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José Hilário

VEREDAS DO INFERNO
A saga do retirante nordestino sob novo ponto de vista

PREFÁCIO

A pós ter sido vereador pelo município paranaense de Maringá em duas legislaturas, deputado
estadual pelo Estado do Paraná por mais duas, governador do distrito L-21 do Lions Club
Internacional por uma gestão, tabelião titular e oficial do Registro Civil de Pessoas
Naturais do Distrito Judiciário de Floriano, Município e Comarca de Maringá, escritor e presidente
eleito da Academia de Letras de Maringá (ALM), no decorrer de minha vida tenho recebido
homenagens às mais diversas, quer na área pública quer na comunitária e, mais recentemente,
também na literária. No entanto, o convite que recebi do escritor José Hilário para prefaciar este
livro excede a todas as homenagens anteriormente recebidas no campo literário e, quiçá, em todas
as minhas demais atividades.
O confrade José Hilário, homem de muitas letras, reconhecido aqui e alhures, tem produzido
obras de alcance social indiscutível, abordando temas polêmicos com coragem e sabedoria. Do
elementar cunho dessa natureza destacam-se A Igreja Cabeluda e Maria do Ingá. No que se refere à
epopéia nordestina, o autor foi muito feliz ao escrever o livro Lampião não Morreu, que além de ser
um verdadeiro catecismo democrático descreve de maneira brilhante o Nordeste Brasileiro do início
do século vinte, sempre marcado pela violência incontrita dos cangaceiros que, na opinião do autor,
antes de serem bandidos (como quis a crônica da época), foram apenas sertanejos injustiçados,
representando o lado oposto da medalha em relação a alguns ocupantes do Congresso Nacional,
lugar que, como cita, é onde o espírito de brasilidade é violentado por políticos que se encontram
acobertados pela imunda capa da imunidade parlamentar.
Com a precisão de sempre, neste trabalho José Hilário volta a descrever a dureza do sertão
nordestino, o labor de sua gente e a honra pessoal sempre lavada com sangue; fatos que presenciou
ao trabalhar como representante comercial naquela região.
É admirável perpassar os olhos com vagar sobre a descrição detalhada do que é a caatinga, sua
aridez, sua vegetação rara e resistente às intempéries. Também é interessante acompanhar o
personagem principal, Zé Clemente, em seu viajar constante, sua fibra, seus fracassos e sucessos,
seu incomparável destemor, fazendo com que o privilegiado leitor viva intensamente este romance,
cuja trama o autor engendra com maestria, envolvendo as mais íntimas das emoções humanas.
Esmiuçar o romance de Zé Clemente com a sua sempre namorada, amante e mulher Valdelice,
mesmo quando ambos cometem suas loucas fantasias sexuais, é perceber que o autor demonstra
mais uma vez a sua coragem ao descrever as cenas fortes do cotidiano. O lado sociológico da obra,
está centrado nos capítulos A Luta do Retirante e O Fim do Sonho. Mas é no capítulo Maracutinga
que o leitor conhecerá o verdadeiro mar de lama em que está mergulhada a atual política brasileira.
Na elaboração dos diálogos, o autor demonstra sua capacidade de criação de forma
extraordinária. Todos os personagens apresentam-se corretamente inseridos no tempo e no espaço,
fazendo com que a sua crônica, se torne atemporal. Entretanto, cada região, cada fato, e cada
personagem são exaltados com a firmeza e a maestria da sua pena. Por tudo isso é que considero o
convite feito pelo autor para a apresentação deste livro como uma das mais significativas
homenagens que já recebi em toda a minha vida.
Tabelião Antônio Facci

APRSENTAÇÃO

E sta é uma história fictícia e atemporal, engendrada a partir das informações obtidas nos
livros Lampião, Cangaço e Nordeste, de Aglae Lima de Oliveira; Terras do Sem Fim, de
Jorge Amado; Cangaceiros, de José Lins do Rego; e Os sertões, de Euclides da Cunha. Os
textos sobre a grandiosidade aterradora da caatinga espinhenta tiveram como pano de fundo as
descrições harmoniosas que dela fizeram outros autores não menos famosos: Vergne da Rocha
Abreu (Os Dramas Dolorosos do Sertão), Leonardo Mota (Sertão Alegre) e Luiz Cristóvão (Brasil
do Chapéu de Couro). No que se refere à corrupção política, fomos buscar apoio no livro Brejal dos
Guajás, de José Sarney – obra-prima da literatura maranhense. Este Veredas do Inferno, portanto, é
uma singela homenagem a todos esses escritores, especialmente ao professor Rafael Campos
Bezerra, que muito me ajudou na sua feitura. Por outro lado, a amplitude histórica nele engendrada
teve como cenário inicial a região central do Estado do Pernambuco, num dia qualquer do início do
século vinte.
Na verdade, a seca já se prolongava por uns dois ou três anos. A terra pedregosa estava ardente,
esturricada; em outras palavras: mantinha-se gretada, estéril, quebrada. Rachaduras formavam
espécies de tabuleiros de xadrez nos terrenos onde outrora existiam plantações. Calor abrasador. A
canícula devastando o que ainda restava de vegetação, continuava fustigando os habitantes daquela
região, matando animais domésticos, alvoroçando serpentes, urubus e carcarás. Durante as
incontáveis procissões fúnebres, os pais iam plantando cruzes de madeira retorcida sobre as
sepulturas daqueles filhos que haviam morrido de inanição, em choro plangente. Com seus ais de
angústia as mães tentavam debelar a febre dos que aqinda estavam moribundos. Comadres
preparavam mortalhas, coveiros abriam mais buracos na caatinga espinhenta, e, com seus falsos
choros lamentosos, carpideiras denunciavam as despedidas.
Órfão de pai desde menino, José Clemente da Silva tinha agora 18 anos de idade. Morava com
sua mãe, uma irmã ainda menor de idade e João Francisco das Chagas, o Velho Chico, o seu único
tio materno. A casa era um simples barraco de taipa coberta com palha de ourcurí. Para receber
visitas, bancos de pelar porco e tamboretes encardidos faziam às vezes de mesas e cadeiras. A
família só tinha o que comer quando o “inverno” era generoso ou quando os políticos regionais não
roubavam as cestas básicas que o governo federal mandava para matar a fome dos flagelados.
Cozinhar aquelas ‘esmolas’ era tarefa que Dona Santa realizava em simples panelas de barro sobre
uma trempe ordinária.
Naquela casa não havia sanitários. Os smoradores nem os conheciam. Faziam suas necessidades
fisiológicas atrás das moitas de oiticica e limpavam-se com as folhas largas daqueles arbustos. As
fezes expostas ao tempo eram rapidamente devoradas pelos animais domésticos que perambulavam
pelo terreiro. Suínos esfomeados por vezes não esperavam que as pessoas terminassem de defecar e,
com seus focinhos enormes, empurravam seus traseiros com ferocidade. Água era coisa rara, um
dos bens mais preciosos. Havia passado o dia 19 de março, dia de São José, e nada de chuva. Não
chovendo até aquela data, não choveria por mais um ano, e quem sabe por mais uns dois ou três.
Doía o coração só de ver aquela gente ser reduzida à tamanha miserabilidade.
O velho Chico tinha acabado de chegar de Mirandiba, onde fora buscar uma daquelas paliativas
cestas básicas. Gastara dois dias naquela empreitada e agora descansava numa rede à sombra de um
umbuzeiro que florescia no quintal. Aproximando-se, o sobrinho o tirou da apatia:

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- Durante os teus viajados, tio, Sevirina de coronel Malaquias foi mijá no escuro e se acocorô
num toco de ponta fina. Foi coisa feia de se vê...
- Oxênte, menino, que conversa doida é essa? – Que sasucedeu?
- Sucedeu que ela ficô inutilizada, cum o toco entrando um tanto assim lá nas vergonhas dela.
- Foi?
- Foi.
- Adiscunjuro.
O sobrinho continuou relatando o fato:
- O cheiro do sangue ainda alvoraçô os porco, e quase que ela não saía com vida dos matos.
Chico, homem rude por natureza, que se alterava por qualquer motivo, ainda que fosse por uma
ou outra palavra mal interpretada, sempre reagia cheio de ira e ignorância. Por isso, perguntou ao
sobrinho:
- E o coronel não fez nada com o fio duma égua do dono dos porco?
- Fazê, até que fez. Mandô matá o véio Zorinho. Mas matô o cabra errado, que os porcos que
atacô a menina foi aqueles dois cachaços que o sinhô comprou do Mané das Tabocas, lembra?
- Oxênte, peste, tá lascado.
A poeira quente rolava em redemoinhos no terreiro. A cabeça do velho estava pensativa. Josefa,
a sua sobrinha, tinha ido buscar água na cacimba e estava demorando a voltar. Mandou Zé
Clemente ir atrás. Dona Santa, a mãe dos meninos, estava de sentinela na casa do finado Zorinho,
bebendo o defunto. Deitado sob a sombra do umbuzeiro, Chico só saiu da sua letargia quando ela
retornou do velório:
- Chico...
O homem, que já passava dos setenta anos, acendeu e deu uma baforada num cigarro de palha,
coçou os olhos fundos e perguntou:
- Diga mana. Que foi?
- Cadê Zefa mais Zé Clemente?
Chico também estava preocupado com a demora da sobrinha. Zé Clemente tinha ido atrás. Já era
noite e os dois ainda não haviam retornado. Um gato preto miou no telhado. Era mau sinal. Quando
Dona Santa era tomada por tais premonições geralmente acontecia algo de ruim.
Já quase chegando à cacimba, Zé Clemente ouviu gemidos e vozes. Aproximou-se por entre a
galhada de uma moita de oiticicas e logo reconheceu as vozes. Uma era de sua irmã, com certeza. A
outra, voz de homem, foi reconhecida como de Saturnino, um dos filhos do tal coronel Malaquias.
O cabra era um safado que estudava na capital e ia de vez em quando à fazenda do pai. Quando
regressava aos estudos deixava uma ou duas moças embuchadas. Era um pilantra, um safado.
Prometia casamento e casa na cidade a todas, mas não cumpria o prometido com nenhuma. Se o pai
ou irmão de alguma delas resolvesse ter um acerto de contas com ele, tinha primeiro que se acertar
com os jagunços do coronel.
A surpresa de Zé Clemente foi grande, assustadora. O inesperado estava para acontecer. Sacou a
peixeira da cintura. Quando Zefa o avistou, seu mundo também desabou. A lua clareava tão pouco
que o irmão mais lhe pareceu um fantasma. Uma coruja piou distante. Os pirilampos cintilavam nos
arvoredos. Saturnino girava sobre a terra, em rotações vertiginosas, ao receber as primeiras
estocadas. Zefa, com o corpo nu, sentiu sua vida desmoronar. Quis gritar. Não gritou. Juntou a
roupa e saiu correndo.
Flagrado por Zé Clemente em pleno ato sexual com Josefa, Saturnino desconcentrou-se.
Acovardou-se. O susto foi grande. Teve medo. Assim, apalermado e sem saber o que dizer, tentou
contornar a situação:
- Eu caso com ela, Zé. Juro que caso.

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- E tu já viu defunto casar, seu xibungo? Toma!
Uma, duas, três facadas. A que atingiu o coração foi fatal. Saturnino ficou estrebuchando junto à
cacimba barrenta. Ato consumado, Zé Clemente pensou: “O que tinha que acontecer, aconteceu”.
Restava-lhe enfrentar as conseqüências que adviriam. O inesperado brutalizou-o.
Em casa, Santa e Chico estavam preocupados com a demora de Josefa. Passava das oito horas
quando a viram chegar esbaforida:
- Mãe, Zé Clemente matou Saturnino...
Viúvo como a sua irmã, João Francisco das Chagas mostrava muita vitalidade, apesar de uma
palpitação coronária que não deixava de incomodá-lo. Filhos soltos pelo mundo tinha muitos, mas o
único que ainda lhe escrevia, que lhe mandava notícias era Raimundo, um cabra forte e sabido que
havia assentado praça na polícia sergipana e agora era um sargento cheio de divisas em Aracaju.
Santa olhou ao seu redor não acreditando no que Zefa dizia. O coronel iria vingar a morte do filho.
E ainda tinha o caso dos porcos que atacaram sua filha. Sua vingança seria terrível. Chico e Zé
Clemente que tratassem de se cuidar.
De repente Zé Clemente entrou na sala, alucinado. A despeito do momento, para Chico a
sensação era de alívio e leveza. O maldito coronelzinho fora pros infernos. Não transformaria mais
moça-donzela em rapariga. O problema, agora, era o revés do coronel Malaquias.
- Tu teve muita sorte, Zé. Muita sorte. O maldito não largava do seu 38.
- Não foi por querer – tentou se justificar o sobrinho. Só dei por mim quando o xibungo já tava
morto.
Dona Santa, abraçada à filha, chorava copiosamente. Ambas choravam e nada falavam. Não
tinham muito que falar. Mas Santa tinha algo para fazer. “Vou arrumar a tua mochila, filho. É
melhor tu fugir. Vá para o sul. É isso que sempre quis, não é?”
- Vou pro sul não, mainha. Vô me botá é pro Aracaju mode encontrá o primo Raimundo. Com
sorte arrumo um serviço nas farda tombém.
- Eu vou mais tu – disse o velho Chico. Não morro sem ver as águas do São Francisco, meu filho
Raimundo e as ondas do grande mar. Luiz Gonzaga conhece tudo isso. Ele até fala numa das suas
músicas que quem forma todo esse mundão d’água é o rio Pajeú. Tu acredita nisso?
- Acredito não, meu tio. Por isso nós vamos pelos matos, que o Pajeú e as estradas devem de ta
tudo vigiados. Quando encontrá o corpo do peste, o pai vai endoidá, botá a cachorrada em minha
prissiga.
- Entonces faça o caminho, disse o velho.
Dona Santa, entregando-lhes as mochilas com as roupas, nacos de carne seca e algumas
rapaduras, ainda filosofou: “Faz-se o caminho, caminhando!”.
Observando os alimentos, Chico observou:
- Oxênte, mana, isso é rapadura das Areias. Acuma foi que tu comprou mercadoria tão da fina?
- Comprei não, mano véio. Foi Saturnino que deu à Zefa.
Correu um brilho nos olhos de Zé Clemente:
- Ele comeu Zefa em troca dessas rapaduras, mas eu o jantei na faca...
O velho Chico deu uma gargalhada sem dentes e falou:
- Então a gente armoça as rapaduras dele pulos caminhos.

A CAATINGA

O sol vinha nascendo no sertão. Seus primeiros raios, como brasas do inferno, despejaram na
terra esturricada uma luz escaldante e febril, fazendo até as cobras peçonhentas procurarem
alguma sombra naquela caatinga que se expandia em todas as direções com sua natureza

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seca e agressiva. Mal o grande astro clareou a imensidão árida, Chico e seu sobrinho despontaram
onde o sertão era ainda mais inóspito e bravio. Os tabuleiros de mata com sua vegetação pitoresca
formavam grupos de arbustos espinhentos e venenosos crescendo num branco areal - dividido por
intermináveis leitos de riachos secos. Naqueles ermos não havia gota d'água, a não ser no fundo de
alguma velha cacimba abandonada. Os retirantes, esgueirando-se entre as moitas de espinhos,
pararam no início da serra e, por uns minutos, ficaram observando seu topo quase inatingível.
Após algumas horas de caminhada, atravessaram os primeiros serrotes e pararam para descansar
num vale onde havia um pequeno riacho com águas quase perenes. Haviam atravessado a serra pelo
lado menos íngreme, o velho firmando o cajado nos pedregulhos do caminho.
Depois de encherem as cabaças, olharam em frente, nada mais vendo senão outras serras que
teriam que subir e, mais adiante, uma infinidade de outras, entrelaçadas ao imenso cipoal do sertão
acinzentado e brutal. Essa visão, quem sabe, tivesse desesperado o velho. Suas pernas amoleceram e
ele caiu tropeçando nuns galhos secos, estendendo o olhar pela caatinga escaldante, com a
indiferença de um moribundo. O moço deu-lhe mais um pouco de água. A boca dele se abriu, mas
não conseguiu engolir. Então, o jovem compreendeu o que estava acontecendo. Tinha ouvido falar
que muitos retirantes morriam assim. Esfomeados e sedentos, eles haviam conseguido chegar à
beira de uma cacimba ou riacho de água fresca, porém sem forças para continuarem a viagem ali
entregavam suas almas a Deus.
A bola sanguinolenta do sol nordestino estava começando a se esconder. O calor sufocante,
porém, ainda sustentava uns trinta e tantos graus. Após dar sepultura ao velho, o retirante abriu sua
mochila e dela retirou um naco de rapadura e uma rede de caroá. De qualquer forma precisava
comer e descansar. Olhou à sua volta, automaticamente. Nenhuma pessoa à vista, tudo ali era
solidão e calor. Armou a rede entre duas oiticicas que cresciam à beira d'água e deitou-se de barriga
para cima, olhando o firmamento infinito. Mastigou um pedaço de rapadura, tomou mais um gole
d'água, contemplou os passarinhos que gorjeavam nas copas dos ouricurís e esperou o sono chegar.
Conhecia muito bem a caatinga, havia nascido nela. Há oito dias tinha deixado Mirandiba em
companhia de seu velho tio e viajado mais de dez léguas para o sul, bem no coração do sertão.
Agora sem o velho para atrapalhar, andaria mais rápido e logo chegaria em Petrolina, Juazeiro da
Bahia e Aracaju. Tinha um parente, primo-irmão por parte de mãe, que era sargento da polícia
sergipana. Se ele lhe arrumasse um serviço "nas fardas", tudo bem. Caso contrário seguiria de trem
para São Paulo, “mode enricá” - que é o que todo sertanejo sabido fazia.
Com esses pensamentos na cabeça, começou a pegar no sono. O que lhe perturbava a
tranqüilidade era saber que ainda tinha muito chão pela frente. Teria que bater muita alpercata na
poeira quente antes de chegar em Aracaju. Conhecia muito bem a caatinga. Por isso a temia.
Qualquer sertanejo, mesmo sendo filho dela a teme. Mas ele não permitiria que o medo o
dominasse, que o levasse ao pânico, que lhe esgotasse os nervos. Por inúmeras vezes tinha ouvido
falar que erros de rota não podem acontecer na caatinga. Um pequeno descuido, um pequeno erro
de direção faz com que não se encontre água por léguas e léguas a fio. Muitos retirantes
despreparados viam suas cabaças d'água vazias, morrendo de sede pelos caminhos da desesperança.
Na manhã seguinte o retirante reuniu suas coisas às do finado e, num fardo só, juntou tudo.
Amarrou a mochila às costas, pendurando à frente do pescoço as cabaças cheias de água.
Caminhava a passos lentos e largos. A cabeça cheia de esperanças e temores concentrava-se nas
pedras e nas cobras que sibilavam pelo caminho. Andando conseguia esquecer a dor do corpo. Mas
colocava um pé após outro no lugar certo, evitando os espinhos venenosos e as presas afiadas das
serpentes peçonhentas.
O dia estava um forno, com sol a pino. As cabaças d'água começavam a pesar menos à medida
que ele lhes consumia o conteúdo. Nem queria pensar em quanta água restava. Pelos seus cálculos

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tinha bebido uns quatro litros naquele dia, e sabia que não tinha o suficiente para o dia seguinte.
Algumas nuvens aglomeravam-se no horizonte à medida que a tarde terminava. Atrás delas, o
sol mergulhava mais e mais e se transformava num imenso balão sanguinolento. Pouco depois
surgiu uma lua pálida num céu demasiadamente azulado. Pensou em parar, não ia conseguir viajar a
noite toda. Mas reunindo forças continuou caminhando. A calma, porém, começava a abandoná-lo.
Havia colocado toda a sua experiência contra a caatinga implacável, mas começava a parecer-lhe
que ela venceria. Começou a pensar no velho que morrera pelo caminho e em como ele se tinha
deitado à beira do riacho com a tranqüilidade da exaustão, à espera da morte. Essa visão fez com
que se sentisse desesperado, e agora não mais conseguia reprimir o medo. A lua mergulhou no
horizonte, mas a caatinga ainda resplandecia da luz das estrelas longínquas que piscavam
insistentemente, disputando espaço com os vaga-lumes que não se cansavam de cantar nos ocos de
pau. Inebriado por esse fulgor, deitou-se na areia, fez a rede de travesseiro e dormiu.
Se durante a noite o calor dava lugar a um friozinho até incômodo, durante o dia o sol despejava
na terra esturricada uma luz escaldante e febril, iluminando os grotões, as profundezas das cavernas
e as veredas do inferno. Eram milhares de piauís, pernambucos, cearás e paraíbas entrelaçados num
imenso e demoníaco cipoal. Eram cobras, lagartos e calangos. Eram tabuleiros de matas com sua
vegetação mal arrumada e espinhenta. Era o caos feito por touceiras de gravatás, mandacarus,
xiquexiques, avelós, rasga-buchos, macambiras e jaramatáias. Era o sertão inóspito, árido, bravio e
inculto. Eram as suçuaranas escondidas esperando a oportunidade do bote fatal. Era a caatinga
abandonada por Deus e odiada pelo diabo. Como Zé Clemente, milhares de retirantes todos os anos
abandonam suas casas, plantações e familiares. São os mártires que a seca expulsa. Fogem da
caatinga que tem a presença do sol o ano inteiro; do inverno que nunca chega, e que, quando chega,
alaga tudo, matando bichos e gente, destruindo plantações, riachos, fontes e cacimbas.
O retirante fixa os olhos no horizonte. Parece-lhe haver gente morando nas imediações, pois
aqui, acolá, salta um bode, um jegue, as cobras rastejando traiçoeiras. Olhando a cena, lembrou-se
de Mirandiba. Na casa de sua mãe já devia ter acabado a rapadura, a farinha, o mel, a coalhada e a
carne-de-sol. A seca estava matando as reses, os bodes e os jumentos, dando vida ao carcará. Só
tinha comida nos latifúndios tirânicos dos coronéis e nas casas dos políticos escravizadores. Na
caatinga imensa, Zé Clemente fugia. Fugia dos interesses mesquinhos das autoridades que
mantinham o poder nas mãos. Fugia do analfabetismo, das doenças, das crendices, do misticismo e
da religiosidade estupidamente idiotizada que campeia no sertão. Fugia da perseguição dos
jagunços do coronel Malaquias. Fugia da seca, da fome e da morte. Mal sabia Zé Clemente que a
retirada só termina quando acaba o sertão regional e começa a miséria nacional.
Mas, se Zé Clemente ainda não sabia nada da miséria nacional, conhecia com certeza a fome das
agitações sertanejas. Natural de Mirandiba, localidade pertencente ao termo do Pajeú, Pernambuco,
fora criado entre os últimos rebentos das formações graníticas da costa que se alteiam, em formas
caprichosas, na Serra Talhada, dominando, majestosas, toda a região em torno e convergindo em
largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. Ainda menino
conheceu a famosa Pedra Bonita, que, como um púlpito gigantesco, ergue-se na Serra Talhada,
solitária.
Seus pais, tios e avós contavam que em 1837 aquela pedra foi teatro de cenas que recordavam as
sinistras solenidades religiosas dos achantis. Um mameluco que se dizia iluminado, para ali
congregou toda a população dos sítios vizinhos e, engripando-se à pedra, anunciava, convicto, o
próximo advento do reino encantado do rei Dom Sebastião (jovem rei português desaparecido na
batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, ocasião em que o maior nome da língua portuguesa, Luiz
Vaz de Camões, teve um dos seus olhos vazados por uma lança). O Reino Encantado ficava numa
pedra bem talhada no antigo município de Vila Bela, hoje Serra Talhada.

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O astucioso sertanejo João Antônio dos Santos conseguiu através desse embuste ouro, gado e
dinheiro. Certo dia anunciou que havia falado com Dom Sebastião em sonho, e que este havia lhe
mostrado onde estava enterrado um tesouro. Ao lado da Pedra Bonita existiam outras pedras
sobrepostas, com aspecto de altar, onde João realizava seus cultos. As solenidade eram assistidas
por centenas de fanáticos. Mas estes foram informados que o tesouro só seria aberto a quem tivesse
fé. E essa fé crescia no coração dos pobres sertanejos. João realizava casamentos, crismas e
batizados. Certo dia teve a satânica idéia de revelar um de seus sonhos aos fiéis: Dom Sebastião lhe
aparecera, comunicando que dali em diante o tesouro somente seria aberto com derramamento de
sangue. O povo ignorante se submetia a tudo. Mal João acabara de anunciar o sonho, se apresentou
um velho que teve a sua cabeça imediatamente decepada. Na seqüência, o sangue de homens,
mulheres e crianças lavou aquelas pedras bizarras.
Visando acabar com aquela loucura, a tropa do capitão Manuel Pereira invadiu o reduto e travou
com os fanáticos violento combate. Apesar da fuga de muitos, a polícia ainda conseguiu cortar as
cabeças de 54 fanáticos que, entusiasmados, davam vivas a Dom Sebastião antes de morrer.
Zé Clemente tinha ouvido da boca de seu avô que, quebrada a pedra, não a pancadas de marreta,
mas pela ação miraculosa do sangue das crianças derramado sobre ela, o grande rei irromperia
envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexoravelmente a humanidade ingrata, mas
cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.
Apesar de essa loucura ter ocorrido há muito tempo, como uma lenda viva deixou pelo sertão um
frêmito nervoso: o transviado encontrara meio propício ao contágio de sua mente insana. A
bestialidade chegou a tal ponto que, em torno do altar monstruoso, mães se engalfinhavam,
erguendo os filhos pequeninos, lutando pela primazia do sacrifício. Uma a uma as crianças iam
sendo degoladas. O sangue, esparramado sobre a rocha jorrava como enxurrada diabólica, indo
acumular-se nas bacias naturais da pedra.
Zé Clemente também se lembrava que quando era menino foi com seu pai à Serra Talhada - a
maior cidade do Vale do Pajeú. Recordava-se dos pedintes com estranhos aleijões expostos à
caridade pública, às dúzias na feira, o motivo maior do folclore nordestino. Cegos com cuias nas
mãos pediam esmolas e cantavam. Tocavam-se pífaros, zabumbas e sanfonas. Poetas e repentistas
tiravam rimas, toadas e fantasias da literatura de cordel. Era a imagem viva do Brasil
subdesenvolvido, cruel e esquecido, onde as matutas vestidas com recato, flores silvestres nos
cabelos, alpercatas à mão, toalhas rendadas nos ombros e cachimbos de barro à boca, conversavam
com comadres enquanto vendiam seus incipientes produtos aos retirantes que ali chegavam
famintos.
O retirante é o tipo de nordestino resultante do fenômeno das secas. Cíclico e periódico
acompanha as prolongadas estiagens e se envereda para o sul a procura de uma vida melhor.
Quando a seca passa ele volta, quando ela vem ele vai e assim por diante. Reza, faz promessas,
enterra imagens de santos de cabeça para baixo para fazer chover. Mulheres idosas, sem dentes,
lenços nas cabeças, saias compridas e unhas sujas, rezam terços intermináveis. As crianças choram.
Todos choram e, arrumando suas tralhas, juntam-se aos romeiros e seguem em levas, esquálidos,
sedentos e esfomeados estrada à fora. Uns, como Zé Clemente, seguem solitários e vão a pé, outros
se o dinheiro der, seguem de pau-de-arara. Aos que ficam o retirante chama: “Vâmu s'imbora... é
mió qui morrê di fome aqui...” O que fica, responde: “Não, nóis vâmu insperá pula chuva. Vai
chuvê de hoje pra minhã... tá relampiano, levantano a poeira do chão...” Zé Clemente pensou:
“Muitos vão e muitos voltam. Mas eu não volto não, que não sou homem de arrependimento. Volto
não!”.
Por isso, ali está ele. Em torno dele a caatinga, seu lar agreste. Esquadrinha-lhe todas as veredas
possíveis. Para enganar a fome e saciar a sede, talha em pedaços os mandacarus ou as ramas

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verdoengas dos juazeiros; derruba os estrepites dos ouricurís e os amassa nas pedras fazendo um
manjar sinistro, o bró, que lhe incha o ventre, empanzinando o faminto andarilho; arranca as raízes
túmidas dos umbuzeiros, que lhe desdentam a boca; consome o sumo adstringente dos cladódios do
xiquexique, que enfraquece a voz de quem o bebe, e demasia-se na procura da sobrevivência,
apelando infatigável para todos os recursos.
Forte e destemido, continua a caminhada confiando na sua energia de sertanejo forte, mas
castigado pelo destino. Fogem-lhe porém as forças. A natureza não o combate apenas com a dureza
inóspita da caatinga. Povoa a sua mente de fantasmas e imaginações sobrenaturais, conduzindo suas
pernas para o sul, exatamente como fazem as seriemas que imigram para outros tabuleiros. Da
mesma forma como fazem as jandaias, que fogem para o litoral distante.
Milhares de morcegos agravam a chegada da noite. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto
mais numerosas quanto mais ardente a estiagem entre a macela requestada. A suçuarana traiçoeira
vem beirar o umbuzeiro onde o retirante se deita para descansar. É mais um inimigo à combater.
Afugenta-a, precipitando-se com um tição aceso na caatinga deserta. E se ela não recuar, terá que
assaltá-la. Mas não com o tição, e sim com a sua faca, pois sabe que a onça vindo em cima da
fumaça é invencível. O combate corpo-a-corpo é mais comovente. O sertanejo embrutecido, tendo
na mão direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-lhe o
coração de um só golpe.
Renasce-lhe a energia depois de se fartar de carne felina. E, na manhã seguinte, ante o lampejo
do primeiro raio solar, levanta-se e volta a caminhar. Não se considera vencido, pois ainda tem para
o sustentar nacos de carne da onça que assou em lampejante fogueira; os talos tenros do ouricurí, os
mangarás das bromélias selvagens. Alimenta-se com essas iguarias exóticas. Segue a caminhada, ali
na frente lhe parte o coração à vista de uma fazenda abandonada. Fica por uns instantes
contemplando as ruínas das antigas habitações. Bois, cavalos e jumentos caídos sobre a relva seca,
sob os arbustos calcinados. Carcaças que os próprios urubus rejeitam, porque não conseguem
romper à bicadas as suas peles endurecidas. Cabras esqueléticas rondam o chão esturricado em
volta do que foi a sua cacimba predileta.
Mas o que mais o aflige são os animais que ainda não estão de todo exaustos e o procuram, o
circundam confiantes, berrando em largo apelo que mais parece um choro de criança. E nem uma
galhada verde sobrevive em torno: foram ruminadas as últimas folhas pardacentas dos juazeiros. O
retirante avista, porém, um pouco mais distante, os intrincados impenetráveis de macambiras.
Queima-os, levando o binga até suas folhas ressequidas para despi-las, em combustão rápida, dos
espinhos. E quando a fumaça se diluí no ar, ele viu correndo de todos os lados, em tropel
estropiado, os magros animais famintos, em busca do último repasto.
Batendo alpercatas caatinga em frente, a situação não muda. Não existem nuvens no céu. Não há
probabilidade de chuva. A casca dos marizeiros não transmuda, prenunciando-as. A seca persiste
intensa, rolante, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante da
vegetação espinhenta. E o sol queima, reverberando no firmamento claro os incêndios
inextinguíveis da canícula. É o momento infernal dos maiores calores. Mas o retirante forte e
assoberbado não se dobra. Sabe, que como ele, verdadeiros batalhões de flagelados miserandos
atravessam a caatinga deixando uma nuvem de poeira nas curvas do caminho. Sabe que são
milhares. Sabe que muitos morrem pelos caminhos. Sabe que é o sertão que se esvazia. E, como
seus conterrâneos, lá vai caminho a fora, debruando de ossadas humanas as veredas. Segue o êxodo
penosíssimo para o sul, para as montanhas distantes, para qualquer lugar onde, pelo menos, tenha o
sagrado direito à vida. Sabe que se atingir o objetivo almejado vai se salvar, mas não voltará. Sabe
que muitos retirantes acabando o flagelo voltam. Ele não voltará, pois nunca sentirá saudades
daquele sertão repleto de veredas infernais.

8
Quer chegar ao litoral, Aracaju. E lá, revigorado, vai esquecer os infortúnios, as desditas.
Contudo, ainda olha para o céu e pede a proteção do Padre Cícero. Ele, como a maioria dos
sertanejos, pratica uma religiosidade exageradamente estúpida e cheia de misticismos
extravagantes. É o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se
facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas. Ele ainda acredita nas lendas do caipora
travesso e maldoso atravessando a caatinga montado num caititu arisco. Ele ainda tem receio das
noites claras e misteriosas, quando os sacis diabólicos, de barretes vermelhos nas cabeças, assaltam
o viajante na caatinga. Ele crê, firmemente, que nas noites escuras das sextas-feiras, de parceria
com os lobisomens e mulas-sem-cabeça, todas as tentações do diabo chegam em comissão à terra.
Por isso pede proteção a São Geraldo. Por isso reza orações dirigidas a São Cipriano, ao qual os
sertanejos que fazem benzeduras acendem velas pelos campos para que ele favoreça a descoberta de
objetos perdidos. O finado pai de Zé Clemente também sabia fazer benzeduras para curar animais,
para amansar cavalos, burros e punir as mulheres traideiras.
E, na caminhada, vai rememorando todas as aparições fantásticas e as profecias que lhe contava
seu pai e outras pessoas mais velhas. Ele mesmo já chegou a participar de romarias impiedosas,
missões, penitências e outras manifestações complexas de religiosidade indefinida e inexplicável,
devotadas ao mesmo martírio, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio das multidões
crendeiras.
Caminhando trôpego pela caatinga ardente, vai visualizando a sua Mirandiba distante. Em
pensamento vê sua mãe, ao cair da tarde, ante o oratório tosco, à meia luz das candeias de azeite de
mamona, orando pelas almas dos mortos queridos. “O culto dos mortos é impressionante” - pensa o
retirante. – “Nos lugares remotos, longe dos povoados, os enterramos à beira das estradas para que
não fiquem de todo em abandono”. Então começa a fazer a oração dos mortos, depositando de
quando em quando uma flor ou ramo fugaz nas sepulturas que encontra pelos caminhos, estacando
ante o humilde monumento.
E, sobre a cabeça descoberta, o sertanejo passa a mão vagarosamente, rezando pela salvação da
alma de uma pessoa que ele nunca viu. Para Zé Clemente, a terra é o exílio insuportável, mas o
morto é sempre bem-aventurado. Ele aprendeu, desde criança, que o sepultamento deve ser
transformado em festa. Devem ser tocadas os pífaros, entoar melodias fúnebres, beber cachaça;
enquanto, deitado de barriga para cima dentro do caixão, entre duas velas de carnaúba, coroado de
flores, o defunto espelha, no último sorriso paralisado, a felicidade suprema de ir para o
desconhecido mundo do além. A sagrada utopia, que naquele momento era a preocupação maior do
retirante.
A manhã estava seca, a caatinga em febre, sedenta. Água não havia num raio de muitas léguas.
Faminto, fraco e desidratado, o retirante espia um calango que corre arreliado para uma touceira de
espinhos. O sol a pino reinava majestoso e solitário num céu de um azul profundo, emanando
miasmas junto ao cadáver apodrecido de um jumento. O chão estava gretado e dele, naquele
mormaço, por entre os arbustos ralos que se elevavam por milhares de quilômetros quadrados de
terra seca e inóspita, num emaranhado de espinhos, sobrevoavam alguns urubus. No galho seco da
baraúna, um carcará aguardando a vítima. Na touceira de gravatá, um lagarto manhoso. Na fenda da
pedra, como um assassino à espera, numa tocaia, uma serpente venenosa que mostra a língua
rachada ao meio, escancarou a boca e apanhou um preá que passava desprecavido. Tudo era
irascível na caatinga, exceto o umbuzeiro que lançava uma suave sombra ao sol causticante da tarde
sertaneja Era o coração do deserto. Eram as chamas do inferno e, dentro dele, os columbís, as
quixabas, os caroás, as coroas-de-frade... Tudo era veneno, tudo era castigo, tudo era desgraça no
núcleo seco da caatinga pernambucana. Eram os coronéis e seus capangas. Eram os cangaceiros e
suas degolas. Eram os jagunços e suas tocaias. Eram os romeiros e suas rezas. Eram os pagadores

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de promessas e suas cruzes. Eram os sertanejos rudes e suas vinganças. Eram os retirantes e suas
sinas. Era o paraíso dos latifundiários e dos políticos desavergonhados. Era o carrasco das crianças
famintas.
Com a mão espalmada sobre os olhos, à guisa de quebra-sol, Zé Clemente avista, para além de
umas rochas brancas, um grupo de retirantes que descansam à sombra dadivosa de um umbuzeiro
amigo e acolhedor. Rasgando a galhada no peito e espantando as peçonhentas que silvam com o
bulir dos arbustos secos, ele passa por entre as moitas de palmatórias, favelas e gravatás, onde, vez
ou outra despontam flores de rara beleza, como a desafiar a natureza cruel e agressiva. Chapéu de
couro na cabeça, mochila nas costas, cabaças quase vazias penduradas no pescoço, os dedos dos pés
inchados querendo saltar das alpercatas de couro cru, aproxima-se do grupo que carrega fitas
coloridas, cruzes de madeira e miçangas.
Como ele, são vítimas da seca e da exploração latifundiária; como ele, juntaram seus trapos,
suas últimas forças e descem para o sul; diferentes dele seguem para a Bahia em busca de alento na
cidade santa de Senhor do Bonfim, ou serviço braçal nas plantações de feijão de Morro do Chapéu
ou Irecê. Se o destino não ajudar, seguirão até Barreiras, onde dizem, os gaúchos estão
desenvolvendo uma cultura nova chamada soja, uma planta leguminosa originária do Japão.
Apesar de também se encontrar muito sujo, imundo, Zé Clemente sentiu um cheiro nauseabundo
vindo do meio daquele grupo. “É a falta de banho” - pensou. E estava certo o sertanejo. Em certas
regiões do Nordeste, por onde se passa sente-se logo o cheiro de bodes, exatamente porque as
pessoas passam vários dias sem tomar um banho, o banho natural das chuvas, pelo menos. A
escova de dente simplesmente não existe e, para tirar o limo dos dentes, Zé Clemente viu uma das
mulheres daquele bando usar retalhos de fazenda enrolados nos dedos e folhas de juá. Mal
aproximou-se do umbuzeiro, foi surpreendido por um homem, com uma repetição nas mãos:
- Quem vem lá?
- É de paz... - a voz de Zé Clemente é forte. Voz de jovem com pouco mais de dezoito anos de
idade.
- Vosmicê da donde vem?
- Tô vindo de Mirandiba, cuma quatro sumana daqui. E vosmiceis, são flagelados?
- É. Tamo vindo da Paraíba e vâmo se botando pra Bahia mode tomá as bença do Sinhô do
Bonfim... Adispois, nóis se toca pra Barreiras, na divisa com Goiás - respondeu o homem, baixando
a arma. - Diz que lá tem muito serviço nas plantação de soja. Tu já comeu soja?
- Comi não! Não sei nem que peste é essa...
- É feijão de japonês, diz que dá inté carne...
- Oxente, home, tu já viu boi nascê em pé de feijão? Virxe, vire essa boca pra lá, home de Deus,
que é pecado falá heresias. - observou Zé Clemente, achando engraçadíssima a história da tal soja.
Depois, com uma gostosa risada, perguntou:
- Será que só tem carne de boi ou tombém tem soja de bode? Se tivé, vô querê um tiquinho de
soja-de-sol, mode comê cum rapadura, manteiga de garrafa, mais farinha e uma talagada de
cachaça.
Todos riram da brincadeira do forasteiro, chamando a atenção de um velho de barbas brancas e
cabelos ralos que segurava um cajado. O ancião, aproximou-se do jovem e perguntou quase
murmurando:
- Tu tem mantimento mode continuá nus viajado?
- O que tenho ainda dá pra uma sumana, se o dicomê for somente para uma boca. Mode quê
vosmicê pergunta?
O velho respondeu, como numa explicação, passando a mão direita pelos fiapos de cabelos da
cabeça:

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- Nada não! É que a nossa manutenção tá s'acabano... Num podêmo cum mais uma boca... É
muito tempo que a gente tá nus viajado, e o dicomê tá no fim. Só resta um tiquinho de farinha e um
naquinho de rapadura, que é prôs minino. Nóis grande já vai pra coisa de dois dias que só come
arguns bago de imbu, calango assado ou argum socó que a gente apanha pulos caminho.
- Fica arreliado não, meu tio. Ainda tenho a rapadura das Areias que mainha deu, e carne de uma
onça que matei pulos caminho. E, por outra, nóis vâmu em rumo diferente. No Juazeiro da Bahia,
que já tá bem pertinho, tomo o rumo do Sergipe e me aprumo pro Aracaju mode encontrá meu
primo que é um sargento das puliça de lá. Cum sorte, tô nas esperança de arrumá um serviço nas
farda tombém.
- Nesse mundo tem doido pra tudo - como que censurou o velho.
- É da vida, painho, é da vida. - interrompeu o homem da repetição. Cuma o tempo passa e a
gente não vê, vosmicê, se a sorte ajudá, pode inté virá otoridade no sertão, sê comandante de
volante cuma o tenente Bezerra e se cruzá mais os cangaceiros nas prissigas.
- Vôte! Quero não! Vira essa boca pra lá, home de Deus, que num quero morrê ainda, não sinhô!
Sô muito novo... cangaceiro é bicho do cão. Painho conheceu Ontonho Sirvino, Cacheado,
Virgulino e Curisco, mais Dadá e Maria Bonita. Eu, de minha parte, inté entrava no cangaço se
Lampião tivesse vivo...
- E tu acha que o caolho haveria de querê um capenga cuma tu nos bando? Magro desse jeito, tu
só serve mesmo é pra macaco.
Todos riram da brincadeira. Zé Clemente desculpou-se:
- Macaco tombem é gente!
- Tu já viu, Zefa, gente pendurada nos galho de pau, pelo rabo? - galhofou o homem da
repetição, inquirindo sua esposa. - Diga, Zefa, tu já viu?
- Eu, hein. Ocêis tá tudo bestando, dementando. Primeiro inventáro um pé de feijão que dá inté
carne-de-sol. Agora colocaram um rabo no coitado do conterrâneo mode virá macaco... Eu, heim?
As gargalhadas que se seguiram, aproximaram mais os laços fraternais daquela gente sofrida,
esfomeada, mas alegre. No cair da tarde reiniciaram a viagem, com Zé Clemente junto. Viajaram
por uns três dias. No alvorecer do quarto chegaram nas margens do São Francisco. Deram, todos,
gritos de alegria e contentamento. A imensidão das águas, para quem só conhecia uns poucos
riachos, açudes, minas d'água e cacimbas barrentas, era um fim de mundo. Um nunca acabar. Um
eldorado em suas imaginações. Então, a voz do homem da repetição comandou austero e feliz:
- Ninguém se iluda com Petrolina, minha gente. V'ambora atravessá a ponte, acabá de chegá no
Juazeiro a Bahia e se botá pro Bonfim...
No final da ponte despediram-se. O velho do cajado aproximou-se de Zé Clemente, tocou-lhe o
ombro e nada disse. Apenas lágrimas desceram silenciosas pelo seu rosto. O homem da repetição
andou até lá e perguntou ao pernambucano:
- Tu num qué vim cum a gente?
- Vô não, meu tio. Minha sina tá traçada pro Sergipe.
Após uma longa pausa, o velho perguntou:
- Vai descer o rio de embarcação?
- Vô não, que num tenho o dinheiro da passagem. Se meu padim Ciço ajudá, varo essa caatinga
baiana e chego no Sergipe em coisa de sumana.
Dona Zefa entrou na conversa:
- Bem que a gente podia juntá os trocados e comprá a passagem pra tu.
- Carece não, minha gente. Vosmicê precisa mais desses trocados do que eu que ainda sô novo e
não mereço vivê de caridade.
- Entonces que assim seja feita a vontade de Deus, meu filho - disse o velho do cajado,

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completando: - Chegando ao Bonfim, rezo umas rezas pra tu.
- Obrigado, meu tio, a gente se encontra um dia...
Depois, eles se olharam pela última vez, em silêncio, pensativos e muitos sérios. Olharam
também os raios vermelhos do sol iluminando as águas do São Francisco e não tiveram mais o que
dizer. Apenas entreolharam-se, misturando os olhos marejados de lágrimas.

JUAZEIRO

A pós as despedidas, Zé Clemente entrou no Juazeiro cheio de espanto e admiração. Gente


como o diabo nas ruas. Hordas de retirantes vestidos com trapos e cobertos pelo pó das
veredas são franciscanas. Andando sempre em grupo, muitas pessoas vivendo da caridade
alheia. Os mais fortes atacavam os mais fracos para roubar um pedaço já meio comido de uma fruta
já anteriormente roubada, enquanto os recém-chegados eram tirados a pontapés, chutados para bem
longe das melhores latas de lixo.
Zé Clemente observou um menino de uns dez anos de idade. Devia ser retirante, provavelmente
pernambucano pelas características dos seus traços fisionômicos. Ele tinha uma infeção ocular
crônica e o pus escorria por suas bochechas quando ele esfregava os olhos vermelhos. Falou que
não conseguia se lembrar de quando saiu do Pernambuco, depois que seu pai foi assassinado pelos
jagunços de um coronel na cidade de Exu. A mãe veio com ele, mas morreu de fome pelo caminho.
Outro menino contou que veio do Ceará, de uma região onde os cangaceiros eram o virtual poder
dominante. Ele fugiu de casa quando os bandidos atacaram a cidade e se uniu a onda humana que
fugia em desespero.
Uma menina de uns treze anos, prostituída até onde conseguia se lembrar, disse que vinha sendo
estuprada pelo próprio pai, mas conseguiu se introduzir num caminhão pau-de-arara que saía de
Cajazeiras, na Paraíba, cidade que vinha sendo castigada pela seca há quase cinco anos. Disse que
tinha cedido aos desejos carnais do homem que lhe pagara a passagem e que agora se deitava com
qualquer um que lhe pagasse pelo menos um prato de comida.
Decepcionado, Zé Clemente abandonou as margens do Rio São Francisco e se dirigiu ao centro
da cidade, onde encontrou a rua da feira. A feira sempre foi o motivo maior do folclore nordestino.
Estava ali no Juazeiro da Bahia, como estava em Caruaru, Garanhuns, Arcoverde e Floresta, no
Pernambuco. Também acontecia em Pombal e Campina Grande, na Paraíba; Arapiraca e Palmeira
dos Índios, em Alagoas; Lagarto e Itabaiana, em Sergipe; São Francisco do Canindé e Maracanaú,
no Ceará. No Nordeste, feira tanto é sinônimo de festa como de brigas e crimes. Logo ao
amanhecer, as barracas erguem-se rapidamente. Separam a feira de legumes e cereais da feira das
carnes e das fazendas. Vendem de tudo um pouco e gritam. Qualquer discussão é motivo de brigas,
de tiroteios, de peixeiradas e de mortes. Zé Clemente viu a barraca do artesanato de barro e falou de
si para si: “É a cara da pobreza, da falta de cultura e da miséria brasileira.”.
Tudo se vendia na feira do Juazeiro: roupas, calçados, produtos artesanais e animais silvestres
em vias de extinção. O sertanejo já tinha ouvido falar que nas feiras de certas cidades se vendia até
gente: homens que eram levados para trabalhar como escravos nas fazendas do Pará e do
Amazonas. Mas, o que Zé Clemente ainda não sabia, era que em outras feiras também eram
vendidas crianças recém-nascidas, que eram levadas ao estrangeiro onde serviriam de cobaias de
laboratório, ou teriam seus órgãos extirpados para transplantes em ricos pacientes. Observa-se
também nessas feiras estranhos aleijões exposto à caridade pública. Cegos com cuias nas mãos
pedem esmolas e cantam melodias regionais. Outros recitam poesias da literatura de cordel,
revendendo os respectivos livretes. Tocam-se pífaros, zabumbas e sanfonas. Uma imagem viva do
Brasil subdesenvolvido, cruel, bárbaro e esquecido. No meio da feira, centenas de outros retirantes

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desesperados e inquietos. Era o resultado do fenômeno das secas. Cíclicos e periódicos, os retirantes
fogem das prolongadas estiagens e se enveredam para o sul. Quando a seca passa eles voltam,
quando ela vem eles vão e assim por diante, quase sempre reduzidos a nada, fazendo grandes
esforços para elevarem-se pelo menos um pouco acima do zero absoluto.
Naquele dia a feira do Juazeiro parecia uma Babilônia. Estava ainda mais movimentada e
barulhenta do que o cais do porto. Havia um número incontável de vendedores ambulantes e
barracas. Não apenas baianos, mas pernambucanos, paraibanos, cearenses... As esguias e ricas
mulheres dos coronéis baianos, que adquiriam mercadorias em seus trajes de algodão colorido e
excesso de bijuterias, eram muito diferentes das suas conterrâneas feirantes de caras sujas, dentes
podres e sem nenhuma beleza aparente. Quanto ao restante da população do Juazeiro, entre as
mulheres mais velhas, pareceu a Zé Clemente que um número muito grande delas usava roupas de
luto. Os homens tomavam cachaça, cantavam, dançavam e tocavam instrumentos musicais
rudimentares. A criançada corria, pulava e saía em disparada quando roubava alguma coisa. Os
feirantes, todos eles, ofereciam suas mercadorias com alvoroço. Os mendigos, os camelôs e as
prostitutas estavam nas ruas em grande número, aproveitando-se do fluxo dos ingênuos retirantes
que chegavam à cidade aos milhares. Os retirantes também eram assediados pelos vendedores da
feira: mulheres com os filhos no colo, cobertos de moscas, vendiam a tradicional panelada baiana
em sua barracas; engraxates xingavam quando reparavam que o freguês estava descalço; homens,
moças e rapazes vendendo de tudo, desde farinha de mandioca, galinhas, porcos, bodes, óculos
escuros, facas e até relógios ordinários contrabandeados do Paraguai ou adquiridos na rua 25 de
Março de São Paulo.
O tráfego da feira era uma loucura, como era ensurdecedor o trânsito da avenida principal. E o
barulho... Os chocalhos nos pescoços dos animais soavam continuamente. Pior do que a balbúrdia
das carroças, era a bagunça praticada pelos cavaleiros, montadores de jegues e ciclistas. Todos eles,
à maneira de cada um, queriam chegar primeiro a lugar algum. Na maioria das lojas e bares e em
todas as barracas da feira ouvia-se música nordestina saída de rádios baratos ligados no volume
máximo.
Em meio a toda essa balbúrdia, bem no meio da feira, um alto-falante gritava os reclames das
Casas Rei do Pano, prometendo prêmios aos distintos fregueses que comprassem mais barato em
outras lojas. Os camelôs também apregoavam sem parar. Os pedestres os repeliam. Cães latiam por
todos os lados e urubus sobrevoavam em círculos procurando achar um cadáver acima da cabeça de
todos. Havia uma dúzia ou mais de barracas que ofereciam comida para os viajantes. Zé Clemente
pensou nelas e rejeitou-as por serem caras para o seu bolso.
Enquanto saía do centro da feira, as ruas foram ficando um pouco mais vazias. Ele não conseguia
ver o rio, mas, ocasionalmente, vislumbrava por entre a confusão da feira uma ou outra barcaça.
Tudo naquela cidade era estranho para o sertanejo acostumado com a simplicidade do sertão.
Começou a se sentir como se estivesse na caatinga, como se estivesse estado a caminhar
continuamente sem chegar a lugar algum. Numa barraca onde serviam catuaba, tomou umas
talagadas, enquanto ouvia dois homens conversando:
- Um funcionário do governo disse que muitas pessoas estão morrendo no caminho de São
Paulo...
- É. - respondeu o outro. Não existe infra-estrutura para os retirantes, centenas deles estão
morrendo à míngua...
A dona da barraca, uma morena de cabelos negros e olhos ligeiramente amendoados,
interrompendo a conversa, perguntou, dirigindo-se a Zé Clemente:
- Tá vindo de onde, meu rei?
Era realmente uma bela mulher - Zé Clemente observou. Tinha luzidios cabelos negros e

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espessos; imensos olhos castanhos amendoados, ligeiramente protuberantes, com abundantes cílios;
maçãs do rosto salientes; um nariz arqueado, graciosamente arrogante, e uma boca adornada de
dentes alvos e certos. Seu corpo era todo curvas suaves, mas, sendo um pouco mais cheia que a
clássica mulher nordestina, não parecia tão sofrida como elas. Seus ouvidos ouviram bem quando
Zé Clemente respondeu:
- Pernambuco. Mirandiba. Pruquê?
- Nada não, só mode sabê. Pra donde vai?
- No rumo de Sergipe...
- Pelo rio?
- É não. Vô caminhando que o dinheiro tá pouco.
A mulher, percebendo a simplicidade do sertanejo, provocou:
- Se eu pedisse, tu deixava eu pegá frete mais tu?
- Tu tem esse ânimo?
- Junto com um cabra porreta cuma tu, eu tinha.
Zé Clemente respondeu:
- Tu tá mangado d'eu, criatura.
Ela assentiu:
- Tava só jogando prosa fora, moço. Não se aperreie. Quando voltar passa aqui.
- Vortá? Vorto não...
Ela garantiu:
- Muitos vão e muitos voltam...
- Eu não volto, não. Se não assentá praça nas puliça do Sergipe, me boto pro São Paulo, mode
enricá.
Lá do meio da feira vinham vozes alteradas. Vários homens estavam brigando. Trocavam tapas.
Depois foram ouvidos vários tiros. Nesse momento um menino se aproximou da barraca, contando:
- Virxe, dona Celeste. A feira virô um frege da gota serena, tem nego estrebuchando no chão por
tudo quanto é lado.
Celeste recomendou ao retirante:
- Vá s'imbora home! Tu é estranho por aqui e os macacos não demora tão chegando. Corra...
- Não gosto de fugir não, moça. Já tô arreliado de fugir da seca mode arrumá um lugá neste
mundo de Deus onde a gente possa tê um vivê bom, sem os tormentos e desenganos que tenho
vivido.
- Tu tem esperança de encontrá esse lugá? Onde tu for, antes de chegá lá já tá tudo
desarrumado...
- Entonces não adianta nada esse mundo?
- Adianta não, home! Todos nóis tem sina mode cumpri, sina de pobre em qualquer lugá é a
mesma coisa. Eu tombém arribei pro mundo com esse teu pensar. Tinha uns quinze anos, hoje tô
cum quase trinta. Meu home me largô e só ganhei sofrimento. É certo que ele me deu essa barraca,
mas tô ainda aqui trabalhando mode comê, que a vida me botô desengano.
Enquanto falava, a cada momento ela dirigia o olhar para o centro da feira. A sua barraca era um
pouco afastada do tumulto, contudo, para evitar aborrecimentos, experiente que era, arriou a porta,
pedindo a Zé Clemente que entrasse até o sururu passar. No interior da barraca, Zé Clemente
acabou por lhe segurar uma das mãos, colando seu corpo ao dela. Ela ofereceu-lhe uma cachaça.
Ele, recusando, segurou-a com delicadeza e beijou-a demoradamente, apertando-lhe os seios com
ardor. Descendo as mãos sobre as pernas, levantou-lhe o vestido, indo mais adiante, tremendo e
com as faces afogueadas. Ela também tremia, mal podia falar. Finalmente, quando conseguiu falar,
pediu novamente:

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- Na volta passa aqui, meu bichinho...
- Vorto não!
- Volta sim! Muitos vão e muitos voltam...

A POLÍTICA SERTANEJA

E studar o comportamento do retirante nordestino é uma atividade complexa, mas de suma


importância. Ao investigarmos o modus-vivendi daqueles grupos, conseguimos também
analisar o nosso próprio comportamento social ante as atribulações da vida diária. A
sociedade moderna, de uma maneira geral está ficando cada vez mais desumana, fria e ingrata. E
isto tem feito com que as nossas relações de amizade também estejam cada vez mais decadentes.
Alegando falta de tempo, ou até de desprezo à causa, há pessoas que não procuram se inteirar dos
sérios problemas sociais que afetam a grande maioria da população brasileira. Escritores famosos,
por exemplo, aqueles que já têm uma vida resolvida, só se interessam por escrever banalidades,
procurando não se inteirar da política de espoliação que impera neste país, sendo eles, em várias
ocasiões, os próprios culpados. Na ótica dessas pessoas, e de muitas mais, um problema crônico
como a eterna e desumana indústria da seca nordestina é apenas uma preocupação dos outros. Eles
discutem a situação face ao apresentado na telinha da televisão, mas não se ocupam em apontar
soluções. Individualistas acomodados, basta-lhes a satisfação pessoal. Para essas pessoas, as
calamidades que assolam a nação é apenas mais um capítulo da novela brasileira da fome e da
miséria humana. Mas isto não lhes diz respeito, refastelados de cama, mesa e banho; agasalhados
pelo manto da hipocrisia plena, gorda e absoluta. Não se dão conta das crianças e adultos
abandonados pelas sarjetas das grandes cidades; da fome que grassa nos campos e da miséria que
campeia na caatinga nordestina. Também não se dão conta que isso não são apenas problemas
políticos, mas sobretudo sociais, criados pela falta de companheirismo, de amor e de camaradagem
– se bem que o problema maior das secas também esteja intimamente ligado a uma estrutura
fundiária que teima em perpetuar o poder das oligarquias nordestinas.
O contato com esse e com muitos outros problemas brasileiros, se já era uma atividade presente
na vida de Zé Clemente, passou a ter uma importância redobrada depois que conheceu o sadismo de
alguns políticos nordestinos que usam o dinheiro público para construir açudes em suas
propriedades particulares, impedindo que os sertanejos usem aquela água até para saciarem a sede.
Enfim, o sertão nordestino é uma região comandada por meia dúzia de coronéis e outros tantos
políticos ladrões do erário público e das vidas dos 20 milhões de miseráveis que vegetam nos seus
quase 1 milhão de quilômetros quadrados de caatinga inóspita. Lá, a morte por inanição é a mais
branda das calamidades. O pior, o mais triste, é ver a miséria estampada na fisionomia de "velhos"
com apenas 30 anos de idade, que trazem nas faces mais sulcos do que a própria terra ressequida em
que vivem. Tétrico é observar o olhar melancólico de meninos e meninas com ventres inchados por
sabe-se lá quantas endemias tropicais. Mas, o mais escabroso, o mais doloroso é, sem dúvida o
choro fraco da mãe que não tem leite para amamentar o esquelético filho recém nascido. Desumana
é a posição indolente dos políticos que não se incomodam com a cena de crianças definhando nas
redes sujas, molhadas pelas lágrimas do pai em sentinela ante a morte que se aproxima. Zé
Clemente era um dos poucos sobreviventes desse meio hostilizado pela própria natureza. Cresceu
junto às panelas vazias. A sua cultura resumia-se em saber que palmas, juás e mandacarus, além de
servirem para a alimentação do gado, também matavam a fome do homem. Sua mãe cozinhava as
plantas na água e depois servia o insipiente caldo verde aos filhos. Com a palma, ele sabia que o
sertanejo não morria de fome. - O pior é quando ela também se acaba – dizia -, afirmando: - Aí vem
aquela frieza no estômago, aquela certeza de que se vai morrer da fome. Diante de uma situação

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como essa – e por outros motivos também –, é que o ele enveredou para o sul evitando assaltar as
feiras livres e os comerciantes das corruptelas, solução encontrada por legiões de famintos.
Assaltos às vendas e armazéns no Nordeste sempre foi uma constante. Pelos registros históricos,
ainda em 1587 o colonizador português Fernão Cardim anotou em suas cadernetas de viagens pelo
interior da Bahia e Pernambuco que, "por causa da seca, desceram do sertão, apertados pela fome,
de quatro a cinco mil índios, assaltando e matando os brancos." Fato idêntico aconteceu em 1724,
quando João de Abreu Castelo Branco, capitão-mor da Província da Paraíba, escreveu ao rei de
Portugal, Dom João V, solicitando ajuda para enfrentar a seca que havia provocado uma onda de
assaltos na região. Caminhando solitário em meio à caatinga, Zé Clemente assistiu apenas a
repetição de um fenômeno antigo: o flagelo. E o que é estarrecedor: previsível. Hoje, os informes
meteorológicos têm avisado as autoridades, com meses de antecedência, que as estiagens sazonais,
associadas ao efeito do El Niño, podem derrubar catastroficamente os índices pluviométricos da
região. Mas, apesar dessa tecnologia toda, o governo não toma qualquer providência como
recomendam as sombrias previsões. O resultado dessa desumanidade, é duplo: flagelo e morte.
Naquele ano a seca tinha atingido mais de 80% dos municípios sertanejos. À beira da indigência,
um dos mais atingidos era o sertão de Mirandiba, onde toda a população sofria com a ausência das
chuvas. Mas, ao caminhar para o sul, Zé Clemente logo percebeu que as vítimas não eram só os
mirandibenses. O que ele viu em todo o sertão, do Vale do Pajeú às margens do rio São Francisco,
eram povoados à beira do desmanche. Os sertanejos sem ter o que comer e plantar. Ainda no início
da caminhada, o retirante viu multidões de flagelados seguindo em levas para Juazeiro do Padre
Cícero, levando bandeiras vermelhas, ex-votos e cuias para pedir esmolas. Ao ver aquele batalhão
de famintos, Zé Clemente quis fazer um comentário, mas o velho Chico o interrompeu, dizendo:
- O que torna a estiagem uma calamidade, é que seu impacto está concentrado na parcela mais
fraca da população.
E tinha razão. Isso ocorre porque o trabalhador rural do sertão possui características singulares.
Ele não recebe salários. Sua renda advém de uma porcentagem na venda da produção da fazenda
para a qual trabalha, raramente tendo direito a um pedaço de terra para a sua lavoura de
subsistência.
Naquele ano, a longa estiagem que se abateu sobre a região de Mirandiba quebrou esse frágil
ciclo econômico, matando o gado de Zé Clemente e destruindo a colheita do velho Chico. Como
meeiros do coronel Malaquias que eram, ficaram praticamente sem renda e sem comida, sendo
obrigados a deixarem a família por lá e emigrarem na esperança de arrumarem trabalho mais para o
sul. O velho morrera pelo caminho, mas ele, apesar de continuar firme, ainda carregava o remorso
daquele crime que cometera.
Por mais paradoxal que possa parecer, a seca nordestina é um problema mais social que
econômico. Para a flagelada população de Mirandiba, o governo tinha achado uma solução
utopicamente paliativa: o programa Fome Zero com a distribuição de miseráveis cestas básicas: 2
quilos de arroz, 1 de farinha, 2 de milho, 1 de feijão e 1 de charque, para matar a fome de famílias
com prole numerosa, durante um mês inteiro. Para os trabalhadores mais fortes, e mesmo para
aqueles que não queriam abandonar Mirandiba, o projeto que mais aguardavam, entretanto, não era
a distribuição de alimentos, mas a organização de frentes de trabalho, o que lhes daria alguma renda
para atravessar com um mínimo de dignidade o período da seca. Zé Clemente chegou a pleitear uma
vaga numa dessas frentes de trabalho. O informaram que teria que trabalhar 27 horas semanais para
receber, ao final do mês, alguma coisa parecida com 80 reais. Então, ele pensou de si para si: - É
melhor imigrar, tentar a sorte no sul, do que ser escravo de políticos latifundiários. Mas, o que
realmente desapontou Zé Clemente, foi quando ele viu o presidente Fernando Henrique Cardoso
afirmar no rádio: - O problema da seca só depende de Deus, do tempo e da chuva.

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Atirando o seu próprio chapéu de couro contra o aparelho, o sertanejo vendo naquelas palavras
um sacrilégio, só pode pronunciar uma palavra: - Safado!
Como Zé Clemente, nós todos sabemos que presidente não podia ter transferido o problema para
o além. A coisa não é bem assim. Existem regiões no planeta onde os índices pluviométricos são
menores do que os do Nordeste e nem por isso a seca tem impacto econômico e social. Muito pelo
contrário. Apesar das condições climáticas adversas, algumas dessas áreas tornam-se bastante
prósperas, colocando por terra a associação, tão comum quanto falsa, entre miséria e ausência de
chuvas. Um exemplo clássico é Israel, onde mais da metade do território é desértico. Ali os índices
de precipitação pluvial são mínimos. Variam de 70 centímetros por ano no norte do país, a 5
centímetros no sul. É menos da metade da média do sertão nordestino. Além disso, as chuvas
concentram-se em apenas quatro meses do ano. Isso, porém, não impede que os israelenses
produzam 95% de seu consumo alimentício, além de o país exportar 800 milhões de dólares anuais
em produtos agrícolas.
Israel é 50 vezes menor que o Nordeste Brasileiro. Se por aqui tivéssemos a mesma garra, o
sertão poderia exportar 40 bilhões de dólares anuais, algo assim como a metade do nosso PIB. Não
há milagre. O sucesso israelita se explica pelo aproveitamento máximo dos recursos hídricos. Quase
todas as fontes de água doce do país foram reunidas num sistema integrado de estações de
bombeamento, reservatórios e canais que conduzem a água às regiões mais desérticas. Assim,
elevaram-se as áreas irrigadas de 300 quilômetros quadrados em 1948 (época da fundação do país),
para 1.864 quilômetros quadrados, em 1998. Foram desenvolvidas técnicas avançadas de irrigação,
como a por gotejamento, na qual o fluxo de água é levado diretamente à raiz da planta. Além disso,
a produção de chuvas artificiais, a criação de plantas em estufas, a dessalinização de águas salobras
e a reciclagem de águas de esgoto ajudaram a aumentar o potencial hidráulico de Israel. São
exemplos claros de que condições naturais podem ser controladas com êxito. E não foi preciso Zé
Clemente ir tão longe para verificar isso. Logo que chegou em Petrolina, na divisa de Pernambuco
com a Bahia, logo começou a notar que a paisagem de tonalidades pardacenta transmudava-se para
um verde intenso. Petrolina, cidade encravada numa das áreas mais áridas do país, já estava
beneficiada por seis projetos de irrigação, que atendiam pequenos, médios e grandes agricultores
que substituíram culturas tradicionais pela fruticultura. Antes da cabeceira da ponte, o retirante pôde
apreciar o embarque de frutas nos aviões que seguiam para a Europa, Estados Unidos e Canadá.
Enorme também era o comércio nacional de acerola, mamão, uva, melão, manga e goiaba,
movimentando milhares de reais por dia.
Como dissemos no início deste capítulo, estudar o comportamento do retirante nordestino é uma
atividade complexa. Zé Clemente, que já tinha trabalhado nas plantações de maconha exploradas
por traficantes do Rio e São Paulo no alto sertão pernambucano, logo que viu a irrigação, pensou: -
Se eu tivesse um dinheirinho, comprava uma terra, fazia uma roça e ficava por aqui... Depois, vendo
a Polícia Federal dando uma batida na redondeza, falou alto: - Vote! Quero não!
Na cabeceira da ponte, uma placa da SUDENE anunciava um novo projeto: transposição das
águas do rio São Francisco. A idéia era desviar o equivalente a 3% da vazão mínima do rio para
alimentar açudes e transformar leitos secos de riachos em veios perenes de água. - Esse projeto vai
beneficiar de imediato 6 milhões de pessoas - falava o superintendente da SUDENE, respondendo a
uma pergunta de um entrevistador de televisão. - E tem mais – afirmou - O custo estimado em 1
bilhão de dólares é muito menor do que os gastos públicos com os carros-pipa que não resolvem o
problema a cada estiagem.
No bar onde Zé Clemente se encontrava, várias pessoas teciam comentários sobre o assunto.
Dizia um: - O governo ao dizer que vai reestudar a transposição, quer, na verdade, postergar a sua
implantação, pois não tem vontade política para executá-la. O dono do bar entrou na conversa: - As

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coisas não são tão simples. É preciso saber com precisão qual o impacto ambiental provocado por
uma medida dessas.
- É verdade - concordou um freguês. - Sobretudo no próprio São Francisco que é um rio
ameaçado em função do assoreamento, dos desvios de água e da destruição das matas ciliares.
- Uma obra dessas deve ser pensada com calma e em longo prazo. – voltou a falar o homem do
balcão. - O bom censo nos indica que o mais certo é aproveitarmos os próprios leitos secos dos rios,
construindo barragens sobre eles de quando em quando, fazendo-os armazenar as águas das chuvas
abundantes nos invernos, evitando que elas escoem para o mar.
Uma mulher com ares de professora, deu sinal de vida:
- Na minha opinião, o mais racional seria a perfuração de milhares de poços artesianos no sertão,
pois sabe-se que o subsolo é riquíssimo em água doce. O Piauí, por exemplo, é detentor do maior
lençol freático do planeta.
- Por tudo isso – voltou a falar o dono do bar –, seria absurdo culpar o clima do sertão pela
insignificância da sua produção agrícola. Ou então atribuir à seca a altíssima mortalidade infantil ou
a baixa renda per capita exibida no Nordeste. Na verdade, o que existe é falta de racionalidade. Há
explicações muito mais profundas e terrenas do que as dadas pelo presidente da República para a
pintura desse quadro dantesco.
Apontando o dedo para Zé Clemente, que se encontrava quieto num canto, a professora
desabafou:
- O problema também está na cultura regional. Reparem naquele tabaréu, ao invés de enfrentar o
problema está fugindo dele.
- É verdade. – falou um dos homens - Qualquer pessoa que não fosse covarde se deleitaria com
os 21 bilhões de metros cúbicos de água armazenada em 1.500 açudes e barreiras nordestinas, isso
sem contar com os reservatórios que estão no rio São Francisco como os de Sobradinho e Itaparica.
Mas ele não. É um pobre coitado, que vai acabar morrendo de fome em São Paulo.
Zé Clemente encarou o cidadão:
- Eu tô quieto aqui, moço, num tô procurando briga não. Eu sei que é um grande volume de água,
suficiente para abastecer os flagelados da seca por muitos anos, mesmo que não caia do céu uma
única gota d'água – concordou.
- Então por que é que você está fugindo? – perguntou a professora.
Zé Clemente, ficando em pé, parecia ter se transformado num gigante. Além disso, começou a
responder a pergunta com palavras inteligentes e frases bem colocadas:
- No sertão pernambucano, dona, eu conheço um açude com capacidade para armazenar 60
milhões de litros de água, o que dá para irrigar uma área de 10 mil hectares e suprir as necessidades
anuais de 200 mil pessoas. O problema é que o açude não está ligado a sistemas de distribuição,
servindo ao gado do deputado Inocêncio de Oliveira e evaporando-se ao sol. Aqui na Bahia também
tem outros em terras pertencentes ao senador Antônio Carlos Magalhães. Apesar de terem sido
construídos com o dinheiro do governo, se alguém for lá retirar uma lata de água é recebido à bala.
Fugir disso é covardia, dona? É pecado um simples sertanejo fugir da maldade de homens que têm
audácia suficiente até para grampear telefones de pessoas influentes? Diga, dona, com o miserável
salário que a senhora recebe para lecionar, teria coragem de encarar o poderio mafioso desses
homens?
A professora limitou-se em ficar calada, mas o dono do bar falou:
- O tabaréu tem razão. Em todo o Nordeste os projetos nesse sentido são tocados sem estudos
técnicos, ambientais e econômicos, de acordo com os interesses políticos. Muitos nem chegam a
sair do papel.
O retirante pegou o gancho:

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- Eu varei no peito toda essa caatinga espinhenta. De Mirandiba até aqui o que vi demonstra que
a solução do problema da seca não depende de obras de engenharia civil, mas de uma decidida
engenharia política que desmonte uma das engenharias mais prósperas da região: a engenharia da
seca, a indústria que os políticos criaram para viverem às custas do povo.
Impressionada ante a exposição do sertanejo, a professora desculpou-se:
- Desculpe tê-lo chamado de tabaréu, moço. Você veio de onde mesmo?
- De Mirandiba, sinhá dona, cuma umas três sumanas daqui.
- Interessante. Como você tem capacidade de usar o linguajar sertanejo, e ser educado quando
quer?
- Sou um tabaréu sim, mas não sou bicho. Mirandiba, dona, não é o fim do mundo. Por outra, sou
descendente do capitão Elizeu Campos, o construtor da mais bela igreja nordestina, a capela de São
João Batista.
- Então você gosta da sua terra, não gosta?
- Gostar até que gosto. O que não gosto é da maneira como Inocêncio de Oliveira e outros
políticos locais encontraram para enriquecer e manter seu poder através de apropriações ilícitas, à
custa da miséria dos sertanejos.
- Como é isto?
- O método desses pilantras é relativamente simples. O primeiro passo consiste em utilizar
recursos públicos para construir obras hídricas, como açudes, barragens e poços artesianos dentro
de suas propriedades. Dessa prática ilegal decorrem imensas distorções. A mais visível delas é que,
enquanto milhões de pessoas são obrigadas a andar quilômetros para conseguir uma simples lata
d'água, eles mantêm verdadeiros oásis em meio à caatinga. Suas propriedades irrigadas são sempre
produtivas, mas o sertanejo que entrar nelas morre.
- Como você tem coragem de fazer essas acusações? Não tem medo?
- Tenho. É por isso que estou indo para Aracaju. Se não arrumar serviço por lá, me mando pra
São Paulo, onde tenho um parente doutor.
- Nossa, então você é de família rica... doutores. Tem político também?
- Virche, se tem. No Pernambuco têm parentes meus, distantes, é verdade, que também sabem
exercer o monopólio privado das fontes de água. Muitos deles, verdadeiros coronéis do sertão, é que
fazem a distribuição dos carros-pipa, cestas básicas e até mesmo do dinheiro desviado dos
programas assistenciais. É o argumento mais sedutor que usam para ganhar a gratidão e o voto do
povo desamparado.
- E o povo, apesar disso ainda vota neles?
- Para o sertanejo, é muito difícil resistir. São políticos como Inocêncio de Oliveira que dominam
a operação emergencial do governo, são eles que promovem a distribuição de água, comida e postos
nas frentes de trabalho apenas a seus correligionários.
- Quer dizer, então – falou impressionada a professora –, que dentro dessa estrutura, seca em ano
eleitoral é um fortificante a mais para as pretensões políticas deles?
- Sim. Tanto que não bem começam as ações governamentais para combater os efeitos da
estiagem e uma lista de irregularidades já chega à imprensa. A principal refere-se sempre ao
controle exercido por aqueles políticos sobre as comissões encarregadas da distribuição de
alimentos.
- Em Mirandiba também acontecem esses absurdos?
Que eu saiba não, mas numa cidade vizinha, Inocentina, 5 mil cestas básicas foram saqueadas
pelos moradores da periferia da cidade. O motivo? Os mantimentos enviados para os flagelados da
seca estavam armazenados em um depósito particular de um determinado deputado e seriam
distribuídos num curral eleitoral, por um tal coronel Malaquias. Eu matei o filho dele.

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Assustada com a declaração do sertanejo, a professora perguntou:
- E você acha que sair por aí matando gente resolve o problema da seca no Nordeste?
- Não. Dia desses ouvi no rádio a entrevista de um especialista em hidrologia, diretor de um
dessas órgãos federeis de controle das secas no Nordeste. Ele dizia que o polígono das secas era
bem menor do que se divulga. Fazia isso confrontando os mapas das secas com mapas temáticos da
produção agrícola na área, sugerindo que, se houvesse seca nas proporções alardeadas, não poderia
haver agricultura produtiva na mesma região e vice-versa.
- O que ele queria dizer com isso?
- Ele tentava provar que a abrangência do polígono era forjada para obter subsídios que
favorecem os interesses de políticos clientelistas da região. Não sei quanta verdade há nisso, mas,
de qualquer forma, é indiscutível que o Nordeste carece vergonhosamente de um plano honesto e
possível, que o inclua de vez no mapa do Brasil.
- O que você acha que já devia ter sido feito?
- Sei lá, mas se nos anos de Juscelino a indústria automobilística tivesse sido implantada no
Nordeste, em vez de na já próspera São Paulo, teríamos evitado o êxodo para o Sul, dado emprego a
milhões com as indústrias satélites que nasceriam a reboque, e com impostos arrecadados aqui
mesmo ainda poderia ter-se remediado a questão da seca; os grandes centros não estariam hoje
soltando gente pelo ladrão e o emprego estaria mais bem dividido pelas cidades de todo o país.
- Então você quer voltar àqueles tempos?
- Não. Não há como voltar atrás, mas um equívoco serve para pensar o futuro de forma mais
generosa.
- Como é isso?
- Minha sugestão é a seguinte: por que não permitir a abertura do jogo no polígono das secas,
criando uma nova Las Vegas brasileira e fixando os retirantes na região?
- E quem iria pagar as contas?
- Tudo seria financiado por megaempresários do show business que esperam ansiosos por essa
liberação. Milhares de empregos seriam gerados durante as obras de execução, e posteriormente,
como funcionamento dos cassinos, restaurantes e teatros, o nordestino se adaptaria para trabalhar
nas mais diversas atividades.
- Será que isso funciona?
- Sim. Las Vegas, que foi um dia apenas um deserto inóspito, é hoje dos metros quadrados mais
valorizados do planeta. Com o polígono pode acontecer o mesmo, e ainda promoveríamos, ainda
que tardiamente, a dignidade do nosso povo.
- Mas isso não geraria crime, prostituição?
- Pode até ser, dona, mas levar a vida como puta ou ladrão deve ser bem mais bacana que se
equilibrar na corda bamba da fome.
- E você teria coragem de trabalhar num lugar desses?
- Se tenho? A senhora está brincando. É meu sonho. Um dia ainda vou montar o meu próprio
cassino, com bar, cabaré e tudo mais.
- Virche. Tu é doido mesmo, homem.

O HOMEM

C omo vimos, José Clemente da Silva não era de todo um homem ignorante. Infeliz como
todo retirante, é verdade, mas na sua vida a infelicidade era apenas um desvio, porquanto
tenha nascido numa cidade onde as pessoas, apesar de simples, são felizes. Havia,
entretanto, em Zé Clemente, um irresistível impulso de experimentar. Por isso ele fazia questão de

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rasgar a caatinga no peito. Ele era um homem curioso e costumava fazer de si mesmo uma cobaia,
assegurando-se o direito de aprender errando. Essa foi a marca de toda a sua vida, sempre em busca
da liberdade sem limitações. Como Zé Clemente, desde o início da civilização o homem vem
testando modos diferentes de vida. Se em suas andanças o nosso herói por vezes machucou alguém,
também saiu machucado. Dos seus tropeções se orientou para evitar outros enganos. Assim, ele nos
ensina que só se aprende a ser livre usando a liberdade até para errar. Ele queria conhecer para ter
certeza. Mergulhou na violência, na competição econômica, no labirinto dos vícios, na farra erótica,
na fragilidade ética. Sofreu com isso. Se banalizou, mas aprendeu.
Ao escrever este livro, acabei por conseguir compreender-lhe os passos vacilantes. Também
consegui compreender-lhe as suas palavras que, por proferi-las pausadamente, são repousantes.
Finalmente, compreendi o quanto lhe custou encontrar forças para carregar sua cruz e um fardo
cheio de recordações das coisas dos tempos passados. Testemunhas do seu primeiro crime não
houveram. Mas como as caatingas têm olhos e as cacimbas ouvidos, só lhe restava fugir. O tio
morrera pelo caminho. O coração não sobreviveu à agressividade do ambiente. Zé Clemente
sobreviveu. Era moço, forte e sadio. Sua vida foi um rosário de ilusões e desilusões. Outros crimes
viriam. Mas quem o poderá culpar? Matou, sim, mas pela sobrevivência e pela salvação da
dignidade. Que se saiba, nunca procurou encrenca. Mas se brigavam com ele o troco logo vinha.
Este é o filho de Mirandiba! Ei-lo atravessando o maior deserto brasileiro, o famoso Raso da
Catarina, ou melhor, as veredas do inferno. Salvo talvez o personagem da nossa história, ninguém
que se saiba suportou ainda as suas agruras em tempo suficiente para definir aquele deserto.
Lampião também se aventurou por aquelas paragens. Zé Clemente palmilhou as mesmas trilhas
daquele cangaceiro, veredas próprias para quem ataca ou foge. Aqueles ermos, de sorte que sempre
evitados e temidos, é uma região até hoje desconhecida, e ainda será selvática por muito tempo. Os
que afirmam conhecer o lugar, até hoje só nos apresentaram respostas vagas e ligeiras conjeturas.
Atravessando aquele deserto, no prelúdio de uma estiagem ardente e, sentindo-o apenas nessa
ótica, o sertanejo conheceu o seu pior aspecto. Vendo o deserto de perto, palmilhando-o passo a
passo, no mesmo nível do chão, o nosso herói, trancado no horizonte daquelas grimpas altaneiras,
em sua desdita às vezes tinha a impressão alentadora de se encontrar sobre um platô elevadíssimo,
tal era a insânia de sua alucinação. Na verdade, ele continuava caminhando, às vezes em círculos,
sobre páramos incomparáveis, repousados sobre as imensas e desconhecidas serras. Na planície de
rachaduras quadriculadas, mal avistava os pequenos riachos secos, onde divagavam serpentes,
calangos e carcarás. Um único fato se destacava: a caatinga imensa, inóspita, circundada de colinas,
entulhada, enchendo-se de confusas nuvens sem água, num enorme acervo de fome, miséria e sede.
Não há como descrever o Raso da Catarina em todos os seus aspectos. São escassas as observações
mais comuns, mercê da proverbial indiferença com que os sertanejos se voltam contra as coisas do
lugar. Os que o margeiam falam do deserto com uma inércia cômoda de famintos fartos. Conforme
o andar do retirante, o clima divergia de lugar para lugar. Ao aproximar-se de uma elevação
tornava-se estável, oscilando em amplitudes insignificantes. Na planície, a transparência do céu se
fazia completa, límpida e inalterável. Nos baixios, ele notava que a temperatura aumentava:
carregava-se de anil o céu, amarelavam-se os ares fazendo rolar os ventos quentes de todos os
quadrantes, ante a aridez dos terrenos inóspitos que para a frente se dilatavam.
Ao cair da noite, acentuava-se o desequilíbrio. O sol que castigava os dias calorentos, dava lugar
a noites e madrugadas frias. A terra nua, em permanente conflito com a natureza, tanto armazena
calor como dele se esgota rapidamente: isola-se e fica fria em poucas horas. Fere-a o sol, e as pedras
absorvem-lhe os raios, multiplicando-os e refletindo-os, num reverberar ofuscante: nos topos dos
serrotes incendeiam-se as pedras fraturadas, rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a
atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivo de fornalhas em que se presente a efervescência

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dos gases fulminando a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de uma
longa sonolência, a galhada enegrecida da flora sucumbida. A noite cai em crepúsculo, rapidamente
– uma faixa preta por cima da franja alaranjada do poente. Imediatamente, todo o calor se perde. No
espaço de irradiações intensíssimas, cai a temperatura de súbito, numa crise desértica e impiedosa...
São cruéis as variações climáticas. Espessas nuvens, tufando em cúmulos, pairam ao entardecer
sobre a caatinga queimada. Desaparece o sol e as nuvens parecem imóveis no espaço, mas, na
realidade, ou sobem para patamares mais altos, ou vão despejar suas águas em regiões bem mais
apreciadas por Deus. A noite sobrevem em brasa; a terra irradia um sol que já não existe, por que se
sente uma fragorosa impressão de fagulhas invisíveis. Mas é por pouco tempo. Pouco a pouco, toda
a ardência parece refluir sobre a terra, posteriormente sugada pelo frio. A temperatura cai
assustadoramente e já não se respira a golfada intermitente dos ventos produzidos pelas irradiações
solares. Por um paradoxo inexplicável, prevalece a intercadência de dias infernais e noites frígidas,
agravando todas as angústias do nosso martirizado retirante. Este, apavorado, procura uma grota
para passar a noite. Acende uma fogueira e, protegido do frio, sente que lá fora o desequilíbrio da
natureza continua trabalhando. Os ventos já não alcançam o esconderijo, mas continuam em rebojos
largos pela caatinga, retirando da cabeça do retirante os sinais que deve seguir quando o dia clarear.
Amanhece. As agitações climáticas desaparecem, fazendo reinar novamente o calor insuportável
em calmaria pesada. O ar está imóvel sob a placidez do dia que já se mostra causticamente. São
quase imperceptíveis as correntes de calor, mas existem, enchendo de vapores aquecidos a planície,
sugando-lhe a umidade já exígua e, por volta do meio-dia, quando mais ardentes ficam, só
conseguem esboçar a imagem estarrecedora da seca. A partir daí, a atmosfera atinge graus
surpreendentes. Chega a tarde, o viajante encontrou, no decorrer de uma encosta, um anfiteatro
irregular, onde as pedras ovaladas se dispunham formando um vale único. Pequenos arbustos,
macambiras espinhentas, avelós, caroás, e icozeiros vicejando em tufos intermediados de
palmatórias e flores rutilantes, dando ao lugar a aparência exata de um velho cemitério abandonado,
cercado por oiticicas, mandacarus e quixabeiras altas, que sombreavam a vegetação nanica. O sol
que já se pondo, derramava, demoradamente, os seus últimos clarões sobre o chão gretado e, sobre
este, vários soldados abatidos a tiros, que Zé Clemente deduziu terem sido mortos pelo bando de
Lampião. Caído sobre as pedras, o corpo de um soldado estava sem a cabeça, provavelmente
decapitada pelos cangaceiros. O fuzil estava quebrado ao lado do corpo, o cinturão, o cantil e o
boné atirados a uma banda, mostravam que morrera em luta corpo a corpo com adversários muito
bem treinados. Mais adiante, cavalos mortos provavelmente naquele mesmo entrevero, mais
pareciam animais fantásticos: estátuas mortas apodrecendo no mortífero sertão. Quando as lufadas
frias da noite, caindo súbitas, se misturaram com aquele cenário estarrecedor, em redemoinhos
parecidos com minúsculos ciclones, foi que Zé Clemente sentiu o mau cheiro que se propagava pelo
ambiente, misturando-se a cada partícula de areia fina suspensa do solo gretado e duro. O cheiro
nauseabundo irradiava miasmas em todos os sentidos, feito um vendaval calorífico, misturado à
surda combustão da terra.
Continuando a caminhada, o retirante alcançou o cume de um pequeno morro. Do alto,
colocando as mãos sobre os olhos, notou nos últimos raios ardentes do sol, ao longe, o bando de
cangaceiros que, em fuga, cantava a melodia Mulher Rendeira. A atmosfera carregada imobilizava
o ambiente ao redor. O olhar fascinado do retirante perturbava-se no desequilíbrio das camadas da
caatinga, atentando para os cangaceiros ao longe, aonde iam se confundir com o horizonte. Para ele,
envolto nesse prisma desmedido, já não conseguia distinguir a base das serras, então imaginou que
elas estavam suspensas no ar, juntamente com o bando de Lampião. Também ele, depois de arrumar
um local para dormir, sonhou com rios nas nuvens; a ilusão maravilhosa de estar no céu, um lugar
calmo e fresco, onde podia se deleitar. Pela manhã, acordou ante o barulho da revoada dos urubus

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famintos à procura de carniça. Foi horrível vê-los bicando primeiramente os olhos dos defuntos
soldados. Estranho foi vê-los disputando os cadáveres, entrando por seus abdomens como enormes
vermes, devorando-os avidamente, nunca se fartando de tanto comer. Em minutos estava tudo
acabado: cadáveres de homens e de animais transformados em esqueletos esbranquiçados, naquela
triste paisagem do Raso da Catarina. Este semi-deserto baiano, como já deu para compreender, é a
própria fisiologia de todos os sertões nordestinos. É o resumo de todos eles, enfeixando os seus
aspectos predominantes numa escala reduzida. Por outra parte, também pode ser compreendido
como a soma de todos eles. Enfim, é a mais inculta das regiões brasileiras, o terror dos sertanejos
nordestinos que por ali não se aventuram. A seca naquele local encerra-se com um ritmo tão
notável, que recorda o desdobramento de uma lei natural ainda desconhecida, traçando um quadro
bastante incisivo, em que o desaparecimento da umidade se defronta com paralelismos singulares,
sendo de se presumir que ligeiras chuvas indiquem apenas breves desvios de tradição climática. A
travessia daquele deserto baiano é, por assim dizer, muito mais penosa e exaustiva que a de um
deserto de verdade. No Saara, por exemplo, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a
perspectiva das planícies planas. No Raso da Catarina, não. A caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar;
agride-o e o estonteia; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com folhas urticantes,
com espinhos, com gravetos estalados em lanças; e desdobra-se na frente léguas e léguas, imutável
no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos retorcidos e secos, revoltos, entrecruzados,
apontando rigidamente para o espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando tentáculos
imensos, de tortura e de agonia da flora moribunda. As árvores da caatinga, vistas em conjunto,
parecem pertencer a uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável,
divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais
mortos, quase sem troncos, esgalhados logo ao romper do chão. É que por um efeito inexplicável de
adaptação às condições estreitas do meio ingrato, envolvendo penosamente em círculos estreitos,
aquelas mesmas árvores que tanto se diversificam nas matas, ali se talham por um molde único.
Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para o limitadíssimo número de tipos
característicos voltados para os atributos dos que possuem maior capacidade de resistência. Esta
luta é tenaz e inflexível. Diferente da luta pela vida na floresta que se traduz como uma tendência
irreprimível para a luz, desatando-se os arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindo ao afogado
das sombras e alteando-se presos mais aos raios de sol do que aos troncos seculares – na caatinga
essa lei é oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora. O sol é o inimigo que é
forçoso evitar, disfarçar ou combater. E evitando-o pressente-se de algum modo a inumação da flora
moribunda, enterrando-se os caules no chão. Mas, como este, por seu turno, é áspero e duro
exsicado pelas drenagens dos predadores ou esterilizado pela sucção dos estratos completando as
insolações, entre dois meios desfavoráveis – espaços candentes e terrenos agros – as plantas mais
robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta dura batalha. As
leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo ampliam o âmbito das
frondes, alargando a superfície de contato com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele
difundidos. Atrofiam as raízes mestras batendo contra o subsolo impenetrável e substituem-nas pela
extensão irradiante das radículas secundárias, ganglionando-as em tubérculos de seiva. Amiúdam as
folhas. Fitam-nas rigidamente, duras como metal, à ponta dos galhos para diminuírem o campo de
insolação. Revestem de um indumento protetor os frutos, rígidos, às vezes, como estróbilos. Dão-
lhes na deiscência com que as vagens se abrem, estalando como se tivessem molas de aço,
admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente pelo chão. E tem,
todas, sem excetuar nenhuma, no perfume suavíssimo das flores anteparos intácteis que nas noites
frias sobre elas se levantam e arqueiam obstando que sofram de chofre as quedas de temperatura,
tendas visíveis e encantadoras, resguardando-as. Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir

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contra o regime bruto. Ajusta-se sobre o Raso da Catarina o cautério das secas; esterilizam-se os
ares urentes; empedra-se o chão, gretado, requestado; ruge a caatinga nos ermos; e, como um cilício
dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos. Mas, reduzidas todas as
funções, a planta, estivando, em vida latente, alimenta-se das reservas que armazena nos tempos
remansados e vence as estiagens, pronta a transfigurar-se entre os deslumbramentos encantadores
da primavera.
E, na continuação da viagem, Zé Clemente conheceu a parte mais selvagem da caatinga sedenta.
Foram vários dias para atravessar o Raso da Catarina, o lugar mais inóspito da caatinga baiana. O
sertanejo, enquanto caminhava, ia deixando para trás um deserto de escaldante solidões, onde o sol
castigava até as pedras. No caminho, nem uma só nuvem num céu de coloração demasiadamente
azul. Léguas sem uma miserável corrente de água. Luz, suor e calor. Arbustos venenosos, escorbuto
e um desânimo que imobilizava. Léguas e mais léguas rolaram sob as solas das alpercatas e dos pés
doloridos do sertanejo. O fôlego curto, o suor salgado escorrendo-lhe pelo corpo, molhando-lhe as
alpercatas e a alma. Procurava uma sombra, um arvoredo que fosse. Caía. Levantava-se, reunia as
forças e voltava a caminhar, observando os urubus esfomeados sobrevoarem a sua cabeça em busca
de carniça. Mais caminhadas, mais léguas comidas pelas alpercatas de couro cru que sulcavam a
areia seca dos caminhos, deixando rastros por todos os vales da caatinga áspera e veredas
intransitáveis, contornando os labirintos de cactos, rasga-beiços, rompe-gibão e faveleiros. Seus
passos agora são lentos e vez ou outra volta a cair, levantar e cair novamente. Levantava-se com
esforço fantástico. Suas pernas estavam bambas, tremendo. Escorava-se num arbusto, semicerrava
os olhos, vendo ao longe uma miragem verde, e pensava: - Deus queira que seja imbu.
Estava realmente muito próximo do umbuzeiro, mas as forças para chegar até ele eram fracas.
Mas, com uma determinação que só os heróis sabem ter, foi cambaleando, rastejando, caindo,
levantando que conseguiu chegar na sombra dadivosa e acolhedora da árvore milagrosa, onde caiu
exausto e ofegante. Como uma cobra, arrasta-se para o tronco da árvore, encosta-se nele, segura um
galho e apanha alguns frutos. Estava atordoado, fraco, os olhos embaçados pela claridade do
causticaste sol sertanejo. Tão logo engoliu alguns frutos caiu e dormiu, como alguém que tivesse
desmaiado ou entrado em coma profundo.
No dia seguinte, quando acordou, pela posição do sol imaginou ser umas onze horas. Levantou-
se, apanhou alguns frutos maduros e galhos com folhas verdes. Engoliu alguns umbus e mastigou as
folhas para matar a sede. Nos dias que se seguiram não encontrou uma só gota d'água em todos o
percurso. O sol que queimava os arbustos, estalava as pedras da caatinga e os ossos do retirante. A
fome que lhe azucrinava os intestinos era amenizada com as folhas, agora ressequidas, do
umbuzeiro. A sede tinha deixado a sua língua rachada e os cantos da boca feridos. Os dentes
rangiam e a cabeça doía. Então percebeu que tinha febre, mas não podia parar. Cambaleando,
tropeçando nas pedras, continuou a caminhada. As pedras mais pareciam demônios que olhavam
para ele e lhe sorriam com dentes afiadíssimos. Estaria com insolação ou seria o delírio da morte?
Não, pensou. Com certeza é escorbuto, a falta de líquido provoca essa doença, já tinha ouvido falar.
Já estava disposto a entregar sua alma a Deus, puxar o seu punhal e enfiá-lo no coração dando fim
ao sofrimento, quando avistou alguns preás movendo-se entre os arbustos. Com muita sorte
conseguiu apanhar um filhote, matou-o, bebeu-lhe o sangue, cortou a parte do lombo e comeu.
Depois, refeito da fome, ficou observando a terra translúcida e as cobras movendo-se nas fendas das
pedras. Não se importou com as serpentes; descobrindo a sombra de um pequeno arbusto ao lado de
uma pedra grande, deitou-se esperando a tarde passar. Nessa letargia, quase dormiu, lembrando-se
de sua mãe que em sonho lhe dizia: - Zé, tu matou Chico, matou o meu irmão, teu tio; você é um
desventurado, vai morrer também na caatinga.
A alma do velho Chico também lhe aparecia em sobressaltos, e recomendava: Zé, tu não vence

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esse deserto, desista, pega a tua faca, amola ela na pedra branca e enfia no peito. É melhor que
morrer de fome e de sede. Acordou, o dia tinha se feito noite e Zé Clemente reiniciou a caminhada,
batendo as alpercatas na poeira, fazendo rastros na imensidão da caatinga. Agora, alimentado, abre
caminho pela capoeira e pensa: - Que diabos eu vim fazer neste lugar? Em Juazeiro me disseram
que a estrada era boa, que não havia nenhum problema para se chegar ao Sergipe, desde que levasse
manutenção para a semana, o que fiz. Porém não se lembrava mais de nada, achava que tinha errado
o caminho e adentrado por veredas diferentes, pois não havia nenhuma indicação, nenhum aviso,
uma placa que fosse. Estaria perdido? Estaria andando em círculos? Bem que poderia ter demorado
mais em Juazeiro, mamado mais nas tetas da Celeste, acariciado com mais gosto as ancas redondas
daquela morena que o tinha feito homem, daquela mulher que lhe havia ensinado os caminhos e as
delícias da carne. Não. Ele era um sertanejo ignorante, estúpido e analfabeto, que só pensava em
matar a fome e a sede, por isso estava viajando para o Sergipe, na esperança que seu primo lhe
arrumasse um emprego bem remunerado, uma pousada para dormir e um canto onde comer para
matar a fome de todas as necessidades do mundo. - Que jumento sou, pensou o retirante. Bem que
podia ter demorado mais um pouco, trabalhado no cais do porto carregando sacos de farinha e
fardos de algodão e, depois, com um dinheirinho no bolso, comprado a passagem no rebocador e
descido pelo rio. Ah, que bom seria. Melhor ainda se a Celeste estivesse aqui, ou melhor, em
Aracaju comigo. Tinham tido um relacionamento sexual. E se ela ficasse grávida? Quando iria ver
seu filho? Com esses pensamentos na cabeça, abriu caminho entre os arbustos que se fechavam à
sua passagem. No silêncio da caatinga, só as cigarras e os grilos se faziam ouvir. Zé Clemente
estava desnorteado, andava por andar, varando a caatinga com o corpo machucado, dilacerado pelos
espinhos, os pés doídos por causa das pedras, o rosto com vários ferimentos estava sangrando. Onde
será que tinha perdido a mochila? Lembrava-se vagamente que após sugar a última gota, havia se
livrado das porungas secas e da mochila vazia. Mas, onde? Não importa. O necessário era
caminhar, ir em frente, nem se importava que as suas roupas estivessem rasgadas de cima a baixo.
Ele nem se recordava de como elas se rasgaram. Também não se lembrava onde perdera o punhal.
Faca? Sem ela não poderia nem falar com Deus. Estaria louco?
A capoeira espinhenta se estendia mais e mais à sua frente. Era noite escura, por isso não via
nada, mas continuava andando, abrindo caminho com as mãos, pés e peito. As feridas do rosto
começaram a sangrar mais abundantemente, um novo espinho rasgou a carne do seu peito, outro
entrou em seu calcanhar. Zé não sentia nada, estava amortecido, não se incomodava com espinhos,
pedras, serpentes e tudo mais, pois sabia que a caatinga é implacável para os que a violentam. Mas
também sabia que tinha que andar, andar, sair dali o quanto antes. De repente, a capoeira ficou mais
rala. Olhando para cima viu as estrelas que brilhavam no céu. A madrugada começava a se fazer
dia. Farrapos de nuvens, como fiapos de algodão, corriam no infinito. Ele parou e admirou o
firmamento e sua madrugada estrelada. Ao lado de uma estrela grande tinha uma nuvem muita alva.
Sobre a nuvem, seu tio Chico estava sentado ao lado de uma mesa farta de comida e água fresca. O
velho lhe fez um sinal e derramou um pouco d'água sobre sua cabeça. Estremeceu. Só então
percebeu que era um devaneio. O que tinha-lhe caído na cabeça não era água, mas excrementos de
um passarinho que se encontrava pousado num galho. Então ele riu, sentou e descansou alguns
minutos. Seus pés não agüentavam mais caminhar, sua garganta estava seca e o corpo rasgado pelos
espinhos, sangrava. A roupa estava em frangalhos, o estômago reclamava comida. Uma cobra
passou silvando, as cigarras faziam um barulho insuportável e ele se levantou. Começou a andar,
mas não via mais as nuvens, as estrelas e a imagem do seu tio Chico, que o mato tornou-se mais
fechado. A fadiga aumentou. Que horas seriam? Quatro? Talvez cinco? Não importa. O que
importava é que tinha fome e sede. Continuou andando pelo mato cerrado, onde não via mais as
estrelas, não enxergava as nuvens... O dia amanheceu. Por entre os galhos, enxergou enorme clarão

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à sua frente. Era o sol que saia novamente, o grande astro vermelho, mais quente que nunca. Olhou
para o seu corpo, suas feridas, suas roupas rasgadas e não compreendia como ainda estava vivo. O
corpo doía e ele tinha fome e sede. Sentia que ia desmaiar a qualquer momento. Mas a sede, a fome
e os ferimentos lembraram-lhe que tinha que caminhar, que sair dali, que ir em frente, não
importava para onde, mas tinha que ir em frente. Caminhar à procura do nada. É evidente que Zé
Clemente se aventurou pelo deserto sem os recursos indispensáveis a uma travessia de mais e 300
quilômetros, em terreno selvagem e despovoado. Dessa forma, logo que percebeu o erro, começou a
dar à caminhada uma norma capaz de lhe poupar as forças. No Raso da Catarina, mesmo antes da
plena estiagem, é difícil caminhar equipado, levando mochilas, redes e cabaças d'água após o meio-
dia. Depois dessa hora, pelos tabuleiros o dia desdobra-se abrasador, sem sombras; a terra nua
reverbera os ardores da canícula, multiplicando-os; e sob o influxo exaustivo de uma temperatura
altíssima, acelerando-se de maneira pasmosa as funções vitais, determinando assaltos súbitos de
cansaço. Por outro lado, é impossível o itinerário disposto de maneira a aproveitarem-se as horas da
madrugada, pois estas geralmente são muito frias, é forçoso avançar a despeito das soalheiras fortes
à procura de uma possível cacimba abandonada. Além disso, o Raso da Catarina está entre os mais
desconhecidos do Brasil. Mesmo hoje, no início do terceiro milênio, bem poucas pessoas conhecem
o ensolarado vale margeado pelo quase sempre seco rio Vaza Barris que, das vertentes orientais da
Itiúba até Geremoabo, se prolonga inóspito, seco, tendo, de quando em quando, esparsos,
insignificantes casebres; porém todos abandonados. É, sem dúvidas, o trecho mais assolado pelas
secas, entre todos os desertos do sertão nordestino. Por um contraste explicável ante as disposições
orográficas, rodeiam-no, contudo, paragens exuberantes: ao norte o belo sertão de Curaçá e as
várzeas selênicas estendidas para o leste até santo Antônio da Glória, perlongando a margem direita
do São Francisco; a oeste as terras fecundas centralizadas em Vila Nova da Rainha. Todo esse
panorama, contudo, só serve para emoldurar o deserto. O rio Vaza Barris, perenemente seco neste
trecho, atravessa-o, feito fenda no solo, tortuoso e longo.
Pior que o sertão dos Gerais mineiros, detalhados tão bem pela descrição maravilhosa de
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, onde o viajante por vezes perde o rumo na
uniformidade das chapadas, também no Raso da Catarina o viajante, mesmo o sertanejo mais
experiente, se confunde, sem rumo, desnorteado pela uniformidade das planícies: as paisagens
idênticas sucedem-se, uniformes e melancólicas mostrando os mais selvagens modelos, enegrecidos
ante uma flora aterradora. A caatinga do Raso da Catarina, nessa altura, assume um aspecto
completamente diferente das demais. É lá que se encontra a melhor caracterização da flora
sertaneja, segundo os vários cambiantes que apresenta acarretando denominações diversas, talvez a
definisse mais acertadamente como a paragem clássica das catanduvas, um mato ruim e espinhento
que se derrama, extenso, para leste em direção ao Sergipe. A toda essa flora bravia vem se juntar o
xiquexique, a palmatória, o rabo-de-raposa, os mandacarus, os caroás, as cabeça-de-frade, o
calumbi, o cansação, a favela, a quixaba, a jurema, a macambira e as respeitabilíssimas urtigas.
Nesse trecho catingueiro ainda estava presente o temido cunanã - uma espécie de cipó com aspecto
arbóreo, imitando uma planta ornamental, cujas folhas são cilíndricas. A poucos centímetros do
chão o tronco divide-se em muitos galhos que se multiplicam numa profusão admirável, formando
uma enorme copa, que se mantém aérea por seus próprios esforços ou favorecido pelas plantas que
vegetam a seu lado. Estendem-se em ramagens de folhas cilíndricas com oito caneluras e igual
número de filetes em gume e pouco salientes, assemelha-se a um polvo de milhares de tentáculos
flexíveis e elásticos, cobrindo, não raras vezes, centenas de metros quadrados de solo, amarinhando-
se, por entre a esquisita e raquítica vegetação destas paragens, em uma trama impenetrável,
oferecendo resistência inesperada a todos que tentam seguir adiante. A caatinga era, por isto,
infinitamente impenetrável. Aquilo não era lugar para Zé Clemente viver, era o inferno, lugar de

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serpentes, suçuaranas e cangaceiros atrevidos. Para estes, não importava as normas severas das leis.
Importava-lhes a vingança – dente por dente, olho por olho – Naqueles ares pairava o mau cheiro
provocado por inúmeras cabeças degoladas, imoladas a facão pelo bando de Lampião. Às vezes, as
sepulturas expostas à beira da estrada pareciam um castigo; passava-as e repassava-as como a
sombra impertinente de um remorso. O sertão é um esconderijo. Quem lhe rompe as entranhas, ao
divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não tem a quem indagar o crime. Tira
o chapéu, faz uma reverência e passa. Ademais, não havia temer-se a fúria cangaceira. Com certeza
a história de Lampião não viria até um simples molambo como ele. Para os cangaceiros ávidos por
amealhar fortunas, o nosso herói era um parêntesis; um hiato; um vácuo. Não existia. No entanto, os
cangaceiros eram reais, estavam bem ali. O sertanejo podia vê-los e quase ouvi-los. Eram negros,
mulatos, brancos, caboclos e mamelucos. Traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e
multiforme das raças – e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores e maus.
Vistos de longe, aqueles demônios pareciam representar na caatinga o obscuro drama da Idade
Média: sanguinolento, desumano e atrevido; a animalidade primitiva, lentamente expungida pela
civilização, ressurgia ali, inteiriça. Eram os verdadeiros homens das cavernas, mas, ao invés de
lutarem usando como armas o machado de diorito e o arpão de osso, usavam o punhal e a carabina.
As facas que carregavam às cintas relembravam melhor o antigo punhal de sílex lascado.
Vibravam-nas gargantas dos infelizes. Nada tinham a temer. Nem mesmo o juízo remoto de um
apocalipse emergente. No peito de Zé Clemente, ante o deslumbramento daquele grupo, também
aparecia, implacavelmente, além do medo, a revolta; sem atitude, porque o deprimia o assunto. No
entanto, eles continuavam lá, brutalmente violentos em sua luta de vingança e de protesto, sombrios
como uma nódoa. Como eles, o retirante não pensava rasgar um caminho à fuga. Empenhava-se,
sim, à conquista de alguma cacimba. Enquanto o grupo de cangaceiros se batia com o grosso da
tropa volante, ele, sem armas, avançava, cautelosamente, caatinga à fora, abeirando-se das esparsas
e raras cacimbas espalhadas pelo sertão, continuando a viagem, arcado sob o peso da preciosa vida.
Esta empresa, a princípio apenas difícil, foi-se tornando pouco a pouco insustentável: poucas placas
líquidas rebrilhando ao luar ou joeirando, nas trevas, o brilho fugaz das estrelas. De sorte que, nos
dias em que a sede era-lhe mais angustiante, ele só encontrava pela frente o solo varrido pelas
insolações. Avançava e caía, às vezes sucessivamente, quando avistava as ipueiras esgotadas,
reduzidas a repugnantes lamaçais. Mas, mesmo assim, tentava sugar-lhe o líquido salobro e impuro,
afrontando-se, cara a cara, com os insetos, larvas e bactérias endêmicas.
Apanhou um pedaço de pau, fez dele um bastão para se apoiar e com a claridade do sol orientou-
se melhor. De repente, como uma miragem, viu uma veredinha à sua direita. Foi cambaleando para
ela, onde devia ter gente. Já não sentia fome e sede agora, a vereda era como se fosse o maná dos
deuses. Ganhou-a, pensando que não ia agüentar caminhar mais uma légua. E se morresse? Não.
Devia ter gente no final daquele caminho. Se tivesse, não ia morrer. Mais uma curva, e o milagre:
uma casa. Riu. Gargalhou. A risada foi tão alta que parecia a demência de um louco. Correu,
apressando os passos. Logo na entrada do quintal uma cisterna. Puxou o balde e bebeu em grandes
goles. Lavou o rosto, respingando gotas pelo corpo ferido. Água. Água... Gritou mais uma vez:
Água. Água... Mas não apareceu alma viva. A casa estava vazia. Então, deitou-se à beira da cisterna
e descansou feliz. Passou algum tempo deitado, matutando. Que fazer? Para onde ir? O pior é que
agora estava sentindo mais fome. Saciada a sede, o sertanejo retomou a caminhada. Depois de andar
umas três léguas além da casa abandonada, calcando a areia da estradinha deserta, até uma
lagoazinha seca, onde havia restos de água. Dali por diante caminhou no deserto com novas paradas
na Várzea da Ema, Caraibinhas, Mari, Mucambo, Rancharia e outros pousos solitários. Todas essas
localidades estavam completamente abandonadas, denunciando que seus habitantes, prenunciando
uma seca ainda maior, haviam partido, tangendo também seus rebanhos de cabras, os únicos

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animais afeitos àquele clima e àquele solo.
Depois de ter passado pelos sertões de Tepipã, Taxarril, Joé, Barriguda e Canabrava, finalmente
o nosso herói atravessou a divisa do Estado do Sergipe. Trôpego e desnutrido, caiu. Levantou-se e
continuou pela estrada. Mais uma légua de caminhada penitente e avistou um vilarejo praticamente
deserto. Então, ao virar uma esquina, viu um grupo de homens, mulheres e crianças. Estavam
alegres, cantavam e riam. Chegou perto da praça que o separava da multidão. Espiou. Lá embaixo
estavam eles, alegres e contentes. Comiam carne de bode assado, bebiam, cantavam e conversavam.
O cheiro da comida aumentou-lhe a fome. Sentiu sede novamente. Caminhou devagar em direção à
festa. Ia devagar. De repente riu:
- Eles vão me dar comida!
Ele chegou exausto no povoado de Riachão. Este arraial – quatro ruas desembocando numa
praça irregular, onde se encontrava a igreja – era o ponto mais animado que o sertanejo encontrou
depois de Juazeiro. Como a maioria dos lugarejos erguidos na caatinga, Riachão era uma espécie de
transição entre maloca e aldeia: agrupamento desgracioso de uma centena de casas mal feitas e
palhoças pobres, de aspecto deprimido e tristonho.
Atravessava-o uma estrada que, partindo de Geremoabo, seguia em direção à Itabaiana e, dali,
diretamente para Aracaju a capital sergipana. Riachão, apesar da aparência pobre, era o único local
da região onde, nos finais de semana, se reuniam grande número de sertanejos levando suas
mercadorias para as vender ou trocar na feira. Ali também chegavam por ocasião das festas, como a
que estava acontecendo naquele momento. Nada mais conheciam. Para eles, Aracaju, Rio de
Janeiro, Salvador, Jerusalém, Roma e Jericó, nomes de cidades que ouviram o padre pronunciar em
seu sermão, eram muito próximas umas das outras, perto do mar e muito afastadas do sertão. É o
fim do mundo, diziam, da civilização que temiam e evitavam. - Só São Paulo, cidade santa e bonita,
é abençoada pelo padim Ciço, afirmavam, recomendando: Quem quisé ficá rico é só ir pro Sun
Palo, é o que todo sertanejo sabido faz. - garantiam.
Feirantes ou não, os sertanejos chegavam aos grupos em Riachão. Matutas recatadas, velhas
desdentadas carregando as sandálias nas mãos, comadres faladeiras e fazendeiros com revólveres à
cinta, intrujados das melhores vestes; pasmos ante as prateleiras de duas ou três casas de negócio, e
contemplando no barracão da feira, na praça, os produtos de uma indústria pobre em que apareciam,
como valiosos espécimes, couros curtidos, sandálias e redes de caroá. Nos dias de semana, aberta
uma ou outra venda, deserta a praça, Riachão também figurava como um local abandonado. E foi
num destes dias calmos e pachorrentos, não fazia muito tempo ainda, que a população recolhida,
aguardando a passagem das horas ardentes, despertou surpreendida pela vibração da melodia
Mulher Rendeira entoada pelas vozes de muitos homens e mulheres, desafinados, mas em alto e
bom som. Eram os cangaceiros. Lampião, comandando o bando, tinha entrado pela rua em
continuação à estrada e feito alto na praça da igreja. Entre curiosos e tímidos os habitantes
atentavam para os cangaceiros – poeirentos, firmes nas montarias, tendo nos ombros os fuzis em
cujas bandoleiras fulguravam moedas de prata e ouro, encimadas por fitas multicoloridas – como se
vissem o próprio demo comandando um exército de capetas. Ensarilhadas as armas, o bando tinha
apeado e se acotoado no barracão que servia à feira. Lampião ordenou que se fizesse um círculo de
vigilância: postaram-se sentinelas às saídas da cidade e o grande cangaceiro nomeou o pessoal das
rondas. Feito praça de guerra, o vilarejo obscuro era, entretanto, uma escala transitória para
Lampião. O bando partiu no dia seguinte, sem que houvesse agredido uma só pessoa, sem que
houvesse conversado com qualquer habitante. Mas, quando chegou, operou-se um acidente só
explicado no dia seguinte: a população, com medo dos cangaceiros, quase na totalidade fugira.
Deixara as casas, sem ser percebida, em grupos deslizando, fugitivos por entre as sentinelas
avançadas, indo se esconder na caatinga. Na repentina fuga lá se foram os doentes, famílias inteiras,

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ao acaso, pela noite adentro, espalhando-se, espavoridos, caatinga à fora. Os cangaceiros não
ligaram, porém, grande importância ao caso. Lampião, alisando os negros cabelos de Maria Bonita,
só fazia gargalhar da situação, enquanto preparava a rota para continuar a marcha no dia seguinte.
Foi por isto que a população de Riachão ficou assustada com a aparição de Zé Clemente, naquele
domingo festivo: à primeira vista, muitos pensaram que fosse um cangaceiro. Parou assustado como
um cachorro sarnento. Ficou pensando besteiras, observando os desconhecidos, recordando os
lugares por onde andou, os ferimentos do corpo, o meigo sorriso de Celeste e a fome que lhe
devorava as entranhas. Ele bem que merecia um tiquinho de carne, um naquinho que fosse. Tinha
uma nuvem em frente a seus olhos. Era a fome, já passara isso na caatinga. Então, tomando uma
resolução, foi tropeçando ao encontro daquela gente... em busca de comida... em busca de vida... em
busca de salvação... A festa estava animada, haviam tocadores de sanfonas e violões. A meninada
corria, jogava bola, trepava nos bancos da praça e gritava, quando não estava comendo. Os mais
velhos bebiam cachaça, tagarelavam e abraçavam os compadres. Eram umas cinqüenta pessoas e,
entre eles, um padre todo vestido de preto. As mulheres mais idosas rezavam terços na igreja,
enquanto as mais jovens eram apertadas pelos namorados, nos esconderijos que só os jovens sabem
encontrar. Estavam, todos eles, cada um a sua maneira, comemorando os batizados que o padre
vindo de Aracaju acabara de realizar. Esfarrapado, sujo, feridas sangrando, cabelos compridos, mais
parecendo um bicho, Zé Clemente chegara ao arraial na mais extrema penúria. Quando se
aproximou do grupo, assustou a mulherada e fez com que as crianças corressem em desabalada
carreira. Andou meio trôpego, cambaleando como um bêbado. Estava extenuado, imundo e mal
cheiroso. Os homens se colocaram de pé para melhor o observar. Ele parou e cumprimentou:
- B'as tardes...
Os homens examinaram o forasteiro com os olhos esbugalhados, não querendo acreditar no que
viam. As crianças continuavam correndo assustadas. Só então notou que algumas mulheres corriam
para o fundo da igreja, gritando:
- Cangaceiro!
- Oxente, gente... - balbuciou o retirante. Eu sô de paiz... tô sujo, mas num sô bicho... Num sô
cangaceiro... só tô cum fome.
Um dos homens aproximou-se trazendo uma cuia com carne assada, farinha e feijão-de-corda.
Depois foi buscar outra cuia com água e disse:
- Senta aí, conterrâneo. Come e espera um pouco.
- Esperá?
- Sim. O padre qué falá com tu.
Não havia nada no mundo de que Zé Clemente tivesse tanta admiração e respeito como padres.
E, a favor de sua expectativa, padre Olívio era uma pessoa caridosa.
- Mas que horror. - disse o padre ao fazendeiro que o acompanhava. Este coitado está mais pra lá
do que pra cá... mal se agüenta em pé.
- É verdade. - concordou o fazendeiro, fazendo uma pergunta direta ao retirante: - Tu é bandido,
tá fugindo das puliça?
- Bandido? Não, seu coroné. Tô fugindo, sim, mas da seca e da fome...
- Está vindo de onde? - interrompeu o padre.
- Mirandiba, Pernambuco, cuma umas oito sumanas daqui...
- Deus seja louvado. - continuou o padre. - Tu veio só pela caatinga?
- É. Eu mais meu tio, que enterrei pulos caminhos...
- É o Brasil, minha gente... terra de tanta fartura...
Seu Osório, o fazendeiro escutava o padre falar, enquanto reparava no retirante faminto que
comia em grandes bocados. Seu rosto estampava piedade. Voltou-se para um seu agregado e

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ordenou:
- Manuel, dê-lhe mais de comer e beber. Depois leva ele pra fazenda, arruma uma troca de roupa
e um lugar para dormir. Quando estiver bom, se quiser, pode começar a trabalhar no eito.
Zé Clemente já ia saindo em companhia do agregado, quando a filha do fazendeiro, uma
moreninha de cabelos curtinhos, dentes perfeitos e um largo sorriso franco, aparentando uns vinte
anos de idade, aproximou-se e lhe deu um pequeno lenço branco para drenar o sangue que lhe
escorria do ferimento do rosto. Ele, olhando-a de esgueiro, pensou: - Que coisinha mais linda, essa
menina. Mas não é pro meu bico - recriminou-se, enquanto guardava o lenço num bolso, evitando
manchá-lo de sangue ou de qualquer outra coisa que o maculasse. Era o primeiro objeto de valor
que ganhava em toda a sua vida.

FAZENDA RIACHÃO

J á na Fazenda Riachão - que tinha o mesmo nome da cidadezinha -, o agregado tratou dos
ferimentos de Zé Clemente com muito cuidado, pois não havia médico na localidade e o
farmacêutico estava viajando. O jeito era fazer meizinhas caseiras mesmo. O rosto do retirante
inchara com os ferimentos. Estava disforme e avermelhado como um jerimum maduro. Botou a
pomada de ervas em cima das feridas e aguardou o resultado.
- Obrigado, meu velho... Vosmicê é muito bom...
- Vai ficá bom num instante. Esse remédio é tiro e queda.
- Quando tiver bom vô me botá pra Aracaju, meu tio... Meu primo vai arrumá um emprego de
puliça pra eu, num sabe? Se um dia pudé lhe pago, meu velho.
- A mim tu não deve nada, que sô mandado. Agradeça a seu Osório que é o mió patrão que já
tive. Adispois, tu fica na minha casa por uns tempos, inté sará.
Zé Clemente ficou vários dias se recuperando da viagem e esperando a cicatrização dos
ferimentos. Comia, bebia e dormia na pequena casa de taipa do velho Manuel, que até então morava
sozinho. Preocupava-se com essa situação, não sabia como ia pagar, porém o velho o animava.
- Tu precisa de paciência, cabra, o que é do homem o bicho num come. O teu dia já vai chegá.
Num s'avexe. Dia desses tu já vai tá bom mode trabaiá no eito, que o serviço tá muito.
Uma tarde, o fazendeiro saindo de sua casa, que ficava a uns cem metros da casa do agregado,
apareceu e foi logo brincando:
- E, então, home de Deus... dessa tu escapô, heim? Diz que erva ruim não morre à toa...
Zé Clemente sorriu:
- Pois é coroné, cuma o sinhô vê ainda tenho muito tutano pra gastá. Um mais fraco, cuma o meu
tio, tinha se estrebuchado pulos caminhos.
- Tu s'inganou-se, Pernambuco, que eu num sô coroné. Tenho apenas um pedaço de terra
conseguida com muito trabáio. Coroné, aqui na região só tem um, o coroné Quincas, meu compadre
e home muito valente. Se tudo corrê bem, pros finá das colheita de argodão o filho dele, Zé Luiz,
casa com Valdelice, a única filha que tenho. Vai sê um festão danado. Se tu ainda estivé por aqui, tá
convidado.
Zé Clemente sorriu ante a simplicidade daquele homem. Um sertanejo de bom coração, tinha-o
acolhido em sua propriedade, matado-lhe a fome e curado seus ferimentos. Era um homem simples,
sim, pois mal o conheceu já foi se abrindo em suas intimidades. Uma faísca de desânimo,
entretanto, passou por sua cabeça quando soube do casamento da filha dele. Recordava-se do seu
sorriso bonito no dia dos batizados, quando ela lhe dera aquele lenço que guardava como uma
verdadeira relíquia. Voltou a realidade, quando seu Osório perguntou:
- Conta da tua viagem, Pernambuco. Cuma foi?

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- Eu vim de um lugá, seu Osório, onde o povo tá morreno e as plantação s'acabando. É uma
judiaria danada, coisa ruim de vê. Entonces bati alpercata, eu mais meu tio que ficou pulos
caminho, e vi coisa de arrepiá. Se num fosse vosmecê tê me acudido, o seu Manuel tratado dos
ferimento, essa hora já tinha desocupado o mundo. Num sei nem cuma agradecê.
- Tem que agradecê, não. Tô precisado de gente forte cuma tu mode trabaiá nos roçado de
argodão. Se tu quisé, pode começá. Vai tê cama, dicumê e mais dez mil réis por sumana. Aceita?
- Num carecia se incomodá tanto com um bicho do mato cuma eu. Claro que quero, só pula
comida eu já ficava...
A gostosa gargalhada que o velho Manuel soltou, animou o retirante a continuar com a
brincadeira:
- E ainda tem deiz mil réis pur sumana? Oxente, home, tô rico.

DIAS DEPOIS

E nxada no ombro, facão na cintura, chapéu de couro na cabeça, o novo agregado da Fazenda
Riachão se transformou num dos melhores trabalhadores do eito, limpando o terreno,
queimando a galhada seca, arando o solo e preparando o roçado para o plantio do algodão,
do milho, da fava e do feijão. Derrubadas as árvores da caatinga; encoiravadas, depois de secos os
ramos, alastrava-lhes por cima, crepitando, as caiçaras, em nuvens de fumo tangidas pelo vento. O
solo se metaforseando em cinzas, onde antes fora a caatinga impenetrável.
Valdelice contemplou o rosto nas águas do pequeno açude que ficava nos fundos da propriedade.
Depois de encher a lata d'água, inclinou-se mais para o espelho de água e examinou-se
cuidadosamente. Sua pele morena era perfeita e lisinha. Seus olhos, amendoados e castanhos, eram
límpidos como a água do açude. Não havia rugas. Era um rosto de criança, modelado
delicadamente, com ar de inocência. Sorriu, e o rosto refletido pela água retribui-lhe o sorriso. Era
um sorriso aberto, profundo, contagiante, com um quê de malícia. Meteu a mão entre os seios,
apanhou um bilhete e releu: - "Minha querida Val. Infelizmente o nosso noivado terminou. Eu não
tinha contado, mas na Faculdade de Direito em que estou estudando no Recife arrumei namorada,
acabamos morando juntos e agora ela está grávida de sete meses. É uma pena que tudo tenha
acabado assim, mas acho que você também sabia que o nosso noivado não era coisa séria, não
sabia? - Adeus. Zé Luiz.”.
Rasgou o bilhete e seus sentimentalismos baratos. Zé Luiz era o filho único do coronel Quincas.
A família dele, a mais rica da região, possuía muitas propriedades. Era divertido e romântico, mas ia
se casar com a filha de um rico comerciante do Recife. Valdelice, filha de um pequeno agricultor,
que se danasse. Era o terceiro em seis anos. Tudo começou com o Joaquinzinho, um comerciário do
Riachão. Ela tinha pouco mais de 15 anos. Fugiram para Itabaiana e ficaram hospedados numa
pousada de segunda classe por uns vinte dias, até o dinheiro de ele acabar. Foi então que seu
príncipe encantado desapareceu. Valdelice, desonrada, sem dinheiro e com medo de voltar para
casa, começou a pedir carona para motoristas de caminhão, fazer sexo com eles dentro das cabinas e
peregrinar por muitas cidades. Assim conheceu Augusto na cidade de Campina Grande, na Paraíba,
organizador de festas de São João com o dinheiro do programa Fome Zero. Largou-o e voltou para
casa dos pais depois que ele a ofereceu a um amigo, como quem oferece um copo de cachaça.
Desde o começo sabia que não havia futuro naquilo. Era culpa de quem que os casos tivessem
chegado ao fim? As razões aparentes - o amigo de Augusto, a falta de dinheiro de Joaquinzinho e a
namorada grávida de Zé Luiz - eram meras desculpas. A real causa, era sempre a mesma: ela
sempre quis conhecer novas aventuras, nunca se contentou com um homem só. Ela era a culpada de
tudo, porém... Considerou a possibilidade de um novo caso: Zé Clemente poderia ser um bom

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amante se não fosse tão idiota. Ela bem poderia seduzi-lo e até amigar com ele, quem sabe... Ter
filhos, uma casinha em Riachão... Por um bom tempo poderiam viver felizes, ele trabalhando no
eito, ela ajudando na economia doméstica com o dinheiro das costuras que sabia fazer. Não. Veria o
seu corpo ir engordando lentamente, uma prole de filhos, a miséria chegando... Então seria a vez
dela largar o marido, se mandar para uma cidade qualquer, acomodar-se num cabaré, abrir bem as
pernas, sacudir as nádegas na frente de uma infinidade de homens... Não. Queria o sertanejo idiota
de verdade. Ele ia ser o seu quarto macho, o quinto ainda não estava nos seus prognósticos.
Olhou novamente para o espelho d'água e pensou, os olhos muito além, como se visualizassem
Zé Clemente fazendo amor com ela bem ali, na beira do açude... Ela adoraria fazer amor com ele.
Era estúpido, analfabeto e rude, mas era novo e bonito - a intimidade, os toques, as carícias - e o
faria sentir-se como um rei. Depois ele deixaria o açude sorrateiramente e iria para a casinha do
velho Manuel, pensado no acontecido, mas voltaria no dia seguinte. Deixariam de ir juntos para o
pátio da fazenda - Arriscando demais - diria ele. - Seu pai, sua mãe ou seu Manuel podem ver. Mas
passaria cada vez mais tempo no açude. Ela teria um acesso de fúria se ele chegasse atrasado.
Ficaria naquela zanga danada se ele ousasse mencionar o nome de alguma sirigaita que houvesse
deixado em Mirandiba. Zé Clemente se irritaria, mas seria incapaz de deixá-la, pois, a essa altura
estaria louco por seus beijos chorados, faminto por seu corpo perfeito. Ela o faria sentir-se um
garanhão na grama do açude.
Mirou-se outra vez no espelho d'água. Seu rosto agora estava triste, e então falou de si para si,
voltando à realidade: - Sou bela mas não sou uma jovem da sociedade, sou apenas uma sertaneja
miserável do Riachão. Não sou uma moça pura, uma donzela, estou mais próximo de uma
prostituta, de uma ninfomaníaca. Não sou moça de família, sou uma quenga. Meu nome já não é
Valdelice. É Val!
Na cabana de taipa Zé Clemente ficou morando com o velho Manuel, empregado antigo e
homem de confiança de Seu Osório. Viúvo, há muito tempo a falecida tinha passado desta pra
melhor. O velho falava muito dela e dos filhos que tinham arribado pra São Paulo. Isso quando
falava, porque geralmente ficava calado, ouvindo Zé Clemente contar da sua viagem pela caatinga.
Tinha colado, com muito cuidado, uma fotografia do Padre Cícero na parede do quarto. Antes de
dormir juntava os joelhos no chão e rezava ao padre, pedindo proteção. Sob o colchão de capim
guardava o lenço branco, bordado com a letra V, que lhe dera Valdelice para conter o sangue dos
ferimentos. Altas horas da noite abraçava-se a ele de tal maneira que dava a impressão de estar
dormindo com ela. Quando o silêncio baixava sobre tudo, quando não se ouvia mais o som das
cigarras e Manuel já estava roncando, o fogão apagado, Zé pegava o lencinho e cobria o sexo com
ele. As mãos rápidas corriam pelo membro intumescido e o esperma se espalhava entre os dedos.
Na sua imaginação ele despia Valdelice devagarzinho. Pouco lhe importava que a cama rangesse e
que o velho Manuel se movesse. Não. Não era a mão calosa que ele tinha em cima do sexo. Era a
vagina de Valdelice inserida naquele lenço. Que o velho acordasse e resmungasse se quisesse,
porque ele não estava fazendo nada errado, estava amando uma mulher bonita, de seios duros e de
ventre redondo. A sua mão era Valdelice. Saciado, deitava a cabeça no travesseiro e dormia.
Dormia o sono dos justos, com direito a sonho colorido, o sonho das pessoas apaixonadas, o sonho
da utopia inatingível. Então, o sonho virava pesadelo: o sertanejo levantava-se devagarzinho para
não acordar o companheiro, abria a porta dos fundos e ia fumar um cismarento cigarro de palha no
quintal, observando as estrelas, a lua, os fiapos de nuvens que corriam no céu, recordando-se da
viagem que fizera pela caatinga selvagem, pensando nos seus entes queridos que deixara em
Mirandiba, tentando tirar a imagem voluptuosa da filha do patrão de seus pensamentos.
O umbuzeiro lançava uma suave sombra ao sol causticante da tarde sertaneja. À sombra de sua
copa, Zé Clemente espiou Valdelice que passava, lata d'água na cabeça. Quando ela desapareceu

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casa adentro, ele ficou olhando o sol que brilhava sobre as plantações de algodão. Naquela tarde ele
deixou a enxada sobre a terra e ficou imaginando como seriam os seios dela fora do vestido. Os
seios dela são duros e carnudos... as ancas redondas... tem uns olhos grandes, amendoados. Quando
volta do açude, o calor agita seu peito e os seios quase pulam fora do vestido. Zé tentou espiar
novamente para Valdelice que voltava ao açude, mas ela desaparece veredinha abaixo. O açude não
era um grande manancial, mas alimentado por uns dois ou três veios de água, formava uma pequena
lagoa de onde emanava líquido suficiente até para um refrescante banho noturno. Entre o umbuzeiro
e o açude, a casa de Seu Osório; à esquerda, a casa do velho Manuel; e, à direita, mais alguns
casebres de taipa.
Sapos coaxavam ao cair da tarde. Seu Osório e Valdelice estavam sentados em volta de uma
mesa redonda situada na cozinha. Caras debruçadas sobre os pratos, Dona Alice ia servindo:
farinha, carne-de-sol temperada com manteiga de garrafa, cuscuz, farofa de puba e xerém. Pai e
filha comiam aos bocadinhos, quase não conversavam. Osório era um homem simples, porém
enérgico. Era de uma estatura atarracada, cabeça grande, pés empoeirados nas alpercatas de couro
cru. Dona Alice também era uma sertaneja forte, prendada na arte de forno e fogão, a sua cozinha
sempre tinha um cheiro delicioso. Costureira de mão cheia, era Valdelice quem remendava e
bordava as roupas do pai e da mãe.
Na casinha de taipa, o velho Manuel e Zé Clemente também consumiam a diária ração de puba,
requeijão e mungunzá, tudo preparado pelas experientes mãos do ancião. Homem de confiança do
fazendeiro, muito mais que um agregado, muito mais que um amigo, o velho era para Osório, sua
esposa e filha como se fosse um pai. Com algum conhecimento pedagógico, foi ele que ensinou as
primeiras letras à Valdelice. Homem de muitas artes, curava bicheira com reza brava. Também era
um grande benzedor em rastro de criação desgarrada. Doença em família? Oxente! Era ele que
curava: conhecedor de tudo quanto é casca de pau, raiz e ervas. Com outras rezas, afastava
maldição de gente, do mesmíssimo modo que arredava homem casado dos chamegos de mulé
donzela. Diziam até que se o açude ainda vertia água, era pelas mandingas que conhecia.
Exuberantemente fértil a fauna e maravilhosamente extraordinária a flora da fazenda Riachão.
Ao contrário das áreas ressequidas do Raso da Catarina, que positivamente era um deserto, em
pleno período das secas a fazenda tinha animais robustos e sadios, enquanto as árvores que
circundavam a sede da propriedade permaneciam verdinhas. Os pomares e as plantações de cereais,
ambos muito bem cuidados, mais pareciam jardins encravados em plena caatinga sergipana. Tudo
isso se devia ao trabalho consciente de seu Osório e seus agregados. Se bem que, como as árvores e
os animais, eles também lutassem contra a natureza agressiva. Também era certo que eles tinham
como armas as reservas de água armazenadas nos dias de abastança. E, neste combate feroz,
anônimo, terrivelmente obscuro, a natureza não conseguia derrotar aqueles homens de todo. Com o
bom trato dado à terra, amparava-os muito além das horas de desesperança que acompanham o
esgotamento das cacimbas sertanejas. Por outro lado, o sertão sergipano, bem menos agressivo que
seus congêneres nordestinos, ao sobreviver com as chuvas mais constantes fazia a terra transmudar-
se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação do Raso da Catarina, sua natural
continuidade. Com a quase perenidade das chuvas, seus vales, baixios e recôncavos secos faziam-se
rios. Insulavam-se os cômoros escavados, repentinamente verdejantes.
Quando Zé Clemente chegou, já na entrada da fazenda encontrou uma vegetação recamada de
flores, frutos e aves silvestres. Os grotões cobertos de grama verde disfarçavam a dureza das
barrancas e do arredondado de suas colinas. As chapadas, entremeadas de vales, se ligavam em
curvas suaves aos tabuleiros mais altos. Amena era a temperatura local, anulando a secura dos ares.
Belos tons na paisagem: a transparência do espaço salientando as linhas mais ligeiras, em todas as
variantes de forma e de cor. Aos olhos do retirante dilatavam-se os horizontes da fazenda. O

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firmamento sem o característico azul carregado dos desertos, alteiava-se mais alvo, ante o expandir
revivescente da terra. E ao transpor a porteira principal da propriedade o viajante, pasmo, não vu
mais o deserto nordestino. Sobre o solo, que as gramíneas atapetavam, ressurgia triunfalmente a
flora tropical. Bem diferente das regiões que conhecia, o sertão sergipano era a paradisíaca
apoteose repleta de árvores coloridas. Os mulungus rotundos, à borda do pequeno açude cheio,
estadeiavam a púrpura das largas flores avermelhadas; as Caraíbas e baraúnas altas refrondesciam;
ramalhavam ressoantes, os marizeiros esgalhados; assomavam vivazes, amortecendo as truncaturas
das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais
virentes, adensavam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo dos ouricurís. Ondeavam,
imóveis, avivando a paisagem, acamando-se nos planos, arredondando as encostas, as moitas
floridas do alecrim-do-tabuleiro, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumavam os ares,
filtrando-os nas frondes enfolhadas, e – dominando a revivescência geral – não já pela altura senão
pelo gracioso do porte, os umbuzeiros alevantavam-se dois metros sobre o chão, irradiantes em
círculo, os galhos numerosos. A fazenda, enfim, era um vale fértil, um imenso pomar, cujos frutos
lembravam as maçãs do Jardim do Éden.
Da casinha de taipa, o novo morador recordava a vida torturante na sua caatinga pernambucana.
Lembrava-se da atmosfera asfixiante, do empedramento do solo, da nudez da flora e das ocasiões
em que as estiagens se ligavam sem a intermitência das chuvas – a agonia assustadora das secas. A
cabeça do retirante comprazia-se em um jogo de antíteses. Seu pensamento impunha em uma
divisão especial naquele quadro tão díspar, quase mediadora entre os vales férteis e as regiões mais
áridas. Da extrema secura à exuberância extrema... Sucediam-se manhãs sem par, em que o irradiar
do levante incendiado retingia a púrpura das eritrinas e destacava melhor, engrinaldando as
umburanas de casca arroxeada, os festões multicoloridos das begônias. Refrescavam-se os ares
numa palpitação de asas, célebres, ruflando. Milhares eram as borboletas e pássaros de coloração
mil, num tumultuar de desencontrados vôos. Passavam em bandos as pombas de arribação: aves
selvagens que remigram; rolavam as turbulências das maritacas estridentes; enquanto feliz,
deslembrado de mágoas, seguia Zé Clemente para o roçado, entoando a melodia Asa Branca, sua
cantiga predileta.
Assim passaram a ser os dias do Homem de Mirandiba. Quando chegava a tarde, descansava à
sombra do umbuzeiro, a árvore sagrada do sertão, sócia delicada das horas felizes do sertanejo,
representando o mais refrigerante exemplo de adaptação da flora catingueira. Com talhe vigoroso, o
umbuzeiro desafia as secas duradouras, desenvolvendo-se até em terrenos miseráveis, graças a água
que armazena nas estações benéficas, reservadas nas inúmeras cabaças das suas raízes. E reparte-a
com o homem. Se não existisse o umbuzeiro, Zé Clemente não teria sobrevivido durante a sua
viagem. O umbu foi para o retirante o mesmo que o Maná caído dos céus o foi para os judeus. Ao
atravessar a caatinga espinhenta, o umbu o alimentou e lhe mitigou a sede. Abriu-lhe o seio
acariciador e amigo. Seus ramos recurvos e entrelaçados parece que foram feitos de propósito para
os sertanejos se deliciarem com a sua sombra. E, agora, já fora do perigo, Zé Clemente ainda lhe
colhe os frutos de sabor acre-adocicado para o preparo de umbuzada tradicional. Sentado sob a sua
ramagem, Zé Clemente, memorizando a sua infância no Pernambuco, lembrava-se do suculento
refrigerante que sua mãe preparava com a jurema: beberagem que revigorava o sertanejo depois de
longas caminhadas, feito um filtro mágico. Como na sua Mirandiba distante, também ali no Sergipe
as juremas derramavam-se em moitas impenetráveis; refrondavam também os marizeiros raros –
misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas. E, na época da magrém (termo sertanejo
para denominar o período entre o inverno e a seca), lhes porejavam na casca ressequida dos troncos
algumas gotas d'água; reverdeciam os angicos; lourejavam os juás em moitas; as baraúnas de flores
em cachos e os ariticuns à ourela dos banhados... mas, destacando-se, esparsos pelas chapadas, ou

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no bolear dos cerros, os umbuzeiros, atraiam melhor o olhar de Zé Clemente. Era a nota mais feliz
daquele cenário deslumbrante.
Já há algum tempo trabalhando na fazenda Riachão e morando na companhia do velho Manuel,
de quem se tornara grande amigo, Zé Clemente demorava-se observando o açude, tomando o fresco
da noite, espiando o profundo das águas. Tudo ali era novidade e quase mistério; daí o silêncio
apenas cortado por um ou outro lampejo de admiração. Raros eram os diálogos com outras pessoas.
Só mesmo as falas com o velho Manuel. Sem ter com quem conversar, não se fartava de admirar a
cascatinha do açude, as águas rolando sem cansaço, aquele barulhinho contínuo que lhe era tão doce
ao coração e à alma. E foi durante um desses devaneios que Zé Clemente percebeu a aproximação
de Valdelice. Ela se curvou para encher a lata e pelo decote do vestido ele viu os seios querendo
saltar para fora. Atordoado, virou o olhar e ficou observando o reflexo do sol sobre as águas. Ela
comentou:
- É fiozinho de nadica d'água, não é? E fica levando os pensamentos da gente para muito longe.
- Pensamentos?
- É. Já se viu essa natureza? É muito bonita, tu não acha?
Meio acanhado, ele respondeu tentando fazer um elogio:
- Tu é muito mais bonita que ela. Mais bonita que a natureza toda!
- Isso é conversa de homem. - retrucou a moça.
- Adiscurpe, sinhá dona, num queria ofendê.
Semanas se passaram.
A tarde já tinha caído quando Valdelice chegou ao açude. Encheu a lata e já ia saindo quando
ouviu alguém perguntar:
- Precisa de ajuda?
Ele estava sentado numa pedra, olhando a água da cascatinha que rolava macia.
- Deixa que eu leve a lata.
- Carece não, que tô acostumada. E depois, numa pergunta direta: - Diz que vosmecê vai se botá
pro Aracaju, é deveras?
- Acuma soube?
- Foi Seu Manuel que disse... Tu tá nas vontade de assentá praça nas puliça, num é?
- É.
- Me leva mais tu?
Zé Clemente levou um susto, a pergunta direta o tinha pegado desprevenido. Então, abaixando a
cabeça como alguém que é culpado de algum crime, respondeu mastigando as palavras:
- Endoideceu mulé? Tu ia largá pai e mãe, o conforto todo que tem mode um bicho do mato
cuma eu?
Ela o olhava com um sorriso malicioso nos lábios:
- Carecia se zangá não, pode ficá descansado, tava só jogando prosa fora.
Depois de dizer isso, deu uma olhadela de esguelha para o retirante, abriu um pouco mais o
decote do vestido, sorriu zombeteiramente, colocou a lata d'água na cabeça e saiu rebolando as
ancas. Enquanto ela subia a pequena ladeira, ele a acompanhava com o olhar, o coração doendo no
peito.
Tinha terminado o serviço diário. Era um tarde morna de sábado. A noite começava a cair.
Dentro do roçado escurecera. Olhando em volta para ver se não tinha alguma peçonhenta, Zé
Clemente ouviu o canto do sabiá e os pios dos nambus se aninhando. Uma onda de calor tomou
conta do seu corpo. Então saiu do roçado, atravessou o pátio da fazenda, desceu ao açude, despiu-se
e entrou na água. Sentiu o choque da imersão, mas logo foi tomado por um enorme bem-estar.
Submerso até a altura do peito, deixou-se ficar ouvindo a marulhar das águas entre as pedras e o

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triste cantar das seriemas distantes.
Foi então que escutou a voz dela:
- Tá gostando de se banhá só?
Refazendo-se do susto e mais desajeitado do que o rato sendo observado pelo gato, falou,
enquanto procurava esconder suas vergonhas:
- Pru quê pergunta?
Ela deu uma sonora gargalhada daquela situação e respondeu:
- Nada, não, só mode sabê... Depois, abrindo os botões do vestido, deixando a metade dos seios à
mostra, encarou-o:
- Deixa me banhá mais tu?
Nesse momento ele não se cabia mais de vergonha:
- O que é isso, menina? Onde já se viu moça donzela se banhá mais home nu?
Ela, não lhe dando atenção, despiu-se completamente, colocando as roupas sobre uma pedra.
Não largava o sorriso e ainda fazia um certo dengue, maneando as ancas. Respondeu:
- Apois eu gosto. Gosto muito... Tu não gosta disso? - e alisava as suas coxas roliças.
- Tu tá mexendo cum fogo, sinhá dona. Se eu não fosse home de respeito, ia te mostrá uma
coisa...
De pé na beirada do açude, ela gargalhava da vergonha do sertanejo. Dentes muito alvos, boca
convidativa, mãos na cintura, seios empinados, falou:
- E por que não mostra, tu é baitola?
- Baitola é a peste, dona Valdelice. Eu sou é muito macho.
- Não me chama de dona, nem de Valdelice, que não gosto desse nome. Me chama de Val. É
mais bonitinho, num é?
- Tu tá mangando d’eu. Vô acabá te mostrando...
- Isso mesmo, taludão, mostra... Mostra tudinho pra tua Valzinha e venha se deitá na grama mais
eu.
- Não!
- Oxente, home, tu tombem tá nas vontade, num tá? Apois entonces, num fique aí cum essa cara
de besta. Vem. Sei que tu tombém tá precisado.
- Vô não. Não, que num quero. Sô home que sabe arrespeitá as virgindade das mulé donzela.
Então ela mexeu com os brios do sertanejo, atacando o seu lado machista:
- Tá bestando cabra frouxo? Pensa que eu haveria de acreditá nessas falsidades? Apenas tô te
chamando pra fazê amor mais eu, agora se tu num é chegado em mulé, o que se há de fazê? -
enquanto falava, simulava vestir as roupas.
Ofendido na sua condição de cabra macho, Zé Clemente quase gritou:
- Num sô frouxo não, vô te mostrá que num sô!
- Entonces, venha...
Sem acreditar no que estava acontecendo Zé Clemente quase desmaiou quando ela, rebolando as
ancas, os seios como dois frutos maduros esperando o momento de serem chupados, entrou na água
agarrando-o pela cintura, lábios sedentos de amor entrando na boca dele. Era muito para a cabeça
do retirante. Por isso ficou estático, indeciso e trêmulo, ouvindo a voz macia e dengosa dela que
chamava:
- Zezinho, meu amor... Venha... Vamos nos deitar na grama...
Então, como que hipnotizado, ele segurou a mão da moça e saiu com ela da água em direção a
um moita de grama macia. Depois, segurando-a pela cintura, girou até que ela ficou de frente para
ele, pernas muito abertas.
Ele, deitando-se em cima dela, mordiscava-lhe os mamilos dos seios. Ela, mordendo-lhe o rosto,

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sorria e murmurava palavras desconexas. Em seu delírio, o sertanejo não ouvia nada, não via mais
nada a não ser aquela boca vermelha, aqueles seios durinhos que estavam cutucando seu peito.
Apertou mais o abraço e a sua boca procurou ávida a boca de Val. Ela, ajeitando-se melhor, fez com
que ele entrasse entre as suas coxas, recomendando:
- Fica aqui no meu quentinho, não sai de dentro de mim... Ai, amor...
Tão logo acabara de falar, percebera a decepção:
- Tu é pior que galo, Zé! Acho que galo de briga perde pro meu bichinho!
Levantando-se, o homem que veio de Mirandiba acendeu um cigarro e na luz do fósforo viu que
Valdelice chorava. Ficou confuso, procurou o que dizer e murmurou:
- Adiscurpe, Val. Não se importe... Eu tava muito vexado!
- Entendo! Agora vamo s'imbora que é tarde...
A moça vestiu a roupa. Ele ficou espiando o rosto dela. Estava desapontada e triste. Mas mesmo
assim Zé Clemente percebeu um pequeno sorriso de satisfação em seus lábios.
- Isso acontece com qualquer um - comentou a moça, dando um giro no corpo tentando sair da
moita de grama. - Só não esperava que acontecesse comigo. Tu é capão mesmo, por isso não queria
se deitá mais eu. Tu já conhecia mulé, ou ainda era virgem?
Zé pegou-lhe o braço com raiva:
- Peraí, moça... Eu não sou capão, não sinhora... Da próxima veiz vai sê bom... Juro.
A mulher olhou-o decepcionada:
- Hummm... Não me diga...?
Chegando à porta da casa dela, o sertanejo filosofou:
- Tu até parece a lua...
- Por que esse romantismo besta, agora?
- Parece que tá perto, mas tá tão longe da gente...
- Eu estava tão perto de você... Tu é que não deu no couro.
Zé tentou abraçar a cintura da moça, mas ela sentindo o perigo de ser flagrada pelo pai ou pela
mãe, correu para a casa, enquanto Zé Clemente seguiu em direção à casinha de taipa, cabeça baixa,
pensativo.
Assim foi passando o tempo, vez ou outra os dois se encontrando às escondidas. Por outras, Val
deixava a janela do seu quarto aberta e ele chegava sorrateiro, quando seus pais já estavam
dormindo. A única preocupação era o latido de um cãozinho vira-latas no quintal da casa.

BAIXO MERETRÍCIO

P equena cidade, pouco movimento. A tormenta emocional da sociedade era o cabaré da


Rosita, uma baiana gorda, mas até certo ponto bonita. Naquela noite de sábado Zé Clemente
e o velho Manuel estavam no cabaré bebericando umas cervejas. O pernambucano gracejou:
- Será que por baixo daquela roupa toda, Rosita ainda usa mais roupa? Dizem que não usa
calcinha.
- Parece que não usa mesmo - respondeu o velho. - Porque mostra as coxas até em cima quando
senta, e não se vê pano algum, só uma coisa preta parecida com a barba do Lula.
- Que Lula? - Perguntou interessado o pernambucano, pensando tratar-se de algum travesti do
cabaré.
- Não, cabra demente, o Lula é aquele metalúrgico rebelde...
- O sinhô me adiscurpe, mas do lugá donde eu venho...
- Já sei Zé. Mirandiba! Lá num tem rádio, televisão, jornal, telefone. O que tem lá afinal? Tem
mulé?

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- Tem feito a peste. Mas ou é compromissada ou é desdentada, véia e feia feito a gota serena.
Rapariga tem não. É tudo mulé séria!
Riram, mas o retirante não estava para muita conversa. Seus pensamentos também não estavam
nas coxas de Rosita, não estavam nas conversas do velho Manuel, não estavam nas desdentadas
mulheres de Mirandiba, não estavam na música, na bebida e nas mulheres do cabaré. Seus
pensamentos estavam na fazenda Riachão. Lembrou-se das ancas de Valdelice, de seus seios e de
seus lábios convidativos. Então todo o cabaré desapareceu. Só o sorriso dela projetava imagens nos
seus pensamentos apaixonados.
O velho bateu no ombro do companheiro:
- Acorda homem. Tá sonhando?
Ele sorriu, dizendo que estava tudo bem.
- Tu tá cum os pensamento longe, o que é?
- Nada, não, meu tio, pensando no Pernambuco, na famía, no serviço que quero arrumá nas
farda... - mentiu.
Olhando para uma mulher que dançava, o velho perguntou:
- Vamos arrumá mulé?
- Quero não! É só tomá umas cachaças que quero.
- Tu num gostô das quenga?
- Gostei não, meu tio, é tudo véia feito as mulé de Mirandiba.
Rosita sorriu, cumprimentando. Zé Clemente perguntou:
- Por que tu não chama ela pra mesa?
Chamou, com um aceno de mão. Rosita tinha um repugnante cheiro de cachaça na boca, quando
perguntou a Zé Clemente:
- Tu qué que chame uma amiga mode lhe fazê companhia?
- Quero não, minha tia! Quero não, que tô arreliado!
O velho consertou a situação:
- Deixa ele quieto que tá aperreado. Mais tarde fica bom.
Mas não ficou. Na sua cabeça estava Valdelice. Por que será que a imagem dela se aboletou em
sua cabeça, em pleno cabaré? Ele já tinha bebido demais nessa noite, mas não ficou embriagado
com as cervejas. Tendo tanta mulher à sua disposição, por que será que só pensava na mulher de
cabelos curtinhos? - Ela deve estar em casa dormindo. - pensou - Será que ela desconfia que eu
esteja no cabaré?
Tomou mais um copo de cerveja, olhando para as mulheres que estavam sentadas nos sofás; mas
os seus olhos não enxergavam nada, estavam perdidos no açude da fazenda Riachão. Manuel e
Rosita riam! Por que será que estão rindo? Ele também queria rir muito, mas não conseguia, tinha
um nó lhe apertando a garganta, sentia vontade de chorar e uma lágrima solitária caiu na espuma do
copo de cerveja. Uma angústia repentina o tomou. Mentindo que ia ao sanitário, abandonou o amigo
e voltou correndo pra fazenda. Para ele pouco importava o cabaré, as mulheres da vida, a cerveja
gelada e o falso sorriso da quenga e gorda Rosita. Na fazenda havia Val. Não precisava de outra
mulher. Isso era tudo o que pensava a cabeça de Zé Clemente. Poucas mulheres tinham os seios que
ela tinha, eretos, duros. No umbuzeiro atirou longe o cigarro e, pé ante pé, foi se aproximando da
casa, da janela de Valdelice. O vira-latas ensaiou um latido. - Psiu!... - faz um sinal de silêncio ao
cachorro e deu um leve toque na janela da mulher amada.
- Quem é? - Murmurou a moça.
- É eu, minha fulô. - respondeu baixinho.
Seu Osório e Dona Alice roncavam num sono profundo. E, na penumbra do quarto, dois seios
despencaram como dois abacates maduros sobre o peito largo de Zé Clemente. Uma suave brisa

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zunia no telhado. E, na escuridão do quarto, quando a brasa do cigarro iluminava, o coração
palpitante da moça parecia uma bomba pronta para explodir. Ele passava as mãos pelos cabelos dela
e murmurava:
- Parece uma criança... Uma criancinha mesmo.
- Sou bonita? - perguntou Val, beijando-o na boca.
- Linda amor! Tu parece mais uma santa, um anjo de santo esplendor.
- Tu tinha coragem de me deixá? - perguntou ela, colocando a mão dele sobre a sua barriga um
tanto volumosa.
Zé levou um susto ao sentir os movimentos do feto mexendo-se no ventre da namorada. Depois
ficou pensando se um dia seria o marido dela. Ela iria com ele para Aracaju? Calculou Valdelice
com a barriga grande indo a pé para a capital. Morreria antes de chegar lá. - A gente vai de ônibus -
murmurou ela. - O tempo de andar a pé pela caatinga acabou Zé. Que coisa mais besta.
Foi durante esses cochichos que Zé Clemente ouviu um barulho na cozinha:
- Fecha essa matraca, Zé, se quisé que painho não te encontre aqui. Se ele descobrir, é bem capaz
de botar a gente porta à fora.
Zé Clemente calou-se, quase não respirava para não fazer barulho. Mas um pensamento novo lhe
passou pela cabeça: - Nesse mato tem coelho! Sô capaz de jurar que o pai e a mãe dela sabem de
tudo. Só tão aguardando uma oportunidade para a declaração. - É isso aí - pensou de si para si: -
Onde tem fumaça, tem fogo, é só uma questão de tempo para eles me aporrinharem. O que será que
estão tramando?
Logo os roncos agudos, compassados e prolongados de Seu Osório indicavam que ele voltara a
dormir. Aproveitando-se disso, Zé saltou a janela e saiu. No casebre empurrou a porta com força e
ela cedeu. Estava aberta. Entrou. Fechou a porta por dentro e só então notou a presença do velho
Manuel, ainda acordado, fumando um grosso cigarro de palha.
- Oxente meu tio, tu num ia dormir mais a Rosita?
O velho deu uma baforada e disse:
- Eu também já tive uma filha, como Osório tem a dele. Parece? Nem parece, não é verdade?
Mas eu tive uma filha que até botei na escola... Uma belezura de menina. Um dia, um cabra
atrevido botô feitiço nela, carregou com ele nem sei pra onde. Hoje vive em Itabaiana, na rua da
lama, fazendo vida, deitando com tudo o que é homem... Num quero que aconteça o mesmo com a
sinhazinha. Quero não!
Manuel parou com a falação. O pernambucano estava pensativo Depois fez uma pergunta:
- O que é que eu posso fazê agora? Deixá ela de barrigão e fugir cuma um bandido? Cuma é que
ela ia criá a cria?
- Fugir? - O velho falou: - Tu tá pensando que vai botá a menina na perdição?
Zé desviou a conversa:
- Se tu tem tanta raiva das mulheres da vida, por que foi no cabaré se deitá mais a Rosita?
- Mode não desaprende os caminhos da perdição. Tu também viu, num viu? Umas perdidas!
Tudo de vermeião na cara. Num quero vê a sinhazinha assim. Quero não!
Zé Clemente retrucou:
- Aforantemente a consideração e o respeito que lhe devoto, vosmecê num sabe nada d'eu.
Acauso sabe das minhas intenção mais ela? Pronto, que tu num sabe...
Manuel ficou meio atrapalhado, depois falou:
- Não! Sei de nada, não! O que sei é o que tenho visto no açude. Coisa de hora e meia quando
cheguei, vi tu saindo da janela do quarto dela e fiquei aperreado. Tu gosta dela devera?
- Gosto! É verdade o que tô dizendo. Val é uma santa. Nós vai se casá dia desses, garanto.
Manuel balançou a cabeça pensativo. Ele já viveu muito na vida. Já conheceu muita desgraça.

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Conhece Valdelice desde que nasceu. Sabia de todas as suas histórias e tem pena de Zé Clemente.
Sabe que coisa ruim está por acontecer.
- E tu vai sustentar ela e a cria com que dinheiro?
- Eu trabalho. Num tenho medo do trabalho. Me boto pro Aracaju, jogo umas farda nos lombo,
depois venho buscá eles.
O velho concorda:
- É o milhó que tu tem a fazê. É sim. Adispois me chame pra padrinho.
- Quero que seja macho!
- É o que Deus quisé que seja. Vindo cum saúde é o principal, como a filha que eu tinha.
E Manuel descambou a contar estórias:
- Mulé da vida num presta. Valdelice é boa, porém não é tão santa cuma tu pensa, não. É muito
birrenta, meio desmiolada, mas é boa. Minha filha, não. Ela é ruim. Vive com os cabelos cortados e
calças compridas feito homem. Mora na rua da lama, uma perdida... Valdelice não, ela é boa. Se tu
gosta mesmo dela, Zé, não dê ouvidos pra zum-zum-zum e pros mexericos que são muitos. Não
acredite. Valdelice é boa. Minha filha, não. Mora na rua da lama...
Conversando, contando histórias, o velho deitado na rede, dormiu. O rapaz ficou pensativo: - Se
meu padim Ciço num se zangá pur a gente num sê casado, ela vai pari um minino. Eu quero um
minino. Já tô vendo inté a hora dos padecimento. Diz que tem homem que sente as dôre quando a
mulé pari. Coisa mais doida, mas já tô inté sentindo. Êta aflição da gota serena, coisa dos seiscentos
diabos... Depois, como a censurar seus pensamentos, falou para si mesmo: - Tome tento Zé
Clemente. Deixe de presepadas, que o futuro te espera... Dormiu feliz. Sonhou com a namorada sem
nenhum desejo extra. Seu sonho era puro e ele a via com ternura imensa. Sorriu porque pensou na
surpresa dela ao vê-lo fardado. No primeiro momento iria reconhecê-lo?
Falou dormindo: - Tu me conhece?
- Conhece quem? - resmungou o velho, acordando.
- Nada, não, tio, tava só sonhando.
Manuel, entretanto, não conseguia mais dormir. Tremia de frio, ante uns agourentos presságios
que teve. Foi à cozinha e voltou a acender um cigarro.
- Essa fumaça rebenta os pulmões da gente. - reclamou Zé Clemente.
-Pobre além de sofrê - retrucou Manuel - ainda tem que ficá escutando bobagens. Tu tá
apaixonado, cigarro se faz mal por um lado, refresca a mente do cabra por outro.

A MORTE RONDA A FELICIDADE

M anhã de domingo. Zé Clemente dormia feliz. Na sua rede, o velho Manuel também roncava
surdamente. Acordaram com o chamado de Seu Osório. Zé Clemente atendeu:
- Hoje é domingo, nós vai trabaiá?
- Vai não, Zé. Hoje, além de domingo é Páscoa. A mulé mandô chamá pra comê uma buchada de
bode lá em casa. Adispois nós vai se botá pra vila mode tomá umas cachaça. Diz que hoje tem inté
forró.
Durante o café da manhã Dona Alice enfeitou a mesa com requeijão, bolo de milho, cuscuz,
mugunzá, tapioca e doce de jerimum. Zé Clemente falou:
- Quero não. Tô sem fome...
Ela admirou-se da recusa:
- Para não fazer desfeita.
Aceitou um pedaço de bolo. Comia devagar, observando o velho Manuel que devorava o
segundo prato de mungunzá. O patrão gracejou:

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- Já tinha comido essas coisas, Zé?
- Comi nadica de nada não! Na minha terra não tem dessas fartura, dessas mesa farta. Quando
muito um bolo de puba pilada, xerém, imbuzada... essas coisas. O dicomê é só uns bago de feijão na
água rala, farinha e argum socó que a gente caça pulos mato...
-É. - observou Dona Alice. - Esse Nordeste anda esquecido de Deus. Somos uns miseráveis do
mundo...
Valdelice apareceu na porta, cumprimentando. Depois falou:
- Não diga heresias, mamãe. Deus castiga.
A mãe concordou:
- Só falo da boca pra fora.
Zé Clemente, sabendo que Dona Alice estava se desculpando inutilmente, entrou na conversa:
- Pode sê heresia, minha gente, mas só quem conhece a miséria da caatinga, cuma eu conheço,
sabe que Dona Alice tá cum a razão.
Entre uma conversa e outra, o domingo foi passando. Contaram histórias engraçadas e tristes.
Riram. Contaram anedotas e o tempo passou. Lá pelo meio-dia, o almoço já servido na mesa, o
dono da casa aproximou-se com um copo de cachaça na mão:
- Vamos matar o bicho?
Zé Clemente não quis. Manuel bebeu de um gole só. Depois encheu o copo até transbordar.
Terminado o almoço, Val veio com um pacotinho na mão:
- É o meu presente de Páscoa pra tu, Zé. É um simples relojinho de pulso, não sei se vai gostar. E
para o senhor, Seu Manuel, comprei umas alpercatas novas, gostou?
- Oxente, se gostei. Tava mesmo precisado.
Zé Clemente falou:
- Não carecia se incomodá.
- Incômodo é doença - retrucou Osório. Final do mês lhe faço o pagamento, é só entrá o dinheiro
do algodão.
Mais tarde Zé Clemente deitou-se na rede do alpendre e começou a ter um entorpecimento de
sono. De repente sentiu a presença de Val. O cheiro doce do perfume dela invadiu-lhe as narinas
quando ela lhe deu um beijo na boca. A surpresa dele foi tão grande que nada falou. Ela também
ficou calada, olhando nos olhos dele. Era bela assim em pé balançando a rede, o vestido decotado
mostrando a curva maliciosa dos seios, os cabelos molhados pelo banho recente. Um perfume de
água-de-cheiro que se misturava ao cheiro de gata no cio. - Ela toda - pensou Zé Clemente - cheira à
felicidade. E sentiu um desejo repentino, uma vontade louca de tê-la nos braços.
Foi Dona Alice que o tirou dos pensamentos:
- Eu mais Osório faz algum tempo que descobrimos o namoro de vocês. No começo ele ficou um
pouco aperreado, pois ainda não te conhecíamos direito, nada sabíamos da tua família, coisas desse
tipo. Mas Val falou tão bem de você que acabamos concordando... E o casamento, pra quando é?
Antes de responder, Zé Clemente pensou: - Bem que os meus pensamentos estavam certos. Tudo
combinado, tudo preparado, o relojinho de presente, o almoço... tudo preparado... Depois,
afastando os pensamentos ruins, olhou para Val. Estava linda e sorria. Fazia desaparecer o mau
pressentimento em seu rosto. Passou a mão pela cabeça para afastar os pensamentos ruins e olhou
fixo para Dona Alice:
- Mirandiba é uma pequena cidade encravada no vale do rio Pajeú, bem no coração do sertão
pernambucano. Lá, minha senhora, quase todo mundo é pobre, tem rico não. Porém, no meio dessa
pobreza toda, não tem uma só pessoa desonesta, uma só mulher da vida, uma moça perdida que
seja. Lá não tem mulher largada do marido, só tem mulher casada, solteira ou viúva. Lá, a honra de
uma donzela é lavada com o sangue do safado. E é por isso que vim parar aqui. Depois de lavar a

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honra de minha irmã, tive que fugir pela caatinga, escapando das emboscadas e das vinganças dos
parentes do finado. Agora, se eu servir para ser o marido de Valdelice, caso assim que assentar
praça na polícia de Aracaju.
Ao terminar de falar, Zé Clemente foi surpreendido por uma salva de palmas às suas costas. Já
meio embriagado pelas cachaças que havia tomado, foi Seu Manuel quem falou primeiro:
- Que bonito discurso, Zé. Eu não sabia que tu conseguia falá bonito assim. Parece inté um dotô
com suas falação nus Fórum.
- É meu tio, eu ainda não ouvi a fala do Seu Osório.
- Por mim está tudo certo - disse Osório. E tu mulé?
- É de gosto meu velho, é de gosto!
Tinham combinado de ir à festa do Riachão. Um sarau que o povo da cidade programava todas
as vezes que o Padre Olívio vinha batizar as crianças da região. Foi num desses dias que Zé
Clemente chegara faminto e esfarrapado. E já se iam dois anos. O velho Manuel, Seu Osório e Dona
Alice colocaram roupas novas e, contentes por irem à festa, conversavam sobre os motivos que
levaram Zé Clemente a querer entrar para a polícia. Estavam todos reunidos no alpendre à espera de
Valdelice que ainda não havia terminado de se arrumar. O retirante, bem diferente do dia que
chegou em Riachão, agora apresentava outro semblante, calçava sapatos novos, calça de linho azul
e camisa amarela de algodão. No lugar do horrível chapéu de couro, carregava sobre a cabeça um
moderno e bonito chapéu de feltro. No braço esquerdo, como uma jóia rara, brilhava o relojinho de
pulso, presente de Valdelice.
Casamento! Valdelice estremeceu. Depois, parou de pensar no assunto e começou a se vestir.
Pôs um vestido branco de mangas longas e bastante decotado. O decote realçava-lhe o busto,
enquanto a saia acentuava-lhe os quadris. Enfiou os pés em sandálias brancas de salto alto. Prendeu
um bracelete de ouro em cada pulso e, ao redor do pescoço, uma corrente com um berloque em
forma de lágrima, que se aninhou entre os seios. Tá certo que tudo isso, vestido, sandálias e jóias
eram presentes de Zé Luiz. - Não tem importância - pensou. Zé Clemente haveria de gostar daquilo.
Com certeza nunca tinha visto nada igual. Lançou um último olhar para o espelho e dirigiu-se ao
alpendre, onde era esperada.
Seu Osório havia lavado e polido o velho automóvel da família. Ele dirigia, tendo Dona Alice e o
velho Manuel a seu lado. No banco traseiro, já na condição de noivo, o sertanejo segurava a
namorada pela cintura. Na praça da igreja, o som de um alto-falante estrondava como um convite.
As lâmpadas iluminavam as barracas e as caras das pessoas. Com o som da música, o barulho
atordoante do velho carro e o brilho das luzes, eles chegaram diante da multidão que se aglomerava
no salão paroquial. Numa das mesas estava Seu Libório - o homem que deu de comer a Zé
Clemente no dia da sua chegada. Libório gritou as mãos postas em cima dos olhos para ver melhor
à luz brilhante das múltiplas lâmpadas incandescentes:
- Aqui, Osório. O padre está aqui.
Pesado silêncio acompanhou Valdelice quando ela adentrou o salão. Todos se calaram, e depois,
alguns rapazes começaram a falar sobre ela, que se sentiu como se estivesse provocando um
orgasmo em massa. Ela parecia uma rainha e os rapazes pareciam eufóricos. Eles podiam até tocá-
la, e todos o queriam fazê-lo. Não o fizeram, mas o perigo a estremeceu. O casal continuou
penetrando salão adentro. Zé Clemente estava começando a ficar nervoso. No salão, muito claro
pela infinidade de lâmpadas, um amontoado de mesas onde homens bebiam, mulheres comiam e
crianças se divertiam. Copos cheios de cerveja, os homens riam, cantavam. Falavam alto e se
divertiam. Os namorados abraçavam as namoradas. Um aleijado, sentado num canto, cuia na mão,
pedia uma esmola, mas ninguém lhe dava atenção. Numa das mesas alguns engraçadinhos tomavam
vinho de jurubeba e cantavam. Um deles, ao ver Zé Clemente e Valdelice chegarem, levantou o

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copo e cumprimentou:
- Boa-noite, Pernambuco.
- Boa-noite.
- Preciso falar com tu.
Um garçom servia as mesas.
- Traz uma cachaça pura aqui pro meu amigo, que ele não tá acostumado com bebida fina.
- Quero não!
Seu Osório, Dona Alice e o velho Manuel estavam do outro lado do salão conversando com o
padre. Valdelice, vendo Zé Luiz oferecer cachaça para Zé Clemente e, prevendo encrencas, correu
avisar o pai. Os rapazes estavam cada vez mais bêbados e um deles já tinha arriado a cabeça em
cima da mesa. Mas Zé Luiz, o antigo noivo de Valdelice, estava bem sóbrio. Zé Clemente, alheio à
questão, não sabia de nada, nunca ninguém lhe falara sobre esse assunto. Zé Luiz, enciumado,
falou. O retirante escutou:
- Parabéns, Pernambuco. Namorando a filha do patrão, heim?
- É. Mas posso saber quem é você?
- Claro que pode. Dizem por aí eu era amante dela, mas na verdade não é nada disso. Eu apenas
me embolei mais essa quenga. Tu sabia que as jóias e aquela roupa que ela está usando é tudo meu?
Tudo presente meu. Até o relógio que tu tá usando é meu.
- Como é que é?
- É isso aí, seu corno. Só larguei dessa quenga porque fiquei sabendo que ela andou trepando
com tudo quanto é motorista de caminhão por esse Nordeste à fora e...
Não conseguiu terminar. O bofetão estalou e Zé Luiz caiu por cima dos bêbados. Levantou-se
meio tonto, revolver na mão:
- Vou te ensinar uma coisa, cabra da peste.
- Safado!
O retirante derrubou o desafeto com outro soco. As mulheres saíram correndo. Homens trepavam
nas mesas para ver o barulho. O padre estava tremendo e o velho Manuel viu Valdelice branca,
pálida, chorosa. Nos olhos do garçom uma faca afiada entrou no peito de Zé Luiz. Zé Clemente
estava com os olhos perdidos à procura da namorada. O velho Manuel chegou:
- Fuja Zé!
O vulto de Zé Clemente desapareceu no negror da noite, agora sem uma trouxa de roupas nos
ombros e sem as cabaças d'água. Somente o inseparável punhal na cintura, as corujas nas árvores, as
cigarras nos ocos de pau, o estranho brilho da lua e a poeira das veredas o acompanhavam. Zé
Clemente foi embora, que ali não era o seu lugar. Manuel o acompanhou por um bom pedaço de
caminho. Iam calados. Por fim o retirante falou:
- Amigo velho, eu vou pra Aracaju mode sentá praça nas puliça e de lá lhe escrevo.
- Vai cum Deus, amigo, não esquece do velho Manuel.
Zé Clemente tirou um lenço bordado e um relojinho de pulso do bolso e falou:
- Entregue a ela, por favor.
- Coisas as vida...
- Volte daqui, seu Manuel, que vô ficá de tocaia ao coronel Quincas. Sabendo do acontecido, ele
não deve demorá pra me procurá.
- Cuma é que tu vai fazê a tocaia?
- Inda num sei.
- Entonces fica com a minha 44.
No dia seguinte os comentários adulteravam os fatos de diversas maneiras. Enquanto uns
garantiam que o coronel havia sido morto à punhaladas, outros juravam que tinha sido assassinado a

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tiros. Quando os enterros de pai e filho saíram, após a sentinela necessária, a tarde já se fazia noite.
Na casa de Seu Osório o luto também dominava o ambiente. Longe, pela caatinga, Zé Clemente
passava o punhal afiado na cinta, repetição 44 nas mãos. A imagem de Valdelice passou por sua
cabeça, enquanto o vento balançava as árvores ameaçando chuva. Mais uma vez Zé Clemente ficou
maravilhado ante a beleza da caatinga sergipana. Com a chuva, porém, nas touceiras de gravatá, nos
intrincados de macambira, nos troncos de árvores apodrecidas e nas fendas das pedras, as serpentes
enrodilhadas ficam mais perigosas, afoitas, e se atiravam, como se tivessem molas, sobre quem se
aventurasse por ali. Outro perigo vinha da onça pintada e de olhos verdes, que seduz a vítima antes
de lhe saltar à jugular com um rosnado rouco, lúgubre e afeminado. Na caatinga as serpentes ficam
escondidas nos capões à espera da vítima. E são numerosos os capões isolados. Entre o mato ralo
surgem arbustos de pouco mais de um metro de altura, de folhas largas, espessas e luzidias, com
exuberante floração em meio à desolação geral. São os cajueiros anões. Típicos das chapadas
áridas, os cajuís dos indígenas quando bloqueados em roda mostram raízes que se entranham a
surpreendente profundidade. Difícil é desenraizá-los. O eixo descendente aumenta à medida que se
escava. Por fim se nota que ele reparte-se em divisões dicotômicas. Progride pela terra adentro até
um caule único e vigoroso, embaixo. Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbustos,
esparsos, ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas, parece uma árvore única e
enorme, inteiramente soterrada. Espancado pelas canículas, fustigado pelo sol, roído pelas
enxurradas, torturado pelos ventos, o vegetal parece derreter-se aos embates desses elementos
antagônicos e queda-se daquele modo, invisível no solo, mostrando apenas os brotos mimosos da
sua copa majestosa.
Outros, sem esta conformação, vão se aparelhando de outras formas. As águas que fogem no
volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas longo tempo
nas etapas das bromélias, aviventando-as. No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto
sedento um copo de água cristalina e pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os
gravatás e ananases bravos, trançados em touceiras impenetráveis, copiam-lhe a mesma forma. As
suas folhas ensiformes, lisas e lustrosas, como a maioria dos vegetais sertanejos, facilitam a
condensação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, de maneira a debelar-se o perigo máximo à
vida vegetativa, resultante de larga evaporação pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção pelas
radículas. Sucedem-se outros, diversamente percebidos, sob novos aspectos, mas igualmente
resistentes. As nopélias e os cactos são exemplos clássicos. Ainda existem tipos da flora desértica
mais resistentes do que estes. Alguns, quando caem fulminadas todas as árvores à sua volta,
persistem inalteráveis ou mais vivos ainda. Na caatinga também existem espécies vegetais que se
adaptaram tão bem ao clima adverso que, quando replantados em climas benignos, definham e
morrem. O ambiente em fogo da caatinga parece estimular melhor a circulação da seiva entre os
cladódios túmidos dessas plantas. O faveleiro, planta da família das euforbiáceas, conhecida demais
dos sertanejos, tem as folhas de células alongadas, notáveis aprestos de condensação, absorção e
defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito abaixo da temperatura do ar,
provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão que o toca,
toca uma chapa incandescente de ardência inalterável. Ora quando, ao revés das anteriores, as
espécies não se mostram tão bem armadas para a reação vitoriosa, observam-se porventura mais
interessantes: unem-se, intimamente abraçadas, transmudando-se em plantas sociais. Não podendo
revidar isoladas, disciplinam-se, congregam-se e arregimentam-se. São deste número toda as
casalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que aparecem mais da metade da
caatinga; os alecrim-do-tabuleiro e os canudos-de-pito, heliotrópios arbustivos de caule oco,
listrados de branco e flores em espigas, são outras espécies muito resistentes. Na caatinga ainda
temos os juazeiros com suas flores cor de ouro, esbatidas no pardo dos restolhos. À maneira de

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oásis verdejantes e festivos, os mandacarus, que por atingirem altura considerável sempre são
novidade atraente; os xiquexiques, que são variantes de proporções inferiores, fracionam-se em
ramos fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros. São vegetais clássicos dos areais queimosos, as
cabeça-de-frade, plantas deselegantes e monstruosas, evitadas até pelas orquídeas; os quipás, que se
espalham pela terra como capacho cheio de espinhos, parecem parentes da catanduva, uma planta
doente dolorosamente caída sobre o seu terrível leito de espinhos.
Sob a luz crua da lua, o fugitivo vara toda essa caatinga. A luz flamejante sobre a terra imóvel o
anima a seguir em frente. Uma dor latejante lhe coroe o coração. Reverberam as infiltrações de luz
pelos cerros calcários, desordenadamente esparsos, num alvejar de brancura. Oscilando à ponta dos
ramos secos das árvores inteiriças, dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos de
neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial, de vegetação hibernante e gelada. No
que se refere ao mundo animal, as revoadas e os ninhais das aves de bonita plumagem são um
espetáculo à parte. Mas o viajante desavisado pode tropeçar numa pedra ou numa raiz e cair sobre
espinhos venenosos ou insetos nocivos, habitantes do lugar. A mesma caatinga que acolhe o
sertanejo que a respeita, é mortal inimiga para quem a viola. Por trás de cada moita se esconde a
morte por veneno, por garras afiadas e por tocaias sem fim. Veredas infestadas de serpentes e, bem
no alto, os carcarás que não se cansam de procurar suas presas. Com a chegada da noite a bicharada
silencia até o dia seguinte, ficando somente os piados das corujas e o cantar das cigarras iluminadas
pelo brilho fugaz dos vaga-lumes, cujas lanterninhas se projetam sobre veredas difusas. Na
escuridão da caatinga se acelera o trânsito da vida e da morte. O ciclo em permanente retro
alimentação O mais fraco morrendo entre o acetinado verde das folhas ou entre as fragrâncias das
flores nocivas dos arbustos venenosos. Tudo se oculta, reaparece e se esconde novamente, sem
nenhuma trama secreta. É simplesmente a vida em permanente luta contra a morte. A caatinga
inventou essa lei.
Meses passaram. Na fazenda Riachão as coisas eram quase as mesmas: açude, umbuzeiro,
roçados, animais. Nada mudara. Só a barriga de Valdelice se avolumava. O dia tinha sido quente,
nem uma nesga branca no céu. Com a noite veio um vento morno, pesado, que apertava a garganta
das pessoas e dos animais, levantando nuvens de pó, secando ainda mais as plantações. O gado
mugia no curral. Era a grande seca que chegava. A noite ia alta, Valdelice sufocada, estirada na
rede. Dona Alice aproximou-se para olhar melhor a filha. Observou o seu ventre demoradamente,
calada, pensativa. Val, do mesmo modo olhava a sua própria barriga, sentindo os movimentos da
criança em gestação.
- É, mãe. Quem havia de esperá. Ando numas vergonhas que quase não vou mais no eito. Não
saio de casa, não vou no Riachão: filho de mãe, sem pai... mas o que se há de fazer? Vontade de
Deus!
- Vontade de Deus, coisa nenhuma. Descaração. Mas, tu pelo menos sabe quem é o pai? Sabe
quando pegô barriga, mode se sabê quando vai ser os padecimentos?
- É verdade que num sô nenhuma santa, mãe. É certo tombém que nunca me contentei com um
homem só. Tá certo. Mas com Zé Clemente a coisa foi diferente. Eu tinha amor a ele. Que o filho é
dele posso jurá. Agora, quando embuchei, sei muito certo não. Acho que foi uns dois meses antes
da festa dos batizados...
- Entonces vai sê pras colheita do feijão, num é?
- Por lá mesmo, mãe... Se tiver colheita.
- O tempo passa depressa. - comentou Dona Alice.
- É, mãe. O tempo passa e a gente não vê. - concordou Valdelice.
Dona Alice arrematou:
- Quando a criação morre na caatinga mais viçosos nascem os mandacarus; maiores as serpentes

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peçonhentas, o carcará e o sapo-boi. É a maldição, o flagelo, a fome, a peste, a miséria...
O tempo foi passando com a seca que não terminava. Eram as pedras calcinadas, os espinhos
venenosos, as vidas desesperadas com seus ais de sofrimento; Eram os coronéis que despachavam
os adversários com jagunços bem armados. Era o caos de um Nordeste esfomeado. Era o desespero,
a fome e o caminho pra São Paulo... Com seca ou sem ela, o tempo, como uma roda dentada girou,
rolando meses e anos. Como a seca, certo dia Zé Clemente também voltou. Eram cinco horas da
tarde. Andando pela caatinga, evitava a estrada para não ser reconhecido. Chegou ao umbuzeiro,
divisou a casa do Seu Osório, as casinhas de taipa, o roçado abandonado, a pastagem seca e a
solidão geral. Não avistou alma vivente. Nenhum ser que se movesse: homem, mulher, menino,
cachorro, bode... Nada! Então, como que hipnotizado, atravessou o restingão olhando para todos os
lados. Repetição na mão, dirigiu-se ao açude. De longe, como uma visão do além, avistou Valdelice
tentando retirar uma lata d'água do açude. De imediato ficou sem saber o que dizer, com o ódio e a
ira estampados no rosto. Ela, surpresa, olhava-o fixamente, mas não apresentava medo nos olhos
amendoados. Fixando-lhe o olhar, Zé percebeu que ela estava triste, magra e sofrida. Saindo do seu
assombro, ela murmurou:
- Meu Deus, é tu mesmo Zé? - E começou a chorar.
Ele, tentando esconder o nervosismo, falou:
- Vim em busca do menino, onde está?
Ele estava nervoso, e ela como que soluçava, e então, durante muitos minutos, ouviu-se apenas o
respirar dos dois, até que finalmente ele começou a gritar alto. Ela sufocou seus gritos com beijos,
mergulhando o rosto no peito dele, abrindo a boca quase chorando. Ele, não esperando por isso,
pensou que algo estava errado e perguntou:
- Onde tá u menino?
O coaxar dos sapos invadiu o açude. A água derramada da lata chiou no chão esturricado. As
sombras da tarde escorregaram sobre eles, o açude, as casas, o umbuzeiro, a fazenda. Então, numa
golfada de choro, as palavras se precipitaram no coração angustiado da moça:
- Morreu!
Ele continuou estático, transtornado, olhando com ódio, parecendo querer, a boca crispada,
cuspir ou amaldiçoar, agitadas as mãos, o corpo tenso, em defesa da dignidade perdida.
- Cuma foi mulé, diga?
Val podia sentir o cheiro de vingança estampado no coração de Zé Clemente. No açude, o calor,
o pó e as muriçocas eram tão ruins como no roçado e na caatinga esturricada. Mas tudo ficava mais
suportável com aquele eventual bafo de umidade que o açude exalava.
- Morreu!
- Tu matou ele, Val? Diga, tu matou ele, excomungada?
Acuada pela acusação, seus olhos suplicaram piedade, os lábios apertados quase murmurando,
como as viúvas em missa de sétimo dia, as mãos apertadas uma na outra como se apertassem a
própria vida, respondeu:
- Não.
Ele continuou estático, transtornado, olhando com ódio:
- Diga mulé, diga...
Mas ela não tinha palavras na boca, o peito cansado, os dentes apertados, o choro nas pupilas
dilatadas, o pensamento distante, as mãos apertando algum invisível fantasma. Então abriu os
braços como alguém que chega de interminável caminhada, ao doce olhar de carinho, ao abraço
fraterno, enquanto sob o céu sertanejo as cores variavam arrastando a noite profunda. Não
pronunciou uma só palavra, limitou-se a erguer a cabeça e ficar à espera, ansiosa, na expectativa de
uma palavra amiga, de conforto. Zé Clemente, percebendo a ansiedade da moça, começou a

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mastigar as palavras, arrancadas do peito com dificuldade, pronunciadas cada uma delas aos
pedaços, como se o fizesse a medo:
- Que aconteceu? Cuma foi?
Ela apurou os ouvidos à espera que as perguntas fossem mais nervosas. Apanhou a lata vazia e
tentou apanhar um pouco d'água. Ele estourou na ansiedade:
- Fala mulé, pelo amor de Deus. Conta.
Ela limitou-se a chorar, enquanto ele gritava:
- Por que tá tudo abandonado? Onde tá o teu pai, a tua mãe, o véio Manuel?
A voz de Zé Clemente perdeu-se na noite, enquanto Valdelice derramava lágrimas amargas.
- Que foi Val? Que desgraça aconteceu?
A voz dela foi pesada:
- Abortei!
Zé Clemente ficou de cabeça baixa, ouvindo.
- Abortei mode a surra que os jagunços da viúva do coronel Quincas deram em mim, em painho
e em mainha, mode se vingá das mortes que tu fez no marido e no filho dela.
- Foi?
- Foi.
- Onde tá teu pai mais tua mãe?
- No cemitério de Riachão, que não agüentaram a surra...
- E o velho Manuel?
- Ficou comigo até ver se eu vendo as terras. As terras, porque a fazenda se acabou. Esta semana,
recebi uma proposta do Seu Libório, lá do Riachão.
- Eu vingo!
- Deixe de doidice, homem. Vamos lá pra casa, que vou prepará o dicumê.
Enquanto Zé Clemente conversava com o velho Manuel, Val serviu o jantar. Era um jantar dos
tempos secos, de época de miséria. E Val lambiscou, enquanto escutava. Zé lhe falou dos seus
insucessos em Aracaju. O velho Manuel não queria ouvir mais nada, que seus ossos reclamavam
uma rede macia. Val não parava de se lembrar do assassinato dos pais. Zé Clemente bebeu muita
cachaça durante o jantar. Quando terminou de comer, cambaleava ligeiramente. A convite de Val
foram até o umbuzeiro aspirar o ar fresco da noite. Zé Clemente ergueu os olhos para o céu e disse:
- A lua...
- O que tem a lua?
- É feito tu, parece que está perto da gente, mas tá muito distante.
- Eu tô aqui, bem pertinho de tu, meu bichinho. Vamos dormir?
Na cama, Zé Clemente, abraçou-se ao corpo dela, beijou-lhe os lábios e agarrou-lhe os seios. Ela
estremeceu. Então ele apertou-a com mais força. Ela puxou-o, fazendo-o deitar-se sobre si.
- Oh, Zé, tu é tão forte!
Depois dormiu. Zé Clemente com o espírito cheio de revolta, não conseguia pegar no sono.
Levantou-se, vestiu a roupa, e sem nem dizer adeus, desapareceu na caatinga. Era uma madrugada
de lua cheia no sertão. A luz se derramava nos mandacarus, faveiros e gravatás. Era uma imensidão
de luz. Caminhando pela caatinga, Zé Clemente só pensava em vingar a morte de Seu Osório, de
Dona Alice e do filho que não chegara a ter. Então, sacudindo a luz da lua que banhava seu rosto,
seguiu em direção à casa da viúva do coronel Quincas. Uma hora depois ouviram-se gritos de terror.
No meio da gritaria, muitos tiros. Em seguida, a luz que clareava a casa da viúva também se apagou
no olhar do vingador.
Zé Clemente tornou à caatinga, o mesmo caminho de sempre. No dia seguinte os urubus se
abasteceram da carniça dos cinco corpos degolados. Entre os cadáveres de quatro jagunços, a

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cabeça de Dona Júlia - a viúva do coronel Quincas - parecia uma jerimum em estado de putrefação.
O sertanejo, agora travestido de vingador, foge, seguindo numa exaustão contínua pelos ermos;
atormentado pela perda do filho que não conheceu; amargurado pelo amor que dedicou à mulher
que julgou o trair; enraivecido pelo doloroso das falsidades. Segue em frente, lentamente, cruzando
as planícies que o levarão ao litoral, indeciso entre a seca e o verde. Pára ao topar com os últimos
fios d'água na lama das ipueiras. Fita demoradamente as folhas amarelecidas nas ramas da baraúna,
como num último adeus. Zé Clemente se assusta e foge ante a investida traiçoeira da suçuarana.
Depois, feliz na travessia longa, segue pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece
a palmo todos os recantos do seu imenso lar sem teto. Não lhe importa que a jornada se alongue que
a água rareie, se extinguindo nas cacimbas e nas baixadas. Importa-lhe sim, a sombra acolhedora do
umbuzeiro, onde descansa fatigado. Cercam-lhe ícones conhecidos: árvores que para ele já são
velhas companheiras. São todas amigas. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmanados;
sobrevivem através das mesmas dificuldades, lutando contra a mesma natureza agressiva, contra as
mesmas agruras: companheiros dos mesmos dias cruéis ou remansados. O umbu o alimenta lhe
sacia a sede e lhe propicia a sombra tão escassa quando lhe caem as derradeiras folhas. O ariticum
de sabor doce azedo, o ouricurís virente, a mari elegante, a quixaba de frutos miúdos. A mesma
caatinga que mata, também o alimenta a fartar. As palmatórias que, quando despojadas dos
espinhos pela ação do fogo, servem de alimentação animal, sustentam agora o cavalo que Zé
Clemente tomou "emprestado" na fazenda dos Quincas. Da mesma forma, as folhas de juá servem
de cobertura para a palhoça provisória que ele montou para passar a noite. Pela manhã, talha de
facão o mandacaru e dá mais de comer ao cavalo. Depois volta a galopar. Cavalga vagarosamente,
transpondo vales estreitos onde as pedras fulgurantes, feridas pelo sol, formam uma corrente escura.
E um estremecimento, convulsivo, fê-lo estacar de súbito. Passa ressoando uma bala. De repente,
pelos flancos, estoura mais perto outro tiro. É a polícia, ele sabe que ela está no seu encalço. Mas
nada pode assustá-lo na caatinga que tão bem conhece. A natureza toda o protege. Faze-o
indomável. Rompe a caatinga em louco galope. É um herói bronzeado fazendo vacilar a tropa
policial que o persegue. Mas é preciso avançar, sair dali, chegar ao mar. E avança a despeito da
noite que novamente chega. E o olhar afogado no escuro apenas divisa a fosforescência azulada das
curunãs dependuradas nos galhos como grinaldas fantásticas. A natureza é sua mestra. Ele foge. É a
cópia exata de Dom Quixote em guerra contra inimigos invisíveis. Aquela flora agressiva abre ao
sertanejo um seio carinhoso e amigo. Mas às vezes também transfigura-se nos amaldiçoados
moinhos de vento a combater. E o silêncio da noite desceu novamente, reinando outra vez a mesma
friagem noturna característica dos desertos. Acomodado sob uma pequena tenda coberta com folhas
de juá, o fugitivo vê seu cavalo se fartar com mandacaru retalhado. Acocorado em volta do braseiro
que preparou, ele refaz as forças com uma generosa porção de umbus maduros. Deixou por fim este
recanto aos primeiros alvores da aurora que iluminava toda a caatinga. Prossegue agora, em pleno
dia, atravessando sítios pobres recém atacados pelos cangaceiros. No caminho, casas de taipa
arrasadas, cercas derrubadas e canteiros rasos sem mais uma flor. E atravancados da mesma
ciscalhagem indefinível, as furnas de Angicos, já à beira do São Francisco. Sobre o lajeado, onze
cadáveres de cangaceiros, quentes ainda, sacrificados pelo fuzilamento da volante do tenente
Bezerra. Os corpos de Lampião, Maria Bonita e mais oito cangaceiros estavam sem as cabeças;
braços repontando para o azul do céu, num retesamento de angústia; mãos espalmadas e rígidas, em
crispaduras de garras, apodrecendo sinistras, em gestos violentos de ameaças ou de apelos
derradeiros. Os únicos sobreviventes: cães magríssimos, famélicos, farejando e revolvendo aqueles
monturos, numa ânsia de chacais, devorando com avidez os corpos dos próprios donos. Fugiram
rápido ao avistarem Zé Clemente e sua montaria. Alguns, porém, maiores, ossudos e ferozes,
afastaram-se mais devagar, com rosnados ameaçadores. Depois de acalmar os cães, o sertanejo deu

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sepultura aos corpos dos cangaceiros, deixando naquela parte do sertão o mais miserando dos
campos santos: onze cruzes - dois paus roliços amarrados com cipós, fincados sobre as sepulturas
ordinárias. Foi descendo para o sul acompanhando a sanga que corre em direção perpendicular ao
rio São Francisco, perlongando os riachos que vão formar o rio Laranjeiras, já na zona da mata
sergipana. A travessia agora já é sem riscos. Mais algumas léguas e divisou a moderna Aracaju e o
seu bem ordenado arruamento em forma de tabuleiro de xadrez.

CIDADE GRANDE

E stação Central do Brasil, Rio de Janeiro. O nordestino que estava sentado na poltrona junto à
janela do trem tinha um pequeno chapéu de couro na cabeça. Afora um tufo de barba sobre o
queixo, tinha um rosto liso e bronzeado. Ele perguntou o nome à passageira que se
acomodou na poltrona ao lado. Ela disse chamar-se Beatriz.
O sertanejo pareceu encabulado. Ela estava habituada a isso. Quase todos os homens ficavam um
pouco estonteados quando ela lhes sorria.
- Será que tu... Qué dizê, tu num vai s'incomodá se eu lhe perguntá pra donde vai vestida assim
tão finamente? - Perguntou o sertanejo, meio encabulado.
- Vou pra São Paulo. Vez ou outra faço essa viagem de trem entre o Rio e São Paulo. É uma
viagem cansativa, mas são os ossos do ofício.
- Ofício? Que diabo de ofício é esse?
- Profissão de puta! - respondeu ela, secamente.
Ele sorriu. Um sorriso besta.
- Sem querê ofendê, dona, tu num parece em nada com as quengas que tem lá no Nordeste. Tu
nunca pensô em mudá de vida?
- Se eu quisesse mudar de vida não estaria neste trem, viajando do Rio para São Paulo e de São
Paulo pro Rio à procura de macho. De macho que tenha dinheiro. Entendeu?
- É só isso que sabe fazê?
- Não. Canto nas boates e, quando não consigo cantar, danço, e, quando não consigo dançar, levo
meus fregueses para a cama.
Era mais ou menos verdade. Tinha feito todas essas três coisas uma vez ou outra, embora levar
homens para a cama fosse a única coisa que fizesse com sucesso - no resto não era assim tão
brilhante.
- Adiscurpe, sinhá dona, cada qual faz o que quer, num é mesmo?
Ela sorriu.
- Tudo o que faço aqui no sul é satisfazer homens mal amados. Mas, sim, antes de vir pra cá eu
já era puta na Bahia...
- Cuma é? Tu ainda me parece uma mulé tão nova...
- Não tenho escolha, que o custo de vida tá caro.
Ele a fitou entristecido e, para sua surpresa, ela corou.
- Acho que tem razão - disse o sertanejo - ainda não tinha pensado nisso.
- Apois, pense.
- Tô pensando.
- Fale.
O sertanejo forçou um sorriso. A meretriz lhe devolveu o olhar. Então ambos caíram na
gargalhada, cada um querendo saber mais do outro. Depois trocaram palmadas nos ombros, bateram
os pés no assoalho do vagão e se abraçaram, indo até as lágrimas. Ela o contemplou na sua roupa
amarela de algodão grosseiro e suas alpercatas de couro cru, e pôs-se a pensar como ela também

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tinha sido uma sertaneja rude na Bahia. Ele também a observava. Era bastante agradável, desejável.
Era bonita, linda mesmo, mas também fria, com ar superior de grandeza, não como... Valdelice.
- Acho que vô tomá uma cerveja.
- Eu vou com você, a cerveja é uma coisa muito boa neste calor.
- Acho que tem razão, tu é que conhece as coisas...
Ela deu-lhe um beijo no rosto, e os dois, de mãos dadas, seguiram para o vagão-restaurante. Ele
sorriu. A essa altura, os demais passageiros do vagão já os consideravam namorados.
O trem vindo do Rio de Janeiro chegava ao terminal ferroviário do Brás - Estação do Norte - em
São Paulo. A mulher que estava sentada ao lado de Zé Clemente estava saindo do sono que o
matraquear do trem faz, e que as noites mal dormidas ajudam. Era uma rameira como tantas outras
que iam e vinham pelos caminhos miseráveis do Brasil, porém parecia a Zé Clemente uma boa
mulher, bonita, nova e cheia de vida. Na viagem do Rio para São Paulo haviam falado da crise, da
miséria, contando suas vidas e até trocado alguns beijos e abraços fortuitos. Pouco antes da
chegada, acariciando-lhe o rosto, a meretriz lhe havia perguntado:
- Tu já sabe onde morar? Olhe, eu moro num prédio igualzinho aquele ali. - E apontou uma
fileira de edifícios sujos, amarelecidos pelo tempo, todos iguais, que passavam pela janela do trem
como numa fita de cinema.
Ele olhou ao redor, surpreso pelo fato de não conhecer nada daquilo. Deu de ombros, e, tirando o
chapéu da cabeça, coçou os piolhos. Beatriz conteve uma gargalhada. Depois ficou de pé e apanhou
sua mochila no bagageiro. Zé Clemente, ajeitando-se melhor na poltrona, arrumou a faca na cintura
e disse:
- Que cidade mais abestada.
Beatriz deu uma risada. O sertanejo também riu. Ela, muito alegre, atirou a mochila em cima
dele, mas o sertanejo se desviou. Riram. Ele apanhou a mochila e a entregou a ela, parecendo uma
tartaruga apaixonada.
Ela perguntou:
- Quer morar mais eu até arrumar onde ficar?
Ele estava intrigado. A cidade grande deixou-o com uma sensação avassaladora de desespero.
Acendeu um cigarro, lembrou-se de Valdelice e disse:
- Essa viagem que tô fazendo é mode esquecê uma mulé bonita e sabida assim cuma tu. Uma que
me botô uns galhos na cabeça com o filho de um coroné lá no Sergipe. Matei ele e o pai. A mãe se
vingô dando uma surra nela, matando o filho meu que ela carregava na barriga.
- Que mulher danada, ela fez isso sozinha?
- Fez não, que era uma capenga. Quem fez foi os jagunço dela, que ainda mataram Seu Osório e
Dona Alice, que eram os pais de Valdelice.
- Oxente, Zé. Tu ficou com medo? É por isso que fugiu aqui pra São Paulo?
- Foi não. Voltei lá e matei ela tombém, mais os quatros jagunços que ela tinha. Um dia, quando
enricá, volto lá e mando tudo quanto é coroné pros infernos.
- Tu não tem medo de ser preso?
- Que nada. Nessa terra, quem tem dinheiro não vai preso.
- E tu tem?
- Por ora não. Mas lá no Norte me contaram que tem uma dinheirama da gota por aqui... É só
trabaiá e ganhá, num é?
- E tu acreditou nisso? Olha só como tem mendigos na rua.
- Vida miserável da peste.
- Tu ainda não viu nada. Vai aprender muito por aqui.
- Hummm... Se fô pra virá pedinte, acabo virando ladrão...

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Caminharam até a saída da estação. Na rua, Zé Clemente falou:
- Repara que sô capaz de abusar do convite...
- O prazer é todo nosso. Onde come um, comem dois. Só que tu tem que tirar essa roupa de
cangaceiro e esse horrível chapéu de couro. Repara, todo mundo está olhando.
- Gente besta... abusada... baitola... Inté parece espiga de milho, com esses cabelos amarelos.
Tomaram um táxi. Ela deu o endereço, uma rua no bairro de Santa Cecília, bem no centro da
cidade. Foram pra lá. Zé Clemente estava assustado. A cidade tão cheia de luzes, tão gorda, tão
barulhenta, parecia bem mais agitada que o Juazeiro da Bahia. Mas começava ali a aventura que
vinha sonhando há anos. O nordestino tinha todas as características para fazê-la feliz. Era bonito,
novo, valente e idiota. Bem que poderia trabalhar na construção civil por uns tempos, como todos
os nordestino recém chegados a São Paulo fazem, ou nas metalúrgicas de São Caetano. Quem sabe
chegaria a diretor de sindicato, como o Lula, que chegou em São Paulo de pau-de-arara e agora era
presidente de sindicato. Se isso acontecesse, o retirante ia fazer dela uma dona-de-casa honesta,
bem longe da vida mundana e perigosa que levava na Boca do Lixo. O taxista a acordou do sonho:
- Chegamos dona. Quer que a ajude a descarregar as malas?
- Não obrigada. Quanto é corrida?
- Duzentos mil cruzeiros.
- Oxente, - disse Zé Clemente. - Isso é quase o preço da passagem de trem do Norte até aqui. -
Vixe que cabra ladrão...
O taxista escutou atentamente, e balançou a cabeça com indignação:
- Onde foi que você arrumou esse palhaço, dona? Se ele me chamar de ladrão novamente, dou
umas porradas nele.
Zé Clemente olhou ferozmente para o taxista. Já ia arrancando a sua faca da cinta, quando
Beatriz advertiu:
- Aqui não é o sertão, Zé. Guarda essa merda, cala a boca e deixa de bancar o cangaceiro.
- Oxente, mulé... mas...
- Não tem mas, nem meio mas. Cala a boca e pronto.
Na casa de Beatriz, o sertanejo começou a pensar, os olhos baixos, amassando com os dedos o
prato de arroz, feijão, farinha e jabá, quase feliz.
- Tu tem que aprender a comer com garfo e faca, Zé. Quem come com as mãos é bicho.
- Eu não sou bicho.
- Não? Por acaso quem tem chifres não é boi? E boi o que é?
O sertanejo parou de comer, puxou da faca e começou a limpar as unhas com ela, passando a
mão pela cabeça. Então, seus dedos se enroscaram em dois carocinhos invisíveis e ele comentou de
si para si - Bicho!
Bonita a Beatriz. Dois olhos grandes, verdes e espantados. Cabelos pintados de louro e uma boca
pequena onde brincava um sorriso de oferecimento. Nada de frescura. Ela era o tipo da baiana
gostosa que vivia do dinheiro que ganhava nas boates das noites paulistanas. Às vezes ia até o Rio
de Janeiro e ganhava um bom dinheiro fazendo strip-tease nos cabarés da zona sul.
Zé Clemente estava olhando fixamente para ela, numa tarde chuvosa.
- Que foi, Zé? Nunca me viu?
- Nada não, mulé. Tava só pensando. Cuma tu veio da Bahia pra cá?
- Eu sou igualzinha às outras sertanejas que você conhece. Vivia lá em Itapetinga com meus pais.
Cozinhava, lavava, costurava e até ganhava algum dinheiro com os bordados que fazia para o
pessoal da redondeza. Mas mamãe é que era costureira de mão cheia.
A chuva agora caía aos borbotões, trazendo lembranças à cabeça de Beatriz. Sua família ficara
em Itapetinga, uma cidade muito chata para o seu gosto. Que é que tinha em Itapetinga? Muita

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coisa. Foi exatamente numa daquelas suas ruas de terra batida, estreitas e sempre melancólicas que
ela tinha se prostituído. Mas também tinha a professora primária que a deixava de castigo à frente
do quadro negro; o bilhete para a mãe e as constantes surras.
- É. Bilhete pra mainha me bater, castigo, surra. – falou em voz alta.
- Que bilhete é esse que tu tá falando?
- Nada, não. Tava só lembrando dos tempos que papai trabalhava puxando cacau gosmento das
fazendas para os armazéns de Ilhéus, na beira do cais do porto. Às vezes ficava dias sem aparecer
em casa. Mamãe não gostava daquele jeito de papai, jeito de cara folgado, que ia para Ilhéus e
ficava dias namorando as quengas do cais. Mas comigo era diferente, me fazia todos os gostos. Era
só pedir. Eu gostava muito do seu cheiro de macho. Ele vivia de brincadeira quando estava em casa,
e eu o ajudava a caçoar de mamãe, do que ele muito gostava. Mamãe ia agüentando com aquele
jeito calmo que tinha. Acabava sempre estourando, perdia a resignação de criatura pequena,
baixinha, e botava a boca no mundo.
- É?
- É. Papai achava muito engraçado. E sorríamos os dois. Depois eu me assanhava em liberdades
não dadas, mamãe percebia e o chinelo voava. Eu apanhava de mamãe e papai saía. Ia ver os seus
amigos, ao bar tomar uma cerveja, conversar qualquer coisa. Naquele dia não falava nem com ela,
nem comigo. Certa vez ouvi papai dizer para um amigo que mamãe era muito velha para ele. Velha,
podia até ser. Feia, não. Tinha um corpo pequeno, era baixinha, mas não era feia.
- Eles brigavam muito?
- Brigavam, mas o que interessa é que papai tinha um emprego garantido e um caminhão.
Ajeitava-se ao volante e saía pelas fazendas levantando poeira como ele só.
Ela se recordava de quando tinha vindo para São Paulo. Na cidade grande não havia a presença
do pai, só havia barulho e chuva fria. Sua mãe também continuava lá em Itapetinga, tão longe de
São Paulo, num pontinho pequeno, quase na curva do mapa.
- Mas eu não gosto mais da Bahia. Um dia o filho do patrão de pai, moço rico de Salvador, foi
com ele lá em casa...
- Não carece contá mais nada, que já entendi. - Zé lembrou-se do que acontecera com sua irmã
em Mirandiba, do primeiro assassinato que havia praticado, dos sofrimentos que passara na
caatinga, e ficou furioso:
- Eu mato ele.
- Calma, Zé. Deixa eu contar a história toda.
- Apois conte. - Zé olhava-a como se ela fosse a sua irmã naquele momento.
- Pois é. - Continuou Beatriz. O safado me prometeu casamento, casa e mesa cheia. Acreditei.
- Aí ele te tirou o cabaço, foi?
- Foi.
- E ele não quis mais casar com tu?
- Casou nada, meu bichinho. Só fez ir embora pra capital. Aí painho me colocou porta à fora,
com um filho no bucho. Abortei de tanto passar fome e, desde então, tenho vivido a tragédia das
prostitutas que nasceram para serem mães de família.
- O peste te levou na conversa, foi?
- Foi. O desgraçado me iludiu, mas até que foi bom. Se não fosse ele, estava virgem até hoje,
costurando panos na Bahia e não teria conhecido você.
- Espero que tu teja falando a verdade. Tu tá gostando mesmo da minha pessoa?
- Claro, Zé. Tu é um cabra bom. Só tem que é meio arreliento.
O sertanejo apertou as mãos. Teve ódio dos coronéis e seus filhos. Aqueles malditos só viviam
de se aproveitar da desgraça dos outros. Uns malditos.

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Beatriz abraçou-o carinhosamente:
- Fica arengado, não, meu bichinho. A vida é assim mesmo. Tanto lá com cá, rico é rico, pobre é
pobre. - E completando com um sorriso amarelo: - puta é puta...
- Pra mim tu não é puta, não, mulé. Tu é uma criatura de coração bom, tá me ajudando... Puteia
por necessidade... No fundo, tu é uma mulé simples, inocente...
- Obrigada, Zé. Tu que é bacana, meu cangaceiro de meia tigela, meu gigolôzinho barato...
Riram.
Quando terminaram de rir, Zé voltou-se para Beatriz, sentou-se junto dela e beijou-lhe a face. Ela
tinha o rosto molhado de lágrimas.
- Zé, eu te amo de todo o coração.
Eles se abraçaram:
- Gosto até do seu horrível chapéu de couro - disse ela.
- Nem sei onde ele tá – replicou o sertanejo.
- Gosta? - Falou ela, mostrando-lhe os seios.
- Claro, sim... - Ele suspirou. - Posso...?
- Desabotoe... aqui... isso... aaah!
- Vou apagar a luz.
- Não. Volte aqui depressa...
- Tô aqui.
- Beije-me, Zé.
Não falaram por algum tempo. Depois...
- Toque. Acaricie. Aperte, belisque, explore, quero sentir suas mãos por todo o meu corpo...
- Sim... por toda parte, suas mãos, aí, sim, especialmente aí... oh!... você sabe, você sabe
exatamente onde... oh!
- Você é tão macia por dentro!
- Isso é um sonho.
- Não, é real.
- Não quero acordar nunca mais.
- Tão macia...
Ela arqueja, e ele como que soluça, e então, durante muitos minutos, ouve-se apenas o respirar
dos dois, até que, finalmente, ela começa a gritar alto e ele sufoca seus gritos com beijos, e então ela
mergulha o rosto no travesseiro, abre a boca e grita, e ele, não estando acostumado com isso, pensa
que algo está errado diz:
- Tu tá bem, tu tá bem...?
Finalmente ela termina o orgasmo e se deita de olhos fechados por algum tempo, transpirando,
até que sua respiração volta ao normal. Então, ergue os olhos para ele e diz:
- Você não gozou!
Zé Clemente ri, e ela o olha de um jeito esquisito, de modo que ele explica:
- Segurei, mulé, senão tu me rebentava e eu ainda quero mais!
Os dois caem na risada e ele diz:
- Já transei com muitas mulé, mas com tu é diferente...
- Estou tão feliz, Zé. Oh, Zé, estou tão feliz!
Nenhuma tristeza mais, só o carinho, promessas, beijos e o calor dos corpos se encontrando, os
ventres baixando e subindo, os rostos quentes de satisfação. Aplacado o êxtase, Zé espreguiça-se na
cama, aquele mesmo sorriso besta dos sertanejos comuns, recordações de Valdelice e do seu sertão
particular. Beatriz, num arfar de seios, a respiração rápida, recorda-se do filho do coronel e dorme.
Ambos dormem e sonham. São sonhos iguais, só que por caminhos diferentes. Quando acordaram

53
já era tarde. Corria uma aragem fria sobre as ruas poluídas de São Paulo. A garoa fina molhava os
ossos dos operários no final da tarde.
Nove da noite. Beatriz demora-se demasiadamente no banho. Zé Clemente dá papinha ao
papagaio suspenso no trapézio da gaiola. O papagaio sabia de tudo quanto existia de nome feio.
- Foi criado em casa de quenga, é por isso... - Explicou Beatriz, saindo do banheiro. - Aprendeu
tudo quanto é porcaria. Depois ela própria conversou com a ave repetindo os palavrões, até que o
papagaio mastigou as palavras de xingamento. O sertanejo tocou de leve o ombro da mulher. Ela
preparava-se para sair, o cigarro apagado no canto do lábio, o filtro manchado de batom vermelho.
- Onde pensa que vai, enfeitada desse jeito?
- Oxente, Zé, deixa de arrelia. Vou ganhar a vida, que o custo tá caro!
Indignado, por sabe-se lá o que, ele deu meia volta no corpo e saiu primeiro, dizendo que ia ao
botequim da esquina tomar uma talagada. Mas ela que conhecia bem a vida noturna de São Paulo,
sabia mais do que ele e riu. Sabia que ia procurar diversão, mulher. Sentia-se como se tivesse sido
roubada. É só o tempo de espiar pela janela e ver Zé Clemente desaparecer na escuridão da rua.
Beatriz vai para a boate devagar, tem vontade de chorar, mas não chora, pois sabe que na cidade
que a si mesma se chamou de grande, soa desafinado chorar por amor. Também sabia que todo o
lixo residual advindo dos costumes e tradições sertanejas havia sido sepultado ante o progresso
científico e tecnológico da maior cidade brasileira. Em São Paulo não havia espaço possível para
romances, cidade sobrecarregada de trabalho, iluminada e conduzida pelo avanço do conhecimento
e pelo crescimento das conquistas do saber. Eram milhões de indivíduos, automóveis, ônibus,
motocicletas e loucuras, num burburinho desgraçado. Eram as universidades, os estudantes, as
fábricas e os operários. Era a noite cheia de festa e cachaça pela cidade inteira. As surpresas e as
diabruras das pessoas civilizadas, expulsas da cultura nordestina, caberiam apenas na memória do
tempo. E isso também estava acontecendo com Zé Clemente. Varridos os fantasmas ignaros do
sertão inóspito e selvagem, dissipadas as brumas da violência sórdida, estava aberto o caminho para
a aventura maior do seu sonho de rei do inimaginável, sem saber que o homem é uma realidade
complexa encerrada numa pessoa única, chamada indivíduo. Não se pode, entretanto, individualizar
pessoas como Zé Clemente ou Beatriz, sem com isso destruir suas personalidades. A imaginação
humana, por si só, é incapaz de gerar um progresso satisfatório. Nossa atenção deve voltar-se para a
visão integral da pessoa humana. Fora dela, seremos eternos e bisonhos aprendizes de gente. Além
disso, ninguém sabe onde termina a fantasia e começa a razão!
Aborrecido por saber que Beatriz estava se pintando para ir trabalhar na boate, o sertanejo ficou
enciumado. Saiu pelas ruas escuras da Boca-do-Lixo, passando por vielas, praças e avenidas onde
se localizavam os inferninhos paulistanos. A noite estava quente, pegajosa, ameaçando chuva. Num
bar da avenida Rio Branco, barulhento e sujo, grupos de homens conversavam banalidades
enquanto aguardavam o resultado do jogo do bicho. Prostitutas, só de calcinhas, postavam-se nas
janelas e nas escadarias dos casarões caindo aos pedaços. Na porta de um prédio encardido da rua
Aurora as mulheres sentavam-se em degraus e debruçavam-se nas janelas, fumando e esperando por
fregueses, naquele sórdido convite: - Vem cá, meu bem. Algumas delas gritaram para Zé Clemente,
oferecendo seus corpos, tanto no sotaque nordestino, como no paulista, mineiro, carioca ou gaúcho.
Uma delas inquietou-se com a sua presença:
- Que é que tá querendo, pau-de-arara?
A mulher tinha grandes seios caídos e longos cabelos despenteados. A cara estava borrada de
batom vermelho-rubro - encarnado, como se diz no Nordeste. Ao vê-la, o sertanejo imediatamente a
comparou com a filha de Manuel do Riachão, que, como sempre o velho afirmava, deveria estar
abrindo as coxas em algum inferninho da rua da lama de Itabaiana. Zé Clemente não deu bola para
a pergunta. Passando por uma morena de coxas grossas, entrou em um pequeno beco, atravessou

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um largo pátio deserto e entrou por uma porta aberta sem numeração. Subiu a escada e bateu numa
porta do primeiro andar. Uma crioula de meia idade abriu-a. Ele pagou-lhe uma determinada
quantia e entrou. Uma das mulheres estava sendo trepada e gemia, a porta escancarada. O corredor
terminava numa espécie de terraço, ao lado do qual se estendia a varanda. Havia geladeiras,
televisores, mesas, garrafas cheias e vazias. Numa sala ao lado, vagamente iluminada, mobiliada
com luxo decadente, sentou-se num sofá e acendeu um baseado. Uma das prostitutas se aproximou
e tomou-lhe a mão. Conduziu-o para um quarto e puxou a cortina. Tirou a blusa. Tinha pequenos
seios morenos e bicudos. Zé Clemente beijou-lhe os bicos frente a um enorme espelho. Sua imagem
no espelho mudava constantemente, ora parecendo negra, depois muito branca, depois voraz, depois
apaixonada. Terminada a sessão de sexo, vestiu as roupas, desceu as escadas e ganhou a rua. O bar
da rua do Triunpho estava cheio. Pelo balcão e mesas espalhavam-se beberrões que engoliam
voluptuosamente cachaça e cerveja gelada. Alguns otários cantavam, desafinados, trechos do
repertório de Adoniran Barbosa, escandalizando os que queriam conversar. O sertanejo entrou no
recinto. Do balcão de madeira onde estavam alinhadas algumas garrafas, pediu ao português que
atendia:
- Tem catuaba? Se tivé bote uma!
- Tá bom assim?
- Tá, não. Pode enchê!
Pegou o copo e de um gole só sorveu a bebida. Depois disse ao balconista:
- Queima que só a peste. Pior que fogo. Mas é bebida pra homem. Bote outra.
O português serviu-o, recomendando:
- Tome devagarzinho!
Assim ele fez. Tomou a bebida, estalou os beiços e ficou brincando com o copo. Logo estava na
quinta dose e começou a sentir um entorpecimento como jamais tinha sentido na vida. Agora, se
estivesse no Nordeste, mataria todos os coronéis. A maconha e a bebida de vez lhe subiram à
cabeça. Acendeu outro baseado. O botequeiro veio com outra dose. Um homem de uns quarenta
anos, forte como um touro, aparentando ser um daqueles estivadores das docas de Santos, estava
sentado num banquinho do mesmo balcão. Já bem alterado pela bebida, o brutamontes tentava
puxar conversa:
- Eu pago mais uma rodada...
O homem era muito feio, de cor suja, meio amarelado ou azulado, o sertanejo não discernia. De
chapéu chulapa, olhos sombreados lá no fundo da cara e braços gordos, se chegou mais perto e
largou um desaforo aberto:
- Beba!
O sertanejo não concordou com aquilo.
- Bebo, não!
Lá fora o vento zunia, varrendo chão e a imundície da cidade grande. Os luminosos piscando,
copos retinindo, cigarros, maconha, conversa sobre a chuva, mulheres...
- Beba!
- Quero não, moço, que já bebi demais.
Os olhos do homem iam e vinham pelo balcão, onde copos e garrafas se batiam. A cabeça do
homem ia a vinha. Quando em quando, a mão viajava até o queixo, parava. Então, segurando o
copo de cachaça, num deboche nos beiços caídos ou numa provocação, falou:
- Beba essa merda, vagabundo. - disse, empurrando um copo em direção a Zé Clemente.
Aquela fala diferente mandava como Zé Clemente nunca tinha visto. Picou-o aquela fala. Um
ódio gordo pelo homem de olhos sombreados. Gordo, definitivo. O que faria aquela cara sebosa,
feia e nojenta?

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- Bebo, não.
- Eu estou mandando, não perguntei se você quer ou não. Você gosta de pinga, não gosta? Então
beba, pau-de-arara...
- Bebo, não.
- Então tome um banho, seu corno de merda. - gritou o valentão, atirando-lhe o copo de cachaça
na cara.
O sertanejo agarrou o pescoço do bêbado com as duas mãos, tirando-o do banquinho onde estava
sentado, atirando-o no chão. O homem caiu para frente e chocou-se contra o balcão num baque
surdo.
O dono do bar gritou:
- Parem.
Zé Clemente e o valentão trocavam socos e pontapés. O valentão era uns quinze anos mais velho
que Zé Clemente. Parecia ter sido lutador profissional, mas não estava em boa forma. O sertanejo
acertou-lhe um soco no nariz. Ele deu um passo para trás e bateu numa prateleira. Olhou para os
lados, viu uma cadeira, agarrou-a e atirou-a sobre Zé Clemente. Ele não acertou o alvo, e a cadeira
caiu no meio da rua, espatifando-se ruidosamente. O homem, acuado, de costas contra o balcão,
pegou uma garrafa e a arremessou contra a cabeça de Zé Clemente. Zé, sacando a faca, golpeou-o
na barriga e ele caiu sentado, sangrando muito, numa situação que metia medo. O sertanejo deu
com o pé na rua e tentou fugir. Não conseguiu, que a polícia estava por perto.
O camburão tinha bancos desconfortáveis, além de estar lotado de marginais detidos. Depois de
muito rodar, as portas se abriram. Na sala de depoimentos da delegacia Zé Clemente não sabia o
que argumentar. Aí, sem fazer nenhum ruído, apareceu um homenzarrão loiro, de terno escuro e
gravata vermelha. Era o carcereiro. O tipo entrou e foi tratando de fechar a porta. Zé Clemente
encostou-se num canto. O policial segurou-o pelos cabelos e sentou-lhe a mão espalmada na cara:
-Vamos conversar, safado. Você é traficante?
Perguntando isso, toeceu-lhe o braço.
Zé Clemente estava aterrorizado. Um calor infernal subia-lhe pelo corpo, as orelhas vermelhas,
os olhos quentes como brasas.
- Não sei de nada.
- Sabe sim, filho da puta.
O loirão aplicou a segunda bofetada. O sertanejo cambaleou, mas foi seguro por outro policial.
Além de manter o braço de Zé Clemente para trás com forte torção, o policial segurava-o também
pelos cabelos.
- Responde o que perguntei ou vai morrer de porrada.
O sertanejo não sabia o que fazer. Estava confuso e bastante atordoado, pois cada vez o braço era
mais torcido e os cabelos esticados.
- Fala, filho da puta, antes que me enfureça. Tem endereço fixo?
- Moro com uma quenga na rua Santa Cecília.
- Não mete as prostitutas em teus rolos.
- O carcereiro passou a apertar o sertanejo com mais força. Finalmente o lançou contra a
parede. Zé Clemente viu quando a porta se abriu e entrarem mais dois policiais. Um branco e um
preto. O branco passou a revistá-lo.
- Tira a roupa dele – bradou o loirão.
O negro puxo-o pelas pernas. Seus olhos se iluminaram quando encontrou uma bagana de
maconha escondida na barra da calça. Virou a calça pelo avesso e a exibiu ao carcereiro.
- Olha só que beleza!
O agente branco entregou a droga ao carcereiro que a cheirou, apalpou, como se examinasse uma

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jóia.
- Cabeça de negro. E da pura.
O carcereiro tirou o paletó e o pendurou numa cadeira, arregaçou as mangas da camisa, deixando
ver os braços grossos e peludos.
- Leva pro pau-de-arara.
O policial negro juntou o sertanejo pelos cabelos e desceram por uma escada, passando por
banheiros que fediam urina podre. Entraram numa sala sem janelas, onde havia um grande holofote
aceso. A única cadeira estava ao redor de uma pequena mesa.
- Acho bom abrir o jogo, que o carcereiro não é de brincadeira. Já tirou o couro de muito cara
ruim, quanto mais de um nordestino nojento como você – disse o policial branco, mostrando um
sorriso cínico.
O negro disse que o carcereiro já estava vindo. Zé Clemente ficou assustado, sabia bem o que ia
acontecer. A porta se abriu. O loirão ainda estava de mangas arregaçadas. Sentou-se na única
cadeira da sala e tirou um cabo de aço de uma gaveta da mesa.
- O que tem que ser feito, merece ser bem feito. Prometi porrada e é o que vai acontecer. A não
ser que entregue o cara que fornece a mercadoria.
A veia do pescoço de Zé Clemente latejava. Os olhos estavam esbugalhados. O carcereiro
puxou-o para perto da mesa.
- Onde comprou a maconha?
O sertanejo disse que achou na rua. O policial não acreditou. O agente branco não
esperou e aplicou-lhe a primeira bordoada nas costas, depois na cabeça, nas pernas. Segurou-o com
uma mão e, com a outra, meteu-lhe o cabo de aço sem dó e sem piedade. Zé Clemente gritou. O
carcereiro ordenou:
- Não quero gritaria aqui.
O policial negro apanhou a cueca do preso e a amarrou na sua boca. Depois também
começou a bater.
- Quando achar que está na hora de parar, abra o bico – falou o carcereiro.
Zé Clemente não conseguia se mexer. Só estava de pé porque o policial negro o segurava.
O policial branco abriu uma gaveta da mesa e retirou um cabo de aço mais fino.
- Vamos lá, mano – falou para o negro – vamos fazer esse mocorongo cantar, como nos velhos
tempos da ditadura militar. O branco sorriu, enquanto algemava os braços do sertanejo para trás.
Estava com as costas que era uma ferida só. Tinha que inventar alguma coisa para sair dali. Alguma
coisa sem sentido, que o carcereiro acreditasse. Mas não sabia o que dizer. Dedurar alguém, jamais.
O branco dobrou o cabo de aço fino, segurou os bagos do preso, amarrou-os e entregou o cabo de
aço ao carcereiro.
- Você aprendeu a dançar xaxado lá no Nordeste, cara safado? Se não aprendeu, vai aprender.
Deu o primeiro puxão no cabo de aço. O sertanejo tremeu de dor. O carcereiro riu. O cabo de aço
foi esticado outra vez. O negro ajudou o carcereiro a puxar o cabo de aço. Zé Clemente estava roxo,
algumas lágrimas escorreram. No instante em que ia desmaiar o cabo de aço afrouxou. O branco
tirou a cueca da sua boca e ele caiu sentado no chão. O carcereiro curvou-se a seu lado e falou:
- Vamos lá, arataca. Entrega o traficante ou vai acabar castrado.
Zé Clemente não agüentava mais. Foi nesse exato momento que entrou um homem meio
velho e manco, roupas puídas e cabelos desalinhados. Era o delegado chefe:
- Parem com essa tolice. O advogado dele telefonou e disse que o Arataca pode render
um bom dinheiro. Eu acreditei, pois é um advogado de renome. Parece até que vocês não gostam de
grana, só gostam de bater. A semana santa está aí, e os ovos de páscoa estão custando os olhos da
cara.

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- Mas – tentou argumentar o carcereiro.
- Não tem mas nem meio mas. Eu falei, tá falado.
O nordestino acordou ainda tonto pelos efeitos da pancadaria. Olhou o teto baixo, vários homens
deitados no chão, as paredes sujas e gradeadas, a lâmpada apagada. Caminhou pela sela, viu o
muro, os arames farpados, os cães, os guardas. Estava detido num corró sujo e fedorento. Olhando
através das grades, percebeu que a delegacia era grande, tinha até ala feminina. Da sela, podia ouvir
dois guardas conversando. Um ria mais do que falava. O outro contava uma estória.
- Ela é um mulherão da porra. Tou acostumado com essas vagabundas.
- E ela não estrila?
- No começo não queria, mas com uma faca no pescoço, vendo que não tinha outro
jeito...
O que falava pouco, ria alto. Pelas grades, Zé podia vê-los. Estavam sentados na escadaria logo
abaixo da sela.
- E a crioula da sela 8? Já foi com ela?
- Tu acha que sou homem de perder tempo com porcaria, cara?
- Porcaria? Tá enganado. No plantão passado passei a noite com ela. É um fodão da gota serena.
- Eu prefiro a morena de cabelos lisos. A que tem cara de evangélica, de mulher séria.
- De que sela?
- Da 4. Chupa, dá na frente e atrás. Essa sim, é um fodão.
Os guardas sumiram na penumbra. O preso continuou olhando através das grades,
acompanhando os movimentos dos demais detentos. A pouca iluminação que a sela recebia, vinha
do lado de fora, da rua. Arrastou os olhos nos homens que continuavam estendidos. Deitou-se no
chão úmido, procurando mergulhar no sono. Beatriz foi vê-lo na manhã seguinte. Ele chorou pela
primeira vez em sua vida de adulto e amaldiçoou a cidade, contando:
- No que o homem quis que eu bebesse, pensei: vô me botá pra rua, mode não arrumá encrenca,
mas o home feiz frente comigo, me jogou pinga na cara. Parti pra cima dele mode num levá
desaforo pra casa.
- E daí, Zé?
- Daí que quando ele me deu a cadeirada, toquei minha faca nos quartos do xibungo. O danado
tava de banda e deu de fasto. A arma só comeu as carnes dele por fora, de raspão. Quando ele deu
os berros, tentei ganhá a escuridão, mas a viatura policial me juntô. Que o padim Ciço ajudô, ajudô,
pois num careceu matá ou morrê, inda por pôco uma das duas coisa podia tê acontecido.
- E a maconha?
- Aí é que tá o pobrema. O delegado vai querer uma nota preta para me soltar. Caso contrário,
vai me enquadrar no artigo 12 da Lei Antitóxicos.
Beatriz voltou à delegacia ainda umas quatro vezes. Na quinta, foi com aquele advogado que já
havia telefonado ao delegado. Bateram à porta da autoridade. Um policial magro surgiu, mandando-
os entrar. Apareceu a figura do delegado, um homem baixo, arqueado, apoiando-se numa bengala,
um ar de patetice na cara. Estava bem desalinhado, a aparência de quem havia passado a noite na
farra. Levantou os olhos e falou, passando a mão pela barba rala, os cabelos despenteados:
- O doutor é o advogado do pau-de-arara?
- Sou. Aqui está a procuração.
O olhar não se desviou dos olhos do advogado, imóveis, aparentemente alheados. A boca se
contorceu num esforço para falar. Um ou dois minutos passaram, então ele falou, olhando para
Beatriz:
- Mulher dele?
- Sim senhor... É mais ou menos isso.

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O delegado caminhou pela sala, apoiado na bengala, arrastando a perna esquerda, o braço caído
ao longo do corpo. Depois de algum tempo, sentou-se atrás de uma mesa. Com a bengala, apontou
um sofá para os dois se sentarem. Ficou mais um instante calado, esforçando-se para falar. Por fim
perguntou:
- Por que mais ou menos, dona?
- Bem... na verdade... - gaguejou Beatriz, tentando explicar.
- Isso não interessa, doutor. Não está em questão o estado civil de meu cliente, nem o de Dona
Beatriz - socorreu-a o advogado.
O delegado esperou o advogado terminar a explanação e disse:
- Como o senhor sabe, doutor, de acordo com o artigo 12 da Lei 6368, a pena para quem trafica
drogas é de três a quinze anos de detenção. Isso para não falar do artigo 121 do Código Penal, que
se aplica a quem mata ou tenta matar um cidadão. Mas, considerando que o réu é primário, não
mandei lavrar o flagrante. Por cinco milhões podem levar esse pau-de-arara daqui.
O advogado consultou Beatriz e falou:
- Pagamos dois e não se fala mais nisso.
A roupa desalinhada, queimada em vários lugares pelos cigarros que fumava, a cinza
espalhando-se pelo paletó e sobre o colarinho da camisa desbotada, as mãos de alcoólatra tremendo,
o delegado na ânsia da propina, concordou:
- Podem levar.
Beatriz pagou dois milhões ao delegado e outro tanto para o advogado. Quatro milhões era o
dinheiro que ganhava em três meses de trabalho. Teria que trabalhar dobrado, fazer programas
também durante o dia.
Zé Clemente ficou diante do delegado por uns instantes, até que a autoridade, recomendou:
- Vê se não me aparece mais por aqui, gigolô vagabundo.
Zé ainda agradeceu:
- B'astardes, seu dotô. Sinhô do Bonfim lhe dê vida longa...
O delegado não respondeu. Cruzou os braços e fechou a cara. Na rua, Zé Clemente comentou
com Beatriz:
- Gente besta, de pôca prosa... Tão nas autoridades, conhecem tudo o que é lei...

SEIS MESES DEPOIS

Beatriz chegou em casa de madrugada, raiando o dia. Estava cansada, muito cansada. Zé
Clemente correu abrir a bolsa dela.
- Só vinte dólares?
- Aquele safado me levou no papo.
- E com tanta conversa mole? Tu num disse que ele ia te dá uma nota porreta?
- Pra tu vê, Zé, como é vida de puta. Eu bem sabia que não valia a pena, um gordo careca
daqueles...
Zé Clemente foi até a geladeira, retirou uma garrafa de cerveja, apanhou dois copos, retirou a
tampinha da garrafa e virou-a nos copos:
- Ele não havia te prometido duzentos?
- Prometeu. Eu tirando o corpo fora. Ontem, de tanto ele encher as paciências, fui. Sabe o que
aconteceu? O desgraçado me levou para um motel vagabundo, pediu umas cervejas e bebeu.
Depois, desembrulhou um pacotinho, mostrou-me um consolo desse tamanho, pedindo para eu
enfiar na bunda dele.
Ouvindo a história de Beatriz, Zé Clemente gargalhava a mais não poder. Por fim, passando a

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mão pelos olhos, perguntou:
- Cuma? Acuma é? Por acaso esse tal consolo é igual aquele pinto de borracha que tu me mostrô
na revista pornografa?
- Pornográfica, Zé. É igual aquele, sim, só que muito maior.
- E ele te pagou pra tu comê ele?
- Um viado, o filho da puta, deu-me essa merda de vinte dólares e ainda arremedou com raiva: -
Da próxima vez dou mais, hoje estou sem o talão de cheques.
- Êta São Paulo... Aqui tem de tudo...
- De tudo o que não presta. - retrucou ela.
Beatriz estava tremendo. Fazia muito frio em São Paulo. Zé puxou-a para si e beijou-a na boca.
Estava aprendendo boas maneiras, tornando-se civilizado. Beatriz levava uma vida leviana, porém
já tinha tido muitas ligações amorosas. Nenhum, entretanto se comparava a Zé Clemente, um
sertanejo rude, mas jovem e macho como nunca tinha visto. - Será que ele gosta de mim? - pensou.
- Não, não gostava. Era da comida farta, do dinheiro e do corpo dela que ele gostava. Mesmo assim,
deixou que ele brincasse com ela, que a usasse, que abusasse do seu corpo, um corpo de pele
sensível, tão macio por dentro, tão fácil de ferir. Então, ela deitou-se de costas, as pernas bem
abertas esperando pelo macho. Estar assim com Zé Clemente, se ele a amasse de verdade, se ele
fosse delicado com seu corpo, seria um prazer enorme. Mas sabia que Zé Clemente desejava apenas
usar-lhe o corpo. Estremeceu.
- Tu tá com frio, mulé?
- Não, eu não estava tremendo.
Ele ofereceu-lhe um copo de cerveja. Ela tinha a boca seca. Provou a cerveja gelada, depois
tomando todo o conteúdo do copo, fez com que se sentisse melhor. Ele sentou-se ao lado dela na
cama e voltou-se para fitá-la.
- Vinte dólares...
Vai começar a xingar, pensou ela. Ele pôs a mão sobre o joelho dela. Ela gelou, olhando para a
sua faca na cinta.
- Tá certo, Zé. Você ganhou. Ele me pagou os duzentos dólares prometidos. Abriu o zíper do
bolso da saia e dele retirou duas notas de cem, entregando-as ao gigolô. Zé Clemente falou:
- Nunca mais tente me enganar, sua cadela.
Ela começou a chorar:
- Não me bata, Zé, pelo amor de Deus...
- Tu é besta mesmo, mulé.
- O que? - não olhava para ele.
Com a ponta do dedo ele delineou o contorno de seu rosto: testa, nariz, lábios, queixo:
- Por que tu me agüenta, por que tu deixa eu morá mais tu, se sô um safado?
Ela, encarando-o, respondeu:
- Um dia tu ainda vai sê um homem muito bom, tenho certeza disso e, quando esse dia chegar
quero estar do teu lado. É por essa esperança que te suporto.
- Que bom que pense assim. - Pôs a mão novamente no joelho dela e curvou-se para frente, a fim
de beijá-la. Ela ofereceu-lhe o rosto. Os lábios dele roçaram-lhe a pele, depois ele sussurrou:
- Tu ainda gosta d’eu?
O tempo passou. Zé Clemente e Beatriz já não se entendiam como antes. Era o dia de folga de
Beatriz. Haviam combinado jantar no Restaurante Baião, na avenida Duque de Caxias, pouco
depois da praça Princesa Isabel. Era um prédio velho nas imediações da Estação Sorocabana,
imundo, descorado, defronte à antiga rodoviária. À entrada ficavam tipos vadios, de ordinário
discutindo futebol, e gente que passava: Jornaleiros, bicheiros. O bulício dos bondes, dos ônibus

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elétricos, dos táxis e das pessoas que embarcavam e desembarcavam era grande. A fachada era de
um bar como qualquer outro da Boca do Lixo. Depois o enorme balcão, a prateleira de bebidas, o
velho garçom de paletó branco, gravatinha borboleta e cara chupada. Nos fundos, o salão onde se
comia. Era isso o Baião. Zé Clemente conhecia muito bem o lugar. Conhecia vadios e vadias. Dava-
se com toda a canalha Sentaram-se à mesa do restaurante. Beatriz pediu uma canja, gorda, de
galinha caipira. Não conversavam nada, a não ser para pedirem que um passasse a pimenta, o azeite,
o queijo ralado, a mostarda, para o outro. O silêncio era suficiente para ouvir-se o ruído do alimento
sendo mastigado. Beatriz estava triste e pensava - Esse merda além de não trabalhar ainda adquiriu
o hábito de beber diariamente. Enquanto comia, Zé Clemente olhava para o balcão, num impulso de
tomar uma cachaça. Beatriz olhava para o lustre decadente, os candelabros, os quadros, uma
armadura de cobre e muitos penduricalhos que havia por cima de móveis antigos, poltronas com
forração de napa ordinária, os tapetes encardidos que o dono da espelunca jurava que eram persas.
Uma pintura na parede fez Zé Clemente sentir saudades do sertão... de Valdelice. Beatriz limpou a
boca no guardanapo:
- Uma merda.
- O que tu falô, mulé? O dicumê tá ruim?
Ela deu um jeito no corpo:
- Falei que sou uma jumenta... E tu, Zé? Foi gastar o meu dinheiro com as putas? Viram você
saindo da Pensão Triumpho, um estrupício.
Ele riu. Riso de gigolô mal acostumado ao trabalho:
- Deixa de orgulho, mulé...
A voz da rameira teve um acento profundo quando respondeu:
- E de decência também...
A malandragem prestava atenção, cochichos se dobravam. O dono da espelunca parado, na mão
uma garrafa vazia de boca para baixo. Zé Clemente, contrariando a sua condição de sertanejo, tinha
se transformado num sórdido vagabundo, alcoólatra e viciado em maconha.
- Oxente... Que coisa... Quando tivé dinheiro lhe pago.
- Pagamento? Tu nunca vai arrumar trabalho sério, honesto, homem... Quem vai dar emprego
prum vagabundo como você? Quem?
- Tu tá bêba...Cala essa matraca, senão lhe arrebento na porrada.
Beatriz perdeu a calma e o medo:
- Arrebenta, pau-de-arara filho da puta, corno, safado, assassino. Arrebente, morto de fome. Se
eu te metê o pé na bunda tu vira mendigo, esmolé, trapo humano... A discussão só parou com a
chegada do garçom indicando-lhes o olho da rua, que ali não era lugar de brigas. Beatriz pagou a
conta, pediu desculpas ao garçom e já ia saindo quando o homem da garrafa de boca para baixo a
chamou:
- Desculpe, Beatriz, mas tem uma continha do pau-de-arara no caixa. É pouca coisa, apenas
algumas cachaças, cigarros...
Já na porta da casa, Beatriz ainda não tinha encontrado a calma. Empurrou a porta, o barraco
estava em silêncio, a claridade amarelada da rua penetrando pelas vidraças e frestas. Fez um esforço
tremendo para que os olhos parassem de lacrimar, os beiços inchados estremecendo numa imitação
de quem balbucia. O sertanejo se aproximou para ouvir o que ela dizia:
- Meu amor, filho da puta...
Teria ouvido direito ou ela simplesmente estava embaralhando as coisas?
- Tu tá ficando pior que Valdelice, mulé... Que no começo ela era tão boa, adispois me botô uns
galhos...
- É. É isso mesmo. Tu é bem capaz de voltar pro Nordeste e pedir amparo, comida, roupa, e não

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sei mais o quê praquela vagabunda que te traiu.
- É?
- É. Eu sei que tu não presta... Não vale nada... Se fosse mulher, nem pra puta tu servia,
cachorro...
Um frio nas pernas de Beatriz, uma necessidade enorme de se deitar. Uma coisa na garganta,
crescendo, a boca não agüentava mais, sentiu que não agüentava. Nenhuma meretriz no seu lugar
agüentaria mais. Ia chorar, não tinha jeito.
- Que é isso, Beatriz? Ô Beatriz.
Assim falou Zé Clemente, apertando-a nos braços. O choro já serenado, baixo, sem soluços. Mas
era preciso limpar os olhos para ver as coisas direito. Pensou num infinito de coisas batucando na
sua cabeça: dois anos com Zé Clemente, cinco anos na boate Nigh Day, da Santa Ifigênia. Sete anos
de vida perdidos. O braço do gigolô puxou-a
- Me deixa.
- Tu tá histérica, mulé, tá precisada de macho. Vem...
Zé Clemente tinha virado um vagabundo, um sórdido gigolô. O sexo, o dinheiro de Beatriz e a
comida farta deixava-o ficar junto à rameira, com xingamento ou sem ele. Ele bem sabia acalmá-la,
era só deitá-la na cama, abrir-lhe bem as pernas... Beatriz o sustentava, ele lhe dava sexo, muito
sexo, sexo bom. Isso, para ela, era o suficiente. Fazia sexo profissionalmente, mas nenhum homem
lhe dava o prazer que Zé Clemente lhe proporcionava. Levantou-se. A lâmpada do quarto queimou
quando acionou o interruptor. Ela subiu numa cadeira para trocar o bulbo, quase se desiquilibrando.
Zé segurou-a com força. E segurando-a pelas pernas ficou, até que ela se virou, não mandando que
a soltasse nem nada. Vagarosamente desceu da cadeira. Sempre entre os braços do sertanejo,
estenderam-se sobre a cama. Beatriz de braços abertos, olhar perdido no teto, Zé tirando-lhe as
roupas. Por um instante não a tocou. Satisfazia-o olhá-la assim, só com a calcinha e o sutiã, o corpo
branco, bem feito, coxas grossas, mais bonita que qualquer outra mulher da Boca do Lixo. Encostou
de leve os beiços quentes na sua barriga. Beatriz tirou o sutiã, as mãos do gigolô alcançaram os
seios redondos, a respiração ofegante da mulher. Calmamente, como se não tivessem pressa, como
se não lembrassem da briga no restaurante, foram se envolvendo um no outro. Beatriz abraçando-o
com força, Zé Clemente sentindo aprofundar-se mais e mais, numa sensação poucas vezes igualada.
Ninguém precisava dizer que aquela era uma noite de sábado. Havia brigas, havia drogas e havia
gente apressada na rua. Mas Beatriz não olhava. As mãos dos amantes se acharam. Eles se olharam
e caíram na real.
- Ah, Zé, como tu é gostoso... Não larga de mim não, cachorro...
- Largo, não, minha puta. Largo, não.
E quando estavam ambos profundamente cansados, mantiveram-se imóveis, estendidos,
respirando o próprio cheiro que emitiam. A pele de Beatriz lisa e macia, como de uma adolescente.
- Sabe quantos anos tenho?
Zé sacudiu a cabeça em dúvida.
- Trinta e dois?
Depois acomodou o rosto entre os seios carnudos, ficou brincando com os cabelos longos e
loiros. Ele parecia insaciável, comia tudo o que estivesse ao seu alcance. Nunca se fartava. Talvez
não precisasse tanto do sexo dela, mas a comida era boa e muita. Em troca disso, bastava satisfazer-
lhe o corpo. Se ela o queria na cama, por que incomodar-se? A vida, afinal, não passava de uma
satisfação da carne, um caso fisiológico uma aberração da natureza? Sentimentalismo? Coisa de
gente idiota. Gente sem juízo. Às vezes, entretanto, vinham-lhe os mais longínquos pensamentos.
Com Val a coisa tinha sido diferente. O relacionamento inicial, o amor, o ódio, o rancor... Dela
tinha tido ciúmes. Recordava o seu sorriso, a gargalhada estridente, a cabeça encostada no seu peito,

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a boca prometendo loucuras... Não. O seu relacionamento com Beatriz não era amor. O que era
então? Comida? Cama? Bebida? Será que é essa a felicidade da cidade grande?
- O que é que tu tá pensando, cabra infeliz?
- Nada, não. É que nunca lhe dei nada em troca da comida, da bebida, da cama...
- Basta a sua companhia. Quando cansar de mim, também não haverá problema. Nunca me
decepciono. Homem é o que não me falta.
No dia seguinte, ainda amargando pensamentos, Zé levantou-se e saiu direto para a rua. Passou
no correio e escreveu uma carta para Riachão, Estado de Sergipe, aos cuidados de Valdelice Maria
Cavalcanti. O dia correu de bar em bar e, com a cachaça, também veio a escuridão da noite. O
luminoso se acendeu e, num golpe, fixou as oito letras do nome americanizado do lugar: “Blue
Star”, muquinfo que os malandros costumavam chamar de boate. Zé Clemente estava parado à
porta, esperando o estabelecimento abrir de vez.
- Com licença, moço.
Zé Clemente afastou-se, estirando fineza, dando o lado para um freguês e sua sirigaita passarem.
Seu cumprimento também foi largo, igualmente cínico. O freguês empurrou a porta de madeira
falsamente antiga, trabalhada em dourado. O sertanejo também entrou. Uma mulata sorridente
agarrou-o pela cintura. Começaram a beber. Os lábios da mulata entraram nos lábios dele. E, então,
em seu devaneio, pronunciou um nome sem preocupação: - Valdelice... Oh, Val... Que saudades...
- Que saudade besta é essa? Vê se te manca, que o meu nome é Marlene.
- Marlene, Nome bonito... Os teus zóios inté parece de vrido de anel de dotô... Vrido verde feito
cobra. Tu já viu cobra verde? Tu é tal qual uma, nos rebolados.
- Cabra descarado...
- Safada é tu...
- Me larga...
- Peste.
Quando chegou em casa raiava o dia. A cidade toda acordava como quem não tinha estado nas
orgias da noite. Não encontrou Beatriz. Estava trabalhando, naturalmente, ganhando a vida, que o
custo tá caro. Fumou um baseado e procurou colocar a cabeça em ordem. Precisava deixar o ciúme,
o rancor e a preocupação de lado. Afinal, ela era apenas uma meretriz. Mas era uma meretriz que o
sustentava. Seria isso a coisa inexplicável e misteriosa que o atraía para ela? Lembrava-se de
quando tinha chegado à São Paulo, andrajoso e fraco, o rosto amarelo, as roupas sujas, o
abominável chapéu de couro, a faca e outras tantas bugigangas. Recordava-se do sertão de
Pernambuco, Mirandiba, onde desde menino trabalhara em terra alheia, na enxada ou no machado,
de sol a sol; nos campos de algodão, no caroá, na roçada de matas e nas plantações de feijão-de-
corda, ganhando quase nada. Em São Paulo o tempo foi passando e, ele aprendendo, conhecendo a
vida moderna, conhecendo a droga, a cachaça e a promiscuidade, enfim. Aprendeu coisas
desconhecidas e absurdas no sertão de onde vinha, sabedorias da madrugada de cidade grande,
respostas agressivas, bebedeiras e mulheres. Eram muitas mulheres. Ai que mulherada linda e
perfumada. À luz da noite eram bonitas: louras, morenas, orientais e pretas com colares no pescoço
fulgindo à luz do abajur que nem ébano. Tinha tudo quanto é tipo de mulher: prostitutas finas,
meretrizes medíocres, putas de esquina, bailarinas famosas, artistas que faziam lotar as enormes
salas dos teatros e depois iam se deitar com o primeiro espectador que as convidasse; era a
mulherada casada que traía os maridos enquanto os cornos estavam trabalhando; eram as
comerciarias e bancárias que lotavam os barzinhos noturnos todos os sábados; eram as filhinhas-de-
papai e as damas da alta sociedade prostituindo-se com cavalheiros granfinos e playboyzinhos
baratos nos clubes dos jardins e nas mansões do Morumbi. Tinha de tudo quanto é mulher, só não
tinha santa. Se tinha, os maridos ciumentos escondiam-nas dos olhos afoitos da homarada afoita por

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uma carninha diferente. Até as freqüentadoras das igrejas evangélicas davam a sua canja. Era só
conferir. Muita mulher, pouco dinheiro. Zé também tinha a dele, é verdade. Uma prostituta, sim
senhor, mas também uma criatura sincera e honesta. Mas diabo, aquilo de ser gigolô doía. Cortava-
lhe o coração saber que estava sendo sustentado por mulher. Não, não podia continuar nessa vida,
ele que sempre soubera tão bem se cuidar, que aprendera a sobreviver em meio à caatinga seca
nordestina. Revoltava-se contra si próprio. Não podia ser. Não podia ser por quê? Era. Ele estava
enciumado. Ela, com certeza, naquele momento estava fazendo amor com outro. Com outro na
cama. E o que tinha ele com isso? Nada. Não a amava, não lhe gostava. Não gostava e não a amava
mesmo? Não. Desejava-a somente. Mas, o desejo em si não é amor? Se a desejava a amava? Amava
aquela mulher perdida, que tinha mil homens na cama. Uma pervertida. Tentou dormir. O sono não
veio. A cama sem ela parecia-lhe um objeto frio, úmido. Então, começou a xingar: - Viva o Brasil,
viva São Paulo, terra onde a mulher tem que vender o corpo para sobreviver e onde homens fortes
como ele não conseguiam emprego, virando gigolô para não morrer de fome. Uma merda! Beatriz
chegou, entrou e ficou parada na porta do quarto. Os xingamentos de Zé também pararam. Ficou
espiando a mulher, o vestido vermelho, a pintura borrada. Ela transbordava uma ressaca de fim de
noite por todos os poros, cheirava mal, um horrível cheiro de bebida alcoólica no pronunciar as
palavras. Na mão dela o jornal da manhã.
- Vote, que escuridão, Zé. Queimou a lâmpada do quarto?
- Lampa...? Eu não queimei nadica, não senhora. Tá vêno alguma fumaça?
- Que fumaça, homem. A lâmpada... A lâmpada... - e apontou o dedo em direção ao bulbo
apagado.
- Oxente, mulé, pru que tu num fala direito? Tá falando do fifó?
- É, Zé. Do fifó...
- E tu queria que um fifózinho de cem velas durasse quanto tempo? Contando que faz mais de
dois mês que tu botô ele ali, e gastando umas treis vela por dia...
Beatriz ainda conseguiu sorrir ante a sua inocência:
- Santa Madalena, como tu é burro, Zé. As velas da lâmpada não são velas de cera como as do
nordeste, não senhor.
- Entonces é vela do quê?
- De orelhas de jumento, como as tuas.
Aborrecida e cansada, Beatriz acomodou-se na cama. Procurava não se mexer e não conversar
para não perder o sono. Fechou os olhos como quem procura esquecer as maldades do mundo.
Quem sabe não viria o sono, agora que grossos pingos de chuva tamborilavam no telhado. Ficou
quieta, ouvindo os estrondos dos trovões. Na sala, calava-se a voz de Zé Clemente, para depois
pegar o jornal que estava sobre o sofá. Leu a manchete da primeira página: "Acidente na Dutra com
ônibus nordestino"! No texto abaixo, a relação das vítimas. Eram dezenas de mortos e feridos. Entre
os feridos, alguns internados no Hospital das Clínicas. Correu o dedo sobre os nomes e, entre eles,
um nome bastante conhecido chamou-lhe a atenção de imediato: Valdelice Maria Cavalcanti.
Exasperado, começou a xingar. Beatriz, acordada, quis saber o motivo, parecendo saber do que se
tratava. Virou-se pro lado e começou a contar os pingos de chuva que batiam na janela. Um
pequeno sorriso nos lábios. Zé quis responder-lhe, chegou mesmo a abrir a boca, mas fechou-a. Que
fosse aborrecer outro. Passara a noite na farra, dormira com o primeiro freguês que encontrara e
vinha agora lhe perguntar por que estava zangado? Ciúmes de Beatriz e pensamentos no acidente,
atirou o jornal sobre a cama, cara enciumada, lábios contraídos, perguntou:
- Como era ele, preto, branco, magro, gordo...?
Beatriz explodiu:
- Tu não tem nada com isso. Eu só estava trabalhando, como faço todas as noites, bem antes de

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te conhecer. Tu sabia que a coisa era assim, não sabia? Então por que a ciumeira?
- Nada, não! É que a minha cabeça...
- Na tua cabeça não tem nada, homem, nem miolo tem. Só tem cachaça e maconha - e,
completando: as vagabundas da rua.
- Tu sabe acuma é, num sabe? É o sangue quente que escorre nas veia, num tava acostumado,
juro que não...
- Por acaso tu num foi se embolá mais as tuas quengas? E ainda por cima, gastando o meu
dinheiro? Eu, que sou puta, não te traí, estava trabalhando, dancei, bebi, fiquei alegre e dormi com
um homem que me pagou muito bem. Então, onde está a zanga?
Ele também não sabia. Então, nesse momento, reconheceu a sua incompetência. Saíra-se um
romântico, e ela, então lhe disse:
- Zé, tu tá muito dengoso pro meu gosto. Não nega o nordestino ignorante que é. Eu bem sei por
que tu tá nervoso.
- Tu num sabe de nada.
- Não sei? Pensa que eu não li a notícia no jornal? Comprei de propósito...
Ele abaixou a cabeça pensativo. Apanhou o blusão de lã e precipitou-se a caminho da rua,
murmurando: - Não nega o que é!
Em casa, Beatriz estava indignada: - Burrice não tem cura, que vá procurar sua quenga! Depois,
mais calma, deu um bocejo e dormiu. Dormiu um sono inquieto, porque os raios lucilavam no céu e
os estrondos estremeciam a casa. Um dos estrondos foi bastante forte, antecipado de um
ziguezaguear de luz que a fez levantar e fechar a janela. Na Rua Zé Clemente andava devagar. A
cidade estava tão fervilhante como a qualquer hora do dia ou da noite. Tomou um lotação e foi até a
Estação do Norte. Havia muitos retirantes nordestinos nas calçadas, praças e imediações da
ferroviária. Eram homens endurecidos que tinham passado fome, sede, doenças e milhares de
dificuldades na caatinga, suportado a areia escaldante, os arbustos venenosos, o calor, as epidemias,
e, geralmente, achavam os paulistas bem menos agradáveis do que deveriam ser. Quando um
botequeiro roubava no troco, se numa barraca de frutas o proprietário exagerava no preço, ou um
empregado de bar se recusava a servir bêbados, os retirantes recordavam o sertão esturricado, a
fome, os coronéis de barriga farta, as emboscadas dos cangaceiros e começavam a brigar, a quebrar
tudo, a destruir o que achavam pela frente. Sentindo um calor escaldante, como se ainda estivesse
na caatinga, Zé Clemente, olhando aquela turba, teve ódio da pobreza, da miséria que estava
passando em São Paulo, e de seus próprios conterrâneos. - Um bando de imbecis, pensou. Saiu dali
e começou a caminhar lentamente, o cigarro na mão, gozando a chuva que continuava a cair,
olhando para dentro das pequenas lojas, recusando-se a comprar as roupas que os turcos ofereciam e
os sanduíches que os ambulantes apregoavam. Divertiu-se com um camelô de rua que vendia
revistas pornográficas intercaladas com fotos do Padre Cícero. Viu um bando de nordestinos morrer
de rir à vista de dois homossexuais barbudos que passeavam de mãos dadas. Entrou num bar e pediu
uma catuaba, depois outra. Na quinta, a visão de Zé Clemente estava um tanto turva. Então ele saiu
e tomou um ônibus. Sentado no lotação, os pensamentos de Zé Clemente não o deixavam quieto: -
Essa São Pedro mandou pra valer. Vai molhar a terra toda. Tomara que chova assim também no
meu Norte! Pela janela do ônibus, o seu olhar abrangeu uma grande área da cidade, onde os prédios
pareciam cachoeiras. O lençol d'água estendido, sem dobras, apenas com leves ondulações. Nunca
tinha visto tamanha chuva. O lençol aumentava, debruçando-se sobre as ruas, viadutos, praças e
jardins; um quase nada de gente nas calçadas e de carros rolando na enxurrada. Vez ou outra um
poste caído, uma árvore arrancada pelo temporal. Pouco depois seu olhar alcançou o Hospital das
Clínicas de um lado e de outro. Um prédio branco que não tinha mais fim. Na sala de espera do
hospital, o frio aumentara. Nuvens negras e espessas, que se tornavam cinzentas, derramavam

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cascatas sobre a cidade grande. E, naquele frio demasiado, Zé Clemente, lembrando-se da sua
caatinga seca, derramou algumas lágrimas amargas, como se a vida também estivesse se
derramando. Pensou em Valdelice. Estaria viva? Os médicos, as enfermeiras e todo o pessoal do
hospital trabalhando com afinco. Tão pequena aquela enfermaria. E tratava de tanta gente. Na
primeira cama, uma mulher negra tomando soro. Na segunda, um velho com a cabeça enfaixada.
Junto a ele, numa terceira cama, Valdelice aguardava alta. Na presença dele, os olhos da moça se
abriram e riram. Os lábios e a boca também sorriram. Então ele sentiu o verdadeiro cheiro do seu
Nordeste, da sua caatinga querida, do seu sertão amado e ficou admirando o sorriso dela. De
repente, desapareceu-lhe o sorriso e ela ficou amuada. O que seria? Satisfação ou dúvida? Castigo
ou perdão? Zé, cheio de dúvidas, ficou admirando aqueles olhos amendoados, aquele cabelo
curtinho que teimava em querer crescer. Olhando fixamente para ele, ela sorriu novamente. Uma
cascata de luz no olhar, lábios úmidos, sedentos de amor. Parentes das vítimas apinhavam-se ávidos
por informações. Os homens falavam, as mulheres resmungavam, as crianças choravam... Por fim,
todos choravam. Saíam enfermeiros e médicos. Um segurança, ordenou aos visitantes:
- Esperem no corredor, que acabou o horário de visita na enfermaria.
Zé passou a mão pela testa molhada, resmungou qualquer coisa em voz baixa e pisou o primeiro
degrau. Os demais o seguiram. Sentando-se num banco do corredor, acendeu um cigarro.
Percebendo a proibição, apagou-o e ficou calado, cabeça baixa, curvado, que o momento era para
reflexão. Os demais também haviam ficado quietos. Zé quis dizer alguma coisa, mas hesitou, mão
suspensa no ar. E, como avistasse um funcionário do Instituto Médico Legal, sentiu um cheiro de
defunto e abandonou o banco em que estava sentado, aproximando-se da viatura funerária. Todos o
seguiram. Eram homens amarelos, sofridos, de cara chupada, magros e de cabelos desalinhados.
Eram mulheres tristes, de rostos enferrujados como latas velhas. A feiúra entre elas - pensou Zé
Clemente: - não se mede pela idade, mas sim pela fome que passaram no Nordeste e agora
continuam passando nas favelas de São Paulo. Pensou nisso, pensou nos seus familiares que
estavam passando dificuldades em Mirandiba e quase chorou. O funcionário do IML caminhou em
direção a eles. A preocupação tornou-se geral.
- Quem de vocês conhece Manuel Vicente de Assis?
Zé Clemente sentiu-se invadido por um temor, que tomou conta de todo o seu corpo. De seu
peito ia sair um grito de surpresa, de angústia, mas a garganta trancou-se e ele rosnou como um
animal acuado. O morto era o homem de cabeça enfaixada na segunda cama da enfermaria. Era o
velho Manuel, que tanto o ajudara quando chegara cansado, doente e esfomeado em Riachão.
Depois que o corpo do velho Manuel foi transportado para o necrotério. Zé Clemente perguntou a
uma velha que estava a seu lado:
- Aonde vai sê a sentinela?
- Vai tê sentinela, não, moço. Aqui no São Paulo, tem dessas coisas não...
- E enterram sem a guardação do corpo?
A filha dela completou a conversa:
- ... quando o falecido ou os parentes do falecido não tem dinheiro para o caixão, sentinela e
enterro, queimam o corpo do desenfeliz num forno lá no cemitério da Vila Formosa... é uma
desumanidade...
Durante alguns minutos, Zé Clemente ficou estático, até que a velha, com uma ponta de
curiosidade, perguntou:
- Tu conhecia o defunto?
- Conhecia, sim. Era um homem muito bom.
- Virxe se era bom - tornou a velha: - tava junto de nós no ônibus, mais uma moça que tombem
tá na enfermaria... O nome dela é Valdelice. Tu também conhece ela?

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Zé engoliu a saliva e respondeu:
- É da vida, dona... É da vida.
A pergunta da velha despertou em seu peito muitas recordações; lembrou-se de todos os
momentos que tinha passado com Val, de sua ida a Aracaju para assentar praça na polícia. Quanto
sofrimento, raiva e ódio... Por acaso não fora por causa dela que tinha feito toda a família de Zé
Luiz, pai, mãe e jagunços sumirem do mapa como sumiram? Tirando-o dos seus pensamentos, a
velha voltou a perguntar:
- E tu, menino, o que faz da vida em São Paulo?
- Trabalhei muito no Norte. Fiz de tudo quanto é coisa de roçado. Entrei na puliça e o que foi que
ganhei? Uma perseguição mode algumas mortes que pratiquei. Chegando em São Paulo resolvi
arrumá serviço honesto. Não consegui.
A velha ouvia-o atentamente. Zé contou-lhe toda a história. Ao final, completou:
- Hoje, minha tia, sou o maior vagabundo de São Paulo, parceiro dos mendigos, dos cegos que
pedem esmolas, dos aleijados, da lama dos esgotos, dos ratos e dos bêbados. Virei até gigolô de
puta, já pensou?
- Vote!
- É. Acabei conhecendo todos os cabarés, as boates, os prostíbulos, os hospitais nojentos e a
podridão das ruas de São Paulo. Vivo com toda essa gente. É com ela que eu ganho o meu dinheiro,
que como, que bebo, que vivo...
- Tu vende alguma coisa pra eles?
- Maconha, cola de sapateiro, crack, cocaína, essas merdas.
A velha espalmou as mãos para o céu:
- Cruz, credo! O senhor também é ladrão?
- Calma dona. Calma. Não diga essa palavra, é nome feio.
Tarde da noite, após ter dado relatório da sua vida à velha e aos demais ouvintes, despediu-se e
saiu, prometendo voltar no dia seguinte. E assim foi. No terceiro dia, os médicos deram alta à
Valdelice. Estava meio fraca, mas apesar dos ferimentos irradiava uma alegria danada por estar em
São Paulo.
- Vamos. - chamou Zé Clemente. Vou te deixar numa pensão que fica perto daqui, numa rua
chamada Jaguaribe.
Desceram a rua da Consolação a pé. Durante o percurso, Valdelice contou-lhe da viagem, do
acidente, da perseguição que a polícia lhe movera após os assassinatos que ele praticara contra a
família do coronel Quincas. Também lhe contou que tinha arribado pra São Paulo depois de receber
sua carta. Só interrompia o relato para olhar a cidade. Impressionava-a extensão das ruas, o
movimento dos automóveis e os edifícios altos confinando com o infinito do céu. Escutava, além do
ruído dos motores, gritos dos vendedores ambulantes que vinham de algumas barracas muito
coloridas nas imediações do Largo do Arouche. Pelo sotaque sabia que os vendedores eram seus
conterrâneos. Sabia que também tinham deixado a caatinga espinhenta, a terra esturricada, e que
agora estavam enriquecendo e vivendo feliz ante a imensidão da cidade. Entraram numa rua
estreita, marginada por edifícios altos, antigos e descoloridos. Pararam num deles. Valdelice viu um
corredor de quartos enfileirados. Então perguntou a Zé Clemente:
- É aqui que vou ficar?
- É.
Ela ficou sentada num velho sofá da sala-de-estar, enquanto ele descia uns degraus, caminhando
corredor à fora. Por fim, encontrou o dono da pensão:
- Seu Ananias, qual é o quarto que o senhor me reservou?
- É o vinte e sete, Zé. Pode conferir, está tudo arrumadinho.

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Depois de a colocar na pensão, foi a casa de Beatriz. E, na manhã seguinte, após contar
detalhadamente o acontecido à meretriz, voltou à pensão. Val tinha acabado de tomar o café da
manhã. Zé, beijou-a longamente.
- Oh, meu bichinho...
- O que é, amor...?
Deitada na cama, as costas erguidas por um enorme travesseiro, ela o observava. Zé Clemente
estava diferente, bem vestido, perfumado. E se ele tivesse outra mulher? Pensou que não ia gostar
daquilo. Adivinhando-lhe os pensamentos acariciou-a e disse:
- Eu te amo!
- Como é o nome dela?
Ele não respondeu, mas perguntou:
- Tu ainda me ama?
Ela não também respondeu. Só o escutava pela metade. Depois fechou os olhos e perguntou:
- Ela é bonita, Zé?
Ele não respondeu, mas vestiu-se e saiu. Foi ao bar da esquina, pegou uma garrafa de cachaça e
algumas cervejas, emprestou dois copos na cozinha da pensão e levou tudo para o quarto.
- Quer?
- Não - disse ela. - Sim.
Ele serviu a cachaça e entregou-lhe um copo. Ela tomou a dose de um gole só e pegou uma
latinha de cerveja. Depois de tomar a cerveja, Valdelice se virou para o outro lado e encostou a
cabeça no travesseiro.
- Se embrulha mais eu, homem, que tá frio. Êta São Paulo da gota...
Nesse resto de noite, ouvindo Valdelice ressonar, perdeu o sono. A madrugada chegou. Zé
Clemente afastou o olhar do corpo dela e mirou as réstias de luz que penetravam pelas frinchas da
porta e da janela. Levantou-se. Foi ao banheiro. A cueca arriada, o cigarro entre os dedos: - Mas que
diabo, será que eu ainda amo essa quenga? Mal clareou o dia, ela foi perguntando:
- Amor! Tu ainda não me explicou cuma foi o teu serviço nas puliça, lá no Aracaju. Conta.
- Acho que pra sê puliça carece tê coração duro. Tempo perdido...
- Tu pediu baixa, foi?
- Foi, não. Desertei, que o comando tava desconfiado d'eu mode as morte que pratiquei. Inda
sim, a sodade de tu matava.
- Cuma foi?
Na verdade, Zé Clemente não queria explicar porque fugira de Aracaju. Não queria explicar
detalhadamente a razão.
- Deixa quieto, Valzinha. Ôtro dia explico tudinho.
Pensando no assunto, sentiu-se como se tivesse sido despedaçado por dentro, desintegrado,
vazio. Voltou-se para ela e disse:
- Acho que nem pra macaco eu presto.
Depois, apagando o cigarro no cinzeiro, voltou-se para sair. A mulher segurou-lhe a mão.
- Merda, né Zé?
- O quê, Val?
- A vida... Tu pensava n'eu, lá no Aracaju?
- Entonces num foi mode te vê que arribei das puliça?
- Foi?
- Foi! A sodade de tu, batendo nos peito, matava...
- Eles desconfiaram que era tu o matadô do Riachão?
- No começo, não. Adispois, a justiça começô a investigá as mortes do Riachão. Mais dia, menos

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dia eles iam descobrir que era eu o matador.
- E como tu ficô sabendo dessas coisas?
- Fiquei, não! O sargento, meu primo, o Raimundão é que tomô tento e me aconselhô a fugir.
Assim, pensando em tu, comprei um par de botinas rangedeira, preparei a minha carne-seca com
pirão, alisei os cabelos à força de brilhantina de mil cruzeiros a lata e fugi.
- A pé?
- É, que não podia ganhá estrada e ser reconhecido. Me toquei por léguas e léguas de sertão,
mode vê tu e o menino. As sombras da noite caíam sobre o açude quando cheguei, lembra?
- Lembro.
- E o que aconteceu? Tu me contou que tinha abortado mode a surra que os jagunços deram em
tu. Me contou que eles tinham matado teu pai, a tua mãe, num foi?
- Foi.
Bateu com a mão sobre o ombro de Valdelice:
- Tive que matá mais cinco por tua causa, lembra?
- Esquece, Zé, o que passou, passou... Cada um tem seu destino e sua cruz pra carregá...
O sertanejo estava enfurecido.
- Vô tomá umas pingas.
- Pinga não resolve nada, Zé. Só faz complicar mais as coisas.
Saiu. Valdelice olhou-o entristecida. Quando voltou, não se conteve:
- Tu anda bebendo muito. Qualquer hora dessas tu adoece com os figo arrebentado.
- Cum curpa de crime nas costas, quem é que não bebe?
- Os homem sempre acham uma desculpa pra beber: tá triste, bebe, tá alegre, bebe...
- Ora Val... Tu tá me arreliando. Fecha essa matraca...
- Tô falando pro teu bem, homem.
O rosto afogueado pela bebida, Zé Clemente olhou-a com indignação.
- Tu vai continuar nesses falatório?
Ela calou-se, saiu do quarto e foi até a sala da pensão. Ficou vendo televisão, os olhos molhados
de lágrimas. Seu Ananias, o hospedeiro, perguntou-lhe:
- Algum problema, dona, a senhora está chorando...?
- Nada, não, Seu Ananias, é a novela da televisão... Todo mundo têm direito de nascer. Eu
tombém abortei meu filho. Coisa triste, num é?
Zé passou pela sala. Ia sair novamente, mas ela chamou-o:
- Perdoa a tua Valzinha, eu perdi a classe, não queria ofendê...
- Tem nada, não, amorzinho, tu gosta d'eu, num gosta?
- Sempre vô sê a tua quenguinha... Só tua...
Na noite seguinte, mais uma vez dormiram juntos. Amavam-se furiosamente. Ela, toda sexo,
toda desejo. Ele, libertando-se aos poucos da influência sertaneja. Começava a felicidade dos dois?
Sabe-se lá. Zé passava as noites com Valdelice, fazendo projetos. Mas nos momentos em que se
lembrava de Beatriz, botava abaixo os seus planos: - Uma merda, resmungava. Já não lhe vinha à
cabeça a imagem de uma casinha caiada de branco. Ela o amaria de verdade? Soava-lhe nos
ouvidos, má, cortante, a gargalhada de Beatriz: - Tu nasceu pra ser corno, Zé. Gigolô precisa de um
talento que tu não tem. Tinha lhe dito: - Vá se encontrar com a tua quenga, vá arrumar mais galhos
nessa cabeçorra ôca...
Pensando nas palavras da rameira, Zé deixou cair os pensamentos num gesto de desalento.
Levantou-se, andou alguns passos pelo quarto, querendo sair para a rua.
- Onde pensa que vai?
Ele começou a passar os dedos por entre os cabelos untados de brilhantina barata, num gesto

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muito seu. Quisera não responder. Caminhou até a janela e tentou distrair-se com o movimento da
rua. Valdelice arfava o busto, mostrando a saliência dos seios. Então ele sorriu, apreciando a figura
da mulher:
- Vamos parar com as brigas, Val?
Ao invés de responder, ela pegando-lhe a mão, puxou-o para a cama. As mãos começaram a
alisar-lhe o peito nu... Ele pensou: - Uma sertaneja, sim. Bem diferente de Beatriz que era baiana e
civilizada. Usava e abusava dos sentimentos das duas, mas qual delas era a sua preferida? Não sabia
explicar.
- Pare de resmungar, homem, tenta dormir que já é tarde.
Mas os pensamentos dele estavam longe dali. Estavam em Beatriz. - Ela sim - pensou: - ... tendo
virado prostituta, continuava uma mulher honesta. Se ele a tivesse ali , naquele momento, toda a sua
angústia, toda a sua incerteza desapareceriam. Ele desceria numa carícia longa, as mãos alisando os
cabelos revoltos. Ela o consolaria. – Tão boa aquela puta... Largou Valdelice dormindo e,
violentamente, como quem quer se livrar de um incômodo, saiu pelas ruas molhadas. Eram umas
duas horas da manhã quando ele entrou no cabaré onde Beatriz trabalhava. No palco, todo
iluminado, ela rebolava deliciosamente, preparando-se para o strip-tease, que era o maior show da
noite. Quando ela tirou a primeira peça, o ritmo musical acelerou. Beatriz lançou um olhar pelo
salão lotado. Dezenas de homens arregalavam cupidamente os olhos em seu corpo magnífico. O que
tinha de vagabundagem ali não estava em nenhum gibi: espertinhos, mãos grandes, mocorongos dos
pés lambidos, muquiranas, bêbados, loques, cavalos de tetas, zé manés dando bandeira, doutores de
diploma comprado e papagaios enfeitados. Não era brincadeira. Os leões-de-chácara, na noite
malhada, cada qual à sua maneira, iam disciplinando a cambada, botando otários pra correr,
distribuindo gentilezas e apanhando gorjetas, traiçoeiros e sonsos, dando muita piaba e bastante pau
nessa cambada de fariseus sambados e mal topados. Solto na noite, ele era o falso boêmio: duro,
mas metido a sabidinho. Mordia uma grana de Beatriz, é verdade, mas só depois de uma canseira
danada. De seu canto, ele viu quando ela discretamente retirou o sutiã, vendo os seios dela
sacudirem, o ventre rolar e os quadris moverem-se aos arrancos. Depois de dispensar a longa saia de
seda pura, atirando-a discretamente aos espectadores, começou a girar, cada vez mais veloz. Na
boate tinha dois tipos de gente: os que faturavam e os que aturavam. E a grana ia falando mais alto.
O sertanejo pensou: - De minha parte, tenho faturado pouco e aturado muito. Mas o que se há de
fazer? Em lagoa de piranha, jacaré nada de costas. A platéia delirava, pedindo aos berros para que
ela tirasse a calcinha. Ela não o fez, limitando-se a tirar os sapatos, jogando-os para um canto
qualquer. Descalça, rodopiava voluptuosamente. Não havia mais ordenação em seu show, ela o
executava instintivamente. A música atingiu o clímax quando ela, puxando um fiozinho invisível,
despiu a calcinha e, delicadamente, num movimento rápido, atirou-a para um velhote que estava
sentado na primeira fila. A platéia delirou e ela, soltando um gritinho, jogou-se para trás, as pernas
dobradas, as coxas abertas para a platéia embevecida. Depois, sob uma tempestade de aplausos, ela
se ergueu e atravessou o palco apagado até as coxias. Foi depressa para o camarim, cabeça baixa,
sem olhar para ninguém. Não queria palavras. Eles não entenderiam. Ninguém sabia como era para
ela perder Zé Clemente para a quenga do Nordeste. Zé Clemente, meio que enciumado,
discretamente saiu do cabaré à procura de um bar onde pudesse matar a mágoas. Assim deixou-se
ficar no Pingo de Ouro, na rua Vitória, até que o dia amanheceu. Lá pelas sete da manhã foi até a
casa de Beatriz. Ela ainda não havia chegado. Quando chegou, trajava um vestido azul, de algodão,
de saia rodada, muito simples, mas transparente o bastante para permitir ver-se através dele. A
tonalidade parecia muito pálida em contraste com sua pele de uma baianice perfeita. Beatriz não
podia mais de espanto.
- É tu, Zé? E a quenga?

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- Tô aperreado, me desiludi de tudo, minha puta. Tô convencido de que tu tá cheia de razão...
- Foi tu que quis assim, não foi? Na vagabundagem, meu caro, quem vacila se estrepa.
Zé Clemente queixou-se da comida ruim dos restaurantes, do aluguel do quarto e da grosseria do
proprietário da pensão. Beatriz explicou-lhe que a comida era ruim porque ele insistia em pratos
nordestinos em vez de paulistas, que o aluguel do quarto era elevado devido aos milhares de
nordestinos que, como ele, tinham invadido a cidade, e que o proprietário da pensão era rude porque
ele era um vagabundo que atrasava o pagamento do aluguel, que era arrogante demais para aprender
tantas expressões corteses necessárias à sobrevivência na cidade grande. Ele sabia que ela estava
dizendo a verdade: havia já bastante tempo que ele tinha chegado à São Paulo, mas não aprendeu
muita coisa além de traficar drogas. Continuava o mesmo sertanejo estúpido e ignorante. Em meio a
esse rosário de queixas, pediu:
- Estou precisando de um dinheirinho para pagar a pensão.
Zé Clemente notou uma mudança no semblante de Beatriz e perguntou:
- O que há?
- Tu tá se fazendo de besta, né, Zé? Se tu tá com falta de dinheiro, vá trabalhar, vender as tuas
porcarias e arrumar grana, que a minha tá curta.
- Estou sem erva e, por outra, a polícia tá dando muito trabalho. Acho que vou parar com o
tráfico...
- Quem entra na vida de traficante, meu filho, não se livra mais dela. Se não morre, quando
muito vai preso. Mas isso é que é o pior. Um dia sente falta da droga e tem culpa a condenar.
Quando, finalmente, consegue, toma paulada e volta novamente pra cadeia.
- Minha vida tá cheia de desilusão... Até tu vem me dá sermão?
- Quem procura sarna acaba encontrando. Quem mandou tu mandar carta para aquela
vagabunda? Se não fosse o teu convite, ela não teria vindo. Tu fez papel de palhaço...
Mas ele, sequioso de amor por Valdelice, preferia ser palhaço a viver longe dela. Era obrigado a
reconhecer isso.
- Será que tu queria eu só pra tu?
- Não, Zé. A minha vida contigo não tem importância. Sou mulher da vida, da rua ou dos
dancing’s, se virando e mordendo os trouxas. Desde cedo aprendi, debaixo de porrada, a ver sem
salamaleques as coisas desta vida. Como tantas outras mulheres que nasceram para serem mães de
família, acabei rolando na noite e nas virações, ganhando cedo o nome de puta. Pode dormir com a
quenga quando quiser. Não me interessa. Meu negócio é levar para a cama gente de dinheiro:
políticos, artistas e empresários endinheirados. E isso não é coisa para trouxa nenhum entender.
Agora, se me dá licença, preciso descansar, que à noite a vida de puta me espera. Sem dizer mais
palavra, aborrecido pela negação do dinheiro, saiu batendo a porta com raiva. Na manhã seguinte,
após chegar da boate Beatriz ainda meio sonolenta tomou um táxi. A visita de Zé Clemente, no dia
anterior, tirara-lhe a calma. Estava preocupada, não poderia deixá-lo ao deus-dará, jogado na rua,
ele mais a quenga, como dois mendigos. Não! Isso, na dependência dela, não iria acontecer. - Mas é
a última vez, pensou. O táxi arrancou, rumando para a rua Jaguaribe. Depois de apertar a campainha
umas três vezes, Seu Ananias, o dono da pensão, apareceu:
- O que a senhora quer?
- Falar com Zé Clemente. Ele mora aqui, não mora?
- Ele não está. E não aparece tão cedo. Está me devendo dois meses de aluguel. Chega tarde da
noite e sai pela manhã. Não sei com que trabalha... A piranha dele, então, dorme o dia inteiro. Uma
preguiçosa, essa piranha.
- Está bem, meu senhor, quanto lhe deve?
- Oitocentos mil cruzeiros.

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- Eu pago!
De repente o homem ficou amável.
- Desculpe... mas a senhora compreende
- Nada, não. Só diga a que horas ele chega?
- Eu menti pra senhora. Estão dormindo. Eu não queria incomodar, que ele anda meio esquisito
Beatriz não ouviu mais, descendo as escadas, entrando corredor adentro. Empurrou a porta do
quarto 27. Na cama, apertadinhos, Zé Clemente e Valdelice dormiam o sono dos que têm os
instintos saciados. Despertou-os. Valdelice a tapar o rosto com uma toalha, envergonhada, em vez
de tapar as outras partes que exibia opulentas. Sentado na cama, Zé Clemente gaguejava ante a
presença de Beatriz. Quis falar alguma coisa, mas ela falou primeiro:
- Paguei a tua conta e a dessa quenga, corno filho da puta. Vê se não me incomoda mais...
Saiu batendo a porta. Na rua lembrou-se que não tinha visto a cara da quenga, escondida pela
toalha. Se a visse na rua, não a reconheceria. Mas o que importava isso? Não tinha a menor vontade
de conhecê-la.
Valdelice estava nervosa:
- Tu viu, Zé, o que tu fez?.
Zé levou as duas mãos ao rosto da moça e lhe fez um carinho. Ela ergueu os olhos para ele,
impassível. Com os polegares sob o queixo, ele a fez levantar o rosto. Ele viu que os olhos dela
ficaram repentinamente úmidos. Passou a mão pelos cabelos dela, descendo pelo corpo,
acariciando-lhe os flancos.
- Sou o único que sabe do que você precisa.
Desceu a boca até a dela, tomou-lhe os lábios entre os deles e beijou-a até se cansar. Val fechou
os olhos.
- Eu te amo, amor - gemeu ela.
Valdelice, os sentidos satisfeitos, jogou-se para um lado e riu, gargalhou, com as pernas muito
abertas, estiradas, na serenidade de quem pôs o sexo em dia. Zé também sorriu, virou-se para o lado
e dormiu. De madrugada, porém, acordou e ficou lembrando da prostituta que o ajudara tanto, que
lhe matara a fome. Uma santa mulher que lhe pagava as contas. E ele? Um cretino que tinha perdido
a sua amizade, a sua confiança. Falou para si mesmo: - Acabaram-se os laços que me ligavam à
Beatriz. Por causa de Valdelice, perdi tudo. Perco a minha melhor amiga. É certo que é uma
rameira, mas é muito carinhosa, prestativa. Socorreu-me quando mais precisei. Val, acordando, deu
opinião aos pensamentos de Zé Clemente:
- Que nada, Zé! Ela gostava de tu como gostam todas as mulheres da vida, mulheres que vendem
o corpo a milhares de homens. Essas mulheres são mestras da desilusão. Esquece ela. Sou muito
mais mulher que ela. E, por outra, tenho uma novidade para te contar.
- Novidade?
- É. Tu não tá mais pobre, não. Não precisa mais ficar mendigando o dinheiro da Beatriz.
- Cuma é? Endoideceu?
- Não, Zé. É que tu não presta atenção na conversa. Eu tenho o dinheiro da venda da fazenda.
Está depositado num banco lá no Sergipe.
Como o vento de tempestade, essa confissão alterou completamente o semblante de Zé
Clemente. Mudou a expressão de seus olhos e modificou a sua fisionomia. Estendeu a cabeça à
espera que a conversa se repetisse. Ficou na expectativa, na ânsia de novas revelações. Como ela
ficou calada, perguntou:
- Em que banco tá a grana?
- No Banco do Estado do Sergipe. Posso sacar quando quiser.
- Oxente, mulé, cuma de repente tu ficô bonita...

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Riram.
No dia seguinte, durante o almoço, Zé Clemente perguntou:
- Quando nós vai pro Sergipe? - A gente pode montá um comercinho lá...
Ele estava radiante. Voltou-se para ela, olhos brilhando, o pensamento no dinheiro. Abraçou a
mulher. Ela reclamou:
- Devagar, Zé! Não me aperta que estou com o corpo doído. Ontem tu me machucou... me usou
com força...
- É amor, Valzinha, amor... - Disse, beijando-a na boca.
Ela tremeu de prazer. Ele perguntou:
- Quando nós vai?
- Amanhã mesmo.
- E o dinheiro da passagem?
- Já se esqueceu, jumento, que eu tenho um cartão de crédito?
- Cartão de quê? Eu sei lá que peste é essa. - Depois, numa pergunta mais honesta: - Pra quem tu
vendeu as terras?
- Pro Seu Libório, aquele homem que te deu dicumê quando tu chegô de Mirandiba, lembra?
- Se lembro, eu tava um traste molambento, o sangue escorrendo dos ferimentos... aí tu me deu
um lenço mode limpá o sangue...
- É, e tu muito mal agradecido, mandou o velho Manuel entregá ele mais o relógio de pulso pra
mim, num foi?
- Foi. Eu tava muito aperreado.
Valdelice, abrindo a sua mochila, fez a surpresa a Zé Clemente, o relógio embrulhado num lenço
branco.
- Isso é teu, Zé. Guardei, mode um dia lhe devolvê, que é teu.
- Tu é uma santa, mulé. Obrigado. Mas, conta. Pru que foi que tu vendeu as terras?
- Cuma ia dizendo, dispois que pai mais mãe desocuparam o mundo eu não agüentava mais ficá
lá, mode a sodade de tu. Ajudava o velho Manuel no eito, carregava latas de água e chorava a tua
falta. A seca aumentou. Foi então que Seu Libório apareceu. Foi logo dizendo que tinha intenção de
comprá as terra. O velho Manuel tinha feito a proposta a ele. Como que para mudar de assunto, Zé
perguntou:
- Quando tu veio mais o velho Manuel pra São Paulo, tu deu dinheiro a ele?
- Dei o que era combinado, a comissão que ele tinha direito pela venda.
- Entonces tu ainda não mexeu no do banco?
- Mexi, não. Só gastei o da passagem e uns trocados mode me alimentá no caminho. Agora, Zé,
me conta mais do Aracaju, do teu serviço nas puliça... Conta de Beatriz...
- Beatriz, minha santa, é uma necessidade social, devia ser considerada de utilidade pública, pois
exerce importante função social em São Paulo: educa os jovens no gosto à beleza e dá dignidade
aos sonhos dos maridos de mulheres feias.
- Nossa, cuma tu fala bonito quando lembra dela. Se tu quisé continuá mais ela, me largue.
- Agora que tu tá rica, deixo mais de tu não, santinha.
- Safado. Tu gosta d'eu, ou do meu dinheiro?
- Tava só brincando, santinha, mode lhe vê zangada.
- Entonces vamos parar com esse negócio de santinha, que o meu nome pra tu é Val, esqueceu?
- Esqueci, não, santinha, esqueci, não...
Riram. Depois ela, numa pergunta direta, falou:
- E no Aracaju, Zé, cuma foi?
- Virxe! Não gosto nem de lembrá. Meu primo me aconselhô a desaparecê que tinha um tenente

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meio desconfiado do meu passado. Eu aguardei a primeira oportunidade mode arribá. Quando
desertei, a primeira coisa que fiz foi lhe vê, num foi? E o que aconteceu? Tive que matá mais cinco.
- Águas passadas. O que me preocupa é se não vão te prender quando a gente chegá em
Aracaju?...
- Prendem, não, que tô diferente. Tu num percebeu que tô mais encorpado, a barba cerrada,
diferente da barba rala que tinha? E, depois, a gente num vai tê demora lá, vai?
- De minha parte é só pegá o dinheiro no banco e caí no mundo mais tu, que tô com uns planos
na cabeça... E o teu primo, será que ainda tá polícia?
- Tá não! Meu primo era muito bom policial. Um sargento e tanto. Pra Raimundo num tinha
papo ruim. Só que nos dias de folga vestia umas roupas novas e ia pra praia de Atalaia, Riachuelo
ou São Cristóvão se encontrá mais mulé dama. Coisa de homem solteiro, novo, nas idades de se
divertir. Acabô de xodó com uma quenga, lá pras bandas de Laranjeiras. Era até bonita, a danada.
- É mesmo? - perguntou Valdelice enciumada. Será que tu não andou de chamego mais ela
tombém?
- Deus me livre, santinha, que não sou homem pra andá com puta, não sabe?
- E Beatriz, Zé, o que é?
- Oxente, mulé, tu qué escutá a história ou armá falação?
- Entonces conte, meu bichinho... Conte.
Zé continuou:
- Cuma tava dizendo, Raimundo, ainda moço, andava nos xodó mais a quenga, em vez de arrumá
mulé direita, nas suas virgindades, e se botá nos casamentos. Continuava a freqüentá a casa das
mulé perdidas, até cum'dia aconteceu o acontecido.
- Oxente, homem, conta logo, se avexe que tô agoniada mode sabê.
- Apois entonces! Vê só cuma o cão atenta. Tava ele mais o xodó tomando umas canas, hora que
chegô o xibungo dela. O cabra era o marido legítimo dela e tava querendo que a rapariga voltasse
para o lado dele, que voltasse pra casa mode cuidá dos menino. Ela não queria. Preferia vivê no
brega. Então o cabra se mordia de ciúmes, chegando mesmo a dizê que hora dessas ia lhe dá umas
peixeiradas nos figos.
- Vote! Foi?
- Foi!
- Ele matô a quenga?
- Matô não, mas quando avistô Raimundo agarrado mais ela, já entrô nas ingrinorança mode
umas cachaça que tinha tomado. Encostô a barriga no balcão e pediu mais uma branquinha. Ficô
bebendo sem tirá os zóios vremeio de riba dos dois. Espumava o canto da boca de raiva. Foi aí que
ele viu Raimundo se levantando, levando a quenga mais ele. Chegô junto dos dois, mão na peixeira,
e disse: - Tu tá bolinando mulé compromissada, macaco féla da puta!
Zé continuou contando:
- Foi aí que eu cheguei mais outro soldado.
- Ié? O que tu foi cheirá lá na casa das quenga?
- Oxente! Entonces já num te contei que tava dando patruiamento no brega?
- Tá bom. Dessa vez vô acreditá. O que os zóios num vê o coração num sente. Conte o resto. O
que aconteceu?
- Virxe! O cabaré virô um frege da gota serena. Não metesse os ferro no cabra, essa hora
Raimundo tava passado desse mundo de meu Deus. Tu num queira sabê, mulé, cuma virô um
forrobodó dos seiscentos diabos. Tu precisava tá lá mode vê.
- Tome tento, doido. Sô alguma rapariga pra andá nesses lugá?
- Adiscurpe, minha santa. Num quis ofendê a sua santa pureza.

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- Tava falando sério, não, meu bichinho. Sei que tu num é desses pensamentos. Não se arrelie.
Depois me conta o resto. Por hora, vamos até a rodoviária tirá as passagens.
Saíram e pegaram um lotação para o terminal do Tietê. No trajeto, Zé Clemente fazia planos.
Mais alguns dias e estaria novamente no Nordeste. Lembrava-se das roças da fazenda Riachão, da
seca no sertão, da sua família que tinha deixado em Mirandiba e dos crimes que havia praticado em
Sergipe. Esses pensamentos, fizeram-no sentir um indefinido mal-estar, o suor banhando-lhe o
rosto, escorrendo-lhe pelo corpo, encharcando-lhe as roupas. O fôlego, de repente ficou curto, o
olhar perdido na imensidão de edifícios, ruas, avenidas e automóveis barulhentos. Depois ficou
imaginando o silêncio da sua caatinga. Recordou-se do namorado da sua irmã que ele tinha matado
em Mirandiba. Lembrou-se das sete pessoas que ele tinha feito desocupar o mundo em Riachão, e o
suor gelou-lhe a espinha. Pela primeira vez teve medo de ser preso. Olhou pela janela do ônibus,
observando os prédios, as calçadas, o cruzamento e os ambulantes de rua. Começou a sentir a
necessidade da liberdade e assentiu com a cabeça - Não posso ser preso. Zé temia ir para a prisão.
Mais do que isso, tinha pavor. O simples pensamento fazia-o suar frio. Podia viver sem boa comida,
maconha, cachaça e mulheres, se tivesse a imensidão vazia e selvagem da caatinga espinhenta para
consolá-lo; e também podia renunciar à liberdade da caatinga para viver numa cidade grande tipo
São Paulo, se tivesse uma mulher como Beatriz para alimentá-lo; mas não podia perder ambas as
coisas. Nunca revelara isso a ninguém: era o seu pesadelo secreto. A idéia de viver numa cela
minúscula, mal cheirosa, no meio da escória de bandidos, comendo mal, sem ver mais o céu azul, as
poluídas ruas de São Paulo, ou a sua caatinga infindável o preocupava . O pânico abalou-o por uns
instantes a essa simples idéia. Afastou-a da mente. Não iria acontecer. Nas imediações do terminal
rodoviário desceram do lotação. Zé pegou Valdelice pela mão e começaram a caminhar. Pensou em
Mirandiba, em sua família. Também pensou na família de Val. Seu pai e sua mãe estavam mortos,
mas ela tinha o dinheiro da herança e, isso, no momento, era o mais importante. O tráfego perto do
terminal era uma calamidade. Milhares de pessoas iam e vinham pelas calçadas. Os ônibus urbanos
e os vagões do metrô, aos milhares, circulavam mais cheios do que nunca. Desviando-se como
podiam dos transeuntes e dos camelôs que teimavam em oferecer as suas bugigangas, entraram
numa lanchonete. Zé Clemente, tentando acalmar os pensamentos, pediu uma cerveja. Val,
observava-o, enquanto tomava um refrigerante. Na segunda garrafa, Zé soltou a língua:
- Sabe, santinha, tu num me deixô terminá a história do frege, lá de Aracaju, num foi?
- É. Conte!
- Pois bem, consumada a besteira, Raimundo fugiu e se arribou pro sul da Bahia. Eu, se não
fosse tu, tinha arribado mais ele. Fui te encontrá no Riachão, aconteceu o acontecido e me toquei
aqui pro São Paulo. Acho que se não fosse a carta que lhe mandei nunca tu tinha vindo aqui, num é?
- É. Foi mesmo. Por fatalidade aconteceu o acidente do ônibus, que tu ficou sabendo pelo jornal.
Caso não tivesse acontecido, tinha ido batê na porta de Beatriz, mode o endereço que tu me deu...
Acho que tinha sido outro frege, num é?
- É não! Beatriz é mulé da vida, mas é boa pessoa. Num qué compromisso sério com homem
nenhum. Eu só morava mais ela porque não tinha onde ficá. No começo ela me ajudou muito,
depois fui acostumando, acostumando, sabe cuma é, ela me dava dicumê, dibebê, pousada e ainda...
- Não m'interessa o ainda, seu safado! Zé, tu não era assim lá no Norte. Era um cabra forte,
trabalhador. Cuma foi que tu virô gigolô? Foi disso que ela te xingou na pensão no dia que foi levá
dinheiro pra tu, num foi?
- Gigolô, uma porra!
- Gigolô, sim, Zé. Tu é um safado, mulherengo igual ao teu primo. Por falar nisso, tem tido
notícias dele?
- Tenho não! Acho que por essas horas Raimundo deve de tá metido em farda nova nos lombos,

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lá na Bahia. Eu que bestei indo lhe procurá no Riachão, batendo alpercata na caatinga. Causa de tu,
acabei matando mais cinco. Nunca pensei que fosse capaz de matá da maneira que matei. O que
ganhei com isso? Nada! Nadica de nada... Só o nome de gigolô, mais nada. - Zé Clemente fingia
descontentamento, pra amolecer mais um pouco o coração de Valdelice.
- Vamos esquecer isso por hora, Zé. E tu? Cuma vai fazê pra se despedir de Beatriz?
Era uma sexta-feira. As passagens haviam sido compradas para domingo à noite. No sábado à
tarde, Zé saiu da pensão para despedir-se de Beatriz. Val, ficou vendo televisão, depois foi tirar uma
soneca, os cabelos curtinhos e despenteados. Estava só de calcinha. O lençol jogado de lado,
mostrava um par de coxas roliças, umas nádegas salientes e um par de seios durinhos. Ali,
adormecida na cama, não parecia a mesma sertaneja do Riachão. Tinha se transformado numa
mulher formosa, muito mais do que quando Zé a conheceu. Destilava sexo por todos os poros da
sua bonita pele bronzeada. No lotação, a caminho da casa de Beatriz, por uns minutos Zé não
pensou em nada, depois, como num sonho, ficou imaginando Valdelice na cama: os seios subindo e
descendo levemente ao ritmo do sono. Com esses pensamentos na cabeça, desceu do lotação,
contornou o Largo São Bento e começou a subir a pequena ladeira que levava à casa de Beatriz, na
verdade uma pequena edícula encravada nos fundos de um desbotado prédio de apartamentos.
Bateu na porta com força. A casa pareceu-lhe vazia. Repetiu as batidas com mais força. Ninguém
atendeu. Espiou por uma fresta da porta, a casa estava realmente vazia e tudo permanecia em
silêncio. Com intensa tristeza, regressou à pensão:
- Que bicho te mordeu, Zé?
- Nada, não! Amanhã vam'bora pro Nordeste. Vô esquecê essa cidade fria, essa gente pestilenta...
No domingo à noite, rumaram para o Terminal do Tietê. Ficaram tempo esperando o horário da
partida. Quando o ônibus da Itapemirim encostou no box, abancaram-se. Zé estava calado. O
motorista funcionou o motor e o carro deslizou vagarosamente, depois ganhou velocidade. Saindo
da Marginal, chegou na Via Dutra, o caminho do Rio de Janeiro. Depois era só entrar na Rio -
Bahia e seguir pro Nordeste. Antes da Dutra, porém, Zé Clemente fechou os olhos. Pouco depois,
Valdelice também dormiu. Foi uma viagem cansativa. Os passageiros mostravam-se impacientes.
Não encontravam posição para o descanso de seus corpos nas poltronas, que mal reclinavam.
- A gente devia ter comprado as passagens na mesma empresa que eu vim. Tá certo que
aconteceu o acidente, mas, as poltronas são muitos melhores, reclinam muito mais.
- Pra mim tá bom. Tô acostumado com sofrimento. É muito mais milhó que andá a pé feito um
peregrino pulas caatingas.
O ônibus fizera parada em Governador Valadares, Teófilo Otoni, Padre Paraíso e Itaobim,
cidades do norte de Minas Gerais, onde apearam alguns passageiros. Na Bahia, almoçaram em
Vitória da Conquista. Fez novas paradas em Jequié, Milagres e Feira de Santana. Deixou mais
alguns passageiros em Alagoinhas e, ao amanhecer, parou para o café da manhã em Estância, já no
Estado de Sergipe. Desde o Terminal do Tietê foram três dias e três noites para chegarem à Aracaju.
Valdelice, muito cansada, mostrava as pernas inchadas a Zé Clemente:
- Tô com as pernas que só sovaco de aleijado. Os pés não tão cabendo mais nos sapatos.
Em Aracaju desceram do ônibus, que seguiu para Maceió e Recife. Estavam exaustos. O
primeiro pensamento do casal foi o de jogarem-se numa cama e dormir. Partiram à procura de
pousada.
- Meu Deus! - exclamou Valdelice - Que confusão! Olha, Zé, as mulheres pedindo esmolas, com
os filhos no colo chupando suas tetas murchas que nem ratos.
Nas duas primeiras pousadas, não quiseram ficar, eram sujas demais; na terceira, a única que
apresentava uma certa higiene, o homem da portaria avisou que não havia lugares.
- Eles sempre dizem isso – disse Valdelice, recordando-se dos tempos que viajara por esse

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Nordeste à fora pedindo carona aos motoristas de caminhão. - Eles sempre dizem isso – repetiu,
afirmando: uns cruzeirinhos a mais e sempre conseguem uma boa cama.
- Tu sabe das coisas, heim mulé...
- Sei. Vamos dar uma gorjetinha pra ele - disse Val. Com um dinheirinho a mais eles sempre
arrumam lugar!
- Não! - replicou Zé Clemente. Com o dinheiro da pousada, mais o da gorjeta, a gente arruma um
hotel na beira do mar. Vamos descer essa rua.
Zé, com as mochilas nos ombros, segurava fortemente na mão de Valdelice enquanto
caminhavam, com medo de perdê-la no meio de todas as centenas de sertanejos descalços,
carregando caixas amarradas com cordas, galinhas amarradas em cabos de vassouras, ou sentados
nas calçadas comendo pirão de farinha. Uma mulher esquelética, vestida com roupas sujas, estendia
farofa, rapadura e nacos de carne-de-sol para o marido e filhos. Os retirantes lotavam as ruas,
pediam esmolas aos transeuntes, faziam ponto nas esquinas, era uma multidão andrajosa e faminta
que dormia nas calçadas, ruas e praças que, como Zé Clemente em tempos idos, fugiam da seca, da
fome e da sede que campeava no sertão. Pediam esmolas, comida, remédios e agasalhos. - Como
atender a todos, se eram tantos? - pensou Valdelice. Eram mulheres com os filhos pequenos no
colo. Eram cegos e aleijados que estendiam cuias. Eram crianças e velhos andrajosos. Era a visão
do Brasil subnutrido: homens roubando-se uns aos outros, comendo restos de comida, catando
imundícies nas latas de lixo. Era o país dos mendigos. O caos apocalíptico. O Nordeste faminto. O
Brasil dos políticos desavergonhados. Apesar de já estar acostumado com aquele mesmo espetáculo
em São Paulo, Zé Clemente o temia sempre.
- Vamos sair daqui, Val. Procurá lugá milhó pra ficá.
No meio da rua, alguém tinha uma cabra na trela e algumas crianças mamavam nela, disputando-
lhe as tetas.
- Essa não. - Disse Valdelice. Nunca vi crianças mamarem em cabras. E o filhotinho dela, onde
será que está?
- Já o comeram com certeza!
No centro da cidade, a feira. Vendedores por tudo o que era lado. Macaxeira, jerimum, puba,
farinha seca; um homem com imensa cesta de caranguejos vivos na cabeça. Alguns, escapando da
cesta e andando desajeitados pela calçada. Zé Clemente, pensou: - Tenho pavor de ver homem
carregando cestas. Gosto é de ver mulher com lata d'água equilibrada na cabeça, como as mulheres
do sertão. Parecem tão graciosas e altivas... Fazem a gente desejar possuí-las ali mesmo, de pé,
como fizera muitas vezes com Valdelice junto ao açude da fazenda Riachão. Gosto das mulheres
quando elas gostam de sexo, quando perdem a cabeça de prazer, quando gritam de satisfação.
Arrumaram um hotel na praia de Atalaia, frente para o mar. Era uma das raras vezes que Valdelice
via o mar tão de perto. O mar era de um mistério enorme para o seu coração sertanejo. E, da janela
do quarto, fica a namorá-lo, estudando as variações de suas ondas azuis, verde-claro, verde-musgo,
tentada pela sua vastidão e pela arrogância da sua grandeza. O mar traz a seu coração um sossego
que nem o sertão e muito menos São Paulo lhe deram. No entanto, ela sabe que ainda é uma simples
sertaneja ignorante e o mar é um mundo totalmente desconhecido para ela. Zé a convida, e vão vê-
lo de perto. Estenderam-se na areia branca da praia e ali descansam, brincam e se amam à luz das
estrelas. Saem dali de mãos dadas e caminham pela orla da praia à fora. No final dela, um subúrbio
barrento, casas encostadas umas nas outras para não cair, vacas e bodes nas estreitas ruas
enlameadas. Zé sempre quis saber o que comem esses bodes da cidade com seus pescoços finos,
onde será que eles pastam? Nenhum encanamento naquelas casinhas escuras do final da praia.
Mulheres nas entradas das casas limpando peixes e mariscos, sentadas no chão de pernas cruzadas.
As vísceras são atiradas aos gatos e cães. Os nordestinos gostam muito de cães. Zé Clemente, não. -

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Animais estúpidos, os cães, sem dignidade andam aos bandos atrás de qualquer cadela no cio e
ficam engatados por horas e horas a fio, despertando a curiosidade da molecada. Os cães são sujos,
malcheirosos e inferiores. O gato, não. Ele é um animal superior e sabe que é. É muito importante
ser superior. A pessoa ou manda ou é escrava. - Eu vivo de cabeça erguida, como o gato: ando por
aí, ignorando a ralé, preocupado apenas com minha própria sobrevivência, usando as pessoas como
um gato usa seu dono, não agradecendo e não aceitando afetos, apanhando o que me oferecem
como direito meu, não um presente. Sou um sertanejo é verdade, mas quero ser patrão, não
empregado, quero ser rico, não andrajoso como essa gentalha do mangue. É por isso que estou com
Valdelice: pelo seu dinheiro, e não pela sua formosura, que mulher bonita tem muita por aí.
Regressam pela praia, a fedentina do mangue deixou Zé Clemente enjoado, precisa de uma cachaça.
De longe ouvem gargalhadas alegres que despertam a praia adormecida. Veio um som de música.
Era um grupo de rapazes e moças que cantavam. Vieram ao encontro deles. Um deles segurava uma
garrafa de Rum Bacardi. Ofereceu. Zé Clemente pegou-a e tomou quase a metade de um gole só.
Outro, pegou o violão e começou a tocar. Zé Clemente meteu-se na água. Valdelice que estava
acabando de colocar o vestido, chegou mais perto do grupo e ficou cantando a melodia que o rapaz
tocava ao violão. Na manhã do terceiro dia em Sergipe, depois de irem ao banco, Zé Clemente
resolveu ir até São Cristóvão, a cidade histórica e antiga capital de Sergipe del Rey, visitar João
Maria, um seu ex-companheiro de farda, o soldado que tirava patrulhamento com ele. A finalidade,
era saber como andavam as investigações policiais a seu respeito e tentar obter notícias do sargento
Raimundo. João Maria quase não o reconheceu, pelo disfarce que tinha arrumado: óculos escuros,
chapéu de feltro e cabelo comprido. Era a nova fisionomia que havia adquirido em São Paulo.
Também estava mais adulto, mais encorpado, bem vestido, barba cerrada. Era outro homem. Não se
parecia em nada com o capiau que ingressara na polícia certo dia em Aracaju. Entretanto, João
Maria ficando preocupado com a presença de Zé Clemente em sua casa, resmungou:
- Zé, é para o teu bem que imploro: vai pra bem longe daqui, que a polícia tá uma sarna pra te
pegar e ao sargento Raimundo.
- Tá bem, meu amigo, dia desses lhe escrevo.
Automóvel novo na mão, Zé Clemente ao volante, o casal deixou São Cristóvão e voltou para
Aracaju pela estrada do Morro do Cristo. Chegando à capital, desceram a avenida Laranjeiras em
direção à praia de Atalaia Nova. Na praia, Zé encontrou outro ex-companheiro de farda. Maurício
não o reconheceu. Por isso, e por saber que ele era um homem de confiança, Zé o chamou:
- Ei, Maurício, sou eu o Zé Clemente...
Maurício aproximou-se do Opala azul, estacionada defronte ao Hotel Gaivotas.
- Zé, é tu mesmo? - perguntou o rapaz não acreditando no que seus olhos viam: - Tu tá elegante,
homem... carro novo... cuma foi que enricou?
Ele sorriu, satisfeito da vida:
- Enriquei nada, camarada, apenas fiquei mais civilizado... Essa é minha mulher, Valdelice.
- Bonita!
- Bondade! - respondeu Val, um pouco acanhada.
Apertaram-se as mãos, depois Zé Clemente convidou:
- Vamos tomar um uisquinho com água de coco?
- Hein? - brincou Maurício - Uísque? Tu enricou mesmo...
Riram. Zé e Val desceram do carro e Maurício os acompanhou até o Bar do hotel.
- Zé, que luxo, eu nunca tinha entrado aqui. Acho que nem os oficiais do batalhão podem
freqüentar coisa tão fina... Cinco estrelas, eu, heim... Tu tá rico mesmo, cuma foi?
- É não! É Val que recebeu o pagamento das terras que vendeu lá no Riachão.
- Tu é danado, Zé! Agora virou fazendeiro?

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- Virei, nada! Ela é que era.
Maurício debochou:
- Eu já tava desconfiado... Que tu anda fazendo da vida?
- Por hora, nada, mas tô pensando em me estabelecê aqui pelo litoral. Uma lanchonete,
pousada... Sei, não. Boteco de pinga é que não quero.
- Tem razão, Zé. O turismo tá aumentando muito por aqui. É só um bocadinho de dinheiro,
montar um comercinho, explorar turista gringo e ficar rico de vez.
Valdelice, ouvindo a conversa, apertou as mãos em sinal de aprovação. Teve orgulho de Zé
Clemente. Era outro homem. Encasquetara na cabeça que ia montar um negócio à beira-mar. Ela
não entendia nada disso, mas tinha o dinheiro necessário para começarem. Enquanto bebiam, ela
comentou:
- O que o senhor aconselha, seu Maurício?
- Primeiro que vocês vão para bem longe daqui. O Zé tem prisão preventiva decretada. Eu não vi
nada, não sei de nada, que sou amigo dele, e amigo meu não tem defeito. Mas, conversa vai,
conversa vem, eles acabam pegando o Zé e aí tá tudo acabado, não tá?
Os olhos dela, que estavam claros de entusiasmo, escureceram. A fala de Zé Clemente não sai.
Nada diz. Valdelice olha o balançar sereno das ondas do oceano. Então, o cheiro do mar se mistura
ao cheiro da bebida e Zé Clemente tem uma idéia:
- O litoral é muito grande. Procurando, eu acho um lugar pra estabelecer comércio...
lanchonete... restaurante...
Pediu mais um uísque. Val puxou-o pela camisa.
- Chega de bebida, homem, vamos subir pro quarto que estou com sono.
- Eu também. - Concordou o novo rico, levando a mão à boca que se abria num bocejo.
O soldado Maurício já havia se retirado e a praia começava a ficar deserta com a chegada da
noite. No quarto do hotel, o cheiro de mar agora se misturava aos pensamentos de Zé Clemente.
Valdelice também estava com cheiro de mar, gosto de água salgada. Zé sente um desejo repentino.
Ela, sentindo o cheiro do macho, tem o mesmo desejo. Então, o gosto salgado do mar, invadindo as
narinas dos amantes, se mistura com a saliva dos seus beijos. No céu, olhando-se pela janela, a lua
cheia que saiu do mar também invade o ambiente com sua luz amarelada. Na praia alguns rapazes
ainda estão cantando e tocando violão. Na porta do hotel, hóspedes conversam sob a luz de um
grande cartaz luminoso. Um mendigo interrompe a conversa e pede:
- Uma esmola pelo amor de Deus!
Quando o pedinte saiu, um deles comentou:
- Coisa triste é ver um ser humano ser reduzido a tamanha humilhação.
- Triste? - retrucou o outro: no meio dessa belezura toda, no Brasil tem gente morrendo de fome
aos montões.
- Mas nós não somos a oitava economia do mundo?
- Se os políticos devolvessem o dinheiro que roubam do povo, com certeza seríamos a primeira...
Na manhã do dia seguinte, como simples turistas Zé Clemente e Valdelice pegam a rodovia que
segue para o norte, em direção à foz do rio São Francisco. Lá eles vêem a “Atlanta” sergipana, com
casas, igreja e farol – um povoado que foi literalmente engolido pelas águas azuis do Oceano
Atlântico. O Cabeço, uma pequena comunidade de pescadores do município de Brejo Grande,
encontra-se submerso em uma das mais belas praias sergipanas. O lugar ainda é pouco explorado,
necessitando de infra-estrutura para se transformar em um destino ecologicamente correto.
Praticamente deserto, apenas um restaurante flutuante atracado entre o rio e o mar dá ao ambiente
um pequeno toque de comodidade aliada às delícias da própria natureza. De Aracaju à Brejo
Grande, são 226 quilômetros pela rodovia. A vegetação e a flora começam a mudar a partir de

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Pacatuba, onde fica localizado o Pantanal Nordestino. São brejos enormes povoados por jacarés,
cotias, garças, periquitos, entre outros animais, cercados por coqueirais e dunas, formando pequenos
paraísos ao longo do caminho. Para o casal a viagem pareceu um tanto longa e cansativa, mas ia se
tornando mais suave pelas mudanças da paisagem: fazendas de gado, o platô de Neópolis com
extensos coqueirais e imensas plantações de árvores frutíferas massagearam os olhos de Valdelice.
Zé Clemente comentou:
- Quando estiver pronta, a rodovia SE-NORTE vai interligar Barra dos Coqueiros e Pirambu à
Pacatuba.
- Como é que tu sabe disso? – perguntou Valdelice.
- Oxente, mulé, tu já se esqueceu que eu trabalhei nas puliça do Sergipe?
- Já.
- Entonces. Tu num imagina o monte de vezes que dei patruiamento por aqui.
Avistando o rio São Francisco, Valdelice perguntou:
- Como é que nós vamos atravessar o rio?
- Fica preocupada não, que eu já telefonei reservado lugar na embarcação de um meu conhecido.
O barco é rústico mas seguro.
O local de embarque, conhecido apenas como Porto, foi um dos cenários mais apreciados por
Valdelice, principalmente quando avistou às margens do rio um batalhão de mulheres que faziam
da rampa do atracadouro um gigantesco tanque de lavar roupas. Depois, suavemente, a embarcação
seguiu navegando pelo grande rio. Pequenas ilhas particulares, a exemplo da ilha da Criminosa; os
povoados Resina e Saramém, com suas casas de palha de coqueiros, iam dando vida ao local. A cor
da água e a temperatura eram caprichos da natureza. O clima quente e a luminosidade tropical
obrigavam os demais viajantes a usar protetor solar, óculos escuros, roupas leves e tomar bastante
líquido. Vendo aquilo, Valdelice comentou:
- Tu viu, Zé, como essa gente do estrangeiro é fraca? Se passassem um dia trabalhando nos
roçados da Fazenda Riachão, morria.
Zé Clemente deu uma risada:
- Tu já os imaginou atravessando o Raso da Catarina? Viravam comida de carcará logo na
primeira légua andada.
Após navegarem por cerca de meia-hora, o lugar, digno de uma cena de filme paradisíaco,
começou a apresentar uma beleza única. De um lado, dunas com coqueirais; do outro, uma reserva
de manguezais e ao centro o encontro do rio São Francisco com o mar. A primeira parada deles foi
no território alagoano de Pontal. Valdelice aproveitou para caminhar e brincar entre as dunas,
enquanto Zé Clemente foi dar um mergulho na água que é doce, apesar de estar próxima ao mar.
Como o lugar é área de proteção ambiental, o tempo médio de visitação foi de apenas uma hora.
Cumprido o regulamento, o casal retornou ao barco rumo ao povoado sergipano de Cabeço. No
lugar existe um restaurante flutuante com bufê completo à base de frutos do mar e do rio por um
preço bem camarada. Após almoçarem, Zé Clemente e Valdelice aproveitaram para fazer uma
caminhada pelo local, seguindo até o Farol da Marinha. A construção data do século XVIII e se
encontra abandonada, resistindo ao tempo no meio das águas, balançando de um lado para outro.
No povoado, um nativo ofereceu um passeio de carroça por um preço módico. Assim, eles
aproveitaram para conhecer melhor o povoado, principalmente o local onde a força das águas do rio
obrigou a transferir os moradores para o povoado de Saramém.
Bem... chegou a hora de pegar o automóvel e rumar para a estrada que leva às Alagoas e admirar
o belo pôr-do-sol e o vôo das garças que é mesmo coisa de cinema. Na tarde seguinte, o encontro do
casal com o mar, na praia de Mandaú, em Maceió, chegou a ser quase um mistério. Muita água cor
de esmeralda, espuma branca, areia fina, mulheres nuas, coqueiral e comida farta. Ela, enciumada,

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olhando para duas garotas que passavam com pouca roupa, conta-lhe o sonho que tivera à noite:
- Sonhei que morava numa casinha branca, tinha muitos filhos e tu olhava só pra eu...
Ele também contou o seu:
- Sonhei que estava na fazenda Riachão e quase pisei numa cascavel que correu esconder-se na
vegetação que cobria o caminho do açude. O sol clareava a caatinga e o roçado estava abandonado.
Parei na sombra do umbuzeiro, chupei alguns frutos maduros e passei o resto da tarde no açude. A
água, apesar de pouca, estava mais gostosa que nunca. Tu, no sonho, estava mais eu. Beijava-me.
Depois, vi os jagunços do coronel Quincas vindo ao meu encontro. Trocamos tiros. O coronel ria,
mostrando o dente de ouro. A viúva acenava para ele dentro do caixão. Tu correu e foi se abraçar ao
Zé Luiz. Tive um ódio desgraçado de todo mundo e corri pra buscar a repetição. Na corrida,
tropecei numa pedra e caí. Caindo, acordei.
- Que sonho besta, homem!
- Ainda tô arreliado...
- Deixa de bobagem. Tu já matou. Já se vingou.
- Vinguei? E os galhos na minha cabeça, tem morte que pague?
- Zé. Nesse mundo tem casos de amor, de casamento, de paixões...de chifres... Enfim, por acaso
tu também não me traiu mais a Beatriz, lá em São Paulo? E estou reclamando dos chifres?
- É verdade Val. Ninguém sabe onde termina o sentimento e começa a razão... Mas, tem um
porém. Eu sô macho e tu é fêmea. Eu posso fazê certas coisas, tu não... Eu mato...
- Oh, Zé, eu sou só tua, meu bichinho, só tua...
Acalmados os ânimos, como simples turistas, saem da praia e vão direto para o hotel. Ela,
remoendo pensamentos, perguntou:
- Tu me ama de verdade, Zé, ou só tá comigo mode o meu dinheiro?
- Tu pra mim é tudo, Valzinha... Tudo...
- E a quenga que lhe pagava as contas em São Paulo, ela também não era tudo?
- Aconteceu, tá acontecido. Agora, o que quero é fazê de tu a mulher mais feliz do mundo...
No dia seguinte foram as demais praias de Maceió. Lugares de gente rica. Restaurantes lotados
de turistas argentinos, americanos, alemães e italianos. Alguns brasileiros, também. Extasiada, ela
comentou:
- Este não é o Nordeste que conheço. Apesar de ficar bem pertinho do inferno espinhento, isso
aqui é o paraíso.
- Pra quem tem dinheiro, é... Vamos conhecer lugares bem mais bonitos ainda.
E começaram a ciranda, litoral à fora. Estiveram em verdadeiros paraísos tropicais à beira-mar,
como Porto de Galinhas, um recanto de águas tépidas, de praias lindíssimas e mar azul: ótimo para
pescar, nadar e se divertir em meio aos corais e coqueirais do litoral sul de Pernambuco. Depois
voltaram à Pajuçara, em Maceió, onde, na maré baixa, é possível alcançar de barco ou jangada,
dezenas de piscinas naturais formadas por bancos de corais, alguns quilômetros mar adentro. Em
Genipabu, praia do Rio Grande Norte, famosa por suas areias e por suas dunas entrecortadas por
lagoas de água doce, chegaram, como todo turista que se preza, a passear de Buggy. Ela sorridente e
feliz, sempre recordava a aridez do sertão:
- O Nordeste tem muito mais do que se imagina. Nem só de seca, sertão e crimes se constitui a
minha terra.
Maceió, a capital das Alagoas, famosa pela beleza e encanto das suas praias, destacava-se como
uma das cidades mais bonitas que eles visitaram. Não seria exagero afirmar que o paraíso era
mesmo lá. Maceió oferece muitas opções de lazer, a começar pelas praias, consideradas carros-
chefes da cidade. E por falar em praias, eles estavam certos ao começarem por Pajuçara. Mas
também poderiam ter começado por Ponta Verde ou Jatiúca, que são as melhores opções para quem

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não quer se distanciar da cidade. Na praia de Pajuçara eles entenderam porque o lugar é chamado de
cartão postal da cidade: a sua famosa piscina natural. O meio de transporte para aquele paraíso são
as jangadas que, guiadas por jangadeiros experientes, seguem, com a ajuda dos ventos, rumo ao
prazer e à tranqüilidade. Na praia de Ponta Verde, além de um mar de águas mornas e calmas, Zé
Clemente ficou extasiado com a quantidade de quiosques à beira mar, com diferentes opções de
culinária, onde Valdelice se deliciou com pratos regionais cheios de camarão, peixe, sururu e siri.
No período da tarde eles foram até o calçadão da praia, que agora se transformava numa enorme
academia ao ar livre, onde os amigos da saúde se reúnem para caminhadas e passeios ciclísticos.
Mas o que os pombinhos gostaram mesmo foi da noite em Ponta Verde, cenário ideal para se
beijarem e degustarem as deliciosas tapiocas feitas na hora pelas tradicionais tapioqueiras
alagoanas. Valdelice só não gostou das praias de Jatiúca e Cruz das Almas, por terem ondas muito
altas, ideais apenas para os amantes do surfe. Distanciando-se da cidade, mais precisamente no
litoral norte, eles viram surgir uma série de opções. Eram as praias que encantam por suas águas
mornas e límpidas, e também, por sua coloração que varia do azul ao verde: Jacarecica, Riacho
Doce, Guaxuma, Garça Torta, Ipioca... Impossível percorrer todas e saber qual a melhor. No litoral
sul visitaram as famosas praias do Francês, Barra de São Miguel e Gunga. Todas com excelente
infra-estrutura de bares, restaurantes, pousadas e hotéis. Ao cabo de uma semana o casal
compreendeu que Maceió não era só praia. A cidade também tinha muita arte. O artesanato, por
exemplo, é feito por gente simples e hospitaleira, que pinta, tece, esculpe, cria e transforma. A
“renda de filé” é a principal economia do artesanato da cidade. Tradição passada de mãe para filha,
a arte do filé é exportada para o mundo todo, embelezando os mais diversos tipos de ambientes. No
final de uma tarde o casal aproveitou para conhecer um pouco do artesanato alagoano no bairro do
Pontal da Barra. Valdelice logo quis comprar alguma coisa que lembrasse o passeio que fizeram à
Maceió.
– Que ironia - disse Zé Clemente: quem vai a Maceió não a esquece jamais.
No bairro do Pontal da Barra, além do artesanato, eles também tiveram a oportunidade de
apreciar um dos pontos turísticos mais bonitos de Maceió: a lagoa Mandaú. Saíram de barco com
destino às nove ilhas, localizadas na lagoa. A tarde estava terminando, quando Valdelice filosofou:
- Repara, Zé, que coisa mais linda.
Pensando tratar-se de alguma quenga, o sertanejo procurou com os olhos e, não vendo mulher
alguma, perguntou:
- Onde, Val, onde?
- No céu, homem, o mais bonito pôr-do-sol que já vi.
Mas Zé clemente não estava muito interessado em ver pôr-do-sol algum, o que ele queria mesmo
era voltar pra cidade e curtir a noite de Maceió que abria muitos espaços aos amantes da vida
noturna, com inúmeras opções de entretenimento e lazer: bares e boates para todos os gostos.
Chegando à cidade, além de irem aos quiosques à beira mar, alguns com música ao vivo,
estenderam a noite aos aconchegantes bares localizados no bairro Stella Maris, terminando por
chegarem ao revitalizado bairro de Jaraguá, o grande ponto da juventude bronzeada. Estava
amanhecendo quando Valdelice, reclamando que estava com sono, disse:
- Zé, é bom desfrutar deste paraíso, Maceió é bom demais, mas pelo amor de Deus, vamos para o
hotel que estou muito cansada.
Parada obrigatória para Zé Clemente e Valdelice, que queriam conhecer o litoral sul do
Pernambuco, foi o município de Tamandaré, que reúne monumentos históricos do século XVII,
praias com piscinas naturais e mar de águas mornas e transparentes, além do santuário ecológico de
Guadalupe e passeios de barco pelos vastos manguezais do rio Aquinderé. O encontro do rio
Mabucabas com o mar foi um espetáculo à parte naquele passeio mágico que o casal fazia.

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Tamandaré, cidade litorânea de 16 mil habitantes, presente e passado convivem de forma
harmoniosa, lado a lado. Como o forte Santo Inácio de Loyola e algumas marinas náuticas. A
fortificação erguida em 1646 por João Fernandes Vieira, para dar combate aos holandeses, foi
tombada pelo Patrimônio Histórico e estava sendo revitalizada. Já as marinas ofereciam serviços e
equipamentos náuticos para quem estivesse disposto a navegar. Assim, enquanto as ruínas de
monumentos históricos compunham a belíssima paisagem local, os bares com palhoções rústicos e
restaurantes típicos erguidos à beira mar faziam a felicidade dos visitantes. Zé Clemente também
viu fortes atrativos ecológicos em Tamandaré. A exemplo da reserva nativa conhecida por Barreira
do Giz, que se destaca por suas argilas coloridas, ou da Bulha D’água, uma cachoeira localizada na
entrada da cidade, com 10 metros de altura e três quedas. O Morro do Outeiro, outro local visitado
pelo casal, é chamado de mirante de Tamandaré, por ser o ponto mais alto da região. De lá,
Valdelice se deslumbrou com uma das paisagens mais bonitas do litoral pernambucano. Já Zé
Clemente, visivelmente interessado em tesouros, pensando lá encontrar algum pote de ouro, foi
correndo visitar a igreja de São José das Botas de Ouro e, depois, as ruínas da igreja de São Pedro,
na praia de Campas. Na gastronomia, Tamandaré conta com bons restaurantes, sem falar nos bares
onde a noite se perlonga movimentada e alegre até altas horas. Os 187 quilômetros do litoral
pernambucano explicam a tradição do litoral do estado em frutos do mar. São verdadeiros paraísos,
como as praias de Porto de Galinhas: Calhetas e Muro Alto. Foi difícil para Valdelice pensar em
algum regime para emagrecer, pois diante deste cenário não conseguia escolher outro prato que não
fosse camarão ao óleo e alho, lagosta, casquinho de siri, ou até mesmo a caldeirada, o que tinha de
mais significativo em se tratando de frutos do mar. Sem ter muito conhecimento gastronômico
litorâneo, por vezes ela misturava em um só prato polvo, lula, marisco, sururu, peixe, camarão e
lagosta, o que fazia Zé Clemente gargalhar. E, para saborear estas especialidades da cozinha
pernambucana em Porto de Galinhas, Zé Clemente sempre ia sentar-se numa cadeira de frente para
o mar, observando as ondas. Também pudera, lá os frutos do mar são abundantes e deixam qualquer
um com água na boca. Também servidos na maioria dos restaurantes do Recife, os frutos do mar
são as atrações principais da gastronomia local. Os sucos de frutas típicas da região, como o caju, a
manga, a goiaba, o sapoti e o cajá foram sempre a preferência de Valdelice como acompanhamento.
Já Zé Clemente, para mostrar que os frutos do mar caem bem com qualquer bebida, sempre pedia
uma caipirinha como aperitivo, terminando por sorver o líquido de umas seis ou sete cervejas bem
geladas. Depois que chegou ao Recife, o casal não precisou andar muito para encontrar restaurantes
especializados nesse tipo de comida. No bairro do Pina, por exemplo, os frutos do mar são mais que
tradição na culinária local, entram até no café da manhã de qualquer hotel. A localização próximo à
praia e a uma colônia de pescadores, torna o bairro um lugar perfeito para degustar tudo o que vem
do mar. No Recife, apesar dos frutos do mar serem basicamente servidos nas refeições, Valdelice
preferia saboreá-los como petiscos. Os que mais gostou foram o camarão paulista, temperado e frito
no alho e óleo; o casquinho de siri e o sururu ao leite de coco. Para o almoço, ela sempre colocava o
dedo no cardápio onde constavam o arroz com polvo e a caldeirada. Observando tudo aquilo, Zé
Clemente que queria montar um comercinho à beira mar, comentou com Valdelice:
- Restaurante aqui no Recife até que é um bom negócio, tem muita gente trabalhando com
comida. Mas me informaram que durante os meses de janeiro até fins de abril, quando acontece a
proibição da pesca da lagosta, é a época também da alta estação, quando a cidade está cheia de
turistas...
- E qual é o problema, Zé? – perguntou Valdelice – É só ter uma despensa farta e armazenar
produtos de boa qualidade, além de contar com cozinheiros habilidosos...
Zé Clemente interrompeu a sua fala:
- Pernambuco não. E restaurante muito menos. Estou pensando em montar um cassino em Porto

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Seguro, na Bahia...
- Bahia?
- É. Aqui no Pernambuco você mesmo viu que restaurante não dá. Desde o litoral norte, em
Itamaracá, até Porto de Galinhas e Serambi, no litoral sul, e até lugares que não ficam próximo à
praia, como Jaboatão, Paulista e Goiana, e mesmo no Recife Antigo, só se oferecem frutos do mar,
o povo parece que não sabe comer outra coisa. Fica difícil comer um jerimum assado, carne-de-sol,
buchada de bode e rapadura com farinha, que são as comidas do sertão. Eu tô fora. Restaurante não
monto não.
- Naquela viagem de Zé Clemente e Valdelice muita coisa interessante aconteceu. Uma delas
entre os estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, tendo como coadjuvantes turistas de vários
países da Europa. Tratava-se dos roteiros eco turísticos, históricos e de aventura, concentrados no
município de Cabaceiras (PB). Apesar dessas atrações estarem bem próximas de capitais como
Natal e João Pessoa, quando Valdelice lhe apresentou o mapa estampado num jornal, Zé Clemente
não se interessou por tão interessante roteiro:
- Vâmu não, Valzinha, o quê nós vamos fazer no meio dos gringos que vão lá apenas fazer
pesquisas?
- Sei, Zé, o jornal diz que o que se vê lá são finlandeses, noruegueses, italianos...
- Tu pensa que eu não sei? Eles vão lá pesquisar o lajedo de Pai Mateus, uma formação rochosa
que mede cerca de um quilômetro de extensão, com mais de setenta bolas de granito, o cenário onde
foram filmadas as cenas do “Auto da Compadecida”, da Rede Globo de Televisão, baseada na obra
do escritor paraibano Ariano Suassuna. Por que eles não vão fazer suas pesquisas no Raso da
Catarina?
- Tá certo, Zé, você não esquece aquele maldito raso. Tá certo, nós não vamos, mas você está
perdendo a oportunidade de comer carne de bode e outras iguarias do cariri paraibano e se recordar
da comida de Mirandiba.
- Mirandiba? Essa é boa. Tô fora!
- No Ceará, um guia turístico informou:
- No nordeste está a maior faixa contínua de praias do mundo.
- É verdade - concordou o gerente do hotel em que o casal estava hospedado na Praia de Iracema
-, a franja de areias, coqueirais e falésias tem 3.000 quilômetros de extensão, quase a metade da
costa brasileira.
- Tu tem razão, Zuca - completou o guia -, começa na foz do rio Mucuri, uma região ainda
selvagem no sul da Bahia e se prolonga até o vilarejo de Carutapera, na divisa do Maranhão com o
Pará.
- Virxe! - Assustou-se Valdelice. - E nós que não sabia nada disso. No sertão, quem conhecia o
mar, falava só em Santos, Copacabana, Ipanema... Tudo isso no Sul. Eu, heim?...
O guia continuou:
- Vocês ainda não viram nada. Se tiverem dinheiro e disposição para passear, vão conhecer um
variadíssimo cardápio de belezas e prazeres.
O gerente do hotel, recomendou: A comida aqui no litoral é muito variada, mas quase que
exclusivamente à base de peixes e frutos-do-mar. Os mariscos, caranguejos, siris e lagostas, a maior
atração gastronômica aqui de Fortaleza, podem ser saboreados aqui mesmo no restaurante do hotel
ou nos nossos quiosques ao ar livre, com o mar como testemunha. Mas em Fortaleza também
existem centenas de restaurantes típicos. Entre camarões, ostras, carne-de-sol temperada na
manteiga de garrafa, cuscuz, tapioca, xerém, xinxim de galinha, baião-de-dois, vatapá, mungunzá,
acarajé, galinha-de-cabidela, galo capão, bode assado, buchada de bode, que são comidas típicas
nordestinas, ainda servem a la carte.

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- Virxe! - Exclamou Valdelice. - Assim eu fico gorda. Quero, não, que preciso manter a forma.
A leste de Fortaleza está o Porto das Dunas com o complexo turístico Beach Park. Ali, Zé
Clemente e Valdelice, como duas crianças, andaram de caiaque, ultra-leve e jet-ski. Nos dias que se
seguiram, o casal andou por Iguape e Prainha, onde comeram peixe frito na hora, compraram rendas
e bijuterias e saborearam as famosas cachaças locais com seus nomes bem pitorescos: Amansa
Corno, Língua de Sogra, Nabunda, Viado de Ouro, etc. A seguir, foram ao Morro Branco, ver suas
falésias alaranjadas, areias coloridas e bicas naturais. Nessa praia, Valdelice comprou as
tradicionais garrafas com desenhos de areia colorida. Na praia das Fontes eles tomaram banho nas
bicas que trazem água fresquinha dos morros. Depois, visitaram a praia do Cumbuco, famosa por
seus coqueirais. Em Paracuru se deslumbraram com uma noite de forró. Mas, foi no "point" praiano
cearense, Jericoacoara, que o casal ficou admirado com a famosa Pedra Furada. O mais bonito dessa
praia, porém, é assistir o pôr-do-sol de cima das dunas. Uma das exigências dos moradores da praia
de Jericoacoara é não ter iluminação pública. Isso mesmo. A fiação que garante eletricidade nas
residências é toda subterrânea. Não existem postes de iluminação pública em nenhuma das ruas,
que, por sinal, também resistem ao progresso e não tem asfalto. O que pode parecer estranho ou
ostracismo dos 10 mil habitantes, é apenas preocupação com a preservação da natureza viva. Talvez
por causa disso, a primeira impressão que Valdelice teve de Jericoacoara é que Deus deixou cair
algo a mais na localidade. Em sua descrição, é impossível falar. É preciso estar lá para sentir. Em
Canoa Quebrada, uma praia situada no município de Aracati, antiga capital do Estado, eles ficaram
assustados com uma enorme operação policial que reprimia o consumo de drogas.
Valdelice mexeu na ferida:
- Tu viu só, Zé? Se tu ainda fosse viciado, tava preso!
- Que nada, Val. Maconha aqui, tem por todo canto. O Ceará e Pernambuco são os maiores
plantadores mundiais da erva. O que a polícia está procurando é cocaína, crack...
Com drogas ou sem elas, o certo é que em nenhum outro lugar do planeta existe uma
concentração tão grande de restaurantes, lanchonetes, barzinhos e pousadas, como na orla marítima
do Nordeste. Há 1.500 delas, só entre Ilhéus e Prado, no litoral sul da Bahia. Porto Seguro, campeão
absoluto em pousadas, tem 730. E foi uma dessas casas de hospedagem que Zé Clemente comprou
em Arraial D'Ajuda, distrito de Porto Seguro. Inicialmente a vida correu maravilhosamente bem.
Val aproveitava ao máximo as maravilhas do mar, da praia, dos coqueirais e da gastronomia local.
Zé Clemente, por outro lado, tentava juntar o útil ao agradável. O útil, no caso, era o estímulo que
sentia numa atividade que, bem explorada, podia gerar fortunas: o tráfico de drogas. Fornecer
tóxico aos turistas, era a raiz da questão. O agradável, era que isso não exigia nenhum esforço
extraordinário. Bastava aproveitar a pousada e transformá-la num cabaré. Valdelice se aborreceu:
- Não faça isso, Zé, é contra a lei!
- De qualquer maneira tenho que assumir o controle dessa situação, são os ossos do ofício...
Turismo é turismo, viciado é viciado, traficante é traficante... A lei que se dane!
- É isso que tu chama de comércio, de trabalho, Zé?
- A concorrência aqui em Porto Seguro é muito grande. As pousadas, em combinação com as
agências de turismo e seus pacotes de viagem, estão dando descontos por causa da crise que se
abate sobre o país. Os turistas, por outro lado, estão preferindo viajar para o exterior: Jamaica,
Cancun, onde a cocaína, o crack, o ópio e a maconha deitam e rolam quase sem fiscalização.
Val lutava para conter as lágrimas.
- Você não tem caráter...
- O caráter é uma emoção retrógrada! Ceticismo em relação à moralidade é que é decisivo! O
final da interpretação moral do mundo... - Parecia um discurso de gangster.
- Tu me dá nojo.

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- Chega! - Zé Clemente ergueu a voz. - Fique calada para eu poder explicar.
Val esforçou-se por se concentrar nas explicações dele. Zé estava diferente, falando macio, coisa
que estava aprendendo com muita rapidez. Já não era nem a sombra do sertanejo estúpido que ela
conhecera. - O dinheiro faz coisas. - Pensou.
- É necessário inventar alguma coisa, algo novo, que atraia determinada faixa de turistas, -
continuou Zé, em suas explicações. Alguma coisa que faça os turistas virem para cá também na
baixa temporada.
Ela sentiu como se seu coração fosse partir. Encarou o amante:
- E tu acha que vai resolver a demanda vendendo drogas?
- Drogas só, não. Vou transformar a pousada num cabaré e explorar o sexo. Um cabaré de
verdade, como os de Itabuna e Ilhéus... Como o cabaré que a Beatriz trabalhava em São Paulo. Tu
vai ver só como a gente vai se abarrotar de dinheiro.
Ela olhou para Zé Clemente, para os elegantes móveis do escritório que ele havia montado na
entrada da pousada. Pensou no carro novo que ele havia comprado, nas roupas novas que estava
usando, e uma luz estranha surgiu em seus olhos. Parecia estar à beira das lágrimas.
- Que idiotice! - falou bruscamente, saindo dali.
- Volte aqui. - gritou Zé Clemente.
Ela, porém, nem olhou para trás. Sentia uma pontada de aflição, como um ferimento no peito.
Desorientada, vai ver o mar. Na praia, chora, lembrando as palavras de Zé Clemente. Não quer
participar de suas aventuras. O amante quer somente o dinheiro da herança. Aumentou com seus
disparates. O ódio está latente em seu coração. Uma insatisfação enche os dias e a alma de
Valdelice. Uma insatisfação que lhe dá nojo do amante, das lindas praias de Porto Seguro e dela
própria.
Julho, alta temporada de férias. Turistas. Aviões, automóveis e ônibus, chegam à Porto Seguro
carregados deles. Eles vêm de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e principalmente, do
exterior. Hoteleiros e comerciantes olham com olho gordo a chegada dos visitantes. Os cabarés
estão lotados de mulheres e travestis. São loiras, morenas, pretas, mulatas e orientais em busca
deles. O Cabaré Sereia Azul, onde a roleta, o bacará e o estalo das garrafas de champanhe se
misturam aos papelotes de cocaína, tijolinhos de crack e baseados de maconha, era a antiga Pousada
Albatroz, que Zé Clemente havia comprado, reformado e modificado. Era um lugar lindíssimo, com
mais de trezentos metros de praia particular, onde se podia nadar nu e fazer sexo na areia sem os
inconvenientes dos olhares puritanos. Era, também, o local de encontro dos jogadores, dos
traficantes e dos viciados milionários. Zé Clemente batizara o cabaré com o nome de Sereia Azul,
em homenagem à escultura de uma sereia que ficava postada num pequeno jardim público, no
centro de Arraial D'Ajuda, onde um bosquezinho de ipês, agora florido, deixando cair, como chuva,
pétalas brancas, amarelas e roxas na grama verde da praça. O cabaré tinha um muro alto, com
pesado portão de madeira entalhada, sempre aberto. Pouco depois do portão, um majestoso jardim
adornado com plantas silvestres, floreiras e coqueiros plantados sobre uma relva macia, onde se
podia observar dezenas de hóspedes sentados sob barraquinhas de palha, tomando sol ou banhando-
se numa imponente piscina. Tudo isso, era ladeado por um portentoso edifício de três pavimentos
em estilo colonial, onde ficavam os quartos dos hóspedes. E, num edifício menor, de construção
moderna, de linhas retas e elegantes, funcionava o cassino. Entrando-se pela primeira porta desse
edifício, chegava-se à administração e ao escritório particular do proprietário, com uma pequena
placa de bronze na porta, onde se podia ler: José Clemente da Silva - Proprietário. Era ali que Zé
Clemente atendia os seus fornecedores de drogas. Eram poucas as pessoas que podiam entrar ali.
Um deles, chamado Jeremias, era o principal traficante do Sul da Bahia e estava sendo aguardado
naquele dia. Zé Clemente tinha negociado com ele, por possuir toda a mercadoria de que precisava,

86
porém sabia que era um safado e muito perigoso. Sentado num bonito sofá de couro marrom,
esperando, enquanto observava todo o movimento do cabaré, através de um circuito fechado de
televisão, ele se recordou da noitada anterior, e um sorriso franziu os cantos de sua boca sob uma
barbicha bem tratada. Estava com a cabeça cheia de pensamentos, quando a voz do interfone
anunciou a presença de Jeremias. Ele era um baiano gordo com dois dentes de ouro. Um dos
homens mais ricos do sul da Bahia. Mas ao contrário da maioria dos baianos ricos, não usava
chapéu, terno de linho branco e sapatos lustrosos. Usava sandálias, calças de brim e camisa listrada.
Seus cabelos, emplastados de brilhantina, enrolavam-se ao redor das orelhas, e tinha as unhas sujas.
Sua fortuna não provinha da terra, como a dos coronéis plantadores de cacau, nem do comércio,
como dos turcos de Itabuna. Provinha do tráfico de drogas. Jeremias era um safado, e Zé sabia que
não podia confiar nele demasiadamente. Haviam alertado para não confiar nele. Era astuto,
manhoso, safado, cruel e sempre risonho. Para os viciados e repassadores de drogas, ele
representava todos os vícios e as virtudes do Sul da Bahia e, porque não dizer, de todo o litoral
nordestino. Sua quadrilha vivia, havia cerca de vinte anos, repassando entorpecentes na região. Ele
tinha tentáculos por toda parte: era um verdadeiro atacadista da droga. Dono do jogo do bicho
regional, exercia influência entre os políticos, e possuía dezenas de pousadas no local. Vivia com
várias mulheres, uma em cada casa, na periferia de Porto Seguro. Zé Clemente estava querendo
dispensar os serviços do baiano, mas assim que o fizesse, com certeza Jeremias ia entregá-lo à
polícia. Jeremias era absolutamente desleal, não confiava em ninguém, sempre procurando tapear
seus clientes. Todo negócio era feito na base da suspeita. Zé Clemente começou a sentir medo de
Jeremias, precisava desvencilhar-se dele o mais depressa possível. Matá-lo, se fosse o caso. Zé
Clemente estava abrindo a boca para dizer a Jeremias que não queria mais sua mercadoria, quando
este pôs-lhe uma mão no ombro, para impedi-lo:
- Chegou uma remessa nova da Colômbia. A tua mercadoria está reservada, mas subiu um
pouco, coisa de trinta por cento. Alta do dólar. Você sabe como é, depois que o terrorista Osama
Bin Laden atacou os Estados Unidos...
Zé esboçou uma reação, pois sabia que estava sendo trapaceado. Jeremias começou a sorrir, os
dentes de ouro brilhando.
- Então tá certo, espero você na minha casa da rua da praia às onze horas da noite. Ah, leve
dinheiro vivo, que o Cartel de Calli não aceita mais cheques.
A casa da rua da praia era muito parecida com as outras que Jeremias possuía em Porto Seguro.
Sua fachada suja e descolorida era irregular e pontilhada de pequenas janelas, sob um telhado de
onde despontava uma enorme antena de rádio amador. A entrada era uma varanda baixa com
algumas redes dependuradas, seguida de um corredor que levava ao interior. Zé, acompanhado por
um segurança, passou pela varanda, seguiu pelo corredor e subiu uma escada até o primeiro
pavimento. No alto, atravessou uma porta de aço entreaberta e gradeada e entrou no escritório de
Jeremias. O escritório era como o seu dono: sujo, desconfortável, papéis, pastas e documentos
espalhados sobre uma velha mesa de jacarandá. Algumas crianças, cachorros e gatos corriam um
atrás dos outros ao redor dos móveis do escritório. Uma velha tentava varrer a sujeira, gritando com
a molecada. Sentado na poltrona de uma segunda mesa, Jeremias sorriu, mostrando os dentes de
ouro.
- Tome assento, meu amigo.
Zé se aproximou de Jeremias para ver o que ele estava fazendo. No chão, atrás da mesa, havia
uma pilha de pacotes.
Zé pegou um pacote, contendo mais ou menos um quilo. Jeremias sorriu:
- Trouxe a grana?
- Sim!

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Jeremias contou as notas, que sumiram no bolso da sua calça encardida.
- A coca é pura?
Jeremias riu.
- Você é um cara precipitado. Isso que você pegou não é cocaína. É um preparado que uso para
fazer a ração dos meus cachorros.
- Então me entrega a mercadoria, que estou com pressa.
- Calma! - Disse Jeremias. É pra já. Depois de um instante acrescentou: - Tem que me pagar
mais trinta por cento da alta, esqueceu?
Contrariado, Zé Clemente pagou. Jeremias levantou-se e abriu um armário de aço, retirando a
cocaína. Pegou e examinou-a. Era um pacote só, de um quilo. O peso parecia estar certo, mas o
lacre colombiano estava rompido, o que significava que a mercadoria não era pura, tinha sido
adulterada. Ficou alterado, tinha de haver um limite para a safadeza. Esforçou-se por falar
calmamente:
- Você misturou...
Jeremias deu de ombros.
- E daí? Qual é o problema?
Zé Clemente suspirou. Passara muito tempo fazendo turismo pelas praias nordestinas,
relacionando-se com gente boa, e esquecera-se de como as coisas eram feitas na malandragem.
Tanto na Boca do Lixo em São Paulo, como ali em Porto Seguro, tudo era a mesma coisa, só
mentiras e desonestidade. Ia sair, quando colocaram um copo com licor de jenipapo a seu lado.
Ergueu os olhos e viu uma linda menina, quase nua, umbigo de fora, seios miúdos aparecendo sob
uma blusinha transparente. Perguntou a Jeremias:
- Sua filha:
Jeremias riu.
- Oxente, homem, tu ainda não conhecia minha mulé?.
Zé deu outra olhada para a mocinha. Deveria ter uns treze anos. Despediu-se, desceu as escadas e
saiu pra rua. Jeremias pegou o telefone e discou um número. A voz do outro lado do fio perguntou:
- Com que carro ele está?
- Um Opala azul, placas de Aracaju.
O automóvel era mesmo confortável: bancos de couro, som a laser, ar condicionado e vidros
elétricos. Um luxo. Mal virou a esquina, a Polícia Federal cercou-o. Da janela de sua casa, Jeremias
assistiu a cena, enquanto amassava as tetinhas da menina e lhe mordia o pescoço com seus dentes
de ouro. O que comandava a operação mandou Zé Clemente evitar qualquer movimento, sob pena
de morrer ali mesmo. Saiu do Opala e entregou os braços às algemas. Em pouco tempo uma
multidão formou-se diante da viatura. Depois vieram mais carros da polícia e de reportagem. O
trânsito parou. Zé Clemente, acompanhado por dois investigadores, entrou no camburão que partiu
de sirena aberta. Na delegacia, outra concentração de curiosos. E, além dos curiosos, Jeremias,
pronto a identificar o traficante. O jornal A Folha trouxe a notícia em grande título: “Preso o
cangaceiro do Sergipe”. Sob a manchete, vinha o texto: “Ontem à noite, a Polícia Federal, com
informações de um ilustre e honesto comerciante desta cidade conseguiu prender o matador da
família do coronel Quincas, do Riachão. Já fazia algum tempo que a polícia andava de olho num
sertanejo metido a turista pelas praias do Nordeste. Não era outro, senão José Clemente da Silva,
natural de Mirandiba, Estado de Pernambuco, o degolador do sertão, agora transformado em
traficante de drogas nas belas praias de Arraial D'Ajuda. Por várias vezes noticiamos o tráfico de
drogas em nossa cidade, sem contudo saber quem era o responsável. A cidade vivia sob o temor das
drogas, que ninguém sabia de onde vinham, cujo local de distribuição ninguém conhecia. Nosso
jornal moveu ferrenha campanha contra a distribuição de drogas em nossa região. Essa luta, deu

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seus primeiros frutos com a prisão do Cangaceiro do Sergipe, graças à ajuda espontânea e cristã de
um bom cidadão e excelente pai de família da nossa comunidade. Infelizmente, a mulher dele,
Valdelice de tal, conseguiu escapar das mãos da polícia. Em todo caso, já se conseguiu muito
prendendo o chefe dos traficantes. Tudo era feito meticulosamente, no Cabaré Sereia Azul, que
encontra-se fechado, à disposição da Justiça. O réu, primeiramente, deverá ser encaminhado à
Justiça do Estado de Sergipe, onde deverá responder pelas mortes de sete pessoas, na localidade de
Riachão”.

MARACUTINGA

A ssombreado pelas frondosas matas de jacarandá, em cujas aproximações frutificam o


cacaueiro, a bananeira, o cajueiro, o mamoeiro e o maracujá, o sul da Bahia, com seus
vastos cerrados onde proliferam as itaubas e as aroeiras, apresenta uma orla marítima
lindíssima repleta de vastos coqueirais. É o berço das deliciosas peixadas, acarajés apimentados,
mungunzás, galos-capões, vatapás e tantas outras delícias da culinária baiana; jambos, graviolas,
cajás, ananás, melões, melancias... O Sul da Bahia, enfim, é o paraíso nordestino encravado entre
belíssimas praias de areia branca, arrecifes de coral, piscinas naturais a poucos quilômetros da
costa, e lindas mulheres. Está, por assim dizer, entre o litoral e o sertão; ou melhor, entre o mar e o
deserto, num bloqueio de clima agradabilíssimo. Com efeito, o clima ali é excepcional. A planície
costeira revela-se opulenta e ampla, principalmente no trecho que passa por Alcobaça, Canavieiras,
Olivença, Ilhéus e Nazaré das Farinhas, tendo o seu ponto culminante na paradisíaca ilha de
Itaparica, exageradamente dominada por mata nativa e coqueirais. O clima temperado desafia na
suavidade o admirável regime do Rio de Janeiro; rolando do mar para o interior, começando no
município de Teixeira de Freitas, passando por Itamaraju, Itabuna, Itapetinga, Itajumirim, Milagres,
Cruz das Almas e Salvador; descortinando, em alto mar, a formosura do Arquipélago de Abrolhos.
Esta beleza, aqui apenas esboçada, mostra claramente a diferença entre o Sul da Bahia e o sertão.
São regiões absolutamente distintas, tanto pelo regime meteorológico como pela distribuição das
terras e pela transição variável entre o sertão e a costa. Descendo à análise mais íntima, vamos
procurar desvendar aspectos particulares mais incisivos ainda. Com efeito, a natureza no Sul da
Bahia balanceia os nosso exageros. É excepcional e nitidamente destacada; nenhuma se assemelha a
ela no Nordeste. Toda a imponência selvática, toda a exuberância inconceptível, unidas à
conformidade dos elementos que ali são francos, transformando a região em cenários portentosos.
Contemplando-lhe as mudanças climáticas, mesmo através das frias observações dos
meteorologistas pouco versados a efeitos descritivos, vê-se que aquele regime climatologicamente
anômalo é o mais perfeito da região nordestina. Nenhum outro se lhe equipara. A sua feição
aparente é de benignidade extrema: a terra fornecendo excepcionais condições à vida; a natureza
fecunda erguida na apoteose triunfal dos dias deslumbrantes e calmos; o solo recoberto por
vegetação fantástica: farto, irrigado de rios, cachoeiras, lagoas e fontes de água cristalina. Isso para
não se falar das praias que se estendem a perder de vista. São muitas, belas e refrescantes, ladeadas,
em alguns pontos, por manguezais ricos de fauna ictiológica: camarões, lagostas, siris, caranguejos
e variadas espécies de mariscos fazem a festa de turistas e nativos. Mas, esta placidez opulenta
esconde, paradoxalmente, a exemplo das demais regiões nordestinas, intrigas pela posse da terra,
envolvendo tiroteios e emboscadas fatais até entre as mais nobres e tradicionais famílias da região
que, irrompendo, eternamente, com uma política suja, acabam por trair e sacrificar os próprios
companheiros, com os mesmos meios infalíveis do sertão; fazendo, ali, vigorar com facilidade
irresistível a lei do mais forte, principalmente em Maracutinga, da qual a seguir vamos nos
encarregar.

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As pessoas que conheciam aquela cidadezinha encravada nas matas do sul da Bahia, diziam
tratar-se de um lugar ideal para um encontro com a natureza e a fusão completa de um sonho. A
magia das trilhas que levam ao mar, impregna a todos que se propõem à percorrê-las, descortinando
cenários pontilhado de riachos de água cristalina e florestas imensas, de verde intenso, de natureza
imaculada, onde habitam flores, pássaros e animais silvestres. Ao mesmo tempo, apresenta um
aspecto selvagem, com suas praias quase inacessíveis, pousadas sobre um litoral onde densas matas
margeiam muitos quilômetros de mar azul.
Assim é Maracutinga. Em suas matas, entre a BR 101 e o mar, podem ser encontrados onças
pintadas, quatis, macacos e várias espécies de animais selvagens. Na orla marítima, combina-se o
colorido das orquídeas com o avermelhado dos arrecifes de corais que se avistam das praias. Nos
campos que margeiam as matas, caracterizados por sua vegetação baixa, mas exuberante,
encontram-se plantas medicinais e comestíveis, além de orquídeas e bromélias que nascem em
qualquer fenda, entre as pedras que guardem pequena quantidade de solo e umidade.
O turismo, o artesanato e as plantações de maracujá, mamão, coco, feijão e dendê, são as
principais rendas do município. A cidade é uma festa permanente, onde todos os possíveis
companheiros de aventuras mostram ao visitante, como bandeiras, o amor e o zelo pela natureza. As
ruas e avenidas largas e asfaltadas, com boa iluminação, são coisas modernas entrelaçadas às
antigas ruas estreitas de calçamentos de pedras, com lampiões antigos e pequenos bares que fazem a
alegria dos turistas. O que mais permaneceu na região, foi a natureza quase intacta. E é a mesma
visão que o visitante carrega consigo quando deixa Maracutinga. Na verdade, ele sai apaixonado
pela cidade, amarrado por laços da amizade conquistada durante os passeios e banhos de mar, e com
a certeza de ter percorrido um pedaço do paraíso que persiste na lembrança como o canto dos
pássaros e a beleza das suas praias imaculadas.
Maracutinga é um antigo vilarejo perdido no meio da mata atlântica. Com a criação do
município, alcançou um progresso vertiginoso, em função de uma agricultura moderna, bem
assessorada por uma das maiores cooperativas agrícolas do Brasil. A zona urbana é um paraíso em
meio à lavoura, o mar e a floresta, quase divisa com os estado do Espírito Santo e Minas Gerais.
Comércio farto, desenvolvimento rápido; lojas, armazéns e a barbearia, sempre o lugar comum das
vilas brasileiras, a reunião de pescadores e outros mentirosos. O médico, o professor de matemática,
os fazendeiros, os vereadores e o prefeito, proprietário da farmácia.
A cidade crescia: supermercados, uma panificadora bem sortida, a casa de carnes que expunha
peixe, frango, carne suína e bovina baratíssimas. A famosa carne-de-sol, então, ficava exposta nos
varais das barracas da feira, onde também se vendia tapioca, feijão-de-corda, farinha, coco e onde
se podia tomar um delicioso caldo de peixe junto com uma cachacinha regional. Na Avenida Brasil
ficava a prefeitura, a clínica do Dr. Serapião de Jesus, o consultório do dentista prático Orosimbo
Azevedo, a coletoria e o Banco do Estado. Na Praça da Matriz era onde se erguiam as residências
dos fazendeiros, o hotel, os dois restaurantes, a lanchonete do Zé Pedro e a igreja católica,
evidentemente. A avenida Atlântica e mais algumas ruas estreitas ou largas, curtas ou compridas,
asfaltadas ou de chão batido, de muitas casas modernas ou antigas, com muita gente. Numa delas,
umas três ou quatro pousadas repletas de turistas e viajantes. Na entrada sul da cidade, a estrada que
circunda as praias; na norte, apenas casas onde vivem as rameiras. Foi numa delas, a Boate Azul,
que Valdelice se instalou, depois de fugir de Porto Seguro.
Bonita cidade, dinheiro farto. Na zona, as putas todas se conheciam e também conheciam a
maior parte dos homens solteiros e pais de família. Difícil arte, na qual era campeã sem rival
Beatriz, uma baianinha bonita com ligeiro sotaque paulista, proprietária da Boate Azul. Muita
alegria, muita música, muitos homens, muitas prostitutas. A rapaziada toda queria ter o seu
chamego na zona. A gonorréia, o cancro mole ou duro e as demais doenças sexualmente

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transmissíveis eram prontamente tratadas pelo médico, Dr. Serapião, ou pelo farmacêutico, Paulo
Ribas, prefeito municipal. Nem se falava em AIDS por essas bandas, por isso não usavam
camisinha e o sexo corria feliz. Nos bares, os radiozinhos de segunda categoria, tocavam músicas
regionais no mais alto volume. As madames burguesas, suas filhas e comadres, executavam
partituras musicais nos teclados dos órgãos e pianos com cauda ou sem ela. Nos forrós e nos pega-
crias, nos rasga-buchos e nos inferninhos, os nativos jogavam capoeira, tocavam atabaque e reco-
reco. Na zona, a música sertaneja comia solta, entre dobrados, tangos, boleros e sambas. Sargento
Raimundo, o delegado, mandava parar o barulho cedo. Em represália, as putas, os seresteiros e as
filhinhas de papai chamavam-no de xarope, quadrado e outras basbaquices. Sábado sim, sábado
não, munido do competente alvará policial, o diretor do Clube Social promovia bailes com cantoria
e muita bebida. Na manhã de domingo, o padre com ares de poucos amigos, amaldiçoava a todos
que participavam do baile. Depois usando uma voz fraternal e cordial, abençoava os paroquianos,
os congregados marianos, filhas-de-Maria, filhos dos fazendeiros e os seus próprios que, segundo as
más línguas, eram em número de cinco. Uns bastardos, afirmava o representante da igreja
evangélica. Mas conforme os mexericos de Maracutinga, o pastor só não os tinha por ser baitola.
Maracutinga, como de restante todo o sul da Bahia, uma belezura sem par, ainda cheia de matas
naturais, mais africana que brasileira por seus costumes, crendices e passado. A conversa na porta
da barbearia todos os dias, das oito ao meio-dia, das duas às seis da tarde. À noite um forrózinho,
um jogo de capoeira, um atabaque, um terreiro riscado na pemba, uma sessão de umbanda, um
acarajé apimentado e marafo pros preto-velhos; uma galinha preta, uma encruzilhada e muitas
flores brancas pra Iemanjá ao raiar da aurora - oferendas que o mar sempre devolvia em forma de
paz, de carinho e de felicidade.
Jogar baralho no Bar Continental, rodeados de sapos, curiosos e gozadores, era o divertimento
diário dos mais velhos. Os jagunços Zé Cearense e Paulo Pernambuco, eram fregueses constantes
do bar, quando não tinham algum servicinho à fazer a mando de algum fazendeiro da região.
A maior festa da cidade, contudo, era a política: os comícios comprometedores, as promessas
que nunca eram cumpridas, as cestas básicas que nunca chegavam aos destinatários e, que, se
chegavam, serviam mais de comida para os porcos do que para seres humanos. Entretanto, a cidade
se ornamentava, erguiam-se palanques e a banda de música, furiosamente, executava valsas,
dobrados e tangos argentinos, politicamente orgulhosa do prefeito Paulo Ribas, seu patrocinador e
pagador das contas que os músicos deixavam nos botequins.
Grande festa política, a daquele 20 de setembro. Paulo Ribas organizara, juntamente com o
deputado da região, um programa de mentiras, promessas e demagogias, capaz de causar inveja a
Itamaraju, Teixeira de Freitas, Itabuna e muitas outras cidades consideradas como grandes. Às oito
horas da noite falaria no palanque o senhor doutor, digníssimo governador do Estado e chefe
político da situação. Às dez, o presidente da cooperativa e latifundiário regional, Magalhães Júnior,
fariam uma palestra sobre agricultura no salão paroquial. Depois, até as duas da madrugada, ia
correr um forrózinho regado à cachaça e muita cerveja, na praça da catedral. O padre, aproveitando
a ocasião, mandara assar leitões, bodes, galinhas e galos-capões. Também ajudou na promoção da
quermesse, vendendo cerveja em lata, quentão e outras tantas bebidas alcoólicas que eram sorvidas
pelos foliões do maracatu, frevo, pagode e baião. Na quermesse também não faltaram o jogo-da-
velha, o bingo, o carteado e outros tantos jogos de azar. A igreja faturou alto, mas na missa de
domingo o padre disse que tinha dado prejuízo, reclamando também do pagamento do dízimo, das
prendas e das doações que os fiéis haviam deixado de pagar, reclamando:
- Na festa vocês comeram do bom e do melhor. Muitos, depois de encherem a barriga, saíram
pelos fundos da praça para não pagarem os alimentos de Deus. É por isso que Jesus está chorando.
Ele precisa de dinheiro porque nem só de pão vive o homem...

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Na praça da catedral todos os candidatos gostavam de dar um dedo de prosa com o possível
eleitor, ou fazer um improvisado discurso, à moda Collor de Mello, nas escadarias da igreja. O
maior desses descarados, contudo, era justamente o prefeito municipal Paulo Ribas. Já criara a fama
de bom orador em inúmeros discursos que fizera. Falava tão bem que causava orgasmos em
mulheres casadas, solteiras ou amigadas; deixando uma ponta de ciúmes em sua esposa, que, na
presente legislatura, era a presidente da Câmara Municipal. Paulo Ribas, em seu discurso, dizia
querer transformar Maracutinga numa bela cidade. Claro que gostava do nome da cidade, pois
lembrava-lhe as rendosas plantações de maracujá das suas fazendas. Um significativo nome, sem
dúvida! Muita coisa prometia o prefeito: asfaltar ruas, construir escolas e hospitais; instalação de
luz elétrica nas vilas; telefone; água encanada e o combate às malditas muriçocas. Não tinha filhos,
mas tinha uma esposa que julgava infiel, a vereadora mais votada. Sentia-se inteiramente feliz com
a administração municipal. Nascera para político, tinha carisma, sabia ludibriar o povo. Na
prefeitura de Maracutinga encontrara a sua vocação demagógica, brilhara a sua capacidade política.
O seu desrespeito pela coisa pública transformara-se numa alucinação, uma febre pela posse do
poder: a distribuição de favores, o empréstimo de máquinas da prefeitura aos correligionários, a
briga com os deputados em Salvador por causa de verbas; à noite com sua secretária ou outra
quenga qualquer na cama. Sua esposa, Joana Maria, com agilidade diplomática não lhe pedia
satisfações. Vivia política e luxuosamente como uma digna representante do povo na Câmara
Municipal e uma respeitável senhora casada, sem defeitos aparentes. As más línguas é que falavam
de um possível envolvimento dela com o médico da cidade, o Dr. Serapião. Diziam que o médico
lhe fazia visitas noturnas sem estar doente, quando Paulo viajava. O padre ouvia os mexericos mas
não se comprometia, filosofando: - Em briga de marido e mulher, não se mete a colher. Mas sedento
por pegar um flagrante, aumentava a vigilância, na ânsia por chantagear doações para a sua
paróquia. Ele tinha uma fé inabalável no seu senso de investigador. A notícia das lavadeiras era que
o médico, sabedor da ausência do prefeito, ia encontrar Joana Maria naquela noite. A secretária do
médico teria deixado vazar a informação. Por outro lado, a empregada doméstica da casa do
prefeito garantia que sua patroa estava muito excitada. Ia e vinha no corredor da casa, da varanda à
cozinha, saindo e voltando para o quintal ou para a porta da frente, observando o movimento da rua.
Teria lhe determinado: - Não deixe que ninguém desconfie. Quando ele chegar, tu fica de vigia na
varanda... Repara se os vizinhos estão dormindo... Nessa ansiedade a noite foi passando. O padre,
acordado, preparado para assistir a cena, não conseguia fechar os olhos, entre uma cachacinha e
outra ou um cálice de vinho tinto, de missa. Eram duas da manhã quando o padre vislumbrou um
vulto caminhando em direção à porta dos fundos da casa do prefeito. Esperou que saísse e foi direto
conversar com ele, sentindo um arrepio de vitória.
- Boa noite, Dr. Serapião.
O médico levou um susto.
- Pois não...
- Minha conversa é pouca, doutor.
- Pois sim! Vamos a ela! Alguém doente?
- Não! Estou aqui para tratar dos negócios da minha paróquia. O senhor deve estar ciente das
dificuldades com que ela passa nessas horas difíceis e amargas da crise nacional...
- Hummm...
- Pois, é. Como ia dizendo, sabedor que o senhor será candidato a prefeito nas próximas eleições
estou aqui para lhe pedir um adjutório para umas reformas no altar.
- No que puder lhe servir, seu padre...
- O doutor deve saber que todo negócio só é bom quando serve para os dois lados, algo bilateral,
não sabe?

92
- Se chantagem também é negócio, então vamos a minha parte boa nessa história.
- A sua parte boa é que eu não vi nada, não sei de nada e a sua reputação ficará garantida.
Depois, com o meu apoio, que é a minha parte, o doutor pode fazer a maioria dos votos, se eleger
prefeito, derrotando o candidato indicado por Paulo Ribas.
- Aceito o acordo. - O médico lhe deu um cheque para as obras do altar da igreja. Antes de
qualquer comentário, o padre atalhou esperto:
- O doutor não perde nada. Eu não sou de deixar amigo no caminho. E tem mais, doutor, estou
aderindo à sua campanha, e não é só pelo dinheiro não, que é pouco, mas, é, para falar a verdade,
pela reputação e pela honra de Joana Maria.
- Isso é assunto meu, padre. O importante é que você fique calado.
- Minha boca é um túmulo, doutor, um túmulo...
Um dia desses - pensou Serapião - ainda vou dar um murro na cara desse padre. Intrigas à parte,
naquela madrugada, depois de soprarem por algumas horas as rajadas quentes e úmidas do
Atlântico, a brisa imobilizou-se, por algum tempo, estagnada. A natureza como se abate, estática,
assustada; nem as copas das árvores balançam, mais parecendo fotografias em preto e branco; as
árvores numa quietude medonha, mais parecem estátuas sinistras. As aves se acomodam nos
ninhais, protegendo os filhotes, ante o temporal que se aproxima. Ainda enraivecido pela conversa
com o padre Bernardo, o Dr. Serapião, sem sono, volveu o olhar para o céu mas não avistou uma
nuvem sequer. O firmamento límpido arqueia-se iluminado por uma lua obscurecida. A pressão
atmosférica, entretanto, cai vertiginosamente, numa descensão contínua, afogando o ódio que
Serapião estava nutrindo contra o padre. Por momentos, um cúmulo compacto, de bordas
acobreadas, enegreceu o horizonte sobre o mar. Deste, sopra logo depois, uma vibração, cuja
velocidade cresce rapidamente, em ventania forte. A temperatura cai em minutos e, pouco depois, a
tempestade sacode violentamente a cidade. Fulguram relâmpagos; estrondam as trovoadas nos céus,
já de todo bruscos, e um aguaceiro torrencial desce sobre Maracutinga, apagando, numa inundação
única, a poeira das ruas esburacadas, enchendo todos os riachos, embaralhando-lhes os leitos em
alagados indefinidos... É uma tempestade súbita. A tempestade irrompe arrebatadamente na espiral
vibrante de um ciclone. Destelhando-se as casas mais pobres; dobram-se, rangendo, estalando, os
enormes jacarandás seculares; ilham-se os morros; alagam-se as baixadas; crescem as ondas do mar,
estrondeando contra as praias agora desertas. O clima no sul da Bahia transmuda-se. De forma que,
ao raiar do dia, o sol volta a brilhar, irradiante, triunfante, no céu azulíssimo. A passarada, agora
alegre, canta nas copas gotejantes das árvores; suavizam-se os ares – e o Dr. Serapião, deixando o
seu consultório onde se escondera do temporal, contempla, ainda trêmulo, os estragos entre a
revivescência universal e a simplicidade da vida humana. Os troncos e galhos das árvores rachadas
pelos raios, retorcidos pelos ventos; algumas casas destruídas, lançadas por terra; as últimas ondas
barrentas da enxurrada; a erva acamada pelos campos; a placidez da maré baixa batendo levemente
na costa – mal relembram a investida fulminante da intempérie. Mas aos olhos do Dr. Serapião,
aquele domingo não era dos melhores, como certamente também não seria um dia agradável para o
padre Bernardo, que desde o amanhecer se mostrava aborrecido.

A CAMPANHA POLÍTICA

N aquela tarde de domingo o padre Bernardo estava nos seus piores dias: indeciso, sarcástico,
irascível. Tinha uma tosse nervosa a que recorria quando não queria falar, e agora estava
tossindo à beça. Estava também inquieto: arrumando o altar, a sacristia e a sua mesa, indo e
vindo pelo interior da igreja várias vezes, com um enorme espanador nas mãos. Serapião estava
sentado imóvel, esperando:

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- Olhe aqui, doutor. A estratégia é minha, seu trabalho é mostrar os dentes para o eleitorado,
fazer consultas gratuitas, mandar o dinheirinho da igreja... e você não está se saindo bem.
- Nem você - disse Serapião. Quem são os cabos eleitorais que você selecionou?
O padre fez que não ouviu. Apanhou umas folhas de sulfite datilografadas, que eram o plano de
governo de Serapião. O médico havia desenvolvido um plano de trabalho e formalmente o
submetera à apreciação do padre.
- Primeiro, está cheio de falhas - observou o padre.
Serapião não disse nada.
- Cheio de falhas - o padre tossiu. De início, ele implica colocar Joana Maria na vice candidatura,
como pode ser isso?
- Ela está se divorciando do Paulo Ribas e se bandeando de vez pro meu lado.
- Como é que é?
- Sim! É o que acabei de dizer.
- O molho está saindo melhor que a macarronada. - pensou o padre.
- Que foi que disse?
- Nada, não, doutor! Nada, não...Você é muito danado, muito esperto... Trouxe o cheque?
Com a adesão política do padre ou não à campanha de Serapião, o certo é que nunca mais faltou
dinheiro para as obras da igreja. Alheio à essa questão, a luta para eleger um candidato do seu
partido era o que mais preocupava Paulo Ribas, pois ainda não tinha em mente um candidato que
pudesse derrotar Serapião. Às favas os mexericos das lavadeiras e o adultério praticado por Joana
Maria. Ele decididamente não gostava mais dela, que fosse atrapalhar a vida do Dr. Serapião, que
fosse se amigar com ele. Paulo até que fazia gosto nisso. O que Paulo realmente queria era
continuar mandando na prefeitura, decididamente era o melhor político do sul da Bahia e iria, com
certeza, eleger o seu candidato. Teria que arrumar um. Mas quem? O padre, como todo político
safado, jogava com faca de dois gumes. Ao depositar o cheque do médico em sua conta particular,
comentou com o gerente do banco:
- O Serapião, coitado, não entende nada de política, vai se dar muito mal nessa campanha.
- Será que ele é bicha, padre? - Perguntou-lhe o gerente. Solteirão, com mais de quarenta anos.
Sei não...
- Bicha? Essa é boa. É um comedor da porra. Dizem por aí que tá se metendo com mulher casada
e isso ainda vai dar um rolo danado. - Deixava uma ponta de curiosidade na cabeça do bancário.
- Quem padre?
- Sei, não! Quem procura acha. Procure, depois me conte, que a minha boca é um túmulo, um
túmulo...
Salvo por essas intrigas, Paulo Ribas governava Maracutinga do jeito que lhe convinha. Passava
dias inteiros na praia ou navegando com seu iate, beliscando as bochechas dessa ou daquela
rapariga municipalina. Para a esposa ele dizia que estava na fazenda vistoriando a colheita de
maracujá, ou na cooperativa, negociando a mercadoria.
- Você precisa perder a mania de trabalhar tanto e dar um pouco mais de atenção para mim. -
Ensaiava Joana Maria, uma mentirosa pontinha de ciúme. - Olhe que já vai pra dois meses a última
relação sexual que tivemos.
Dito isso, Joana Maria abaixou-se para pegar alguma peças íntimas que estavam caídas no chão.
Tinha acabado de sair do banho, estava nua e resolveu vesti-las. Lá estavam suas calcinhas, suas
meias e sutiã. Quando ia colocar a calcinha, Paulo beijou-a rudemente nos lábios, não parecendo
incomodar-se com o fato de ela se mostrar absolutamente indiferente. Ele estendeu a mão entre as
pernas e enfiou um dedo. Retirou o dedo da vagina e enfiou no ânus. Ela retesou-se. Ele empurrou o
dedo mais fundo e ela gritou de dor. Então, ele a segurou pelos cabelos e deitou-lhe a mão aberta

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bem no meio da cara:
- Sua puta!
Um filete de sangue começou a escorrer pelos cantos da boca da mulher.
- O que é isso, Paulo? Não me bata...
- Vá reclamar pro Serapião, sua quenga.
Ciúme, ódio e indiferença? Paulo Ribas não sabia exatamente o que era. A sua desconfiança é
que doía. Quando tinha esses pressentimentos o cacete comia, se dobrava. Ele se atilava em
crueldades mais duras. Depois, a trancafiava no quarto e saía para a rua, para a zona, onde se
demorava horas. Ia à casa de Beatriz, ia tomar uns goles a fim de pensar bem pensado; a mulher que
lá ficasse agüentando dores. Voltava ao raiar do dia, bebido e abespinhado, usava o chicote de
domar cavalos como se Joana Maria fosse uma égua. Proibia-a de gritar, de chamar a atenção da
vizinhança. Malhava aquele corpo contra as paredes, dava-lhe nos rins, nos nós e nas pontas dos
dedos. Encostava-lhe a brasa do cigarro nos seios. Às vezes, Joana Maria urinava de tanta dor. No
dia seguinte, apesar da surra, ela ia se encontrar com o Dr. Serapião, dolorida, pisada. Na cama ele
costumava perguntar o que eram aquelas manchas pretas no corpo.
- É o ciúme do Paulo – e olhava para o teto: tenho que ir embora antes que ele volte da fazenda.
Depois retornava para casa como uma cadela, pronta a se entregar aos abraços do marido:
verdadeira mulher de malandro. Mas, se Paulo desconfiasse que ela havia estado com o médico, de
novo era trancafiada no quarto, batida, surrada. Atendendo a sua clientela, que era muita, o médico
não parava de pensar naquela situação. Chegavam-lhe, em pensamento, as coisas boas, numerosas,
que dava àquela mulher. Imaginava-se seu protetor. Queria amigar com ela. Entendeu-se com o
padre. Tomou coragem e foi falar com Paulo Ribas. O marido abriu mão. Deu-a de presente ao
médico. Uma tonta a quem ensinou como proceder na política. Gastara muita lábia para fazer dela a
presidenta da câmara, uma otária que nem fazer licitações frias e roubar o contribuinte sabia.
Obteve-lhe um lugar na câmara de vereadores, deu-lhe luz, que diabo! Uma viagem errada, uma
mulher de merda que só lhe dava trabalho e lhe esquentava a cabeça. Uma trouxa que não merecia o
homem fino que ele era. Serapião que a levasse, que fosse morar com ela, que se fodesse. Estava
casado com Joana Maria desde o Estado de Alagoas, de onde viera depois de um desentendimento
com seu pai e irmãos, poderosos usineiros e empresários no ramo das comunicações. Em
Maracutinga tinha encontrado o seu eldorado particular. A cidade e sua fazendas, eram a
personificação de seu orgulho particular. No comando da prefeitura, enganava a todos, gastava e
sentia-se inteiramente feliz com a carreira política e sempre dizia que a felicidade só está ao alcance
dos homens ambiciosos, com os bolsos cheios de dinheiro. - “Entretanto”, dizia ele: - Não devemos
ser escravos do dinheiro, mas sem ele seremos eternamente escravos.
Aniversário da cidade. Regurgitava a festa na praça da igreja: sinos repicando, bandeirolas,
comidas típicas, banda de música e os políticos dando um dedo de prosa com o eleitorado. Toda a
população reunida ali com as melhores roupas, ônibus lotados de eleitores, no início da noite, o
anunciado discurso de Paulo Ribas.
Algumas mulheres da zona também estavam presentes.
- Fala bem o doutor prefeito.
- Então não é, Valdelice, que é mesmo uma belezura?...
Beatriz e Valdelice, ouviam o discurso do prefeito e conversavam animadas. Paulo, abraçado à
esposa, estava feliz com as calorosas salvas de palmas da população entusiasmada. O deputado da
região, subindo ao palanque, aproximou-se íntimo:
- Que festa, heim Paulo?
- Então não é, deputado?
O eleitorado vibrava com a presença do deputado. A banda de música atacou a melodia Asa

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Branca. Paulo podia ver a satisfação da população e o sorriso malicioso que Valdelice lhe dirigiu.
Terminada a apresentação da banda, o deputado pegou o microfone. Em seu discurso, afirmou
que fortes correntes políticas da região, e mesmo da capital, queriam Paulo Ribas para deputado. O
povo delirava, Valdelice discretamente mandou-lhe um beijo com a pontinha dos dedos. Então,
erguendo as mãos para o alto, como a agradecer a Deus, Paulo Ribas reiniciou o discurso: - Povo de
Maracutinga... - E improvisou um dos melhores discursos que Valdelice já ouvira. Ao terminar,
convidou o representante dos sem-terra para subir no palanque:
- Passa amanhã na prefeitura, que vou arrumar terra para a sua gente plantar e viver...
Estouraram as palmas. Muitos abraços. Parabéns. Cumprimentos. Até o Dr. Serapião bateu
palmas em meio aos fogos de artifício que pipocavam no espaço, colorindo a noite e bordando a
cidade de pequenas estrelas.
- Homens de grande futuro - falou Beatriz no ouvido de Valdelice, a inquilina mais bonita do
seu cabaré. - Gostou do discurso?
- Se gostei... Tava muito bom... Será que ele não dá as graças da sua oratória lá em casa?
- Por que tu não pergunta a ele?
- Oxente, mulher, tá dementando? Não tá vendo a esposa dele agarrada no cangote?
- Aquilo é só fingimento. É uma quenga, essa tal Joana Maria. Repara o chamego do Dr.
Serapião. O desgraçado ainda é da oposição, imagina...
- Sujeitinha safada...
- Traideira.
- Pior que puta...
- Coisas da política, Val... Coisas de política...
Na escadaria da igreja, Paulo falava sobre a construção de um ginásio de esporte, escolas,
hospitais... uma fábrica de suco de maracujá... uma cooperativa municipal... O padre ouvindo a
conversa, comentou com o Dr. Serapião:
- Como sabe mentir, o Paulo. E o povo idiota ainda acredita nele. Um safado.
- Safado e corno...
- Cala essa boca, doutor. Em boca fechada não entra mosquito...
O povo não perdia uma só palavra da fala de Paulo Ribas. Joana Maria entrou na conversa,
olhando de esguelha para o Dr. Serapião que se retirava.
- O doutor deputado será o presidente da cooperativa.
- Obrigado pela lembrança - agradeceu o deputado. - Mas o presidente deve ser Paulo Ribas.
- Não! Eu quero só cortar a fita de inauguração.
Risos.
- Apoiado! - Aplaudiu o jagunço Zé Cearense, bêbado, sem saber o que estava acontecendo.
Mais risos.
Beatriz convidou:
- Vamos embora, Val, arrumar a casa que hoje o cabaré enche. - Depois, como que meio
desconfiada, perguntou:
- Como tu veio parar aqui, Valdelice? De onde veio, que nunca me falou?
A pergunta repentina, colheu Valdelice de surpresa. Felizmente, ela tinha resposta preparada,
jamais ia dizer que tinha vindo de Porto Seguro e falar da sua vida com Zé Clemente. Entretanto,
hesitou, nervosa por mexer demais a mão, parecendo excessivamente ansiosa em dar explicações,
mentiu:
- Aracaju! Por que a pergunta?
Nada, não! É que esse nome "Valdelice"... "Val"... Me lembra certa pessoa que não cheguei a
conhecer direito...

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- Deixa de mistério, mulher, conta...
- Coisa besta. É que quando eu era puta em São Paulo...
E Beatriz contou-lhe toda a história que ela já sabia de cor. Só não imaginava que essa era a
Beatriz que tinha ajudado Zé Clemente em São Paulo. - Como a vida dá volta... - pensou. E ficou
calada, evitando que Beatriz lhe descobrisse o segredo.
- Tu já era puta no Aracaju, Valdelice?
- Desconjuro, mulé, que só vim conhecer a quengagem aqui no teu cabaré, num sabe?
- Como tu veio parar aqui?
- A vida no Aracaju tava muito ruim, depois que meu marido faleceu - continuou mentindo. -
Então resolvi arribar pra São Paulo. Vim de ônibus até Feira de Santana. Aí, o dinheiro acabou e
peguei carona com o motorista de um caminhão...
Ela mentia. Havia inventado essa história para o caso de alguém lhe perguntar. A verdade é que
quando a polícia deteve o carro de Zé Clemente, um garçom do cabaré ia passando pelo local e
assistiu a cena. Então, correu no telefone público e ligou para ela. Assim, quando a polícia chegou
no cabaré, ela já tinha escapado pelos fundos. O problema, foi que na fuga não teve tempo de
apanhar dinheiro, documentos, roupas e demais pertences. A história do caminhão, era mais ou
menos verdadeira: parada sob a luz de um poste, na saída da cidade, um caminhoneiro havia lhe
dado carona.
- E daí? - Beatriz perguntou, curiosa.
- Daí que o caminhoneiro era um bolinador. Eu não gosto de bolinadores. Não me incomodo
com a cantada direta, de fato, gosto até disso. O que me contraria são as apalpadelas furtivas,
culposas, não solicitadas...
Beatriz deu uma gostosa gargalhada, depois falou:
- Eu também não gosto de bolinação. Sou puta, mas não gosto.
- Pois é. O motorista era insuportável. Aproveitava todas as oportunidades para tocar-me o braço,
o ombro e a bunda. Sempre que trocava uma marcha, passava a mão em meus seios e nas minhas
nádegas.
- E você não reclamou?
- De início, achei que havia sido casual, pois ele era um galeguinho novo e não tinha cara de
tarado. Só fiquei apavorada quando ele parou o caminhão, puxou uma faca e tentou me comer à
força.
- Foi?
- Foi! Então desci do caminhão e saí correndo pro meio do mato. Só voltei pra estrada quando
ouvi o ronco do caminhão indo embora.
- E depois?
- Depois eu caminhei uns dois quilômetros pela rodovia e vi uma estrada com uma placa que
indicava: "Maracutinga, 8 km" Enveredei por ela e o resto tu já sabe. É a história da minha vida!
- Tu percorreu os oito quilômetros a pé, no escuro?
- Foi! Aí eu avistei a tua boate e tu me deu guarida, lembra?
- Lembro! O teu primeiro freguês foi o jagunço Paulo Pernambuco, que nem te pagou...
- É, eu tava tonta. Tinha bebido muito. Estômago vazio. Quando eu me embriaguei, ele me levou
pro quarto.
- A vida de puta é uma merda, Val. A gente tem que se deitar com qualquer um, nem que seja
um cabra imundo como o Paulo Pernambuco.
- Entonces não é? O desgraçado tinha um cacete desse tamanho, e tive de satisfazê-lo com a
minha boca e corpo.
- Por que tu aceitou?

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- Com medo que tu me mandasse embora. Não tinha pra onde ir. Então peguei aquele cacete
enorme e o engoli, chupando-o como ele tinha mandado. Mas o desgraçado, pensando que eu era
puta experiente, agarrou-me com força e me fez sentar na sua piroca preta. Senti minha bunda
dilacerada.
- Vote!
- Assim foi! Quando a cabeça já estava lá dentro, o danado me segurou com força e me enterrou
a piroca toda. Gemi de dor, mas ele foi aliviando meu sofrimento fodendo-me com estocadas
cadenciadas, e se deliciando com meus seios.
- E tu não reclamou?
- Não, que não agüentava nem falar. Fiquei à disposição das suas taras e acabei tendo a minha
bunda toda coberta por seu sêmen, resultado de três gozadas daquele cavalo, que ainda bateu uma
punheta na minha boca.
- É Valdelice, vida de puta é isso mesmo.
- Não falaram mais nada até chegarem no cabaré. Então, Beatriz ordenou às mulheres que
se vestissem com as melhores roupas e perfumassem os cangotes para receberem a clientela.
Naquela noite, a confraternização política esquentou o cabaré e a carteira de Beatriz! Os políticos
riam, bebiam, dançavam... A mulherada, de vermelhão na cara, abraçava-os, beijava-os... Paulo
Ribas, lembrando-se que Valdelice era sergipana, meteu a mão na bolsa que carregava a tiracolo,
chamou-a e entregou-lhe um jornal de Aracaju, que havia comprado dias antes, numa das suas
viagens para Maceió.
- Em Aracaju lembrei de você e o trouxe de presente. Sei que você vai gostar de rever as belezas
das praias sergipanas. Repare só que fotografias lindas...
Com efeito. Na primeira página, uma belíssima foto da praia de Atalaia. Nas seguintes, uma
amostra da primeira capital de Sergipe, a cidade de São Cristóvão e suas igrejas centenárias. Uma
das mais antigas cidades brasileiras, a primeira capital de Sergipe del Rey.
- Então o senhor conhece o meu Sergipe, doutor Paulo?
- Eu sou alagoano, Val! O Sergipe é o meu caminho de ida e volta.
- E o senhor, deputado, também conhece o meu Estado?
- Se conheço? Essa é boa... Sou filho da terra. Pensou que eu era baiano? Engano. Sou natural de
Lagarto.
Paulo Ribas entrou novamente na conversa:
- Aqui no Sul da Bahia, o que tem de menos é baiano, deputado. Eu mesmo, nasci em Canapi,
Alagoas, a Valdelice é sergipana, o sargento Raimundo, ali, pernambucano de Mirandiba...
- Tudo é Brasil - retrucou o deputado. - Meu pai era paraibano. Aportou em Sergipe, assentou
moradia em Lagarto, criou os filhos e, pela generosidade dos seus habitantes, principiou a sua vida
pública ali, inicialmente como vereador, depois deputado estadual, prefeito, deputado federal,
senador...
Olhando disfarçadamente para o sargento Raimundo, Valdelice teve um pensamento: -
Mirandiba. Então é isso. Ele é o primo do Zé Clemente. Zé tinha razão quando dizia: - Hora dessa já
deve tá de farda nova nos lombo. É verdade. Depois de fugir do Sergipe, o danado conseguiu entrar
na polícia da Bahia, ser nomeado delegado de Maracutinga e arrumado amizade com os políticos.
Realmente, como dizia Zé Clemente, é muito esperto o sargento Raimundo. Muito esperto.
Paulo Ribas tirou-a dos pensamentos:
- Tá sonhando, Val? Ouviu o que o deputado falou?
- É sonho, não, doutor Paulo! A saudade da minha terra é que mata! Não tenho dinheiro pra ir
passear lá, não. Vocês têm, é tudo gente que nasceu rica. Eu sou sergipana, mas do sertão bruto,
terra pobre. Quem já ouviu falar em Riachão?

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- Riachão? - perguntou o deputado. - Não foi lá que o Cangaceiro do Sergipe matou toda a
família de um tal coronel Quincas?
Essa pergunta, fez com que o sargento Raimundo se levantasse e saísse da sala. Então Valdelice
teve certeza: - É ele mesmo, Raimundo, o primo de Zé Clemente. Ele sabe de toda a história, por
isso se retirou.
- Tu não sabe dessa história, Val? - Voltou a perguntar, o deputado.
- Sei, não, que nesses tempos eu tava morando em Aracaju - mentiu.
- Pois bem, - comentou Paulo Ribas. - Reparem como é a vida. Esse tal Cangaceiro, chama-se
José Clemente da Silva e, não se sabe por que cargas d'água, acabou montando um bordel em Porto
Seguro, onde virou traficante de drogas. Foi preso e recambiado para Sergipe, onde tinha sua prisão
preventiva decretada. Reparem na página policial, o que diz o jornal.
O deputado leu em voz alta: - "Fugiu da Penitenciária Central do Estado o cangaceiro Zé
Clemente."
Valdelice, tomando o jornal das mãos do deputado, correu e foi trancar-se no quarto. Quando
terminou a leitura, as lágrimas borraram-lhe as faces e o jornal. "Zé Clemente fugira da cadeia."
Anotou o texto com uma marca de batom e deitou a cabeça no travesseiro. A notícia do jornal,
dava-lhe uma angústia danada. Deixou o jornal caído sobre a cama e, então, começou a imaginar a
voz de Zé Clemente. Soava-lhe nos ouvidos. Revia a figura dele quando se conheceram: magro,
sempre de chapéu de couro, alpercatas de couro cru e o olhar perdido no horizonte, dizendo
paradoxos junto ao açude da fazenda Riachão: - O que isso, menina, onde já se viu moça donzela se
banhá mais homem nu? Em suas recordações, ela chegou mesmo a sorrir de como Zé Clemente
havia ficado zangado naquele dia: - Tu tá mexendo cum fogo, menina, se não fosse homem de
respeitá as virgindades, ia te mostrá uma coisa. Pensamentos enchendo-lhe a cabeça, ela não viu
Beatriz entrar e pegar o jornal. Na marca de batom, colocou o dedo.
- Eu já desconfiava que era tu, a Val do Zé Clemente! Tem nada, não, Valdelice. Só fico
aporrinhada por você ter me guardado o segredo, sabendo quem eu era...
Valdelice não respondeu nada. Saiu do quarto e voltou com o prefeito pela mão. Paulo Ribas era
um homem alto, de seus trinta e poucos anos, cabelos escuros, pele morena e olhos castanhos. Tinha
um grande nariz adunco que podia ser ou tipicamente sertanejo ou aristocraticamente descendente
dos antigos invasores holandeses. Possuía lábios finos e quando sorria deixava ver pequenos e bem-
feitos dentes. Como os de um gato, pensou Valdelice. Ela conhecia os sinais de fortuna: camisa de
seda, relógio de ouro no pulso, calça de linho bem talhada, cinto de crocodilo, sapatos feitos à mão
e uma sutil colônia para homens. Então, nessa noite, Paulo Ribas recebeu mais um predicado: o
maior troféu que uma sertaneja sofrida podia dar a alguém.
- Oh, Paulo, você é tão bonito.
- Eu sou é um homem de sorte, por estar aqui na tua cama.
Ela tomou-lhe o rosto entre as mãos. Foi um longo e lascivo beijo. Depois, ele não se contendo, a
segurou por trás, colocando as mãos em seus seios harmoniosamente redondos. Ela sussurrou que
aquilo não estava certo, que se considerava uma vagabunda para ele, que ele era um homem
importante. Enfim, aquelas bobagens todas que uma sertaneja simples sente perante uma pessoa
importante, principalmente quando está começando a se apaixonar. Mas, de certa forma, também
queria esquecer Zé Clemente e arrumar um outro amor de verdade. A essa altura, o prefeito tinha-
lhe abaixado a blusa e os seios redondos e duros da moça, incharam com suas carícias. O corpo dela
estava envolvido nos braços dele, pegando fogo de desejo, como se estivesse na cama com Zé
Clemente. Chegou a chamar Paulo Ribas de meu bichinho, delirando com os pensamentos no ex-
amante. De repente, Valdelice levantou-se, foi até o frigobar e perguntou:
- Quer um drinque?

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- Sim.
- Cerveja ou algo mais forte? - Insistiu ela.
- Um uísque seria ótimo.
Ela lhe entregou o uísque e sentou-se junto dele. O prefeito lhe tocou o ombro, beijou-lhe o rosto
e agarrou o seio. Ela estremeceu. Ele apertou-a com mais força. Ela o puxou, fazendo-o deitar-se
sobre ela. Ele apalpou entre as coxas de Valdelice.
- Oh, Paulo, você é tão forte! - Suspirou ela.
O prefeito tocou a língua nos bicos das suas tetas. Ela suspirou e se entregou de vez, espalmando
o cacete dele e começando a apertá-lo por cima da calça. Ele empurrou-a pelos ombros, para baixo,
e ela se ajoelhou a seus pés. Então, Paulo abriu e fecho da calça e apontou seu trabuco para o rosto
dela. Ela se limitou a masturbá-lo, enquanto arranhava-lhe a bunda e acariciava seus bagos. Ele
queria mais e puxou sua cabeça em direção a seu cacete, que ela acabou abocanhando com tanta
vontade que ele teve que se segurar para não gozar logo. Aos poucos ela foi se acalmando e passou
a chupá-lo cadenciadamente. O tesão do prefeito foi aumentando à medida que os lábios de
Valdelice lhe envolvia a cabeça do pênis. De repente, faz o mastro inteiro sumir em sua linda
boquinha e depois reaparecer. Ela também queria provar a vibração da língua dele e levantou-se,
tirando-lhe a calça. Alucinado de excitação, ele tirou-lhe a calcinha e cheirou aquele monte de
pêlos, que exalava um enorme prazer. Não agüentou e chupou-lhe o grelo com tanta gula, que
jamais imaginara ter. Ela gemia. Pedia para não parar, para devorá-la. Após lambê-la por longos
minutos, ela pediu que lhe enterrasse o membro até os ovos. Deitando-se de frente, ele abriu-lhe
bem as pernas e ficou pincelando a cabeçorra na entrada da sua xoxota, que latejava de tesão.
Gemendo de gozo, ela empurrou o ventre para a frente e ele a penetrou profundamente, iniciando
um vai e vem frenético. Antes que gozasse, virou-a de costas e começou a beijar-lhe as ancas.
Depois, lambeu seu ânus, enfiou a pontinha da língua, arrepiando-a inteirinha. Prevendo que ele
queria comer sua bunda, realçada por uma ínfima marquinha de biquíni, Valdelice, lembrando-se do
sexo que fizera com Paulo Pernambuco, alegou ter medo, pois a única experiência de sexo anal,
pela qual passara, doeu muito. Mas ele acabou convencendo-a. Ela lambeu-lhe o cacete, para deixá-
lo lubrificado, deitou com a bundinha levantada e ele forçou a sua resistência. A cabeça passou com
dificuldade e Valdelice berrou de dor. Mas o resto, deslizou suavemente. Então, ele começou a
mexer em seu grelinho e ela foi se derretendo de prazer, confessando em gemidos que sonhava com
Paulo há muito tempo. Aumentaram o ritmo e ela pediu que ejaculasse logo, pois queria gozar
junto. Ele estocou com mais força e quando ia gozar, tirou o pau do rabo dela e esporrou em sua
bunda até escorrer por suas coxas e pernas. Terminado o ato sexual, Paulo saindo do quarto,
carregando Valdelice com ele para o salão, ofereceu:
- Se você quiser, monto casa pra tu na cidade e você passa a ser uma quenga só minha. Aceita?
- Oxente, meu bichinho, se quero. Agora, um favorzinho que queria te pedir.
- Se estiver no meu alcance...
E Valdelice contou-lhe que havia perdido os documentos, precisando tirar as segundas vias.
- Que segunda via que nada, minha flor, amanhã eu falo com o cartorário, tu vai lá e tira tudo
novinho. Pode até mudar a data de nascimento e o nome, se quiser.
- Mudo de nome, não, meu bichinho...
- Tá certo, Valdelice...
- Valdelice para os outros, que o meu nome pra tu é Val, já não tinha falado?
Estava apaixonado por Valdelice, uma prostituta sim, mas um pedação de mulher que
angariava fregueses de bom quilate, plantadores de cacau, madeireiros, políticos e outros bichos,
vestida como uma dama da sociedade. Esse era o ponto que queria discutir: transformá-la numa
mulher da elite, sem máculas e sem pecados. Ela era arisca e manhosa, seria uma boa parceira na

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política e, com certeza, atrairia muitos votos. Era de pequena estatura, cor de jambo, mas com uma
inteligência de mulher que sabe o que quer e consegue. Mas tinha muitos pretendentes, gente da
alta, que lhe davam uma nota preta por alguns minutos na cama. Muitos políticos tentaram a
conquista definitiva e ficaram falando sozinhos. Mas com ele era diferente, medindo-se olhares
interessados, aquele medir-se de corpos, a malandra sintonizando vontades. Aquilo seria um bom
caso. Val era dengosa, de ancas macias que mexiam, iam e vinham numa batida temperada,
manhosa. Uma égua de raça, que corria na boca e na pretensão de grandes políticos da região.
- Uma mulher na cama. Tomava dinheiro graúdo de todos eles, inclusive de Paulo Ribas.

UMA NOVA VIDA

R ápida a transformação de Valdelice em Maracutinga. A medida que a cidade crescia, ela


progredia junto. De xodó com o prefeito, em pouco tempo tinha casa na cidade, carro do
ano e uma razoável área rural. Valdelice estava freqüentando uma escola noturna,
aprendendo a falar, a escrever direito e outras coisas mais. Enfim, estava se tornando uma mulher
de classe, já não era a mesma sertaneja amarela. Esmerava-se no trajar; comerciante sem problema
sérios, havia comprado o supermercado, algumas casas e o hotel da cidade. Apesar de continuar
bonita, os homens já não olhavam para ela, pois sabiam ser a preferida do prefeito.
- Será que ela também vai entrar na política? - Perguntava um.
- É bem possível. - Respondia outro.
Com política ou sem ela, Maracutinga fora a Canaã dadivosa que Deus colocara nos caminhos de
Valdelice. Ali chegara sem dinheiro, tinha começado como prostituta de segunda classe no cabaré
da Beatriz, já se iam alguns anos. Com Beatriz, naqueles primeiros tempos, aprendera a arte de
Madalena; com Paulo Ribas, a da política, de quem recebera a dosagem certa da difícil arte de
angariar votos. Rica e bem conceituada na cidade, era proprietária de muitos alqueires de terra,
casas, apartamentos, automóveis e barcos. Já iam longe os tempos da Boate Azul, que agora
pertencia a uma dançarina alagoana, chamada Severina, depois que Beatriz voltou para São Paulo.
O carinho da cidade, o respeito de todos, a sua vida comercial honrada, a sua intransigência no trato
com as pessoas, davam-lhe uma vida de alta burguesia naquelas paragens. O único problema, era
que não conseguia esquecer Zé Clemente. Não falava disso a ninguém e, agora, depois dos
quarentas anos, o seu novo amor era Paulo Ribas, com quem estava amigada depois da separação
dele com Joana Maria, ao reconhecer publicamente o envolvimento dela com o Dr. Serapião. O
partido político de Paulo Ribas fora acolhedor e paternal com Valdelice. O convite para disputar as
eleições à prefeitura foi, sem dúvida, a recompensa que nunca poderia esperar. Aprovada na
convenção partidária, ia disputar as eleições municipais tendo como vice o seu José do Correio, e,
como adversários, o Dr. Serapião e sua vice, Joana Maria .Vibravam os eleitores, mas nos seus
pronunciamentos, contrariando a vontade de Paulo Ribas - agora preparando a sua campanha para
deputado - não dizia de onde tinha vindo, os caminhos, os sofrimentos e as desventuras que tinha
passado. - Fui até mulher de zona. - E aí ficava. Em Maracutinga, renascera para a vida, fugindo
dos caminhos pecaminosos e das desgraças da vida. Chegara ali a pé, sem dinheiro, só com a roupa
do corpo e, em meio à mata densa. Deixara-se ficar na zona do baixo meretrício para não morrer de
fome; descobrindo, depois, o amor de Paulo Ribas e sua explosão de energias para desenlaçá-la dos
tentáculos da prostituição, afastando de vez, cada dia deixando mais longe o seu passado inútil. É
bem verdade que em Maracutinga, uma ou outra mulher casada, solteira ou amigada, guardasse
ressentimentos da antiga meretriz. Paulo ficava irritado com esses comentários. Mulherada ingrata
para com ele, há anos servidor da causa pública (e da maioria delas também). Valdelice não ligava
para esses falatórios, conhecedora de todos os meandros da política local, suas ambições e mutretas.

101
Sabia que o padre era a única pessoa que podia ajeitar a cabeça daquela mulherada ignorante. Foi
falar com ele. No sermão dominical, ele foi providencial:
- Senhoras. Com uma mulher na prefeitura, a vantagem é de vocês. Vocês já tiveram a Joana
Maria na presidência da Câmara, atualmente candidata à vice, na candidatura do Dr. Serapião.
Então? Dona Valdelice não é a primeira mulher na política de Maracutinga, não é mesmo? O
passado dela não interessa. O futuro é que deve ser levado em conta. Por outra, minha senhoras,
como disse Jesus Cristo aos agressores de Maria Madalena, eu lhe repito as palavras, com
referência à Dona Valdelice: - Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra. O padre foi mais
longe. Deu uma pedra a cada uma delas e determinou: - Não é necessário atirar essas pedras em
Dona Valdelice, não senhoras. É apenas um gesto simbólico. Estão vendo aquela bananeira? Pois
bem, aquela entre vocês que for pura, que nunca tenha tido um só pensamento obsceno, que atire a
primeira pedra. Nenhuma delas atirou. Todas, calmamente, depositaram as pedras no chão, ao que o
padre completou:
- Sabem por que vocês não atiraram as pedras na bananeira? Justamente porque ela está
carregada de bananas, e as bananas são bem parecidas com algo que os homens carregam entre as
pernas. E esse algo, é tudo o que interessa a vocês, não é verdade? Jamais alguém fere ou danifica
aquilo que gosta.
Uma das beatas falou:
- É, padre, não tendo outro jeito, a gente vota nessa puta mesmo. Política dá muito desgosto à
gente.
Outra concordou:
- É, comadre, dá mesmo.
- Se dá.
- Dá.
O padre, aproveitando a ocasião, falou:
- Vou transmitir a Paulo Ribas e à Dona Valdelice a decisão das senhoras.
A beata mais velha concordou:
- Seja do jeito que o senhor quiser, padre.
Então, o padre concluiu:
- Se ela ainda fosse uma mulher perdida, eu não faria isso de maneira nenhuma.
- Tá certo, padre, nós seguiremos os seus conselhos.
O sorriso do padre, pela primeira vez naquela conversa, lhe aflorou aos lábios.
- Conto com a ajuda das senhoras...
- E nós com a sua padre - responderam as beatas.
Joana Maria quando soube da decisão das mulheres de Maracutinga em apoiar a candidatura de
Valdelice, resmungou:
- A mulherada endoideceu... E resolveu falar com o padre: - Vou acabar com a vida dessa
vagabunda...
- Calma, Joana. Não fique irritada assim. Afinal, isso aqui ainda é a casa de Deus. Não aceito
blasfêmias em minha igreja.
- Não interessa de quem seja a casa, padre! É hoje que a porca torce o rabo. Prefiro ir para o
inferno a ver essa puta desmoralizar a política da nossa cidade.
- Nervosismo não adianta, Joana. E depois você têm coragem de jogar a sua reputação de mulher
séria por causa de uma prostituta?
- Tá bem, padre. Vou pensar nisso.
- Obrigado, minha filha. Eu e Deus sabemos que a senhora é uma santa mulher.
Nesse momento, Paulo Ribas ia passando pela porta da igreja, abraçado ao cangote de Valdelice.

102
Eram umas dez horas da manhã, a praça lotada de gente. A porta da igreja estava aberta, dela saindo
o padre, o coroinha, mais alguns fiéis e Joana Maria, até que chegaram perto do casal e das outras
pessoas que passavam na praça. Joana sacou o revólver da bolsa. O padre gritou:
- Aqui, não, sua jumenta!
Joana Maria guardou a arma e mordeu os lábios de raiva. Valdelice estava feliz, apesar do susto.
Era a derrota da oposição.
Joana Maria deu meia volta e sumiu avenida Brasil abaixo, xingando gritando e rogando pragas.
O padre, por sua vez saiu com suas sandálias jogando areia, em direção à Casa Paroquial; levando
na mente a certeza de mais uma vitória política. Na outra direção iam Paulo Ribas e Valdelice,
sorrindo, na certeza de mais uma vitória esmagadora.
O povo cumprimentava-os, solidários. Paulo falou à Val:
- Levei um susto danado, mas foi melhor assim. O caminho para a tua vitória está livre. Agora é
só se preparar para enfrentar o trabalho na prefeitura.
Ela estava também eufórica. O fiasco de Joana Maria, com sua palhaçada na praça, lavara a sua
alma; sem lutas nem violências, mas de maneira decisiva. Na cidade, todos comentavam o
acontecido.
- Tá acabada a carreira política de Joana Maria - falava um.
- Eu não separo serpente de cobra - dizia outro. As duas são farinha de mesmo saco.
- Conversa! - comentou o primeiro. - Aquilo foi tudo combinação do padre mais Dona Joana, o
prefeito e a quenga. No final, fica tudo junto.
- Carne e unha... Farinha do mesmo saco... E o Dr. Serapião?
- Sei, não! Acho que foi pra fazenda.
- Ele vai ser a única vítima dessa história. Afinal, quem mandou ele se amancebá mais a
jararaca?
- É compadre, cobra que não anda, não engole sapo.
- Mas também não leva pancada nos lombos.
Maracutinga, agora, tinha virado um teatro, um palco onde as fofoqueiras e os desocupados riam,
contavam piadas e filosofavam a respeito de traição, chifres, galhos e coisas assim. Entre uma
talagada de cachaça e outra, também nos bares, na zona rural e nos cabarés, se comentava o
acontecido: - Se a eleição fosse hoje, a quenga ganhava estourado. Paulo Ribas estava feliz. Depois
que se amigara com Valdelice, após ter abandonado Joana Maria; que registrara a sua candidatura à
prefeitura, sua fisionomia política era radiante. Agora queria ser deputado e até algo mais, porque
não? Sorria. Sorriso de quem está de bem com a vida, gozando a sua felicidade. Seu adversário
político, Dr. Serapião, estava indignado com a atitude de Joana Maria.
- Tu não tem juízo, Joana. Tinha que cutucar o leão com vara curta, mexer no vespeiro, pisar no
formigueiro?
- E daí? O feito está feito. Eu devia ter matado aquela quenga sem vergonha, o padre é que não
deixou.
- Você, bem melhor do que eu, sabe perfeitamente da reputação do Paulo. A maioria ainda é
dele, inclusive o padre.
- Reputação? Tira o "re", meu querido. "Putação", isso sim! Paulo é um putanheiro
desavergonhado! É isso que ele é. Logo mete o pé na bunda da quenga, como fez comigo...
- Larga de rancor, Joana, acaba com essa história de ficar remoendo o passado, que Paulo não
volta mais pra você. Tu tá ficando chata com esses papos.
- Tu que é um chato, Serapião. Quadrado demais pra meu gosto. Mais que isso, um jumento. Não
sabe nem organizar uma campanha política!

103
O TEMPO PASSA

A rua que levava à zona do baixo meretrício agora estava asfaltada. Sábado à tarde, Paulo
Ribas, acompanhado de alguns correligionários, fôra até lá, montado num carro oficial da
prefeitura. No jipe que vinha atrás, o jagunço Zé Cearense dava cobertura às autoridades,
vez ou outra roçando a mão no cabo do seu revólver ou na coronha da repetição. Severina estava
terminando de cozinhar uma feijoada bem gorda, bem sortida de carne-seca, o arroz entremeado
com folhas de couve e louro para obsequiar a comitiva.
- Prazer em recebê-lo, Paulo. A casa é pequena, mas fica grande quando chega gente importante.
- Foram as primeiras palavras de Severina ao receber os visitantes, aquele sorriso aberto de puta
experiente.
Paulo também foi gentil:
- Grande fico eu com sua gentileza. - E acrescentou, apresentando os outros: Aqui o deputado
Amílcar, de Itabuna. Ali o presidente regional do meu partido, Dr. Ambrosio e, o Zé Cearense, que
você já conhecem.
Todos a cumprimentaram, o jagunço também, que foi logo dizendo:
- Com sua licença, estou me abancando.
- A casa é sua.
Paulo Ribas falou:
- Estou aqui para tratar de política, Severina, como você deve saber. Estou certo de que você vai
me apoiar na candidatura de Valdelice para a prefeitura, não vai?
- Que pergunta, Paulo... E não houvera de sê desse modelo?
Paulo comentou:
- Se Valdelice ganhar, arrumo um bom serviço pra você, na prefeitura.
Severina colocou as mãos nas cadeiras, deu uma gostosa gargalhada e respondeu:
- Vote, Paulo, só se for no cafezinho, tu num sabe que eu num sei leitura?
- Sei!
- Apois entonces, cuma vô trabaiá lá?
- Não vai trabalhar, Severina. Não precisa. Vai somente receber o salário no final do mês.
- Oxente... E pode?
- O que é que eu não consigo em Maracutinga, Severina?
Na última casa da zona, a dona da boate, uma galega gorda, meio velha, chamada Lídia, a mais
antiga cafetina de Maracutinga, falou:
- Olha, Paulo, nem precisava me pedir para ajudar na campanha. Você sabe que a boate Estrela
D'Alva sempre foi um dos seus redutos aqui na Vila Caxambu e, sendo Valdelice candidata, como
não haveria de trabalhar pro senhor?
Depois, passando a mão pelos cabelos grisalhos, completou:
- É bem verdade que a minha situação não está lá essas coisas. Estou ficando velha, o joelho da
minha perna direita está cada vez mais inchado por causa do reumatismo...
- Tá certo, Lídia, passa na farmácia que vou te arrumar uns medicamentos.
- Mas, e dinheiro? Remédio tá custando os olhos da cara.
- Precisa, não! Eu anoto tudo na conta da prefeitura.
Sentindo cheiro de dinheiro, a cafetina retrucou:
- E tem mais, Paulo. O negócio de cabaré, com essa tal de AIDS, mais a desgraçada da inflação e
a falta de mulher bonita, está se tornando um negócio ruim.
- Eu sei que você está precisando de dinheiro. Não precisava nem falar.
Tirou o talão de cheques do bolso e preencheu uma folha num valor razoável. Lídia, olhando a

104
importância, comentou:
- Esse dinheiro vai me aliviar bastante. É assim que se faz política, Paulo! Agora só falta você
me conseguir um alvará para continuar tocando a casa nova, a Boate Tropical, que o delegado está
enchendo as paciências. Diz que se eu não conseguir o alvará, até terça-feira, vai fechar todos os
meus cabarés.
- Quem? - Perguntou Paulo Ribas, admirado.
- O sargento Raimundo.
- Raimundo?
- É, sim, ele mesmo.
- Não diga.
- Digo.
- Pois eu não sabia.
- Pois fique sabendo. O sargento tava nos xodó mais a Sueli ali - e apontou uma das mulheres.
Ela não quis mais ele, no que começou a perseguição com a gente.
Zé Cearense, sentado em seu canto, prontificou-se:
- Conte comigo se quisé fazê um "servicinho" no Raimundo. Eu tombem num gosto da cara
desse peste, não!
- Não precisa, Zé! - Adiantou-se Paulo Ribas. Eu falo com ele e resolvo a questão. Quanto aos
alvarás, Lídia, pode passar segunda-feira à tarde na prefeitura e pegar.
Estirada num sofá, no fundo da sala, estava Sueli, dentes muito alvos, lábios sorridentes, quadris
largos e olhos brilhantes. Paulo chamou-a:
- Então tu dispensou os chamegos do Raimundo?
- É... Ele só qué trepá, pagá, nada... - depois, perguntou:
- E tu, Paulinho, desapareceu...
- Tenho gasto as alpercatas atrás de verbas em Salvador para a prefeitura, por isso não tenho
vindo aqui.
- Oxente! E eu que pensei que fosse por causa da Val, que agora é mulé importante.
Lídia deu uma tossidinha. Paulo desviou o rumo da conversa:
- Tu tá bonita, Sueli. O que aconteceu? São os banhos de mar?
- Acha?... Nada!
- Conta o mistério, mulher. Conta! São os ares de Maracutinga?
Risos.
- Tu te alembra daquele remédio que me deu no ano passado?
- Qual?
- Um que tinha o retrato de uma mulé feia de um lado, e noutro, uma donzela bonita e dengosa.
Gora lembra?
- Ah, sei. "Fortificante Forte Fica"!
- Esse mesmo, Paulinho, esse mesmo. Entonces vistes cuma se realizou o milagre? Tô assim
mais rechonchuda que a Sônia Braga das novelas, num tô?
Mais risos.
- É. Isso é verdade, mas se continuar engordando, vai ter que fazer um regime.
- Rejume? Tá me chamando de gorda, seu danado? Quenga tombem tem direito a umas
gordurinhas, num tem? Até o Roberto Carlos fez uma música pras gordas e outra pras baixinhas,
num fez? Quer que eu bote o disco na radiola pra mode tu escutá?
- É, Sueli. É deveras. Eu conheço as músicas do Roberto Carlos e, como ele, concordo que toda
mulher tem direito à celulite.
- Vote, homem! Vira essa boca pra lá, cruz credo, que nunca mais vô escutá as músicas dele...

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Eu, heim...
Paulo sorriu, deu um abraço em Sueli e outro na dona do bordel, despedindo-se:
- Desculpem, que a demora é pouca. Temos uma feijoada pra devorar na casa da Severina, e já
estamos atrasados.
Quando saíram, Sueli observou:
- Mas credo, Lídia, tu tinha que inventá uma briga minha mais o Raimundo, que é o meu xodó?
- Foi só pra tomar uns trocos do Paulo Ribas, bobinha...
- Tu vai trabaiá pra ele na política, votá pra mulé dele?
- Sou quenga, mas não sou boba, Sueli. Dele eu só quero o dinheiro, votar, voto mesmo é no Dr.
Serapião que é um homem competente.
- Ié?
- É. E tem mais: puta não vota em puta...
Na boate da Severina, tomaram várias cervejas enquanto devoravam a feijoada. Na saída, Paulo
distribuiu gorjeta entre a cozinheira e os garçons. O deputado deu parabéns pela caridade, depois
disse:
- Gostei do pessoal, Paulo. Principalmente daquela cabocla Sueli, da Boate Estrela D'Alva.
- Que é isso, Amílcar, perdendo a compostura?
- Nem lhe digo.
- O que?
- Fiquei gostando dela. Você não se incomodaria se eu...
- A minha norma, deputado, é ser amigo dos amigos. Se te apetece, coma, que eu já tenho
comida de sobra. O ruim disso, é que tu vai arrumar uma encrenca danada com o sargento
Raimundo. Aquela história da Lídia é tudo cascata, um jeitinho que ela inventou pra conseguir os
alvarás. O Raimundo, como vocês sabem, não tem nada a ver com isso, não é verdade?
- É. - Concordou o deputado. Eu não atinava pra essas coisas. Não estava vendo os fatos por esse
ângulo, Paulo. Você, realmente, é esperto, entende tudo de política. Um dia, chega a governador.
- Não exagere, Amílcar, menos, menos...

AS ELEIÇÕES EM MARACUTINGA

O mundo de Maracutinga, como de restante todas as localidades do sul da Bahia, era um


universo à parte do burburinho das cidades costeiras nordestinas. Situada nas imediações de
Nova Viçosa, Alcobaça, Canavieiras e Itamaraju, era um pulo de barco até o Arquipélago
de Abrolhos; onde o mar rico em peixes de inúmeras espécies, está rodeado por uma infinidade de
coqueiros. Um paraíso. Cada habitante, natural da região ou imigrante, agarrava seu pedaço de terra
para plantar e colher. Os divertimentos iam entre os arrecifes de coral, as caçadas nas estreitas
picadas da floresta, a devoção da Santa Missa aos domingos e os comícios políticos, quando não
tinham colheita à fazer. Às vezes, um forrózinho, uma escapadela na zona ou uma quermesse
paroquial com os dobrados da Banda Musical no coreto da igreja, que toda a cidade ouvia
embevecida. Ao final de cada apresentação, Paulo Ribas não resistia:
- Não é por nada, sargento Raimundo, mas não está na hora da gente dar uma olhada na zona pra
ver se está tudo bem por lá?
- O diabo é o tempo, Paulo. Vai cair um aguaceiro danado e o jipe da delegacia está sem capota.
- Segunda-feira você providencia uma. Por hoje, vamos com a viatura da prefeitura.
O padre ouvindo a conversa, satirizou:
- Maracutinga está ficando "prafrentex", até o prefeito dá batida na zona!...
Paulo, gostando da brincadeira, resolveu debochar:

106
- Como posso levar em consideração conversa de homem que veste saia, sargento?
Risos.
Paulo Ribas chamou:
- Bota umas calças, homem, e vem com a gente...
- Por que eu haveria de fazer isso? Sou um homem de bem.
- Homem de bem também transa. E, é melhor transar com puta que fazer filhos nas mulheres
largadas e viúvas.
Houve um silêncio, depois o padre respondeu:
- Meu filho, aqui em Maracutinga a nossa Santa Madre Igreja está servida pelo padre mais santo
do mundo... (Blasfêmias!)
- Conversa, padre! A blasfêmia só seria possível se a viúva do finado Valdomiro não estivesse
grávida, - respondeu Paulo Ribas. E quem é o pai? Quem?
- Certamente o Valdomiro - desculpou-se o padre.
Paulo soltou uma gargalhada:
- Defunto não faz filhos, padre! Faz um ano que ele morreu!
- Intrigas da oposição...
O delegado entrou na conversa:
- Vai ou não vai padre?
Como em Maracutinga até as paredes têm ouvidos, meia hora depois o mexerico corria de boca
em boca:
- Virxe, comadre, o padre foi mais o delegado e o prefeito na zona. Eu, heim?
Maria Rosa, a viúva a quem o prefeito havia se referido, sabendo da conversa, resmungou:
- Uma cadelas, essas quengas, não respeitam nem os padres.
- Que nada, afirmou outra beata: - Os homens de Maracutinga é que estão ficando doidos.
Conversa indo, fofoca vindo, até em Maracutinga o tempo passa. Algum tempo depois o padre
batizava o filho de Maria Rosa. O primeiro a nascer depois da sua viuvez. O delegado e uma
solteirona, funcionária do banco, foram escolhidos para padrinhos. Tipo simpático, o sargento
Raimundo. Só Valdelice conhecia o seu segredo. Uma vez, sentindo uma saudadezinha
machucando-lhe o peito, perguntou-lhe:
- Onde será que anda o Zé Clemente, Raimundo?
- Sei não, Dona Val! Com certeza, se estiver vivo, voltou pra capital paulista. São Paulo é uma
cidade muito grande, difícil de reconhecer uma pessoa naquela multidão...
- Oh, Sargento...
- Que foi, Dona Val?
- Nada, não, é saudade de Zé! Não tem dinheiro que pague a falta que ele me faz.
- Esquece ele Dona Val, enterre a imagem boa que a senhora tinha dele, pense só nas coisas ruins
que ele praticou e procure viver uma vida feliz com o Paulo, que te ama.
Sempre disposto a dar um conselho, a servir; magro e maneiroso, o delegado Raimundo a todos
agradava. Valdelice voltou a perguntar:
- E a tua situação no Sergipe, Raimundo? Será que a justiça de lá também está te procurando por
causa do cabra que você matou?
Raimundo deu uma gostosa gargalhada de satisfação, depois falou:
- Tá não, Dona Val. Eu ainda não lhe contei?
- Não!
- Pois é, tendo escapado do flagrante, fui julgado à revelia e absolvido por unanimidade. Sete a
zero, que foi em legítima defesa. A certidão do cartório do crime, tá aqui comigo, quer dar uma
olhada?

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Raimundo vivia feliz em Maracutinga. Agora xodó da Sueli, mandava constantemente os
soldados darem uma geral tanto na boate em que ela trabalhava, quanto nas outras, toda vez que
sabia de alguma irregularidade. Muito enérgico na profissão, às vezes ia ele próprio dar essa geral,
muitas vezes acompanhado do prefeito Paulo Ribas, seu amigo incondicional. Diziam que gostava
muito de mulher, mas com uma filosofia muito sua: - Com mulher casada não se brinca, pras
solteiras estou muito velho mode me juntá mais as suas virgindades, nos casamentos.
O padre, uma vez lhe perguntou:
- E Sueli?
- Sueli? Puta é puta, seu padre! É uma flor espinhenta! Precisa de ser cheirada com cuidado,
senão arranha o nariz do cabra!
Mas nem tudo em Maracutinga eram mulheres, turismo, pescaria, matas e a beleza do mar. Por
vezes, também aconteciam brigas, geralmente movidas pelas bocas das senhoras puritanas e de seus
maridos moralistas. Usando a sua autoridade, a sua competência e a sua simpatia, o sargento logo
pacificava os desafetos. Nessas ocasiões ele colocava a farda de passeio, para parecer mais
amistoso, assim como o fazia quando havia reunião ou palestras na Casa Paroquial, onde,
invariavelmente, ele era convidado a proferir conselhos, orientando o povo para uma vida melhor,
uma convivência sem intrigas.
Naquela manhã de domingo, Raimundo vestiu a farda nova. Já tinha mais de quarenta anos, mas,
em seu uniforme de gala mais parecia um soldadinho: a farda, entretanto, o deixava mais austero.
Ele necessitava de toda a autoridade que pudesse obter, pois as suas palestras eram - geralmente -
muito cômicas. Naquelas reuniões, ele fazia grande esforço para falar e agir como se o punhado de
pessoas no salão realmente estivesse disposto a ouvi-lo. Tornou a voz deliberadamente mais grave
quando começou a falar.
- Povo de Maracutinga...
No meio da palestra, engasgou. Então, correndo em sua ajuda, Paulo Ribas levantou-se e tomou-
lhe o microfone das mãos, falando:
- O que o sargento Raimundo quer é propor um movimento cristão que, formado pelos dignos
representantes de nossa comunidade...
Enquanto Paulo falava, com a mão esquerda no ombro do sargento Raimundo, a situação
modificou-se. Ali estava o maior orador do sul baiano, novamente falando para centenas de
municipalinos acerca da nova política de segurança pública que o delegado queria implantar em
Maracutinga: colocar soldados em patrulhamento pelas ruas, restaurar os semáforos dos
cruzamentos das principais ruas e avenidas e modernizar as viaturas da delegacia. Tudo isso, porém,
necessitava de dinheiro e, no momento, os cofres da prefeitura estavam vazios. Paulo, propôs,
então, um aumento de cem por cento nos impostos municipais e deu uma pausa. O padre acenou
com a cabeça, como se ele também considerasse relevante o aumento dos impostos. Os ouvintes
começaram a discutir se queriam ou não, o aumento dos impostos. Paulo, percebendo que a maioria
dos vereadores estavam presentes no recinto, convidou-os a subirem ao palco e explicou-lhes o
problema. O presidente interino da Câmara, então, convocou ali mesmo uma reunião extraordinária,
nomeou um secretário, colocou a questão em votação, após pedir que o secretário a lavrasse em ata.
No final, a questão de aumento dos impostos saiu vitoriosa por unanimidade. Paulo Ribas ganhara
mais uma batalha. A maioria dos contribuintes presentes, estava indignada e, dessa vez, não
bateram palmas. Paulo, entretanto, estava animado enquanto abraçava o sargento Raimundo. Este,
olhando-o fixamente nos olhos, percebeu que seu animado tom de voz era falso; jamais ia ter as
almejadas viaturas novas para policiar a cidade; os semáforos iam continuar defeituosos e o
dinheiro arrecadado com os aumentos dos impostos, apenas ia servir para os desmedidos gastos do
prefeito. Raimundo tentou acender um cigarro, mas a mão que segurava o isqueiro tremia. Paulo

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Ribas olhou-o mais de perto e viu lágrimas nos olhos de Raimundo. - Pobre coitado, pensou Paulo
Ribas: Nunca vai entender de política, por isso, nunca passará de um reles sargento.
Animada, aquela campanha eleitoral. Valdelice candidata à prefeita, Paulo se preparava para
novas batalhas políticas. Maracutinga tivera dias de violência, cheirando a defunto, mas foram
episódios raros, sempre provocados por Joana Maria. Raimundo e seus praças dominavam a
situação e tudo voltava ao normal. Terminando mais um dos seus discursos, Paulo desceu as
escadas do palanque, com alegria. As palmas do eleitorado foram afetuosas e, como sempre,
estavam dentro dos seus propósitos. Valdelice também estava se saindo muito bem na campanha e
Paulo tinha a convicção de que a eleição ia ser fácil. Entretanto, a procedência de Valdelice era
usada de forma estrondosa pela oposição, principalmente por Joana Maria, que disputava a vice-
prefeitura, juntamente com o Dr. Serapião, candidato a prefeito. O eleitorado masculino tinha uma
certa preferência por Valdelice, visto ser mulher; os pescadores, os lavradores e as quengas
moradoras da Vila Caxambu, estavam indecisos. Por seu turno, as donas-de-casa e as "lavadeiras"
municipalinas - o maior colégio eleitoral da cidade - tinham aderido à oposição. Paulo precisava
tomar alguma providência. Uma idéia de Valdelice, era fantástica: construir uma creche com jardim
de infância, parque infantil e tudo mais, onde as mães pudessem passar a tarde com seus filhos
pequenos, conversar com as amigas e se divertirem. Seria um golpe mortal nos adversários. Nunca
Maracutinga tivera uma creche ou qualquer outra coisa parecida. Elas só existiam nas grandes
cidades da região. Paulo resolveu: mandaria construir dois enormes salões e jardins, onde as
crianças pudessem brincar e estudar. As mães poderiam aprender artes plásticas e outras artes. Seria
um golpe de mestre. Foi a Salvador, fez um empréstimo bancário pagável em vinte anos, recebeu a
verba e dali a noventa dias a construção estava acabada. Valdelice, muito eufórica, observando a
imponência da obra, comentou:
- Onde a prefeitura vai arrumar dinheiro pra pagar tamanho desperdício, Paulo? Uma pequena
creche tá certo, não precisava construir um "elefante branco"...
- Em política, você ainda tem muito que aprender, Val. Caso você seja eleita, nos quatro anos da
sua gestão a gente "empurra com a barriga". Depois, os outros prefeitos que se f... Nessa altura, eu
serei deputado, estaremos morando em Salvador, bem longe dessa porcaria de cidade.
Na inauguração da creche, para completar a sua obra, Paulo fez questão que pintassem uma placa
no portão de entrada. Uma placa enorme, com o nome da mãe do Dr. Serapião, que havia sido a
primeira diretora do Colégio Estadual de Maracutinga. Aposentada, estava morando na capital.
Paulo mandou um carro oficial da prefeitura buscá-la. Muita festa, rojões pipocando no ar, comida e
bebida farta no dia da inauguração. A população compareceu em peso. Dona Marinez, a
homenageada, estava orgulhosa da sua reputação. Tinha um sorriso só e dizia não saber como
agradecer tamanha consideração. Seu filho, o Dr. Serapião, também compareceu à festa, porém,
sem a companhia de Joana Maria, que se refugiou na fazenda. Durante as solenidades, enquanto sua
mãe discursava, quis dizer umas palavras, mas a mãe ordenou que se calasse. Quando chegou a vez
de Valdelice proferir seu discurso, falou:
- Minhas amigas. Estou mais do que contente com esta inauguração, pois sei o quanto esta
creche representa para o desenvolvimento intelectual de vossos filhos. Não é uma obra política, não
senhoras. É uma obra voltada para os interesses da coletividade, tanto é verdade que a Dona
Marinez, mãe do candidato da oposição à prefeitura de Maracutinga, é a homenageada.
De cabeça baixa, Serapião foi obrigado a ouvir um desaforo de sua mãe:
- Eu sempre falei que você era um jumento. Onde já se viu querer disputar eleição com um santo
homem, como Paulo Ribas? Vá cuidar dos seus pacientes...
Todos os olhares se voltaram para o monólogo de Dona Marinez. Valdelice, aproveitando a
ocasião, fez uma longa pausa. Paulo, sorrateiramente, tomou-lhe o microfone e continuou o jogo

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político que tão bem sabia fazer:
- Eu também quero comunicar outro progresso que a Valdelice conseguiu para o
engrandecimento de nossa cidade, da religiosidade de nosso povo e da educação de nossas crianças.
Com o prestígio que tem junto ao padre Bernardo e o arcebispo da capital, a futura prefeita
conseguiu quatro freiras para ministrarem ensinamentos religiosos na creche para os nossos jovens.
- Quando chegam? - Perguntou, empolgada, uma das mulheres.
- Chegar? - Empolgou-se Paulo Ribas. Já chegaram... - E mandou as quatro carmelitas entrarem.
Foi um deus-nos-acuda, a salva de palmas. No meio da ovação, a candidata interrompeu:
- E tem mais. Amanhã vamos inaugurar, juntamente com o Secretário das Comunicações do
Estado, a primeira linha telefônica de Maracutinga. Será implantada na prefeitura para atender a
todos os interessados em...
Não conseguiu terminar. Suas palavras foram sufocadas pelos aplausos dos presentes. Paulo
ainda conseguiu terminar:
- Só mais um dedinho de prosa, minha gente. Quem morar na periferia, não precisa trazer seus
filhos a pé para a creche, não. A prefeitura comprou quatro viaturas para o transporte da criançada.
Mais aplausos.
- E o transporte será gratuito - completou Valdelice.
O povo só faltava beijar os pés de Paulo Ribas. Então ele convidou:
- Meu partido está fazendo uma festa de surpresa. Vamos todos pra lá minha gente. Vai ter
comida e bebida com fartura. Tudo gratuito...
A ultima notícia só não agradou ao padre Bernardo, que comentou baixinho com o sacristão:
- Esse filho da puta bem que podia ter deixado eu fazer a festa no salão paroquial e ganhar uns
trocados...
Era demais para Maracutinga. A cidade estava progredindo: freiras, creche, telefone... Nos dias
que se seguiram, a eleição de Valdelice para a prefeitura, era o que mais se comentava na cidade.
Serapião, na opinião dos freqüentadores do Bar Continental, estava irremediavelmente derrotado. A
eleição estava próxima, daí uma semana seria o pleito. Valdelice estava muito excitada. Paulo
distribuía santinhos e chapas. Os cabos eleitorais, percorrendo casa por casa, angariando eleitores,
comprando votos com material escolar e cestas básicas, exigiam a fidelidade partidária. O palanque
para o encerramento da campanha de Valdelice, estava armado e enfeitado de flores na Avenida
Brasil. Em frente ao banco. Cartazes e fotografias pregados nas árvores, muros e paredes. A
candidata, tomando as últimas providências, ia na zona conversar com as quengas e as orientava:
- Esses chaveiros são para vocês distribuírem pra freguesia. Eles também vão gostar de ver
minha fotografia nesses santinhos...
Valdelice também percorria as casas da periferia, beijava os rostos sujos dos filhos dos
pescadores e dava auxílio aos sem-terra, entregando medicamentos, alimentos e... promessas. Paulo
mandara vários caminhões às fazendas e sítios para transportar os eleitores no dia das eleições. O
Dr. Serapião também havia mandado a sua frota, pois tinha conseguido muitas adesões de cabos
eleitorais em troca de dinheiro, cestas básicas e promessas de cirurgias gratuitas e casa própria para
quem quisesse morar na cidade. Uma velha muito magra, desdentada, cachimbo de barro à boca,
comenta com um cabo eleitoral, ao receber a sua cesta básica:
- O dotô Serapião é muito bão, feiz quatro operação numa só no meu finado marido, quando ele
ainda tava vivo, e não cobrou nada.
- Foi por isso que ele morreu? - Satirizou o cabo.
- Foi, não! Ele faliceu uma sumana despois quando já tava bom. Morreu com uma saúde danada.
Precisava vê a felicidade dele no caixão.
O povo parecia ter dado uma pequena guinada em favor de Serapião. Joana Maria, de crista

110
erguida, jurava que até as putas da zona estavam angariando votos para a oposição. Seu José do
Correio, vice de Valdelice, jurava o contrário. O padre, fingindo-se neutro, abençoava a todos e
discretamente entregava cédulas eleitorais de Valdelice. Para os indecisos, também entregava
cédulas de dinheiro.
Intrigas e mexericos circulando:
- Padre, Joana Maria é uma peste. Está falando que o senhor tem um xodó na zona. Diz que vai
trazê ela aqui na praça da igreja, na hora da votação e sujar a água.
- Fique tranqüilo, meu filho. Você já viu puta atrapalhar outra puta?
Joana Maria ia e vinha pelas ruas, distribuindo sorrisos com aquele ar de deboche. Do banco
traseiro de um automóvel conversível, Valdelice abanava as mãos e atirava caramelos à molecada
da rua, com aquele ar de festa. Eleitores se aglomerando para a votação. Altas apostas e anúncios de
vitória. Palavrões, xingamentos e insultos. Cerveja e cachaçada no Bar Continental. Zé Cearense
apostou na vitória de Valdelice, com o Paulo Pernambuco, que apostou em Serapião.
Boatos correndo, lavadeiras fuxicando:
- É deveras que quando a quenga for prefeita, vai levá a prefeitura pra zona?
- Sei, não! Se ela levá a prefeitura, o padre leva a igreja tombem.
E riam, a não mais se caber.
- Oxente! Entonces a gente vai tê que rezá lá? É ruim...
- Desconjuro...
16 de Novembro. Abertas as primeiras urnas, Serapião começou a sentir o peso da derrota. Se
perdesse, estava arruinado. O dinheiro que tinha gasto, denunciava o nervosismo. Tinha comprado
voto de tudo que é lado. Entretanto, o rádio falava que Valdelice estava na dianteira. Na manhã do
dia 17, Maracutinga estava irrequieta. No escritório político de Paulo Ribas, o clima também era de
apreensão. Os foguetes diminuíam à medida que o rádio fornecia os últimos boletins informativos.
A banda tentou iniciar um dobrado, mas Paulo mandou parar. Muitos eleitores se aglomeravam em
frente do escritório para saber o resultado. Em sua fazenda, onde tinha se refugiado após a votação,
Serapião desligou o rádio e a televisão. Não queria saber de tristezas. Preferia os amassos de Joana
Maria. Ela, fingindo tranqüilidade, fechou os olhos, pensando: - Nós não vamos perder! Serapião
não ouviu seus pensamentos, mas achou estranho ser beijado tão ternamente pela boca de Joana
Maria.-Perdendo ou ganhando - pensou o médico, ainda tenho o carinho, o afeto e o corpo de Joana
Maria. Com um puxão, ela abriu a blusa e retirou o sutiã, mirando o seio esquerdo para a boca do
médico. Ele sentiu que Joana Maria queria fazer sexo, mas naquela situação angustiante, não
conseguia uma ereção satisfatória. Foi salvo pelo gongo, ao ouvir a buzina estridente de um
automóvel que se aproximava. Vestiu-se rapidamente enquanto Joana Maria se recompunha e, abria
a porta. O médico conhecia muito bem o homem que dirigia o carro. Jonas. Era o seu cabo eleitoral.
- Liga o rádio, homem de Deus, e escuta as notícias.
- O que foi?
- Que foi? Ainda pergunta?
- O quê?
- As últimas urnas, doutor, principalmente as urnas colocadas na zona, deram a vitória ao senhor.
Foi por uma pequena diferença, oito votos, mas o senhor está eleito.
Joana Maria quase desmaiou de alegria. Momento solene para ela. Para Serapião, entretanto, a
notícia não o deixou tão excitado como seria de se esperar. Sabia que tinha derrotado Valdelice,
mas não tinha derrotado Paulo Ribas. Oito votos? Com certeza Paulo iria recorrer, pleitear novas
eleições. Foi com esses pensamentos na cabeça que Serapião entrou na cidade, seguindo em direção
ao seu comitê eleitoral. Para encurtar caminho, passou em frente ao Bar Continental. Desceu do
carro para os abraços. De repente, ouve-se um grito no interior do bar, seguido do vulto de Zé

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Cearense que apontou na porta:
- O que você quer aqui, médico filho da puta?
Aquela pergunta malcriada bateu em cheio no rosto do Dr. Serapião. Fitou o interlocutor. O
pistoleiro de aluguel vinha ao seu encontro.
- O senhor está falando comigo?
- Estou! - Rápido o pistoleiro sacou a arma.
O médico deu meia volta e correu para o carro. Todos correram. Mulheres gritaram. O pistoleiro
avançou contra o médico e deu um tiro, depois outro e mais outro. Uma das balas acertou em cheio
a cabeça do médico. Depois, como que alucinado, Zé Cearense retalhou sua vítima à facadas. O
sargento Raimundo veio correndo e deu voz de prisão ao bandido. Os tiros alvoroçaram
Maracutinga: Paulo Ribas mandou matar o Dr. Serapião. Foi a primeira notícia que chegou na
igreja.
- Não acredito! - Disse o padre. - Paulo é incapaz de uma loucura dessas!
- Pois é! - Continuou o informante. - O doutor ia passando e parou no Bar Continental para
cumprimentar seus eleitores e foi baleado à traição. Uma das balas ainda acertou a perna de Dona
Joana Maria, que tava no carro mais ele.
No comitê de Valdelice todos estavam alarmados. Paulo tentava desculpar-se:
- Eu não mandei matar ninguém, que não sou homem dessas coisas.
Depois do primeiro interrogatório, o delegado deu uma entrevista na Rádio Difusora, a única
emissora local, explicando: - Zé Cearense atirou no Dr. Serapião por causa de uma aposta que
perdeu para o Paulo Pernambuco. Está tudo registrado lá no Bar Continental: duas caixas de
cerveja. Valdelice, perguntou, olhando para Paulo Ribas:
- Só por isso? Quer dizer que se eu tivesse ganho as eleições, é quem estaria morta nesse
momento? Quem vai assumir a prefeitura agora?
- Joana Maria, é claro, ela não era a candidata a vice?
- Não pode! Conforme determina a Lei Eleitoral, o presidente da Câmara é que deve assumir o
cargo nessas circunstâncias e convocar novas eleições.
- Que nada, Val! O Sarney não assumiu a presidência da República, quando mataram, quer dizer,
assassinaram, ou melhor, morreu o candidato titular, Tancredo Neves?
- Isso, meu amor, foi no tempo do golpe militar, numa época sem lei, onde os mandões matavam,
escondiam o cadáver e ainda se reelegiam, à custa de eleitores analfabetos.
- Analfabetos?
- Sim! Analfabetos políticos, como o pessoal do Amapá, que elegeu o Sarney para Senador da
República.
- É um direito dele, não é?
- Não! Mentiroso não tem direito! Se tivesse, teria se candidatado pelo Estado do Maranhão,
onde o pessoal está de saco cheio dos seus cambalachos. Porque não se candidatou por São Paulo,
Rio Grande do Sul ou Paraná, estados politizados? Porque nem pela convenção passava!
- É, meu marido, Zé Cearense tá fazendo falta no Maranhão.
Val estava exaltadíssima, abria as mãos, um ar de estranho nos olhos, o rosto contraído. Tinha
ódio em suas palavras quando voltou a falar:
- Uma merda, Paulo! Uma bosta a política deste país! O que adianta eu ter saído da zona,
deixado de ser puta, estudado, virado mulher decente e continuar sendo mandada pelo Sarney? O
que adianta, Paulo? É muito melhor ser puta, sem compromisso com a sociedade e sem deveres de
cidadã...
- Calma, mulher!
- Calma? Eu perco a eleição em Maracutinga, e o Sarney se elege no Amapá... Calma uma bosta!

112
- Calma que tudo se arruma!
- Arruma uma porra! O que adianta fazer política séria numa cidade dessas, de povo ignorante? E
eu, então, batalhando a vida inteira para ser honesta, sair da pobreza, da miséria e da prostituição? O
que valeu ter te encontrado, arruinado a tua vida com Joana Maria? O que valeu isso? Nada! É
melhor ser puta, meretriz que não tem compromisso com ninguém, do que ficar iludindo o povo de
Maracutinga e os eleitores do Amapá.
E apontava a zona com as mãos espalmadas:
- Às vezes as freiras da creche me perguntavam por que eu fui puta. Ora, por que... Que haveria
de ser uma pobre sertaneja abandonada pelo mundo, senão ser quenga e eleitora do Sarney, do
Collor de Mello e do FHC?
- Você está exagerando, mulher!
- Exagerando uma merda. Hoje sou uma burguesa que vai às reuniões sociais e à missa
dominical, como toda mulher de família! Entretanto, não tenho nenhum divertimento, cinema,
praia, passeio de barco... Uma porcaria de vida, só política, comícios, promessas falsas... Nem pica
você me dá...
- O que isso, mulher! Olhe a compostura!
- Compostura? Que respeito posso dar a um homem que brochou, com a sua política suja? Ah,
que saudades da zona. Saudade dos machos que me procuravam e me fodiam com vontade...
O tapa atingiu em cheio o rosto de Valdelice.
- Safado!
Paulo, passando-lhe a mão nos cabelos, pediu:
- Desculpa, Val?...
- Vá bater na Joana Maria que te traiu, corno...
O sargento Raimundo se aproximou:
- Paulo, coloquei dois soldados perto da casa do Zé Cearense, dois no velório e uma patrulha
rondando a tua casa. O povo está revoltado, e quero evitar derramamento de sangue. O padre estava
amarelo. Passava a mão pela testa. O suor corria, molhando a batina, quando disse:
- Um crime horrível. Zé Cearense tem mais de cem crimes nas costas e nunca foi preso.
- Eu conheço muito bem ele, padre. - falou Paulo. Antes de vir para Maracutinga, trabalhava na
fazenda de um tal coronel Figueiredo, lá pras bandas do Gandu. Figueiredo era um homem ruim,
tomou muita terra, mandava matar por qualquer motivo. Zé aprendeu com ele e foi o seu jagunço de
confiança por muitos anos.
- E você, Paulo? Mandou ele matar quantos? - Quem interrompia a conversa era Valdelice.
A pergunta repentina, sem ter nada a ver com o que se estava falando, colheu Paulo de surpresa.
Certamente não tinha sido proposital, pois Valdelice estava histérica, completamente fora de si.
- Pare de dizer bobagem, Val, que eu nunca matei ninguém.
- E a Joana Maria que te largou e agora vai assumir a prefeitura? Não vai mandar matar essa
piranha?
Paulo estava uma pilha de nervos, quando falou:
- Que é isso, mulher? Onde já se viu um atrevimento desses? Se o padre não estivesse aqui...
- Fazia o que, seu brocha? Mandava me matar também?
Houve um silêncio. Valdelice resmungando, Paulo ficou calado, os ânimos terrivelmente
exaltados. O padre intrometeu-se:
- Você não sabe nada da vida, Valdelice. Devia respeitar mais teu marido, que te tirou da
perdição, que te deu respeito e carinho.
- E o senhor tem alguma coisa contra que eu tenha sido puta? Puta também é gente.
- Eu sei, filha. Elas também são filhas de Deus!

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- Tu sabe nada, padre. Isso de vestir saia é negócio de fresco.
O sargento interrompeu, acalmando os ânimos:
- Val, dá um tempo e deixa eu conversar com o Paulo e o padre, que o negócio é sério.
Com a saída de Valdelice, Paulo reiniciou a conversa:
- Eu nunca tive nada contra o finado. Era um adversário político moderado. Como médico, era
competentíssimo, atendia a qualquer hora do dia e da noite, sem reclamar. Como homem, era um
verdadeiro cavalheiro, apesar do seu envolvimento com Joana Maria.
- É. Ele gostava muito de Maracutinga, - falou o padre.
- Pois é! - Continuou Paulo. - Lembro quando Dona Marinez mandou ele estudar em Salvador.
Formado, voltou para cá, foi curando doentes, freqüentando a minha farmácia... Era um boa pessoa.
Só não sei por que se meteu em política que não era a sua especialidade. Estava rico, tinha um bela
fazenda...
Valdelice tossiu:
- Tinha a tua mulher também!
O padre, fingindo não ter ouvido o comentário maldoso, se intrometeu na conversa:
- Gastou muito na campanha. Ganhou, mas morreu sem poder sentar a bunda na prefeitura.
- Não foi só na campanha que ele gastou dinheiro, não, padre - voltou a comentar, Valdelice.
Todo mundo sabe que dava muito dinheiro à Joana Maria, que há muitos anos era sua amante. Só o
chifrudo do Paulo é que fingia não saber.
Ao cumprir seu mandato como prefeita, Joana Maria também retirou o luto que mantinha pela
morte do Dr. Serapião. Por isso, naquela missa de domingo, o padre ao vê-la de batom nos lábios
dirigiu-lhe um sorriso cordial; sua atenta amabilidade e seu interesse pela formosura das viúvas que
se despojavam do luto. No pátio, em torno da igreja, sobravam mexeriqueiras, moças solteiras,
mulheres casadas ou amigadas, pois para se exercer tal ofício em Maracutinga não se exige
documento civil. Dona Carlota, a dentuça, esposa do vice-prefeito, era a primeira dessas xeretas:
- É uma falta de respeito, o senhor não acha? Podiam arranjar outro lugar para obscenidades, não
na igreja... - ligeira pausa: o senhor não acha sargento Raimundo?
- O quê, Dona Carlota?
- Que namoro de padre com viúva é o maior dos pecados?
Raimundo não achava nada e nem queria saber dos mexericos de Maracutinga. Queria apenas
um pouco de paz junto à sua amada Sueli, que a exemplo de Paulo Ribas, também tirara da zona.
Não dando sossego ao casal, Dona Carlota insistia em soltar a matraca:
- Estou falando do xodó do padre Bernardo com Joana Maria, a descarada que largou Paulo
Ribas, amigou com o finado Serapião e agora é viúva. O que acha do chamego dela com o padre,
sargento Raimundo? E você, Sueli, meu bem, o que acha?
- Não acho nada, sinhá faladeira, não acho nada, - respondeu Raimundo já meio irritado.
Sueli, contrariando a opinião do marido, deu parecer:
- Dona Joana Maria, assim tão bonitona, tão precisada de macho, é uma injustiça continuar na
viuvez. É ainda bem novona, com uma bunda bem arrebitada...
- Não pode!
- Pra que a senhora acha que ela tem xoxota? Só pra fazer xixi?
- Mas, e o padre? Padre não pode cobiçar mulher, pode?
- Pode! – respondeu Raimundo, logo seguido da pergunta de Sueli:
- A senhora acha que eles têm que passar a vida toda na punheta?
- Vão acabar mal, ora se vão... E você também, sua desbocada.
Raimundo estava irritado com aquela conversa:
- Não ofusque a vida dos outros com a baba das suas calúnias.

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Mas Dona Carlota não perdia Joana Maria e o padre de vista: a par dos melhores detalhes da vida
na Casa Paroquial. Dizia: - Mulher que experimenta uma pica, sem mil não fica... Ninguém
acreditava nos mexericos da fofoqueira, porém, quando o escândalo explodiu, quase um ano depois
(Joana Maria com seu ar senhoril e a barriga prenhe de seis meses, sendo exposta à opinião
pública), foi um prato cheio para as lavadeiras da cidade A dentuça vingou-se do sargento
Raimundo:
- Viu seu tonto? A mim, ninguém engana... Baba de calúnia não faz filho em viúva. O que faz
menino é descaração... Esperma de padre, o senhor não acha sargento Raimundo?
O sargento aproveitou para provocar a fofoqueira:
- Eu acho que o padre também está de olho na senhora.
- Em mim? Tu és doido? - Dona Carlota sentia-se queimar de raiva: - eu não sou nenhuma
quenga...
Sueli procurava acalmá-la, por sua violenta reação, mas acabou provocando-a ainda mais.
- A senhora ainda é uma mulher bonita, por que o padre não haveria de desejá-la e tentar comer a
tua bundinha também?
- Só uma quenga igual a você, Sueli, poderia falar tamanha safadeza. Você que é puta, por que
não vai se deitar mais ele?
- Oh, minha santa! - Falou a esposa do sargento. - Sinto-me honrada com a tua lembrança, porém
sou uma mulher casada que ama o marido. Minha xoxota não pode ser usada senão por ele, que é o
meu macho. Você que tem um marido brocha, meio bicha, bem que podia dar essa xoxota pro
padre, se ele agüentar a fedentina.
A dentuça saiu xingando. Raimundo ria da língua solta da Sueli.
O primeiro ímpeto de Dona Carlota, ao chegar a casa, foi bater a porta na cara das comadres que
assistiram à cena das janelas. O marido dormindo numa rede foi acordado com um chute na bunda:
- Se você não trepar comigo essa noite, juro que vou dar minha xoxota pro padre. Ora se vou...

ALGUNS ANOS DEPOIS

O tempo em Maracutinga, como em qualquer outra parte do mundo, passa. Cinco anos
haviam se passado. Paulo Ribas era novamente o prefeito municipal. Tinha recebido a
prefeitura das mãos de Joana Maria, que lhe deixara um rombo danado nos cofres públicos.
Um sábado à tarde, início da noite, no cruzamento da rodovia que saía da cidade, Paulo teve que
parar o carro para dar passagem a um fusca que passava na preferencial. Dentro dele, Mercedes, sua
secretária, tendo como carona Dona Lourdes, a diretora atual do Colégio Estadual. As mulheres de
Maracutinga detestavam aquela rua e suas habitantes. Dona Lourdes comentou:
- As autoridades deviam fechar essa zona!
- Fechar? São os primeiros a freqüentar as casa dessas vagabundas. Repara os dois que estão
indo pra lá: o delegado e o prefeito. Paulo chegou até a casar com uma delas, não foi?
- E tu? Ele não te procura mais?
- Procurar? Está sempre reclamando falta de dinheiro.
- E o carro novo que te prometeu?
- Carro? Até de roupas estou precisada. Ele só faz prometer. Eu acho que ele não dá dinheiro
nem à Valdelice que é sua mulher, quanto mais a mim que não passo de um quebra-galho. Só dá a
essas pestes.
- Dá nada, Mercedes. Elas tomam.

PARTE FINAL

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J á se passavam alguns anos da cena que acabamos de narrar. Agora residindo em Salvador,
Paulo Ribas e Valdelice estavam longe e imunizados dos mexericos de Maracutinga. Eleito
deputado estadual, já na segunda legislatura, Paulo tinha vendido todas as suas propriedades do
Sul da Bahia e aplicado o dinheiro em Sergipe. Depois de também ter vendido as suas propriedades
de Maracutinga, Valdelice, juntando seu capital ao de Paulo, adquiriu um verdadeiro latifúndio no
Estado de Sergipe. A fazenda Riachão, antiga propriedade de sua família, foi a primeira a ser
comprada. Depois vieram outras, e mais outras que, todas juntas, formavam um monopólio
canavieiro enorme, com usinas produtoras de açúcar e álcool. Em outras propriedades do casal a
produção de laranja, abacaxi, melão e uvas de fina casta atendiam a demanda de uma exportação
avaliada em milhões de dólares anuais. Agora recheada de açudes e poços artesianos, a Fazenda
Riachão, em plena estiagem, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas do
vento marinho, o termômetro já não atingia os graus que identificam o verão dos dias sertanejos.
Com a modificação climática, as nuvens já derivam numa alternativa diferente, alternam-se, agora,
de um modo diferente. Muitas vezes, em pleno verão, no correr de um dia calmo e claro, dentro da
atmosfera que agora se implantou na Fazenda Riachão, difundem-se rajadas de nuvens frias. É
como um bafo gelado do sul, ao encontro das pesadas nuvens quentes do norte. No encontro das
duas, a chuva cai torrencialmente. O termômetro desce, numa queda única e rápida, de improviso,
estabelecendo-se, por dias, uma situação inalterada de um frio ameno. Abre-se uma nova frente nas
atividades. Povoam-se os lagos de peixes; crepitam as aves vindas da caatinga ressequida; enchem-
se os ninhos adjacentes às lagoas; os próprios animais do deserto aparecem, mansos, calmos,
demonstrando saber que ali vão receber alimentos sem serem molestados. É aquela natureza
maravilhosa, toda remodelada pela reação esplêndida da sabedoria humana, patenteando uma
situação felicíssima: o tempo da fartura e da bonança. O antigo sertão sergipano reflete agora novos
regimes climáticos, novas exigências biológicas. Os períodos remansados se espalham mais
docemente à vida sertaneja, sob outras formas. Entretanto, o sertão escaldante ainda é vizinho da
agricultura moderna. São duas histórias diferentes, distintas, em que se averbam movimentos e
tendências opostas. Duas sociedades diferentes, alheadas por destinos rivais – uma de todo
indiferente ao modo de ser da outra: mal unidos no mesmo sertão, distanciando-se ante o progresso.
A primeira sob o emperramento de uma teimosia estúpida; a segunda erigindo-se como um tipo
autônomo, liberto, com a feição perfeita de um dominador de terras, emancipando-se, delineando
uma epopéia que ainda está por vir...
A antiga e ressequida caatinga sergipana transformava-se agora em enorme tapete verde,
alimentado por incontáveis poços artesianos, que também formavam inúmeros açudes e lagoas
artificiais, onde se criava a mais variada coleção de peixes tropicais, aves raras e animais silvestres.
O casal tinha conseguido, a poder de muito trabalho e financiamentos internacionais, transmudar o
panorama da região. As únicas coisas que não foram mexidas, foram o umbuzeiro e o pequeno
açude no fundo da fazenda Riachão. O açude, sobretudo, ficou intocável, como um santuário
particular de Valdelice; a mesma grama, a mesma cascatinha, as mesmas pedras e a mesma saudade
de Zé Clemente. Olhando-o ao cair da tarde, parecia ouvir-lhe as palavras: - O que isso, menina?
Onde já se viu donzela se banhá mais homem nu? E, lá se iam tantos anos. Terminado o terceiro
mandato de deputado estadual, o casal resolveu mudar-se para Sergipe, ou melhor, para a antiga
fazenda Riachão, transformada em verdadeiro paraíso. Ali na fazenda, o casal vivia com muito luxo
e conforto: casa enorme, muitos criados. De volta a Sergipe, Valdelice agora era alguém. Não se
impunha apenas como latifundiária e empresária bem sucedida - era o próprio ornamento e
evidência da melhor sociedade sergipana, onde exibia suas relações de alta burguesia. Mulher
agradável de ver, apesar da sua idade um tanto madura: pequena, cabelos curtos e negros, mas que

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agora teimavam em ficar grisalhos; rechonchuda, de uma gordura sem banhas, cor bronzeada, olhos
de requebro e os lábios um tanto abertos sobre os dentes alvos e perfeitos. Quantos anos de idade
tinha? Difícil de responder. Ela sempre evitava tocar nesse assunto. Quando algum indiscreto lhe
perguntava, maliciosamente respondia: - Trinta anos e uma porção de meses. Valdelice tinha uma
vida alegre e descontraída como jamais sonhara. Saía, passeava, em mil e uma coisas ocupada,
recordando-se, de vez em quando, dos dias amargos que tinha passado em sua juventude. Mas era
somente uma nuvem passageira em seus dias de agitação. Tinha as amigas, a constante companhia
de Sueli, espécie de dama de companhia, quando não estava com o marido, o agora reformado
sargento Raimundo, que trabalhava para ela e seu marido como motorista particular. Assim calma, e
ao mesmo tempo cheia de compromissos, decorria a sua vida. Só algumas coisas perturbavam o seu
sono, a sua tranqüilidade: as recordações da sua estada na zona de Maracutinga, a recordação de Zé
Clemente quando chegou maltrapilho à Riachão. E lá se iam muitos anos. Pensando nessas coisas
de um passado distante, Valdelice tomava calmantes para adormecer. Mas nem assim se via, em seu
dormir, liberta das aventuras da sua vida. Sonhava a noite inteira. Sonho sem pé nem cabeça, Paulo
Ribas roncando ao lado dela. Alvorecer de domingo. Ela sonha: a solidão e lágrimas; fantasmas e
pesadelos. E uma lágrima solitária cai dos seus olhos ao nascer do dia.

DEZ ANOS DEPOIS

M uito cedo ainda, com a aurora tentando romper o negror da noite, Valdelice sentou-se na
toalete para se maquiar. Foi em busca de perfumes, trouxe as jóias que ganhou do marido
e as colocou, experimentando roupas: como nos tempos da zona, quando se vestia nos
trinques. Não! A roupa estava feia, a maquiagem borrada. É mais uma lágrima que cai! Tira as
roupas bonitas, veste um pijama, sai de casa e vai direto ao açude. Lá, despe o pijama e fica nua.
Mira-se no espelho d'água e chora. Já não era a Valdelice de antes - mas agora é rica. Seus seios
agora são flácidos, suas coxas apresentam estrias, combinando com a desarmonia de sua banhas
avantajadas, bem diferente daquele mulherão dos tempos da zona, quando os fregueses ficavam
loucos por aquele rabão bom de comer. Então, como uma sonâmbula, desanimada, veste novamente
o pijama, volta para casa, deita-se na cama e volta a sonhar. Os sonhos de sempre, tendo os roncos
do marido como testemunha dos seus devaneios.
Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendiado atinge a púrpura das
eritrinas e destaca melhor o ambiente, engrinaldando as umburanas de cascas arroxeadas e os
festões multicoloridos. Alegram-se os ares numa palpitação de asas, célebres, ruflando – sulcam-se
as notas de clarins estranhos, enquanto despreocupado, deslembrado de mágoas e de rancores, segue
um velho sertanejo pela estrada que agora corta o Raso da Catarina, arrastando uma perna, que a
apóia num cajado. Numa tarde qualquer ele chega ao Juazeiro da Bahia. Rápidas as tardes sem
crepúsculos do Juazeiro, prestes afogadas na noite. As estrelas cintilam vivamente sobre a bela
paisagem baiana. Nuvens volumosas, entretanto, começam a abarreirar ao longe os horizontes,
recortando-os em relevos imponentes de montanhas negras. Sobem vagarosamente; incham,
bolando em lentos e desmesurados rebolos, na altura; enquanto os ventos tumultuantes, sacudindo e
retorcendo a caatinga, assobiam nas galhadas. Embruscada em minutos, a cidade golpeia-se de
relâmpagos sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta. Rebolam
ruidosamente as trovoadas no firmamento, anunciando um aguaceiro diluviano sobre toda a região.
E, ao chegar à cidade, o andarilho não vê mais o deserto nordestino. Sobre o solo de seus terrenos
vazios, que as gotas d'água agora atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical. É uma mutação
de apoteose. Os mulungus rotundos, às bordas das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas
flores vermelhas; as Caraíbas e baraúnas altas refrondescem; ramalham, ressonantes os marizeiros

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esgalhados à passagem das virações suaves; assomam vivazes, amortecendo as truncaturas das
quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas; mais virentes adensam-se os icozeiros, sob o
ondular festivo dos ouricurís, dos juazeiros e dos umbuzeiros. Exuberante fica a flora,
maravilhosamente festiva a fauna. A chuva tinha feito a caatinga transfigurar-se em mutações
fantásticas. Seus vales e baixios fizeram-se rios. Insularam-se os cômoros escalpados, ficando
repentinamente verdejantes. Ainda enquanto caminhava pela estrada, o viajante já ia encontrando
uma vegetação recamada de flores, frutos e aves silvestres. Os grotões, cobertos de grama verde,
disfarçavam a dureza das barrancas e do arredondado de suas colinas, antes ressequidas. As
chapadas, entremeadas de vales, se ligavam em curvas suaves aos tabuleiros mais altos. Amena
ficara a temperatura dos ares. Novos tons apareceram na paisagem: a transparência do espaço
salientando as linhas mais ligeiras, em todas as variantes, de formas e de cores. Aos olhos do
viajante dilatam-se os horizontes da caatinga agora verdejante. O firmamento, sem o característico
azul carregado dos locais semi-áridos, é lindo: alteia-se mais profundo, ante o expandir revivescente
da terra. E ao transpor a última légua, ele, pasmo, não vê mais o deserto, pois sobre o solo as
gramíneas atapetam, fazendo ressurgir triunfalmente a flora tropical. Bem diferente do deserto que
tanto o castigara antigamente. A caatinga do Juazeiro era uma apoteose repleta de flores, frutos e
cantigas de passarinhos; as umburanas perfumavam o ar, filtrando-o nas frondes enfolhadas, e -
dominando a paisagem geral - não já pela altura, senão pelo gracioso do porte - os umbuzeiros
levantam-se cerca de dois metros sobre o chão, irradiantes, em círculos, os galhos numerosos.
Juazeiro, enfim, também pela abundância da irrigação que recebeu, transformou-se num vale fértil,
num imenso pomar, cujos frutos agora são exportados para a maioria dos países do mundo. Havia
chovido muito naquele inverno. Ele pensou como o sertão estava calmo naqueles dias, enquanto
caminhava pela avenida central da cidade. Ao chegar próximo à ponte, o céu começou a ficar
novamente negro. Ele entrou por uma rua estreita. O céu estava ficando cada vez mais escuro,
enquanto ele caminhava com dificuldade, agarrado ao cajado. Os primeiros pingos de chuva caíram
quando ele se aproximou da feira. Então viu um homem ficar sem o seu guarda-chuva, levado pelo
vento, e riu, um riso amarelo de quem não tem muito a que aplaudir.
Os pingos de chuva eram enormes, cada um deles encharcava as roupas da meninada que não se
incomodava com ela. O ancião procurou abrigo e parou debaixo de uma marquise. Quando chegou,
a chuva desabou. Ficou embaixo da marquise e observou a tempestade. O volume de água era
incrível. Em minutos as sarjetas transbordavam e inundavam as calçadas, ruas e bueiros entupidos
Do lado oposto da rua, meninos nadavam na enxurrada, fazendo a maior algazarra. Então, ele
abandonou o cajado e correu par lá, atirando-se nas poças, recordando-se do seu tempo de menino.
Por fim a chuva parou e ele voltou a caminhar em direção à saída da cidade, no rumo do rio São
Francisco, que recebia toda a enxurrada. Chegou-se a uma barraca na feira. Pediu catuaba e tomou
de uma só talagada. Dali ele podia avistar a caatinga. Agora ela estava fresca e bonita. - claro que
foi a chuva - pensou. Quando ia voltar a conversar consigo mesmo, a dona da barraca, uma anciã de
cabelos brancos, aparentando ter sofrido muito na vida, perguntou-lhe:
- Tá vindo de onde, meu velho?
- Desse mundão de meu Deus! – e apontou o dedo para a caatinga repleta de folhas verdes, flores
vermelhas e borboletas azuis. Pediu a segunda catuaba. Ia levando o copo à boca, quando ela falou:
- Eu não falei que tu voltava? Muitos vão e muitos voltam!

FIM

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