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(Friedrich Nietzsche)
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ÍNDICE
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Introdução................................................................................................................p. 04
REFERENCIAS.......................................................................................................p. 266
Introdução
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(Krishnamurti)
se abateu sobre ela, embora não diga, tem muito a dizer. Faço minhas, então,
as suas vezes.
Tal como existe uma família de que se fala e uma família de que
se sofre, há de fato também uma escola pública de que se fala e uma escola
pública de que se sofre. Na verdade as duas são uma só. Mas, na escola de
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que se fala o professor está acima do bem e do mal. É uma categoria intocável,
sacro santificada, digna de pena, respeito e não de críticas. Na escola de que
se fala as críticas são todas dirigidas aos parcos salários do professor e do
funcionário, à apatia e indisciplina dos alunos, à ausência dos pais e às
insidiosas políticas públicas para a educação. A escola de que se sofre é tudo
isso também. Nela prosperam parcos salários do professor e do funcionário,
apatia e indisciplina dos alunos, ausência dos pais e insidiosas políticas
públicas para a educação. Mas, a escola de que se sofre é, especialmente, o
lugar onde professores conservadores e desinteressados ensinam assuntos
pouco interessantes, de modo desinteressante a alunos desinteressados. É o
lugar onde a criança, que aprende se movendo, se vê obrigada - a partir dos
seis anos de vida - a ocupar uma carteira monótona durante quatro horas
diárias, com severa restrição de movimento e de comunicação. Do conflito
entre as exigências da escola e as necessidades da criança pode ser que
nasça boa parte das constantes cenas de violência vividas ou presenciadas por
professores no ambiente escolar. Pode ser que nasça, para os professores,
grande parte das dificuldades atuais de se “ensinar”. E, para os alunos, de
viver.
que se apiedam diante dos penosos salários dos professores sempre acabam
votando em políticos que sequer conjecturam a possibilidade remota de
melhorar a escola pública ou conceder um aumento salarial para os
professores. Porque o fracasso escolar, no final das contas, é um projeto
profundamente exitoso. No que concerne às questões da escola pública, há
sempre uma hipocrisia pairando no ar. Mas, este é também um assunto
maldito; uma blasfêmia!
(Graciliano Ramos)
em geral, ninguém chamava sua atenção por isso. Não havia sequer um
convite para que os alunos deixassem o local, destinado apenas ao transito de
professores e funcionários. E quando, raro, alguém os corrigia por estarem ali
parecia mais um comentário retórico.
deixar o aluno fazer o que quer, quando quer, como quer, onde quer e se
quiser.
isso. Na verdade reprova essa atitude. Mas, também sobre isso não é
aconselhável falar. É uma blasfêmia.
dos alunos, que não chegam ao ensino médio, a presença dessas demais
disciplinas parece meramente retórica.
Uma funcionária da escola veio até mim com um papel de não sei
lá o que. Disse que era para eu preencher e entregar sem falta até o final da
tarde na secretaria. Jamais o preenchi. Nem sei o que era. Sentei-me à mesa
da sala dos professores, a munheca emperrada, o pensamento teimando em
não estar ali, com o tal papel insistindo por ser preenchido. Uma professora
resmungou na porta com os alunos: “Dá licença, que o sinal ainda não bateu!”
E tacou-lhes com força a porta na cara. Eu poderia ter sentido pena dos
alunos, mas senti pena da porta, acostumada a essas sovas. Olhei em volta.
Uns professores remexiam em seus armários guarda-pertences, outros
vistoriavam seus livros de chamada; a maioria conversava tagarelamente.
Duas professoras soltavam gargalhadas enormes enquanto falavam sobre
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alunos. Outros dois discutiam futebol e outras patifarias. Ouvi entre o turbilhão
de vozes um estrondoso “puta que pariu”. Mas, não havia entre eles uma feição
de alegria sincera, um cisco de vida. Nada!
alunos, muitas vezes, umas piadinhas sobre isso. Todavia, o que não
conseguia suportar, de forma alguma, eram os comentários às minhas costas
por parte dos colegas. Insinuações maldosas, as mais excêntricas. E somente
não eram mais comuns porque os professores aprenderam, aos poucos, a me
respeitar como uma espécie de intelectual entre eles. E porque os alunos, em
sua grande maioria, gostavam de mim e de minha forma de dar aula. Embora
não os levasse sempre para a quadra, nem os deixasse à solta para
perambular pelo pátio ou para jogar futebol (meninos) e vôlei (meninas). Aliás,
como acontecia entre os demais professores de educação física, salvo raras
exceções. Não só naquela escola, mas em todas aquelas em que trabalhei.
mas o tempo me fez entender diferente e eu já não gritava mais com meus
alunos havia um bom tempo. Entrava em sala de aula e conversava com meus
alunos franca e honestamente. E salpicava o conteúdo com algumas piadas de
salão que tinham a ver com o que eu estava ensinando para que assim a aula
não ficasse tediosa e monótona. Nem para mim, nem para eles. Os alunos
gostavam muito de minhas aulas. Quando eu estava chegando ficava sempre
um batedor na porta à minha espera. De longe eu o via correndo para sua
carteira dizendo o professor ta chegando. E quando eu finalmente entrava
todos gritava: Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeee... Ao que eu sempre respondia com
algum gracejo, tal como:
— Ta bom, ta bom, já chega, eu sei que vocês são meus fãs, mas
agora vamos fazer a chamada.
de qualidade que nunca chega. Jamais virá. Um dia quando esses professores
perceberam que sua luta era inglória já era tarde para recomeçar em outro
lugar. Eles estão lá nas salas de aula da escola pública, empunhando sua
bandeira já bastante surrada pelo desgaste do tempo. Professores sucumbidos
ao afrontoso desdém de colegas já ajustados ao sistema. Professores que
destroem a imagem de seus colegas idealistas em fofocas feitas “na surdina”.
Enquanto isso, o analfabetismo funcional, filho bastardo da hipocrisia escolar,
se alastra como uma praga incontrolável por todas as escolas públicas,
especialmente as de periferia. Como consequência, a violência toma conta das
salas de aula. Nas periferias dos grandes centros urbanos, a vida humana tem
um valor meramente simbólico, dentro e fora da escola. E, ao final de cada
semana, os imls se enchem de cadáveres de jovens, como resultado da
falência do Estado na área da segurança pública. Enquanto isso, o poder
público alardeia a criação de programas para a melhoria da qualidade de
ensino que nunca chegam. Jamais chegarão.
conduta com seu filho. Mas, desconfiei quando a mesma diretora disse que já
acertara tudo e que eu não precisaria me preocupar. Mas me preocupei e fui ao
núcleo saber do que se tratava. E não se tratava de nada. A diretora inventara
o fato para começar a criar um clima que pudesse tornar minha permanência
na escola insuportável e fazer com que eu pedisse transferência. Fora isso me
tratava maravilhosamente, lançando um véu de hipocrisia sobre suas reais
intenções no afã de que eu não percebesse de onde vinham as balas que me
atingiam pelas costas.
Mas, pelo menos eu dava aula. E como meus alunos eram ruins
de leitura e ruins de escrita, minhas aulas consistiam em palestras que eu dava
sobre o conteúdo ensinado. Faze-los escrever seria penoso para ambos e
pouco produtivo. E ademais, com este sistema meus alunos aprendiam. E se
divertiam muito. Nós nos divertíamos muito. Mas quando o barulho de fora da
sala era maior do que o de dentro a aula estava inviabilizada. Em desespero eu
solicitava que a direção da escola e as pedagogas arranjassem um jeito de
fazer com que os professores das salas vizinhas controlassem o barulho de
seus alunos. Que tivessem o tal domínio de turma, seja ele o que for. Nunca
soube ao certo. Para que os outros professores pudessem trabalhar. Contudo,
isso significaria mudar um sistema que há muito se viciara e que estava muito
bom para tudo e para todos. Menos pra mim. Então, o errado, na verdade, era
eu. Os novatos na escola que se enquadrassem. Mas, na verdade, eu não era
nenhum novato na profissão. Eu era um velho professor idealista com antigas
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ideias sobre dar aula, antigos escrúpulos e a mania de ser honesto com meus
alunos.
mais do que em qualquer outro lugar, onde se inclui sua casa, sua família, sua
igreja. Então, a escola era muito valiosa para os alunos. Mas, não o estudo. E,
seguramente, não os professores. A não ser que, de algum modo, um
professor conseguisse entrar neste mundo do aluno. Ficar entre eles. Falar a
sua língua. Se tornar quase um deles. Só que professor. Foi assim que eu
sempre fiz. E estava fazendo nesta escola. Por isso era respeitado. Não pelos
professores. Seguramente, não. Mas pelos alunos.
estava sem professor. Ledo engano. O fato de haver alguns alunos fora da sala
de aula, pelo corredor, me enganara. Havia até um casal de pré-adolescentes
se beijando e dois garotos brincando de judô ou sei lá o que. E, então, fui até lá
no afã de botar ordem naquela bagunça. Se estavam sem aula, que fossem
para o pátio. E qual não foi a minha surpresa ao ver um professor lá dentro, em
pé, conversando com um aluno como se a bagunça fosse mera paisagem.
Nenhum conteúdo no quadro negro. E sei lá se havia em outro lugar. Detalhe:
esse professor tinha 30 anos de magistério. Mais do que eu. Todavia, eu já
tinha visto este tipo de professor e sabia muito bem o que estava acontecendo.
Ele havia se entregado. Desistiu. Agora aguardava apenas o fim do mês pelo
salário e a aposentadoria que não demoraria muito a chegar. Recolhi-me à
minha sala e pedi a um aluno que chamasse a pedagoga. Ela não veio. Disse
que estava ocupada atendendo uma mãe de aluno. Fui até ela para relatar o
fato, quando a vi papeando com outra pedagoga. Não havia pai nenhum com
elas. Voltei à sala de aula na esperança de que ela já viria. Não veio.
minha coluna e desta vez se espalhou rapidamente por todo meu corpo.
“Tenho que me controlar”, pensei. Mas era impossível. Eu estava paralisado.
Apavorado. Uma voz dentro da minha cabeça parecia gritar: “Onde você está?
O que você está fazendo aqui?” Já não queria acabar com a bagunça das
salas ao lado. Tudo o que queria era sair dali.
(Mário Quintana)
Psicologia de um vencido
psicanálise, bem como da psicanálise atual que utiliza o termo de forma farta e
generosa ao invés do termo melancolia. Para a psicanálise pós-moderna a
situação se inverte, o termo melancolia é utilizado de forma descritiva e o termo
depressão se refere à moléstia. Contudo, este não foi apenas um problema
conceitual. Reduzir esta disputa a uma mera disputa terminológica seria não
ver o que ocorreu. Neste trabalho não temos como objetivo aprofundar esta
reflexão, contudo, em resumo, a diferenciação dos termos melancolia e
depressão é um processo obediente ao fato de que na primeira década do
século XX, a psicanálise travou com a psiquiatria um debate acalorado. Como
considera Coser (2003, p. 04):
Vale dizer que Reich foi um pária para as pessoas de seu tempo e
um gênio para a posteridade. Tendo sido expulso do Partido Comunista por ser
psicanalista foi também expulso da sociedade psicanalítica internacional por
ser comunista. Acusado de charlatanismo, imoralidade e subversão foi preso
pela CIA nos EUA e morreu na cadeia. Ocorre que na lida com a energia
sexual, a que chamou de orgon, Reich passou a pesquisar as relações da
insatisfação emocional com o câncer, do que resultou sua obra "A Biopatia do
Câncer". Em 1954, passa a ser investigado pela Food and Drug Administration,
sendo preso após mal sucedidas tentativas de apelação. Reich não reconhecia
outra pessoa na defesa de sua ciência que não fosse ele mesmo. No cárcere
desde 12 de março de 1957, morre de ataque cardíaco em 3 de novembro.
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(Andrew Solomon)
manter o braço elevado para escrever na lousa dia após dia, ano após ano.
Acrescente a este caldo já bastante grosso os baixos salários, a falta de
reconhecimento profissional, o excesso de horas de trabalho e os conflitos da
sala de aula e teremos, então, uma profissão no mínimo inconveniente.
viver.
(Erasmo de Rotterdam)
(Voltaire)
história que poderia ter sido, mas que nunca foi. É nessa escola que crescem e
amadurecem nossas crianças até tornarem-se adultos. Mas, adultos
engolfados pela procissão interminável de signos sociais e valores definidos
pelo mundo da produção e do consumo onde estão - habilitados pelas leis do
mercado - comportamentos, crenças, dúvidas, certezas insólitas, informações e
conhecimentos a serem adquiridos na esteira da sucedânea infinda dos
modismos da sociedade contemporânea.
Ninguém é uma ilha social, portanto o ônus a ser pago pela vida
em sociedade é a produção de estados emocionais sofridos, que acabam
causando nas pessoas comportamentos de ordem irracional. Eventualmente,
todos somos candidatos potenciais ao divã psicanalítico de Sigmund Freud.
Quanto a isso, Albertini (1994) cita o episódio em que Freud, ao ser
questionado por uma mãe sobre qual seria a melhor forma de educar seu filho,
respondera: “Faça como quiser, qualquer que seja a maneira, ela será
igualmente má” (ALBERTINI, 1994, p. 65). Obviamente, Freud, com sua
conhecida figura sisuda, se referia ao fato de que, não importa a educação que
se dê a uma pessoa ela sempre será vítima do sofrimento psíquico que a
sociedade, com suas imposições e proibições, impõe a todos. E eu diria que
esse sofrimento psíquico toma ares de extravagância no capitalismo, em
virtude das renúncias a que está sujeitada a maioria da população.
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Mais uma vez: para que serve a escola? Ou ainda, para que o
professor ainda vai à escola? Em sua tese de doutorado intitulada “Valores e
vivências de prazer-sofrimento no contexto organizacional”, Ana Magnólia
Mendes considera que, na medida em que o trabalho é parte indissociável da
condição humana, trabalhar é parte dessa condição, como também é parte da
construção da sociedade e dos homens em suas relações sociais. Destarte, a
realização do trabalho é tida como importante fator na promoção e manutenção
da saúde.
(Theodor Adorno)
[...] cerca de 64% dos países do mundo têm renda per capita
inferior à brasileira. Por outro lado, na medida em que alguns
países com enorme população encontram-se abaixo do Brasil
nesta estrutura da distribuição de renda, concluímos que cerca
de 77% da população mundial vive em países com renda per
capita inferior à do Brasil. Assim, essa distribuição da renda
mundial, construída a partir do Relatório de desenvolvimento
humano de 1999 [...], nos revela que, apesar de o Brasil ser um
país com muitos pobres, sua população não está entre as mais
pobres do mundo. A comparação internacional quanto a renda
per capita coloca o Brasil entre o terço mais rico dos países do
mundo e, portanto, não nos permite considerá-lo um país pobre
(PAES DE BARROS; HENRIQUES; e MENDONÇA. 2000,
p. 126).
Parece-me razoável, então, argumentar que somos um país rico,
com um povo pobre e uma educação pública miserável. De fato, a educação
escolar da população pobre no Brasil não é uma prioridade. No Enem (Exame
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Nacional do Ensino Médio) de 2014 mais de meio milhão de jovens tirou nota
zero na redação – cuja nota máxima era 1.000. Foram mais de 520 mil alunos,
quase um em cada dez, com nota zero na redação. Quem tira zero na redação
perde a chance de entrar nas quase 130 universidades públicas do país.
A quem interessa um povo que não sabe raciocinar, não sabe ler,
não sabe escrever, não sabe argumentar? A constatação de que nossa escola
pública se acha lastimosamente entrincheirada na função de não educar seus
alunos me parece inevitável. O que não significa dizer que nossos governantes,
dignos representantes da classe dominante, tenham desprezado a escola
pública ou mesmo não reconhecido o seu valor. Ao contrário, eles
reconheceram prontamente a importância (de)formadora do ensino público
sistematizado. E isso não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo e desde que
o sistema público foi criado. Conforme considera sociólogo francês Pierre
Bourdieu, o sistema escolar “é um dos fatores mais eficazes de conservação
social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e
sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural”
(BORDIEU, 2007, p. 41). Para o autor:
(Prado e Soligo)
(Rubem Figgot)
O mundo tem sido um lugar ruim demais para se viver. Não apenas
porque existem pessoas que fazem o mal. Nem mesmo porque pensadores
como Maquiavel, têm se dedicado, ao longo do tempo, à edificação de
filosofias que não apenas pretendem justificar o injustificável, como traçam o
caminho para a construção das desigualdades sociais e de sua manutenção. O
mundo tem sido um lugar ruim demais para se viver por causa daquelas
pessoas bondosas que observam a maldade acontecer e não tomam nenhuma
providência. Como disse em um de seus sermões, Martin Luther King, “o que
me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. A condição
negativa do mundo atual depende mais da omissão dos bons do que da ação
dos maus. Quando o bom se omite o mal avança. E declara sua onipotência.
A maldade nunca diz “eu sou má”. Ela vem disfarçada, quase
sempre, em vestes de boa moça. Comumente, vem disfarçada com as vestes
da caridade dos ricos. Mas, os pobres não precisariam da caridade dos ricos se
não houvesse desigualdades e injustiças sociais. Nenhum dominado precisaria
catar as migalhas jogadas ao chão pelos dominadores se o mundo fosse
igualitário. Entre os indígenas não existiam ricos e pobres, tampouco eles
conheciam o conceito de esmola porque ninguém precisava de esmola. Entre
nós, os ditos civilizados, não há rico, todavia, que defenda sem hipocrisia uma
sociedade igualitária, com divisão de riqueza. De viés, evidências científicas
atestam a ternura como uma das características essenciais à vida humana.
Como as conclusões dos estudos mais recentes do educador Humberto
Maturana, que confirmam a existência de uma “Biologia do Amor”. O psicólogo
Wilhelm Reich também já apontara para uma necessária revisão na sociedade
que substituísse o ódio pelo amor.
século XX. Nós vivemos num mundo absolutamente psicótico, falso, perigoso,
ruim demais! As pessoas comuns se invisibilizam umas às outras e a
descartabilidade do consumismo de objetos aos poucos incidiu também sobre
as relações humanas. À nossa frente está o absurdo abismo mundial entre
riqueza e miséria, avanços tecnológicos e barbárie. O século que produziu uma
opulência tecnológica, econômica e material sem precedentes também a
confinou em pequenos espaços do globo, e mesmo ali em poucas mãos.
Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.
população vive com menos de um dólar por dia (dados de 2004). Em 1990, a
taxa era de 10,3%.
dizem que a vida possui sempre as mesmas sequencias e que devemos nos
contentar a seguir os passos demarcados previamente.
(Sigmund Freud)
“Eu vou contar tudo a Deus”. Esta foi a frase que um menino de
três anos de idade, vítima da guerra civil na Síria, disse antes de morrer. Ela
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Nos dias de hoje frequentemente se ouve: “eu não sei viver sem o
meu celular”. E sempre há um produto novo que supera o anterior. E que deve
ser comprado. Os novos meios de comunicação são de fato os arautos desta
promessa de emancipação que nunca chega. Há um fantástico mundo de faz
de conta que proclama a si mesmo como redentor da humanidade pelo
espraiamento da comunicação, mas que, para além do véu das aparências,
não abdica da exploração econômica, da injustiça e da desigualdade.
Irmanadas ao império informativo, as ofertas do mercado jamais saciam, pois
tudo é efêmero, provisório, descartável e fantasioso. Nesse proceder não só as
coisas são descartadas, porque são provisórias, mas, inclusive as pessoas. E
pelo mesmo motivo.
riqueza que a humanidade foi capaz de produzir em dez mil anos de civilização
– e, especialmente nos últimos duzentos anos de capitalismo -, sob a forma de
avanços tecnológicos, uma renúncia rigorosa ao conforto e aos prazeres nos
parece totalmente desprovida de razão. Mas, toda a tecnologia atual só
conseguiu garantir conforto a uma parcela muito pequena da população.
Enquanto uns esbanjam, outros dividem a miséria e disputam as migalhas. O
bolo foi feito pelos trabalhadores, que não têm mais acesso a ele. O bolo
cresceu, mas não foi dividido. E já mostra sinais de apodrecimento. E temo que
o planeta, e nós todos dentro dele, também.
que de tanto tê-la por perto já se faz um pouco minha, a vida é uma grávida de
possibilidades.
(Feodor Dostoievski)
Sísifo prossegue no seu tormento, dia após dia, mês após mês,
ano após ano, eternamente. Para o ser humano, todavia, existe a possibilidade
de modificar sua rotina absurda, de lançar para longe o rochedo das suas
misérias, o flagelo por desafiar o sistema. Qual professor não sonhou um dia,
ainda que embalado pelas repetitivas ladainhas das reuniões pedagógicas de
início de ano, em poder cutucar o sistema e levar seu aluno a se libertar dos
grilhões sociais e econômicos que o aprisionam? Esta pergunta vem dos restos
de esperança que ainda tenho comigo. Todavia, sinceramente, tenho medo de
ouvir a resposta para ela. Seja como for, é sedutora a ideia de empunhar o
cetro sagrado da educação transformadora. O castigo, porém, para os que se
arvoram a fazê-lo é repetir os dias, os anos e as rotinas escolares sem
variação alguma. E sem grandes resultados. A pedra de Sísifo tem, na escola,
outros nomes, mas é algo tão tedioso e inútil quanto o trabalho de Sísifo. A
tarefa de erguê-la todos os dias, anos a fio, para vê-la ir ao chão ao final do dia.
sou muito pequeno diante dos poderes sociais hegemônicos. Metaforizei como
professor o mito grego de Sísifo, empurrando minhas convicções e idealismos
em meu penoso, inútil e rotineiro trabalho pedagógico rumo à famigerada
educação libertadora, que jamais vi ser concluída. Nem por mim, nem por
colega algum, em que pese o fato de ter conhecido outros professores Sísifos,
como eu. Continuamos sendo um país rico com um povo pobre e uma
educação miserável.
enorme até o cume de uma montanha num esforço inútil, como penalidade
imposta aos que desafiam o poder dos “deuses”.
das intempéries e dos outros homens. Como têm feito muitos professores que
abandonam a carreira tão logo percebem que a escola pública, escondida sob
o véu das aparências, é um lugar onde se perpetuam tentativas frustradas de
solucionar problemas que sempre se mostram insolúveis. Os professores que
deixaram a profissão são aqueles que descobriram que foram logrados por um
sistema que os aprisiona como Prometeus à mercê de abutres. Ou como
Sísifos em seus labores sem nexo. Ou como Mársias, castigados por
desafiarem o sistema. E nisso, nosso sistema público de educação
ultrapassou, há muito, o nível do absurdo. Mas, parece que poucos se
apercebem. Ou concordam. Ou mesmo se dispõe a comentar algo sobre o
assunto, tido como quase inabordável dentro da escola. Enquanto outros
professores que ainda resistem acreditando que podem realizar “um bom
trabalho” (meu Deus, espero que alguém um dia me esclareça racionalmente o
isso significa dentro da escola pública) dizem: “o que é isso? É só fazer o seu
trabalho que tudo se resolve!”. Mas, que trabalho é esse? Qual a função de
ensinar na escola pública? Ou já esquecemos os motivos históricos que
levaram à sua criação? Ou não nos demos conta ainda de que a educação
transformadora preconizada pelos estudos de autores como Vygotsky, Luria,
Pistrak, Anton Makarenko, Leontiev, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Gaudêncio
Frigotto, Pablo Gentilli, Saviani e Gasparin nunca aconteceu de fato na escola?
(Darcy Ribeiro)
Esta foi a pergunta com que Giovana, uma das minhas filhas, me
surpreendeu há alguns anos. Ela tinha, na época, dez anos de idade e
estudava na extinta 5ª série, atual 6º ano do ensino fundamental. E estudava
no maior e, considerado por muitos, o melhor colégio público da cidade de
Maringá.
— Sim, mas eu não dei uma bola de futsal para os meninos e uma
bola de vôlei para as meninas?
— Mas, professor, como a gente vai dar toque se você ainda não
ensinou isso pra gente?
Foi então que eu parei, me desculpei com ele e disse a ele o que
tinha acontecido. Estávamos no pátio do colégio e ele me convidou para
sentar:
— Como assim, mudar o jeito dele dar aula? Ele não estava dando
aula. Estava matando aula.
para me abrir os olhos para uma desconfiança que eu vinha tendo já há algum
tempo: uma das responsabilidades pelo caos da educação era a presença farta
de professores relapsos e acomodados na escola. Muitos deles, workholics. A
tão sacralizada profissão de educador, capaz de livrar as pessoas dos males
com que a ignorância as aflige, afinal não era tão sagrada assim.
(Pierre Bourdieu)
que irá manter uma determinada ordem social. Esse tema é tratado por
Althusser logo de início, na primeira página da sua principal obra, “Ideologia e
Aparelhos Ideológicos do Estado”:
Como Marx dizia, até uma criança sabe que se uma formação
social não reproduz as condições da produção ao mesmo
tempo em que produz não conseguirá sobreviver um ano que
seja. A condição última da produção é, portanto a reprodução
das condições da produção (ALTHUSSER, 1985, p. 09).
Dessa forma:
(Simone De Beauvoir)
Certa vez recitei aos meus alunos - de uma sétima série do então
primeiro grau de ensino - um pedaço de uma poesia de Castro Alves, intitulada
"Navio Negreiro", onde o poeta chorou em versos o infortúnio de milhões de
negros, arrancados do chão africano, e trazidos em “navios negreiros”, feito
bichos, para o inferno como escravos no Brasil. Eis o pedaço que declamei:
"Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucura… se
é verdade/Tanto horror perante os céus?!". Eu estava ministrando uma aula de
história da capoeira, na disciplina de Educação Física, e, portanto, o conteúdo
do poema era interessante, pois que interseccionava com essa forma cultural
afro-brasileira, que é a capoeira. No dia seguinte fui surpreendido por um pai
de aluno que, se dizendo evangélico, reclamava ao diretor da escola que eu
teria chamado Deus de “desgraçado”. E que teria proferido um palavrão:
"miseráveis". Pior que isso, o diretor, imune às minhas ponderações, acatou a
reclamação do pai e me deu uma advertência formal. E ainda me proibiu de
continuar trabalhando com capoeira na escola, visto que esta seria uma forma
cultural de negros desordeiros capaz de incentivar "desordens" nos alunos. A
Capoeira, nascida da resistência do negro contra circunstancias profundamente
opressoras da escravidão, fora transformada naquele momento por aquele
diretor numa atividade repugnante porque trazia consigo os signos herdados
das lutas contra os tantos meios de suplício do cativeiro. Nesse processo, as
desigualdades foram instantaneamente minimizadas à condição de meras
diferenças.
— Não, mas isso não invalida meu projeto. Felizmente meus filhos
e netos já estudaram e o meu projeto não é para que todas as pessoas
matriculem seus filhos em escolas públicas. É, sim, para aqueles que são
parlamentares, justamente para que cuidem melhor de nossa educação. Mas,
se não quiser matricular, tudo bem, basta deixar de ser parlamentar.
E, mais adiante:
enquanto o governo investiu mais de R$ 40 mil por ano em cada preso nos
presídios federais, gastou cerca de R$ 15 mil com cada aluno do ensino
superior, isto é, cerca de um terço do valor gasto com prisioneiros. Se
considerarmos o valor gasto com detentos de presídios estaduais, chegaremos
à cifra de R$ 21 mil gasto ao ano com cada detento, enquanto se gastou
apenas R$ 2,3 mil por aluno ao ano.
foi o caso. E, então, a elite retirou os filhos da escola pública, que, sobretudo
nas periferias das grandes cidades, virou uma escola de segregados. Ora,
sabidamente, os filhos dos pobres não possuem muitas oportunidades
educativas além da escola. Não frequentam outros repertórios do
conhecimento, tais como as aulas de dança, judô, música ou línguas
estrangeiras. E quando os pobres encontram algum projeto público e gratuito
para matricular seus rebentos, esses projetos não possuem a mesma
qualidade que os particulares. A óbvia conclusão, confirmada por todos os
testes de avaliação, é que o ensino escolar público brasileiro está longe de
garantir uma aprendizagem satisfatória para os filhos dos pobres.
casa até a escola e vice versa. Mais uma vez esquecem os advogados do
uniforme escolar que as imensas mochilas que carregam os tais alunos e suas
sofridas colunas vertebrais já os definem como alunos. Deveríamos lutar por
uma educação que se poste contra as diferenças econômicas e de
oportunidades. Mas, se disfarçamos as diferenças, contra o que lutaremos na
escola pública, afinal? Contra o analfabetismo, dirão uns, contra a indisciplina
dirão outros. Certamente, não contra a existência de um mundo onde
proliferam desigualdades. Provavelmente, contra a indisciplina dos
esfomeados, dos miseráveis e desvalidos. Contra o comportamento subversivo
dos alunos que relutam diante da subserviência, do conformismo e da
obediência compulsória.
isso com seus alunos? Como justificaram sua atitude aos tantos alunos que os
apoiaram? Como disseram à escola que nossos aposentados agora terão de
pagar a previdência? Não sei como esses professores conseguiram informar
suas famílias e amigos que a categoria em greve pediu 13% de reajuste
salarial, o governo negou, então a categoria abaixou seu pleito para 8%, o
governo ofereceu 5%, a categoria não aceitou e, então, o governo disse que
concederia somente 3,45% a ser pago no fim do ano. E o resto até 2018. E a
categoria aceitou! Justamente num momento em que tínhamos a opinião
pública toda a nosso favor.
A greve de 2015 foi marcada não pela luta por mais direitos e
avanços na carreira, mas pela resistência diante da intenção do executivo
estadual de destruir o plano de carreira, implantado ao longo de anos, com
muita luta da categoria. Houve um acirramento dos ânimos entre governo do
estado e a categoria, ladeada por uma escalada de tensão. A greve aconteceu,
num primeiro momento, no mês de fevereiro, depois foi seguida por um breve
período de retorno aos trabalhos e novamente uma paralisação do movimento
grevista. De acordo com Bozza e Souza (2015, p. 175):
sonho parece cada vez mais distante. Quando poderemos ver nascer uma
sociedade onde os seres humanos não sejam minimizados à condição de
compradores de produtos efêmeros como se fossem essenciais? Será que
podemos sonhar ainda com uma escola que liberte os seus alunos de sua
condição de escravos felizes ou geradores das riquezas que serão
expropriadas pela classe dominante?
vai muito bem, obrigado.” E, de fato, em alguns momentos tem dito isso. O
presidente Fernando Henrique Cardoso durante a cerimônia de entrega do
prêmio nacional do Finep de inovação tecnológica fez a seguinte afirmação:
"Se a pessoa não consegue produzir, coitado, vai ser professor. Então fica a
angústia: se ele vai ter um nome na praça ou se ele vai dar aula a vida inteira e
repetir o que os outros fazem”.
será a mãe bastarda dessa nova sociedade onde uma a cada três pessoas
sabe ler, mas não é capaz de entender o sentido do que lê. O analfabetismo
funcional é o solo mais fértil para que pobres elejam políticos
intransigentemente comprometidos com os interesses dos ricos. Num mundo
onde muitos não sabem ler aquilo que escrevem, então, como poderão ler
criticamente a realidade social onde vivem?
(Elisée Reclus)
pessoas que não se enquadram nas regras ditadas por aqueles que, há
séculos, detém o poder econômico e político na sociedade capitalista.
(Pitágoras)
Vivemos num mundo cada vez mais cheio de medo. Há medo pra
tudo: medo de lugares fechados, medo do escuro, medo de perder o emprego,
medo de ladrão, medo de morrer, medo de polícia, medo de sair de casa e
medo de ficar em casa. A não ser que essa casa fique num condomínio
fechado. E há quem tenha medo que o medo das pessoas acabe. O medo
constrói grades que cerceiam e separam. Enquanto a esperança constrói
pontes. Mas, se olharmos direito, veremos que este é um mundo cada vez
mais abarrotado de grades e escasso de pontes. Estamos em um mundo feito
de grades nas prisões, nas fábricas, nas casas e nas escolas. Grades para
proteger, para afastar os outros, proibir o contato ou impedir que escapem.
Mas, nós não fomos feitos para caber entre grades, especialmente entre
grades construídas para domesticar, docilizar e padronizar pessoas. O discurso
“politicamente correto” das grades da escola pública tem sido há muito tempo
um crime contra os seus alunos, contra a originalidade e a dignidade das
crianças pobres.
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milhões com 15 ou mais anos de idade. O que equivale dizer que quase 10%
da população brasileira não sabe ler ou escrever.
Mas, na escola pública, nossas crianças não estão recebendo a vasta gama de
conhecimentos que lhe foi legado. Há um divórcio entre os interesses dos
alunos e os da escola pública, tal como ela se apresenta hoje. O que não
significa que os conteúdos escolares sejam alheios aos interesses da criança e
do jovem de hoje. Significa que a curiosidade e a imaginação, que definem tão
marcadamente a infância e a adolescência, não estão sendo devidamente
utilizadas como estratégia pedagógica para que os alunos descubram a relação
entre o conhecimento escolar e o mundo intangível que o espera.
educação física e língua portuguesa. Mas, não aprendem nada sobre gestão
pública ou sobre que regras de convívio social ele será obrigado a seguir na
vida adulta e nem quais direitos pode exigir. Parece que ouço, agora mesmo,
alguns colegas que do passado ainda me lançam olhares tortos e suas
resistentes ponderações às inovações: “lá vem ele de novo querendo trazer
mais serviço pra gente”. Ou ainda: “não temos tempo nem para trabalhar o
conteúdo, quanto mais para ficar inventando essas novidades”. Mas, são
justamente essas inovações que nos dão o prazer de ensinar e ver que os
alunos realmente aprenderam e nos devolvem nosso esforço sob a forma de
sorrisos de agradecimento.
Alguém há de dizer que há nisso tudo uma “boa dose de exagero”. Mas, pra
quem ainda é capaz de se indignar a cada vez que se comete algum tipo de
violência, abuso ou injustiça na escola, o exagero está justamente no
conformismo e resignação da grande maioria. Como referendo, vale recorrer
aqui à célebre frase de Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito
dos maus, mas o silêncio dos bons”. E quanto silencio é possível se ouvir dos
professores quando deveriam gritar contra a tirania dos maus!
Por mais que o discurso das leis seja aparentemente bom para
todos, a constatação de que ele pune os pobres e protege os ricos é
inexorável. E nisso não há nada de espantoso. Somente há o consentimento
medroso, tacanho e resignado do povo. Diz o velho ditado: “Para os amigos, o
benefício da lei e para os inimigos, o rigor da lei”. Diz o discurso legal: “Posse
de pequena quantidade de droga não configura crime de tráfico de
entorpecente, mas uso pessoal de substância ilícita”. Mas, para Rafael Braga
esse discurso legal não vale. Embora tenha sido com esse entendimento que a
1a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás concedeu, por
unanimidade, em 24/01/2014, Habeas Corpus a um turista francês e outro
austríaco, que foram presos em flagrante com aproximadamente 85 gramas de
maconha. Concomitantemente, em 08/04/2017, o empresário Breno Fernando
Solon Borges, de Mato Grosso do Sul, foi preso carregando 130 quilos de
Maconha, uma pistola nove milímetros e 199 munições de fuzil calibre 7,62, de
uso exclusivo das forças armadas. Breno Borges é filho da presidente do
Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul, a Desembargadora Tânia
Garcia Freitas Borges. O também Desembargador, Ruy Celso Barbosa
Florecence, concedeu liberdade a Breno, alegando que a mãe se ofereceu
para ser tutora do filho que seria internado em uma clínica médica para
tratamento de supostos problemas psicológicos.
contra o hospício e são recebidos pelo alienista com um discurso que bem
documenta a arrogância do poder científico presente neste conto:
(Orson Bean)
(SANTOS, apud ALVES, 2001) que nos ensina de forma sensível a trilha de
uma educação autorregulada:
O povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano, mas
os que o aconselham: os povos, as nações, toda a gente,
incluindo os camponeses e os lavradores, todos sabem os
nomes deles e os respectivos vícios; sobre eles lançam mil
ultrajes, mil vilanias, mil maldições. Todas as suas orações e
votos são contra eles. Todas as desgraças, todas as pestes,
todas as fomes lhes são atribuídas e, se às vezes,
exteriormente, lhes tributam algum respeito, não deixam de
amaldiçoá-lo no mais fundo do coração, têm por eles um horror
maior do que têm aos animais ferozes (p.30).
ensinava o aluno, que nada sabe. Por sua vez, as avaliações visavam
descobrir se o aluno se apropriara da “verdade” dita pelo professor. O
pensamento crítico, criativo e questionador estava banido. Afinal, para que
precisariam disso esses futuros trabalhadores braçais? Assim como também
estavam banidas a criatividade, a imaginação, a liberdade de comunicação e
de movimentação dentro da sala de aula. Os castigos físicos concedidos aos
alunos pelos professores, sob a forma de reguadas, puxões de orelha e
beliscões, dividiam lugar com a humilhação dos alunos fracos ou
indisciplinados. Não havia espaço para que os talentos pudessem aflorar. A
tarefa da escola pública, na verdade, era a de mitiga-los a um quase nada.
pelo meu primeiro dia de aula, como quem iria ganhar um maravilhoso
presente. Estava radiante com meus olhos pidonchos cheios de esperança.
Queria ver a vida que eu ainda não tinha visto. E vi. Não o que eu queria ver,
mas vi!
cabeça ou na nuca, gritava comigo, me pegava com força pelo braço e saia me
arrastando pela sala até o quadro negro onde me humilhava perante os alunos:
“olhem aqui, o Gian pensa que é um artista!”. Ao que se seguia um sonoro coro
de gargalhadas das demais crianças. Ela me chamava de imprestável, burro,
idiota, malcriado, ordinário, sem vergonha, preguiçoso, vagabundo e coisas do
tipo. Enfim, o que lhe viesse à boca. Só lhe faltavam palavrões, afinal, a tal
professora era evangélica. Uma típica pessoa de Deus. E, portanto, não falava
palavrões. Acho que foi assim que eu fui apresentado condignamente para a
hipocrisia do mundo adulto.
falei. No dia seguinte, pela manhã, minha tia, também professora, foi até a
escola reclamar. Estava bastante zangada. Contudo, no dia seguinte, após a
reunião com minha tia, a mesma professora ainda estava lá, na sala de aula à
minha espera depois do recreio. E foi até a minha carteira, se aproximou bem
do meu rosto e disse em voz bem alta: “eu puxei a sua orelha, Gian, eu bati em
você?” Fiquei com tanto medo que naquele momento respondi: “não!” E me
convenci por alguns instantes que ela não tinha feito nada daquilo. Que eu
tinha inventado, porque eu era algum tipo de criaturazinha maldosa disposta a
prejudicar os outros com minhas mentiras. Até que ela disse: “eu puxei sim,
mas sabe por quê? Porque você não faz nada! Você não vale nada! É
preguiçoso demais e nunca vai ser ninguém na vida”.
sabe o que a arte seria na minha vida se não fosse aquele encontro terrível que
tive na escola com aquela criatura tenebrosa que ousava se chamar de
professora. Poderia ter sido um artista bem sucedido? Se a escola não tivesse
rechaçado violentamente minha aptidão artística, minha criatividade, o que
poderia ter sido eu? A escola deveria valorizar a imaginação criativa da criança,
como um sonho, um brinquedo, que deve ser preservado, pois se é sonho, é
coisa delicada, vem do coração. Mas, a escola assassinou isso em mim. Assim
como deve ter assassinado outros tantos talentos em tantas outras crianças.
Naquela mesma escola. E em tantas outras escolas por esse Brasil afora. Por
esse mundo afora.
Hoje olho para trás e fico me perguntando: “quem poderá pagar por
isso?”. Ou mesmo: “existe algo que pague isso?” E qual seria mesmo a
indenização por uma vida toda perdida, torturada, um futuro anulado, um dom
acorrentado, um sonho de criança desfeito em tenra idade, uma existência
frustrada e sofrida? A escola assassinou um pedaço meu, boa parte de minha
autoestima, de minha autonomia e de minha criatividade. Os outros alunos,
percebendo minha timidez acentuada, me perseguiam e me batiam sem motivo
algum. Como costumeiramente alguns alunos fazem com os “diferentes”. Fui
um dos alvos prediletos de bullying, antes mesmo que esse termo tivesse sido
introduzido em terras tupiniquins.
Quem não puder conhecer a liberdade em sua nunca irá ter uma
ideia criativa e original. Jamais irá se tornar uma pessoa autentica e livre.
Quando ficam adultas, nossas crianças já perderam muito de sua capacidade
criativa. E se tornaram pessoas mecânicas, inseguras, frustradas e
amarguradas. Em seu decantado papel de recepcionar e preparar aqueles que
nascem para que vivam felizes neste mundo, a escola pública brasileira tem
sido irresponsavelmente catastrófica.
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avistar, com uma devida distância de segurança, todos esses anos em que fui
aluno e professor da escola pública do estado do Paraná. E mergulhei
profundamente no drama humano que costumeiramente acomete as pessoas
confinadas em condições adversas. Aposentado desde 6 de fevereiro de 2015,
jamais consegui varrer do pensamento os tormentos daqueles anos difíceis,
embora tenha pregado boas peças na loucura que mais de uma vez tentou me
fazer seu refém.
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existir. 12.ed. Papirus. Campinas, 2001.
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