos mortos. E, a bom titulo, livre, já que descera para libertar a outros" (De excessu fratis sui
Satyri 2, 102).
Os pagãos, gregos e romanos, praticavam tanto a inumação como a cremação dos corpos; embora
admitissem um gênero de vida póstuma do defunto, de modo nenhum concebiam a ressurreição da carne. Os judeus
costumavam enterrar os seus mortos; somente em casos excepcionais, de guerra ou peste, os destruíam pelo fogo;
cf. lSm 31,12s; Am 6,9s. Ora, a Igreja, desde os seus primórdios, praticou exclusivamente a inumação; em tempos
mesmos de perseguição, os antigos fiéis, com perigo da própria vida, iam recolher os despojos de seus mártires a
fim de os sepultar piedosamente; embora os pagãos, no Império Romano, por vezes violassem os túmulos dos
cristãos, os fiéis não julgavam oportuno recorrer à cremação dos cadáveres para precaver-se de tais profanações.
Na Idade Média, porém, alguns cristãos recorreram à prática estranha de ferver os cadáveres em água,
talvez afim de separar dos ossos a carne. Contra tais inovadores, o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) publicou
severas disposições, apelando explicitamente para a sua autoridade apostólica, afim de proibir qualquer uso de fogo
no tratamento dos defuntos.
Tentativas de introduzir a cremação em países cristãos foram feitas pelos revolucionários franceses em
1796 e por sociedades maçónicas a partir de 1872.
Que dizer a propósito?
É preciso reconhecer que a cremação, considerada em si, não contradiz a algum dogma católico, nem
mesmo ao da ressurreição da carne; esta, em caso de incineração, não se torna mais difícil à Onipotência Divina do
que na hipótese da inumação. 85 Por isto também a Igreja não se tem oposto à combustão dos cadáveres, quando
necessária ao bem público, em casos de epidemia ou guerra. Todavia, a Igreja julga que tal não deve ser a sorte
normalmente infligida aos defuntos; em outros termos: deseja que o corpo humano não seja tratado como os
detritos que se tomam inúteis para a sociedade.
Propugnando, ao contrário, um tratamento de respeito aos cadáveres, a Igreja quer professar e inculcar a
dignidade única que compete ao corpo humano, a esta porção de matéria que não é como as outras, porque a anima
uma alma espiritual.
Ademais a Igreja sabe que o corpo humano foi por Cristo elevado à dignidade de templo do Espírito
Santo; no corpo do cristão habita Deus, os membros do batizado são órgãos que o Espírito Santo move à prática das
boas obras;86 o corpo do cristão nesta vida é também periodicamente posto em contato com o corpo de Cristo
eucarístico, que nele se torna o fermento da ressurreição; por fim, esse corpo deve ser um dia totalmente penetrado
pela glória de Deus, ressuscitando transfigurado! Deus o cumulará de Seus dons, dos sinais do apreço divino.
Eis por que nos séculos XIX/XX a Igreja rejeitou peremptoriamente a cremação de cadáveres. Era
inspirada por concepções materialistas e anticristãs. Todavia em 1964 começou a permiti-la, visto que em nossos
tempos pode ser sugerida por razões higiênicas, urbanísticas, econômicas; nem sempre é a expressão de concepções
anticristãs. Eis o que a propósito reza o Código de Direito Canônico promu19ado em 1983:
"A Igreja recomenda insistentemente que se conserve o costume de sepultar os corpos dos defuntos; mas
não proíbe a cremação, a não ser que tenha sido escolhida por motivos contrários à doutrina cristã" (Cânon 11 76, §
3).
As idéias até aqui expostas explicam o culto das relíquias. A carne e os ossos dos santos são, durante a
sua peregrinação terrestre, eminentemente possuídos pelo Espírito de Deus e se destinam a se tornar de novo, e em
grau muito mais intenso, os receptáculos da vida dos filhos de Deus. Em conseqüência, qualquer parcela de carne e
ossos dos santos que conserve os sinais da sua identidade, é objeto de particular estima por parte dos cristãos.
Aliás, toda a veneração tributada às relíquias se dirige, em última análise, às pessoas mesmas que tais relíquias
recordam.
PERGUNTAS
1) Como se explica o respeito dos cristãos pelo corpo humano?
2) Que é que a Encarnação do Filho de Deus significa para os cristãos?
3) Queira relacionar entre si o sacramento do Batismo e a; ressurreição da carne.
4) Qual a posição da Igreja diante da cremação de cadáveres?
5) Como se pode entender o culto das relíquias?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

85
2. No Império Romano pagão, os perseguidores, visando a destruir a esperança cristã na ressurreição, mandavam queimar os cadáveres dos mártires e atirar
suas cinzas ou ao vento ou nos rios; assim as cinzas dos mártires de Lião (séc. II) foram lançadas no Ródano (cf. Eusébio, Hist. eccl. 5,1). A isso os cristãos
respondiam apelando para a intervenção da Onipotência Divina na ressurreição dos corpos.
86
Eis o que S. Agostinho ensina num opúsculo escrito expressamente para justificar o tratamento honorifico dos defuntos "Os corpos dos defuntos não devem
ser menosprezados nem repudiados, principalmente os dos justos e fiéis, pois deles, como que de órgãos e instrumentos, se serviu santamente o Espírito para
toda espécie de boas obras" (De cura pro mortuls gerenda 2,4).
MÓDULO 34: A RESSURREIÇÃO DA CARNE (IV) - COMO?

Já a primeira geração cristã apresentou a S. Paulo duas questões referentes à ressurreição dos mortos; 1)
Dar-se-á realmente? Em que princípios se baseia tal expectativa? 2) E como ressuscitarão os defuntos? Com que
corpo voltarão à vida? Cf. l Cor 15,12.35. Foi o que deu ensejo a que o Apóstolo primeiramente apresentasse a
ressurreição da carne como conseqüência da união dos fiéis com Cristo (lcor15,1-34) e, a seguir, expusesse as
qualidades do corpo ressuscitado (35-50).
Paralelamente, este Curso, depois de abordar os fundamentos e o significado da ressurreição, passa a
considerar a segunda questão acima.
Ao tratar do assunto, os autores espontaneamente voltam sua atenção para o corpo de Cristo ressuscitado.
E com razão. Se, para nós, a ressurreição significa a consumação da Redenção, ela deve implicar na configuração
plena à "nova criatura" (cf. 2Cor 5,7), ao "novo homem" (cf. Ef 4,24), que é o Senhor vitorioso das conseqüências
do pecado. Para ilustrar a futura transformação, S. Paulo recorre à analogia da semente: esta é lançada à terra, onde
se desfaz, para "ressuscitar" portadora de vida nova e muito intensa; cf. l Cor 15,35-44. A imagem é significativa;
contudo não passa de metáfora; pode ser aprofundada à luz da fé e da sã filosofia.
Considerando o corpo glorioso do Senhor, os teólogos apontam as seguintes notas, que caracterizarão a
carne ressuscitada:

Lição 1: Identidade Numérica

O corpo com que a alma compartilhará a sua sorte eterna não será um corpo humano qualquer, mas
aquele mesmo com que tiver compartilhado suas vicissitudes na vida presente.
Em Cristo esta identidade se verificou; era condição absolutamente necessária para que houvesse
Redenção. Justamente a finalidade da vinda do Senhor à carne foi colocar a imortalidade na mesma matéria que era
portadora da morte, depositar glória nos mesmos corpos marcados pela ignomínia. Realizando tal inversão de
sortes em sua própria carne, o Senhor a anunciou a todos os indivíduos humanos.
A Igreja, no decorrer dos tempos, explicitou a mensagem de Jesus:
"Creio também na verdadeira ressurreição da mesma carne de que agora sou portador" (Símbolo de fé
redigido pelo Papa S. Leão IX em 1053; Dz 347) ;
"Com o coração cremos e com os lábios professamos a ressurreição desta carne que agora trazemos e não
de outra" (Inocêncio III, em 1208, Profissão de fé para os valdenses; Dz 427) 87.
Os teólogos chegam mesmo a afirmar que, no tocante ao dogma da ressurreição, duas proposições apenas
são estritamente de fé: 1) a ressurreição será universal, isto é, atingirá todos os homens, quer justos, quer
pecadores; 2) a carne ressuscitada será numericamente a mesma que a carne mortal.
Não é difícil reconhecer quanto a segunda proposição encerra de conveniente e harmonioso. A alma
decide na terra a sua sorte eterna, servindo-se de tal corpo como instrumento de seus méritos e deméritos; sem o
concurso de órgãos corpóreos, nunca poderia desdobrar toda a sua vitalidade e chegar à respectiva perfeição (é o
que se dá com os mentecaptos, que possuem, sim, uma alma íntegra, mas um cérebro avariado); o corpo, com suas
notas individuais, influencia o ritmo de vida da alma; marca-lhe de certo modo a fisionomia espiritual, assim como,
reciprocamente, a alma determina a fisionomia sensível, as atitudes do corpo. Por conseguinte, é de toda a
conveniência que a carne, associada à alma no currículo desta vida, lhe seja igualmente associada na posse da sorte
eterna, resposta aos atos da vida presente.
Todavia esta doutrina, desde os primeiros séculos da Igreja, suscita grave questão: como se há de
conceber a identidade numérica visto que os cadáveres se dissolvem em poeira, quiçá espalhada pelos quatro
ventos? Não raro essa poeira é assimilada por vegetais, que por sua vez são agregados a outros organismos vivos,
até mesmo humanos. E que dizer dos corpos daqueles que são vítimas da antropofagia de outros homens ou de
peixes, peixes que os homens sobreviventes consomem?
A propósito é de notar que, para que haja ressurreição, não se requer que Deus recolha a poeira dos
cadáveres, a fim de com ela plasmar de novo os corpos. Lembremo-nos de que, já durante a vida terrestre de um
homem, a matéria do respectivo corpo se vai renovando lentamente, de modo que, de sete em sete anos, cada qual
tem outra constituição material; não obstante, esta é realmente o mesmo corpo do indivíduo. Ora, se o corpo de
alguém pode ser o mesmo, embora conste de matéria diversa, a dificuldade atrás levantada se dissolve facilmente.
Deus pode reconstituir o corpo de uma pessoa falecida a partir do que os filósofos chamam "matéria prima"; esta,
reunida à alma desse indivíduo, torna-se o corpo mesmo de tal pessoa, com as suas notas típicas, visto que a
identidade da alma efetua a identidade das características do respectivo corpo. Tal processo tem sua analogia no
fato de que o metabolismo de um homem mortal incorpora ao organismo respectivo matéria nova; esta vem a ser o
corpo típico de tal pessoa, porque passa a ser animada pelo mesmo princípio vital ou pela mesma alma.
87
Sto. Agostinho escrevia: "Esta carne há de ressuscitar, esta mesma que é sepultada, que morre; esta que se vê que é apalpada que precisa comer e beber,
para poder subsistir; esta que conhece a doença, sofre dores esta mesma há de ressuscitar" (Serm. 264,6).
Lição 2: Imortalidade

A prerrogativa de não mais morrer será concedida aos ressuscitados, tanto justos como réprobos. É
conseqüência lógica do estado de consumação que a ressurreição acarretará. Para os justos, a imortalidade será
igualmente o sinal do triunfo que terão obtido com Cristo sobre o pecado; com efeito, na atual ordem de coisas o
homem sofre a morte não como fenômeno meramente natural, mas como sanção devida à culpa do primeiro pai;
uma vez consumada a vitória sobre o pecado e suas conseqüências, será concedida ao homem a prerrogativa da
imortalidade. Portanto, nada mais que possa ameaçar ou coibir a vida afetará os ressuscitados; a tendência à
caducidade e ao declínio não mais se exercerá. É o que tornará desnecessárias as funções de nutrição e geração,
mediante as quais o indivíduo e a sociedade procuram de certo modo perpetuar-se, suprindo as deficiências do
corpo mortal; por não exercerem mais tais funções, os ressuscitados são pelo Senhor comparados aos anjos do céu
(cf. Lc 20,35).

Lição 3: Integridade

Em virtude deste dom, os ressuscitados, tanto justos como réprobos, possuirão todos os órgãos e
membros, todas as faculdades que o corpo humano por natureza possui, embora hajam sido mutilados ou disformes
neste mundo. Conservarão, outrossim, a distinção de sexos.
Esta proposição decorre igualmente do fato de que o homem ressuscitará, conforme o plano de Deus, a
fim de atingir a sua consumação, Por conseguinte, deverá gozar de tudo aquilo que pertence à natureza humana
como tal; Deus, portanto, restaurará nos corpos ressuscitados os órgãos amputados ou mutilados nesta vida; dará
até mesmo os que o indivíduo nunca tenha possuído (olhos, por exemplo, ao cego de nascimento; o desdentado
recuperará todos os dentes). Sto. Agostinho e S. Tomás ensinam que também as unhas e os cabelos integrarão o
novo corpo, estes, porém, em quantidade normal, nem deficiente (o que seria a calvície) nem excessiva. 88 É verdade
que muitos órgãos só têm função nas circunstâncias da vida terrestre e não serão utilizados após a ressurreição;
todavia, já que pertencem à integridade da natureza, não poderão faltar.
Na antiguidade houve quem quisesse negar a ressurreição de todos os membros, asseverando que os
corpos futuros serão arredondados. Esta sentença dos chamados "origenistas" foi condenada pelo sínodo regional
de Constantinopla, reunido em 543 (cf. D.-S. n o 407 [207]). Os mesmos discípulos de Orígenes não queriam
admitir distinção de sexos na vida eterna; parecia-lhes que todos os indivíduos ressuscitarão com as características
masculinas, já que S. Paulo escreve: " em vista da edificação do corpo de Cristo, até que cheguemos todos à idade
de homens feitos" (Ef 4,12s). Erravam, porém, na interpretação do texto paulino, que se refere não ao sexo
masculino como tal, mas à virilidade de ânimo que possuirão todos os justos ressuscitados, homens e mulheres.
Quanto às características de idade dos corpos ressuscitados, de novo um texto de S. Paulo prestou-se a
conjeturas: ".,, até que cheguemos todos à idade de homens feitos, à medida da estatura perfeita de Cristo, a fim de
que não sejamos mais crianças flutuantes" (Ef 4,13). Ora, como se julga que Cristo tenha atingido a idade de trinta
anos ou pouco mais, afirmavam não poucos antigos e medievais que os corpos ressuscitados terão todos
indiferentemente o aspecto que em condições normais corresponde a esta idade; por conseguinte, os indivíduos
falecidos em idade infantil ou senil ressuscitarão em idade madura. Procuravam corroborar tal tese fazendo notar
que é aos trinta anos que o corpo atinge a perfeição das suas formas, começando, logo a seguir, um lento declínio. 89
Esta sentença não é aceita pelos teólogos recentes; certamente não se pode fundar no texto paulino, que trata de
crescimento sobrenatural. Há quem julgue mais conveniente que na aparência externa dos corpos ressuscitados haja
algo que lembre a sua vida na terra; assim, S. Estanislau Kostka terá para sempre o seu aspecto gracioso de jovem,
ao passo que o velho Simeão conservará sua aparência majestosa e veneranda, confirmada por novo fulgor da
graça.
Dada a sobriedade da Revelação no que se refere aos pormenores, não se atribua demasiado peso às
conjeturas acima. Contudo não se porá em dúvida que os corpos ressuscitados carecerão de qualquer vestígio de
mutilação ou defeituosidade.
As três qualidades até aqui consideradas serão comuns aos corpos tanto dos justos como dos réprobos.
Enumeram-se ainda dois dotes, distintivos dos bem-aventurados: impassibilidade e fulgor.
88
Cf. S. Teol. Supl. 80, 1 e 2. S. Agostinho compraz-se em pormenores: "Nada de defeituoso haverá nos corpos ressuscitados. Os que tiverem sido obesos e
gordos, não retomarão toda a quantidade de seus corpos, mas o que exceder o normal será tratado como supérfluo. Ao contrário, tudo que a doença ou a
velhice tiverem consumido nos corpos, será restaurado por Cristo com poder divino; o mesmo se verificará nos que, por magreza, tiverem sido demasiado
esguios; com efeito, Cristo não somente nos restituirá o corpo, mas ainda restaurará tudo que nos houver sido subtraído pelas misérias desta vida" (De civ. Dei
22,19). "O homem não retomará a cabeleira que tiver tido, mas a que lhe convier ter... Todos os cabelos de vossa cabeça estão numerados' (Mt 10,30), e
segundo a Sabedoria Divina hão de ser restaurados" (Enchiridion 89).
89
Cf. S. Tomas, S. Teol. Supl. 83,1. S. Agostinho, depois de propor as mesmas idéias, acrescenta a seguinte ressalva: "Por conseguinte, ressurgirão todos na
estatura que tinham ou haveriam de ter em idade juvenil. Contudo, não há inconveniente em que a forma do corpo ressuscitado seja também de criança ou de
ancião, visto que não subsistirá nenhum defeito nem da mente nem do corpo. Portanto, se alguém sustenta que cada qual ressurgirá na estatura que tiver tido ao
morrer, não se deve disputar ardorosamente com ele" (De civ. Dei 22,16).
Lição 4: Impassibilidade

A carne dos justos nada poderá padecer de molesto; nenhum agente lhe poderá incutir alguma dor. E o
que se depreende claramente das descrições da Sagrada Escritura; já (saías profetizava:
"O Senhor enxugará as lágrimas de todos os olhos... Não terão mais fome nem sede; nem a areia ardente
nem o sol os atingirão" (25,8; 49, l0).
Palavras que o Apocalipse repete e explícita:
"Não terão mais fome, não terão mais sede; o ardor do sol não os abaterá, nem algum calor abrasador;
pois o Cordeiro que está em meio ao trono, será o Seu pastor e os conduzirá às fontes das águas da vida, e Deus
enxugará toda lágrima de seus olhos" (7,16s).
Compreende-se bem essa impassibilidade. O espírito do homem, no paraíso, se rebelou contra Deus; em
conseqüência, o corpo passou a se insubordinar à alma, e as criaturas inferiores, por sua vez, deixaram de servir
devidamente ao homem, ocasionando as desordens e a aflição que caracterizam o atual estado de coisas. Ora, na
restauração final, as almas se acharão confirmadas na total adesão a Deus: unidas ao Senhor, possuirão o pleno
domínio sobre o seu corpo; haverá ordem perfeita entre carne e espírito.

Lição 5: Fulgor

Os corpos dos justos refletirão a glória da alma: esta redundará sobre a carne tornada translúcida. Em
outros termos: a beleza sobrenatural do espírito, recebida no corpo, tomará aspecto visível, coisa que de certo
modo, na medida em que os cristãos possuem a graça santificante, já se deveria dar aqui na terra, caso o corpo não
estivesse ainda sujeito às conseqüências do pecado; coisa também que se devia verificar na carne de Cristo desde o
seu nascimento em Belém, dado que o Senhor não o tivesse voluntariamente impedido (apenas na transfiguração
sobre o Tabor Jesus permitiu transpareces-se pelo corpo a glória que Ele trazia na alma).
São palavras de Jesus: "Então refulgirão os justos como o Sol no reino de Meu Pai" (Mt13,45). Cf. Fl
3,21; Sb 3,7; Dn 12,3.
Como se entende, o fulgor do corpo ressuscitado será proporcional à santidade da alma, o que quer dizer:
diferirá de justo para justo: "Outro é o esplendor do Sol, outro o da Lua, outro o das estrelas; mesmo entre as
estrelas, uma difere da outra pelo seu esplendor" (1Cor 15,41).
De resto, uma antecipação do futuro fulgor é por vezes concedida aos justos já nesta vida. Acontece que o
rosto ou o olhar de pessoas muito unidas a Deus, ricas de graça, reflete um encanto que dobra vontades rebeldes ou
atrai multidões; a graça é, sim a semente da glória. De Moisés diz a Escritura que o contato com Deus tornava o seu
aspecto de tal modo radiante que os filhos de Israel nele não podiam fixar os olhos; cf. Ex 34,29.
Em conclusão, verifica-se que os dotes distintivos dos corpos gloriosos se derivam da perfeita harmonia
que reinará entre carne e espírito no estado de consumação. A alma do justo, tendo entrado definitivamente na
condição de criatura sujeita ao Criador, aderindo a Deus com toda a inteligência e o afeto, será grandemente
dignificada: adquirirá sobre os seres inferiores, a começar pelo próprio corpo, o domínio que em vão ela procuraria
obter rompendo os seus vínculos de sujeição ao Senhor; doutra parte, por este domínio que sobre o corpo exercerá
a alma, o próprio corpo será nobilitado. Destarte se verificará em plenitude o axioma: "Servir a Deus é reinar". O
primeiro homem, cobiçando dignidade e poder independentemente de Deus, perdeu todos os dotes de que gozava
no paraíso; ora, eis que na restauração final de todas as coisas Deus Se dignará não propriamente restituir os dons
perdidos, mas ultrapassá-los, concedendo à criatura humana prerrogativas muito superiores às do primeiro paraíso.
PERGUNTAS
1) Queira sinterizar cada uma das qualidades dos corpos dos justos ressuscitados.
2) Explique a razão de ser de cada uma dessas prerrogativas. 3) Haveria alguma relação entre essas
qualidades e o que S. Paulo afirma em 1Cor 15,42.44?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 35: O JUÍZO UNIVERSAL (I) " FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA

A fé ensina que a parusia do Senhor Jesus e a ressurreição da carne estão associadas a um julgamento de
todos os homens chamado "juízo universal". Está claro que não se tratará de um tribunal como os da terra, em que
o juiz ouve acusação e defesa para proferir a sentença judiciária; mas o juízo universal será a tomada de
consciência, por parte do indivíduo e de todos os homens, dos feitos bons e maus que cada um tiver realizado
durante esta vida; a revelação desses valores e desvalores evidenciará também o papel positivo ou negativo que
cada pessoa terá exercido no decorrer de sua passagem na terra...
A razão de ser desse juízo universal, que não será uma duplicata do juízo particular (consecutivo à morte
de cada um), é que todo ser humano tem dois aspectos: o estritamente individual (ao qual corresponde o juízo
particular) e o comunitário, ao qual corresponde o juízo universal; a vida de cada um está inserida dentro de um
conjunto e é conveniente que os demais homens saibam quanto devem ao comportamento de cada um de seus
irmãos; somos solidários e interdependentes entre nós; por isto é oportuno que os efeitos desta solidariedade sejam
manifestados a todos os homens.
Examinemos a fundamentação bíblica deste artigo de fé.

Lição 1: Fundamentação Bíblica

Jesus predisse repetidamente que Ele mesmo haveria de ser o juiz de todos os homens por ocasião de sua
segunda vinda. Tenhamos em vista principalmente a cena grandiosa descrita em Mt 25,31-46 (ler este trecho do
Evangelho).
Considerando atentamente o Evangelho, verificamos que Jesus atribuía a si o poder de julgar os homens,
porque Ele era "Filho do Homem" ou verdadeiro homem; é o que se depreende de Jo 5,26:
"Assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também concedeu ao Filho Ter a vida em si mesmo e
lhe deu o poder de exercer o julgamento, porque é Filho do Homem". Como entender esta afirmação de Jesus?
Foi em sua natureza humana ou como homem que Jesus se fez obediente ao Pai, e obediente até a morte,
desempenhando fielmente o papel que o primeiro Adão se recusara a preencher. Conseqüentemente, foi a título de
segundo Adão que Jesus obteve a dignidade de novo Cabeça, Rei e Juiz de todos os homens. A justificativa
"porque é Filho do Homem" significa precisamente: "porque é o Homem (o Adão, o novo Adão) por excelência".
Jesus também deu a entender que com a sua primeira vinda à terra se inaugurou a fase decisiva para os
homens; com efeito, o aparecimento do Filho de Deus na carne implica a separação espiritual do gênero humano
em dois grupos: enquanto uns passam da letargia espiritual para a plena vida, outros tropeçam mortalmente diante
da figura de Cristo.90 Assim, a partir da Encarnação, toda a história dos indivíduos e dás nações não é senão o
desenrolar progressivo de um julgamento que se consumará na segunda vinda de Cristo; o juízo final já despontou,
de tal sorte que Jesus podia dizer:
"Aquele que Me rejeita e não aceita as minhas palavras, tem quem o condene. A palavra que proferi, eis o
que o condenará no último dia" (Jo 12,48).
Convém que a Palavra de Deus, a qual tomou figura humana em Jesus Cristo e outrora foi condenada pela
palavra dos homens, convém, sim, que Ela seja um dia, e no mesmo cenário em que foi rejeitada, reconhecida
como a Palavra Soberana e Julgadora; convém que Ela seja a palavra de encerramento de toda a história. A Palavra
de Deus, por sua natureza, julga, e deve julgar, para instaurar entre as criaturas a ordem perfeita que a precária
justiça humana é incapaz de estabelecer. Assim, Aquele que Se fez réu voluntário, a fim de resgatar os autênticos
réus, completará a sua manifestação neste mundo, ostentando em plenitude o que Ele teve que encobrir em sua
primeira vinda.
O fato de que o próprio Jesus Cristo, sob a forma de Palavra apregoada pelo Evangelho, é o Árbitro que
acompanha os séculos, sugere-nos ainda que toda a história do Cristianismo, por muito longa que seja, não vem a
ser senão aquilo que os Profetas no Antigo Testamento chamavam o "Dia do Senhor", e que Jesus Cristo mais
precisamente chamou "o Seu dia" (Lc17,24). 91 O caráter de seriedade muito solene que os profetas atribuíam ao
"Dia do Senhor", toca, sem contestação, aos tempos contidos entre a primeira e a segunda vinda de Cristo; são
tempos em que a cada homem é proposta, sob a forma de convite misericordioso, a Palavra de Deus; diante de tal
mensagem é-lhe dado optar entre Vida (por Deus) e Morte (contra Deus); é-lhe dado proferir o juízo sobre si
mesmo, de tal forma que no último dia, quando a Palavra de Deus reaparecer na carne humana, Ela reconhecerá a
sentença que o indivíduo tiver pronunciado sobre si mesmo, e a tornará definitiva: 92
"Quem crê no Filho de Deus não é condenado; aquele, porém, que não crê, já está condenado, porque não
crê no nome do Filho único de Deus. Ora, eis o motivo da condenação: a Luz veio ao mundo; os homens, porém,
preferiram as trevas á Luz" (Jo 3,18s).
Estas palavras de Cristo dão claramente a entender que o Juízo de Deus não é apenas extrínseco ao
homem, mas é também algo de imanente, interior ao homem. Não é simplesmente futuro, mas é, outrossim,
presente. Não é o veredicto da Justiça apenas, mas da Justiça precedida pelo Amor; nele se entrelaçam a Eqüidade
suma e a Vontade salvífica do Criador.93
90
"Simeão.. disse a Maria...'Eis que este menino foi constituído ocasião de queda e de reerguimento para muitos em Israel; será um sinal alvo de contradição'"
(Lc 2,34).
91
l. Cl.lcarl,8; Fl 1,6,10; 2,16. O "dia do Crista Jesus", nos textos citados, vem a ser a dia em que se revelarão o Poder, a Glória de Jesus, fiei e Juiz.
92
2. E também significativa a imagem paulina da sementeira; na dia do juízo final, a homem, à luz de Deus, não fará senão colher os frutos do que tiver
semeada nesta terra; cl. G16,7s; 2Cor 9,6.
93
.O motivo da condenação apontada por Cristo ("a Luz veio ao mundo") se poderia exprimir como outras palavras do Evangelho: "A tal ponto Deus amou o
mundo que deu a Seu Filho unigênito afim de que todo que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna; com efeito, Deus não enviou Seu Filho ao mundo
para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele" (Jo 3,16s).
Lição 2: O Significado do Juízo Universal

O plano divino, que coincide com a própria ordem, é obscurecido no decurso dos séculos...
Em realidade, na concorrência do bem e do mal, que caracteriza a vida presente, quantas vezes não toca á
iniqüidade, á injustiça violenta dizer a última palavra, esmagando valores morais e físicos? A história não raro
parece norteada pelos fraudulentos, que acumulam impunemente triunfo sobre triunfo; apresentam o Mal como se
tora um Bem, deturpam o que há de mais digno, exaltando o que é moralmente vil. Outra anomalia se verifica na
vida presente: atos movidos pela melhor das intenções são dotados de êxito precário; só obtêm desprezo ou censura
por parte da sociedade; ao contrário, aquilo que é feito com perversidade requintada passa não raro por ação nobre
e atrai o louvor do público; o foro externo, visível, não corresponde sempre ao foro interno, invisível, do homem.
Esta situação, embora não impeça que os homens de bem levem uma vida digna, objetivamente considerada, é um
"escândalo", que dama á Justiça. No fundo de sua consciência o homem espontaneamente experimenta repugnância
diante de tal estado de coisas; aspira a que a ordem reine não somente neste ou naquele indivíduo isoladamente,
mas na coletivide, no conjunto dos acontecimentos sociais. 94 Ora, Deus, que é a própria Justiça, não pode deixar de
corresponder a tal aspiração; é Ele mesmo o Autor dessa natureza humana, que tem sede de Justiça e Bem.
Todavia, não seria conforme ao plano do Senhor intervir no curso dos séculos de maneira violenta, a fim
de nele estabelecer Justiça; com efeito, foi ao homem que o Criador entregou a tarefa de plasmar a história,
reservando a sua intervenção solene para o fim dos tempos. Por conseguinte, quando o Senhor julgar oportuno dar
remate aos séculos, aparecerá majestosamente diante de todas as criaturas e porá em evidência cada um dos atos,
pensamentos ou omissões com que tiverem concorrido para a marcha dos acontecimentos neste mundo; então o
autêntico bem será reconhecido e confirmado irrevogavelmente, ao passo que o mal dissimulado será desmascarado
e definitivamente condenado. As últimas conseqüências das ações de cada indivíduo serão trazidas à plena luz,
conseqüências que não sempre é dado avaliar ao observador envolvido na trama da história. A atividade de um
homem pode ter repercussão, benéfica ou nociva, durante séculos; uma longa prole espiritual muitas vezes se
associa a determinada personalidade e marca a sua posição na história. Ora, convém que todos os efeitos que
caracterizam, próxima ou remotamente, a figura de cada indivíduo, sejam manifestados, quer para a exaltação, quer
para a devida condenação do respectivo autor.
A partir de tal revelação, a Justiça de Deus reinará de maneira perfeita entre os homens.
Não resta dúvida de que, logo após a morte, as ações de cada indivíduo já são julgadas; o currículo de sua
vida lhe é por inteiro apresentado sob a luz de Deus) Todavia não basta esta tomada de consciência no foro privado
apenas; já que todo indivíduo, segundo o plano divino, vive em comunhão, por vezes invisível a nós, de méritos e
deméritos com os seus semelhantes, a ordem reta das coisas pede seja revelado, no fim dos tempos, em que grau
cada homem é devedor ao seu próximo. É o que se dará, com grandes surpresas para cada um de nós (cf. Mt 7,2-5;
25,37-46; Mc 10,31), no juízo universal. Este, pois, manifestará principalmente o significado comunitário de cada
um dos atos humanos, ao passo que o juízo particular considerará primariamente o aspecto subjetivo, ou seja, a
pureza de intenção, a boa vontade, de cada indivíduo em seus respectivos pensamentos e feitos.
Isto quer dizer, entre outras coisas: no grande dia da revelação, se verificará com toda a clareza o valor,
positivo ou negativo, das realizações culturais, artísticas, científicas, em curso neste mundo; o alcance dos sistemas
e das tendências filosóficas na história; a sabedoria das instituições econômicas, industriais, políticas, vigentes na
sociedade; a sinceridade dos diversos "credos", o significado das seitas e heresias, no setor religioso; as causas e os
efeitos das guerras e revoluções, a oportunidade e as conseqüências das alianças e convenções entre indivíduos e
nações. O que tiver parecido grande e poderoso, poderá ser demonstrado pequenino e impotente, enquanto esforços
aparentemente baldados, trabalhos "fracassados", serão reconhecidos como altamente fecundos e benéficos.
Manifestar-se-ão, outrossim, as razões arcanas pelas quais Deus permite o pecado, tolera o erro religioso e moral,
não impede o sofrimento neste mundo, parece mesmo reservar as maiores provações aos que Lhe são fiéis e
amigos; enfim, explicar-se-ão todas as propaladas "incongruências" do plano de Deus, que no decorrer dos séculos
tanto dificultam a fé no verdadeiro Senhor.
Os teólogos ainda ensinam que não somente os pecados dos maus, mas também as faltas dos justos e
santos serão desvendados; isto, porém, se fará sem infâmia para os justos. 95 redundará unicamente em louvor de
Deus, pois mostrará ainda melhor a Providência e Bondade do Pai, que, não obstante a miséria da natureza, sabe
levar o homem à perfeição; a gratidão para com Deus será tanto maior quanto mais se evidenciar quão impotente é

94
Ecos bem vivos desse clamor fazem-se ouvir, por exemplo, no SI 73: "Meus pés quase resvalaram, Por pouco não escorregaram meus passos,
Pais cheguei a ter inveja dos ímpios, Ao observar o bom viver dos pecadores: Para eles não existe sofrimento, Seus corpos são robustos e sadios; Não sofrem
trabalhos como os outros mortais, Nem têm aflições como os demais homens. Olhai: assim são os pecadores, Sempre contentes vão aumentando o seu poder!
Debalde, pois, guardei puro o coração E lavei minhas mãos em inocência, Pois que sou açoitado todo o tempo E recebo castigos cada dia" (2-4.12-14). Em
Hab 1,2-4 tal enigma é tema de uma oração do profeta a Javé.
95
Como hoje, S. Pedro, S. Paulo, S. Maria Madalena, S. Agostinho não são afetados por alguma nódoa ou desonra quando, na liturgia ou na pregação, se
recordam as falhas que cometeram na Terra.
a criatura para atingir seu único Bem. A publicação das próprias faltas, portanto, longe de implicar humilhação para
os justos, avivará neles a alegria e a ação de graças à Misericórdia Divina.
É preciso acrescentar que, no juízo final, não somente os homens como indivíduos, mas também os
povos como tais, serão devidamente considerados. Sim, cada povo como tal traz uma parte própria de
responsabilidade no desenvolvimento da história; muitas vezes são os grupos nacionais, e não os indivíduos
isolados, os principais responsáveis dos acontecimentos; por via de regra, o indivíduo não atua na história senão
enquanto membro ou instrumento de determinado agrupamento étnico. No último dia, portanto, patentear-se-á em
que medida cada povo terá cumprido a sua missão na história, e conseqüentemente a cada nação será reconhecida,
em público, a honra ou desonra congruente (os povos como tais, porém, não vão nem para o céu nem para o
inferno). Também um tal tipo de manifestação se imporá para que haja plena restauração ou instauração da justiça
entre as criaturas.
Por fim, pergunta-se: que atitude deve despertar nos fiéis a expectativa do juízo final?
Este era sempre professado com imensa alegria pelos antigos cristãos; consideravam o "Dia do Senhor"
como o dia da vitória definitiva da Ordem, do Bem, de Deus; nele viam igualmente o dia da salvação para os
justos. Todavia, a partir da Idade Média, o mesmo dogma, em vez de suscitar alegria, causa freqüentemente espanto
e terror; o aspecto de "exame", de que também se reveste o Dia do Senhor, tornou-se preponderante na
consideração de muitos cristãos; conseqüentemente, a confiança perante o Senhor vindouro cedeu ao sentimento de
medo. A necessidade de coibir o pecado, ou o mistério da iniqüidade, que ameaça constantemente os fiéis, levou
alguns pregadores a pôr em realce principalmente o aspecto aterrador do juízo de Deus, aspecto que a fantasia
muito concorreu para acentuar, elaborando imagens minuciosas do grande julgamento.
Lembrem-se, porém, os fiéis de que o dogma do juízo final é a mensagem de que Deus dará a devida
resposta a uma aspiração inata de sua consciência; tenham em si fome e sede de justiça (cf, Mt 5,6), e vivam
coerentemente com isto; em conseqüência, a perspectiva do juízo final, longe de os constranger, neles despertará
alegria e vida! Referindo-se justamente à sua segunda vinda na qualidade de Juiz, dizia Jesus aos discípulos:
"Quando estas coisas começarem a se verificar, enchei-vos de confiança e erguei a cabeça, pois vossa redenção
estará próxima" (Lc 21,28).

PERGUNTAS
1) Cite e comente três textos bíblicos que falam do juízo final. 2) Por que devemos ser julgados duas
vezes: logo após a morte e no fim dos tempos? 3) Qual o sentido do juízo final para cada indivíduo? 4) Os povos
como tais serão também julgados? 5) O juízo universal despena alegria ou temor no bom cristão?

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CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 36: O JUÍZO UNIVERSAL (11) - COMPLEMENTOS

As condições em que se dará o julgamento universal não podem ser todas indicadas com precisão; as
fontes da Revelação se apresentam assaz sóbrias sobre o assunto; além do quê, usam de várias expressões
figuradas.
Não raro, no decorrer da história, escritores e pintores traçaram do juízo universal um quadro muito
popular: propuseram a reunião de todo o gênero humano no vale do Josafá; o aparecimento de Cristo sobre um
carro de nuvens precedido pela Cruz e escoltado por inúmeros anjos com face humana; tronos elevados, visíveis de
longe, para o Juiz Divino e seus assessores; separação de bons e maus em dois grupos opostos; discussão dos feitos
de cada indivíduo e manifestação pública dos resultados do inquérito; proclamação da sentença de salvação ou
perdição eternas.
Estas indicações pormenorizadas são inspiradas pela piedade mais do que pelo saber teológico.
Isto não impede que se considerem as indicações do texto sagrado e se procure averiguar o seu sentido
autêntico.
É o que passamos a fazer.

Lição 1: A Matéria do Juízo

Este traço é proposto de maneira assaz clara e categórica na Escritura Sagrada, de modo a não deixar
margem a interpretações diversas: será julgada a vida inteira do homem, sob o ponto de vista moral e religioso.
Entrarão, pois, em conta:
a) os feitos exteriores: emprego dos talentos por Deus confiados ao homem (Mt 25,14-30; Lc 19,12-27);
o uso dos bens deste mundo (Lc 12,13-21; 16,19-31; 21,34.36). Um olhar, um gesto de mão poderão levar o
homem à perdição (Mt 5,29s; 18,8s). Terá importância toda especial a prática da caridade para com o próximo:
devotamento serviçal (Mt 25,31-46); esmola (Lc 16,9); perdão e misericórdia (Mt 6,16; 18,23-35; Lc 6,36; 14,12-
14); escândalos (Mt 18,6s); em suma, Deus aplicará ao homem a medida que este tiver aplicado ao próximo (Mt
7,ls; Mc 4,24). Pode-se dizer que esta última frase é a formulação concreta e equivalente do grande princípio:
"Deus retribuirá a cada um conforme as suas obras" (Mt 16,27; Rm 2,6);
b) as palavras: "No dia do juízo, os homens darão contas de toda palavra vã que tiverem proferido" (Mt
12,36);
c) os pensamentos e juízos: "Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados;
perdoai e ser-vos-á perdoado" (Lc 6,37);
d) as omissões: "Aquele que sabe fazer o bem e não o pratica, comete pecado" 1Tg 4,17). 96
Principalmente, porém, o juízo de Deus versará sobre a intenção de quem age (Mt 15,3-9). É o coração do
homem, declara Jesus, que, antes do mais, deve ser dito homicida, adúltero, hipócrita, mau (Mt 5,21s.28.37.44); é o
coração que, por suas intenções secretas, pode tornar viciosos os atos aparentemente mais santos que se pratiquem.
(Mt 6,4.6,18; 15,10.17.20). O Pai do céu vê o homem no seu foro mais íntimo: "Vós sois gente que passa por justa
aos olhos dos homens; Deus, porém, conhece vossos corações" (Lc 16,15; ct. Mt 23; Mc12,41-44).
Uma reflexão sobre os textos em que Jesus se refere à matéria do juízo final faz ver que, em última
análise, um objeto único será examinado em suas múltiplas manifestações de pensamentos, palavras, obras e
omissões; e este objeto único será o amor do homem, 97 mais precisamente: o amor do homem a Cristo. De fato, o
Senhor ensina que qualquer tomada de posição diante dos valores desta vida vem a ser, em sua realidade mais
profunda, uma tomada de posição diante de Cristo. No mundo presente, o homem não se encontra com muitos bens
isolados, mas com um único valor apresentado sob muitas faces; e este único Bem não é algo de impessoal - um
objeto, uma idéia, uma tese ou um sistema filosófico - mas é a própria pessoa de Jesus; lealdade, justiça, fidelidade
ao dever, pureza, não são senão atitudes devidas a Cristo e tomadas diante de Cristo; no Senhor Jesus se recapitula
e compendia todo o bem. Por conseguinte, praticar o que é reto, em quaisquer circunstâncias, mesmo nos afazeres
rudimentares da vida, vem a ser "amar a Cristo", como contradizer ao bem coincide com "ofender o amor de
Cristo".
"O bem pode deparar-se ao homem nos setores mais diversos - ou dentro do homem ou nos objetos que o
cercam ou nos acontecimentos; em última análise, ele significa sempre Jesus Cristo. Não é necessário que aquele
que age, pense explicitamente em Cristo; mesmo que não trate, à primeira vista, senão com um homem, a sua ação
tem por termo final o Cristo. Não é preciso que saiba algo a respeito de Cristo; ainda que jamais dele tenha ouvido
falar sua conduta é polarizada por Cristo" (Romano Guardini, Les Fins Dernières 139).
Na base destas afirmações está uma série de textos do Evangelho em que Jesus se propõe como o próprio
critério, o critério vivo, do juízo final. Conforme o Senhor, não serão examinadas senão as atitudes que o homem
tiver tomado frente a Cristo nas diversas conjunturas desta vida: assim, a renúncia do indivíduo a tudo para seguir a
Jesus (Mt 10,37.39; 19,27.29; Mc 8,34s; Mc 8,34s; Lc 18.28s); a confissão e a renegação do nome de Cristo
(Mt10,32s; Mc 8,38; Lc 9,26; 12,8s); a atenção prestada ou não à palavra de Cristo (Mt 12,41s); o acolhimento
deferido aos enviados de Jesus (Mt 10,14s.40.42; Mc 9,37-41; Lc 9,48; lo-1Os); a fidelidade guardada a Cristo na
tribulação (Mt 10,22; 24,9-13); a falta de fé e de arrependimento em presença das manifestações extraordinárias ou
dos milagres de Cristo (Mt11,20). A isto tudo se acrescenta o serviço prestado ao mínimo dos irmãos, no qual Jesus
se diz misteriosamente presente (Mt 25,31-46). Destas afirmações se depreende mais uma vez que a posição mútua
em que Cristo e o homem se encontrarão no último dia, corresponderá fielmente à que o homem tiver assumido
diante das múltiplas faces de Cristo nesta vida peregrina.

Lição 2: Os "Assessores" do Juiz

Mais de uma vez a S. Escritura apresenta Cristo ladeado por assistentes, que com Ele julgam. Tais são:
os Apóstolos: "Vós sois os que permaneceram fiéis a Mim em Minhas tribulações; e Eu disporei, em
vosso favor, de um reino... para que comais e bebais à Minha mesa em Meu reino e vos assenteis sobre tronos para
julgar as doze tribos de Israel" (Lc 22,28-30); cf. Mt 19,27s.
os Justos, de maneira geral: "Não sabeis que os santos (justos) julgarão o mundo? E, se é por vós que o
mundo há de ser julgado, não sois capazes de julgar coisas de menor importância? Não sabeis que julgaremos os
anjos? Por que, então, com mais razão, não julgaríamos as coisas desta vida?" (l Cor 6,2s). Cf. Sb 3,8.
Como interpretar a figura desses assessores?
Faça-se abstração de tronos ou de posição especial que possam convir aos Apóstolos, santos e justos no
dia do juízo.
Antes do mais, é certo que também os Apóstolos e santos serão julgados por Cristo; e isto porque o juízo
universal não conhecerá exceções; o Senhor Jesus deverá, por autoridade própria, proferir a reta sentença sobre
cada indivíduo humano. Todavia, uma vez reconhecidos como justos, conformes ao exemplar divino, identificados
96
Suposto, sem dúvida, que o possa praticar e que haja conveniência em praticá-lo.
97
"No ocaso da nossa vida seremos julgados a respeito do amor", ensina S. João da Cruz, Avisos e Máximas n o 56.
com Cristo, é claro que os santos se apresentarão em público como outros tantos "ecos" daquela Santidade Divina
que fará ouvir a sua reprovação às criaturas não santas. Os justos, por conseguinte, depois de proclamados tais,
formarão, por sua simples presença e atitude de espírito na grande assembléia, um só coro com Cristo, a repelir
todas as culpas que forem manifestadas, culpas tanto dos homens como dos anjos maus; em outros termos: a
retidão moral dos santos, manifestada publicamente, concorrerá para ilustrar a sentença do Juiz sobre cada
indivíduo. É neste sentido que se devem entender as passagens bíblicas segundo as quais os Apóstolos e os justos
julgarão não somente os demais homens, mas até os anjos. 98

Lição 3: O lugar do Juízo Universal

O Profeta Joel (4,2.12) predizia que o Senhor haverá de reunir as nações no vale de Josafá, a fim de as
julgar:
"Levantem-se as nações e venham ao vale de Josafá! É lá que Me assentarei para julgar todas as nações
dos arredores" (Jl 4,12).
Destas palavras conclui-se freqüentemente que o julgamento final se dará no dito vale, o qual é também
chamado vale do Cedron e separa do monte das Oliveiras a cidade de Jerusalém.
Alguns autores apelam para At1,10s:
"Tendo (os Apóstolos) os olhos fitos no céu enquanto se ia (o Senhor), eis que lhes apareceram dois
varões vestidos de branco, os quais lhes disseram: .., 'Esse Jesus que vos deixou arrebatado aos céus, voltará da
mesma forma como O vistes subir aos céus'",
Donde deduzem que, tendo Jesus subido aos céus a partir do monte das Oliveiras, voltará sobre o mesmo
no fim dos tempos. - Para tudo conciliar, S. Afonso de Ligório indica, sem precisar ulteriormente, a cidade de
Jerusalém como lugar do juízo universal.
Todavia, dado que o nome Josafá significa "Javé julga", parece ter sentido meramente simbólico, de
acordo com o habitual estilo dos profetas. O nome Josafá ("Javé julga") se pode aplicar a qualquer lugar onde o
Senhor queira julgar. Ademais argumento muito forte - antes do séc. lV d.C. não se encontra em toda a literatura
judaica ou cristã (excetuados os ditos versículos de Joel) a menção de um vale chamado de Josafá; não foi senão a
partir do séc. IV d.C. que se deu à garganta do Cedron o novo nome; sendo assim, pergunta-se: terá o profeta Joel,
séculos antes de Cristo, intencionado realmente o vale do Cedron? 99 Não se poderia mesmo entender que todo o
gênero humano, em corpo e alma, desde a primeira até à última geração da história, estivesse contido no estreito
vale de Josafá.

Lição 4: A Época do Juízo Universal

À guisa de curiosidade, notamos quanto segue:


Dentre as muitas conjeturas que se propuseram na tradição, poderia ser aqui citada a seguinte: o Senhor
virá à meia-noite, entre um sábado e um domingo do mês de março. À meia-noite, pois Jesus deu a entender, em
Mt 25,6, que o Esposo aparecerá a tal hora; no limiar de um domingo, pois foi este o dia da ressurreição de Cristo;
no mês de março, pois é esta a época da renovação de toda a natureza (primavera no hemisfério setentrional).
O único comentário que se possa fazer a tal opinião, é a advertência de que o Senhor, ao falar de volta à
meia-noite, apenas queria inculcar o caráter imprevisto de sua segunda vinda, como bem observava Sto. Agostinho.

PERGUNTAS
1) Queira comentar as palavras de S. João da Cruz referentes ao amor como matéria de julgamento.
2) Que acha você a respeito das palavras como matéria de julgamento?
3) Quando a omissão é pecaminosa?
4) Como se entende que nós julgaremos os anjos?
5) Em que lugar se dará o juízo universal?

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CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

98
É através de tal prisma que se devem entender as palavras de Cristo em Mt 12,41s: "Os homens de Ninive se levantarão no dia do juízo contra esta geração
e a condenarão, pois fizeram penitência após a pregação de Jonas, e há aqui mais do que Jonas. A rainha do Meio-Dia se levantará no dia do juízo contra esta
geração e a condenará, pois das extremidades da Terra ela foi ouvir a sabedoria de Salomão, e há aqui mais do que Salomão" A boa vontade, a lealdade dos
ninivitas e da Rainha de Sabá, pelo fato mesmo de serem reconhecidas publicamente no juízo final, tornar-se-ão titulo de acusação contra os judeus da época
de Cristo, cuja infidelidade e dureza serão, pelo confronto, vivamente evidenciadas.
99
É interessante notar que o vale do Cedron, por estar muito próximo de Jerusalém, era já no séc. VII a.C. utilizado como cemitério; cf. 2Rs 23,6. Depois que
se identificou tal vale com o futuro lugar do juízo final, muitos judeus e muçulmanos aspiram ardentemente a serem ai sepultados para aguardar o julgamento,
pelo que o número de túmulos é muito elevado no estreito vale.
MÓDULO 37: O MILENARISMO

Com a doutrina do juízo universal l19a-se um emaranhado de concepções escatológicas que merecem a
nossa atenção, dada a importância de que gozaram outrora, e ainda hoje gozam entre as novas correntes religiosas
cristãs, especialmente entre as Testemunhas de Jeová. A principal teoria que assim se impõe à nossa consideração,
é o Milenarismo ou Quiliasmo. - Examinemo-lo.

Lição 1: Milenarismo - que é?

Os teólogos católicos assim costumam reconstituir a série dos acontecimentos finais:


1) segunda vinda de Cristo (em glória e majestade);
2) ressurreição de todos os homens;
3) juízo universal ou final;
4) vida ou frustração definitiva.

Eis, porém, que um texto do Apocalipse de S. João deu ocasião a uma diferente concepção dos
acontecimentos finais. Escreve o Apóstolo:
20,1 "Vi descer do céu um anjo, que trazia na mão a chave do abismo e uma grande corrente. 2 Capturou
o dragão, a serpente antiga, que é o Diabo e Satanás, e acorrentou-o por mil anos, 3 e atirou-o no abismo; este o
fechou à chave e o selou, a fim de que não seduzisse mais as nações até que se tivessem passado os mil anos.
Depois disto, deverá ser solto por um pouco de tempo.
4 A seguir, vi tronos sobre os quais se assentaram aqueles a quem foi dado o poder de julgar: eram as
almas dos que foram decapitados por causa do testemunho de Jesus e por causa da Palavra de Deus, e os que não
adoraram o Animal nem a sua imagem, nem receberam o seu sinal sobre a fronte e a mão. Voltaram à vida e
reinaram com Cristo durante mil anos. 5. Os outros mortos não voltaram à vida antes que os mil anos se tivessem
passado. E esta a primeira ressurreição. 6 Feliz e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição! Sobre estes a
segunda morte não tem poder; serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com Ele durante os mil anos.
7 Quando os mil anos se tiverem passado, Satanás será solto da sua prisão. Sairá para seduzir as nações
que se acham nas quatro extremidades da terra, Gog e Magog, a fim de as reunir para o combate; seu número é
como o da areia do mar. 8 Subiram ao interior do país e investiram contra o acampamento dos santos e a cidade
bem-amada; 9 todavia, do céu caiu fogo, que as devorou. E o Diabo, que as seduzia, foi atirado ao lago de fogo e
enxofre, onde estavam a Besta e o falso profeta; l0 lá serão atormentados dia e noite pelos séculos dos séculos.
l1 A seguir vi um grande trono refulgente de luz e Aquele que aí se assentava, de sua presença fugiram o
céu e a Terra, e não se encontrou mais lugar para eles. 12 E vi os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do
trono. Foram abertos livros; ainda outro livro foi aberto, que é o Livro da vida; e os mortos foram julgados,
conforme o que estava escrito nesses livros, segundo as suas obras. 13 O mar restituiu os seus mortos; a Morte e o
Hades devolveram os seus, e foram julgados, cada qual conforme as suas obras. 14 A seguir, a Morte e o Hades
foram atirados no lago de fogo. - O lago de fogo é a Segunda morte. 15 Todos aqueles que não foram encontrados
inscritos no Livro da vida, foram lançados no lago de fogo.
21, 1 Vi então um céu novo e uma Terra nova, pois o primeiro céu e a primeira Terra haviam
desaparecido, e já não havia mar. 2 E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a Jerusalém nova,
revestida como uma esposa ornada para o seu esposo".
Na base destes dizeres construiu-se o sistema escatológico dito "Milenarismo". Com efeito, no início da
era cristã, o texto de S. João foi por vezes interpretado à luz de concepções judaicas. Ora, os profetas no Antigo
Testamento propuseram a vinda do Messias como início de uma era de grande prosperidade para Israel ; cf. Is 9,1-
6; 11,1-9. 54,2s; 60,1.22; Ez 40,1.48,35; Dn 7,1.28; 12,1-13. Os escritores judaicos subseqüentes, autores de livros
apócrifos, deram colorido muito vivo a tais vaticínios; descreveram o reinado do Messias como período de
abundância e felicidade material neste mundo; os homens viveriam um número de anos maior do que a cifra de
seus dias de outrora: "Não haverá mais ancião, ninguém que não seja saciado de dias; serão todos crianças e
jovens". Enquanto alguns judeus identificavam esse bem-estar terrestre com a bem-aventurança definitiva do
homem, outros assinalavam-lhe um termo após o qual se dariam o juízo final e a consumação de todas as coisas. A
duração do reino messiânico assim concebido era, não raro, calculada em função dos sete dias em que se julgava ter
sido criado o mundo: a história anterior ao Messias se estenderia por 6.000 anos; o sétimo milênio seria o período
do reino messiânico, em que os justos neste mundo gozariam de repouso e bem-estar, paralelos ao repouso de Deus
após a obra de criação. Terminados os sete milênios, dar-se-ia finalmente a entrada de cada criatura no seu estado
definitivo. Eis o sistema escatológico que, na base de Ap 20, construíram os milenaristas cristãos antigos:
1) segunda vinda de Cristo (em glória e majestade);
2) primeira ressurreição (para os justos apenas);
3) juízo universal;
4) reino messiânico de mil anos, ou milenário;
5) ressurreição segunda ou geral (para os demais homens);
6) juízo final;
7) prêmio ou sanção definitiva.
A primeira ressurreição será concedida unicamente aos justos. Ressuscitados, estes se assentarão com
Cristo como assessores no juízo que logo a seguir se efetuará. Este é dito universal porque serão julgados os povos
como coletividades, não os indivíduos de per si. Após tal solene julgamento, inaugurar-se-á uma fase de mil anos
ou mais; Satanás estando impedido de exercer sua ação nociva, os justos ressuscitados reinarão com Cristo na
cidade de Jerusalém, renovada e gloriosa, gozando de toda bonança; em torno deles, no restante do mundo, viverão
os homens ainda não ressuscitados, usufruindo de melhores condições de vida do que nos tempos anteriores à
Segunda vinda de Cristo. Terminando tal período, Satanás moverá a derradeira perseguição contra o reino de
Cristo, e será definitivamente prostrado. Dar-se-á então a ressurreição segunda, a dos homens que não tiverem
tomado parte na primeira, e proceder-se-á ao juízo final, juízo de cada indivíduo em particular, juízo em que Cristo
não terá assessores, mas examinará tanto os pecadores como os justos. Este julgamento final é também dito juízo
dos mortos, enquanto o anterior (o universal) é chamado, outrossim, o juízo dos vivos. 100 Eis os traços
característicos do Quiliasmo; 101 nem todos os pontos do sistema são devidamente esclarecidos pelos seus fautores:
não indicam, por exemplo, que tipo de relações terão entre si os homens ressuscitados e os não ressuscitados; como
poderá o exército diabólico fazer a guerra ao reino de Cristo glorioso, etc.
O sistema apresenta-se sob duas modalidades:
a) o Milenarismo grosseiro, que faz consistir a bem-aventurança do reino terrestre de Cristo nos prazeres
da carne: uso e abuso do matrimônio, da comida e da bebida... Esta forma foi propalada por gnósticos heréticos no
séc, II d.C. e mereceu a condenação unânime dos Padres e Doutores da Igreja. Depois de ter caído em
esquecimento a partir do séc, III, a teoria foi ressuscitada pelos inovadores religiosos do séc. XVI e por
denominações protestantes modernas, que lhe dão um colorido atual;
b) o Milenarismo espiritual, ou mitigado, que concebe a felicidade em termos mais dignos; afirma que os
justos, após a ressurreição primeira, já não se casarão nem serão sujeitos à fome ou à dor, segundo o que diz Jesus
em Lc 20,35.
Nos primeiros séculos, o Milenarismo espiritual era doutrina professada por vários Padres e escritores da
Igreja.102 Sto. Agostinho, depois de lhe ter aderido em seus primeiros escritos, propôs novo modo de entender Ap
20, excluindo o reino milenário. 103 A autoridade do Santo Doutor fez com que o sistema caísse em descrédito na sã
tradição cristã; defenderam-no, porém, na Idade Média, escritores "iluminados", fanáticos, e ainda o professavam
recentemente alguns estudiosos católicos. Estes reivindicam para a sua doutrina o nome de Milenismo, afim de
serem devidamente diferenciados do Milenarismo crasso, errôneo.

Lição 2: O Magistério da Igreja

O Magistério da Igreja, embora não tenha formalmente condenado o Milenismo, é-lhe francamente
desfavorável. Com efeito, recentemente ainda foi apresentada ao Santo Ofício a seguinte questão:
"Que pensar do sistema dito 'Milenarismo mitigado', o qual ensina que o Cristo Senhor, antes do juízo
final, há de vir à Terra para reinar visivelmente, quer se admita, quer não, a ressurreição prévia de muitos justos?"
Ao que a Santa Sé respondeu em 1944:
"O sistema dito 'Milenarismo mitigado' não pode ser ensinado sem perigo para a fé. - Systema
millennarismi mitigati tuto doceri non potest.104
Com efeito, não se vê como conciliar o Milenarismo com a doutrina geral da Sagrada Escritura e dos
símbolos de fé, que associam a segunda vinda de Cristo com o juízo final e a inauguração de estados definitivos,
sem que fique margem para um reino de Cristo intermediário entre o juízo universal e o final, entre o juízo dos
vivos e o dos mortos.105

100
É distinguindo assim que os milenaristas interpretam a fórmula das Escrituras (2Tm 4,1; At l 0,42; 1Pd 4,5) e do Símbolo de fé: Cristo há de vir julgar os
vivos e os monos.
101
Quiliasmo vem do grego chilioi = mil.
102
Assim S. Justino (1cerca de 165), Sto. lrineu li cerca de 202), Tertuliano (+ após 220), Latâncio (+ após 317), S. Metódio de Olimpo (+ 311).
Uma das expressões mais fortes da mentalidade milenarista mitigada tem-se, por exemplo, na seguinte descrição que, do reino terrestre de Cristo, dá Papias li
cerca de 130): "Virão dias em que as videiras crescerão, tendo cada qual dez mil ramos; de cada ramo sairão dez mil varas de cada vara, dez mil rebentos; de
cada rebento, dez mil cachos; em cada cacho, haverá dez mil bagos; é cada bago esprimido dará vinte e cinco medidas de vinho. E, quando algum dos santos
colher um cacho, outro clamará: Sou cacho de melhor qualidade; toma a mim; por mim bendize ao Senhor. Da mesma forma, o grão de trigo..." [Na obra de
Sto. Irineu, Adversus haereses 5,33).
103
Cf. De civitate De 20,7-9.
104
Acta Apostollcae Sedls 36 (1944) 212. Cf. G. Gilleman, Condamnatlon du millénarisme mftigé, em "Nouvelle Revue Théologique" (1945) 239.
105
Basta lembrar as palavras de Jesus: "O Filho do homem há de vir na glória de Seu Pai com os anjos, e retribuirá a cada um conforme as suas obras" (Mt
16,27). S. Pedro também é claro: "Os céus devem receber (o Messias, Jesus) até o momento da restauração de todas as coisas, de que Deus falou pela boca de
seus santos profetas" (At 3,21). A volta do Senhor e a consumação de todas as criaturas são imediatamente associadas entre si nestes dois textos.
Lição 3: Como entender Ap 20?

Após S. Agostinho (+ 430), a interpretação mais comum dada a Ap 20 é a seguinte:


Considere-se tal texto à luz de um paralelo encontrado em outra obra de S. João (autor do Apocalipse) e
que é Jo 5,25.28.29:
Em verdade, em verdade vos digo: vem a hora - e é agora - em que os mortos ouvirão a voz do Filho de
Deus, e os que a ouvirem, viverão... Não vos admireis por isto: vem a hora em que todos os que repousam nos
sepulcros, ouvirão a voz e sairão; os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem
cometido o mal, para uma ressurreição de julgamento". Como se vê, S. João fala ai de duas ressurreições, como
também em Ap 20.
A primeira ressurreição dá-se agora (v. 25), ao passo que a outra não ocorre agora (v. 28).
Como entender essas duas ressurreições?
A primeira é sacramental; é a passagem da morte espiritual para a vida espiritual cristã mediante o
Batismo; esta se dá agora, isto é, no decorrer da história da Igreja. A outra será a ressurreição corporal, que ocorrerá
no fim dos tempos, consumando a ressurreição sacramental.
Ora a primeira ressurreição, de que fala Ap 20,5 vem a ser a primeira ressurreição de Jo 5,25; é a
Batismal. A segunda ressurreição (implicitamente mencionada em Ap 20,13) identifica-se com a ressurreição
corporal a que se refere Jo 5,28. - Entre a ressurreição batismal, que ocorre em cada batizado, e a ressurreição
corporal, o Apóstolo coloca um reino de Cristo milenar sobre a terra, estando Satanás acorrentado. Esse milênio
significa o tempo da Igreja (que vai para 2000 anos!) na medida em que é um tempo penetrado pela vitória de
Cristo sobre o pecado (mil tem um simbolismo de bonança); Satanás é, conforme S. Agostinho, um cão
acorrentado, que pode ladrar, mas não pode morder senão a quem se lhe chega perto.
No fim dos mil anos de Ap 20,7, ou seja, no fim da história da Igreja, dar-se-á o assalto final de Satanás
contra os membros da Igreja, afim de arrebatá-los para o mal. Mas o Senhor Jesus virá na sua glória e os mortos
ressuscitarão (ressurreição segunda) para o juízo universal. A segunda morte, de que fala Ap 20,6, é a morte
espiritual ou a ruína definitiva no inferno.
Eis esquematicamente o paralelismo:
Jo 5,25: Jo 5.28:
ressurreição 1o < > ressurreição 2'

1000 anos de reinado de Cristo sobre a terra


(o penhor da vida eterna nos foi dado; Ef 1,14)
Ap 20,5: Ap 20,13:
ressurreição lo < ressurreição 2é

Tal paralelismo e a interpretação que deles fazem os teólogos, não surpreendem a quem conhece o estilo
simbolista de São João. - Verdade é que o recurso a simbolismo pode ser, muitas vezes, arbitrário e preconcebido.
No caso presente, porém, tem respaldo no linguajar mesmo do Apocalipse e do Evangelho segundo São João.
Por conseguinte, carecem de fundamento sólido as férvidas expectativas de próxima vinda de Cristo à
terra para instaurar um reino milenar de paz e bonança.

PERGUNTAS
1) Que ensina o milenarismo grosseiro?... E o milenarismo mitigado?
2) Esta doutrina encontrou aceitação entre os antigos cristãos?
3) Qual o papel de S. Agostinho na história dessa doutrina?
4) Qual a atitude da Igreja frente ao milenarismo?
5) Como se deve explicar o texto de Ap 20,1-15?

CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 38: CÉU NOVO E TERRA NOVA

Encontra-se na Sagrada Escritura e na Tradição cristã a concepção de que no fim dos tempos, juntamente
com a ressurreição da carne, haverá a renovação do mundo inteiro; este, atualmente afetado pela desordem do
pecado do homem, será restaurado em sua ordem e consumado.
Esta concepção é expressa na Bíblia em estilo apocalíptico ou hiperbólico, supondo noções cosmológicas
antigas. O mesmo ocorre nos escritos dos autores cristãos posteriores, que interpretavam a Escritura nem sempre
segundo os seus gêneros literários e valendo-se de premissas científicas da sua época. Por isto torna-se difícil dizer
o que significam as afirmações de tais documentos relativas à renovação do universo. Como quer que seja, à guisa
de complemento, a fim de informar o(a) cursista, vão, a seguir, expostas as concepções da Bíblia, da Tradição e da
teologia a tal respeito.

Lição 1: Os Documentos da Fé

A proposição de que o mundo material não será aniquilado, mas, ao contrário, renovado
concomitantemente com o homem no fim dos tempos, foi mais de uma vez enfatizada pela Tradição cristã.
Com efeito, o espiritualismo exagerado, imbuído de aversão à carne e à matéria, afirmo,u, mais de uma
vez na história, que uma conflagração final há não somente de destruir, mas de aniquilar todo o cenário sensível em
que o homem ora vive. Assim, por exemplo, pensavam os dualistas gnósticos (séc, II); mais tarde (séc. V/VI), os
origenistas; na Idade Média, o místico João Scoto Eriúgena (t 877); no séc. XV, Zanino de Sólcia; ainda no séc.
XVII, outro místico, protestante, Tiago Boehme (t 1624) muito se aproximava de tal concepção.
Os erros deram ocasião a declarações do Magistério da Igreja, que fornecem ao menos normas negativas
sobre o assunto.
Contra os origenistas, por exemplo, foi promulgado o seguinte cânon num sínodo regional de
Constantinopla (543):
"Se alguém disser que o juízo futuro implicará na destruição total do mundo corpóreo, sendo o fim de
todas as criaturas separar-se da matéria, de sorte que na vida futura nada fique de material, mas apenas subsistam
puros espíritos, seja anátema" (Cân.II).
PioII, aos 14 de novembro de 1459, condenou a seguinte proposição de Zanino de Sólcia:
"O mundo se consumirá e terminará por um processo natural; o calor do sol há de absorver a umidade da
terra e do ar de modo que os elementos do mundo se incendeiem" (D.-S. n o 1361 [717]).
A S. Escritura, no seu estilo próprio e matizado, parece aludir à renovação final do mundo. Veja-se o
texto de São Pedro:
"Aguardamos, segundo a promessa de Deus, céus novos e terra nova, em que a justiça habitará " (2Pd 3,
13).
O Apóstolo alude a duas passagens de (saías:
"Eis que faço novos céus e nova terra; e ninguém mais se recordará das coisas passadas; elas já não
voltarão á mente" (Is 65,17).
"Assim como os novos céus e a nova terra que hei de criar subsistirão diante de mim -" palavras do
Senhor --, assim subsistirão a vossa posteridade e o vosso nome" (Is 66,12).
A mesma expressão de (saías e de S. Pedro ocorre ainda no último livro da Sagrada Escritura, no
Apocalipse de S. João, que, predizendo os acontecimentos finais, refere:
"Vi um céu novo e uma terra nova, pois o primeiro céu e a primeira terra haviam desaparecido" (21,1; cf.
20,11 ).
De resto, a renovação de céus e terra, tão inculcada pelos hagiógrafos, parece apregoada pelo próprio
Jesus, quando fala da "regeneração" (Mt19,28) ou da "consumação do século" (Mt 28,20). S. Pedro a designa por
"restituição de todas as coisa" (subentenda-se: ao ideal preconcebido na mente divina) (At 3,21).

Lição 2: O significado da Renovação Final

Na base dos dados da Bíblia e da Tradição, os teólogos propõem o seguinte raciocínio:


Criando o mundo irracional, Deus houve por bem associá-lo ao homem em íntima comunhão de sorte.
Foi este destino que tornou as criaturas visíveis solidárias com o gênero humano na punição devida ao
pecado. Em conseqüência deste, não somente o homem sofre, mas a natureza inteira, que o Apóstolo, em Rm 8,19s,
com muita eloqüência personifica, geme por estar sujeita à vaidade, isto é, à desarmonia, às múltiplas desordens
que afetam o curso normal dos elementos e dos séculos.
Todavia, já que o homem ("microcosmos") foi remido em princípio e se encaminha para a consecução da
glória, também o mundo material inteiro ("Macrocosmos") é dito participar da restauração. S. Paulo, na mesma
passagem, apresenta a natureza à semelhança de um indivíduo que, no solar de casa, estende o pescoço e observa o
horizonte com olhar penetrante ("apokaradokía", v. 19) a ver se aproxima o amigo ou o mensageiro ansiosamente
esperado.
Aliás, desde que Cristo veio ao mundo, este já possui, sem dúvida, uma dignidade nova. O contato do
Filho de Deus com a carne humana e com os múltiplos objetos que a cercam, importou numa quase consagração ou
santificação do universo; o que se demonstrou de certo modo na hora da morte do Senhor, quando os elementos se
abalaram, em testemunho a Cristo (cf. Mt 27,sls). Esse caráter religioso, sacral, da natureza, o Senhor mesmo o
sugeriu nos seus ensinamentos: apresentava aos homens o cenário da vida cotidiana como espelho do Divino; por
suas parábolas Jesus incutia o valor translúcido, por assim dizer, já transfigurado, das criaturas: os pássaros, os
lírios, a pérola, a rede, o grão de mostarda, o de trigo, a videira e seus ramos, a luz, o sal, o pastor e as ovelhas, a
dona de casa e a moeda se tornaram, na mente de Jesus e do cristão, figuras ilustrativas do Reino de Deus.
Mais ainda: na carne do Senhor ressuscitado, assim como na transubstanciação do pão e do vinho
eucarísticos, a transfiguração final da matéria é inculcada por novos argumentos. É um penhor da renovação
escatológica que à fé do cristão é dado contemplar, quando os sinais de pão e vinho passam a encobrir o corpo de
Cristo glorioso sobre os altares. Depois da Ascensão do Senhor, prelúdios da renovação final se verificam
outrossim na vida de alguns santos, que conseguiram vencer a rebeldia ou o alheamento dos elementos,
submetendo ao seu império as feras, a doença, a morte mesma, conversando familiarmente com as aves, os peixes,
a terra, a lua, o fogo etc. (considerem-se, por exemplo, os Diálogos de S. Gregório Magno, os "Fioretti" de S.
Francisco de Assis).
Uma vez renovadas todas as criaturas, participando cada qual, segundo a sua capacidade, da glória do
Senhor, diz S. Paulo que Cristo entregará o reino deste mundo ao Pai:
"Então dar-se-á o fim, quando (Cristo) entregar o reino a Deus e Pai...; o último inimigo a ser destruído
será a morte,,. E, quando todas as coisa Lhe tiverem sido sujeitas, então o Filho mesmo prestará homenagem
Àquele que Lhe assujeitou todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todas as coisas" (1Cor 15,24.26.28).
Nesta passagem misteriosa, o Apóstolo tem em vista a santíssima natureza humana de Cristo. Esta,
constituída, no dia da ressurreição, vitoriosa sobre o pecado e a morte, obterá a consumação de tal vitória no fim
dos tempos, quando, restauradas todas as coisas, nem a morte nem alguma das demais penas devidas ao pecado
tiverem domínio sobre as criaturas. Então, diz o Apóstolo, Jesus Cristo, como Cabeça de todos os homens e do
Universo, apresentará o mundo inteiro reintegrado a Deus Pai, Àquele que é o Alfa e o Omega, a fim de que a
Majestade do Pai, mediante Cristo, seja glorificada por todas as criaturas, quer espirituais, quer materiais.

Lição 3: O Modo como se dará a Renovação

Os cientistas que admitem o fim do mundo, assinalam mais de uma via pela qual este se poderá verificar.
Mas nenhum estudioso tem condições de predizer, com segurança, a maneira como se dará o fim do nosso planeta.
Na Sagrada Escritura encontram-se alusões a catástrofes finais, que têm sentido apocalíptico e não podem
ser tomadas ao pé da letra; ver Mt 24,29.31; Mc 13,24-27; Lc 21,25-28. A título de ilustração detenhamo-nos sobre
o texto da 2Pd 3,3-13: "3 Sabei, antes do mais, que nos últimos tempos virão homens zombadores, cheios de
escárnio, que viverão segundo as suas volúpias 4 e dirão: Que é feito da promessa de sua vinda? Pois desde que
nossos pais morreram, tudo continua a subsistir como a partir da criação. 5 Querem ignorar que, a princípio, havia
céus e Terra, que a palavra de Deus fizera emergir da água, por meio da água, 6 e que pela água mesma o mundo
antigo pereceu submerso. 7 Quanto aos céus e à terra atuais, a mesma palavra de Deus os reserva e guarda para o
fogo, no dia do juízo e da ruína dos homens ímpios...
l0 O dia do Senhor virá como ladrão,- nesse dia, os céus desaparecerão com fragor os elementos em brasa
se dissolverão, e a terra será consumida com as obras que ela encerra.
Qual será a mensagem deste texto?
No sétimo decênio depois de Cristo, certos cristãos pusilânimes desesperavam da segunda vinda do
Senhor e da renovação do universo, apelando para o pretendido fato de que, desde a criação, jamais se verificara
mudança no curso do mundo visível. Em resposta, S. Pedro aponta para a catástrofe do dilúvio bíblico (Gn 6-9): o
mundo que, conforme Gn 1,6- l0, pela palavra de Deus emer9iu das águas, foi de novo submerso pelas águas,
voltando como que ao caos primitivo (Gn 12); 106 terminado o dilúvio, teve início um novo mundo, o mundo atual.
Donde se vê que, contrariamente ao que dizem os falsos doutores, as coisas não permaneceram no mesmo estado
desde a criação. Pois bem, continua o Apóstolo, justamente a destruição e renovação do mundo pelas águas é, para
nós, o prenúncio da destruição e da renovação da terra que se darão no fim dos tempos, feita apenas a ressalva de
que o instrumento de catástrofe será não a água, mas o fogo; à conflagração seguir-se-ão céus novos e terra nova,
em que os justos habitarão.
Dados estes precedentes, deve-se dizer que o Apóstolo adotou o modo de falar do fim do mundo pelo
fogo sem querer definir este ponto de índole cosmológica. O que lhe interessava, era apenas ensinar que haverá a
consumação do universo.

Lição 4: A Topografia do Além

106
As palavras de S. Pedro não implicam que a terra tenha saído das águas nem a universalidade do dilúvio. O Apóstolo repete apenas as expressões de Gn 1 e
6 sem querer interpretar o que elas significam sob o ponto de vista da origem real do mundo- alude á universalidade "bíblica" (atribuida pela Bíblia) não à
universalidade geográfica ou antropológicá, do dilúvio.
Referindo-se ao céu, ao purgatório, ao inferno, os cristãos outrora concebiam lugares dimensionais nos
quais se achavam situadas as almas dos defuntos. Foi assim que se constituiu como que uma topografia do além-
túmulo, a qual tem suas raízes já na antiga tradição judaica:
"Inferno", segundo a etimologia latina (infernus, inferi), seria um lugar posto sob a superficie da Terra;
seria o centro do nosso planeta, onde as chamas supliciam os réprobos:
"Limbo" ido latim limbus, orla) seria o lugar colocado à orla ou margem do inferno;
o "Purgatório" estaria também contíguo ao inferno de modo que o mesmo fogo atormentaria os réprobos
do inferno e os justos do purgatório.
o "Paraíso", conforme Gn 2, seria um parque ameno cuja situação é diversamente assinalada pela
tradição;
o "Céu" seria um lugar elevado acima da nossa Terra, posição indicada pelos nomes schamajim (em
hebraico), hêban (em germânico antigo), heaven (em inglês). Os judeus conheciam sete céus; S. Paulo falava do
terceiro céu (2Cor 12,3), distinguindo-o talvez do céu das nuvens e do céu dos astros. Os medievais referiam-se ao
céu empírico, ou de fogo, assim dito não por causa do calor, mas em virtude do seu esplendor, que é causa da
felicidade dos justos. A terra estaria cercada de esferas chamadas "céu".
O lugar de bem-aventurança dos justos é também chamado na Escritura "o seio de Abraão" (cf. Lc16,22).
Esta topografia da vida póstuma hoje perdeu seu significado. Com efeito: os nomes dos novíssimos
indicam estados de alma e corpo: familiaridade plena do homem com Deus, a qual acarreta bem-aventurança (céu);
ou alheamento, em graus diversos, de Deus (purgatório, inferno, limbo).
A tradição associou esses estados de alma (e corpo) a certos lugares, que ela distinguia em grande parte,
segundo as concepções cosmológicas dos antigos judeus e cristãos. Ora esta localização dos estados de alma finais
não se sustenta à luz das concepções cosmológicas atuais.
A tais considerações não se poderia dar melhor fecho do que uma admoestação a grande sobriedade na
elucubração de certas modalidades do Além. Se céu e inferno são estados de alma, tenha-se por certo que céu e
inferno se acham em toda parte onde haja uma alma justa ou uma alma de réprobo. Isto se verifica, sem dúvida, já
aqui nesta vida: os justos levam consigo, e para toda parte, o céu, ou seja, a felicidade e a alegria da união com
Deus, assim como os pecadores carregam continuamente o seu inferno, ou seja, o tremendo mal-estar que decorre
do ódio a Deus e aos homens!

PERGUNTAS
1) Que pensar das expressões céu novo e terra nova no fim dos tempos?
2) A Escritura fornece alguma indicação nítida sobre a consumação do universo?
3) Devemos crer numa conflagração final do universo?
4) E que dizer da clássica topografia do além?

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"


CURSO POR CORRESPONDÊNCIA: OS NOVÍSSIMOS (ESCATOLOGIA)

MÓDULO 39: HABITANTES EM OUTROS PLANETAS?

Os estudos sobre a consumação do universo são completados neste Módulo por um olhar para o grande
número de astros que nos cerca. A partir do século passado, e principalmente em nossos dias (por causa dos discos
voadores), pergunta-se com insistência crescente: "Haverá outros mundos habitados por seres inteligentes? Seria
esta teoria compatível com os dados da fé cristã?"
Os aspectos astronômicos e científicos da questão já foram abordados em nosso Curso sobre Ocultismo,
Módulos 51, 52 e 53. Nestas páginas interessar-nos-emos principalmente pelos aspectos religiosos e teológicos da
temática.

Lição 1: A discussão até o século XX

Há quem afirme que as indagações começaram antes de Cristo.


Já no século VI a.C. o filósofo grego Xenófanes teria afirmado que a Lua pode Ter habitantes. Muitos
anos mais tarde Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Parmênides e os pitagóricos terão assegurado haver em outros
planetas seres inteligentes. No século IV a.C. Platão e, depois, Epicuro terão defendido semelhante tese, mas
Aristóteles e os estóicos se lhe terão oposto.
Saltando séculos, podemos dizer que o primeiro pensador que, com mais exato conhecimento de causa,
tenha movido a questão da pluralidade dos mundos habitados, foi o Cardeal Nicolau de Cue (+ 1464). Respondia-
lhe imprecisa, mas arrojadamente, na obra "De docta ignorantia" (1440), afirmando não haver uma estrela da qual
estejamos autorizados a excluir a existência de seres humanos, por muito diferentes que sejam de nós (De docta
ignorantia, 1. II, op. 12).
Todavia, enquanto as diversas correntes do pensamento humano eram norteadas por uma visão
geocêntrica do mundo (sistema ptolemaico), os teólogos dificilmente podiam conceber que o homem, obra-prima
da criação, pudesse existir fora do centro do universo e fora do ambiente em que o Filho de Deus se encarnara.
Com Copérnico (t1543) e Galileu (t1642), porém, a mentalidade ocidental evoluiu, e evoluiu não somente
no setor da ciência, mas também quanto ao modo de considerar certas questões teológicas. 107 Desembaraçando-se
do geocentrismo, para admitir que a Terra é um planeta devedor do Sol, os teólogos viram abrir-se-lhes novos
horizontes: não tardou a lhes surgir de novo à mente, e em termos mais sérios, a questão da pluralidade dos mundos
habitados, suscitando logo debate de vivacidade extraordinária.
O próprio Galileu observara na Lua, e em outros corpos celestes, condições análogas às da terra. Pouco
faltaria para que dissesse serem também habitados. 108 Esta possível conseqüência apavorou os teólogos
contemporâneos de Galileu, que nela viam uma ameaça ao dogma cristão. "Como poderiam os homens de outros
planetas ser descendentes de Adão, ter saído da arca de Noé, ejc.?", eram questões que lhes pareciam surgir das
novas idéias (embora sem cabimento).109
Eis, por exemplo, como o Pe. Le Cazre expunha a Gassendi (+ 1655), sacerdote, físico e filósofo adepto
do sistema de Copémico, seus receios a propósito da nova teoria, que ensinava não ser a terra senão um planeta
"como os outros": neste caso, dizia, não se perceberia por que ela só teria o monopólio de ser habitada; outros
planetas, também as estrelas fixas, poderiam ter seus povos; e, assim sendo, como sustentar a doutrina de Gnl,14,
que ensina terem sido as estrelas criadas a fim de iluminar a terra e determinar as estações para proveito dos
homens?110
A hesitação é compreensível; mentalidade e teses multisseculares não podiam ceder repentinamente, de
mais a mais que os exegetas, por falta dos devidos instrumentos de estudo, ainda entendiam certas passagens da
Sagrada Escritura (principalmente dos livros do Gênesis e de Josué) em sentido inadequado.
Aos poucos os temores se foram dissipando. Os espíritos, ganhando mais familiaridade com o
heliocentrismo, consideravam mais objetivamente a hipótese de muitos mundos habitados.
Em 1868, Fontenelle defendia a tese no livro "Pluralité des mondes", que ficou famoso.
Na época subseqüente, não recearam julgar favoravelmente a questão perante o público dois grandes
conferencistas de Notre-Dame de Paris: os padres Félix S.J. (+ 1891) e Monsabré O.P. (+ 1907). O primeiro
afirmava que a existência de outros mundos habitados constituia um bom argumento de Apolojética, pois permitia
responder à objeção derivada do "pequeno número de eleitos" 111: com efeito, mesmo que muitos homens se percam
no inferno, o seu número é talvez infinitesimal em comparação com a multidão de criaturas racionais, que povoam
as estrelas e permanecerão fiéis a Deus. Monsabré não hesitava em dizer que a Encarnação realizada em nossa terra
não foi talvez senão o gesto do Bom Pastor que veio buscar uma ovelha perdida neste mundo, enquanto noventa e
nove outras lhe ficam fiéis, habitando os outros astros. 112

Lição 2: No século XX

107
Tão grande foi a novidade introduzida por Copérnico na mentalidade ocidental que, ainda no século passado, o Pe. Angelo Secchi S-J- (1 1878), famoso
astrónomo de Roma, julgava que aquele estudioso recolhera um eco da ciência que Deus comunicou a Adão quando o criou... Cf. Lezloni elementari di Física
terrestre. Torino e Roma 1879, 187.
108
. Scheiner fazia notar que as teorias de Galileu levariam ao "absurdo" de admitir habitantes em Júpiter, Vênus e na Lua. Cf. carta a Federico Cesi, de 25 de
janeiro de 1613, em "Le opere di Galileo Galilei" XI 467.
109
Eis, a propósito, o trecho de uma carta do Abade Giovanni Ciampoli a Galileu, escrita aos 28 de fevereiro de 1615: "Quando si porta novitá, ben che per
ingegno ammiranda, non ogn'uno ha il cuore senza passione, che voglia prender le cose como son dette: chi amplifica, chi tramuta; tal cosa di bocca dal primo
autore, che tanto sara transformata nel divolgarsi, che piú non la riconscerà per sua. E io so quello che dico: perché la sua opinione quanto a quei fenomeni
della luce e dell'ombre della parte pura e delle macchie, pone qualche similitudine tra il globo terrestre, e il lunare; un altro cresce, e dice che pone gl'uomini
habitatori della luna; e quell'altro comincia a disputare come possano essere discesi da Adamo, a usciti dall'arca di Noé con molte altre stravaganze ch'ella non
sogno mai." (Le opere di Galileo Galilei XII 146.)
110
. Assim escrevia Le Cazre: "Cogita igitur non quid tu forte ipse sentias, sed quid aestimaturi sint plerique ali, qui tua vel auctoritate, vel rationibus inducti
sibi persuaserint Telluris globum inter planetas moveri. Concludent primum unum e planetis sine dubio esse terram, quae cum incolas habeat, proclive, erit
deinde etiam credere, in ceteris quoque planetis, atque adeo in ipsis item inerrantibus stellis incolas non deesse, et tanto quidem praestantioris, quanto reliqua
sidera terram magnitudine ac perfectione excedunt. Hine Genesis in suspicionem vocabitur, dum ait terram ante reliqua sidera factam, illaque quarto tantum
post die condita, ut illuminarent terram, temporaque et annos metirentur. lnde tota Verbi Incarnati Oeconomia, atque evangelica veritas suspecta reddetur,
immo et tota fides christiana, quae et supponit et docet sidera omnia, non ad hominum aut aliarum criaturarum habitionem, sed solum ut terram sua luce
collustrent, foecundentque, esse a Deo Conditore producta. Vides igitur quam ista periculose in publicum divulgentur, et a virís praesertim Qui sua auctoritate
fidem facere videntur..." (Obras de Pedro Gassendi. Lião 1658, vol. VI 451.)
111
Félix assim falava aos adversários da fé: "Quanto ao dogma católico, não somente ele não vê dificuldade nessa grande hipótese, mas não temo dizer que
nela encontra um recurso para responder a vós e uma arma para defender-se dos ataques." (La Genése et les sciences modemes. Paris 1863).
112
Eis as palavras de Monsabré: "Por que os astros não seriam povoados de seres menos nobres do que os anjos, mais nobres, porém, do que nós? Entre a
vida intuitiva dos puros espíritos e a nossa vida, composta, racional, sensitiva e vegetativa, há lugar para outros tipos de vida. Tivemos, é verdade, a
Encarnação... Não será talvez porque o Divino Pastor, querendo levar todo o seu rebanho ao pasto da eterna felicidade, deixou nos espaços as noventa e nove
ovelhas para vir buscar aqui na terra a centésima, que se perdera?"
(Exposition du dogme catholique, conf. CII).
Nenhum teólogo dos tempos recentes se esforçou por fundamentar a hipótese como o Pe. Joseph Pohle
S.J. (t 1922). Propugnou-a fusamente em sua obra "Die Stemenwelt und ihre Bewohner". Colónia, 1884, a qual,
fazendo grande sucesso, suscitando também acalorados debates, conheceu a sua sétima edição em 1922. O autor
julgava que não só as ciências experimentais, mas também os princípios de uma sã filosofia e da Teologia
testemunham em favor da existência de seres inteligentes nos astros habitáveis. E quais os argumentos em que se
baseava?
lo e principal) Deus tudo criou para a Sua glória. Ora, glória nenhuma é dada a Deus sem a existência de
seres inteligentes capazes de conhecer as obras do Criador e tributar-Lhe o conseqüente louvor. O homem na terra,
porém, não basta a isto. Com efeito, existe avultado número de estrelas, planetas e astros, que escapam totalmente à
ciência humana.113 Quem então prestará, em nome dessas criaturas, homenagem ao Criador? Também os anjos não
estão habilitados a isto, pois as criaturas materiais não constituem senão o objeto secundário da inteligência
angélica; os puros espíritos versam no mundo espiritual, não no corpóreo. Donde conclui Pohle:
"Parece absolutamente conforme ao fim último do Universo que os corpos celestes habitáveis sejam
povoados de criaturas que referem à glória do Criador a beleza corporal dos seus respectivos mundos, exatamente
como o homem o faz na Terra".114
Este primeiro argumento era explorado também pelo Pe. Secchi, que, em 1877, escrevia:
'A nós parece absurdo considerar essas vastas regiões como desertos despovoados; devem ser habitadas
por seres inteligentes e racionais, capazes de conhecer homenagear e amar o seu Criador". 115
2o) Segundo S. Tomás (cf. S. Teol, 1 50,3c; Contra Gentes, 2,92), a ordem do Universo exige que os seres
mais nobres ultrapassem numérica ou quantitativamente os menos nobres, uma vez que estes foram feitos em vista
daqueles. É preciso, pois, admitamos o maior número possível das criaturas mais nobres. Em conseqüência,
considerar-se-á ao menos como provável a existência de seres racionais nas esferas celestes habitáveis, visto serem
mais dignos e perfeitos do que as criaturas meramente corpóreas. 116
3o) A Sabedoria e a Onipotência de Deus se manifestam de modo estupendo no número e na varíedade de
seres existentes no nosso mundo. Estes, porém, estão longe de esgotar os atributos do Criador; muitos outros tipos
de criaturas se poderiam ainda conceber como reflexos da Perfeição Divina. Sendo assim, parece muito harmonioso
que a Sabedoria de Deus se tenha manifestado em formas ainda mais variadas nas esferas celestes capazes de
organização e vida.
4o) A depravação mesma da espécie humana que conhecemos, convida-nos a admitir que existe um
mundo de homens melhores. Se o homem desta terra fosse a unico síntese de matéria e espírito, deveríamos
confessar que o gênero humano cumpre muito mal a sua tarefa de servir e glorificar a Deus. Quantas infidelidades
não se cometem! Que doloroso espetáculo não é o da história dos homens! Ora, nenhum pai, podendo escolher
entre bons e maus filhos, se cercaria apenas de maus filhos.
Tais são os argumentos de Pohle. Representam realmente tudo que em Teologia se possa dizer em favor
da pluralidade dos mundos habitados.
Que valor se lhes há de atribuir?

Lição 3: Que dizer?

A lo de novembro de 1952, o Pe. D. Grasso S-J- publicava um artigo na revista "Civiltà Cattolica", 117 em
que, após analisar esses raciocínios, concluía que não se lhes pode negar um certo peso ("attendibilità"); todavia,
não deve ser exagerado o seu alcance: o primeiro argumento, tomado a rigor, levaria a admitir a existência de seres
racionais também nas profundezas dos oceanos inacessíveis à exploração humana... Grasso julga que a
argumentação de Pohle se ressente de um antropomorfismo vago e inconsciente.

113
De acordo com os resultados da ciéncia moderna, dir-se-ia: existem 400 milhões de galáxias, ou nebulosas espirais, constituída cada qual de centenas de
milhões de sois, dos quais não poucos têm em torno de si planetas a gravitar.
114
. Ob. cit. 4'ed. 1904, 457.
115
Le Soleil. Paris 1877, vol. II 480.
O qualitativo de parecer absurdo voltava ainda recentemente sob a pena de Bavink, Risultati e problemi delle scienze naturali. Firenze 1947, 272: "Se todo este
universo deve ter um sentido, parece-me de todo absurdo procurar esse sentido unicamente na nossa histariazinha terrestre".
116
Os dados tradicionais da ciência levam a afirmar que os seres vivos constituem no universo uma parcela numericamente insignificante, quando
comparados aos seres inanimados. A vida é extremamente rara no conjunto do cosmo; e a região que ela ocupa constitui uma infima porção do conjunto. Com
efeito, a massa dos homens poderia estar contida aproximadamente 60 trilhões de vezes na massa da terra; esta, por seu turno, caberia mais de 300.000 vezes
na massa do Sol! E entre os diversos planetas intercedem distâncias de depenas, centenas ou milhares de anos de luz (dados colhidos em P. Laberenne,
L'origine des mondes. Paris , 149). Sob vários aspectos, porém, a Terra aparece como algo de único no universo. Por exemplo, os corpos solidos de que ela se
compõe, são raros no cosmo: 99% da matéria do universo constam dos dois elementos mais leves - o hidrogênia e o hélio; todos os outros corpos reunidos não
perfazem senão 1% da
massa total do Universo. - Mais ainda: a temperatura do Universo varia de 35.000.000 o F. (no interior das estrelas) ao 0 o absoluto (-459,69o F.) nas
extremidades do espaço; donde se conclui que a matéria do Universo deve constar quase totalmente de gases luminosos num equilbrio instável e altamente
ionizado; nessa massa gasosa giram aqui e ali alguns poucos átomos de poeira fria e de rochas. Somente numa zona temperada muito estreita, como é a órbita da terra, é que a massa gasosa pode assumir a forma líquida, tal como se acha na água, nos animais, nos planetas. Tão singular como é, a terra está longe de ser
o centro do Universo; é apenas um pequeno satélite de uma estrela de segunda grandeza colocada na periferia da Via-Láctea. Por sua vez, esta nossa Via-Láctea se acha na periferia de um conjunto de outras constelações do espaço.
117
La Teologia e la pluralitá dei mondi abitati, em "La Civiltà Cattolica", 1/XI/1952.
A pluralidade dos mundos habitados, por conseguinte, fica sendo uma hipótese, à qual cada um pode dar
o valor que lhe julgue convir. Os debates entre os teólogos serviram ao menos a evidenciar que, por parte da fé
católica, nada há que se oponha à recente conjetura: nem a Escritura nem a Tradição abordam o problema; quanto
ao Magistério da Igreja, a Sagrada Congregação do Índice, em meados do século passado, encarregou o Pe.
Moigno, famoso teólogo e astrónomo do seu tempo, de inculcar que os dogmas da Encarnação e da Redenção "não
constituem obstáculo à hipótese de outros mundos habitados"; desde então, a Igreja não se pronunciou mais
oficialmente sobre o assunto e deixa liberdade de pesquisa aos estudiosos. A última palavra no debate cabe, pois,
aos cientistas (caso a possam dar), mais do que aos teólogos.
A título de curiosidade, notamos: um autor americano, Francis Connell, no periódico "Catholic Standard",
de 8 de agosto de 1952, procurava desenvolver um pouco mais a hipótese, conjeturando as possíveis formas de
relações dos homens "extra-telurianos" com o Criador. Connell supõe que não seriam descendentes de Adão e que,
por conseguinte, Deus concebeu um plano de salvação para essas criaturas diverso do que traçou para nós. Eis o
que então se pode imaginar:
1.) os homens "extra-telurianos" terão sido, como Adão e Eva, prendados originariamente de dons
naturais, pretematurais e sobrenaturais. Sujeitos a uma provação inicial (análoga à dos anjos e à da nossa espécie)
tê-la-iam superada fielmente à Deus, conservando, em conseqüência, as prerrogativas originais (coisa que os
terrestres perderam). Sendo assim, vivem num bem-estar, espiritual e material, a nós desconhecido; não
experimentam nem o sofrimento nem a morte, nem os nossos problemas políticos e sociais; além disto, devem
achar-se em nível científico muito superior ao nosso. Quanto à religião, tais homens teriam em comum conosco
dogmas muito sublimes: Unidade e Trindade de Deus, existência dos anjos, a graça etc., mas de modo nenhum
viveriam da Redenção e dos sacramentos, que nos salvam;
2) os homens "extra-telurianos", submetidos à provação, pecaram... Neste caso, pode-se pensar ou que
Deus os tenha deixado para sempre entregues à sua triste sorte ou que os haja resgatado por outra via que a nós ou
que os queira remir pelos méritos de Cristo; nesta última hipótese, dar-lhes-ia a conhecer a Redenção realizada na
terra e deles exigiria a fé como meio indispensável para a salvação. Dado o pecado inicial, a vida dos homens
"extra-telurianos" se desenvolveria em meio às mesmas dificuldédes morais e espirituais que experimentamos. Os
seus conhecimentos científicos poderiam ser superiores ou inferiores aos nossos, conforme as condições somáticas
e climatérias favorecessem ou entravassem o desenvolvimento natural da inteligência. - É interessante notar que
Connell não pondera a conjetura de uma Encarnação de Deus em outro planeta, embora a união de Deus e homem
numa só pessoa, por muito maravilhosa que seja, possa ser repetida pela Onipotência divina; 118
3) pode-se admitir também que Deus nunca tenha elevado os homens "extra-telurianos" à ordem
sobrenatural. O seu último fim, portanto, consistiria em conhecer e amar a Deus proporcionalmente ao exercício de
suas faculdades espirituais; depois da morte gozariam de felicidade natural.
Inútil é prosseguirmos tal encastelamento de hipóteses, que servem para estimular a fantasia mais do que
para alimentar a fé.

PERGUNTAS
1) Qual a concepção básica que dificultava aos antigos aceitar a existência de seres inteligentes em outros
planetas?
2) Quais as dificuldades que foram levantadas contra Galileu por parte de certos autores?
3) Como se tem argumentado em favor da existência de outros planetas habitados?
4) Que pensar do assunto discutido?

CHEGARÁS À FONTE, VERÁS A LUZ

"Nós, cristãos, em comparação com os infiéis, já somos luz, como diz o Apóstolo: 'Outrora éreis trevas;
mas agora sois luz no Senhor; procedei como filhos da luz. E noutro lugar: A noite vai adiantada, aproxima-se o
dia. Abandonemos as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz. Andemos dignamente, como em pleno
dia'.
No entanto, porque, em comparação com aquela luz que esperamos alcançar, ainda é noite o dia em que
nos encontramos, escuta o apóstolo Pedro. Ele nos diz que da divina Majestade se fez ouvir uma voz dirigida a
Cristo: 'Tu és o meu Filho muito amado, em quem pus as minhas complacências'. E diz ainda: 'Nós ouvimos esta
voz vinda do céu, quando estávamos com Ele no monte santo'. Mas, como nós não estivemos lá e não ouvimos essa
voz vinda do céu, o mesmo apóstolo Pedro acrescenta: 'E temos bem confirmada a palavra dos profetas, à qual
fazeis bem em prestar atenção, como a uma lâmpada que brilha num lugar escuro, até que desponte o dia, e a
estrela da manhã nasça em vossos corações'.

118
Os teólogos, seguindo S. Tomás, não vêem impossibilidade metafísica na conjetura de uma nova Encarnação. Pelo fato da Encarnaçáo do Filho, em nada foi diminuído o poder do Pai e do Filho. Por conseguinte parece que, depois da Encarnação, o Filho possa assumir outra natureza humana..." (S. Tomás, S.
Teol. III 3,7, sed contra; cf. III Sent. dist. 1,2,5.)
Portanto, quando vier Nosso Senhor Jesus Cristo e, como diz o apóstolo Paulo, 'iluminar o que está oculto
nas trevas e manifestar os desígnios dos corações, para que cada um receba de Deus o louvor que merece', então já
não serão necessárias as lâmpadas nesse dia; não ouviremos ler o Profeta, não se abrirá o livro do Apóstolo, não
buscaremos o testemunho de João, não teremos necessidade do próprio Evangelho. Por-se-ã de lado todas as
Escrituras, que para nós se tinham acendido como lâmpadas na noite deste mundo, afim de que não andássemos às
escuras.
Suprimidas todas estas coisas, porque já não precisaremos da sua luz, e prescindindo dos próprios homens
de Deus por quem nos foram comunicadas, porque também eles verão juntamente conosco aquela luz verdadeira e
esplendorosa, que veremos nós então? Com que se alimentará o nosso espírito? Com que se alegrará a nossa vista?
Onde se encontrará aqu ela fe li cidade 'que nem os olhos viram nem os ouvidos escutaram nem jamais passou pelo
pensamento do homem?'Que veremos nós?
Peço-vos encarecidamente: Amemos juntos; corramos juntos o caminho da fé; desejemos a pátria celeste,
suspiremos pela pátria celeste; sintamo-nos peregrinos neste mundo. Que veremos então? Fale agora o Evangelho:
'No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus'. Então chegarás àquela fonte, da
qual recebeste apenas umas gotas de orvalho; então verás diretamente aquela luz cujos raios, por caminhos
oblíquos e sinuosos, foram enviados às trevas do teu coração; então serás purificado, para ver essa luz e suportar o
seu fulgor. 'Caríssimos - diz S. João – agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Mas sabemos que, na altura em que se manifestar seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é.'
Eu sinto que os vossos afetos se elevam comigo para as coisas do alto. Mas ‘o corpo corruptível torna
pesada a alma, e a morada terrestre oprime o espírito com muitos pensamentos.’
Chegou a hora de eu fechar este livro e de vós voltardes cada um para sua casa. Passamos uns bons
momentos gozando desta luz comum, deste júbilo comum, desta alegria comum; e agora, ao separarmo-nos uns dos
outroi, tenhamos cuidado em não nos separarmos d'Ele." (S. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de São João
35,8-9).

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