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É verdade que temos colhido; mas por


que apodreceram e enegreceram os
nossos frutos? Que foi que na última
noite caiu da má lua? O nosso trabalho
foi inútil; o nosso vinho tornou-se
veneno; o mau olhado amareleceu-nos
os campos e os corações. Secamos de
todo, e se caísse fogo em cima de nós,
as nossas cinzas voariam em pó. Sim;
cansamos o próprio fogo. Todas as
fontes secaram para nós, e o mar
retirou-se. Todos os solos se querem
abrir, mas os abismos não nos querem
tragar! “Ó! Aonde haverá ainda um mar
em que uma pessoa se possa afogar?”
Assim a nossa queixa ressoa através
dos pântanos. Na verdade, já nos
fatigamos demais para morrer; agora
continuamos a viver acordados em
abóbadas funerárias!

(Friedrich Nietzsche)
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ÍNDICE
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Introdução................................................................................................................p. 04

Capítulo 1 – O derradeiro dia de aula.................................................................p. 11

Capítulo 2 – O demônio do meio dia.....................................................................p. 28

Capítulo 3 – Mal estar docente e o mito do “bom professor” ...........................p. 41

Capítulo 4 - Por que é que o professor ainda vai à escola? ..............................p. 52

Capítulo 5 – A educação estragada.......................................................................p. 63

Capítulo 6 – A sociedade estragada......................................................................p. 75

Capítulo 7 – Civilização ou anticivilização? ........................................................p. 92

Capítulo 8 – Sísifo professor................................................................................p. 119

Capítulo 9 – Educação Física é isso mesmo? ...................................................p. 130

Capítulo 10 – Para que serve a escola? .............................................................p. 142

Capítulo 11 – A hipocrisia escolar.......................................................................p. 160

Capítulo 12 – Na escola o verbo luto é substantivo..........................................p. 175

Capítulo 13 – Escola: castelo da liberdade ou baluarte da tirania? ................p. 190

Capítulo 14 - Escolas ou prisões? ......................................................................p. 200

Capítulo 15 - A pedagogia psicanalítica..............................................................p. 218

Capítulo 16 – Meu primeiro ano na escola..........................................................p. 236

Para não concluir..................................................................................................p. 260

REFERENCIAS.......................................................................................................p. 266

Introdução
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Não é sinal de saúde estar bem


ajustado a uma sociedade
profundamente doente.

(Krishnamurti)

Quando iremos olhar para outras


qualidades na escola como a criatividade
e a contribuição?

(Carlos Rodrigues Brandão)

É fácil imaginar o franzir de testas que opiniões como as da


epigrafe poderão causar. Mas, somente nas mentes obscuras, hipócritas e
conservadoras de boçais tiranos, adestrados por falsos valores morais e
religiosos. Valores criados por elites inescrupulosas que se acostumaram a
prosperar graças à derrota alheia. E que foram adotados, há muito tempo, por
pessoas do povo.

Como não é difícil imaginar os talvez poucos, mas seguramente,


enfezados professores que lerão o que aqui escrevo sobre o quinhão que cabe
à categoria nos descaminhos tomados pela educação pública brasileira. Muitos
olhares míopes, obtusos e ressentidos acharão nestas palavras uma prova de
cruel e desumano desprezo pela sorte dos desvalidos educadores. Porém,
antes de esgotarmos totalmente as possibilidades sobre esta questão, quero
perguntar a esses desvalidos colegas: por que razões trabalham em escolas
públicas e matriculam seus filhos em escolas particulares? Eis aqui uma
esquizofrenia pedagógica bastante curiosa. Se os próprios educadores não
confiam na qualidade das escolas em que trabalham, quem poderia confiar?
Embora sobre isso seja bom e aconselhável não falar nada, este livro se
propõe a fazer justamente isso: trazer a público o que há de proscrito nas
discussões sobre a categoria dos professores. A parte que lhes cabe nos
paupérrimos resultados da escola pública brasileira.

Decerto, muito do que vou aqui relatar haverá de ser rechaçado


por aqueles que se aquartelaram em torno da secularizada e perniciosa crença
de que, no que concerne às coisas do pobre e bom professor é sempre
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aconselhável e piedoso calar. Contudo, não farei calar em mim os


acontecimentos que tive por infortúnio presenciar em uma vida dedicada à
escola pública no estado do Paraná. Pretendo espraiar minhas memórias o
quanto mais, para que as pessoas possam conhecer um pouco daquilo que as
regras hipócritas do convívio social, como de costume, teimam em ocultar. Não
que eu não gostasse de lecionar. Gostava. E ainda gosto, como numa espécie
de duplo-vínculo psicológico que há de ter me deixado sequelas medonhas e
inalteráveis. Portanto, é bom quando se pode debruçar sobre o passado e
ajustar contas com ele.

Após uma vida envolta nas coisas da educação pude perceber


que a escola pública nunca gostou de mim. Mas, com a devida vênia, eu
também não gosto dela. O fato de não gostarmos um do outro não possui a
menor importância. É irrelevante. O que importa é perceber que há uma escola
de que se fala e outra de que se sofre nesse país. Muito tem sido dito,
piedosamente, sobre a primeira. Mas, eu quero falar agora da escola pública
de que se sofre. Nela, gastei, lastimosamente, meus melhores anos assistindo
à penosa procissão das tantas almas miseráveis que ali se amontoam, se
mesclam e se consomem. Uma escola que obscurece seu significado,
submersa na calamidade que se agigantou e se agiganta ainda sob o
escrupuloso e dissimulado véu com o qual a hipocrisia docente teima em
ocultar sua derrota. Dos tantos que ali estiveram, estudando ou lecionando, os
que podem pausar um minuto e escutar honestamente os ecos da escola,
ouvirão neles seu próprio grito de desespero e protesto.

Contudo, até mesmo estes, como inquisidores terríveis que veem


heresia em tudo para quanto dirijam seu olhar, certamente verão no que aqui
irei dizer exagero, desonestidade e mentira. Porque, como herdeiros bastardos
do horrível rastro de dor, aniquilação e fogueiras santas da tradição cristalizada
num medievo indiscutível, assim o desejarão ver. Sustento, todavia, que a
heresia possui um papel positivo para o esclarecimento, porque, para além do
dogma, se preocupa com a busca pela verdade. A libertação do domínio do
sagrado, na negação doutrinal, possibilita cutucar falsidades. E, para mim,
esgueirar-me dos cantos escuros onde perduram mumificados aqueles muitos
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que pretendem, ainda, vangloriar-se como professores de uma escola pública


que ocupa, num país rico, “onde se plantando tudo dá”, os últimos lugares nos
rankings mundiais da educação escolar.

De que vale a nossa sagrada tradição pedagógica se puder servir


somente para a manutenção da desonesta crença na santidade do professor
da escola pública? Crença em que nos acanalhamos, sem o amor devido à
educação, sem o amor ao aluno, sem o amor a nós mesmos. Sobre isso,
escreverei, provavelmente, asperezas, mas do que é feita a vida senão delas?
Inútil seria para todos nós negá-las, contorná-las, envolvê-las em panos
perfumados ou coloca-las em esquifes de cristal. De certo que é, todavia,
indispensável um mínimo de tranquilidade, que nos afaste das miseriazinhas
vingativas que nos envenenam a alma. Ademais, quando podemos enxergar
luz à distância é que emergimos lentamente daquele mundo horrível de
angústias e amarguras onde estávamos mortos. E agora, nesta reconstituição
de fatos velhos, vamos ressuscitando. Todavia, queremos ainda um pouco
mais: queremos saber as causas desses fatos, desenterrando pacientemente
das páginas esquecidas e empoeiradas do passado as condições que os
cunharam. Da necessidade veementíssima de recompor os acontecimentos
vividos, não para achincalha-los, mas para verificar se podemos finalmente
fazer as pazes com eles, surge de novo o ambiente, as figuras, tremulamente,
ganham relevo e, finalmente, completam-se à nossa frente como que
ressuscitadas.

Hoje tenho um corpo velho demais, cansado demais, pesado


demais, doente demais para ajustar contas com alguém ou alguma coisa.
Então, restam-me as palavras, enquanto ainda as tenho. Que elas possam
descortinar os rituais cotidianos que celebram na escola o pensamento, o
sentimento e a prática dos educadores, aquartelados na penumbra
dissimulada, falaciosa e paradoxal da sala de aula, num todo absolutamente
abarrotado de erros. Obviamente, a retórica mais comum e menos aceitável
daqueles que erram é aquela de quem diz nunca ter errado. E, nesse aspecto
particular, a retórica da categoria docente da escola pública brasileira, que
jamais teve a dignidade de fazer uma "mea culpa" em relação à desgraça que
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se abateu sobre ela, embora não diga, tem muito a dizer. Faço minhas, então,
as suas vezes.

É, muito provavelmente, pertinente que se esclareça, antes de


continuarmos, o título deste livro: “Blasfêmia! A escola de que não se fala”. Ele
é uma estilização do livro “A família de que se fala e a família de que se sofre”,
do psiquiatra José Ângelo Gaiarsa. Nesse livro, o autor fala sobre o necessário
amor às crianças e de sua indignação com o que tem sido feito com elas em
nome de uma autoproclamada “boa educação”. Com efeito, de conformidade
com o que considera o autor, há na família uma educação em vigor que castra
nas crianças, desde muito cedo, a espontaneidade de seus gestos e anseios
mais naturais, saudáveis e profundos, especialmente aqueles associados ao
prazer (GAIARSA, 2015). Essa educação familiar encontra sua continuidade
perfeita na escola pública, onde adultos “normopatas”, ensimesmados em sua
sacro-santificada autoridade de professor, têm eliminado cotidianamente as
melhores qualidades de crianças e jovens, como a autonomia, a curiosidade, a
criticidade, a versatilidade, a atitude relacional e a capacidade de sentir prazer.

No cerne dessa malfadada “educação”, a intervenção maléfica


dos adultos, segundo a assertiva de Gaiarsa, transforma crianças plenas de
possibilidades em indivíduos frustrados, preconceituosos e mesquinhos. Como
diz o autor, "a finalidade primeira de qualquer civilização amante da vida é
empenhar-se por inteiro para que a geração seguinte seja definitivamente
melhor, oferecendo a todo ser humano recém-nascido tudo de que ele precisa
e todos de que precisa". Contudo, um olhar que se debruce sobre os caminhos
percorridos pela humanidade nos dá conta dos desastres que têm sido feitos
às crianças, ao longo do tempo, por uma civilidade oca e inconsistente que lhes
nega tudo o que precisam e todos de que precisam. Ao contrário do que
costumamos crer, a família brasileira “está, deveras, muito longe de ser o
melhor lugar do mundo para o desenvolvimento dos seres humanos”
(GAIARSA, 2015, p. 06). E eu diria que a escola pública também.

Tal como existe uma família de que se fala e uma família de que
se sofre, há de fato também uma escola pública de que se fala e uma escola
pública de que se sofre. Na verdade as duas são uma só. Mas, na escola de
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que se fala o professor está acima do bem e do mal. É uma categoria intocável,
sacro santificada, digna de pena, respeito e não de críticas. Na escola de que
se fala as críticas são todas dirigidas aos parcos salários do professor e do
funcionário, à apatia e indisciplina dos alunos, à ausência dos pais e às
insidiosas políticas públicas para a educação. A escola de que se sofre é tudo
isso também. Nela prosperam parcos salários do professor e do funcionário,
apatia e indisciplina dos alunos, ausência dos pais e insidiosas políticas
públicas para a educação. Mas, a escola de que se sofre é, especialmente, o
lugar onde professores conservadores e desinteressados ensinam assuntos
pouco interessantes, de modo desinteressante a alunos desinteressados. É o
lugar onde a criança, que aprende se movendo, se vê obrigada - a partir dos
seis anos de vida - a ocupar uma carteira monótona durante quatro horas
diárias, com severa restrição de movimento e de comunicação. Do conflito
entre as exigências da escola e as necessidades da criança pode ser que
nasça boa parte das constantes cenas de violência vividas ou presenciadas por
professores no ambiente escolar. Pode ser que nasça, para os professores,
grande parte das dificuldades atuais de se “ensinar”. E, para os alunos, de
viver.

As ideias revolucionárias para a educação, que um dia inspiraram


tantos jovens a procurar a profissão do magistério, com o tempo acabam sendo
vistas como meras alegorias alambicadas, pueris e nefelibatas. Os professores,
depois de alguns anos na profissão, se acostumam a aceitar que suas ideias
de transformação e liberdade são meras fantasias retóricas. Portanto, são
evitadas pela grande maioria, embora eles não digam isso. E se inqueridos,
provavelmente não admitam. E, assim, os professores vão levando uma
profissão de faz de conta, hipócrita, despolitizada, sem sentido, indolente e
conservadora. E conservadora, sobretudo, no que diz respeito ao
esvaziamento das greves da categoria por melhores condições de trabalho.
Aliás, este é mais um assunto maldito, sobre o qual também é aconselhável
calar.

Como é aconselhável calar também sobre o fato de que, em


pleno século XXI, o Brasil ainda luta contra o analfabetismo. Ou pelo menos diz
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que luta. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios


Contínua (PNAD Contínua), de 2019, 11,3 milhões de brasileiros com 15 anos
de idade ou mais são analfabetos. O que significa que 6,6% da população
brasileira não sabe ler e escrever. Mas o Brasil não luta – e nem diz que luta -
contra o desleixo do professor em sala de aula ou contra a ineficácia das
chamadas “tendências pedagógicas crítico-transformadoras”, que até agora
não transformaram absolutamente nada. Há, obviamente, um interesse do
sistema pelo fracasso da escola pública brasileira. Com efeito, a maioria
esmagadora dos professores que conheci citam autores socialistas em seus
PTDs (Planos de Trabalho Docente), mas não sabem - e não querem saber - o
que significa o socialismo. Tampouco conhecem os fundamentos do modo de
produção capitalista da sociedade onde vivem. E os que um dia conheceram já
se esqueceram. E não querem mais saber. São traidores da educação. E de si
mesmos. E têm produzido uma espécie de terra arrasada na escola pública,
em que nada de bom pode crescer porque impera o conformismo. Mas, nem
todos os gatos são pardos. Uma diminuta parcela dos professores se afirma na
escola como educadores que pensam e colocam em prática estratégias
pedagógicas revolucionárias. Infelizmente, são poucos e desprestigiados.

Absurdamente, já ouvi de muitos professores a afirmação


orgulhosa de que não gostam de ler!... Não sabem eles – e nem querem saber
– que sua ignorância é corresponsável pelos péssimos resultados da escola
pública em nosso país. Resultados que nos convidam à resignação diante da
constatação inexorável de que, em terras tupiniquins, no afã de uma educação
escolar pública de qualidade, toda procura é vã. Na escola pública de que se
sofre há um beco pedagógico sem saída onde coexistem a quase total
ausência de bibliotecas atualizadas, laboratórios equipados, computadores
funcionais, auditórios preparados, professores motivados e até papel higiênico.
Além disso, a não repetência dos alunos nas séries iniciais marcou
irremediavelmente o nosso sistema público de ensino. Assim, aos poucos, a
escola pública tornou-se alvo de zombarias, as mais excêntricas.

Toda essa situação levou o professor a adoecer, inflacionando as


filas dos consultórios psicológicos e psiquiátricos. Enquanto isso, as pessoas
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que se apiedam diante dos penosos salários dos professores sempre acabam
votando em políticos que sequer conjecturam a possibilidade remota de
melhorar a escola pública ou conceder um aumento salarial para os
professores. Porque o fracasso escolar, no final das contas, é um projeto
profundamente exitoso. No que concerne às questões da escola pública, há
sempre uma hipocrisia pairando no ar. Mas, este é também um assunto
maldito; uma blasfêmia!

Capítulo 1 – O derradeiro dia de aula


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[...] julgo que ainda não me restabeleci


completamente. Das visões que me
perseguiam naquelas noites compridas
umas sombras permanecem, sombras
que se misturam à realidade e me
produzem calafrios.

(Graciliano Ramos)

A noite anterior havia sido maravilhosa, daquelas noites que só


podem ter sido criadas pelos deuses para os jovens e seus amores. O céu
estava limpo de nuvens e cheio de estrelas, lembrando o céu noturno das
roças onde nenhuma luz urbana lhes ofusca o brilho soberano. Tão lindo que
seria impossível se pensar que abaixo dele pudessem existir as tantas
malvadezas humanas. Quando o mundo estiver unido na busca de belos céus
como aquele, ao invés de lutando por dinheiro e poder, oxalá, então, nossa
sociedade poderá, alcançar alguma forma pela qual valha realmente viver.

Da madrugada não tive, todavia, o canto de nenhum galo. De


manhã cedo, nenhum passarinho. Nenhuma fruta madura no pé me esperava
lá fora no quintal para ser colhida. Somente as bactérias da água potável,
abarrotada de cloro, flúor e outras porcarias. E talvez, depois do portão, na rua,
a hidrofobia de algum cão vagabundo e sarnento, que haverá de ser menos
terrível que a hidrofobia das tantas pessoas que se amontoam pelas casas,
presas em seus próprios dilemas, estrada afora, cidade adentro.

Toda manhã eu era atormentado pela constatação terrível e


inevitável de que eu estava só em minha quixotesca busca por céus estrelados,
assim como estava muito só na busca por uma sociedade igualitária e justa. Na
escola, no que concerne a sonhos e utopias pedagógicas libertadoras, estava
também abandonado por todos, cercado por personagens caprichosos,
hipócritas, autoritários e irritadiços, o que me impedia de tecer boas relações
com outros professores. Mas, que necessidade tinha eu daquelas relações?
Por três décadas caminhei errante por cidades e escolas, mergulhado numa
profunda melancolia sem poder compreender adequadamente a associação
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que o destino sempre impôs entre meu infortúnio pessoal e os descaminhos


tomados pela escola pública em nosso país.

A parte da manhã tinha se acabado. O almoço tinha sido engolido


às pressas. Subi na moto e percorri o caminho monótono que levava àquela
escola. Pelas ruas um turbilhão de casas e alguns rostos dentro delas. Há
sempre uma mulher ou um velho varrendo folhas nas calçadas. Quase
conheço algumas dessas vidas, de tanto as ver pelo caminho. Tanto quanto
quase reconheço as tantas casas como velhas e íntimas amigas. Estabeleci
uma amizade virtual com um velho senhor que lá se encontra sentado em sua
cadeira na varanda de uma casa velha de madeira, sempre à mesma hora,
parecendo imprimir sua personalidade na casa enquanto vela o dia.

Pelo caminho as casas me olhavam com suas janelas e até


pareciam me cumprimentar, como, aliás, gostaria que as pessoas fizessem:
“bom dia”; “como vai?”. Sempre tive entre as casas que me levavam ao
trabalho algumas preferidas. Jamais esquecerei uma bela casinha azul e
branca, pequena, modesta, com jardim florido, que me olhava orgulhosa entre
as outras. Um bando de casas mais abastadas que ela, mas que pareciam
reclamar do mau gosto decorativo de seus moradores. Eles jamais saberiam
apreciar um céu estrelado e reluzente!

No alto da rua estava a escola, pendurada no topo de todas


aquelas casas. A criançada para lá se dirigia uniformizada, com suas mochilas
nas costas. Algumas crianças em algazarra festiva como comemorando um
sabe-se lá o que. Trabalhei em muitas escolas públicas em alguns municípios
do Paraná. Mas, naquele colégio eu estava trabalhando somente desde o início
daquele ano de 2014. Era uma escola de periferia, com fachada simples e
pobre, mas bem arrumadinha, como de costume vemos representadas as
escolas públicas. Nela se conseguia perceber o esforço quase sacerdotal de
quem ali trabalhou para mantê-la apresentável com os poucos recursos que o
Estado rico destina habitualmente às escolas pobres.

Subi o meio fio da calçada com a motocicleta e logo transpus o


pequeno portão de grades desbotadas que dava entrada à escola para os
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professores, funcionários e visitantes. Os alunos entravam por um portão


maior, rua abaixo. Desci por uma pequena calçada estreita, virei à esquerda e
estacionei a moto, como de hábito, na pequena calçada marrom-terra-claro, de
contra piso desempenado, logo abaixo da janela da sala da direção. Três
meses antes, a vice-diretora me havia dito, quando comecei a trabalhar
naquela escola, que ali minha moto ficaria mais protegida de uma eventual
malvadeza dos alunos. A despeito do que dissera, já na primeira semana de
aula, riscaram o tanque. Em que pese o fato de que eu tinha um bom
relacionamento com os alunos. Fico pensando o que teriam feito se assim não
o fosse. Ou se eu a tivesse deixado no estacionamento fora da escola. Ou se
eu fosse um professor de língua portuguesa, matemática, física, química e não
de educação física. Os alunos costumam associar a disciplina ao professor e
quanto mais teórica, mais repudiada. E os seus professores juntos com ela. Em
sua maioria, os alunos preferem os professores de educação física. Seguido da
disciplina de artes. Lembrei-me agora de quando atearam fogo no carro de
uma professora de língua portuguesa numa outra escola pública... O privilégio
que minha disciplina me dava sempre me pareceu injusto para com os colegas
das demais disciplinas.

Era quinta feira, 13 horas e uns minutos do dia 08 de maio de


2014. Ainda não sabia, mas aquele seria meu último dia de trabalho como
professor. Eu acabara de chegar ao colégio. Se bem que naquele dia já tinha
lecionado cinco aulas ali, no período da manhã. Por um instante fitei meu rosto
refletido no vidro da janela da sala da diretoria. E me olhei de cima abaixo,
como que buscando me reconhecer. Cheguei velho, gordo e doente àquele dia
de aula após ter labutado por 27 árduos e longos anos num sufocante, tedioso
e apático sistema escolar que prima pela hipocrisia profissional, indolência
pedagógica e pasmaceira intelectual. Subitamente, meus pensamentos foram
interrompidos por uma jovem professora que chegara naquele instante:

— Boa tarde, professor.

— Boa tarde, professora... Quer dizer, fora o que está ruim, o


resto está bom.
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Deixei escapar um ligeiro sorriso de meia boca como que


impondo algum humor às palavras que me saíram lentas e solenes, com um
tom profundo de convicção e verdade, digno dos profetas da Torá.
Costumeiramente, havia entre os professores um esforço por tecer um dito
engraçado sobre as asperezas da vida antes de se começar o trabalho. Como
que tripudiando de nosso próprio infortúnio profissional.

A professora entrou antes de mim e logo estávamos numa


pequenina sala que, não sei por que, insistia em me remeter à ideia de uma
antecâmara de alguma pirâmide egípcia. Nunca estive perto de uma pirâmide
egípcia. Na saleta, de cor branca encardida, logo se via à direita uma diminuta
janela com grades que descortinavam não somente o interior da secretaria,
mas ainda o caráter vocacionado da escola para o controle e confinamento.
Por dentro das grades sempre estava resignadamente sentada à janela, qual
carcereira lânguida, uma sisuda funcionária que primava pela impessoalidade e
que tinha por função apertar o botão que abria a porta aos professores e
funcionários que chegavam para o trabalho. Desta sala passava-se por uma
porta a um corredor de onde se chegava, pela direita, à sala dos professores e,
pela esquerda, à máquina de registro de ponto. Ao se chegar ao corredor, à
frente estava a sala das pedagogas e à esquerda, antes da máquina de livro
ponto, a sala da direção. Ao final do corredor, pela esquerda, estava uma
pequena sala onde se instalara a biblioteca da escola. Por um minuto, fitei a
biblioteca e me dei conta de que o porte diminuto daquela sala atestava a não
menos diminuta importância que a leitura tem tido, efetivamente, no interior da
escola.

As paredes do corredor estavam enfeitadas com telas de pintura a


óleo de 20 por 30 cm. Os melhores trabalhos dos alunos da disciplina de
educação artística. Eram, na verdade, muito malsucedidas tentativas de
reproduzir quadros de grandes mestres da pintura, de onde meus olhos
destacavam uma tenebrosa Monaliza pendurada na parede de tinta desbotada
do corredor. Aliás, o corredor estava cheio de alunos, embora sua permanência
naquele local fosse proibida. Ao menos assim dizia uma placa vistosa
pendurada na parede: “É proibida a permanência de alunos nesse local”. Mas,
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em geral, ninguém chamava sua atenção por isso. Não havia sequer um
convite para que os alunos deixassem o local, destinado apenas ao transito de
professores e funcionários. E quando, raro, alguém os corrigia por estarem ali
parecia mais um comentário retórico.

Da extremidade direita do corredor se podia ouvir alto o confuso e


prolongado som das conversas na sala dos professores. Sem que se pudesse,
contudo, identificar uma só frase, por pequena que fosse. Fez-me lembrar do
mesmo burburinho - tão repudiado pelos professores - que de costume
acontece entre os alunos e toma conta das salas de aula. André Lapierre nos
ensina que “quando todos falam ao mesmo tempo é sinal de que ninguém quer
ouvir ninguém”. Estranho isso acontecer na escola, que deveria se distinguir
como lócus privilegiado de educação e conhecimento. Na verdade, Lapierre,
que idealizou, na década de 1970, sua “Psicomotricidade Relacional” - uma
prática educativa que permitiria alunos expressarem e superarem seus conflitos
relacionais através da brincadeira - ficaria pasmo com o que acontece hoje na
escola pública brasileira.

Professores sempre reclamam bastante uns aos outros do


falatório dos alunos em sala. Especialmente durante o intervalo, na sala dos
professores, um lugar onde se reclama mais dos alunos do que da situação
insuportável em que se encontra a escola pública. Ah, se as paredes das salas
dos professores pudessem falar!... Bem, aí adensariam ainda mais a eterna
muvuca desatinada. Já tinha visto esse mesmo burburinho entre os
professores em todas as escolas onde estive. Nos conselhos de classe, nas
reuniões pedagógicas de início de ano, nos cursos de capacitação, nos
intervalos entre as aulas. Bastava o povo se reunir e se conhecer. Ouvindo o
falatório geral por um instante pensei: “como podem se comunicar desse jeito
ou exigir de seus alunos algum silêncio na sala de aula, se eles mesmos não o
fazem?” Na verdade, não podiam. E, de fato, a maioria deles não exigia mais
silencio de seus alunos. Os professores tradicionais, idólatras do autoritarismo
do professor, sucumbiram aos novos tempos. Outros, sob a égide de alguma
moderna pedagogia psicologizada - que nunca leram -, se acostumaram a
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deixar o aluno fazer o que quer, quando quer, como quer, onde quer e se
quiser.

Penso, contudo, que a satisfação na escola deva estar vinculada


ao aprendizado dos conteúdos: o aluno deve entrar numa aula e ouvir algo
interessante que não sabia antes. O prazer da descoberta deve ser anunciado
aos ouvidos desses pupilos para que se apaixonem pelo conhecimento e não
ao contrário. Esse conteúdo que a escola tem por objetivo passar ao aluno será
tanto mais interessante quanto faça parte de seu cotidiano, que possa ser
aplicado à sua vida prática, que esteja contextualizado. Dar sentido ao
conteúdo aproxima o conteúdo científico do conhecimento trazido pelo aluno
em sua experiência de vida. O conteúdo fica mais interessante e evidencia ao
aluno seu lugar na ciência e no processo crítico, transformador, histórico, social
e cultural do mundo real em que vive.

Ao ensinar as crianças sobre música, por exemplo, penso que


não deve se iniciar com as notas, pautas e partituras. E sim com uma melodia
gostosa, seguida de uma demonstração dos instrumentos que fazem a música.
A beleza deve vir antes. A descoberta deve ser prazerosa. Escolas não devem
ser gaiolas, mas asas. Há escolas onde os pássaros desaprendam a voar,
como bem disse Rubem Alves. Pássaros engaiolados estão sob controle. Ao
invés de saírem pela porta da gaiola, ainda que ela esteja entreaberta, irão
preferir decorar suas grades com bugigangas coloridas. Precisam, todavia,
saber que para voar é necessário fazer também algum esforço. Por isso, é
fundamental que o professor que ensina a ler ensine também a necessidade de
se comportar.

Quando o aprendizado não é prazeroso, o professor tem de


recorrer ao autoritarismo. É impossível aprender sem que haja alguma ordem
na sala de aula. O autoritarismo mantém o aluno dependente da autoridade e
poda sua liberdade de voar, de fazer e escolher por si mesmo. No extremo
oposto do autoritarismo está a licenciosidade, que leva o aluno a uma
dependência unilateral dos próprios impulsos e desejos. Concordo com Paulo
Freire, quando ele diz que a autoridade do professor em sala de aula não deve
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ser autoritária nem licenciosa, mas democrática, onde aluno e professor se


empenham em realizar o seguinte sonho fundamental:

O de persuadir ou convencer a liberdade de que vá construindo


consigo mesma, em si mesma, com materiais que, embora
vindo de fora de si, sejam reelaborados por ela, a sua
autonomia. É com ela, a autonomia, penosamente construindo-
se, que a liberdade vai preenchendo o “espaço” antes
“habitado” por sua dependência. Sua autonomia que se funda
na responsabilidade que vai sendo assumida. (FREIRE, 1997,
p. 105).

No intrincado conjunto de práticas disciplinares no qual a escola


se encontra, surge, imponente, o relógio ponto dos professores e funcionários.
Ele pertence claramente aos métodos que possibilitam ao poder instituído na
escola vigiar e punir os trabalhadores, tal como acontece na fábrica, na
indústria, na loja. Seu objetivo é vigiar e punir os trabalhadores da escola para
que aprendam também a vigiar e punir seus alunos. Os ponteiros do relógio se
tornam senhores de toda a rotina. Por séculos, os padres nos mosteiros foram
os grandes especialistas nesse controle minucioso do ritmo das atividades
diárias. Hoje encontramos esse controle em quase todas as instituições: banco
de horas, relógio ponto, sinal de entrada, sinal da hora do almoço, sinal de
saída. O trabalhador deve ficar docilmente concentrado, puro, firme,
disciplinado. Deve agir com desembaraço através das várias atividades de seu
dia. Nada de ociosidade, nada de distrações, nada de vagabundagem! O
tempo penetra no corpo do trabalhador, e com ele todos os controles
cautelosos do poder. O tempo é precioso, por isso deve ser usado sem
desperdício. Tempo é dinheiro (FOUCAULT, 2012, p. 146). Por isso no banco
de horas há um acordo de compensação em que as horas excedentes
trabalhadas não são mais pagas, mas compensadas pela diminuição da
jornada em outro dia.

Há nisso uma indiscutível relação de poder. O objetivo é garantir a


submissão constante do outro a uma relação de docilidade-utilidade. O poder
disciplinar atua manipulando-os e controlando-os, produzindo seus
comportamentos. Segundo Foucault:

O indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e se abate o


poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade,
19

fixado a si mesmo, é o produto de uma relação que se exerce


sobre os corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças
(FOUCAULT, 1979, p. 161-162).

À esquerda de quem chegava ao corredor, estava o tal relógio de


registro de ponto dos professores e funcionários. Aos pedidos de “com licença”
cheguei, afinal, à tal máquina. Havia sempre uma pequena fila ali. Todos
deveriam bater seu cartão antes e após cada período trabalhado. A presença
da máquina de ponto na escola me incomodava porque remetia à ideia de
empresa onde os trabalhadores são controlados pela máquina. Mas, também
porque me lembrava das propostas de se privatizar todo o sistema público de
ensino brasileiro, conforme os princípios de uma sociedade que se identifica
cada vez mais com a desestatização dos serviços públicos, obedecendo aos
princípios neoliberais do “Estado Mínimo”. Nessa perspectiva, a educação do
povo é transformada num produto privado, numa mercadoria ainda mais à
mercê da ideologia da classe dominante. Onde a escola deve ser organizada e
administrada como uma empresa produtora de mão-de-obra qualificada,
obediente e barata, submetida, portanto, às necessidades do mercado. E onde
os direitos e necessidades dos trabalhadores são sumariamente guilhotinados.

Desde que Frederico Guilherme I (Friedrich Wilhelm I), rei da


Prússia, instituiu, em de 28 de Outubro de 1717, a obrigatoriedade do ensino
primário em seu país, obrigando crianças de 5 a 12 anos a permanecerem na
escola, sabemos que a educação escolar tem efeitos econômicos poderosos
sobre o grosso da sociedade. O sistema público de ensino surgiu e se
consolidou, naqueles idos, com a função de disciplinar e docilizar toda a gente
do povo e assim sufocar possíveis rebeliões e conformar o povo diante de seu
infortúnio social e econômico. Mais tarde, esse sistema público de ensino pôde
ser utilizado com proveitos na Inglaterra do século XIX para qualificar a mão-
de-obra do antigo camponês, transformado em obediente operário pela
Revolução Industrial. Desde esse período que os governos vêm sustentando a
ideia da educação escolar como tributária da sociedade capitalista.

Se essa não é uma ideia nova, tampouco é uma ideia


abandonada. Possui uma atualidade impressionante. Documenta isso, por
exemplo, a ideia de "capital humano": os estudos devem ser orientados para a
20

aquisição de competências, cuja finalidade última é a produção econômica, o


mercado de trabalho. É o que se chama de "nova ordem educativa mundial”,
onde a escola está adaptada ao capitalismo mundial. A escola pública é tida
como uma empresa a serviço do capital. Uma escola para pobre dirigida
segundo as necessidades dos ricos. Portanto, gerida pelo capital e para o
capital. Claro que a forma de se acumular capital mudou muito nesses últimos
anos, sobretudo após a mundialização grandiosa dos novos meios de
comunicação, como o telefone celular e a internet. Portanto, a forma de se
“educar” dentro da escola também teve de sofrer alguns ajustes e remendos.
Contudo, a essência capitalista da sociedade - e da escola em seu interior -
continua sendo a mesma: explorar economicamente a grande massa de
trabalhadores para que uma minoria abastada se preserve no poder.

O fato é que aquela velha máquina de relógio ponto naquela


velha escola pública me deixava inquieto e desconfortável. A presença de um
signo pujante do poder capitalista no ambiente escolar descortinava a função
social da escola pública, de controle, confinamento, disciplina, docilização e
subserviência. Ou nas palavras de Foucault, de vigiar para controlar e punir.
Parece-me oportuno esse comentário de um filósofo cujo empreendimento
despertou tantos ecos nos estudos sobre a escola. Embora Foucault não tenha
tratado mais diretamente de questões relativas à relação trabalho X capital,
suas ideias são provocadoras para um debate educacional que se coloque
para além dos parangolés do discurso oficial e que possa abarcar ainda a
análise de Marx. Com a devida vênia dos seguidores desses pensadores, que
erigiram diferentes empreendimentos, despertando tantos ecos não menos
diferentes ao longo do tempo. Ecos hoje aparentemente tão distantes do ponto
em que eles mesmos se mantinham, e que podem ver na reconciliação teórica
dessas tradições também traição. Ainda que lhes prestemos a devida
homenagem, reconhecidamente muito supérflua de nossos pensamentos.

Homenagear um pensador com a visita de outros pode parecer a


seus seguidores mais ortodoxos dizer que ele não se sustenta sem o
comparecimento dos outros. Contudo, essas páginas são feitas mesmo de
blasfêmias, onde procuramos fugir do tradicional tipo de homenagem que
21

idolatra o homenageado. Não hesitaremos em explorar na fecundidade da obra


de autores como Foucault, Reich, Bourdieu, Adorno, Freud e Marx, ferramentas
conceituais que possam nos ajudar a descortinar a função social da escola
pública hoje. Lembremo-nos da frase “Eu não sou marxista” escrita por Marx
em carta a seu genro Paul Lafargue. Vale lembrar que talvez Marx não tivesse
aprovado de todo a Revolução Bolchevique e, provavelmente, muito menos o
marxismo de Stalin. Certamente, Jesus Cristo não teria aprovado a inquisição
europeia. E eu especulo se Foucault seria foucaultiano, Keynes seria
keynesiano ou Freud seria freudiano.

Além disso, vale lembrar ainda a relevância dos estudos de


Foucault para o entendimento da escola enquanto instituição. Ele tratou
diretamente das escolas e das ideias pedagógicas na Idade Moderna. Pela
primeira vez mostrou que, antes de reproduzir, a escola moderna produziu um
determinado tipo de sociedade. Sociedade esta que, inequivocamente, não é
outra senão a sociedade capitalista, que rotula, controla, vigia e oprime, tal
como faz a escola. Há, então, na escola, os testes, as notas, as aprovações e
reprovações, os sinais para a entrada e saída, a rotina. E há também o “bom
aluno”, o “aluno indisciplinado”, o “aluno problema”. Vale dizer que o “mal
aluno” logo é associado ao “vagabundo”, ou seja, aquele que não trabalha.
Observem que tanto o vagabundo como o mal aluno devem ser punidos e
isolados. Para não contagiarem os outros com suas “pestes” comportamentais.
E para que sejam corrigidos e reintegrados ao convívio dos já adestrados.
Porque caso sua subversão não seja corrigida pela escola terá de ser mais
tarde pela prisão.

A escola apaga pelo silenciamento a essência de cada aluno. Sob


o patrocínio do capitalismo, ela converte infância e juventude em idades
improdutivas que devem ser logo superadas em nome de uma cultura do
trabalho e do consumo. Através dela, se impõe um “jogo” de interesses,
malícias, disciplina, controle e poder em substituição à curiosidade crítica, à
autonomia e à convivência afetuosa, lúdica, desinteressada e envolvente. Aliás,
a apologia do controle é o esforço derradeiro das ideologias hegemônicas no
sentido de revogar na escola a autonomia da criança e do adolescente, cujo
22

objetivo, proclamado à exaustão, seria “desenvolver o aluno integralmente”. Até


aqui não se conseguiu responder adequadamente o que isso significa.

As relações de poder e dominação, inerentes ao sistema


capitalista, têm como elemento fundamental as relações de poder disciplinar,
descritas por Foucault. Relações de poder estratégicas para o capitalismo, que
se caracteriza como um modo de produção que produz tudo de que necessita
em sociedade, inclusive a escola. Nela, há um multifacetado sistema de
controle indispensável à extração da mais-valia, porque procura pelo
ajustamento dos indivíduos ao processo social de exploração e subordinação
exigido pelo capitalismo. "A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos
econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos
de obediência)" (FOUCAULT, 2012, p. 133-134). A função da escola no modo
de produção capitalista, portanto, é a de fabricar alunos dóceis, ou seja, úteis e
obedientes aos donos das empresas. Alunos que na vida adulta serão
trabalhadores que receberão, resignados, altas broncas e baixos salários. Ela,
a escola, torna-se, assim, um elemento essencial para a acumulação do
capital. Funciona como uma das instituições sociais de sequestro, como o
hospital, o quartel e a prisão, que retiram compulsoriamente os indivíduos de
seu espaço social e os internam, durante um período longo, para moldar suas
condutas, disciplinar seus comportamentos, formatar aquilo que pensam e
controlar suas atitudes.

Todas as crianças, na nossa sociedade, estão condenadas ao


cárcere da escola. O controle de suas penas está nas mãos dos professores,
que as vigiam, fazem relatórios sobre seu comportamento e determinam o
tamanho de sua punição sob a forma de notas e reprovações. O poder
capitalista se inscreve poderosamente nas crianças de modo que quando
completam o período escolar, ao final do ensino médio, já com seus 18 anos de
idade, estão prontas para o mercado de trabalho. Dóceis, subservientes e
qualificadas com a quantia mínima de conhecimento necessária à exploração
de sua mão de obra. A escola pública deveria se preocupar em insubordinar os
alunos, em transforma-los em seres humanos capazes de gerir
autonomamente seus próprios destinos. Mas, não o faz. Não se importa com
23

isso. Na verdade reprova essa atitude. Mas, também sobre isso não é
aconselhável falar. É uma blasfêmia.

Quando a memória me traz aquela velha escola em que lecionei


meu último dia de aula, percebo que ela se parece com todas as outras,
repetidora do sistema capitalista, onde as diferenças devem ser apagadas. A
começar pelo uso de uniformes - que igualam. Neste ponto, parece relevante
recorrer a Bourdieu:

Para que sejam desfavorecidos os mais favorecidos, é


necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos
conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de
transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades
culturais entre as crianças das diferentes classes sociais.
Tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam
eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema
escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais
diante da cultura (BOURDIEU, 1998a, p. 53).

Também havia lá, naquela escola, livros de chamada, livros atas,


livros de ocorrência, boletins de notas. Mas, lá não havia o livro ponto. Ele
havia sido substituído pelo tal relógio ponto. E os professores e funcionários
conviviam ingênua e desavisadamente com esta substituição. Que não era
fortuita. Ainda que a direção daquele estabelecimento de ensino não
entendesse e não aceitasse isso, aquele relógio ponto era um elo, na escola,
de um projeto político que não é nem ingênuo, nem desavisado. Aquela
inofensiva máquina de registro ponto dos professores e funcionários era, na
verdade, uma engrenagem de empresa dentro de uma instituição social
destinada à educação do povo pobre. Mais um dos métodos tradicionais de
controle que veio se somar naquela escola à restrição severa da comunicação
e do movimento, à presença de grades, à autoridade do professor, aos muros
altos, aos portões fechados a cadeado. O relógio ponto era somente uma ilhota
em meio ao vasto oceano de meios e elementos coercitivos e docilizadores que
tem a escola pública, tanto para o aluno como para o professor e o funcionário.
Se os alunos são levados a aprender na escola pela ameaça, os professores e
funcionários são levados a trabalhar sob a tutela do medo, do controle e da
coerção. Como em toda fábrica, indústria ou loja.
24

Naquela escola, tributária da fábrica, o controle era exercido de


forma rígida: o controle do tempo e do espaço, a vigilância contínua, as
eventuais punições e o registro constante do trabalho do professor, do
funcionário e do aluno. O operário estava ali transformado num apêndice da
máquina, onde o relógio ponto era somente um dos ingredientes insípidos
desta sopa didático-pedagógica bastante indigesta. O uso da máquina não é
neutro. O relógio ponto não é neutro. O controle não é neutro. No rumo desta
reflexão, Marx nos diz que:

[...] a tecnologia sequestra a capacidade total do trabalhador, a


redução do tempo de trabalho pela produtividade é uma
abstração murchada [...] faz do trabalhador um autômato
dotado de vida. [...] o trabalhador tornou-se um componente
vivo da oficina (MARX, 2005, p. 33).

Marx nunca teve em seus textos a educação como objeto central.


Especialmente, se a compararmos com o tratamento que deu à crítica à
economia política.

Em verdade, nem Marx nem Engels, pelo fato de não terem


produzido um estudo mais analítico abordando especificamente
a problemática da educação em seu todo, se referiram à
questão, a não ser através de ideias esparsas, espalhadas ao
longo de toda sua obra, sem a intenção de organizá-las de
modo a constituírem um conjunto coerente e ordenado, em
resumo, uma teoria (NOGUEIRA, 1990, p. 51).

Contudo, o parco desenvolvimento da crítica à educação e à


escola em seus escritos não diminui a importância de se pensar a educação a
partir de Marx. Porque mesmo uma análise que se faça, no bojo de outros
temas, de trechos de Marx sobre a educação, revela questões fundamentais
para pensarmos a escola pública brasileira hoje. Como no seguinte trecho de
Trabalho Assalariado e Capital, de 1847:

Outra proposta muita apreciada pelos burgueses é a da


‘instrução’, mais especialmente do ‘ensino industrial’ geral. Nós
não chamaremos a atenção para a contradição absurda que
reside no fato de que a indústria moderna substitui cada vez
mais o trabalho complexo pelo trabalho simples. [...] O real
sentido da instrução para os economistas filantropos é o
seguinte: ensinar a cada operário o maior número possível de
ramos industriais, de tal modo que, se ele for expulso de um
ramo pela introdução de uma nova máquina ou por uma
25

modificação na divisão de trabalho, possa se empregar em


outro lugar o mais facilmente possível (MARX, 1975, p. 70-71).

A crítica de Marx se direciona, obviamente, ao modelo de


educação escolar pensada pela burguesia para o proletariado. Educação que
tem assumido a função de preparar os trabalhadores para que possam realizar
a reprodução do modo de produção capitalista. Em O Capital, Marx (de 1867)
nos adverte para o fato de que a perda do conhecimento do todo sobre o
processo de produção é fundamental para a construção capitalista. E continua:

É um produto da divisão manufatureira do trabalho se opor-lhes


as forças intelectuais do processo material de produção como
propriedade alheia e poder que os domina. Esse processo de
dissociação começa na cooperação simples, em que o
capitalista representa em face dos trabalhadores individuais a
unidade e a vontade do corpo social de trabalho. O processo
desenvolve-se na manufatura, que mutila o trabalhador,
convertendo-o em parcial. Ele se completa na grande indústria,
que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de
produção e a força a servir ao capital. (Marx, 1988, p. 283-4).

A escola, tal qual a máquina de relógio ponto em seu interior, não


é politicamente neutra. O relógio ponto faz a dominação do trabalhador. O
professor faz a dominação do aluno. O aluno, inequivocamente, será mais
tarde o trabalhador tanto mais útil quanto mais ajustado pela escola às
necessidades da sociedade de classes. E na idade adulta, se tiver sorte,
conseguirá um emprego onde receberá altas broncas e baixos salários. Não
valorizará jamais as florestas densas e perfumadas pelo orvalho da manhã.
Não terá nenhuma quixotesca busca por céus estrelados. Assim como nunca
fará parte da luta por uma sociedade igualitária e justa. Nenhum sopro de
liberdade cruzará o seu destino. Jamais se isolará como o fez Thoreau, por
exemplo, para descobrir quem era. Ou como Diógenes que se fez mendigo em
sua busca por autonomia e distanciamento das luxurias, mentiras e vícios da
civilidade. Ou como o libertado que percebe a verdade para além da alegoria
da caverna de Platão. Sua vida será como um guarda-chuva, ou o que sobra
dele quando se lhe retiram o pano. Um objeto distante de si mesmo na vida
aligeirada da cidade, onde tudo tem de funcionar no tempo previsto.

Não deixará de passar de um lugar de confinamento e controle a


outro. Primeiro na vida pegajosa da família, depois na escola, depois na
26

caserna, depois na fábrica, talvez em algum orfanato, talvez em algum


albergue, de tempos em tempos nos hospitais, eventualmente na prisão, que é
o meio de controle mais efetivo, confinamento e punição por excelência, e,
finalmente, prisioneiro de si mesmo e defensor de seus algozes sociais. Um ser
humano vulgar, mentiroso, traidor, delator, perseguidor, que recusa o amor, o
conhecimento da realidade onde existe e o autoconhecimento como forma de
libertação de sua condição medíocre. Um autêntico Zé Ninguém, tal como nos
apresentou Wilhelm Reich.

A presença do relógio ponto no setor privado documenta a velha


luta entre trabalho e capital. Mas, na escola pública, distante do lucro, somente
reforça os mecanismos de controle dos trabalhadores. Não somente do horário,
mas de controle político e da atitude. É só uma forma “mais moderna” de
manter sob o cabresto os funcionários e professores. As mesmas velhas
práticas rudes, truculentas e predatórias da Idade Média. Ou dos primeiros
tempos da Revolução Industrial. Só que revestidas de um falacioso caráter
moral atualizadíssimo: para se coibir o absentismo e os atrasos, promovendo
isonomia entre os trabalhadores. Quem for contra, quem se atrasar, quem faltar
ao trabalho, quem não honrar o relógio ponto, será contra a paridade entre
todos e será caçado não somente pelo diretor da escola, mas pelos próprios
colegas. A pergunta que fica recai sobre os próprios trabalhadores da
educação: sabem eles desse ardil? A ignorância não parece combinar com
aquilo que se espera de trabalhadores na educação. Mas, se eles sabem o que
fazem eles? Qual a sua reação? O que fazem os sindicatos? Nada.
Absolutamente nada. Os que são contra logo se calam na mais desiludida
apatia, pois a maioria apoia a presença deste instrumento simbólico da fábrica
capitalista dentro da escola pública. Algum indígena de alguma tribo distante da
civilização poderá gritar, ao ver pela primeira vez alunos, professores e
funcionários numa escola pública brasileira: “acreditei ver condenados…”.

Naquela escola, saindo da tal máquina de relógio ponto seguia-se


por um corredor em cuja extremidade oposta estava a porta que dava entrada
à sala dos professores. Esse corredor estava cheio de gente indo e vindo,
cruzando, descruzando. Antes de chegar à sala dos professores, passava-se
27

pelos banheiros onde as professoras mais jovens disputavam os últimos


minutos retocando a maquiagem antes do sinal de início de aula. Uma, mais
velha, escova rápido os dentes em frente o espelho, o que desperta a atenção
de um sem número de olhares disfarçados. Às vezes passavam um pincel nos
cílios e depois faziam suaves contornos nos olhos. Depois umas passavam
uma espécie de pó de pirlimpimpim no rosto. Nunca vi uma que deixasse de
afagar os próprios cabelos como que à procura por um penteado ideal. E,
finalmente, passavam - todas - o batom nos lábios. Cada uma com sua cor e
tom. Havia ali uma infinidade de gestos desconhecidos pela mecanização do
ato cotidiano, embora estivessem inseridos nele. Gestos que não foram
apagados pela rotina, pela redução da vida ao ato quase mecânico de escorar
os dentes. Havia ali um ritual feminino bastante prazeroso, como se
dançassem na chuva.

Havia ali um borrão na confusa fronteira entre a vaidade feminina


e a profissão de educar, presente como pequenas anedotas da vida. Passei a
atribuir extraordinária importância e curiosidade ao ritual de beleza das
professoras, talvez porque percebesse algo cuja formulação teórica encontraria
mais tarde, num comentário de Deleuze sobre Nietzsche:

[...] é preciso atingir um ponto secreto em que a mesma coisa é


anedota da vida e aforismo do pensamento. É como o sentido
que, em uma de suas faces, se atribui a estados da vida e, na
outra, insiste nas proposições do pensamento. Há aí
dimensões, horas e lugares, zonas glaciais ou tórridas, nunca
moderadas, toda a geografia exótica que caracteriza um modo
de pensar, mas também um estilo de vida (DELEUSE, 2006, p.
132).

Não raro, a invasão do banheiro masculino ao lado por essas


professoras denunciava a vaidade feminina, sempre presente e bem-vinda
dentro da escola. Mas, denunciava também a presença do costume nacional
de se deixar tudo para a última hora. Se pudermos um dia falar numa
“identidade cultural brasileira”, talvez possamos começar por esse costume que
– de norte a sul do país - toma conta da conduta de homens, mulheres e
crianças: o deixar para depois. Há alguns dias eu li um estudo muito
interessante, feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), que dizia que 52%
admitiram deixar atividades necessárias para a última hora. Curiosamente, o
28

estudo da FGV apontou como a principal causa para a enrolação a falta de


tempo.

No início de cada período de trabalho, quem chegava à escola


sempre passava pelos banheiros, rumo à sala dos professores. Todavia, mas
não me aventurava a usar o banheiro masculino, pois, mais de duas décadas e
meia como professor e cinco casamentos me ensinaram que não há muitas
coisas mais desastrosas nessa vida do que interromper uma mulher no ritual
de se maquiar. E, então, quando era preciso, usava o banheiro dos alunos, no
pátio da escola. O que criava e mantinha com eles uma atmosfera de empatia
e proximidade bastante agradável. Sempre me agradou muito. Embora ouvisse
ponderações de meus colegas de trabalho – inclusive dos mais novos - quanto
a supostos terríveis perigos de se aproximar dos alunos. Teorias que em 26
anos de trabalho nunca pude comprovar. Pelo contrário. A verdade é que as
modas pedagógicas vêm e vão, mas a hipocrisia do povo na escola
permanece. Inabalável.

A gradativa feminização do magistério associou-se não só ao


rebaixamento salarial da categoria, mas ainda às péssimas condições de
trabalho na escola pública. Durante o período da ditadura militar o magistério
se viu assolado por uma ampliação vertiginosa do ensino público exigido pela
urbanização vigorosa e radical da vida social. Os movimentos migratórios que
inflacionaram as cidades responderam ao processo de esvaziamento da
população rural, expulsa pelo grande capital para os centros urbanos. Esse
processo foi exigido pela maquinização do campo projetada e patrocinada
pelos EUA para transformar o Brasil em seu celeiro e fazenda. A inflação das
cidades inflacionou a educação escolar. A resposta foi a construção rápida de
um sem número de escolas precárias para atender as novas demandas por
educação do ex-camponês transformado em operário. Como efeito colateral, a
oficialização do magistério leigo, os altos índices de reprovação e evasão
escolar, a debilidade do aprendizado, e os baixos salários dos profissionais da
educação marcaram indelevelmente os destinos da escola pública brasileira.

Marchando em paralelo se desenvolveu o chamado “mal estar


docente”, expressão construída pelo pesquisador espanhol José Manuel
29

Esteve para designar as formas de esgotamento físico, emocional e mental que


vêm afetando os professores, comumente enfeixadas sob a denominação de
síndrome de burnout. A âncora de todo esses acontecimentos se vê finalmente
estacionada numa desortografia agramatical que parece reconduzir, na escola,
o conhecimento à condição medieval do segrego, um privilégio concedido a um
pequeno grupo de abastados. Como herança nefasta daqueles idos, temos
hoje um quadro de desencanto muitas vezes encarado como irreversível por
aqueles que trabalham na escola pública. De acordo com José Manuel Esteve,
a migração do professor para outras profissões e o absenteísmo, que são as
faltas ao trabalho, “tem como última opção um gesto de sinceridade: o
abandono real da profissão docente” (ESTEVE, 1992, p. 80). Um último gesto,
construído ao largo de uma longa e penosa jornada profissional, que exige
destemor, ousadia e muita força de vontade; que exige a superação de todas
as inseguranças, preconceitos e medos.

Vale dizer, no contrapelo da feminização do magistério, que a


atividade docente no Brasil sempre esteve atrelada ao universo masculino. Foi
iniciada pelos jesuítas, entre 1549 e 1579, que, centenas de anos após sua
achegada aqui foram expulsos pelo Marquês de Pombal, pois aqueles clérigos
combatiam o tratamento predatório dado pela coroa portuguesa aos indígenas
(SECO; AMARAL, 2006, p.05). Depois, foram homens ainda a se ocuparem,
com mais frequência, das “aulas régias” no Brasil, que foram as primeiras
formas de ensino público laico no Reino de Portugal e em suas colônias. Com
o êxodo rural, vultosas quantias populacionais inflacionaram as cidades. Eram
antigos camponeses, transformados à força da industrialização em operários,
mormente a partir da década de 1970. Esses novos operários necessitavam de
uma nova educação na cidade. A expansão gradativa do acesso à educação
escolar pública e gratuita não foi acompanhada da destinação de recursos
econômicos capazes de suprir as novas demandas. Quem mais sofreu com
isso, obviamente, foi esse novo aluno, para quem bastava, já naqueles tempos
sombrios, somente aprender a ler e a escrever, além de rudimentos de
aritmética, em que pese a presença de outras disciplinas na grade curricular,
como física, química, história e geografia, entre outras. Para a maioria absoluta
30

dos alunos, que não chegam ao ensino médio, a presença dessas demais
disciplinas parece meramente retórica.

Não só do machismo vive a presença hegemônica da mulher na


escola. É certo que nossa sociedade é ainda bastante patriarcal e
conservadora. E nela, se o homem não assume mais, de fato, o papel de
principal mantenedor das despesas domésticas, ainda assume esse papel
perante o imaginário popular. Como é certo também que com a diminuição dos
salários dos professores, os professores homens migraram para profissões
mais rentáveis. Dos que ficaram na profissão, muitos adoeceram e/ou tiveram
que lidar com preconceitos tais como a homofobia, ou seja, a ideia de que se é
professor é gay; a ideia de que o homem é incapaz de lidar com crianças, uma
função tradicionalmente atribuída à mãe; a ideia de que por ser homem, o
sujeito é grosseiro, indelicado e autoritário; a ideia de que a educação escolar
se trata de um trabalho feminino; o medo de que um professor possa submeter
crianças à pedofilia ou ao assédio sexual; e, finalmente, a consternada
consideração de que a docência é um ofício pouco rentável e não adequado
aos homens.

Quando o professor é bissexual, transexual, gay ou lésbica o


problema é ainda maior. Existe na escola pública um cultivado silenciamento
em relação à homossexualidade, às pessoas homossexuais, transexuais, aos
seus modos de ser e de viver. É um silêncio que diz muito. Somente se pode
ouvi-lo após algumas décadas de trabalho. Ou quando se é homossexual. Esse
silêncio produz e reproduz ideias, sentimentos e posturas que contestam
papéis sociais distantes daqueles consagrados pelas normas e regras
tradicionais de convívio social. Dessa forma, uma espécie de código de
conduta moral incentiva obstinada e ostensivamente, de forma taciturna, que
se pense e se aja de maneira a silenciar, marginalizar e estigmatizar a
homossexualidade na escola. O ambiente escolar deveria ser um espaço
humanizador, que potencializasse as habilidades pessoais respeitando as
diferenças e que preparasse crianças e jovens para o autogerenciamento e a
liberdade. Mas, não respeita as diferenças e nem reconhece nelas as
qualidades que nos fazem seres humanos originais, únicos e profundos,
31

independente das diferenças encontradas em cada um. Infelizmente! Ainda que


não assuma o que faz. Jamais assumirá!... Mas, também sobre esse assunto,
evita-se falar na escola. Essa é mais uma das tantas blasfêmias que a escola
não quer ouvir em suas salas e corredores.

Já próximo à entrada da sala dos professores voltei a sentir


aquele velho calafrio. Um medo repentino seguido de um arrepio nas costas,
pela coluna vertebral. Contrastando com o clima quente do dia, uma ou duas
gotas de suor frio apressaram-se em escorrer pela minha testa. Sensação
semelhante àquelas que vinham me acompanhando nos últimos anos na
escola. Se me olhassem de perto naquele momento conheceriam o meu pavor,
o desespero apavorado na minha alma. Um pobre ser esmagado, impotente,
avizinhado da loucura. Por um instante pensei: “Como um lugar que tanto me
inspirou um dia tornou-se tão tenebroso diante dos meus olhos?” Seja como
for, eu sabia que meus colegas não atentavam para essas ninharias,
preocupados que estavam em uniformizar a tudo e a todos. Talvez eles fossem
felizes em sua alienação letárgica e inconsciência hipócrita. Mas, seríamos
todos grãos triturados pelo mesmo moinho do sistema: uns sem poder fugir,
uns sem se dar conta, outros sem querer; mas todos triturados pelo sistema.
Sem que ninguém ouse saber se iremos resistir ou se seremos pulverizados
pela moenda. Uns dizendo não e outros dizendo sim, mas todos os grãos
marchando na escola pública inexoravelmente para o moinho impiedoso.

Aquele martírio, aquele suplicio dos condenados, para tomar de


empréstimo as palavras de Foucault, que as consciências dos professores
mais jovens ali não podiam ainda alcançar, habituadas às claridades idealistas
da pouca idade, era em tudo marcado pela desgraça, horror, pessimismo e
assombro! Não havia naqueles sentimentos nenhuma esperança de paz,
consolo ou mitigação das penas. Era uma dor que nada podia amenizar, uma
guerra interior sem trégua, sem tranquilidade, sem bandeiras brancas! Não
havia céu possível, nenhuma luz, nenhum perfume de rosas ou flores na
natureza, nenhum conforto ou esperança, nenhum lugar para onde fugir. Só a
loucura de quem chegara ali com a consciência chicoteada pelo remorso
inclemente de não ter conseguido realizar o que fora idealizado pela sua
32

própria juventude subversiva e revolucionária. O calabouço sepulcral do próprio


fracasso. Por não ter conseguido salvar os alunos. Por não ter conseguido
amenizar sua dor ou preparar-lhes um destino melhor. O que havia ali, de pé
comigo, de companheira, era apenas uma alma atormentada, solitária tal como
um Quixote, e que já não podia mais chorar, cansada de blasfemar contra os
dragões do sistema que insistiam em se travestir de moinhos.

Entrei, com o espírito inconformado e o corpo um pouco tremulo


pela porta que me conduziria à hipocrisia terrível de mais um dia morno e
infértil de trabalho. Olhei com desgosto aquela sala em que se achavam
pessoas exibindo na cara sua disciplina: professor de português, professora de
geografia, professora de matemática, professora de artes, pedagoga, diretora...
Súbito, um aluno entreabriu a porta e metendo a cara dentro da sala dos
professores deu um sorriso e largou um comentário à toa, querendo se fazer
percebido. Por detrás dele três ou quatro outros alunos se amontoavam e se
empurravam, como querendo também o seu quinhão. A muvuca desses alunos
continuou por alguns instantes, como que pedindo, implorando, uma atenção,
qualquer que fosse. Talvez um pito que reconhecesse ali sua presença. Porque
mesmo o afago negativo de uma bronca seria melhor que o deserto do nada ao
que, provavelmente, estavam acostumados em casa. Logo, levaram uma
bronca de uma professora e saíram momentaneamente satisfeitos, como que
ostentando um troféu.

Uma funcionária da escola veio até mim com um papel de não sei
lá o que. Disse que era para eu preencher e entregar sem falta até o final da
tarde na secretaria. Jamais o preenchi. Nem sei o que era. Sentei-me à mesa
da sala dos professores, a munheca emperrada, o pensamento teimando em
não estar ali, com o tal papel insistindo por ser preenchido. Uma professora
resmungou na porta com os alunos: “Dá licença, que o sinal ainda não bateu!”
E tacou-lhes com força a porta na cara. Eu poderia ter sentido pena dos
alunos, mas senti pena da porta, acostumada a essas sovas. Olhei em volta.
Uns professores remexiam em seus armários guarda-pertences, outros
vistoriavam seus livros de chamada; a maioria conversava tagarelamente.
Duas professoras soltavam gargalhadas enormes enquanto falavam sobre
33

alunos. Outros dois discutiam futebol e outras patifarias. Ouvi entre o turbilhão
de vozes um estrondoso “puta que pariu”. Mas, não havia entre eles uma feição
de alegria sincera, um cisco de vida. Nada!

A diretora tinha o ar solene de quem ostentava o poderio do cargo


conferido pelo voto dos colegas e ao mesmo tempo o conhecimento sobre tudo
o que está sendo falado. Ela sentava-se à mesa com um sorriso enigmático de
meia boca, como que pintado pelo próprio Da Vinci. Mas, de sua boca não saía
única palavra. Limitava-se a imitar, como que buscando por brilho e glória, o
silêncio imperativo dos sábios. O corpo pendido para traz e os pelancudos
braços cruzados saídos de um vestido florido por debaixo do jaleco branco
delatavam seu pouco interesse nas conversas. Embora as conversas pareciam
convergir todas para ela. De vez em quando mordiscava a tampa da caneta e
então olhava para o infinito com o queixo ligeiramente levantado. As costas
curvadas e os ombros arqueados denunciavam naquele velho corpo o cansaço
pelos anos dedicados a uma profissão de faz de conta, sem sentido. Como se
estivesse entregue por ter carregado por tempo demais um fardo
demasiadamente pesado. Aquela velha professora não sabia quase nada das
grandes pedagogias libertárias. Nada, além do nome de uns poucos
pedagogos que tentaram revolucionar a escola com suas ideias libertárias,
donde se destacava, vez ou outra, um sonoro: “Ah, porque Paulo Freire dizia...”
O uso libertino e inconsequente do nome do grande educador só maculava
Paulo Freire. Não sabia e nem queria saber quem foram Proudhon, Bakunin,
Marx, Reich. Não saberia dizer quais eram os fundamentos da sociedade
onde vivia. Nem que existiram pedagogos libertários como Luria, Leontiev,
Pistrak, Vera Schmidt, Paul Robin, Ferrer i Guàrdia. Alexander Neill, Anysio
Teixeira.

Naquela sala eu aguardava quieto, calado. E os minutos logo


viraram horas. Na escola o tempo parecia me detestar. No afã de dissuadi-lo
em seu intento contra mim, tento adivinhar os professores que não irão para a
sala de aula naquele dia e os que ficarão na sala dos professores, em hora
atividade. A maioria dos que estão em sua hora atividade com certeza irão
consumir seu tempo fuxicando e preguiçando, sem ler uma linha de um livro,
34

sem corrigir uma prova ou rabiscar um plano de aula. Finalmente, identifiquei


quem não iria para a sala de aula. E ao ver que eram muitos, encolhi-me como
um rato assustado. Pensei em ir até a rua fumar um cigarro. Dei-me conta de
que não daria mais tempo. Desisti. Um cigarro a menos, mais alguns segundos
de vida. Mas, viver pra quê? E, afinal, o que são alguns segundos? De
qualquer forma, não daria mais tempo de fumar.

Apesar de trabalhar em meio a uma multidão de pessoas, me


sentia só e desamparado. Um estranho no ninho, exilado pelos colegas. Esse
sentimento era o prognóstico assertivo do abandono completo com que eles
iriam me presentear depois da escola. Como se a aposentadoria pusesse fim
não somente à profissão, mas à própria vida. Dos professores que como eu
ficaram na escola após os primeiros quinze anos de trabalho, muitos acabaram
viciados numa espécie de solidão de que a escola, paradoxalmente, é fecunda.
Aquilo que os estadunidenses chamam de workaholic, numa tradução livre,
“viciados em trabalho”. São as pessoas comuns de que nos fala Wilhelm Reich
em seu “Escuta Zé Ninguém”. Pessoas que carregam muita dor, sofrimento e
revolta. Que homenageiam seus inimigos e perseguem seus amigos.
Incapazes de lutar numa greve por uma escola melhor. Pessoas que quando
conquistam um cargo na escola utilizam o poder desse cargo de forma ainda
mais cruel que a concedida pelo Estado aos profissionais da escola pública.
Assim viciados, os professores buscam em seu trabalho na escola pública
morna, sem graça, hipócrita e medíocre um apanágio para os males de sua
existência social morna, sem graça, hipócrita e medíocre.

Aumentam a quantidade do seu trabalho e diminuem


sensivelmente a qualidade dele. O professor workaholic almoça na escola; leva
sempre trabalho para casa; é o primeiro a chegar e o último a sair; quase não
tem tempo para si próprio ou para a família; não consegue dormir porque fica
pensando no trabalho; sonha com o trabalho; chega em casa exausto; trabalha
mesmo doente; esquece as amizades; repudia as férias. Apesar dos fortes
sintomas de ser viciado em trabalho, negará sempre isso e dirá que é “apenas
um trabalhador que faz a sua parte como todos deveriam, aliás, fazer”. Sua
compulsão pelo trabalho o esgota e lhe retira as ultimas possibilidade de ser
35

um bom professor. Num mundo onde “o trabalho enobrece”, são eles os


queridinhos dos diretores. E dos núcleos de educação. Viciados no trabalho
são confundidos com profissionais dedicados, acabando por mascarar os
efeitos colaterais da sua verdadeira condição. São, em sua maioria, incapazes
de ler um livro, pensar um projeto pedagógico inovador ou aderir a uma greve.
Nunca faltam ao trabalho. E estarão lá lecionando com 40 graus de febre.

Havia naquela escola uma mesa ao centro da sala dos


professores, como em todas as escolas. Mas, embora não fosse uma mesa
pequena, nem todos conseguiam um lugar nela. Dos professores que não
conseguiram sentarem-se à mesa, uns sentaram-se num surrado sofá e outros
nas suas poltronas. Havia, ainda, uns sentados numas cadeiras de cozinha,
todas diferentes umas das outras, doadas pela comunidade. Um ou dois
professores sempre ficavam em pé. Enfim soou, como numa fábrica, a sirene
do sinal de entrada. Algumas professoras que saiam do banheiro passavam
rápidas pela sala dos professores e se dirigiam apressadamente para o pátio,
onde um gigantesco portão com grades de ferro lhes descortinava o corredor
que levava às salas de aula. Algumas falavam ainda alguma coisa ao celular.
Em que pese o fato de que celulares eram proibidos na escola. De fato, parece
que algumas regras daquela escola eram criadas unicamente para serem
quebradas. Ao sufrágio do sofisma, como de costume. No banheiro algumas
professoras dividiam ainda um grande espelho onde os últimos retoques não
tinham mais o esmero de quem chegara mais cedo, no horário. Outras
conversavam entre si. Mas, todas pareciam seguir o mesmo ritual, umas mais
rápidas, outras mais demoradas. E em todas as escolas. Com maior ou menor
dedicação. Naquela escola, em especial, a dedicação ao ritual do espelho era
um pouco maior. Em todos os períodos: de manhã, de tarde ou à noite. Como
que buscando por uma compensação de sei lá o que.

As professoras mais velhas usavam sempre um calçado mais


baixo. Nem todas. E não se detinham - ao que me recordo - à frente do espelho
do banheiro. Ao menos não tanto quanto as mais novas. De sorte que as mais
jovens não eram tantas. Na verdade, eram poucas. Como em todas as escolas
em que lecionei. O que, provavelmente, estava denunciando o abandono dos
36

jovens que buscam os cursos de graduação no magistério. E essas poucas, ao


saírem da frente do espelho logo desapareciam apressadamente por uma porta
na parte lateral da sala dos professores e seguiam rumo às salas de aula.
Usando sapatos altos ganhavam rápida e desengonçadamente o pátio da
escola rumo às salas de aula. E passavam pelo turbilhão de alunos que
corriam alegres até elas e gritavam numa algazarra infernal. O que profetizava
a algazarra que estava por se estender à sala de aula, deixando os pobres
professores num perigoso e estranho estado de medo e satisfação. Algum
psicólogo chamaria isso de duplo vínculo.

No meio das quinze ou vinte professoras seguiam sempre dois ou


três professores, por período. Às vezes um pouco mais. Creio que, nas escolas
onde estive lecionando, dois em cada dez professores eram homens. De
qualquer forma, o número de professoras foi sempre maior do que o dos
homens. Bem, nem sempre. Em meus primeiros anos, como professor, ouvia
dos companheiros mais velhos que noutras épocas essa razão era inversa:
havia muito mais homens lecionando do que mulheres. Isso quando os salários
eram melhores, mais dignos, respeitosos e convidativos. O papel social de
provedor atribuído ideologicamente aos homens os retirou do magistério na
medida em que os salários diminuíram. Mesmo numa sociedade onde muitas
mulheres assumem costumeiramente a responsabilidade pela manutenção da
economia familiar. Ser professor em nosso país tornou-se não apenas
economicamente desinteressante, mas socialmente vergonhoso. Eis aqui mais
uma blasfêmia sobre a qual é aconselhável não comentar.

Em direção às salas de aula, professores e professoras


empunhavam, como de costume, livros didáticos, cadernos e livros de registro
de chamada, como escudos de cavaleiros medievais rumo à guerra santa. Uns
conversam entre si, outros iam só e calados. Uns faziam cara feia e outros –
mais raros - esboçavam um tímido sorriso enquanto cumprimentam um e outro
aluno. Na maioria das vezes alguns alunos, quase sempre os menores, se
acercavam destes últimos, carregavam seus materiais e os acompanham no
trajeto até a sala de aula. No meio desta disforme massa de professores lá fui
eu, o professor gordo de educação física, qual uma ode ao paradoxo. Ouvi dos
37

alunos, muitas vezes, umas piadinhas sobre isso. Todavia, o que não
conseguia suportar, de forma alguma, eram os comentários às minhas costas
por parte dos colegas. Insinuações maldosas, as mais excêntricas. E somente
não eram mais comuns porque os professores aprenderam, aos poucos, a me
respeitar como uma espécie de intelectual entre eles. E porque os alunos, em
sua grande maioria, gostavam de mim e de minha forma de dar aula. Embora
não os levasse sempre para a quadra, nem os deixasse à solta para
perambular pelo pátio ou para jogar futebol (meninos) e vôlei (meninas). Aliás,
como acontecia entre os demais professores de educação física, salvo raras
exceções. Não só naquela escola, mas em todas aquelas em que trabalhei.

Se, na escola, os alunos não obedeciam às regras, tampouco o


faziam os professores. Aliás, desobedecer a regras parece ter se tornado uma
regra dentro e fora da escola. Não que eu defenda intransigentemente a
obediência às regras. Existem regras, estou certo disso, que foram feitas
unicamente para serem quebradas. Como aquela que diz que em briga de
marido e mulher ninguém mete a colher. Por causa dessa regra muita mulher
foi morta pelo marido. Mas, inversamente, o intransigente descumprimento das
regras de convívio em sociedade pode ser catastrófico. Imaginemos um
motorista dirigindo na contramão ou furando o sinal vermelho, ou parando na
faixa de acesso, dirigindo bêbado, não sinalizando antes de convergir, dirigindo
em alta velocidade, desrespeitando a sinalização ou estacionando em fila
dupla. Ou se os pilotos não obedecessem a seus planos de voo? Quantas
colisões! Os defensores mais acirrados das regras dirão que elas foram
inventadas para evitar conflitos, empurrões, esbarrões e colisões.
Provavelmente porque a história da humanidade tem sido a história de
conflitos, empurrões, esbarrões e colisões. Eu me satisfaço em acreditar que
as regras, embora sejam necessárias, quando não satisfazem a maioria das
pessoas às quais são aplicadas se tornam autoritárias. E devem, nessa
medida, ser cutucadas, derrubadas e destruídas. Jamais deve ser ensinado
aos alunos a desobedecer regras e sim derruba-las!

A escola, com todos os seus problemas, não é uma ilha na sociedade. E,


portanto, reflete o que acontece fora dela. Apesar de possuirmos um discurso
38

“civilizado”, nossas atitudes cotidianas estão totalmente descompromissadas com o


respeito devido ao outro. Se houve época em que preponderava entre nós o
constrangimento, hoje estacionamos em local proibido, “furamos” fila, usamos mal o
banheiro público, fumamos em locais fechados, jogamos coisas na rua. Desobedecemos
às regras que criamos porque temos uma cultura nacional egoísta, individualista que não
hesita em burlar as regras sociais de convivência para tirar vantagem. Macunaíma, o
herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, reflete este viés da alma brasileira, que
quer se dar bem ainda que seja em detrimento do outro.

Sei que alguns, encharcando-se de civilidade, me chamarão de


equivocado, outros de cético, louco, outros ainda de falso. Mas, a constatação
não é minha. Nem muito menos nova. Parece mesmo que o caráter do
brasileiro se resume em não ter caráter algum. Mário de Andrade nos
apresentou Macunaíma em 1928. Em recusa ao “caráter europeu”, como forma
de buscar por uma identidade nacional brasileira, o autor fazia com seu
personagem um retrato do povo brasileiro, tendo como pano de fundo a cultura
popular. Mas, Mário de Andrade não foi o primeiro a buscar em um
personagem seu a identidade do povo brasileiro. José de Alencar em “O
Guarani” idealizou o personagem Peri, índio de atitudes nobres, “civilizadas”,
com uma moral tributária dos antigos cavaleiros medievais europeus, um
“gentleman”. Não temo em dizer que, comparado a Peri, Macunaíma é o seu
oposto, bem mais brasileiro, bem menos europeu. Peri, o selvagem civilizado,
jamais poderia ser o espelho da identidade de nosso povo.

“Macunaíma”, emergindo do enorme acervo de termos da língua


tupi-guarani presentes no português falado por nós, significa "grande
malandro". E assim se comporta o personagem na história de Andrade: é
ingênuo e ao mesmo tempo mentiroso, corajoso e também covarde, sempre
camuflando sua maldade com uma piscadinha de olhos; um típico “malandro”.
Como estamos tão bem acostumados a ver nas salas de aula, especialmente
entre aqueles alunos que preferem se sentar nas últimas carteiras, o chamado
“fundão”. Mas, também, hoje, cada vez mais, entre os próprios professores,
que chegam a fazer de sua profissão uma profissão de faz de conta, fazendo
conta que ensinam enquanto os alunos fazem de conta que aprendem. Vale
39

lembrar que Carlos Alberto Gomes Chiarelli, advogado, professor e político


brasileiro, declarou, como Ministro da Educação do Brasil em 1991 que, no
Brasil, "os professores fingem que ensinam, os alunos fingem que aprendem e
o governo finge que controla".

Tornou-se comum dizer que a escola pública brasileira está em


crise. Mas, quem poderá dizer qual o quinhão de culpa sobre a desastrosa
situação da escola pública brasileira cabe a esse pacto da mediocridade onde
professor finge que ensina e aluno finge que aprende? Na verdade, professor e
aluno são elos de uma mesma corrente onde o aparente fracasso da escola
pública camufla um grande êxito. A escola pública brasileira não está em crise.
Nunca esteve. Ela cumpre deveras bem o papel que lhe cabe na sociedade. O
de reproduzir o status ontológico do sistema onde existe. Uma escola onde os
professores fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem faz parte
de uma engrenagem muito maior onde o objetivo é fazer perdurar a situação de
um mundo onde ricos constroem e mantem sua opulência e ostentação à custa

da miséria dos pobres.

Em que pesem os fatos fartamente documentados de uma escola


que aparentemente não deu certo, os professores parecem estar alienados
disso. Imunes ao sofrimento onde definham junto aos alunos e funcionários. O
centro do universo é o seu próprio umbigo. E desconhecem os fundamentos do
mundo onde vivem. Com efeito, professores de história, filosofia ou sociologia
não sabem, em sua maioria, o que significa modo de produção, mais-valia,
mais-valia relativa, capitalismo tardio, indústria cultural, globalização,
multiculturalismo ou pós-modernidade. E os professores de química, física,
língua portuguesa, matemática ou artes sabem menos ainda. São pessoas
alienadas e individualistas num mundo alienante e individualista. Escravos que
se sentem livres e felizes em sua liberdade aparente, embora estejam sempre
prontos a fazer o que o mercado de consumo espera que eles façam; enquanto
a moda e o consumismo tomam conta de suas tristes e infelizes existências.
Professores que representam magistralmente as penúrias de um mundo que
transformou o sofrimento em paisagem, invisibilizou o próximo e transformou a
corrupção em fatalidade: é assim mesmo e não há o que fazer.
40

Enquanto eu caminhava pelo pátio rumo à sala de aula, olhava


para os alunos, mas especialmente para os professores e sabia muito bem
quem eles eram e por que motivos a educação escolar do Brasil estava entre
os últimos lugares nos rankings mundiais. Os pais tinham sua parcela de culpa,
o governo também, mas eu descobrira recentemente que os professores
ostentavam um quinhão relativamente polpudo da miséria que assola a escola
pública brasileira. A hipocrisia era um vírus que tomara conta de todos os que
estavam envolvidos de algum modo com a escola. Existe mesmo um “faz de
conta” institucionalizado permeando a escola, como que retirado das páginas
de Monteiro Lobato: o professor faz de conta que ensina, o aluno faz de conta
que aprende e seus pais fazem de conta que nada sabem sobre isso. Quase
concordo com Carlos Chiarelli. Só que o governo não finge que controla coisa
alguma. Ele, de fato, controla tudo isso. Sabe muito bem o que está
acontecendo e quer que tudo continue como está. Talvez, um ministro de
governo não saiba, mas, seguramente, a máquina de governo com seus
antigos funcionários de alto escalão, sob a égide dos poderes capitalistas que
sustentam o sistema, sabe. A escola como uma velha prostituta, que, não
podendo mais ser o que um dia foi ou o que projetou para si mesma, hoje
sobrevive das mentiras e enganações que arranjou para viver.

Finalmente cheguei à minha sala de aula. Fiz a chamada. Os


meus alunos, como de costume, em silêncio sem que eu tivesse sequer ter
levantado minha voz. Fora da sala a algazarra era generalizada. Alunos em
gritos semelhantes aos de chimpanzés em disputa pelas fêmeas durante o
acasalamento. Professores aos berros. Pré-adolescentes fora das salas de
aula se esfregando pelos corredores, rindo alto, correndo e também gritando.
Professores gritando mais alto ainda que os alunos. Pareciam querer combater
fogo com fogo no afã de obter algum silencio para poderem fazer a chamada.
Outros se calavam resignadamente diante de uma bagunça que lhes devia
parecer impossível conter. Nada parecido com algo que se possa pensar para
uma escola.

Eu não tinha brigado, gritado ou ameaçado aluno algum. Não


precisava. Um dia também eu gritei, pensando que era este o único caminho,
41

mas o tempo me fez entender diferente e eu já não gritava mais com meus
alunos havia um bom tempo. Entrava em sala de aula e conversava com meus
alunos franca e honestamente. E salpicava o conteúdo com algumas piadas de
salão que tinham a ver com o que eu estava ensinando para que assim a aula
não ficasse tediosa e monótona. Nem para mim, nem para eles. Os alunos
gostavam muito de minhas aulas. Quando eu estava chegando ficava sempre
um batedor na porta à minha espera. De longe eu o via correndo para sua
carteira dizendo o professor ta chegando. E quando eu finalmente entrava
todos gritava: Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeee... Ao que eu sempre respondia com
algum gracejo, tal como:

— Ta bom, ta bom, já chega, eu sei que vocês são meus fãs, mas
agora vamos fazer a chamada.

Bastou. Faziam uma ou duas perguntas, as quais eu sempre


respondia. Gastava com isso não mais do que 10 minutos. As vezes cinco. A
média das escolas brasileiras é de 20 minutos até que o professor termine a
chamada. E eu sei que naquela escola de periferia pobre da cidade onde eu
nasci era bem mais que isso. Mas, nenhum aluno meu gritava. Tampouco eu.
Estava dando aula de história do movimento corporal. E fazia o conteúdo ser
interessante. Como um stand up comedy de interação com o público. Ou um
daqueles professores de cursinho que ganham rios de dinheiro se comparado
ao nosso parco salário na escola pública. Está aí, talvez, mais um motivo para
o fracasso escolar. Os melhores professores foram para escolas que os pagam
muito bem pelo que fazem. Não que as escolas particulares paguem bem. Elas
somente pagam bons salários aos melhores professores de curso pré-
vestibular. Seja como for, aqui na escola pública ficamos nós, os medíocres,
junto a um diminuto número de idealistas. Aqui ficamos nós pelos mais
variados motivos. Mas, especialmente, porque na escola pública o salário
pinga, mas não seca, como dizem costumeiramente. Ademais, tem sempre a
estratégia segura de se dar uma aula meia boca em troca do salário meia boca
que nos dão.

Há sempre os bons professores, idealistas da profissão, mais


raros, que ficaram velhos demais acreditando numa escola pública gratuita e
42

de qualidade que nunca chega. Jamais virá. Um dia quando esses professores
perceberam que sua luta era inglória já era tarde para recomeçar em outro
lugar. Eles estão lá nas salas de aula da escola pública, empunhando sua
bandeira já bastante surrada pelo desgaste do tempo. Professores sucumbidos
ao afrontoso desdém de colegas já ajustados ao sistema. Professores que
destroem a imagem de seus colegas idealistas em fofocas feitas “na surdina”.
Enquanto isso, o analfabetismo funcional, filho bastardo da hipocrisia escolar,
se alastra como uma praga incontrolável por todas as escolas públicas,
especialmente as de periferia. Como consequência, a violência toma conta das
salas de aula. Nas periferias dos grandes centros urbanos, a vida humana tem
um valor meramente simbólico, dentro e fora da escola. E, ao final de cada
semana, os imls se enchem de cadáveres de jovens, como resultado da
falência do Estado na área da segurança pública. Enquanto isso, o poder
público alardeia a criação de programas para a melhoria da qualidade de
ensino que nunca chegam. Jamais chegarão.

Pois bem, trabalhei o conteúdo programado para o dia. Mas tive


que chamar a pedagoga por duas vezes naquela primeira aula do período da
tarde. Chamei-a para que pudesse pedir silencio, não aos meus alunos, mas à
sala de aula vizinha. Ficavam em silencio por uns cinco minutos, depois
voltavam à carga total, com gritos, risos altos, barulhos de carteiras caindo ao
chão, alunos correndo um atrás do outro pelo corredor. E isso tudo com
professor em sala.

Eu já tinha reclamado muito para as pedagogas e para a direção


da escola. De tal modo que tanto os professores da escola, quanto o corpo
pedagógico e os próprios professores, salvo algumas raras exceções, queriam
ver o diabo pela frente do que me ver. Eu sabia que sofreria sanções e
perseguições. Um ou dois professores, chamados de idealistas, cdfs e de
vermelhinhos, me alertavam para tomar cuidado. E eu fazia, então, tudo
certinho para não dar margem para erro. Ou para que alguém me chamasse a
atenção para algo que não existia. Como foi o caso da diretora que me chamou
em sua sala para dizer que a assessoria jurídica do núcleo havia ligado para
pedir esclarecimentos sobre uma tal denuncia de pai de aluno sobre minha
43

conduta com seu filho. Mas, desconfiei quando a mesma diretora disse que já
acertara tudo e que eu não precisaria me preocupar. Mas me preocupei e fui ao
núcleo saber do que se tratava. E não se tratava de nada. A diretora inventara
o fato para começar a criar um clima que pudesse tornar minha permanência
na escola insuportável e fazer com que eu pedisse transferência. Fora isso me
tratava maravilhosamente, lançando um véu de hipocrisia sobre suas reais
intenções no afã de que eu não percebesse de onde vinham as balas que me
atingiam pelas costas.

Mas, eu sabia com quem estava lidando. Era experiente e “bem


escolado”. E não queria desistir de minhas convicções, de meu idealismo. Mas,
do que eu estou eu falando?! De que idealismo meu eu falo?! Quando eu entrei
na escola para trabalhar em 1989 eu era idealista. Queria fazer meu aluno
conseguir ler o mundo onde vive para poder transforma-lo. Pois bem, depois de
quase três décadas ensinando na escola pública, me contentava em ver o
aluno concluir o ensino médio ao menos conseguindo ler aquilo que escrevia.
Diante dos agigantados poderes de uma escola que prima pela mediocridade
eu logo tive de aprender que meus esforços eram não somente ineficazes
como ainda muito mal quistos entre os colegas.

Mas, pelo menos eu dava aula. E como meus alunos eram ruins
de leitura e ruins de escrita, minhas aulas consistiam em palestras que eu dava
sobre o conteúdo ensinado. Faze-los escrever seria penoso para ambos e
pouco produtivo. E ademais, com este sistema meus alunos aprendiam. E se
divertiam muito. Nós nos divertíamos muito. Mas quando o barulho de fora da
sala era maior do que o de dentro a aula estava inviabilizada. Em desespero eu
solicitava que a direção da escola e as pedagogas arranjassem um jeito de
fazer com que os professores das salas vizinhas controlassem o barulho de
seus alunos. Que tivessem o tal domínio de turma, seja ele o que for. Nunca
soube ao certo. Para que os outros professores pudessem trabalhar. Contudo,
isso significaria mudar um sistema que há muito se viciara e que estava muito
bom para tudo e para todos. Menos pra mim. Então, o errado, na verdade, era
eu. Os novatos na escola que se enquadrassem. Mas, na verdade, eu não era
nenhum novato na profissão. Eu era um velho professor idealista com antigas
44

ideias sobre dar aula, antigos escrúpulos e a mania de ser honesto com meus
alunos.

Eu era o errado. Um parafuso solto na engrenagem. Uma


anomalia no sistema. Um sistema escolar que parecia errado, mas cujo
propósito era errar. Porque quando acertasse educaria milhões de crianças e
jovens que se tornariam livres e independentes para entender, enfrentar e
mudar o mundo onde vivem. Assim, retirariam de seu lugar de conforto os
membros da classe dominante que há 500 anos constituem o poder
hegemônico desse país.

Eu era o errado. E já há alguns anos sabia disso. Eu lecionava


em outra escola quando pude chegar a esta nefasta conclusão. E comecei a
perceber que por toda escola por onde passara nestes anos todos tive
problemas com as direções e com os professores. Alguns colegas até se
penalizavam por mim, mas poucos corriam ao meu socorro. Isso significaria ir
também contra o sistema. E fazer parte do time dos que serão perseguidos não
era uma ideia muito boa. Os que ficassem ao meu lado seriam rechaçados.
Não é à toa que minhas lutas sempre foram travadas solitariamente.

Eu era o errado e sabia por que motivos. Dia após dia, a


algazarra nas salas vizinhas não acabava. Faziam parte do sistema. Quase
nenhum aluno estava na escola para aprender. Gostavam de vir para a escola,
mas não gostavam de estudar. Esse aparente paradoxo pode ser melhor
entendido quando se percebe que a escola ocupa, na cidade, o lugar de
encontro e pertencimento que existiu outrora nos pequenos vilarejos e na zona
rural, nos pequenos arraiais com suas praças de convívio, como antigas ágoras
gregas. Hoje, o lugar vacante de encontro e pertencimento, produzido pelo
processo de urbanização radical da vida social exigido pela industrialização,
relega aos filhos dos pobres a escola para conceder identidade a essa massa
compactada numa escola paradoxal e estranha.

Obviamente os alunos gostavam da escola. Mas, não de estudar.


A escola era seu lugar de identidade e pertencimento. Onde se encontravam
com os seus iguais para trocarem experiências e conversarem. Muitas vezes
45

mais do que em qualquer outro lugar, onde se inclui sua casa, sua família, sua
igreja. Então, a escola era muito valiosa para os alunos. Mas, não o estudo. E,
seguramente, não os professores. A não ser que, de algum modo, um
professor conseguisse entrar neste mundo do aluno. Ficar entre eles. Falar a
sua língua. Se tornar quase um deles. Só que professor. Foi assim que eu
sempre fiz. E estava fazendo nesta escola. Por isso era respeitado. Não pelos
professores. Seguramente, não. Mas pelos alunos.

Naquele dia saí da primeira aula do turno da tarde sem ter


conseguido terminar o conteúdo planejado. E não era a primeira vez que isso
acontecera. Cheguei a chamar a pedagoga dentro da minha sala e pedir, com
meus alunos em absoluto silêncio, que ela ouvisse as turmas lá fora, nas
outras salas, e me dissesse se aquela algazarra era possível dentro de uma
escola. Esta também é mais uma resposta, dentre as tantas, que espero da
escola pública até hoje.

Pois bem, saí frustrado e nervoso de minha primeira aula e fui


para a sala ao lado trabalhar o mesmo conteúdo. Novamente o mesmo barulho
da aula anterior. Saí à porta da sala para ver o que estava acontecendo e
percebi que outra professora também estava atônita, querendo entender o
porquê do barulho. Mas aquela bagunça era reeditada. Não havia motivo pra
professora ou pra eu estarmos surpresos. E realmente não estávamos. Mas,
não tínhamos perdido nossa capacidade de indignação. Essa professora era
tida como linha dura pelos professores e pelos alunos. Eu não. Eu era tido
como o professor amigão, boa praça, que entende o aluno. Criei essa imagem
para poder me valer dela e conseguir dar aula, conseguir que os alunos
acreditassem no meu conteúdo. E conseguia. Mas, com aquele barulho era
impossível.

Terminei a segunda aula e, em outra turma, a terceira aula


começou sem muito barulho. Mas, logo a bagunça rotineira recomeçou. E não
era só em uma sala de aula. Eram muitas as salas de onde se podia ouvir alto
o som de bagunça, gritos, carteiras empurradas, cadeiras derrubadas e até
uivos. Mas, havia uma sala ao lado da minha, de onde a bagunça se fazia
campeã. Cheguei a pensar que a sala de onde vinha a tal bagunça campeã
46

estava sem professor. Ledo engano. O fato de haver alguns alunos fora da sala
de aula, pelo corredor, me enganara. Havia até um casal de pré-adolescentes
se beijando e dois garotos brincando de judô ou sei lá o que. E, então, fui até lá
no afã de botar ordem naquela bagunça. Se estavam sem aula, que fossem
para o pátio. E qual não foi a minha surpresa ao ver um professor lá dentro, em
pé, conversando com um aluno como se a bagunça fosse mera paisagem.
Nenhum conteúdo no quadro negro. E sei lá se havia em outro lugar. Detalhe:
esse professor tinha 30 anos de magistério. Mais do que eu. Todavia, eu já
tinha visto este tipo de professor e sabia muito bem o que estava acontecendo.
Ele havia se entregado. Desistiu. Agora aguardava apenas o fim do mês pelo
salário e a aposentadoria que não demoraria muito a chegar. Recolhi-me à
minha sala e pedi a um aluno que chamasse a pedagoga. Ela não veio. Disse
que estava ocupada atendendo uma mãe de aluno. Fui até ela para relatar o
fato, quando a vi papeando com outra pedagoga. Não havia pai nenhum com
elas. Voltei à sala de aula na esperança de que ela já viria. Não veio.

A bagunça continuava e eu comecei a dar aula assim mesmo.


Afinal, não sabia mais o que fazer. Mas, nos moldes em que eu lecionava,
aquele ambiente era impossível. Gostava de dar aula de pé, conversando com
os alunos, ilustrando os conteúdos com alguns gracejos e escrevendo no
quadro negro. Mas, para isso eu precisava me concentrar. Contudo o som da
bagunça de fora da minha sala só me possibilitava ficar indignado.

À minha frente, na sala de aula, a imagem dos meus alunos me


olhando parecia aguardar por uma resposta, uma atitude de enfrentamento e
solução diante da bagunça lá fora. E dos professores faz-de-conta, fantasmas
de uma escola moribunda. Então, subitamente fiquei paralisado, com uma dor
de cabeça insuportável. Eu fiquei ali em pé parado, surdo por alguns segundos,
vidrado, quase hipnotizado, inconsciente. De repente, um ruído mais forte de
um aluno ao meu lado fez com que eu recobrasse o sentido. Meu coração
disparou. Meus braços estavam dormentes. E senti que um suor frio escorria
pela minha testa. Minhas mãos suavam, minha mente ficou totalmente
descoordenada. Olhei em volta sem distinguir as coisas, os fatos. O conteúdo
desapareceu da minha mente. Uma onda de pavor e arrepio cresceu pela
47

minha coluna e desta vez se espalhou rapidamente por todo meu corpo.
“Tenho que me controlar”, pensei. Mas era impossível. Eu estava paralisado.
Apavorado. Uma voz dentro da minha cabeça parecia gritar: “Onde você está?
O que você está fazendo aqui?” Já não queria acabar com a bagunça das
salas ao lado. Tudo o que queria era sair dali.

Em poucos segundos estava em pânico. O corpo gelado, embora


as orelhas estivessem quentes como brasa. Fiquei tonto. Pensei que ia
desmaiar. Mas, eu não podia desmaiar ali, na frente dos alunos. Precisava
manter o controle. Foi quando percebi que estava urinando em mim mesmo.
Sem conseguir controlar. Tentando que os alunos não percebessem fiz um
esforço enorme para quebrar a paralisia do meu corpo e andei até a minha
mesa. E me sentei à cadeira para esconder a calça molhada. Percebi que a
roupa estava encharcada e que a urina descera um pouco ao chão. Mas,
felizmente a mesa de professor camuflava tudo.

Faltavam 15 minutos para terminar aquela aula. Mas, depois do


intervalo teria a quarta aula na mesma turma. Esperei pacientemente que
chegasse o final da aula e começasse o intervalo. Que é o nome novo para o
antigo recreio. Os minutos pareciam horas. Finalmente, bateu o sinal. Os
alunos saíram para o intervalo e a zeladora passou pelo corredor e me
perguntou se eu ficaria na sala. Eu disse que sim. Ela se foi e trancou a porta
do pavilhão. Aproveitei e arranquei umas folhas de caderno e me enxuguei. Fiz
o melhor que pude com elas. Mas, ainda fiquei molhado.

Quando os alunos retornaram para a aula depois do recreio, pedi


que fizessem desenhos sobre a história do movimento, o conteúdo que eu
estava trabalhando nas última aulas. Não podia me levantar enquanto a calça
estivesse molhada. Quando terminaram pedi que fizessem desenhos sobre o
próprio corpo e que depois pintassem seus desenhos. Ao tocar o sinal para o
final da aula eu teria, ainda, a quinta aula. Entretanto, fui até a sala da direção
e comuniquei que não daria a quinta aula porque estava passando mal e iria ao
médico. Não quis dizer o que ocorrera. Não valeria a pena. Seria tempo
desperdiçado. E eu, provavelmente, seria alvo de chacota e comentários torpes
por todo o colégio em pouco tempo.
48

Lembro-me que fiquei com vergonha, embora naquele momento a


calça já estivesse praticamente toda enxuta. Mas, eu estava também com uma
tremenda dor de cabeça. E então fui ao médico. La chegando o médico
constatou que eu estava com uma pressão arterial de 24 por 16 e não deixou
que eu saísse do hospital. Disse para ele do ocorrido e ele me orientou que
fosse a um psiquiatra. Deu-me um atestado de dois dias de licença. E eu que
tinha resolvido não me tratar mais com psiquiatras... No dia seguinte fui a uma
nova psiquiatra. Ela me atendeu bem, mas com desconfiança. Parecia não
acreditar em minha história. Mas, me deu um atestado de trinta dias. Na perícia
médica do governo do estado do Paraná, daqueles trinta dias de licença
prescritos pela psiquiatra, me concederam quinze. E assim fui me tratando e
pegando atestados médicos até que o estado resolveu me aposentar em 6 de
fevereiro de 2015, por invalidez.

Gostaria de dizer que isso tudo me calejou e me fortaleceu. Mas,


não é verdade. A teoria do quanto pior melhor, pelo menos nesse caso, é falsa.
Eu não precisaria ter passado por tudo isso. Todavia, fiz, na escola, o caminho
do absurdo. Mas, não estou surpreso, porque sei que o que vi e vivi foi o
mundo se mostrando na escola em sua nudez pederasta e monstruosa. E eu
me sentindo pequeno, embora enorme, sufocado por esse grande mundo
absurdo.

Segundo Jean-Paul Sartre "O importante não é aquilo que fazem


de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós".
Estou hoje doente e cansado. De minha parte digo que fiz o bom combate. Vivi
mais da metade da vida que terei e caminho tentando reunir os resquícios
daquilo que fui um dia. Ao menos tenho consciência do que foi feito de mim. Só
não me resta mais muito tempo pra recomeçar. Pior do que isso, eu não tenho
mais sonhos. A escola pública me ensinou a não sonhar.

Hoje, estou fraco, meu corpo pesa sobre meus pensamentos


mornos que agora se movem lentamente, sem a agilidade de outrora. Quando
me pego a escrever estas memórias, sem, contudo, conseguir relatar tudo o
que me aconteceu naqueles terríveis anos idos, compreendo, que ao menos
encontrei a razão de minhas náuseas: aquele amontoado disforme de
49

existências hipócritas, entediadas, embrutecidas e estorvadas consigo mesmas


e com aquilo que fizeram de suas próprias vidas. Salvo exceções, são pessoas
que, se uma vez tiveram, já se esqueceram das razões para terem se
transformado em professores. Tudo o que vi e vivi na escola se move hoje na
minha cabeça como sombras que se arrastam com uma lentidão viscosa,
misturando-se para formar um novelo confuso, cujos nós são difíceis de
desatar.

Capítulo 2 – O demônio do meio dia

Um dia... Pronto!... Me acabo.


Pois seja o que tem de ser.
Morrer: Que me importa?
O diabo é deixar de viver.

(Mário Quintana)

Existe “[...] uma afecção sem febre, na qual o espírito triste


permanece sem razão fixado em uma mesma ideia, constantemente abatido”.
Com estas palavras, Hipócrates (460 a.C. - 370 a.C.), o pai da medicina, já no
século V a. C. descrevia a depressão, conhecida na época com o nome de
melancolia. E ainda discorre um pouco mais sobre os seus sintomas: “[...]
perda de sono, falta de apetite, desejo de morte [...]. Essa bílis negra que, ao
nos invadir, age sobre o corpo e sobre a alma para criar tristeza e cansaço”
(HIPÓCRATES, apud GONÇALVES; MACHADO, 2007). O tratamento
recomendado consistia na mudança dos hábitos relacionados à enfermidade,
além de atividades físicas, mudanças alimentares, hidroterapia, medicamentos
orais e purgantes. Hipócrates considerava que também era importante para a
cura do paciente o diálogo e o acompanhamento da família durante o
tratamento (Ibid.).
50

"Homens me chamaram de louco”. Escreveu certa vez Edgar Allan


Poe (1809-1849). E continuou: “[...] mas a questão ainda não está definida, se
loucura é ou não é a sublime inteligência - se muito disso é glorioso - se tudo
isso é profundo - não emerge da doença ou do pensamento - dos humores da
mente exaltada a expensas do intelecto geral". Tida como uma espécie de
loucura, a depressão costuma não escolher gênero, classe social ou nível
intelectual. Em sua suspeita de que genialidade e loucura estivessem
enleadas, se o escritor estadunidense não acertou na mosca, passou perto.
Antes de Platão (427 a.C. - 347 a.C.) já se acreditava numa "loucura divina"
como base fundamental de toda criatividade. E embora não possamos
submeter os mortos a testes psicológicos, os historiadores especulam sobre o
estado mental de gênios do passado vasculhando os rastros deixados pelas
suas existências. Há uma lista polpuda: Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Liev
Tolstói, Serguei Rachmaninov, Piotr Ilitch Tchaikóvski, Ernest Hemingway,
Jackson Pollock... O célebre poder criativo destes gênios da humanidade
ladeava uma instabilidade psíquica claramente patológica. Van Gogh, durante
uma crise, decepou a orelha esquerda e num outro episódio se suicidou.

Entre todos os célebres depressivos do passado vem tomar seu


lugar o poeta brasileiro Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884 -
1914), ou simplesmente Augusto dos Anjos, cujos poemas encontram-se
recheados de melancolia, dor e desolação, num infinito sentimento de perda
que parece não querer cicatrizar. Sobre a melancolia profundamente sensível e
ao mesmo tempo grotesca de seus poemas, deixemos a poesia do próprio
Augusto dos Anjos nos falar:

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
51

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Tida como a “Grande Reclusa” em virtude de sua condição


depressiva, a poetiza estadunidense Emily Elizabeth Dickinson, morreu de
nefrite, em 1886, praticamente desconhecida do público. Após seu falecimento,
a família encontrou entre seus pertences mais de 1750 poemas, escritos a
partir de 1850. Emily escreveu um poema bastante emblemático da depressão
na primeira metade do século XIX, (DICKINSON, 1999, p. 47):

Senti um féretro em meu cérebro,


E carpideiras indo e vindo,
A pisar, a pisar, até eu sonhar
E quando tudo se sentou,
O tambor de um ofício,
Bateu, bateu, até eu sentir
Inerte o meu juízo.
E eu as ouvi, erguida a tampa,
Rangeram por minha alma com
Todo o chumbo dos pés, de novo,
E o espaço dobrou,
Como se os céus fossem um sino
E o ser apenas um ouvido,
E eu e o silêncio, a estranha raça
Só, naufragada, aqui.
Partiu-se a tábua em minha mente,
E eu fui cair de chão em chão,
E em cada chão havia um mundo
E terminei sabendo, então.

Há na bíblia ao menos uma alusão à depressão: a história do


primeiro rei de Israel, Saul, ungido pelo sacerdote Samuel e que, por
desobediência às ordens de Deus, é acometido por um “mau espírito” enviado
dos céus. Curiosamente, uma das graves desobediências de Saul foi ter se
recusado a massacrar o povo inimigo amalequita, uma nação que tinha
atacado Israel séculos antes (Êxodo 17). Curioso também é que, embora a
história oficial bíblica não nos diga as razões de Saul para perseguir Davi,
sabe-se que Davi tinha matado o gigante Golias e impressionado o povo, o
que, segundo a bíblia, ferira a vaidade de Saul.

Sucedeu, porém, que, vindo eles, quando Davi voltava de ferir


os filisteus, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram
ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com adufes,
com alegria, e com instrumentos de música; E as mulheres
52

dançando e cantando se respondiam umas às outras, dizendo:


Saul feriu os seus milhares, porém, Davi os seus dez milhares;
Então Saul se indignou muito, e aquela palavra pareceu mal
aos seus olhos, e disse: Dez milhares deram a Davi, e a mim
somente milhares; na verdade, que lhe falta, senão só o reino?
E, desde aquele dia em diante, Saul tinha Davi em suspeita (I
Samuel, 18:6-9).

Ora, essa vaidade ferida era o medo de Saul de ser destronado


pelo popular Davi. E esse mau espírito era uma doença, a “melancolia do rei”, a
depressão. A culpa pela transgressão, pela desobediência, torna o rei
vulnerável ao “mau espírito”, que apenas se acalma ao som da cítara de Davi.
Entretanto, Davi, mesmo tocando para o rei, torna-se o alvo da lança de Saul,
mas, habilmente escapa e traça, então, sua trajetória rumo ao trono. Saul,
derrotado, se suicida.

Em 2001, aos cinquenta anos de idade, o escritor estadunidense


Andrew Solomon, escreveu um livro intitulado: “o demônio do meio dia”, onde
conta de forma sensível e inteligente como desceu às profundezas do inferno
para vencer uma das síndromes que mais afligem a humanidade atualmente: a
depressão. Esta é uma doença séria e perigosa que tem ceifado mais vidas
que o câncer, a guerra e a AIDS juntos, perdendo apenas para as doenças
cardíacas. Estranhamente, também tem sido alvo de muito preconceito,
especialmente no ambiente de trabalho, onde pessoas cujas vidas foram
estilhaçadas pela doença têm sido tratadas como frívolas e preguiçosas.
Inspirado em sua dolorosa, dramática e vitoriosa experiência com a depressão,
Solomon inicia o livro com as seguintes palavras:

A depressão é a imperfeição no amor. Para poder amar, temos


que ser capazes de nos desesperarmos ante as perdas, e a
depressão é o mecanismo desse desespero. Quando ela
chega, destrói o indivíduo e finalmente ofusca sua capacidade
de dar ou receber afeição. Ela é a solidão dentro de nós que se
torna manifesta e destrói não apenas a conexão com outros,
mas também a capacidade de estar em paz consigo mesmo. E
embora não previna contra a depressão, o amor é o que
tranquiliza a mente e a protege de si mesma. Medicamentos e
psicoterapia podem renovar essa proteção, tornando mais fácil
amar e ser amado, e é por isso que funcionam. Quando estão
bem, certas pessoas amam a si mesmas, algumas amam a
outros, há quem ame o trabalho e quem ame deus: qualquer
uma dessas paixões pode oferecer o sentido vital de propósito,
que é o oposto da depressão. O amor nos abandona de
53

tempos em tempos, e nós abandonamos o amor. Na


depressão, a falta de significado de cada empreendimento e de
cada emoção, a falta de significado da própria vida se tornam
evidentes. O único sentimento que resta nesse estado despido
de amor é a insignificância (SOLOMON, 2014, p. 15).

O nome do livro de Solomon, “O demônio do meio-dia”, como era


chamada a depressão na Idade Média, nos remete a uma época onde a
doença, também conhecida como “demônio do meridiano” ou “acídia”, era tida
simplesmente como um grave pecado do corpo indolente contra Deus, um
estado de preguiça causado por um demônio. Agamben, citado por Cabral
(2015), nos fala de como os padres da Idade Média tratavam esse “demônio do
meridiano” causador de estagnação, desesperada, preguiça descontrolada,
angustiada tristeza e falta de ânimo diante de uma situação trabalhosa e
desgastante. A acídia é revelada detalhadamente no seguinte texto:

Basta que este demônio comece a obsidiar a mente de algum


desventurado, que ele insinua nela um horror ao lugar em que
se encontra, um incomodo com relação à própria cela e um
nojo dos irmãos que vivem com ele, que agora lhe parecem ser
negligentes e grosseiros. [...] [O monge] suspira e geme que o
seu espírito não produzirá fruto algum enquanto ficar onde
está; queixando-se proclama-se incapaz de enfrentar qualquer
tarefa do espírito, e aflige-se por ficar aí vazio e imóvel [...].
Prodigalizam-se em exagerados elogios de mosteiros ausentes
e longínquos e lembra os lugares em que poderia estar são e
feliz [...], tudo o que está ao alcance da mão lhe parece áspero
e difícil [...]. Depois, perto da quinta ou sexta hora, é tomado
por uma languidez do corpo e uma raivosa fome de comida,
como se estivesse extenuado devido a uma longa viagem ou a
um trabalho duro, ou então houvesse jejuado por dois ou três
dias. Então, começa a olhar a seu redor, aqui e ali, entra e sai
nove vezes da cela e fixa os olhos no sol como se pudesse
atrasar o seu ocaso; e, ao final, desce sobre a mente uma
enlouquecida confusão semelhante à calota que envolve a
terra, e o deixe inerte e como se estivesse vazio (ANGAMBEN,
2007, p. 50-51).

Tema de estudos médicos e filosóficos e como inesgotável fonte de


inspiração para poetas e artistas, da Antiguidade à Idade Contemporânea, a
depressão percorre um caminho assaz estranho. Associada ao pecado na
Idade Média; glamourizada como tristeza proveniente da manifestação do
anseio humano pelo grande e pelo eterno, na Renascença; tida,
paradoxalmente, como um estado de desanimo essencial para a sabedoria ou
básica para a loucura, no séc. XVII; considerada loucura sem delírio no início
54

do séc. XVIII; sob os olhares da ciência é finalmente vista, em fins do séc.


XVIII, como um estado melancólico que incapacita o enfermo à execução de
suas ideias (apud GONÇALVES; MACHADO, 2007). Esta última é uma
condição com a qual, eu lastimo, tantos professores estejam bastante
familiarizados. Nos termos em que se expressa Foucault:

O tema do delírio parcial desaparece cada vez mais como


sintoma maior dos melancólicos em proveito dos dados
qualitativos, como a tristeza, o amargor, o gosto pela solidão, a
imobilidade. Ao final do século XVIII serão classificadas como
melancolia, sem maiores problemas, as loucuras sem delírio,
porém caracterizadas pela inércia, pelo desespero, por uma
espécie de estupor morno. Já no Dictionnaire de James fala-se
numa melancolia apoplética, sem ideias delirantes, na qual os
doentes não querem mais sair da cama; ...quando se levantam,
só caminham quando coagidos por seus amigos ou pelos que
os servem; não evitam os homens, mas parecem não prestar
atenção alguma ao que lhes é dito; nada respondem
(FOULCAULT, 1978, p. 297).

Com o advento da Revolução Industrial, o termo melancolia perdeu


seu valor no meio científico. Em seu lugar emergiu o termo depressão, que aos
poucos se consolidou como um conceito fundamentado e construído numa
teoria produzida a partir de procedimentos científicos, mormente a observação
clínica. Nota-se acerca deste processo a contribuição do francês Philippe Pinel
que, na primeira metade do século XIX, defendeu a humanização no
tratamento dos doentes mentais. Para Pinel, a psiquiatria deveria se basear na
descrição rigorosa das diversas manifestações clínicas, livre das teorias
ideológicas da época, revolucionando a metodologia da época. Segundo Dias
(2003, p.11-12):

Sintonizado com os ideais revolucionários franceses de


liberdade, igualdade e fraternidade, preconiza o tratamento
moral para os alienados e desacorrenta os loucos em Paris.
Sua prática médica exercida durante os anos em que chefia os
hospitais em Bicêtre e La Salpêtrière na França, aliada a sua
profunda reflexão sobre a alienação mental, concorre para
inaugurar a Escola dos Alienistas Franceses. [...] Costuma-se
falar de Philippe Pinel como um homem dotado de
generosidade incomum à sua época. Homem bondoso, cheio
de atos caridosos para com os sofredores. O libertador dos
alienados, aquele que lhes quebrou as correntes e lhes deu
dignidade, que os retirou das celas às quais estavam
confinados há anos, atos que deixaram a sociedade e a classe
médica estarrecidas. Pinel, como se vê, teve fartas razões para
55

ser considerado pioneiro no tratamento de doentes mentais,


sendo um dos precursores da psiquiatria moderna, ramo da
medicina a que ele se dedicou após a tragédia ocorrida com
um amigo seu – conta-se que tendo enlouquecido, o amigo
fugiu para a floresta onde foi devorado por lobos. Sem dúvida,
foi um revolucionário no método de tratamento dos doentes
mentais. Para a França Revolucionária, era de profundo
interesse que seus cientistas se sobressaíssem e Pinel se
constituiu, na área da medicina e da psicologia, em um dos
seus principais expoentes. Seus escritos privilegiam o
refinamento literário, característico da Europa do século XVIII e
início do século XIX, em que predominaram as concepções de
humanismo e liberalismo, de forte influência iluminista.

Desde a Antiguidade até os dias atuais, os nomes da depressão


foram se sucedendo prodigiosamente. Falou-se em bílis negra na Antiguidade,
da acedia entre os monges medievais, na genialidade triste no Renascimento,
da melancolia no século XIX e, finalmente, na depressão tratada atualmente
por psicólogos e psiquiatras.

No século XIX, com a instauração do saber psiquiátrico, a


melancolia é associada à doença mental. Para Prigent (2005)
com o nascimento da psiquiatria começa-se uma análise dos
sintomas da melancolia. Esquirol (1838) e Pinel (1856) a
definem como uma mania, uma loucura caracterizada por um
delírio parcial com uma tendência triste ou opressiva. Para
Esquirol (1805) não somente as paixões são as causas mais
comuns da alienação mental, mas ela tem com essa doença e
suas variedades, relações de semelhança extraordinária.
Segundo Esquirol (1838), a palavra melancolia, consagrada na
linguagem vulgar para exprimir o estado de tristeza de qualquer
indivíduo, deve ser deixada aos moralistas e aos poetas, que
em suas expressões não são obrigados a tanta seriedade
quanto os médicos. Esquirol (1838) propõe o termo monomania
que designa um estado anormal da sensibilidade física ou
moral, com um delírio circunscrito e fixo. Para Esquirol, a
monomania é mais frequentemente de origem hereditária,
sendo fortificada pelos vícios da educação, e também por
causas morais (Clair, 2005). Esse fato marca o início da
substituição, e consequentemente, confusão dos termos
melancolia e depressão.

Associada à bruxaria; glamourizada; tida como loucura sem delírio


ou à luz da ciência, a depressão, desde a Antiguidade vêm sendo observada e
estudada. Porém, ainda hoje, em que pesem os avanços científicos, como que
carregando o peso dos anos, a depressão é um distúrbio pouco aceito.
Inclusive pelos colegas de trabalho. Se a acídia medieval foi considerada um
grave pecado contra Deus, na contemporaneidade, a depressão é tida como
56

um grande pecado contra o trabalho. Há muito tempo os depressivos são


minimizados à condição de maiores pecadores do mundo, uns vagabundos.
Como há muito me falou um velho e agora distante amigo, o Paulo Guilhermeti:
“na Revolução Industrial havia o gerente de produção a chicotear literalmente
os trabalhadores na linha de montagem; hoje na ausência desse gerente de
produção são os próprios trabalhadores a chicotearem-se uns aos outros”. E eu
diria que hoje, em plena “sociedade do cansaço”, para tomar de empréstimo os
termos em que se refere Byung-Chul Han, é o próprio trabalhador a chicotear a
si mesmo. O indivíduo se exige ao máximo e acredita que isso é auto
realização. Como efeito colateral surge o sentimento de responsabilidade por
um fracasso que lhe é imposto pela sociedade. Isso acontecendo num lugar
que deveria se distinguir como um “lócus” social privilegiado de educação e
sensibilidade, como é a escola, é deveras assombroso.

O preconceito que incide sobre essa doença lembra o preconceito


contra a cientificidade da psicanálise. Ocorre que a depressão é uma moléstia
cujos sintomas não podem ser identificados fisicamente através de exames
laboratoriais ou testes materiais. É quase uma doença invisível. Talvez por
isso, há muito tempo que a humanidade vê na depressão uma oportunidade
para vagabundos, apáticos e indolentes se refugiarem do necessário trabalho.
Mas, para o deprimido é uma amputação de asas que aos poucos, dia após
dia, vai retirando os significados da vida, a vontade de viver. Os pensamentos
parecem concentrar-se numa busca por um não sei o que, à espera por uma
intangível porta de fuga. De todos os poros, do corpo todo, parece exalar uma
tristeza morna, invisível e solitária, enquanto o olhar abandona definitivamente
a amplitude dos céus para fixar-se no chão frio e inevitável. Tudo o que se
queira tentar parece não fazer sentido algum. Só a desolação e o desespero
servem de consolo.

O estudo científico parece ser um remédio a colocar alguma luz


sobre a questão, em detrimento dos ataques que a ignorância teima em
reservar aos que sofrem com esse demônio do meio dia. Ou com essa
melancolia, como foi chamada a depressão durante muito tempo. Sigmund
Freud, por exemplo, chamava a depressão de melancolia. E escreveu um
57

brilhante artigo intitulado “Luto e melancolia”, em 1917. Nas poucas páginas


deste grandioso texto, a fronteira entre a linguagem científica e a linguagem
popular é sutil, o que facilita seu acesso a todos. O embasamento clínico de
Freud é evidente, como não poderia deixar de ser. E o difícil equilíbrio entre a
ousadia teórica e a generosidade na exposição de suas ideias são
testemunhas, como de costume, da genialidade do criador da Psicanálise.
Neste artigo, Freud considera que o luto é uma tristeza natural pela perda de
alguém que morreu, enquanto a melancolia é uma forma de tristeza também,
mas onde há uma perda do prazer pela vida. Literalmente:

A associação de luto com melancolia mostra-se justificada pelo


quadro geral desses dois estados. Neles também coincidem as
causas oriundas das interferências da vida, ao menos onde é
possível enxergá-las. Via de regra, luto é a reação à perda de
uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar,
como pátria, liberdade, um ideal etc. Sob as mesmas
influências observamos, em algumas pessoas, melancolia em
vez de luto, e por isso suspeitamos que nelas exista uma
predisposição patológica. Também é digno de nota que jamais
nos ocorre ver o luto como um estado patológico e indicar
tratamento médico para ele, embora ocasione um sério
afastamento da conduta normal da vida. Confiamos em que
será superado após certo tempo, e achamos que perturbá-lo é
inapropriado, até mesmo prejudicial. A melancolia se
caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso,
uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da
capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da
autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à
própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de
punição. Esse quadro se torna mais compreensível para nós se
consideramos que o luto exibe os mesmos traços, com
exceção de um: nele a autoestima não é afetada. De resto é o
mesmo quadro. O luto profundo, a reação à perda de um ente
amado, comporta o mesmo doloroso abatimento, a perda de
interesse pelo mundo externo — na medida em que não lembra
o falecido —, a perda da capacidade de eleger um novo objeto
de amor — o que significaria substituir o pranteado —, o
afastamento de toda atividade que não se ligue à memória do
falecido. Logo vemos que essa inibição e restrição do Eu
exprime uma exclusiva dedicação ao luto, em que nada mais
resta para outros intuitos e interesses. Na verdade, esse
comportamento só não nos parece patológico porque sabemos
explicá-lo bem (FREUD, 1996, p. 128-129).

Para Freud, a diferença entre o sentimento de tristeza diante do


luto é diferente daquele sentimento da melancolia. Ambos os casos estão
diante de um sentimento de perda. Todavia, no luto o objeto da perda se faz
58

presente: a morte nos tomou um ente querido. Mas, na melancolia o objeto da


perda, muitas vezes, está em segredo, no inconsciente. É um sentimento de
vazio que surge de um medo não sei de que. O que, por conseguinte, torna a
melancolia uma situação patológica, portanto passível de tratamento, diferente
da situação de luto. Importa perceber que um paciente com melancolia, que
sempre foi trabalhador, passa a se ver como um imprestável. E acaba aderindo
a essa condição, tal a apatia de que é tomado. De acordo com a psicanálise:

Tanto do ponto de vista científico como do terapêutico seria


infecundo contradizer o paciente que faz essas acusações ao
próprio Eu. De algum modo ele deve ter razão, deve descrever
algo que se passa tal como lhe parece. Algumas de suas
afirmações temos de confirmar imediatamente, sem restrições.
Ele se acha realmente sem interesse, incapaz para o amor e
para realizar coisas, tal como diz. Mas isso é secundário, como
sabemos; é consequência do trabalho interno que consome
seu Eu, trabalho que desconhecemos, comparável ao luto. Em
algumas outras autoincriminações o paciente também nos
parece ter razão e apenas apreender a verdade de maneira
mais aguda do que outros, que não são melancólicos. Quando,
em exacerbada autocrítica, ele pinta a si mesmo como uma
pessoa mesquinha, egoísta, insincera, sem autonomia, que
sempre buscou apenas ocultar as fraquezas do seu ser, pode
ocorrer, pelo que sabemos, que tenha se aproximado bastante
do autoconhecimento, e perguntamo-nos apenas por que é
necessário adoecer para alcançar uma verdade como essa.
Pois não há dúvida de que quem chega a essa avaliação de si
mesmo e a expressa diante dos outros — avaliação similar à
que o príncipe Hamlet faz de si e de todos os outros — está
doente, quer diga a verdade, quer seja mais ou menos injusto
consigo. Tampouco é difícil notar que não existe
correspondência, a nosso ver, entre a escala do
autoenvilecimento e sua real justificação. Uma mulher que
sempre foi boa, zelosa e capaz não falará melhor de si mesma,
na melancolia, do que uma verdadeiramente imprestável; e
talvez ela tenha maior probabilidade de adoecer de melancolia
do que a outra, da qual nada saberíamos falar de bom. Deve
nos chamar a atenção, por fim, que o melancólico não age
exatamente como alguém compungido de remorso e
autorrecriminação de maneira normal. Ele carece da vergonha
diante dos outros, que seria a principal característica desse
estado, ou ao menos não a exibe de forma notável. No
melancólico talvez possamos destacar um traço oposto, uma
insistente comunicabilidade que acha satisfação no
desnudamento de si próprio (Ibid, p. 131).

Em Freud, o termo melancolia assume o lugar do termo depressão,


que passa a ser usado de modo meramente descritivo e não para designar
uma moléstia. Diferente da psiquiatria contemporânea do inventor da
59

psicanálise, bem como da psicanálise atual que utiliza o termo de forma farta e
generosa ao invés do termo melancolia. Para a psicanálise pós-moderna a
situação se inverte, o termo melancolia é utilizado de forma descritiva e o termo
depressão se refere à moléstia. Contudo, este não foi apenas um problema
conceitual. Reduzir esta disputa a uma mera disputa terminológica seria não
ver o que ocorreu. Neste trabalho não temos como objetivo aprofundar esta
reflexão, contudo, em resumo, a diferenciação dos termos melancolia e
depressão é um processo obediente ao fato de que na primeira década do
século XX, a psicanálise travou com a psiquiatria um debate acalorado. Como
considera Coser (2003, p. 04):

Freud fala em melancolia, e, o que é importante, na melancolia


tal qual Kraepelin circunscreveu. O uso que faz do termo, no
entanto, por vezes abarca aspectos clínicos que estão além da
melancolia kraepeliniana, incluindo-a, mas incluindo também
um campo de padecimentos maior, mais vasto. O editor da
Standard Edition, James Strachey, diz que Freud usa o termo
melancolia quando quer se referir ao que “agora [quando o
texto foi escrito] em geral se descreve como estados de
depressão” (Strachey, 1957:238), afirmação rápida demais,
que contribui para homogeneizar a questão, desconsiderando
diferenças que poderiam mostrar-se importantes, e para
favorecer uma leitura produtora de equívocos (onde está
melancolia, leia-se depressão, por exemplo).

Freud afirma que na melancolia (depressão) há uma retirada das


energias libidinais que antes eram investidas em objetos de amor. Esse
processo é desagradável para o indivíduo, por conta do elevado nível de
tensão. Para Freud, na medida em que o ego se desenvolve ocorre o
deslocamento da libido em direção a um ideal de ego imposto de fora e a
satisfação ocorre na medida em que se realiza este Ideal. Como a satisfação
com a profissão, por exemplo. De acordo com Adriana Santos e Enéas
Teixeira:

Na Melancolia, segundo Freud (1917), esta passagem da libido


do ego para libido objetal é invertida, sendo que a catexia
libidinal dirige-se novamente para o ego, configurando-se o
Narcisismo Secundário. É importante notar que a baixa
autoestima que ocorre na Melancolia parece estar relacionada
com este retorno da libido (SANTOS; TEIXEIRA, 2011, p. 02).
60

Importa também aqui a contribuição de Wilhelm Reich para o


entendimento da depressão. Inicialmente psicanalista e seguidor de Sigmund
Freud, em função de discordâncias políticas e conceituais, Reich criou, depois,
sua própria linha de trabalho. Praticamente recuperando o conceito de libido,
que em meados do século XX começava a sofrer o abandono dos
psicanalistas, Reich percebe a importância de se associar a qualidade da vida
emocional com a quantidade de energia libidinal que é contida ou que é
descarregada. Algo que nos parece óbvio hoje, pero esparrame dos conceitos
freudianos, mas que na época não era. Muito pelo contrário. A partir desta
percepção, Reich admite uma relação entre a energia sexual (libido freudiana)
com o corpo. Para Freud esta energia era meramente psíquica. Então, em seus
estudos e observações, Reich percebe também que existem contrações
musculares crônicas e – até certo ponto involuntárias – que são psiquicamente
apoiadas em ideias moralmente conservadoras e repressoras. Essas
contrações musculares impedem a energia sexual de circular livremente pelo
corpo. A esse processo, Reich chamou “couraça muscular do caráter”. Ele
verificou que a moral conservadora da “sociedade encouraçada”, repressora,
hipócrita e autoritária, por excelência, busca inibir a satisfação nas pessoas pra
diminuir sua capacidade de se rebelar contra os elos coercitivos da sociedade
e buscar a autonomia e a liberdade.

Vale dizer que Reich foi um pária para as pessoas de seu tempo e
um gênio para a posteridade. Tendo sido expulso do Partido Comunista por ser
psicanalista foi também expulso da sociedade psicanalítica internacional por
ser comunista. Acusado de charlatanismo, imoralidade e subversão foi preso
pela CIA nos EUA e morreu na cadeia. Ocorre que na lida com a energia
sexual, a que chamou de orgon, Reich passou a pesquisar as relações da
insatisfação emocional com o câncer, do que resultou sua obra "A Biopatia do
Câncer". Em 1954, passa a ser investigado pela Food and Drug Administration,
sendo preso após mal sucedidas tentativas de apelação. Reich não reconhecia
outra pessoa na defesa de sua ciência que não fosse ele mesmo. No cárcere
desde 12 de março de 1957, morre de ataque cardíaco em 3 de novembro.
61

O desafortunado desfecho da história de Wilhelm Reich nos


convida, caro leitor, a refletirmos sobre os descaminhos tomados pela
humanidade em seu grandioso costume negativo de perseguir e assassinar
seus benfeitores. Conforme testemunham os fatos ocorridos com Jesus Cristo,
o Rei Leônidas de Esparta, Joana D’Arc, Martin Luther King, Mahatma Gandhi,
Che Guevara e aqui entre nós brasileiros, Joaquim José da Silva Xavier, o
“Tiradentes”, Zumbi de Palmares, Antonio Conselheiro, Olga Prestes e Chico
Mendes. Como se isso não bastasse, além de perseguir seus defensores, a
humanidade ainda se incumbe de defender seus algozes. Com efeito, ao longo
do tempo, todo tipo de tiranos têm sido aclamados pelas massas: Ivan o
Terrível, Vlad o Empalador, Hitler, Mussolini e entre nós, Getúlio Vargas. A
história da humanidade não é bem como nos contaram.

Aqui no Brasil, há quem diga ainda hoje sentir saudade da ditadura


militar. Dentre eles, muitos professores. Do distante século XVI, o jovem
Étienne de La Boétie, em seu “discurso da servidão voluntária”, nos lança um
grito de alerta para este paradoxo da conduta humana. Uma servidão
voluntária que acomete tantos educadores entrincheirados em sua postura
conservadora e autoritária. Como por exemplo, quando se manifestam
veementemente contra o socialismo e as lutas dos trabalhadores por melhores
condições de trabalho. Este seria um estudo instigador. Que fique para outro
momento. Esquecendo por hora desse grandioso enigma da servidão
voluntária e retornando àqueles que não se conformam em servir
voluntariamente, importa destacar que, segundo a concepção reichiana, todo
adoecimento, incluindo a depressão, consiste na expressão de desejos não
realizados. A depressão é, então, um grito de desespero dos que não se
conformaram. Como me disse há já um bom tempo um antigo amigo, o Lucio
Faubert: “todo problema deriva de se ter consciência, mas eu prefiro ser
problemático”. No fim das contas não pode mesmo ser uma boa demonstração
de saúde ser bem ajustado a um mundo profundamente doente.

Capítulo 3 – O mal estar docente e o mito do “bom professor”


62

Para poder amar, temos que ser


capazes de nos desesperarmos ante as
perdas, e a depressão é o mecanismo
desse desespero.

(Andrew Solomon)

A reflexão de Solomon cala forte à memória que trago dos difíceis


anos que passei na escola pública. Realmente, penso que um professor não
pode deixar de se desesperar diante da situação deplorável em que se
encontra a escola pública brasileira. Salvo se for alguém muito insensível,
alienado ou ignorante. Mas, insensibilidade, alienação e ignorância parecem
não combinar muito com o perfil que se espera de um profissional da
educação. Todavia, no Brasil - até porque os números revelam isso - combina.
Quem não combina, muda de profissão. Ou se não pode mudar porque está
cansado demais para recomeçar - ou porque é teimoso demais - fica doente. E
se, na dependência do salário, aguenta um pouco mais e tenta não se irritar,
depois de alguns anos acaba inexoravelmente adoecendo. Ao encontro destas
ponderações, Codo e Vasques-Meneses trazem a seguinte reflexão:

Uma metáfora utilizada por um dos professores que convive


com este sentimento traduz, em poucas palavras, o que
resume todo este contexto a que estamos nos referindo: "Sinto-
me como se estivesse vendendo uma mercadoria estragada!".
Ora, o que é que está" estragado" para este professor? O mais
famoso dos dicionários de nossa língua traz o termo como
sinônimo de "danificado, arruinado, deteriorado"; aquilo que
não está mais funcionando de forma adequada. Pode significar
também derrotado. O professor, ao mesmo tempo, sente-se
derrotado porque vê que não está conseguindo atingir os
objetivos aos quais havia se proposto em seu trabalho e vê
deteriorada sua relação com os alunos, aos quais já não
consegue mais tratar de forma afetuosa (2016, p. 13).

Muito já se falou sobre o incansável e prodigioso professor que


trabalha de forma quase sacerdotal mais do que as suas paupérrimas
condições de trabalho permitem. Cordas vocais estressadas pela vibração
demasiada e ininterrupta; tímpanos submetidos à constância de sons acima do
limite do saudável; músculos e tendões estragados pelo esforço repetitivo de
63

manter o braço elevado para escrever na lousa dia após dia, ano após ano.
Acrescente a este caldo já bastante grosso os baixos salários, a falta de
reconhecimento profissional, o excesso de horas de trabalho e os conflitos da
sala de aula e teremos, então, uma profissão no mínimo inconveniente.

Além do que, todo profissional da educação sabe muito bem que


os olhos indiscretos da sociedade observam atentamente o seu trabalho,
reiterando a todo o momento que dele depende o futuro deste país. E,
finalmente, o professor se vê com um giz na mão, uma turma de quarenta
bagunceiros desinteressados às suas costas, uma lousa avariada pela absoluta
falta de manutenção à sua frente e a responsabilidade de mudar os destinos da
nação. Quem não se desespera diante deste quadro de amarguras nunca
amou verdadeiramente a educação escolar. Pode amar ir para o trabalho, mas
não ama o trabalho que faz. Ainda que não queira admitir ou que não se tenha
percebido disso. Como os tantos compulsivos pelo trabalho que povoam as
escolas e declaram veemente seu amor pela educação, mas desconhecem
completamente as teorias da educação. Os alunos conhecem bem esse tipo de
professor. E conhecem melhor ainda aqueles professores idealistas que se
desesperam diante da constatação de que as teorias transformadoras da
educação não conseguem se efetivar na escola. Seus olhos brilham e suas
bocas se enchem quando falam deles. Desafortunadamente, os psiquiatras e
as perícias médicas das secretarias de educação também os conhecem.
Embora seus olhos e suas bocas ajam de um modo bastante diferente.

Há um mal-estar docente no ar que se respira dentro da escola


pública. Uma realidade perturbadora que espreita e investe como um predador
faminto e impiedoso sobre o professor e o leva a perceber, ainda cedo, que a
educação escolar não é aquela coisa mágica e quase mítica que lhe contaram
na faculdade. É algo concreto, historicamente determinado e construído para
atender as necessidades do mundo que o construiu. Os tantos professores que
entram idealistas na profissão logo aprendem que não farão seu trabalho
segundo suas próprias cabeças, mas segundo condições objetivas
determinadas pelas relações de produção da sociedade em que vivem. E
perceberão, desiludidos, que seu idealismo e sua vontade de mudar, que lhe
64

pareciam tão grandes e poderosos na juventude, sucumbem derrotados diante


de um sistema que é muito maior e poderoso do que supunha sua vã ideologia.

Sob a égide desta lastimável situação, o professor de nossas


escolas públicas é um ser humano atormentado, decepcionado, extenuado,
abatido e deprimido diante de uma profissão quase sem sentido. Homens e
mulheres que tiveram suas vidas marcadas irremediavelmente pela
constatação de que aqueles que não se resignam adoecem emocionalmente.
Seres humanos que adquiriram a chamada “Síndrome de Burnout”, a
depressão do trabalhador. Como nos define Elga Reinold, em sua tese de
doutorado, intitulada “O sentido da vida: prevenções de stress e burnout do
professor”:

Burnout constitui “um estado de fadiga ou frustração causado


pela devoção a uma causa, um estilo de vida, ou por um
relacionamento que deixou de produzir a recompensa
esperada” [...]. Assim, burnout não resulta necessariamente de
trabalho excessivo, mas de uma lacuna entre esforço e
recompensa. Atribui-se o uso do termo burnout (“queimar-se de
dentro para fora”) a Freudenberger, que o teria usado pela
primeira vez em 1974 para um tipo de stress ocupacional
encontrado em profissionais de ajuda [...]. O burnout se
caracteriza por um profundo sentimento de frustração e
exaustão em relação ao trabalho desempenhado, podendo se
estender a outras áreas da vida da pessoa, por um processo
chamado spillover, ou derramamento (REINOLD, 2004, p. 29).

Em língua portuguesa, Burnout é uma síndrome na qual o


trabalhador perde o sentido da sua relação com o trabalho. Da forma em que
seu trabalho acontece, seu esforço parece algo inútil. É uma moléstia que
acomete, principalmente, profissionais que trabalham com contato direto com
pessoas, como os profissionais da saúde, os policiais, os agentes
penitenciários e os professores. Segundo uma pesquisa realizada pela
International Stress Management Association (ISMA-BR, 2006), 70% dos
brasileiros sofre de estresse. E destes, 30% são vítimas da síndrome de
burnout, que pode levar o trabalhador à exaustão física e mental (Rossi, 2006).

O Laboratório de Psicologia do Trabalho (LPT) da Universidade de


Brasília (UnB) reuniu esforços com a Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE) para a realização de uma grande
65

pesquisa nacional sobre a síndrome de burnout e saúde mental dos


trabalhadores em educação do Brasil. Um estudo que pretendeu subsidiar o
intenso e necessário debate sobre os caminhos e descaminhos tomados pela
educação escolar pública em nosso país. Os resultados desse trabalho foram
publicados em 2006 no livro intitulado “Educação: Carinho e Trabalho”, sob a
coordenação do professor Wanderley Codo. Foram avaliados algo em torno de
52 mil trabalhadores em 1.440 escolas. Segundo os resultados, 48% dos
entrevistados apresentavam algum sintoma de burnout, uma síndrome da
desistência de quem ainda está na escola, mas já desistiu do trabalho (CODO,
2006).

O trabalho é a essência do homem, isto é, somente por meio do


trabalho o homem consegue produzir bens necessários à sua sobrevivência. É
a forma específica do ser humano transformar a natureza a fim de que dessa
transformação possa obter proveito. Contudo, da forma com que está posto na
sociedade capitalista, transformou-se numa forma de exploração e alienação
do ser humano. No capitalismo, o trabalho não é uma atividade livre e o
trabalhador está constrangido a vender a própria capacidade de trabalho para

viver.

Examinemos, agora, mais além, como esse conceito de


trabalho alienado deve expressar-se e revelar-se na realidade.
Se o produto do trabalho me é estranho e enfrenta-me como
uma força estranha, a quem pertence ele? Se minha própria
atividade não me pertence, mas é uma atividade alienada,
forçada, a quem ela pertence? A um ser, outro que não eu. E
que é esse ser? [...] A alienação do trabalhador em seu objeto
é expressa da maneira seguinte, nas leis da Economia Política:
quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para
consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se
torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto, tanto mais
grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o
produto, tão mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso
o trabalho, tão mais frágil o trabalhador; quanto mais
inteligência revela o trabalho, tanto mais o trabalhador decai
em inteligência e se torna um escravo da natureza. (MARX,
1967, p. 71).

Tomadas de empréstimo estas palavras de Marx, alguns correrão


a dizer: “o capitalismo que Marx viveu está muito distante daquele que
66

experimentamos hoje, as condições de trabalho não são as mesmas”. Outros


dirão ainda: “no século XIX, quando Marx viveu, os empregos eram pouco
regulamentados e havia extensas jornadas de trabalho e péssimas condições”.
Certamente. Contudo, hoje, com o intenso avanço tecnológico, os postos de
trabalho ficaram mais exigentes em termos da capacidade psíquica e cognitiva
dos indivíduos. O que me leva a crer que as palavras de Marx, com relação à
alienação no trabalho, continuam sendo de grande valia.

O desenvolvimento científico e tecnológico foi uma inegável


contribuição do capitalismo, que não se deve desprezar. Afinal, como nos
ensinou Adorno em Mínima Moralia, não se deve jogar fora a criança com a
água do banho. Contudo, seu desenvolvimento não foi sequer capaz de
erradicar a fome e a miséria no mundo. Mesmo produzindo-se o suficiente para
o triplo da população humana. Logo, a constatação do crime, por mais
vergonhoso que seja, recai sobre as relações de trabalho e não sobre a
capacidade produtiva do trabalhador. Hobsbawm aproxima-se de
Schopenhauer ao afirmar que o homem não tem do que se orgulhar: para a
maior parte da humanidade, o mundo é um pecado, a vida é trabalhar e a
morte é a redenção. Ironia a mais: nunca fomos tantos, vivemos tanto e em
tantos lugares do planeta produzindo as tantas riquezas a mais que
obviamente serão usurpadas de nossas mãos (HOBSBAWN, 1995).

A alienação do trabalho é um elemento essencial para fazer com


que o modo capitalista de produção se mantenha, uma vez que limita a
conscientização dos sujeitos sociais e naturaliza a aceitação da ideologia do
capital, fazendo com que o trabalhador concorde com sua submissão. Essa
alienação precisa, então, existir em todas as relações de trabalho, incluindo a
educação, utilizada pelo capitalismo como um dos meios mais eficazes de
legitimação dos seus ideais. Isso porque, como considera Marx, o trabalho
alienado se constitui por:

Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer


parte de sua natureza, e, por conseguinte, ele não se realizar
em seu trabalho, mas negar a si mesmo, ter um sentimento de
sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente
suas energias mentais e físicas, mas ficar fisicamente exausto
e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente
67

à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se


sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém
imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma
necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras
necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo
fato, de logo que não haja compulsão física ou outra qualquer,
ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho
em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de
sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter
exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por
não ser o trabalho dele mesmo, mas trabalho para outrem, por
no trabalho ele não pertencer a sim mesmo, mas sim a outra
pessoa (MARX, 1967, p. 93).

No processo de trabalho, o produto do trabalho se transforma em


algo estranho ao ser humano que o produziu. Este estranhamento entre
produtor e produto pode ser considerado a base sobre a qual se desnuda o
conceito de alienação. O exemplo clássico é o da linha de montagem, em que
o trabalhador não se reconhece no produto final do seu trabalho, porque ele só
participou na confecção de um pequeno pedaço desse produto.

Se o trabalhador está alienado em relação ao todo de seu


trabalho, então é necessário entender que isto não acontece no nada, mas no
próprio processo produtivo capitalista. E, então, o trabalho, no capitalismo, é
sofrimento e não realização. Ainda que o trabalhador não queira ou não se de
conta disso, como é o caso do trabalhador compulsivo. O trabalho é forçado, se
trabalha para sobreviver e não para a satisfação profissional. O que move o
trabalhador não é a sua necessidade de satisfação subjetiva com o ofício que
executa, mas, de um lado, a sua necessária remuneração e, de outro lado, os
interesses dos donos dos meios de produção de explorar a mão de obra do
trabalhador. O trabalho compulsivo é algo tão absurdo quanto o turista que
deixa de prestar atenção aos lugares maravilhosos que visita para prestar
atenção ao veículo que o transporta.

Mas, então, como explicar a existência do trabalhador


compulsivo, aquele trabalhador viciado em trabalho, ou para utilizar o termo
estadunidense: o trabalhador workaholic? Como tantos professores que,
apesar das condições absolutamente adversas da escola pública, se dizem
realizados em sua profissão. E, na escola, há sempre os professores
workaholics. Eles estão, por assim dizer, no lado oposto da moeda da
68

síndrome de burnout. Todavia, também estão doentes. Segundo Wanderley


Codo, o workaholic encontra no trabalho uma forma de fugir dos problemas que
sua realidade lhe apresenta. Os viciados em trabalho não encontram satisfação
em sua vida pessoal, possuem poucos amigos ou dificuldades de se relacionar
com os familiares. Para não terem de enfrentar suas dificuldades, transferem
para o trabalho a responsabilidade de garantir a gratificação que não
encontram em sua vida pessoal, tornando-se obcecados pelo trabalho (CODO,
2006). Obviamente, o mundo capitalista vê com bons olhos o viciado por
trabalho e quer tirar vantagens dele. E não se importa se o workaholic acaba
negativando todos os outros aspectos da sua vida. De acordo com Santos:

A atual relação entre o indivíduo e a organização do


trabalho leva a crer que, embora a sociedade tenha
evoluído, o trabalho tem sido motivo de redução da
expectativa de vida de algumas pessoas. As pesquisas
nesse campo, ainda muito limitadas, especialmente no
Brasil, apontam que algumas pessoas estão trabalhando
em uma quantidade de horas que excede a sua
capacidade física, levando a doenças ou até mesmo à
morte. Exemplos desse tipo de comportamento estão
presentes nos estudos sobre Workaholic e sobre a
síndrome de Karoshi, que são traduzidos,
respectivamente, do inglês como “vício em trabalho” e do
japonês como “morte por excesso de trabalho” (SANTOS,
2010, p. 13).

Os workaholics são profissionais compulsivos pelo trabalho. Mas,


não amam sua profissão, amam trabalhar. São muito competitivos e
intolerantes com os colegas que não seguem o mesmo ritmo. Dormem pouco e
não descansam. Não entendem a necessidade do lazer em suas vidas e não
gostam de tirar férias. E tampouco aceitam a ideia de que o excesso de
trabalho causa uma queda em sua produtividade. Para utilizar um antigo
jargão, não é a quantidade que importa, mas a qualidade. Dentre aqueles
profissionais que permaneceram na escola e não se desesperaram com os
seus horrendos resultados, muitos são viciados no trabalho. O amor ao
trabalho é legítimo, mas o amor a uma profissão com pouca satisfação
profissional, como tem sido a profissão do professor, é algo bastante estranho.
69

“Quem ama o feio, bonito lhe parece”, nos ensina a sabedoria


popular. Mas, quem ama o trabalho numa escola que não sabe para onde
caminha, que desconhece sua função na sociedade onde existe, e que se
acostumou a não cumprir nenhuma tarefa que promete, ama de mentirinha,
ama de faz de conta. Seu amor pelo trabalho é obcecado, mecânico. Eles nada
sabem, nada fazem, nada amam verdadeiramente em seu trabalho e por nada
se interessam verdadeiramente, a não ser pela sua própria nulidade e por seu
trabalho automático e sem sentido. E assim vamos levando uma educação de
faz de conta: o professor faz de conta que ensina e o aluno faz de conta que
aprende.

O trabalho compulsivo é o momento da desova do amor ocioso,


não realizado, não exercido na própria vida e que não pode permanecer
estocado. Por isso, os trabalhadores compulsivos se dedicam tão incontrolável
e desmesuradamente à sua profissão. O labor profissional é a oportunidade
que possuem de reeditar seu afeto. O educador que não consegue se
desesperar diante das esperanças frustradas por uma educação escolar não
realizada não pode amar verdadeiramente sua profissão. E sua incapacidade
de amar verdadeiramente é seu salvo conduto contra a depressão. Porque,
lembrando Solomon mais uma vez: “para poder amar, temos que ser capazes
de nos desesperarmos ante as perdas”.

Obviamente, a depressão, que na Idade Média foi considerada um


grave pecado contra Deus, hoje é considerada um grande pecado contra o
mundo do trabalho. De forma inversa, para a lógica capitalista nenhum pecado
há na pessoa compulsiva, viciada por seu trabalho. Como testemunho desta
afirmação, verificamos o rareamento de estudos acadêmicos sobre uma
moléstia que, ao menos na escola, não perturba. Conforme considera Santos:

Observa-se que no Brasil, foram desenvolvidos poucos


trabalhos científicos sobre as pessoas viciadas em trabalho e
um número ainda menor de pesquisas foi publicado. Durante
as investigações para a elaboração do presente estudo
encontraram-se poucos trabalhos sobre o tema: uma
dissertação desenvolvida por Ferreira (2003) – O fenômeno
workaholic na gestão de empresas; um artigo na Revista de
Administração Eletrônica, desenvolvido por Friedman e Lobel
(2003) – O workaholic satisfeito: um modelo para os liderados;
70

e a pesquisa de mestrado desenvolvida por Müller (2007) –


Worklover: realidade ou mito? A experiência de médicos de um
hospital universitário de Porto Alegre. Além desses, o que se
destaca como uma contribuição importante para este estudo é
a pesquisa coordenada pelo psicólogo Wanderley Codo na
UNB, com o tema Worklover, que apresenta os apaixonados
pelo trabalho (SANTOS, 2010, p. 14).

Contudo, a compulsão para o trabalho, como todo vício, é uma


moléstia tanto quanto a depressão. As pessoas viciadas em trabalho são
movidas pela necessidade pessoal de buscar refúgio. Com sua adesão
mecânica ao trabalho elas juntam as migalhas jogadas ao chão de uma vida
emocionalmente miserável e assim conseguem continuar suportando uma
existência insuportável. Seu frenesi pelo trabalho é uma fuga do terror que
inspira a perspectiva de um estreito contato com sua própria realidade. Por
isso, entre as características mais típicas e menos aceitáveis do trabalhador
compulsivo estão a incompreensão, a perseguição e a desaprovação das
pessoas que não conseguem acompanhar seu frenesi ou que faltam ao
trabalho por motivos de saúde. Dentre os quais se acham aqueles profissionais
acometidos de depressão, que ousaram se desesperar diante de uma profissão
em desencanto. O trabalhador compulsivo não ama verdadeiramente o que faz,
então não entende e nem aceita a depressão, associando essa moléstia à
preguiça e à vadiagem. Para o workaholic, os trabalhadores que se ausentam
por depressão são um motivo de repúdio e condenação.

O protótipo do trabalhador compulsivo é a criança modelada,


condicionada, reprimida, sem liberdade, que se senta a uma carteira monótona
da escola, com severa restrição de movimento e comunicação. Esta criança , mais
tarde, será o adulto sentado a uma escrivaninha de escritório ainda mais
monótona, ou à cadeira de professor em sala de aula. A criança “pré-fabricada”
pelo capitalismo contemporâneo, de cultura mercadológica, é uma criança
dócil, disposta a obedecer à autoridade, temerosa da crítica e quase fanática
em seu desejo de ser convencional e adaptada. Aceita o que lhe ensinam
quase sem perguntas para transformar-se, depois, no adulto que irá transmitir a
seus filhos e alunos todos os seus medos e frustrações. No extremo oposto
estão aquelas crianças irritadiças, agressivas, “maldosas”, desleais e
destrutivas, tão conhecidas dos professores. Elas também foram vitimadas
71

pelas exigências morais de uma renúncia rigorosa aos impulsos oriundos


daquilo que Freud chamou de “princípio de prazer”. Mas, reagiram de forma
diferente. Talvez sejam elas o protótipo dos inconformados de sempre,
daqueles que ousam se desesperar ante as perdas.

Obviamente, não é possível mesmo tratar os resignados e os


inconformados de outra maneira senão pela via do paradoxo. O primeiro visa a
submissão e o segundo a revolta diante do desprazer, diante de uma
experiência desagradável. Obviamente não cabe aqui tratar de um assunto
desta envergadura. Seja como for, tenho muitas questões relativas à lógica do
princípio do prazer e às formas sociais de sua “evitação”. E creio que Freud
também as tinha:

Na teoria da psicanálise não hesitamos em acreditar que o


curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente
regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o
curso desses eventos é invariavelmente colocado em
movimento por uma tensão desagradável e que toma uma
direção tal que seu resultado final coincide com uma redução
dessa tensão, isto é, com uma evitação do desprazer ou com
uma produção de prazer. [...] Deve-se, contudo, apontar que
[...] o princípio de prazer [...], do ponto de vista da
autopreservação do organismo com relação às dificuldades do
mundo externo, é, desde o início [...] altamente perigoso. Sob a
influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio
de prazer é substituído pelo princípio de realidade. [...] O
princípio de realidade não abandona a intenção inicial de obter
prazer, mas (adota) [...] uma série de possibilidades para obter
esse prazer. [...] Não pode, porém, haver dúvida de que a
substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade
só pode ser responsabilizada por um pequeno número – e de
modo algum as mais intensas – das experiências
desagradáveis. [...] No curso das coisas, acontece repetidas
vezes que instintos individuais, ou parte de instintos, se
mostrem incompatíveis, em seus objetos ou exigências, com os
(códigos de conduta social). [...] Os primeiros são, então,
expelidos dessa unidade pelo processo de repressão, mantidos
em níveis inferiores de desenvolvimento psíquico e afastados,
de início, da possibilidade de satisfação. Se,
subsequentemente, alcançam êxito – como tão facilmente
acontece com os instintos sexuais reprimidos – em conseguir
chegar por caminhos indiretos à uma satisfação indireta ou
substitutiva, esse acontecimento se, em outros casos, seria
uma oportunidade de prazer, é sentida pelo ego como
desprazer. [...] Esse desprazer [...] é reconhecido como
“perigo”. [...] A “ansiedade” descreve um estado particular de se
esperar o perigo, ou preparar-se para ele, ainda que possa ser
desconhecido (FREUD 1976, p. 17-24).
72

Seja como for, a escola pública tem demonstrado ser um lócus


privilegiado onde o desprazer se encontra instalado. Um lugar onde a merenda
é, infelizmente, uma prerrogativa de absoluta relevância. E onde se tornam vãs
as esperanças que tantos professores um dia depositaram na educação
escolar como uma forma indispensável ao resgate da sensibilidade humana e à
formação de consciências críticas e transformadoras. E para tomarmos de
empréstimo mais uma vez o termo utilizado por Solomon, um lugar digno de
“desespero”.
73

Capítulo 4 – Por que é que o professor ainda vai à escola?

Observai, por favor, aquelas fisionomias


sombrias, aqueles rostos torturados e
sem cor, mergulhados na contemplação
da natureza ou em outras sérias e
difíceis ocupações: parecem
envelhecidos antes de terminada a
juventude, e isso porque um trabalho
mental assíduo, penoso, violento,
profundo, faz com que aos poucos se
esgotem os espíritos e a seiva da vida.

(Erasmo de Rotterdam)

Tudo o que alguns tiranos da mente


desejam é que quem ensina tenham
mentes doentias.

(Voltaire)

Quase três décadas na condição de professor da escola pública


me levaram à grave constatação de que, dentre os profissionais da educação
com quinze ou mais anos de magistério só existe dois tipos de professores: há
aqueles que não aguentam mais e há aqueles que mentem. E eu não os
censuro: estar em paz com uma escola que pode ser definida como uma
fábrica de alienados, insanos e semianalfabetos, que oprime ao invés de
libertar e promete sem nunca cumprir suas promessas, não é uma atitude das
mais corretas. Contudo, permanecer numa profissão que possui as
características que a escola pública brasileira tem assumido me parece uma
atitude bastante desproposital e estranha.

Tenho visto professores que um dia chegam à escola munidos de


suas esperanças em pouco tempo marcharem, qual uma turba dantesca, rumo
à desilusão, inexorável, de que, na escola pública, qualquer procura que se
faça por uma educação de qualidade será vã. A escola tem dado sua
importante contribuição a um sistema infame e vil que não apenas permite,
mas induz as pessoas a tornarem-se perturbadas. Não procuro com estas
74

palavras o imediato consenso crítico que poderiam me conceder o círculo


majoritário dos professores, meus colegas de profissão. Ainda que não
concordem comigo, eles sabem muito bem do que eu estou falando. Tampouco
tripudio sobre a triste sina que paira pesadamente sobre a escola pública
brasileira e seus bajuladores e falsos justiceiros. Apenas não posso me calar
diante do assombroso espetáculo que as promessas não realizadas que tanto
as políticas públicas para a educação escolar quanto as pedagogias salvadoras
da pátria teimam em nos apresentar.

Ora, a escola não é uma ilha social. As tradições sucumbiram aos


novos tempos e os novos tempos se impuseram à educação escolar. Muitas
das antigas tradições e suas formas de “bem viver” foram simplesmente
esquecidas e abandonadas. Os artesanatos, as artes, as cantigas e as danças
tradicionais hoje são parcas reminiscências praticadas por antigos mestres e
seus discípulos em raros lugarejos, com o afrontoso desinteresse e o desdém
dos mais jovens. A contemporaneidade tem levado a valorização da jovialidade
a uma paradoxal morbidez, onde corpos esculpidos em academias e em
clínicas de cirurgia, extravagantemente sexuados, siliconados e anorexos,
denunciam a presença da luta extenuante e desproposital contra o
envelhecimento numa busca angustiante pelas fontes da eterna juventude.

Nesse fabuloso mundo contemporâneo, crianças e jovens – e


adultos infantilizados - são reféns da chamada “utopia jovem”, um simulacro de
beleza e felicidade intangíveis, produzida e distribuída em escala mundial. A
beleza, a vitalidade, a coragem, a impulsividade, a energia, enfim, tudo aquilo
que foi registrado no imaginário social como juvenil, passa a ser
cuidadosamente explorado pela mídia e pelo mercado. Para esta tarefa
concorrem os sempre novos meios de comunicação. Há sempre uma novidade
no ar. Tudo parece muito provisório, relativo e descartável. E todos marcham -
“jovens para sempre” - livres das amarras e limitações da autoridade vil e tirana
dos mais velhos e seu tempo tenebroso. São livres agora, mas livres para o
consumo frenético de produtos efêmeros e descartáveis, como se fossem
imprescindíveis. Livres para fazer exatamente aquilo que a indústria e o
mercado, através dos sempre novos meios de comunicação, dizem que eles
75

devem fazer. Um exército de idiotas felizes, dentro e fora da escola, agindo a


serviço do capitalismo.

Desde o advento da chamada “sociedade de consumo” e seu


suposto “Estado de bem estar social”, sobretudo a partir da década de 1950, a
infância e a juventude passaram a ser o nicho mais importante do mercado.
Para vender sempre mais o consumismo criou a apologia à novidade. Nesse
sistema fabuloso do novo, a novidade prosperou enquanto não só as coisas,
mas as pessoas tornam-se dispensáveis. Especialmente os mais velhos, tidos
como uma espécie de mercadoria fora da validade. A derrocada do respeito e
consideração outrora outorgados aos idosos, tidos como fonte de sabedoria e
patrimônio vivo das futuras gerações, foi inevitável. Nas festas populares de
hoje raramente encontramos as antigas manifestações folclóricas, que ficaram
subsumidas a apresentações escolares toscas nas festas juninas. O acesso
vertiginoso à informação, propiciado pelos sempre novos meios de
comunicação, ajustou-se à utopia do “jovem para sempre” e destituiu a
autoridade dos mais velhos e experientes. A importância dos mais velhos como
fonte de informação, conhecimento e sabedoria é substituída pelos meios de
comunicação. E, na escola, a autoridade do professor, tido como figura
ultrapassada, torna-se revogada, humilhada e substituída pela autoridade dos
sempre novos meios de comunicação. Especialmente os telefones celulares,
signos da jovialidade com sua marca registrada de irreverencia afrontosa e
debochada.

Parece estar claro que a educação escolar não acontece no


vácuo. Ela acontece no âmago de um mundo que promete a redenção das
pessoas sem jamais cumprir suas promessas. A escola, nesse sentido, é o
lugar inequívoco onde são mantidos os diálogos mais fecundos entre as
promessas de salvação do povo oprimido e as formas de transgressão dessas
promessas. A educação não tem sido o apanágio que promete ser. Não tem
sido o proclamado grito de amor e esperança ao oprimido, à infância, à
juventude ou ao adulto que precisa ser alfabetizado. O ato de educar se afirma,
historicamente, diante das significações da sociedade das desigualdades onde
acontece, reproduzindo-a. Como consequência, na escola há sempre uma
76

história que poderia ter sido, mas que nunca foi. É nessa escola que crescem e
amadurecem nossas crianças até tornarem-se adultos. Mas, adultos
engolfados pela procissão interminável de signos sociais e valores definidos
pelo mundo da produção e do consumo onde estão - habilitados pelas leis do
mercado - comportamentos, crenças, dúvidas, certezas insólitas, informações e
conhecimentos a serem adquiridos na esteira da sucedânea infinda dos
modismos da sociedade contemporânea.

Enquanto os seres humanos contemporâneos – jovens e “adultos


juvenis” - afundam no prazer falacioso da utopia da jovialidade eterna e sua
saturação informativa, a escola navega à deriva. Sem uma bússola e sem
direção, é uma nau improvável, onde o professor, numa profunda crise de
identidade, se vê ameaçado pelas tempestuosas vagas de um sistema
educacional que parece não saber o que quer e nem para onde vai. Um
sistema desnorteado que, tal como o consumismo, oferece às massas a
redenção diante de suas agruras, mas não entrega o que oferece. Uma escola
que, não conseguindo realizar seu já antigo projeto progressista de capacitar o
aluno a ler a realidade onde vive para transforma-la, se contenta em tentar que
esse aluno ao menos consiga ler adequadamente o que escreve. Mas, muitas
vezes, nem mesmo isso ela consegue. Uma escola dividida entre a educação
crítica e transformadora, que nunca deu certo, e a educação para os concursos
vestibulares e o mundo do trabalho, que tampouco consegue se efetivar. Nesse
mar bravio e, aparentemente indômito, nós, professores da escola pública,
somos todos potencialmente náufragos numa nau de engodos onde prosperam
discursos falaciosos sobre as mais elevadas teses humanitárias de igualdade,
justiça e liberdade.

O desembocar inexorável da impossibilidade do professor realizar


seu trabalho na escola é a desistência da profissão. Muitos desistem ainda no
primeiro ano. Entre os que ficam a maioria adoece. E são remanejados. O
remanejamento é a forma que o governo encontrou de não aposentar o
professor incapacitado para o trabalho e exaurir desse trabalhador até sua
última gota de sangue e suor. Outros, dos que ficam na escola, se resignam a
uma profissão de faz de conta, quase sem sentido, onde recebem altas
77

responsabilidades e baixos salários. O que nos suscita uma pergunta que


parece cada vez mais difícil de ser respondida: qual o papel social da escola na
atualidade? Obviamente, existe uma contradição entre o que acontece na
prática dos professores e a teorização sobre como deveria ser essa prática.

Como se não bastasse a frustração produzida por uma satisfação


profissional muito mal resolvida, diante dos baixos salários grande parte dos
professores multiplicam sua jornada de trabalho: manhã, tarde e noite. Mais
trabalho implica em maior esforço de concentração e atenção e, portanto, em
maior fadiga. Além da fadiga do trabalho, o professor se esforça ainda um
pouco mais para não demonstrar cansaço e irritação. Mas, como tudo o mais
na escola pública, obviamente não consegue. A defasagem entre o trabalho a
ser realizado e o trabalho que realmente é realizado é cada vez maior. Frente
ao acúmulo de trabalho em condições adversas, a fadiga crônica se instala. E
se agrava com o aumento da irritabilidade e da frustração profissional. Então,
outra pergunta me parece pertinente: por que o professor ainda vai à escola?
Diante das ponderações sobre a situação da escola pública, as razões que
levam o professor a abandonar a profissão e migrar para outros ofícios são
bastante plausíveis, mas permanecer na escola, me parece algo bastante
irracional.

Ninguém é uma ilha social, portanto o ônus a ser pago pela vida
em sociedade é a produção de estados emocionais sofridos, que acabam
causando nas pessoas comportamentos de ordem irracional. Eventualmente,
todos somos candidatos potenciais ao divã psicanalítico de Sigmund Freud.
Quanto a isso, Albertini (1994) cita o episódio em que Freud, ao ser
questionado por uma mãe sobre qual seria a melhor forma de educar seu filho,
respondera: “Faça como quiser, qualquer que seja a maneira, ela será
igualmente má” (ALBERTINI, 1994, p. 65). Obviamente, Freud, com sua
conhecida figura sisuda, se referia ao fato de que, não importa a educação que
se dê a uma pessoa ela sempre será vítima do sofrimento psíquico que a
sociedade, com suas imposições e proibições, impõe a todos. E eu diria que
esse sofrimento psíquico toma ares de extravagância no capitalismo, em
virtude das renúncias a que está sujeitada a maioria da população.
78

Se o indivíduo não é uma ilha na sociedade, tampouco a escola o


é. E o sofrimento a que a sociedade capitalista submete a maioria das pessoas,
também aparece na escola. Todavia, a escola esbanja de sua função de
produzir sofrimento nas pessoas. Sobretudo, no que tange às difíceis
condições enfrentadas pelo professor em sua penosa procissão de fé rumo a
tal “educação de qualidade”, que nunca chega. Este é um assunto instigante e
desafiador, tanto que muitos pesquisadores têm se debruçado sobre o estudo
das difíceis condições de trabalho enfrentadas pelo professor. Dentre essas
pesquisas, está a de Ferreira (et. al., 2003), segundo a qual, a inutilidade diante
da realização de tarefas desinteressantes e aparentemente sem finalidade
acaba produzindo uma situação depressiva dominada pelo cansaço e pelo
medo. Sentimentos que surgem do esforço grandioso para realizar uma tarefa
cujo conteúdo significativo se acha anulado ou pelo menos inacessível. A
seguir a transcrição do resultado de um questionário aplicado entre professores
pela referida pesquisa:

O ambiente e o ritmo de trabalho foram considerados


estressantes, com a presença de fatores como agressão,
indisciplina, brigas e pichações, que interferem na vida pessoal.
Foi citada a necessidade de levar trabalho para casa, por falta
de tempo de desenvolver as atividades na escola, bem como
carregar peso e realizar esforço físico intenso com frequência.
A acústica da sala foi considerada insatisfatória, com referência
de local ruidoso, tamanho de sala e temperatura do ambiente
inapropriados. O material de trabalho foi considerado
insuficiente e inadequado. Também a utilização de produtos
químicos irritativos na limpeza da escola, a presença de
poeira e de fumaça no local foram fatores significativos nas
respostas de quem apresentava alteração vocal. (Ibid., 2003, p.
05),

Com relação aos aspectos de saúde, os professores entrevistados


relataram:

[...] alergias, dores no corpo, problemas de coluna, ansiedade,


gastrite, doenças das vias respiratórias, resfriados constantes,
dores de cabeça, depressão, reumatismo, azia, ciclos
menstruais irregulares e alterações de audição, como
incômodo a sons ou ruídos, zumbido, tontura ou vertigem.
Também apresentam alterações no sono, acordando durante a
noite e despertando cansados. Cada professor referiu, em
média, quatro queixas de saúde (Ibid., p. 05-06).
79

A desvalorização da educação pública está escrevendo a história


de nosso país. O discurso oficial coloca a educação como direito da pessoa e
dever do Estado. Mas, que educação é essa, que pessoa é essa e que Estado
é esse? O que há de fato e visivelmente é uma crescente desvalorização da
atividade docente, em razão de baixos salários e da pauperização dos recursos
materiais das escolas públicas. No mais das vezes esses recursos encontram-
se resumidos a uma lousa bastante precária, um giz e a voz do professor já
desgastada pelos anos de trabalho. Com estes recursos é dada ao professor a
tarefa de sustentar a atenção dos alunos: “menino, se você não parar de
conversar e começar a prestar atenção nunca será alguém na vida”. Em que
pese a frase tão familiar a todos os que já foram alunos, o fato é que o
conteúdo desta frase não é verdade. Não se pode justificar a necessidade da
escola como promotora de bem estar social para um aluno cujo pai mal sabe
ler e escrever, pouco frequentou a escola, e como agricultor, eletricista,
encanador ou pedreiro ganha muito mais que um professor com
especialização, mestrado e até doutorado.

Então, como podemos justificar para o aluno da escola pública a


necessidade de estudar? Talvez, devêssemos dizer a eles que devem estudar
para melhorar sua cultura e sua postura crítica diante dos problemas da sua
realidade. Entretanto, o aceso facilitado à internet e suas informações obtidas
através dos telefones celulares da moda oferecem um acesso à cultura muito
mais livre e interessante. E também a rua e suas rodas de amigos se incumbe
de oferecer a esse aluno, especialmente aos jovens das periferias, uma cultura
muito mais atrativa, crítica e transformadora do que qualquer pedagogia crítica
e transformadora da escola. Os grupos de skatistas que ouvem as letras de rap
nas ruas e praças estão aprendendo de forma muito mais crítica e
transformadora a entender o mundo onde vivem. Enquanto a cultura escolar,
que o aluno é obrigado a aprender, não diz nada sobre sua realidade, a cultura
do hip hop, questiona a realidade dura desses jovens. E os politiza. A dureza e
a nudez das letras do rap revelam as injustiças e as desigualdades sociais e
concedem identidade, movimento e poder de voz a quem a escola teima em
querer calar.
80

Então, para que serve a escola? Para adaptar o aluno à vida em


sociedade? Para o ingresso no mercado de trabalho? Para ser aprovado nos
concursos vestibulares? Não advogo que sejam os objetivos que a escola deva
almejar, mas na pratica tem sido. E mesmo essas têm sido tentativas, no mais
das vezes, frustrantes, fartamente documentadas pelas reclamações dos
professores universitários que avaliam as redações dos concursos vestibulares
ou aqueles que avaliam as fichas de pedido de emprego. Então, para que
serve a profissão de professor? Os empregos disponíveis no mercado
necessitam somente daquilo que o aluno aprende até o sexto ano do ensino
fundamental: rudimentos de aritmética e leitura. Para que uma faxineira irá
precisar aprender logaritmo? Ou qual o interesse de um encanador na
existência do Australophitecus afarensis? Ou para que um vendedor se servirá
dos conhecimentos sobre reações eletroquímicas de oxirredução? Estas
críticas parecem ponderadas, não é mesmo? Mas, não são. São críticas
advogadas por uma terceira perspectiva de pedagogia para a escola. Mais
“moderninha”. Uma espécie de terceira via pedagógica. Uma pedagogia que se
diz crítica, mas não abdica do capitalismo e de suas forjas nefastas de
exploração da miséria humana. E separa o conhecimento que deve ser dado
ao pobre do conhecimento que deve ser dado ao rico. É a pedagogia do
chamado “aprender a aprender”, que propõe a substituição de grande parte dos
conteúdos escolares das escolas públicas por outra forma de educação
baseada na valorização da capacidade do aluno em aprender sozinho.

No sistema capitalista, tal como se encontra estruturada nossa


sociedade, certamente esses conhecimentos – e tantos outros em que eu
poderia pensar – são obsoletos para as profissões destinadas aos pobres. Em
outra sociedade, onde a liberdade pudesse se fazer efetivamente presente
para todos, tais conhecimentos seriam de melhor valia. Outra sociedade,
baseada na igualdade de condições e na justiça social, não admitiria que
existissem pessoas que têm privilégios, inclusive no aprendizado dos
conteúdos escolares. Os conteúdos que a humanidade foi capaz de produzir ao
longo do tempo, seriam nessas sociedades, democraticamente transmitidos a
todos, indistintamente. Portanto, que fique bem claro que não estou advogando
aqui a pedagogia do “aprender a aprender”, em qualquer um de seus engodos.
81

Essa pedagogia defende a ideia de que a sociedade mudou e a escola deveria


se adaptar a essas mudanças. Pois, o mundo do trabalho atual precisa de
pessoas capazes de aprender sozinhas. Precisa de seres humanos adaptados
a um mundo que segrega as pessoas entre aquelas que dominam e aquelas
que são dominadas. Neste ponto, oportuno recorrer à seguinte citação de
Newton Duarte, em seu artigo intitulado “As pedagogias do aprender a
aprender e algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento”:

Quando educadores e psicólogos apresentam o “aprender a


aprender” como síntese de uma educação destinada a formar
indivíduos criativos, é importante atentar para um detalhe
fundamental: essa criatividade não deve ser confundida com
busca de transformações radicais na realidade social, busca de
superação radical da sociedade capitalista, mas sim
criatividade em termos de capacidade de encontrar novas
formas de ação que permitam melhor adaptação aos ditames
da sociedade capitalista (2001, P. 38).

Mais uma vez: para que serve a escola? Ou ainda, para que o
professor ainda vai à escola? Em sua tese de doutorado intitulada “Valores e
vivências de prazer-sofrimento no contexto organizacional”, Ana Magnólia
Mendes considera que, na medida em que o trabalho é parte indissociável da
condição humana, trabalhar é parte dessa condição, como também é parte da
construção da sociedade e dos homens em suas relações sociais. Destarte, a
realização do trabalho é tida como importante fator na promoção e manutenção
da saúde.

Um dos sentidos do trabalho é o prazer. Esse prazer emerge


quando o trabalho cria identidade. Possibilita aprender sobre
um fazer específico, criar, inovar e desenvolver novas formas
para execução da tarefa, bem como são oferecidas condições
de interagir com os outros, de socialização e transformação do
trabalho. [...] permite que o trabalhador se torne sujeito da
ação, criando estratégias, e com essas possa dominar o seu
trabalho e não ser dominado por ele, embora nem sempre isso
seja possível, em função do poder da organização do trabalho
para desarticular as oportunidades para uso dessas estratégias
(MENDES, 2007, p. 51).

Há sempre o lado reverso da moeda. Na forma com que as


relações de trabalho se encontram organizadas, o trabalho acaba sendo um
tormento causador de doenças. Segundo o médico, psiquiatra e psicanalista
Cristophe Dejours, diretor do laboratório de Psicologia do Trabalho no CNAM –
82

Centre National d’Arts et Métiers – em Paris, em sua obra “A loucura do


Trabalho” (1987), existem relações diretas entre o adoecimento do trabalhador
e a dificuldade na execução de suas tarefas. Por intermédio de pesquisas com
trabalhadores, Dejours concluiu que "a organização do trabalho exerce, sobre o
homem, uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico" (p. 168).

Em 2014, a mídia nacional divulgou fartamente um ranking da


Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre
a violência contra o professor, onde o Brasil ostentava o primeiro lugar. 12,5%
dos professores ouvidos no Brasil disseram que são vítimas de agressões
verbais ou de intimidação de alunos pelo menos uma vez por semana. A média
mundial é de 3,4%. E na Coréia do Sul, na Malásia e na Romênia, o índice é
zero. Esse estudo e também revelou que apenas um em cada dez professores
brasileiros (12,6%) acredita que a profissão é valorizada pela sociedade. A
média global é de 31%. Já na Malásia, quase 84% (83,8%) dos professores
acham que a profissão é valorizada. Na sequência vêm Cingapura, com 67,6%
e a Coréia do Sul, com 66,5%. De acordo ainda com essa pesquisa, a cada
cinco horas de aula uma hora é desperdiçada pela desordem (FERNANDES,
2014).

Os baixos salários, a falta de reconhecimento e satisfação


profissional, o excesso de trabalho, a escassez de recursos materiais para
garantir a execução do ofício, a agressividade debochada e afrontosa dos
alunos, o desrespeito dos professores aos seus colegas são fatores que levam
ao esgotamento profissional em sala de aula. Além disso, sempre existem os
pais de alunos, diretores das escolas, secretarias de estado da educação e
membros da mídia burguesa que criticam os professores porque eles não
garantem na escola aquilo que a sociedade não consegue garantir fora dela
(NÓVOA, 2002, P. 57).

O quadro tétrico que paira como uma sombra sinistra sobre a


escola pública se agudiza ainda mais quando os esforços para educar
culminam em estratégias que tentam minimizar o sofrimento de seus alunos,
como a distribuição de merenda, para muitos a refeição mais importante do dia.
A renúncia do professor ao seu papel de educador implica numa renuncia
83

também à sua satisfação profissional. Eis a porta de entrada para o desgaste


na profissão. Segundo as reflexões de Neto e Marques em seu estudo
intitulado “Satisfação dos profissionais de Informática com fatores
motivacionais”, o prazer, que seria vivenciado se o profissional pudesse realizar
e ver reconhecido e valorizado o seu trabalho, acaba se transformando em
frustração e dor (2003, p. 01-16). Se pudermos admiti-las para a educação
escolar e depois confronta-las com os números da OCDE (acima referidos)
poderemos também concluir que a profissão do professor tem sido deveras
dolorosa e frustrante. Então, vale perguntar uma vez mais: por que é que o
professor ainda vai à escola?
84

Capítulo 5 – A educação estragada

O cipoal não é nenhum bosque


sagrado.

(Theodor Adorno)

Quem é ou já foi professor sabe que a tarefa é difícil. Quase


impossível. A educação pública em nosso país parece estar num beco sem
saída. Tudo o que se faz em prol de “bem educar” parece desaguar no
inevitável fracasso, na desilusão e no desespero. Em face às atuais
dificuldades do ensino escolar, muitos professores adotam estratégias de
sobrevivência como o abandono da profissão, a mudança de função na escola
(readaptação), a remoção entre escolas e o ausentismo no emprego. Então,
penso ser o caso de perguntar por que é que o professor ainda vai à escola?
Para além do necessário salário, haveria ainda algo que o move? Parece ter
sobrado somente um serviço sem sentido. O silêncio sobre essa questão
camufla um processo doloroso de perda de identidade, de sentimento de culpa
e desespero. Há um pacto da mediocridade pairando sobre a escola. Carlos
Alberto Gomes Chiarelli, advogado, professor e político brasileiro, chegou a
declarar como Ministro da Educação do Brasil em 1991 que, no Brasil, "os
professores fingem que ensinam, os alunos fingem que aprendem e o governo
finge que controla". E eu diria que todos juntos fingem que os números da
educação no Brasil não existem.

Em 13 de maio de 2015 a Organização para Cooperação e


Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou um documento onde o Brasil
figurava na 60ª posição num ranking sobre a educação escolar onde foram
avaliados 76 países, dos 196 países do mundo. Além disso, segundo o INEP
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), o
último IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) da Escola
Pública foi de 3,9 para os anos finais do ensino fundamental e 3,4 para o
ensino médio, (INEP, 2013). O fracasso escolar do aluno documenta o fracasso
do próprio sistema público de ensino. Se pudermos considerar a média 6,0,
85

utilizada como critério de aprovação pela maioria de nossas escolas,


poderemos também concluir que a escola pública brasileira tem sido reprovada
há anos. Os números testemunham, de forma irrefutável, a constatação de que
temos sim uma educação pública, mas uma educação pública deveras
danificada.

Embora nesses idos todos em que estive na escola lecionando eu


tenha ouvido muitas palavras de ordem como “educação exitosa”,
“universalização”, “equidade”, “excelência e eficiência”, “escola para todos”, o
que pude perceber foi o rebaixamento dos salários, o aumento nos índices de
não aprendizagem, o absentismo do aluno e, finalmente, a proliferação de
analfabetos funcionais. Para a escola mudar, o governo deveria mudar suas
prioridades. Investir mais na educação seria um bom começo. Outros países
investiram na educação escolar e encontraram um caminho para a melhoria de
vida de seus cidadãos. Um dos casos mais conhecidos é o do Japão que
investiu na educação nos últimos 50 anos e deixou de ser simplesmente uma
economia essencialmente agrícola e um país arrasado pela II Grande Guerra
para se tornar uma das nações industriais mais poderosas do mundo. E atingiu
um elevadíssimo padrão de vida para seus cidadãos. Todavia, entre nós,
continua certo - como sempre foi há 500 anos - que este é um país rico com,
com um povo pobre e uma educação miserável. Estudos demonstram que:

[...] cerca de 64% dos países do mundo têm renda per capita
inferior à brasileira. Por outro lado, na medida em que alguns
países com enorme população encontram-se abaixo do Brasil
nesta estrutura da distribuição de renda, concluímos que cerca
de 77% da população mundial vive em países com renda per
capita inferior à do Brasil. Assim, essa distribuição da renda
mundial, construída a partir do Relatório de desenvolvimento
humano de 1999 [...], nos revela que, apesar de o Brasil ser um
país com muitos pobres, sua população não está entre as mais
pobres do mundo. A comparação internacional quanto a renda
per capita coloca o Brasil entre o terço mais rico dos países do
mundo e, portanto, não nos permite considerá-lo um país pobre
(PAES DE BARROS; HENRIQUES; e MENDONÇA. 2000,
p. 126).
Parece-me razoável, então, argumentar que somos um país rico,
com um povo pobre e uma educação pública miserável. De fato, a educação
escolar da população pobre no Brasil não é uma prioridade. No Enem (Exame
86

Nacional do Ensino Médio) de 2014 mais de meio milhão de jovens tirou nota
zero na redação – cuja nota máxima era 1.000. Foram mais de 520 mil alunos,
quase um em cada dez, com nota zero na redação. Quem tira zero na redação
perde a chance de entrar nas quase 130 universidades públicas do país.

A quem interessa um povo que não sabe raciocinar, não sabe ler,
não sabe escrever, não sabe argumentar? A constatação de que nossa escola
pública se acha lastimosamente entrincheirada na função de não educar seus
alunos me parece inevitável. O que não significa dizer que nossos governantes,
dignos representantes da classe dominante, tenham desprezado a escola
pública ou mesmo não reconhecido o seu valor. Ao contrário, eles
reconheceram prontamente a importância (de)formadora do ensino público
sistematizado. E isso não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo e desde que
o sistema público foi criado. Conforme considera sociólogo francês Pierre
Bourdieu, o sistema escolar “é um dos fatores mais eficazes de conservação
social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e
sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural”
(BORDIEU, 2007, p. 41). Para o autor:

Além de permitir à elite se justificar de ser o que é, ‘a ideologia


do dom’, chave do sistema escolar e do sistema social,
contribui para encerrar os membros das classes
desfavorecidas no destino que a sociedade lhes assinala,
levando-os a perceberem como inaptidões naturais o que não é
senão efeito de uma condição inferior, e persuadindo-os de que
eles devem o seu destino social (cada vez mais estreitamente
ligado ao seu destino escolar, à medida em que a sociedade se
racionaliza) – à sua natureza individual e à sua falta de dons
(BOURDIEU, 1998, p. 59).

De conformidade, Moacir Gadotti, considera que o sistema


educacional de um país é o prolongamento de seu sistema social e político
(1980, p.20). Em outras palavras, “os sistemas educacionais transmitem
apenas a dose de conhecimentos que os seus dirigentes julgam necessário às
classes sociais que têm acesso a eles” (BIRNBAUM, 1969, p. 129).

Na verdade, não há nenhum problema, nenhum erro, nenhuma


contradição nos desastrosos resultados da educação pública brasileira. A
escola por aqui - e em qualquer outro país capitalista – vai muito bem. Ela
87

funciona como uma espécie de caixa de ressonância da sociedade onde existe.


Sua função, desde o surgimento do primeiro sistema público de ensino na
Prússia, em 1818, tem sido a de forçar as crianças a irem à escola para que
possam se tornar mais obedientes ao poder do Estado, que representa os
interesses do poder social hegemônico, isto é, da classe social dominante.

O sucateamento da escola, com péssimas condições de trabalho


e estudo, não é o resultado de um projeto que não deu certo, mas de um
projeto que deu certo. Os péssimos resultados da escola pública, dentro de
valores obviamente suportáveis, são vistos pelo poder social hegemônico como
uma solução e não como um problema, possuindo mesmo vantagens
impossíveis de serem desprezadas. O que chamamos comumente de “fracasso
escolar” constitui parte importante dos mecanismos sociais que visam restringir
ao máximo o acesso do povo oprimido ao conhecimento. Porque, como disse
Florestan Fernandes em entrevista à NOVA ESCOLA em 1991: "Um povo
educado não aceitaria as condições de miséria e desemprego como as que
temos". Ou nas palavras de Demerval Saviani (1989, p.66):

[...] se os membros das camadas populares não dominam os


conteúdos culturais, eles não podem fazer valer seus
interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores,
que se servem desses conteúdos culturais para legitimar e
consolidar sua dominação. Em suma, o dominado não se
liberta se não vier a dominar aquilo que os dominantes
dominam. Então, dominar o que os dominantes dominam é
condição de libertação.

Diferente do que acontecia na escola unitária de Gramsci, onde o


Estado assumiria todas as despesas em busca do acesso igualitário ao
conhecimento, entre nós, o Estado, ao assumir as despesas com o ensino
reivindica também o controle da escola. Por isso, como considera Paro: “Se
queremos uma escola transformadora, precisamos transformar a escola que
temos aí. E a transformação dessa escola passa necessariamente por sua
apropriação por parte das camadas trabalhadoras” (PARO, 2001, p. 10). Uma
escola que, como consideram Sastre e Moreno, tivesse a competência
necessária para levar os educandos a:

[...] conhecer melhor a si mesmos (as) e às demais pessoas,


fomentar a cooperação, a autoconfiança e a confiança em
88

suas companheiras e seus companheiros, com base no


conhecimento da forma de agir de cada pessoa [...]. A
realização destes objetivos leva a formas de convivência mais
satisfatórias e à melhoria da qualidade de vida das pessoas,
qualidade de vida que não se baseia no consumo, e sim em
gerir adequadamente os recursos mentais, intelectuais e
emocionais – para alcançar uma convivência humana muito
mais satisfatória (SASTRE, MORENO, 2002, p.49).

Em que pesem os estudos de teorias pedagógicas de orientação


socialista, sempre presentes nos infindáveis cursos de capacitação para
professores no início de cada ano letivo, a função da escola pública tem sido a
de manutenção de um modelo social baseado na exploração do homem pelo
homem. Dito de forma rápida e rasteira, a escola pública está, como sempre
esteve, a serviço da manutenção da dominação dos ricos sobre os pobres.

A tão propalada educação crítica para a transformação social


deixaria o campo da fantasia e do engodo se a escola propusesse um projeto
para a construção de uma sociedade alternativa que não ficasse apenas nos
textos dos cursos de capacitação, nos PPPs (Projetos Político Pedagógicos)
das escolas ou nos PTDs (Planos de Trabalho Docente) dos professores.
Porque, concordando com Moacir Gadotti:

Se é verdade que a educação não pode fazer sozinha a


transformação da sociedade, também é verdade que ela não
se efetivará e não se consolidará sem ela. Se ela não é a
alavanca da transformação social, isso significa, ainda que a
sua luta deve estender-se além dos muros da escola
(GADOTTI, 1980, p.63).

De viés, desde a da década 1960 – e especialmente a partir de


1990 - o capitalismo tardio vem mantendo por aqui uma educação escolar
elitista, instrumental e dual. Há de fato, uma escola para os filhos dos ricos (a
particular) e outra para os filhos dos pobres (a pública). E nas escolas públicas
a formação crítica e reflexiva cedeu seu lugar para a qualificação para o
trabalho e a preparação para os concursos vestibulares. Entretanto, nosso
sistema público de ensino nem ao menos conseguiu concretizar esse projeto
neoliberal. Os tantos professores que um dia sonharam em poder auxiliar seus
alunos na leitura crítica e transformadora da realidade, hoje se satisfazem se
ao menos conseguem que esses alunos completem o ensino médio sabendo
ler e escrever.
89

Nossa escola pública atual, bem como seus professores, gestores


e técnicos, não é herdeira apenas do paradigma social fordista, militarista,
competitivo, meritocrático e excludente da sociedade capitalista, como tem sido
afirmado muitas vezes. É isso sim, mas é também depositária fiel dos novos
paradigmas de uma sociedade pós-moderna que se diz libertária, mas orienta a
turba a caminhar desnorteada, rumo a lugar algum. A sociedade atual proclama
a si mesma como redentora da humanidade pelo espraiamento da
comunicação (informação). Este é o emblema de todo ser humano na aventura
de existir na aurora da globalização. Contudo, para além do véu das
aparências, não abdica da exploração econômica, da injustiça e da
desigualdade. A invenção dos tantos meios de comunicação capazes de
aproximar a humanidade não conseguiu aproximar ninguém; nunca estivemos
tão distantes uns dos outros.  Os aparelhos celulares tornaram-se mais
importantes que a visita ao amigo. Enquanto isso, as florestas de antenas
parabólicas sobre os barracos que se amontoam nas favelas descortinam a TV
como o mais poderoso narcótico nacional. Mais do que nunca vale lembrar
McLuhan: "Os homens criam as ferramentas e as ferramentas recriam os
homens." (JORNAL DE DEBATES, 2007). Ou, metaforizando a citação de Marx
e Engels, “Os produtos de suas cabeças acabaram por se impor às suas
próprias cabeças. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações.”
(MARX; ENGELS, 1991, p. 17).

É, de fato, uma aventura existir no mundo contemporâneo. Uma


aventura reluzente, mas frustrante. Que promete sem jamais cumprir o que
prometeu. E torna refém do “querer ter”, desde a mais tenra idade, o ser
humano urbanizado/industrializado que, sem rumo e sem direção, se perde de
si mesmo e revoga de sua existência a perspectiva do “querer ser”. O
importante agora é a aparência e não a essência. Nesse mundo de faz de
conta, virtualizado, a fantasia adquire status sacro-santificado e as pessoas
consomem a ficção de sua própria satisfação como se fora realidade. Não por
acaso, imagens televisivas, jogos eletrônicos, computadores, celulares e
internet compõem o cotidiano de crianças, adolescentes e adultos infantilizados
que, abarcados cotidianamente pelos valores éticos e estéticos da sociedade
urbana/industrial, tornam-se escravos felizes de um sistema de dominação que
90

aporta, para além de suas consciências alienadas e reificadas, na


mercantilização da cultura e da informação. Com efeito, não é raro se encontrar
educadores nas escolas assistindo novelas durante sua hora-atividade nos
aparelhos de TV sempre presentes nas salas dos professores. Inversamente,
não me lembro de ter visto nenhum colega, em quase três décadas de
magistério, assistindo programas didáticos ou pedagógicos nesses aparelhos.

Analisando os efeitos da mídia, Marilena Chauí (1993) considera


que o tempo que a televisão concede ao espectador é tão somente aquele que
lhe permite concordar com a mensagem ideológica que está sendo veiculada
nos programas, novelas e noticiários. Nessa medida, o espectador habitua-se a
ter uma concentração minimizada a apenas esse curto período, tornando-se
desatento e incapaz de concentração em tarefas que exigem tempo mais
prolongado. A leitura de textos e livros, que demandam tempo de atenção e
concentração maiores, torna-se intolerável (CHAUÍ, 1993).

Já tive a oportunidade de ouvir da boca de alguns colegas


professores: “eu odeio ler”. Como assim, professores que odeiam ler?!
Minimamente esses sujeitos estão na profissão errada. Sem falar no cinismo
afrontoso de sua confissão. Todavia, pelo que tive a oportunidade de vivenciar
ao lado dos professores nas escolas em que lecionei, temo que o número de
professores aversos à leitura seja bem maior do que o número dos que
confessam. Esse é o processo de “infantilização” do espectador de que nos
fala Marilena Chauí. Uma infantilização que congrega a expectativa de receber
de modo simplificado e resumido informações que não necessitem reflexão.
Diante da provisoriedade e da ligeireza pós-modernas, a mensagem pelo
telefone celular substitui a visita ao amigo, o vídeo-clip substitui o filme, a cópia
xérox de capítulos substitui o livro e a novela substitui os relacionamentos.

Numa tentativa desesperada de buscar a si mesmo o ser humano


contemporâneo se depara, de forma esquizofrênica, com a revogação de sua
identidade e com o seu próprio esgotamento existencial. O indivíduo pós-
moderno tem se tornado cada vez mais adaptado a um imenso e sufocante
mundo aligeirado, individualista e competitivo. As pessoas parecem
mergulhadas num contínuo estado de pressão e urgência, tomadas por
91

sensações vazias e por estados depressivos e de irritabilidade. O professor


não está livre deste processo. Sua postura na escola é a de um reprodutor
desse sistema. De acordo com Saviani (1989), o professor ensina aos alunos
uma visão de mundo simplificada, regulada e ordenada, ao mesmo tempo que
exige que eles venham a dominar os próprios impulsos. Na escola, como
considera Fabra (1979), a autoridade do professor deriva do fato de ser o
representante das autoridades sociais.

[...] o professor, portanto, não se pode apresentar aos seus


alunos como é na realidade, mas deve desempenhar um papel,
o de introdutor das mais importantes realizações do homem, o
qual o obrigará a permanecer a certa distância dos educandos,
impedindo manifestações emocionais que, ao provocar
rivalidades e frustrações de tipo afetivo, dificultariam a sua
tarefa (1979, p.41).

Com efeito, poucos são os professores com quinze ou mais anos


de profissão, com quem conversei nestes malfadados anos de magistério, que
não reclamaram estar sofrendo de mal humor cotidiano, falta de concentração,
medo, pânico, angústia, perda de interesse em concretizar atividades
cotidianas e vontade quase incontrolável de chorar. Também é verdade que
são poucos os professores arrojados, desejosos de mudança, ansiosos pelo
contato com o outro e por viver. Eles são o reflexo de uma civilização onde as
crianças nascem numa atmosfera que desaprova e revoga o prazer, a
diversão, a empatia, a alteridade, a identidade e, no limite, a própria vida.
“Freud tinha muito mais razão do que supunha quando disse que a civilização
produz a anticivilização e a reforça progressivamente” (ZUIN; PUCCI; RAMOS-
DE-OLIVEIRA, 2000, p. 51).

Devemos nos lembrar de que “o cipoal não é nenhum bosque


sagrado” (ADORNO, 1993, p. 74). A epígrafe deste capítulo é uma advertência
que nos faz Theodor Adorno, em Mínima Moralia: se tivermos objeções, por
mais irrelevantes que possam parecer, devemos trata-las com muita seriedade.
“A circunspecção que proíbe de se ousar ir longe demais [...] é, na maioria das
vezes, apenas um agente de controle social e, como tal, de estupidificaçao”
(Ibid., p. 74). Em que pesem as dificuldades e opiniões em contrário, existe um
arcabouço imenso e emaranhado de fatores ocultos nos meandros da
92

educação escolar pública que funciona como instrumento de controle social e


idiotização do aluno.

Este arcabouço é mesmo um cipoal, no entanto, não podemos


estabelecer com ele uma atitude de intocabilidade. Para uma realidade
complexa faz-se necessário uma atitude não menos complexa. Uma atitude
que possa dessacralizar as engrenagens do sistema, desemaranhando e
pondo a nu os seus mecanismos mais secretos. Essa prática só pode
acontecer ao vasculharmos os recônditos profundos da realidade escolar onde
se entrecruzam as ideologias que emanam da indústria cultural na pós-
modernidade. Ideologias que se instalam na escola sob a forma da barbárie,
desde suas formas mais agressivas, como o nazi-fascismo, até as mais
frequentes e dissimuladas. E é exatamente neste ponto que o debate em torno
dos bastidores sinuosos da escola pública torna-se, embora difícil,
extremamente precioso. No fim das contas, o que há de nos salvar de nós
mesmos, apesar de toda bestialidade, intolerância, hipocrisia e destruição, é a
incrível capacidade humana de ainda acreditar. Como diria um velho amigo

meu, “a humanidade é uma grávida de possibilidades”.

Na década de 1990 o governo assumiu como prioridade a


inserção do país no modelo econômico da globalização. O neoliberalismo se
tornou a via de concretização das políticas públicas para a educação,
assumindo como diretriz a perspectiva tecnológica, cujo objetivo, em última
análise, era, inexoravelmente, o atendimento das demandas do mercado. As
chamadas “Necessidades Básicas de Aprendizagem”, contidas no documento
elaborado na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada na
cidade de Jomtien, na Tailândia, em 1990, transformaram a escola numa
espécie de apêndice do sistema de produção, enquanto a formação docente se
transformou em cursos de capacitação. Nessa mesma medida surgiu o
“Programa de Progressão Continuada”, que acentuou a sedimentação,
superficialização e acriticidade do conhecimento passado ao aluno. O sistema
de progressão continuada, de promoção ou aprovação automática do aluno
para as séries subsequentes, se propôs à eliminação falseada das altas taxas
de reprovação com o objetivo falacioso de diminuir a evasão escolar. Esse
93

programa foi a mola propulsora dos elevados índices de analfabetismo


funcional, encontrados hoje na escola pública. Bem como dos chamados
semianalfabetos diplomados.

Aos poucos se pôde perceber que a escola pública, que já havia


deixado de ser o local para o desenvolvimento de uma educação crítica e
libertária, que não mais sonhava em ser o guia da sociedade para a
emancipação, agora nem ao menos cumpria seu papel de atender as
exigências do mercado de trabalho. A escola não estava conseguindo, como
de fato não consegue ainda hoje, transmitir as competências e habilidades
exigidas pelo mercado de trabalho. Com efeito, os professores mais antigos,
que ingressaram – idealistas - na profissão, numa época em que ainda se
podia esperar um projeto pedagógico de transformação social, hoje se frustram
diante de uma escola que luta para minimamente alfabetizar seus alunos. De
fato, é grande o número de alunos que terminam o ensino médio donos de uma
desortografia agramatical que parece querer reconduzir o conhecimento à
condição medieval do segredo.

Nesse processo, a autoridade do professor se fragilizou e a


profissão se desvalorizou a ponto de haver mesmo uma diminuição significativa
na procura pelas graduações em cursos de licenciatura. Esse parece ser um
caminho sem volta, que nasce das condições materiais precárias nas escolas e
dos baixos salários dos professores. Em Portugal, por exemplo, um professor
de escola pública ganha cerca de seis vezes mais do que seu colega ganha
aqui no Brasil. Na Coréia do Sul, que teve uma ampla reforma educacional no
fim da década de 1990, a docência é uma das categorias mais valorizadas e
sua remuneração é cerca de cinco vezes maior do que a nossa. Além disso, a
famigerada indisciplina do aluno é um coadjuvante poderoso no processo de
esvaziamento da profissão. E eu me pergunto: será que essa indisciplina não
nasce do grito em desespero do aluno contra a obrigatoriedade do ensino e a
impossibilidade da escola se justificar como necessária na sua vida?

É, deveras, tarefa das mais ingratas tentar convencer o aluno que


a escola desempenha um papel importante na garantia de um futuro melhor
para ele. O mito de que a educação escolar pode garantir um futuro promissor
94

é facilmente destruído pela constatação de que existem postos de trabalho


disponíveis no mercado que não exigem escolaridade e que pagam tanto ou
mais do que o magistério. Certa vez, depois de ter dado uma bronca numa
turma do ensino médio, bastante bagunceira, dizendo a eles que estavam
sabotando seu próprio futuro, pois o estudo poderia ajuda-los a melhorar de
vida, ouvi, atônito, de um aluno a seguinte resposta:

— Professor, meu pai é pedreiro, mal sabe ler e escrever e ganha


tanto quanto ou mais que o senhor.

Claro que sempre há a possibilidade de se justificar a educação


escolar como um espaço para a formação de um indivíduo crítico,
autoconsciente, sensível e defensor dos valores relacionados ao bem comum e
à sociedade democrática. Contudo, desde que comecei a lecionar quase que
somente pude encontrar essa educação no interior de livros e textos
acadêmicos sobre o ensino fundamental e médio, escritos no mais das vezes
por professores do ensino superior que jamais lecionaram no ensino
fundamental e médio. Ou nos intermináveis cursos de capacitação. Ou nas
reuniões pedagógicas. Ou nas repetitivas palestras das “grandes autoridades”
sobre o assunto, no mais das vezes uns ilustres desconhecidos das salas de
aula das escolas públicas. E, certamente, nas aulas de uns raros colegas,
especialmente os mais novos, que sofrem desde o início o afrontoso e
debochado desdém dos demais professores, os workaholics dede sempre, de
quem se pode ouvir em seus deselegantes cochichos pelos cantos: “quem ele
está pensando que é?”.

O objetivo fundamental da escola pública não é nem nunca foi a


elaboração de meios que facilitem o aprendizado. Tampouco foi algum dia uma
ponte para a redenção dos oprimidos. Também não é um lugar onde os
profissionais consigam bons salários ou reconhecimento. A escola pública é um
local muito bom para o desperdício da vida dos alunos e dos professores. Um
lugar onde professores pouco interessados ensinam assuntos
desinteressantes, de forma pouco interessante, a alunos desinteressados. Foi
criada para retirar as crianças da rua e dociliza-las para que pudessem ser
transformadas em adultos obedientes ao sistema. Começou Prússia, no início
95

do século XIX, quando a Revolução Industrial retirou os filhos das famílias e os


confinou, todos os dias, em lugares cheios de salas que passaram a ser
chamados de escolas. Em cada sala comandava o ensino um tirano com uma
grande régua de madeira na mão, qual um misto de cetro onipotente e porrete.
O que poderia um fascista querer mais do que ter nas mãos o poder e o
castigo?

Em 1971, não por acaso em plena ditadura militar, conheci bem


um destes tiranos. Me matricularam numa escola pública aos seis anos de
idade e nela aprendi cedo a suportar calado a dor e o sofrimento que o mundo
dos poderosos adultos me impunha. Fui torturado psicológica e fisicamente por
uma tenebrosa senhora que entrava todos os dias em nossa sala de aula e se
dizia “a professora da turma”. Meu Deus, se aquilo era uma professora... Nem
aquela professora e nem nada mais na escola me preparou para viver. Ainda
hoje me lembro muito bem dela: era uma workaholic. Jamais faltava a uma
aula. Quisera Deus que faltasse! Portanto, nem sei como pude me tornar
professor. Talvez, para consertar na vida dos meus alunos os estragos que
tantos professores workaholics fizeram na minha. Sei lá. Não sou bom de
autoanálise. Mas, afinal, quem o é?!

Capítulo 6 – A sociedade estragada

A História é feita com o tempo, com a


experiência do homem, com suas
histórias, com suas memórias.

(Prado e Soligo)

Às vezes até queremos fazer a história


dos outros, mas a escolha do tema, a
organização do projeto e a condução
das entrevistas demonstram que
96

estamos sempre fazendo também a


nossa própria história.

(Rubem Figgot)

Meu pai, José Hilário, membro fundador da Academia Maringaense


de Letras e profundamente apaixonado por Maringá, a cidade que escolheu
para viver, assistiu o desfecho de sua própria existência de forma silenciosa,
triste e solitária. Ele morreu em minha casa, praticamente nos braços da minha
esposa, aos 72 anos de idade, às 21 horas e 12 minutos do dia 18 de outubro
de 2015. A eterna e inglória batalha da vida contra a morte acompanhou seus
últimos anos, quando residiu num quarto nos fundos da casa onde moro.
Segundo os socorristas do SIATE (Serviço Integrado de Atendimento ao
Trauma em Emergência) que o atenderam em seus instantes derradeiros, sua
morte foi devida a um ataque fulminante do coração. Mas, eu especulo se este
ataque cardíaco não teria sido o processo final de um profundo estado de
melancolia causado pelo abandono quase que completo que seus muitos
amigos o presentearam em seus últimos anos de vida. Como se sua velhice
tivesse sido uma irrisória de sua existência anterior.

No itinerário desta minha consternada recordação comparece o


livro de Norbert Elias, “A solidão dos Moribundos”, escrito em 1982, onde o
autor revela como as sociedades industrializadas assumem uma postura de
distanciamento em relação à morte e, consequentemente, também em relação
ao idoso. Elias nos descortina o paradoxo entre a forma com que os avanços
da medicina têm conferido longevidade ao ser humano, cuidando do corpo, e a
sua incapacidade em tratar dignamente a pessoa idosa que está neste corpo.
Pessoa idosa, quase sempre, relegada à morte silenciosa e solitária em nossas
cidades.

[...] as pessoas que envelhecem não podem ser entendidas a


menos que percebamos que o processo de envelhecer produz
uma mudança fundamental na posição de uma pessoa na
sociedade e, portanto em todas as suas relações com os
outros. O poder e o status das pessoas mudam, rápida ou
lentamente, mais cedo ou mais tarde, quando elas chegam aos
97

sessenta, aos setenta, oitenta ou noventas anos (ELIAS,


2001, p. 83).

De conformidade, Simone de Beauvoir, em seu livro “A Velhice”,


escrito em 1970, descreve uma “conspiração do silêncio” sobre a visão
depreciativa que a sociedade atual, dita “civilizada”, possui da velhice. E
convoca seus leitores a quebrar essa tal conspiração, respondendo à pergunta:
“[...] como deveria ser uma sociedade, para que, em sua velhice, um homem
permanecesse um homem?”.

A resposta é simples: seria preciso que ele fosse sempre


tratado como homem. Pela sorte que destina a seus membros
inativos, a sociedade desmascara-se; ela sempre os
considerou como material. Confessa que, para ela, só o lucro
conta, e que seu ‘humanismo’ é pura fachada. No século XIX,
as classes dominantes associavam explicitamente o
proletariado à barbárie. As lutas operárias conseguiram integrá-
lo à humanidade. Mas apenas enquanto ele é produtivo.
Quando os trabalhadores envelhecem, a sociedade afasta-se
deles, como de uma espécie estranha (BEAUVOIR, 1990, p.
663-664).

A questão da velhice denuncia o fracasso de nossa civilização


egoísta, tecnocrata e desumana, de cunho civilizatório eurocêntrico, que
precisa ser revisada. As relações entre os homens precisam ser recriadas. A
capacidade humana não pode continuar subsumida à capacidade produtiva.
Vejamos o exemplo dos aborígenes: distantes da nossa “civilização”, eles
respeitam os idosos como guardiões da sabedoria social. Contudo, o dito
homem civilizado tem revogado de sua existência a empatia. Em sua marcha
insana rumo à “prosperidade” se esquece de que as pessoas necessitam umas
das outras, não para explorar sua capacidade de trabalho ou para exercerem
nelas seus impulsos agressivos em busca de poder e autoafirmação, mas,
especialmente, para exercer nelas seus sentimentos de ternura.

Niccolò Maquiavel, o ideólogo da exploração do homem pelo


homem, se assim o posso chamar, acreditava que aquilo que move a atividade
humana é a luta pela conquista e manutenção do poder. Para este filósofo
renascentista, é o medo - e não o amor – o caminho que os governantes
devem escolher para subjugar o povo e, assim, se manter no poder.
98

[...] os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem


amar do que aos que se fazem temer, porque o amor é
mantido por um vínculo de obrigação, o qual, devido a serem
os homens pérfidos, é rompido sempre que lhes aprouver, ao
passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de
castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca
(MAQUIAVEL, 1983, p. 70).

O mundo tem sido um lugar ruim demais para se viver. Não apenas
porque existem pessoas que fazem o mal. Nem mesmo porque pensadores
como Maquiavel, têm se dedicado, ao longo do tempo, à edificação de
filosofias que não apenas pretendem justificar o injustificável, como traçam o
caminho para a construção das desigualdades sociais e de sua manutenção. O
mundo tem sido um lugar ruim demais para se viver por causa daquelas
pessoas bondosas que observam a maldade acontecer e não tomam nenhuma
providência. Como disse em um de seus sermões, Martin Luther King, “o que
me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. A condição
negativa do mundo atual depende mais da omissão dos bons do que da ação
dos maus. Quando o bom se omite o mal avança. E declara sua onipotência.

A maldade nunca diz “eu sou má”. Ela vem disfarçada, quase
sempre, em vestes de boa moça. Comumente, vem disfarçada com as vestes
da caridade dos ricos. Mas, os pobres não precisariam da caridade dos ricos se
não houvesse desigualdades e injustiças sociais. Nenhum dominado precisaria
catar as migalhas jogadas ao chão pelos dominadores se o mundo fosse
igualitário. Entre os indígenas não existiam ricos e pobres, tampouco eles
conheciam o conceito de esmola porque ninguém precisava de esmola. Entre
nós, os ditos civilizados, não há rico, todavia, que defenda sem hipocrisia uma
sociedade igualitária, com divisão de riqueza. De viés, evidências científicas
atestam a ternura como uma das características essenciais à vida humana.
Como as conclusões dos estudos mais recentes do educador Humberto
Maturana, que confirmam a existência de uma “Biologia do Amor”. O psicólogo
Wilhelm Reich também já apontara para uma necessária revisão na sociedade
que substituísse o ódio pelo amor.

Em “A Era dos Extremos”, Eric Hobsbawm nos descreve as muitas


faces daquilo que chamou de "extremos": os excessos da conduta humana no
99

século XX.  Nós vivemos num mundo absolutamente psicótico, falso, perigoso,
ruim demais! As pessoas comuns se invisibilizam umas às outras e a
descartabilidade do consumismo de objetos aos poucos incidiu também sobre
as relações humanas. À nossa frente está o absurdo abismo mundial entre
riqueza e miséria, avanços tecnológicos e barbárie. O século que produziu uma
opulência tecnológica, econômica e material sem precedentes também a
confinou em pequenos espaços do globo, e mesmo ali em poucas mãos.

O mundo emergiu do século XX para o século XXI como um lugar


caótico, violento, paradoxal e imprevisível. É como se a humanidade acordasse
do pesadelo nuclear para se deparar com seus piores medos realizados na
forma globalizada da fome e da miséria, mesmo com a indústria produzindo
muito mais comida do que a população humana mundial é capaz de comer.
Agora não apenas as coisas são descartáveis, como também as pessoas. Os
grandes poderosos não têm a menor consideração por nada nem por ninguém.
E temo que os “pequenos poderosos” também não. Nunca houve tanta
agressão, violência e guerra como nesses pouco mais de 100 anos. Tampouco
houve época em que tantos tivessem tão pouco e tão poucos tivessem tanto.

Depois das guerras, o segundo melhor negócio do mundo são as


drogas e ninguém pergunta por que se usa tanto drogas. Obviamente, porque
esse mundo é horroroso demais, difícil demais para suportar! Quem se droga
ou se embriaga deseja fugir da realidade. Os efeitos das drogas estão ligados
ao bem-estar, à euforia e à diminuição do cansaço. Há entre nós aqueles que
assistem TV até dormir. A televisão, em que pese os avanços da internet e do
telefone celular, ainda é o mais poderoso narcótico nacional: vicia, altera a
consciência e produz estados falaciosos de bem estar, enquanto as condições
de vida para a maioria da população ainda são humilhantes, degradantes e
indignas. Geralmente, os locais de trabalho oferecem insalubridade, baixos
salários e elevadas broncas.

Não só o trabalhador braçal sofre com sua forma de trabalho. Um


executivo, por exemplo, trabalha muitas horas por dia, submetido ao stress e
acaba tendo depressão, tem um enfarte, se medica, toma remédios e continua
com a mesma rotina. As pessoas se matam por valores que não existem.
100

Ansiedade, angústia, medo, psicose, depressão e stress são sinônimos da vida


atual. E a nossa prodigiosa ciência médica não cura ninguém disso.
Especialmente porque a ciência atual está a favor da conservação do sistema e
não da sua substituição por outro menos tenso, menos aligeirado, voltado à
empatia e conservação da natureza e não à competição e ao desperdício.
Contra as doenças de nosso estilo de vida, inventamos remédios e não a cura.
Nossa tecnologia é cumplice dos horrores do mundo atual e suas doenças
físicas e mentais. Falamos muito em qualidade de vida e revolução sexual.
Mas, poluímos os rios, extinguimos espécies inteiras de animais e destruímos
as florestas. A humanidade é deveras hipócrita, psicótica e suicida.

O ser humano atual, imerso em seu corre-corre cotidiano, se torna


incapaz de amar ao próximo e então acaba amando coisas. Como
consequência de um mundo voltado ao individualismo e ao enriquecimento, a
fome e a miséria acabam disputando espaço palmo a palmo. E o hábito de
conviver com as mazelas dos desvalidos banaliza um cotidiano cimentado na
desigualdade, na dor e no sofrimento da maioria. As agruras dos outros
acabam virando paisagem. E a válvula de escape para o rico continuar
suportando sua existência insuportável é a caridade.

No conluio da civilização atual, não só os velhos são destituídos de


sua condição de importância, mas também os pobres, os mendigos, os
miseráveis, as crianças de rua. Enfim, os ditos marginais e os chamados “não
produtivos”. Manuel Bandeira, em seu poema “O bicho” coloca o sofrimento do
miserável em seu devido lugar de lástima e repúdio, pois o olhar diante de
alguém com severa privação deveria ser sempre o olhar de identificação,
empatia e desvelo. Mas, não é. Não tem sido.

Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
101

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Tangenciando as reflexões de Freud em “O mal estar da


civilização”, Norbert Elias, em seu livro “O processo civilizador”, considera que
a supressão das características “animais” ou “incivilizadas” das pessoas é
crucial para a construção do processo civilizador. Elias nos mostra como
produzimos mudanças psíquicas que alteram nossa vida social e moldam
nossos comportamentos. Literalmente:

[...] as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram


suprimir em si mesmas todas as características que julgam
‘animais’ [...] (há uma) tendência cada vez mais forte de
remover o desagradável da vista, o repugnante é removido
para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no
açougue ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é
característico de todo o processo que chamamos de civilização
esse movimento de segregação, este ocultamento para “longe
da vista” daquilo que se tornou repugnante (ELIAS, 1993,
p.128- 129).

O pêndulo oscilante entre o civilizado e o incivilizado vê-se


finalmente firmado no processo educacional, onde a coerção (penalidades,
punições, perseguições) e, posteriormente, a autocoerção (cortesia, etiqueta,
educação), serão as responsáveis pela produção do chamado “processo
civilizador”. O estabelecimento da ordem dentro do mundo é o que se diz do
objetivo desse processo civilizador: tanto mais civilizado quanto mais adaptado
às normas e regras do convívio social; e inversamente. Espera-se, assim, que
quando a sociedade é civilizada, as punições, por exemplo, sejam menos
necessárias e frequentes. A civilização, com suas religiões e doutrinas
filosóficas, seria uma forma de controlar o animal bestial que habita o interior
de cada indivíduo em sociedade, visto que a coerção internaliza no indivíduo a
autocoerção e, posteriormente, o autocontrole. Eis aqui o objetivo máximo da
educação. Contudo, nenhum educador fala naquele caos criativo, responsável
por tantas obras de arte magníficas como as do gênio indomável de Jackson
Pollock, de Roman Polanski, de Ludwig van Beethoven ou de Van Gogh.
102

Artistas que destruíram as fronteiras da arte em seu tempo e abriram caminho


para que ela pudesse ser o que é hoje.

Ao longo do flagelo de dez mil anos que tem sido a história da


civilização e da sociedade de classes, a diferenciação entre as classes sociais
(ricos e pobres) tem se utilizado fartamente da “animalização” de uma classe
social (os pobres) em oposição à “humanização” da outra (os ricos). Ricos são
tidos como civilizados e pobres como bárbaros. Com efeito, o dia a dia das
pessoas, isto é, a sua forma de se alimentar, as vestes, os lugares
frequentados, as escolas, as etiquetas, o modo com que controlam suas
paixões e instintos são bastante díspares entre as classes sociais. Norbert
Elias nos chama a atenção para a disparidade na forma com que as regras

“civilizadas” são aceitas pelos diversos segmentos da sociedade:

[...] no presente contexto, talvez seja suficiente chamar a


atenção para o fato de que, de modo geral, os estratos
inferiores, os grupos marginais e mais pobres, num dado
estágio do desenvolvimento, tendem a seguir suas paixões e
sentimentos de forma mais direta e espontânea, regulando-se
sua conduta menos rigorosamente que a dos respectivos
estratos superiores (ELIAS, 1993, p. 210).

Neste mundo de engodos, a educação escolar sempre funcionou


como um dispositivo encarregado de fabricar o tipo de indivíduos que o sistema
precisa. Estas escolas deveriam ensinar os alunos para a autonomia, lhes
dando condições de reconhecer a maldade e combate-la. Os alunos deveriam
ser subsidiados com os meios e elementos necessários à luta contra as formas
de dominação e contra a exploração social que separa os indivíduos daquilo
que eles produzem. Deveriam ser ensinados a reconhecer a necessidade de se
substituir a competição pela cooperação e o individualismo pela solidariedade.
Deveriam ser ensinados para a sensibilidade, a liberdade e a empatia.
Entretanto, a escola continua sendo o lugar onde uma série de procedimentos
minuciosos de poder asseguram a fabricação de indivíduos que aceitam sua
miséria e continuam como escravos resignados, embora se vejam como seres
livres e audaciosos. Sua conduta audaciosa na escola não vai além da afronta,
irreverencia e deboche para com o professor. Fora da escola, esse aluno logo
aprende que sua afronta, irreverencia e deboche não podem ser utilizados
103

contra o patrão. A marginalidade, o crime, o tráfico e o vício em drogas e álcool


acabam configurando uma terrível alternativa de fuga deste mundo de
tragédias, uma vez que a fuga, como foi um dia para o escravo na senzala, não
é mais possível. E os quilombos, como locais de refúgio e liberdade, não se
fazem mais presentes.

No capitalismo, o processo da competição social exaure as


possibilidades das pessoas confiarem umas nas outras, enquanto a cultura
mercadológica, baseada na descartabilidade das coisas, vai incidir também
sobre as relações pessoais. A existência de casamentos infelizes que duravam
uma vida toda é drasticamente substituída, num extremo oposto, pelo “ficar”.
Este ficar é um procedimento que obedece à lógica que rege outros
relacionamentos na sociedade atual, pós-moderna. Sua essência reside no
provisório, rápido e descartável. Sua lógica é a da indústria cultural globalizada,
que substitui, mundialmente, o essencial pelo efêmero. Esta substituição pode
ser percebida na abreviação dos vínculos empregatícios, outrora prolongados e
hoje temporários. Mas, também nos vínculos sociais com a vizinhança e com
os familiares, hoje rarefeitos, mas que antes eram sólidos e duradouros. A
diminuição do tempo, o agigantamento dos espaços urbanos, o surgimento de
sempre novos meios tecnológicos de comunicação e uma movimentação
humana nunca antes vista, são os depositários fieis de uma vida mecânica e
triste, impeditiva dos vínculos sociais estáveis e substitutivas do trabalho com
amor pelo amor ao trabalho, o chamado workaholic.

A pós-modernidade é um tempo que existe com e para a


“coisificação” das pessoas. Um tempo onde a busca pelo enriquecimento
atingiu um patamar tamanho que a pessoa humana tornou-se secundária. Não
na forma das leis, mas efetivamente, nas relações pessoais que tendem à
banalização das relações e ao impedimento da confiança. A existência torna-se
tão metamórfica que a necessidade do capital agora pode ser entendida como
a necessidade de destruir coisas e pessoas “coisificadas”. Este processo é
tributário da robotização que, a partir da década de 1980, transformou o
operário em apenas um vigia da máquina. A máquina incorporou, substituiu e
descartou o trabalho de dezenas de operários. Enquanto Taylor, no século XIX,
104

preconizava a busca do trabalhador absolutamente ajustado, disciplinado,


docilizado, de pouco intelecto, homens do tipo “bovino” (robustos e dóceis),
ajustáveis, portanto, às necessidades de obediência, tão pretendidas pela
Revolução Industrial, o mundo atual vai necessitar de um vigia da máquina que
possa conhecer o todo do processo de produção. Ele não seria mais capaz de
fazer o trabalho da máquina. Mas, sabe como operar cada uma delas no
processo produtivo. A produção em massa Fordista-Taylorista, é substituída
pela produção para um mercado restrito. O Japão foi o primeiro prisioneiro
neste tipo de produção. As grandes lojas são substituídas por pequenas lojas,
que fazem parte de grandes redes de empresas. Surgem os shopping centers,
como aglomerados de pequenas lojas, verdadeiras mecas do consumismo
onde a juventude burguesa busca identidade e refúgio de seu vazio existencial.

Neste admirável mundo novo muitas mercadorias não estão


disponíveis para pronta entrega. Não podem ser estocadas. Isto explica as
grandes liquidações de início de ano. Taiishi Ono é o grande pensador japonês
que teve esta ideia. Este tipo de comercialização, aliado ao processo de
terceirização de serviços, é o que se convencionou chamar de produção
enxuta, também conhecida como Toyotismo, porque foi primeiramente
empregada nas empresas da Toyota, no Japão. Sua lógica é ser enxuta de
seres humanos. O menor número de trabalhadores possível. Não é mais
necessária a figura do capataz (gerente) de produção, carrasco, autoritário.
Agora, a equipe de trabalhadores na produção é que controla a ausência ou a
performance de seus colegas. Assim, mesmo doente, o trabalhador vai se
esforçar para não se ausentar do serviço, pois, pode ser enxovalhado,
humilhado, condenado, delatado e perseguido por seus próprios colegas de
trabalho, sendo, finalmente, demitido.

O capital inaugura um novo tempo na produção, onde a


responsabilidade pelo controle dos trabalhadores, transferida aos próprios
trabalhadores, não admite a possibilidade de solidariedade alguma entre
colegas de trabalho. O controle deixou de ser tão manifesto como no modelo
Fordista, tornando-se anônimo – e, verdadeiramente, diabólico. No Brasil, as
empresas adotaram o Toyotismo a partir da década de 1990. Por esses idos,
105

instalou-se na escola, o projeto de “Qualidade Total na Educação”. Assim,


verifica-se uma lógica que transporta a mecânica do setor produtivo para o
setor de serviços. Ora, a escola não produz parafusos, arruelas ou sensores
óticos. Produz pessoas. Pessoas que, na figura dos professores, tornaram-se
vigias severos do trabalho uns dos outros.

Para competir com as fábricas japonesas, o modelo de produção


norte-americano, ainda Fordista-Taylorista-Keynesianista, vai se instalar nos
países do terceiro mundo – como é o caso do Brasil - sob a forma de empresas
multinacionais, onde se alimenta de mão-de-obra barata, o que diminui muito
os custos da produção. Aos poucos o Brasil, obediente à lei da oferta e da
procura, se transforma num país de mão de obra braçal. Aos poucos, o
trabalho braçal prosperou entre nós, o que não foi acompanhado pelo
intelectual. Dentre os setores que sofreram o desprezo do capital, está a escola
pública, lugar por excelência da democratização do conhecimento, mas que
tem ocupado os últimos lugares nos rankings mundiais da educação formal.
Com efeito, é mesmo muito difícil justificar a necessidade do estudo como
promotor de qualidade de vida para um aluno que responde ao professor que
sua mãe, que mal sabe ler, é diarista e ganha o mesmo que um professor em
início de carreira. E que seu pai, que também é analfabeto funcional, trabalha
na construção civil e ganha tanto quanto um professor em fim de carreira. Isso
explica um pouco as razões que levaram à construção de uma cultura de
desrespeito ao professor. Explica um pouco das razões dos baixos salários do
magistério e das paupérrimas condições da educação escolar pública em
nosso país. E explica um pouco também a bastante estranha incoerência
profissional de nossos educadores que trabalham em escolas públicas mas
matriculam seus rebentos em instituições escolares particulares.

No mundo atual, a velocidade é a da máquina. Tudo se faz num


processo de urgência, como se para além da pressa que a tecnologia exige
nada mais restasse, senão o fim de tudo e de todos. A chamada terceira
Revolução Industrial, da Informática, do microchip, da internet, permitiu uma
intensificação do processo de produção. A engenharia mecânica se unificou
com a eletrônica, sob o controle inteligente do computador no processo de
106

manufatura dos produtos industrializados, originando a chamada mecatrônica.


Há uma tendência progressiva de substituição do trabalho humano na
produção pelo trabalho robótico, o que implica no aumento do desemprego e
na miserabilidade que dele advém. As pessoas sobrevivem das formas mais
precárias possíveis, enquanto a "santificação" da ciência se espraia
debochadamente pelo mundo todo como um dogma hipócrita e perigoso.
Entrementes, a ânsia de substituir o homem pela máquina – não só na
produção, mas em todas as esferas da vida social - demonstram que a tão
proclamada redenção humana pelos avanços tecnológicos jamais serão
capazes de cumprir seus proclames. Neste ponto, é oportuno citar o esplendido
"Último Discurso" do genial Charles Chaplin, em sua obra "O Grande Ditador":

Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o


meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer
que se seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o
gentio... Negros... Brancos. Todos nós desejamos ajudar uns
aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver
para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por
que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste
mundo há espaço para todos. A Terra, que é boa e rica, pode
prover a todas as nossas necessidades. O caminho da vida
pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A
cobiça envenenou a alma dos homens... Levantou no mundo
as muralhas do ódio... E tem-nos feito marchar a passos de
gansos para a miséria e os morticínios. Criamos a época da
velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A
máquina, que produz abundância, tem nos deixado em penúria.
Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência,
empedernidos e cruéis. Pensamos em demais e sentimos
pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade.
Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura.
Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será
perdido. Os meios de comunicação aproximaram-nos muito
mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à
bondade do homem... Um apelo à fraternidade universal... à
união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega
a milhões de pessoas pelo mundo afora... Milhões de
desesperados, homens, mulheres, criancinhas... Vítimas de um
sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos
que me podem ouvir, eu digo: “Não desespereis!” A desgraça
que tem caído sobre nós não é mais do que o produto de
cobiça em agonia... Da amargura de homens que temem o
avanço do progresso humano. Os homens que odeiam
desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo
arrebataram, há de retornar ao povo. Soldados! Não vos
entregueis a esses brutais... Que vos desprezam... Que vos
escravizam... Que arregimentam as vossas vidas... Que ditam
os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que
107

vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a


uma cimentação regrada, que vos tratam como um gado
humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois
máquinas! Homens é que sois! E com o amor da humanidade
em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem
amar... Os que não se fazem amar e os desumanos.

É preciso remeter um olhar crítico para as sedutoras propostas de


redenção proclamadas pelo mundo capitalista.  Só pode haver liberdade numa
sociedade igualitária, onde não haja lugar para grandes desigualdades entre as
pessoas. E não me parece ser esse o ideário das sociedades construídas com
base na acumulação de capital. Assim entendendo, e num rápido balanço
destas últimas décadas, seria legítimo afirmar que o capitalismo atual - e seu
esparrame tecnológico mundializado - estaria permitindo as mesmas
oportunidades a todos? Ou estaria ela concedendo privilégios a pequenos
grupos sociais economicamente abastados?

 O Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano, divulgado pelo


Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2004), revela
um quadro bastante negativo para o período de 1990 a 1995, anos que
apresentaram ao mundo os primeiros resultados do processo de globalização.
Segundo este relatório, o nível de pobreza mundial aumentou no período.
Antes se concentrava na América Latina, no sul da Ásia e na África. Depois, a
miséria abocanhou os países da Europa Oriental e os da antiga União
Soviética. Até mesmo os países ricos experimentaram um aumento significativo
em seus índices de pobreza, inundados que foram pelas levas de estrangeiros
refugiados da miséria. Quase 20% da população mundial sobrevive hoje com
menos de um dólar por dia, segundo o relatório “Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio”, divulgado pela Organização das Nações Unida (ONU), em 13 de
agosto de 2007. Isso significa que mais de um bilhão de pessoas está abaixo
da linha da pobreza em todo o mundo. Em 1990, o número era bem maior:
aproximadamente um terço da população mundial vivia em condições de
miséria. Embora positivo, o progresso demonstrado pelo relatório não é uma
uniformidade entre as diversas regiões do planeta. Enquanto países como a
China alcançaram melhorias significativas nos últimos anos, na África
Subsaariana, aproximadamente 40% da população continua vivendo em
condições de extrema pobreza e na América Latina e Caribe, 8,7% da
108

população vive com menos de um dólar por dia (dados de 2004). Em 1990, a
taxa era de 10,3%.

No Brasil, os resquícios das relações escravistas na produção,


somados à instalação das empresas multinacionais e ao pagamento anual dos
juros de uma dívida imoral e impagável, estão a transformar-nos numa das
sociedades mais desiguais da Terra. No planeta, cerca de 2 % da população
possui 60 % da riqueza nacional, enquanto os 98 % do restante da população
têm que dividir os 40 % que sobram. Por aqui, 1% da população possui 28% da
riqueza. Sataniza-se a condição humana perante uma fragmentação dos
empregos que perpetua a existência de um enorme abismo social,
diferenciando brutalmente ricos e pobres em nosso país.

O trabalho dignifica o homem. Nada mais falso. O pedreiro que


constrói a mansão volta ao final do dia para a favela, onde não consegue ao
menos colocar muro em frente de sua casa. O rebaixamento da força de
trabalho (subemprego) subsidia a expansão capitalista e a existência de um
mundo onde proliferam as empresas multinacionais e no qual o ser humano
torna-se cada vez mais um objeto descartável. As florestas de antenas
parabólicas sobre os barracos urbanos que se amontoam nas favelas ilustram
o mais poderoso narcótico nacional, enquanto a miséria econômica se
reproduz viralmente a uma velocidade vertiginosa. O produto desta reprodução
não é apenas uma miséria econômica. É, sobretudo, uma miséria de
consciências; uma miséria da subjetividade, que se vê, assim, desconstruída e
esfacelada no ser humano. Diante das atuais condições de se eliminar a fome
da face da terra, a reprodução cotidiana da miséria e da barbárie continua
sendo uma verdade paradoxal. Possuímos tecnologia suficiente para garantir a
tão sonhada liberdade, porém optamos pela perene reprodução das
desigualdades. Situamo-nos numa organização social em que os fatos
suplicam por uma reprodução do sempre idêntico. E a mesmice caminha lado a
lado com o conformismo e a resignação diante do horror.

Contudo, se no mundo mercadológico, onde governa a aparência,


a mão que afaga é a mesma que fere, cabe também a esse mundo fornecer as
diretrizes para a inversão deste nefasto estado de coisas. A construção de uma
109

sociedade justa e igualitária depende da capacidade humana em estranhar o


mundo da desigualdade. Na sociedade atual há uma produção cultural, de
cunho mercadológico, que difunde uma produção simbólica onde é
predominante uma instrumentalização voltada para a resignação e o
conformismo, subjugando a possibilidade emancipatória, que se torna
“travada”, porém não destruída.

A oportunidade de sobrevida da cultura genuinamente popular, em


detrimento da cultura mercadológica, é a retomada não só de sua prática, mas,
ainda, de sua função autocrítica. Num mundo que procura debilitar no indivíduo
as condições materiais e espirituais de sua existência, bem como a qualidade
de juízo sobre o mundo e sobre si mesma, a cultura popular espontânea,
autêntica, é o perene protesto do individual contra a generalidade, contra a
massificação, contra a coisificação e a descartabilidade dos seres humanos
pelos seus próprios semelhantes.

O fenômeno da mercantilização da cultura, objetiva produzir a


ilusão de que não há qualquer tipo de padronização ou uniformização do
produto, permitindo ao consumidor a sensação de que ele possui uma
identidade “única”, já que não consome, não usa, a mesma mercadoria que
todos. Esta é a gênese da sensação pseuda de liberdade produzida pela
cultura mercadológica. Todavia, um olhar mais meticuloso pode perceber que
os produtos resultantes do processo de produção não se diferenciam uns dos
outros. Tudo o que possa vir a público já se encontra tão tatuado, tão
profundamente demarcado que absolutamente nada pode surgir sem exibir
previamente os traços e os comportamentos demarcados pela indústria A
ilusão de liberdade se esfacela em definitivo diante de um olhar mais atento
que possa perceber que a padronização está presente também nas formas de
lazer, sem que o consumidor tenha consciência disso. Os ritmos binários dos
últimos hits são facilmente memorizados, fornecendo a sensação de uma
eterna satisfação. Já os repetidos detalhes dos filmes de ação, como a
introdução musical numa determinada sequência da fita, fazem bem mais que
nos tranquilizar com promessa de que o vilão terá um castigo merecido, nos
110

dizem que a vida possui sempre as mesmas sequencias e que devemos nos
contentar a seguir os passos demarcados previamente.

A diversão é o prolongamento do trabalho. Ela é procurada por


aqueles que querem esquecer o processo tedioso do trabalho mecanizado,
para se por, novamente, em condições de enfrentá-lo. Nesse sentido perverso,
diversão é sinônimo de esquecimento. O consumidor ávido deste tipo de
diversão precisa se “desligar” do trabalho, assistindo um filme, ouvindo uma
música ou dançando algo que não necessite muito esforço de pensamento,
que não exija criatividade, uma forma de lazer que “infantiliza” mentalidades,
desejos e sentidos, promovendo, nesse processo, a tão esperada diversão
(esquecimento).

A mídia ocupa hoje o lugar que a autoridade manifesta ocupou nos


séculos XVIII e XIX: é preponderantemente por seu intermédio que se realiza
atualmente o relato doutrinário da cultura mercadológica. O seu surgimento
inaugura um novo estatuto do conhecimento, subjetivo, imaginário e fantasioso
como nunca antes e, por isso mesmo, altamente manipulável A televisão
fornece as imagens e os sons que irão ficar na memória coletiva, assegurando
a homogeneização do imaginário social. As decisões da coletividade
encontram-se, assim, a mercê deste discurso.

Desvendar o processo de criação da narrativa dos instrumentos


atuais de comunicação de massas implica num entendimento de seu
compromisso com a satisfação das necessidades da indústria. A rigor, o
comprometimento do documento comunicativo com os poderes sociais
dominantes, o transforma de documento em monumento. No caso do registro
fílmico, por exemplo, é produzida uma impressão de haver um registro puro da
realidade, uma verdade absoluta dos acontecimentos. Contudo, mesmo no
filme documentário, que pode se pretender como um “relato fiel dos fatos”, a
subjetividade do autor está presente – ainda que ele não queira ou que não se
dê conta disso – desde a seleção dos fatos até a interpretação dos mesmos.
Entretanto, não são o cineasta ou o diretor da imagem televisiva que têm a
primeira palavra. Sua escolha é determinada por forças sociais poderosas e
anônimas. De igual modo, não são eles a terem a última palavra. Quem vai
111

reconduzir a ideia às relações sociais é o espectador. Nesse sentido,


reconhecer o aspecto particular da construção subjetiva dos instrumentos
atuais de comunicação significa reconhecer qual o principal terreno trabalhado
pela introjeção na mentalidade coletiva das “aparências” necessárias à
manutenção dos poderes sociais de dominação.

A sedução que a violência e a pornografia fílmica exercem em seus


expectadores é o reflexo das duras condições de repressão aos instintos e
opressão econômica que afligem suas miseráveis vidas. Por outro lado,
vitimadas por um processo que as condiciona a uma enfadonha situação de
trabalho dominada por sequências de operações padronizadas, as pessoas
procuram por formas de diversão nas quais se percebe as mesmas sequências
padronizadas: luzes ofuscantes, ruídos altíssimos, muita violência e
pornografia, em suma, um apelo grandioso aos sentidos que procura por uma
compensação da ausência total de reflexão crítica, de sensibilidade e de
criatividade. Como exemplo, temos a mediocridade das intermináveis
repetições rítmicas das formas musicais exportadas pelos Estados Unidos,
associadas a uma musicalidade fácil e a uma letra verdadeiramente
infantilizada, que compõem a essência dos ritmos que encontram maiores
predicados num mercado da diversão que associa o consumidor a uma forma
cultural tão degenerada e medíocre quanto é a sua própria existência.

O final da situação de desespero do ser humano em sociedade


condiciona-se à esperança vã de que ao adquirir uma determinada mercadoria
o indivíduo obtém juntamente os atributos propagandeados pelos cartazes nas
ruas, pelos alt-doors, pelos comerciais de rádio, pelo cinema e, principalmente,
pela televisão. A capacidade dos indivíduos exercerem reflexão crítica sobre a
realidade rareia-se, numa sociedade que promete sem jamais cumprir o que
prometeu. A lógica do mundo atual precisa de pessoas automatizadas, cujos
gostos sejam conhecidos previamente. Conhecidos previamente justamente
por serem introjetados nos consumidores também previamente. E sem que
eles percebam, para que possam se iludir com a falsa sensação de liberdade,
de livre-arbítrio sobre a escolha das mercadorias que consomem.
112

Na família, nas escolas, nas salas de aula, nos meios de


comunicação de massas, há, de fato, uma educação, mas uma educação
bastante danificada. Aqueles que aprendem não se tornam sujeitos de seus
atos, apenas adquirem a ilusão disso. Continuam alijados de cultura, com sua
adesão viciada, compulsiva, à uma cultura mercadológica que inibe a
possibilidade da real emancipação. Estas conclusões inserem-se no perigoso
terreno do livre pensar, que não se serve de regulamentos protetores, mas que
é o único terreno digno de se percorrer, pois possibilita o aprofundamento de
reflexões capazes de redescobrir o caminho que leva ao reavivamento da
sensibilidade e à imersão numa perspectiva de educação para a libertação
humana.

Capítulo 7 – Civilização ou anticivilização?

A nossa civilização é em grande parte


responsável pelas nossas desgraças.
Seríamos muito mais felizes se a
abandonássemos e retornássemos às
condições primitivas.

(Sigmund Freud)

O homem branco, aquele que se diz


civilizado, pisou duro não só na terra,
mas na alma de meu povo, e os rios
cresceram e o mar se tornou mais
salgado porque as lágrimas da minha
gente foram muitas.

(Cibae Ewroro – indígena bororo)

“Eu vou contar tudo a Deus”. Esta foi a frase que um menino de
três anos de idade, vítima da guerra civil na Síria, disse antes de morrer. Ela
113

tem circulado fartamente na internet desde dezembro de 2013 e documenta o


horror das guerras sangrentas e suas crueldades que têm marcado a história
da humanidade. No rumo destas ponderações, Hobsbawm afirma que o
homem não tem do que se orgulhar: para a maior parte da humanidade, o
mundo é um pecado, a vida é trabalhar e a morte é a redenção (HOBSBAWN,
1995). Ironia a mais: nunca fomos tantos, vivemos tanto e em tantos lugares do
planeta produzindo as tantas riquezas a mais que obviamente serão todas elas
usurpadas de nossas mãos pelos donos do poder.
Stephen Hawking, que ocupou a cadeira que já fora de Isaac
Newton em Cambridge - considerado por muitos como o sucessor de Albert
Einstein -, tem dedicado sua vida a encontrar uma explicação para o universo
através de uma fórmula matemática geral, uma “teoria de tudo”. Mais uma vez,
o homem olhando para fora de si, busca desvendar os segredos do universo
quando nem ao menos conseguiu desvendar os segredos de si mesmo.
Embora legítima, sua busca teria melhores proveitos se tentasse encontrar
uma explicação para a maldade humana. Uma resposta que me parece
essencial para mantermos o mínimo de equilíbrio neste mundo conturbado,
insano e paradoxal, onde a dor, a miséria e a morte, reservadas para muitos,
convivem lado a lado com a prosperidade desmesurada de uns poucos.

É relativamente comum as crianças brigarem com seus irmãos por


um brinquedo qualquer e logo em seguida estarem brincando novamente como
se nada tivesse acontecido, o que deixa claro sua inocência e ausência de
maldade. De igual modo, também é comum os pais, diante da briga dos seus
filhos, repreendê-los dizendo: “vocês parecem bichos”. Para estes pais,
“parecem bichos” aqueles que se sujam depois de ter tomado banho, que
choram quando o irmão come a última bolacha do pacote ou que não arrumam
seu próprio quarto. Contudo, não são os bichos que fazem as guerras, que
dizimam cidades inteiras em segundos com suas bombas atômicas, que
poluem o ar e os rios, que levam à extinção espécies inteiras da flora e da
fauna, que cortam e queimam milhares de árvores das florestas de uma só vez,
que torturam prisioneiros, que traficam drogas ou que exploram o trabalho de
seus semelhantes. Todas essas coisas são feitas por seres humanos adultos.
114

Nesse desencontro de significados, não só as crianças são


chamadas de bichos. Muitos povos aborígenes são considerados selvagens,
verdadeiros “bichos incivilizados” e sem cultura. Sem dúvida, a civilização pode
ser considerada melhor do que a barbárie, especialmente nos termos em que
se pronunciou Theodore Adorno sobre esta questão. E o ser humano pode ser
considerado mais evoluído que o chimpanzé. Mas, há ainda pessoas que
consideram os Ianomâmis – uma sociedade indígena muito pacífica da
Amazônia, rica em cultura e igualitária – como o povo mais atrasado do
planeta. Mas, como seria refletir sobre essa questão sob o ponto de vista dos
povos indígenas? No afã de tentar angariar colaborações para a elaboração de
uma resposta adequada para esta questão, invoco a presença da famosa
“carta de Seattle”, de 1854. Eis a resposta de um chefe indígena à proposta do
presidente dos Estados Unidos de comprar as terras de seu povo:

Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da


terra? Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o
frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?
Cada pedaço dessa terra é sagrado para meu povo. Cada
ramo brilhante de um pinheiro é sagrado para meu povo. Cada
punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa,
cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e
experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das
árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.
Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem
quando vão morar entre as estrelas. Nossos mortos jamais
esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem
vermelho. Somos parte dela e ela faz parte de nós. As flores
perfumadas são nossas irmãs, o cervo, o cavalo, a grande
águia são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos
nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem pertencem
todos à mesma família. Portanto, quando o Grande Chefe em
Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede
muito de nós. O Grande Chefe diz que reservará um lugar onde
possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos
seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de
comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Essa terra é
sagrada para nós. Essa água brilhante que escorre pelos
riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos
antepassados. Se lhe vendermos a terra, vocês devem
lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas
crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas
límpidas fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu
povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais. Os
rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam
nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes
vendermos nossa terra, vocês devem ensinar a seus filhos que
115

os rios são nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês


devem dedicar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer
irmão. Sabemos que o homem branco não compreende nossos
costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo
significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à
noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é
sua irmã, mas sua inimiga. E quando ele a conquista,
prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus
ancestrais e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria
de seus filhos e não se incomoda. A sepultura de seu pai e os
direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua irmã, a terra,
e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas,
saqueadas e vendidas como carneiros ou enfeites coloridos.
Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto. Eu
não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de
suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja
porque o homem vermelho é um selvagem e não compreenda.
Não há lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum
lugar onde se possa ouvir o desabrochar das flores na
primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas, talvez seja
porque eu sou um selvagem e não compreenda. O ruído
parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se
um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o
debate dos sapos ao redor de uma lagoa à noite? Eu sou um
homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave
murmúrio do vento encrespando a face do lago. E o próprio
vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos
pinheiros. O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas
as coisas compartilham o mesmo sopro – o animal, a árvore, o
homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o
homem branco não sente o ar que respira. Como um homem
agonizando há vários dias é insensível ao mau cheiro. Mas, se
vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar
que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito
com toda a vida que mantém. O vento que deu ao nosso avô
seu primeiro inspirar também recebe seu último respiro. Se
lhes vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la intacta e
sagrada, como um lugar que até mesmo o homem branco
possa saborear o vento açucarado pelas flores dos prados.
Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comparar nossa
terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem
branco deve tratar os animais da terra como seus irmãos. Sou
um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir.
Vi um milhar de búfalos apodrecendo na planície abandonados
pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu
sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante
cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que
sacrificamos somente para permanecer vivos. O que é o
homem sem animais? Se todos os animais se fossem, o
homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois, o que
ocorre com os animais, em breve acontece com o homem. Há
uma ligação em tudo. Vocês devem ensinar à suas crianças
que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que
respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida
com as vidas de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que
116

ensinamos às nossas. Ensinem que a terra é nossa mãe. Tudo


o que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra. Se os
homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.
Mesmo o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de
amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É
possível que sejamos irmãos, apesar de tudo. Veremos. De
uma coisa estamos certos, e o homem branco poderá descobrir
também um dia, nosso Deus é o mesmo Deus. Vocês podem
pensar que O possuem, como desejam possuir nossa terra.
Mas, não é possível. Ele é o Deus do homem e a sua
compaixão é igual para o homem vermelho e o homem branco.
A terra lhe é preciosa e feri-la é desprezar seus criados. Os
brancos também passarão: talvez mais cedo que todas as
outras tribos. Contaminem suas camas e uma noite serão
sufocados por seus próprios dejetos. Mas, quando da sua
desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela
força do Deus que os trouxe a esta terra e que por algum
motivo especial que eu não compreendo lhes deu o domínio
sobre a terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um
mistério para nós. Não compreendemos que todos os búfalos
sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados,
os recantos secretos da floresta densa impregnados com o
cheiro de muitos homens. E a visão dos morros obstruída por
fios que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde
está a águia? Desapareceu. É o final da vida e o início da
sobrevivência.

A questão indígena em nosso país é um bom exemplo de como


nós brasileiros “civilizados” tratamos nossa gente. De norte a sul do país, em
que pesem as diferenças regionais, somos um povo mestiço, resultante da
fusão de negros, indígenas e brancos. Os brancos, sobretudo, latinos e
ibéricos, chegaram aqui nas caravelas da descoberta; os negros foram trazidos
da África em navios de escravos, no tráfico infame e tirano que foi a
escravatura; e os indígenas aqui estavam. No capítulo “O enfrentamento dos
mundos”, de seu livro “O povo brasileiro”, Darcy Ribeiro nos presenteia com
uma descrição ímpar, quase poética, de como se deu esse desastroso e
terrível encontro. Civilização e mundo selvagem se encontram finalmente, por
ocasião da chegada ao Brasil do homem colonizador:

Esse foi o primeiro efeito do encontro fatal que aqui se dera. Ao


longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos
de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a
civilização. Suas concepções, não só diferentes mas opostas,
do mundo, da vida, da morte, do amor, se chocaram
cruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de
meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do
escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência
e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez
117

emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as


ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles
seres que saíam do mar. Para os que chegavam, o mundo em
que entravam era a arena dos seus ganhos, em ouros e
glórias, ainda que estas fossem principalmente espirituais, ou
parecessem ser, como ocorria com os missionários. Para
alcançá-las, tudo lhes era concedido, uma vez que sua ação de
além-mar, por mais abjeta e brutal que chegasse a ser, estava
previamente sacramentada pelas bulas e falas do papa e do
rei. Eles eram, ou se viam, como novos cruzados destinados a
assaltar e saquear túmulos e templos de hereges indianos.
Mas aqui, o que viam, assombrados, era o que parecia ser uma
humanidade edênica, anterior à que havia sido expulsa do
Paraíso. Abre‐se com esse encontro um tempo novo, em que
nenhuma inocência abrandaria sequer a sanha com que os
invasores se lançavam sobre o gentio, prontos a subjuga‐los
pela honra de Deus e pela prosperidade cristã. Só hoje, na
esfera intelectual, repensando esse desencontro se pode
alcançar seu real significado. Para os índios que ali estavam,
nus na praia, o mundo era um luxo de se viver, tão rico de
aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes,
que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e
colher a quanta gente aqui viesse ter. Na sua concepção sábia
e singela, a vida era dádiva de deuses bons, que lhes doaram
esplêndidos corpos, bons de andar, de correr, de nadar, de
dançar, de lutar. Olhos bons de ver todas as cores, suas luzes
e suas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir vozes
estridentes ou melódicas, cantos graves e agudos e toda a
sorte de sons que há. Narizes competentíssimos para fungar e
cheirar catingas e odores. Bocas magníficas de degustar
comidas doces e amargas, salgadas e azedas, tirando de cada
qual o gozo que podia dar. E, sobretudo, sexos opostos e
complementares, feitos para as alegrias do amor. Os recém-
chegados eram gente prática, experimentada, sofrida, ciente de
suas culpas oriundas do pecado de Adão, predispostos à
virtude, com clara noção dos horrores do pecado e da perdição
eterna. Os índios nada sabiam disso. Eram, a seu modo,
inocentes, confiantes, sem qualquer concepção vicária, mas
com claro sentimento de honra, glória e generosidade, e
capacitados, como gente alguma jamais o foi, para a
convivência solidária. Aos olhos dos recém-chegados, aquela
indiada louçã, de encher os olhos só pelo prazer de vê-los, aos
homens e às mulheres, com seus corpos em flor, tinha um
defeito capital: eram vadios, vivendo uma vida inútil e sem
prestança. Que é que produziam? Nada. Que é que
amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas fartas, como se
neste mundo só lhes coubesse viver. Aos olhos dos índios, os
oriundos do mar oceano pareciam aflitos demais. Por que se
afanavam tanto em seus fazimentos? Por que acumulavam
tudo, gostando mais de tomar e reter do que de dar
intercambiar? Suas sofreguidão seria inverossímil se não fosse
tão visível no empenho de juntar toras de pau vermelho, como
se estivessem condenados, para sobreviver, a alcançá-las e
embarca‐las incansavelmente? (RIBEIRO, 1995, 44-45).
118

Quando o branco aqui chegou, encontrou mais de cinco milhões de


índios, distribuídos em 900 nações, com suas tradições, costumes e crenças,
suas formas de “bem viver”. Entre eles não haviam ricos e pobres; sabiam
fazer o manejo sustentável da natureza; e viviam felizes com suas crianças,
respeitando as mulheres e dando um tratamento digno aos idosos, tidos como
fonte de sabedoria e patrimônio vivo das futuras gerações. Após o contato com
o europeu os índios foram obrigados a acreditar que eram “pobres” e
“pecadores”, que a sua forma de vida e sua religião não prestavam. Vítimas de
um verdadeiro genocídio que se pautou por inúmeras malsucedidas tentativas
de escraviza-los, poucos sobreviveram e hoje restam aproximadamente
quinhentos mil aborígines brasileiros, distribuídos em 200 nações. Os nossos
remanescentes indígenas vêm sofrendo, desde então, um gradativo processo
de transformação de sua forma cultural pacífica e igualitária numa cultura cada
vez mais opressora e mercadológica, mais “civilizada”.

E em se falar nos paradoxos da civilidade, é oportuno relembrar a


trágica história do índio Galdino. Aos 44 anos de idade, Galdino, um indígena
da nação Pataxó hãhãhãe, no sul da Bahia, ocupava a função de conselheiro
em sua tribo. Chegara à Brasília em 17 de abril de 1997 com oito lideranças do
seu povo em busca de apoio para sua comunidade sobre o direito de posse de
uma área de cinco fazendas encravadas em suas terras. Na madrugada de 20
de abril, Galdino dormia sob um abrigo de usuários de ônibus em uma região
nobre da cidade quando, por volta das cinco horas da manhã, acordou em
chamas. Socorrido, deu entrada agonizante, mas ainda consciente, no Hospital
Regional da Asa Norte. Completamente cego, devido às queimaduras nas
córneas, conseguiu se identificar para a equipe médica e antes de entrar em
coma perguntou repetidas vezes: “Por que fizeram isso comigo?” Com
queimaduras em 95% do corpo, Galdino não resistiu e faleceu às duas horas
da madrugada do dia seguinte. O fogo fora ateado por um grupo de rapazes de
classe média alta, entre 17 e 19 anos que ao saírem de uma festa encontraram
uma forma deveras inusitada para continuar seu divertimento.
119

A luta pela posse da terra tem produzido um rastro enorme de dor


e sangue em nosso país, sobretudo com relação aos índios, conforme a
seguinte matéria veiculada na época:

A morte de Galdino Jesus dos Santos foi um dos 233 casos de


violência praticadas contra índios nos últimos dois anos.
Segundo o mais recente relatório feito pela Fundação Nacional
do Índio (Funai), 25 índios morreram assassinados em
1995,por diversos motivos, sendo que15 desses crimes foram
cometidos por brancos. Um dos mortos era João Cravim, irmão
de Galdino, que foi morto, mas os culpados nunca foram
punidos. A violência contra índios aumentou cerca de 145%
nos últimos anos, segundo relatório da Funai. (CORREIO
BRAZILIENSE, 1997, p. 06).

Durante o julgamento, os assassinos de Galdino procuraram


justificar sua atitude dizendo que não sabiam que ele era um índio, pensavam
que fosse um mendigo. E eu fico aqui a me perguntar: então se fosse mendigo
podia? Qual o valor que a vida do pobre possui na perspectiva do rico?
Estranhamente, a defesa dos assassinos alegou que eles eram “bons
meninos”, que o acontecido fora somente uma diversão. Mas, afinal, que tipo
de diversão é esta? Quem pode se divertir com tamanha dor e sofrimento
causado ao outro? Em resposta à infeliz defesa dos assassinos, a promotora
do Ministério Público do Distrito Federal que acompanhou o caso, Maria José
Miranda Pereira, afirmou que o crime foi premeditado. Os jovens planejaram
com calma o que iriam fazer por cerca de duas horas. Trocaram de carro para
que não fossem identificados, pararam em uma rua paralela, buscaram
gasolina em vários postos de combustível e dividiram as tarefas: dois jogaram
o combustível e os outros riscaram o fósforo. E depois fugiram como é de
costume aos covardes. Mas, um homem que passava pelo local anotou o
número da placa do carro e entregou à polícia.

Max Rogério Alves (enteado de um ex-ministro do TSE - Tribunal


Superior Eleitoral), Eron Chaves de Oliveira (filho de servidor público), Tomás
Oliveira de Almeida (filho de servidor público) e Antônio Novély Cardoso de
Vilanova (filho de juiz federal) foram condenados pelo júri popular a 14 anos de
prisão, em regime integralmente fechado, pelo crime de homicídio triplamente
qualificado – por motivo torpe, meio cruel e uso de recurso que impossibilitou
defesa à vítima. Todavia, a legislação brasileira garantiu que ficassem apenas
120

oito anos na cadeia - e com direito a uma série de regalias. Ao chegarem à


prisão, os assassinos não ficaram sequer 24 horas em cela comum, junto com
outros presos: foram transferidos para uma biblioteca desativada, onde, entre
outras regalias, tinham cortinas, tomavam banhos quentes e ficavam com a
chave da cela.

Por ser menor na época, um dos cinco jovens, Gutemberg Nader


Almeida Junior, que posteriormente passou num concurso da Polícia Civil, foi
condenado a um ano de medidas socioeducativas. Três dos quatro jovens
presos foram flagrados pela imprensa, em 2003, bebendo em um bar,
namorando e dirigindo os próprios carros em seu retorno para o presídio da
Papuda, onde entravam sem serem sequer revistados, conforme informou
reportagem do jornal Correio Braziliense em 2003. Max Rogério conseguiu
liberação da cadeia para cursar faculdade de direito, o que permitiu que em
2016 fosse aprovado em concurso público para trabalhar no Tribunal de Justiça
do DF e Territórios (TJDFT), o mesmo tribunal que o condenou no passado.
Outro assassino de Galdino passou em concurso público e hoje é um agente
do Detran-DF.

“Eles são ‘bons meninos’, estavam só se divertindo”. A alegação da


defesa me traz a recordação de uma escrita de Eric Hobsbawm em seu livro
intitulado “Sobre História”:

Nas últimas décadas, tornou-se moda, principalmente entre


pessoas que se julgam de esquerda, negar que a realidade
objetiva seja acessível, uma vez que o que chamamos de
“fatos” apenas existe como uma função de conceitos e
problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O
passado que estudamos é só uma construção de nossas
mentes [...]. Qualquer tendência a duvidar isso é positivismo, e
nenhum termo desqualifica mais que este, exceto empirismo.
Em resumo, acredito que sem a distinção entre o que é e o que
não é assim, não pode haver história. Roma derrotou e destruiu
Cartago nas Guerras Púnicas, e não o contrário. O modo como
montamos e interpretamos nossa amostra escolhida de dados
verificáveis (que pode incluir não só o que aconteceu, mas o
que as pessoas pensaram a respeito) é outra questão. Na
verdade, poucos relativistas estão à altura de suas convicções,
pelo menos quando se trata de responder, por exemplo, se o
Holocausto de Hitler aconteceu ou não. Porém, seja como for,
o relativismo não fará na história nada além do que faz nos
tribunais. Se um acusado de assassinato é ou não culpado,
121

depende da avaliação da velha evidencia positivista, desde que


se disponha de tal evidencia. Qualquer leitor inocente que se
encontre no banco dos réus fara bem em recorrer a ela. São os
advogados dos culpados que recorrem a linhas pós-modernas
de defesa (HOBSBAWM, 2000, p. 8-9).

No contrapelo da história de Galdino se encontram muitas histórias


dos desvalidos por esse Brasil afora. Como, por exemplo, a história da
empregada doméstica Angélica Aparecida Souza, de 19 anos de idade,
condenada a quatro anos de prisão em regime semiaberto por tentar roubar um
pote de manteiga num supermercado no Jardim Maia, em São Paulo, em 16 de
novembro de 2005. Segundo o jornal Diário de São Paulo, Angélica afirmou
que sua tentativa de roubo foi motivada pelo desespero em ver o filho de dois
anos de idade passar fome. O paradoxo entre as histórias de Galdino Jesus
dos Santos e Angélica Aparecida Souza é sintomático de um mundo civilizado
que segrega, oprime, condena e assassina. Como diz Frei Betto:

Num mundo em que o requinte dos objetos merece veneração


muito superior ao modo como são tratados milhões de homens
e mulheres; o valor do dinheiro se sobrepõe ao de vidas
humanas; as guerras funcionam como motor de prosperidade;
é hora de nos perguntarmos como é possível corpos tão
perfumados ter mentalidades e práticas tão hediondas? E por
que ideias tão nobres e gestos tão belos floresceram nos
corpos assassinados de Jesus, Gandhi, Luther King, Che
Guevara e Chico Mendes? (BETTO, 2000).

Os altíssimos muros que se erguem em torno das requintadas


residências dos ricos nos grandes centros urbanos parecem testemunhar o
costume de se pensar que a violência é trazida pelas mãos da miséria: “os
miseráveis querem tomar nossos bens e nossas vidas”. À violência sem rosto,
sem nome e nem endereço é sempre dado rosto, nome e endereço: vem dos
miseráveis, das comunidades pobres (as favelas) e dos barracos da periferia.
Contudo, a história de Galdino nos mostra que os ricos, além de oprimir
economicamente os pobres, mantendo-os sob o jugo da exploração
econômica, ainda são capazes de usar o seu martírio para entretenimento.
Estaremos sendo reconduzidos para a Roma antiga onde o sangue dos
escravos gladiadores era derramado nas arenas como forma de diversão para
os homens livres? Roma se dizia civilizada e chamava os “não romanos” de
bárbaros. Mas, não tinha civilidade quando o assunto era conquistar e
122

escravizar os outros povos na força da espada. Analogamente, os ricos de hoje


se dizem civilizados, mas não abdicam da exploração de seus semelhantes e
da exaustão de recursos naturais como forma de acumulação de riqueza. Se
bem que a exploração da Antiguidade era na força declarada e hoje ela se faz
de forma dissimulada, para além da consciência dos dominados. A conquista e
exploração hoje é sutil, para além da consciência dos explorados. De qualquer
forma, a dominação é, há muito tempo, o processo pelo qual os homens
civilizados retiram dos homens incivilizados o sustento de suas regalias e
desperdícios. De igual forma, Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2000, p. 51-52),
consideram que:

Também não é por acaso que Adorno, no texto Educação


após Auschwitz, afirmou que Freud tinha muito mais razão do
que supunha, quando disse a civilização produz a
anticivilização e a reforça progressivamente. Os impulsos
encontram-se longe da satisfação das suas necessidades, que
são cotidianamente subordinadas aos anseios do consumo.
Se os homens no capitalismo podem igualar-se entre si, pois
as relações de mercado na maioria das vezes dispensam
saber suas origens sociais, e se esse fato possui uma
dimensão positiva se comparado com as rígidas estruturas
sociais feudais, por outro lado, os indivíduos enquanto
consumidores se afastam do controle de suas potencialidades,
já que são subsumidas aos objetos produzidos pelos próprios
homens e se transformam em mercadorias intercambiáveis.

Quando denunciamos a hegemonia do capital sobre as vidas de


tantos seres humanos é que podemos vislumbrar uma sociedade que promete,
mas não cumpre. Uma sociedade que se orienta para uma crescente
propensão ao consumo desenfreado de bens e serviços efêmeros, provisórios
e descartáveis como se fossem imprescindíveis, eternos e duráveis. Bens e
serviços possuidores de um significado simbólico e falacioso de prazer,
sucesso e felicidade, frequentemente propagandeado pelos meios de
comunicação de massa. Neste contexto, consumo e felicidade se transformam
numa coisa única:

A diversão é o prolongamento do trabalha sobre o capitalismo


tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de
trabalho sob o capitalismo tardio. Mas, ao mesmo tempo, a
mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu
lazer e sobre a sua felicidade, ela determina a tão
profundamente a fabricação de mercadorias destinadas a
diversão, que esta pessoa não podem mais perceber outra
123

coisa senão as cópias que reproduzem o próprio sucesso de


trabalho. O pretenso conteúdo não passa de uma fachada
desbotada; o que fica gravado é a sequência automatizada de
operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e
no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o
ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão (ADORNO,
1977, p. 113).

Os consumidores sentem-se livres para consumir esses bens e


serviços, muito embora estejam sempre dispostos a fazer aquilo que o
mercado espera que eles façam: comprar! No poema "Eu, etiqueta", Carlos
Drummond de Andrade apresenta uma análise emblemática da influência do
consumismo nos comportamentos cotidianos:

Em minha calça está grudado um nome


que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
124

Com que inocência demito-me de ser


eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comparo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

O ser humano atual se vê atrelado ao onipotente fascínio que o


mercado oferece e ao prazer que ele promete. Na marcha rumo ao consumo
não há lugar para o outro. A visita ao amigo cedeu seu lugar à mensagem
mandada via internet. No lugar da pessoa estão a TV, a internet e o celular
como fontes de relacionamento. Curiosamente, não me recordo de ter visto em
125

nenhum filme ou novela televisiva as pessoas assistindo novela ou entretidas


demoradamente em suas falas ao celular.

Para poder vender sempre mais o mercado inventou a


obsolescência de seus produtos, onde se destaca o fenômeno da moda.
Assim, os produtos adquirem a impressão que são obsoletos e de que devem
ser descartados e transformados em lixo, mesmo que ainda possuam poder de
uso. E, assim, as pessoas continuam a marcha infindável rumo às compras de
suas “bugigangas imprescindíveis”. Aos poucos, a descartabilidade das coisas
se estendeu às relações pessoais. As pessoas não se visitam mais e nem
confiam umas nas outras. Ninguém quer mais se relacionar, se compromissar
com o outro. Tudo é muito aligeirado e provisório. A existência de casamentos
infelizes que duravam uma vida toda são drasticamente substituídos, num
extremo oposto, pelo “ficar”. A moral rígida da repressão sexual é substituída
pela pornografia e pela devassidão. E entre os professores é comum
encontrarmos queixas como essa: “antigamente o povo tinha limite e não tinha
escola; hoje o povo tem escola e não tem limite”.

Ocorre hoje uma “coisificação” das pessoas, que banaliza a relação


e impossibilita definitivamente a entrega e o contato com o outro. Se o outro é
coisa como coisa pode ser tratado. A existência tornou-se tão provisória que a
necessidade do capital agora pode ser entendida como a necessidade de
destruir coisas e pessoas “coisificadas”. Entretanto, não somos tanto vitimados
pelas promessas não cumpridas de felicidade na compra de produtos efêmeros
como se fossem essenciais. A vitimização atual se dá pela ilusão de que a
concessão de felicidade pela compra já foi cumprida. Se não ascendemos à
felicidade a culpa é nossa.

O paradoxo da péssima educação escolar frente à vertiginosa


enxurrada das tecnologias da comunicação é um bom exemplo das
contradições do capital. As fabulosas promessas de felicidade pela compra de
produtos industrializados, descartáveis e efêmeros, especialmente aqueles
vinculados à informação, proclamam a sociedade atual como uma sociedade
presumidamente sem injustiças sociais. A tecnologia, a novidade e a
informação são os novos apanágios fantasiosos da humanidade, eis o tripé
126

sobre o qual se procura sustentar – na atualidade – a convivência dolorosa


entre a miséria e a opulência. Não há rebelião porque não há revoltados. Os
brinquedinhos altamente tecnológicos de tantos adultos infantilizados são o
corolário de uma sociedade enganosa que promete liberdade, mas não
cumpre. As pessoas atuais são os escravos felizes de uma ordem social
orientada para a “opressão com jeitinho”.

Nos dias de hoje frequentemente se ouve: “eu não sei viver sem o
meu celular”. E sempre há um produto novo que supera o anterior. E que deve
ser comprado. Os novos meios de comunicação são de fato os arautos desta
promessa de emancipação que nunca chega. Há um fantástico mundo de faz
de conta que proclama a si mesmo como redentor da humanidade pelo
espraiamento da comunicação, mas que, para além do véu das aparências,
não abdica da exploração econômica, da injustiça e da desigualdade.
Irmanadas ao império informativo, as ofertas do mercado jamais saciam, pois
tudo é efêmero, provisório, descartável e fantasioso. Nesse proceder não só as
coisas são descartadas, porque são provisórias, mas, inclusive as pessoas. E
pelo mesmo motivo.

A publicidade é a mola propulsora do processo de compra e venda,


responsável pela movimentação do capital. Sua finalidade consiste em
promover a venda do produto ou serviço anunciado. Seus métodos despertam
no indivíduo a compulsão pelo consumo desnecessário. A impressão que se
tem é que a compra do novo produto trará felicidade. Mas, em casa, com o
produto que comprou, resta o vazio desolador e novamente a vontade de
comprar algo novo, para que se tenha novamente aquele gostinho de adquirir.
É o comprar pelo mero prazer de comprar. Como no mito de Tântalo, as
pessoas estão sempre insaciadas. Sobre esta questão, ZUIN, PUCCI e
RAMOS-DE OLIVEIRA (2000, p. 67-68), consideram que:

Tântalo pagou um grande preço por ter roubado os manjares


dos deuses para entregá-los aos homens. Sua maldição
resume no seguinte: quando tinha sede e se aproximava da
água, ela se afastava: quando tinha fome e se aproximava das
árvores, seus frutos eram negados, pois os ramos
imediatamente encolhiam. Assim, também funciona a indústria
cultural, pois o consumo suntuoso e sedutor, em que a
felicidade parece residir, provê a sensação de que, ao
127

consumirmos os produtos propagandeados, imediatamente


tomamos posse dos atributos vinculados. Mas essa sensação é
tão efêmera que se esfacela, não tanto pela aplicação do
raciocínio crítico. Ela se desmorona diante da promessa de que
na próxima vez, amanhã ou na próxima semana, nossa
consternação será eliminada, pois, encontraremos, enfim, a
satisfação plena no produto simbólico mais sofisticado. [...] Há
um nítido processo repressivo em jogo, pois, o desejo, na
sociedade capitalista contemporânea, é duplamente humilhado.
A construção da cultura, na forma da sublimação estética,
exige a revogação pulsional. Mas, a sua humilhação é bem
mais contundente quando a indústria cultural afirma acabar
com as imposições sociais, sem jamais cumprir o prometido.

Cada novidade do mercado vem como um espetáculo paradoxal de


oferta e negação. A civilização atual impõe permanentemente às pessoas uma
existência fictícia onde oferta e negação são a mesma coisa. Neste contrapelo
crescem e amadurecem nossas crianças até tornarem-se adultos engolfados
numa existência danificada pela opressão dissimulada da desigualdade social.
Crescem habilitados pelas leis do mercado a transitar livremente por um mundo
onde seus comportamentos e suas certezas insólitas são a quintessência da
sucedânea infinda dos modismos do mercado. Neste mundo a contrapelo, o
ato de educar se afirma diante das constantes ressignificações da sociedade
onde acontece, reproduzindo-a. Conforme cita Vieira Pinto (2000:29-30), a
educação atua sobre o desenvolvimento do ser humano no intento de integrá-lo
como novo ser social e conduzi-lo a aceitar e buscar os fins da sociedade.

A educação é a transmissão integrada da cultura em todos os seus


aspectos, segundo os moldes e pelos meios que a própria cultura existente
possibilita. O método pedagógico é função da cultura existente. O saber é o
conjunto dos dados da cultura que se têm tornado socialmente conscientes e
que a sociedade é capaz de expressar pela linguagem. Nas sociedades
iletradas não existe saber graficamente conservado pela escrita e, contudo, há
transmissão do saber pela prática social, pela via oral e, portanto, há educação
(PINTO, 2000:31).

Acima dos acalorados debates que se agitam gigantemente entre


as díspares tendências pedagógicas secularizadas na empunhadura de uma
multifacetada coletânea de bandeiras de liberdade, emancipação, autonomia e
superação social, paira ainda a tarefa renitente e bastante vasta de fazer da
128

escola um locus de educação, no mais largo sentido da palavra. “Porque a


chave não está lá, entre a lousa e o papel: está no campo e na cidade, nas
plantações e nas ruas” (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 1998, p. 18). Diante da lógica
irretocável do capital, distinções verticais separam socialmente os que têm dos
que não tem acesso aos bens construídos pela humanidade, em especial a
escola e, em seu interior, o conhecimento. Como a verdade imortalizada (até
quando?) na música “Cidadão”, de Zé Ramalho:

[...] Tá vendo aquele colégio moço


Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Vem pra mim toda contente
"Pai vou me matricular"
Mas me diz um cidadão:
"Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar"
Essa dor doeu mais forte
Por que é que eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer [...].

A disponibilidade quase mecânica dos sistemas de educação à


estratificação da sociedade em classes economicamente antagônicas tem sido
simplesmente fantástica. A educação será sempre impotente e ideológica se
ignorar o necessário estranhamento em relação à realidade capitalista e seus
crimes. As reformas pedagógicas por si só têm se mostrado insuficientes para
a tarefa de revogação dos danos causados pela indústria cultural, enraizados
na escola através da “realidade trazida pelo aluno” (e por alguns “educadores”
menos esclarecidos sobre sua função). Uma realidade de diferenças de
riqueza, de renda, de ocupação, de moradia, de classe social. Neste sentido,
Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2000, p. 116), consideram que:

Enquanto não se modificarem as condições objetivas, haverá


um hiato entre as boas intenções das propostas educacionais
reformistas e suas reais reivindicações. [...] Dentro dessa
premissa, podemos identificar outra grande contribuição de
Adorno ao pensamento filosófico educacional: a de que os
processos educacionais não se restringem ao necessário
momento da instrução, mas que certamente o transcendem.
129

Este tipo de raciocínio nos leva a inferir que a esfera do


educativo não se delimita às instituições de ensino, ampliando
a percepção a ponto de investigarmos a forma como a
mercantilização dos produtos simbólicos determina novos
processos educativos, inclusive nas escolas.

Nossas escolas deveriam ensinar às crianças sob o ponto de vista


da sociologia, da psicologia, da economia, da política, da filosofia, da história e
das ciências que tratam da natureza. Também, a divisão da sociedade entre
ricos e pobres e a forte carga de racismo e demais preconceitos que moram
nas mentalidades de nossas populações deveriam ser trazidos à sala de aula e
discutidos claramente para que pudessem ser superados. Isto somente pode
ser possível através de debates sérios e de leituras bem feitas. E a escola é o
lugar mais adequado para que isso seja feito. E mesmo que isso fosse
realizado não seria garantia para que houvesse a transformação da sociedade
numa sociedade justa e igualitária, onde o horror não se fizesse presente como
forma documental da separação das pessoas em classes sociais. Mas, seria
um bom começo.

As atitudes irracionais do homem em sociedade são manifestações


daquilo que Freud chamou de “inconsciente reprimido”. Eis o pilar sobre o qual
se constrói a civilização. Em 1930 Freud escreveu a obra “O Mal-Estar da
Civilização” onde apresenta a ideia de que a busca de prazer é reprimida pelas
normas e regras de convívio em sociedade e dirigidas para a construção da
civilização e de tudo o que nela existe, como a ciência, a arte e o trabalho. A
esse processo chamou sublimação, conforme se pode verificar em outra obra,
escrita em 1908, “Moral sexual cultural e doença nervosa moderna”: "a esta
capacidade de substituir a meta sexual originária por outra não sexual, porém
psiquicamente a ela atrelada, denomina-se capacidade de sublimação"
(FREUD, 2007, p.168). As restrições à busca de prazer, impostas pela
civilização, são causadoras das neuroses, mas quando as pessoas sublimam a
neurose fica menos intensa, pois o prazer que não pode efetivar-se de uma
forma é buscado de outra, como no estudo, por exemplo.

A repressão provoca no indivíduo reprimido a busca pelo “gozo”.


Na conceituação freudiana, o termo gozo refere-se à busca pelo proibido, a
tudo que envolve um excesso, ultrapassa o prazer e provoca sofrimento, assim
130

como o uso de drogas, a relação sexual compulsiva ou o ato de comer em


exagero. Em “O mal-estar na civilização”, o autor adverte: “Uma satisfação
irrestrita de todas as necessidades apresenta-se como o método mais tentador
de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da
cautela, acarretando logo o seu próprio castigo” (FREUD, 2006, p.85).

Em “Para além do princípio de prazer”, Freud declara a existência


uma pulsão (instinto) de morte (o ódio) contrária à pulsão (instinto) de vida (o
amor). O instinto de morte seria um grave empecilho para a construção da
civilização. O autor chama a atenção para o fato de que, no cerne da estrutura
psíquica, é preciso reconhecer a existência de um desejo humano por
agressividade. Para Freud, não se trata simplesmente de uma reação de
defesa própria ao indivíduo que se encontra em situação de perigo, mas é uma
forma de buscar prazer com o sofrimento alheio. Diz ele:

[...] essa tendência à agressão, que podemos perceber em nós


mesmos e cuja existência supomos também nos outros,
constitui o fator principal da perturbação em nossas relações
com o próximo; é ela que impõe tantos esforços à civilização
(Freud, 1978, p.65).

Em 1926 Freud concede uma rara entrevista ao jornalista


estadunidense George Sylvester Viereck onde declara que:

A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas


restrições que ela impõe. As mais desagradáveis
características do homem são geradas por esse ajustamento
precário a uma civilização complicada. É o resultado de um
conflito entre nossos instintos e nossa cultura (RODRIGUES,
2016).

É estarrecedor perceber que a humanidade tem hoje as condições


objetivas para erradicar da face da terra a fome e a miséria, mas que,
entretanto, opta por reproduzir o sofrimento e a opressão da maioria
esmagadora da população. O mundo atual seria um candidato potencial para o
divã de Sigmund Freud. A ganância do poder econômico, a tentativa de impor
supremacias, o desrespeito ao meio-ambiente, a exploração do homem pelo
homem e as inúmeras guerras documentam duramente a violência e o ódio
existentes pelo mundo afora. De certo modo, podemos dizer que a humanidade
produz a civilização e a civilização produz a anticivilização. Diante de toda a
131

riqueza que a humanidade foi capaz de produzir em dez mil anos de civilização
– e, especialmente nos últimos duzentos anos de capitalismo -, sob a forma de
avanços tecnológicos, uma renúncia rigorosa ao conforto e aos prazeres nos
parece totalmente desprovida de razão. Mas, toda a tecnologia atual só
conseguiu garantir conforto a uma parcela muito pequena da população.
Enquanto uns esbanjam, outros dividem a miséria e disputam as migalhas. O
bolo foi feito pelos trabalhadores, que não têm mais acesso a ele. O bolo
cresceu, mas não foi dividido. E já mostra sinais de apodrecimento. E temo que
o planeta, e nós todos dentro dele, também.

No filme “O julgamento de Nuremberg”, o destino de líderes


nazistas é decidido quando eles são julgados por seus bárbaros crimes, onde
se destaca o holocausto que exterminou de forma industrial seis milhões de
judeus europeus. Num dado momento do filme, o capitão psicólogo Gilbert, um
judeu estadunidense, encarregado de analisar os líderes nazistas no corredor
da morte, chega à seguinte conclusão:

Revisei minhas anotações ontem à noite. Passei todos esses


meses tentando encontrar um caminho em suas mentes.
Esperando entender como aquelas pessoas puderam cometer
tantas atrocidades contra o meu povo (o povo judeu). Acredito
que há alguns fatores que explicam boa parte. Primeiro, na
Alemanha, o povo faz o que mandam. Você obedece aos pais,
aos professores, ao clero, militares superiores. São criados,
desde a infância, para não questionar as autoridades. Então,
quando Hitler chega ao poder ele tem uma nação inteira que
acredita ser perfeitamente natural fazer o que ele disser.
Segundo, propaganda. Durante anos os alemães foram
bombardeados com ideais como “os judeus não são seres
humanos de verdade”. Ou “eles são uma corrupção da raça
(humana)”. Então, quando o governo permitiu privar os judeus
de direitos e disse que era imperativo matar essas pessoas
inferiores, eles obedecem. Mesmo sendo seus amigos ou
vizinhos. [...] Eu disse uma vez que estava buscando a
natureza do mal. Acho que estou perto de uma definição. É
uma falta de empatia. É uma característica comum a todos os
réus. A genuína capacidade de estar bem entre outras
pessoas. O mal, eu acho, é a ausência de empatia
(NUREMBERG, 2000).

O filme retrata os líderes nazistas como pessoas gentis, cultas,


inteligentes e educadas. Pessoas “normais” que em nada combinam com seus
terríveis atos. Mas, então, como se explicam esses atos? Pela incapacidade de
132

se colocar no lugar do outro, diz o capitão psicólogo Gilbert. Incapacidade esta


que não se restringe aos nazistas, como bem retrata um diálogo anterior, aos
160 minutos do filme, ocorrido entre o marechal Herman Göering e o capitão,
que o analisava. Neste diálogo o capitão Gilbert tenta se contrapor à
autodefesa irresoluta de Göering de que seus crimes de guerra não eram
crimes porque foram motivados pela obediência devida ao seu superior, Hitler.
Eis o diálogo, iniciado por Gilbert:

— Não é só obediência cega, mas também a crença de que


suas vítimas não são humanas?
— Posso fazer uma pergunta: o que foi Hiroshima? Não foi
experiência médica de vocês? Os americanos teriam jogado
bombas tão facilmente na Alemanha como fez no Japão,
matando tantos civis quanto fosse possível? Eu acho que não,
para a sensibilidade americana uma criança caucasiana é
considerada mais humana do que uma criança japonesa.
— A América estava em guerra com o Japão, um país que
havia atacado sem nenhuma provocação. Vocês mataram
milhões de seus próprios cidadãos.
— E os cidadãos da raça japonesa, colocados em prisão
preventiva nos campos de concentração?
— Aquilo estava errado.
— E por que não foi feito com os cidadãos americanos de
descendência italiana ou alemã?
— Eu disse que foi errado.
— E os militares negros do exército? Podem comandar tropas
em combate? Podem se sentar nos mesmos tanques que os
brancos? As leis de segregação de seu país e as antissemitas
do meu são só diferentes quanto as classes.

Em que pesem os crimes contra a humanidade cometidos pelos


nazistas, o julgamento de Nuremberg, considerado o julgamento mais
importante da história, de fato não foi imparcial porque seu tribunal foi formado
pelos países que venceram a guerra. A assertiva da linha de defesa dos líderes
alemães sobre a falta de imparcialidade do tribunal, como de costume entre os
vencedores, não impediu que muitos dos condenados fossem enforcados. E já
anunciava a conduta que doravante seria adotada pelos EUA na defesa de
seus interesses. Se for verdade que o ocorrido em Auschwitz foi exemplo
primoroso dos picos elevados que pode escalar a maldade humana, também é
verdade que as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki não
foram expressões menores dessa maldade.
133

Tampouco tem sido destituído de maldade o trato escabroso com


os líderes de países vencidos em guerra pelos EUA. Como foi o caso de
Saddam Hussein, presidente deposto do Iraque após a invasão de seu país
pelas tropas estadunidenses. Saddam, que já havia sido aliado dos EUA, foi
entregue ao novo governo iraquiano - testa de ferro estadunidense -, que o
enforcou diante das câmeras, em cadeia televisiva internacional. Nada há para
lamentar quanto ao destino infeliz de Saddam Hussein, sobretudo por conta de
seus crimes contra o povo iraquiano. Mas, ele, como os nazistas merecia um
julgamento justo em tribunal internacional. Caso contrário, que diferença pode
haver entre um tirano e os que o julgam, sentenciam e matam? Há em Saddam
e no julgamento de Nuremberg uma possível analogia com a história dos
talibãs do Afeganistão. Armados e instigados pelos EUA contra os soviéticos,
tornaram-se depois incômodos para a hegemonia estadunidense na região e
foram perseguidos à exaustão. Do que resultou a retaliação pelo ataque
guerrilheiro às Torres Gêmeas, em 2001, sob a liderança de Osama Bin Laden,
também perseguido e assassinado posteriormente pelas tropas
estadunidenses.

De fato, como disse Göering, no filme, nada há de diferença entre


os atos praticados pelos nazistas e aqueles dos EUA, que impõe seu poder
político e econômico ao mundo dos derrotados à custa de seu poderio militar.
O conceito do capitão psicólogo Gilbert pode ser verdadeiro: “a maldade é a
incapacidade de se colocar no lugar do outro”. Contudo, torna-se aleijado
moralmente porque, como nos ensina a sabedoria popular, “quem tem telhado
de vidro não deve atirar pedras no telhado dos outros”. Aquele esquecimento
do vínculo humano, que concede ao outro a condição de semelhante, não tem
sido, ao longo da história, uma prerrogativa dos vencidos. Em que pesem suas
atrocidades. Este é um processo que tem sido visualizado ainda hoje entre
todos os países do mundo. E eu suponho, lastimosamente, que também entre
pessoas de todas as classes sociais. Ainda que esteja acessível, por questões
óbvias, aos donos do poder. Na guerra há o requinte da crueldade, mas a
coisificação está subjacente ao dia a dia das cidades, na exploração
econômica dos ricos sobre os pobres.
134

Também nós brasileiros temos nossa cota de desumanização pela


transformação do outro em coisa. E, portanto, temos nossas cotas de
crueldades. Talvez, nossa cota bastante farta de crueldades. Conforme o
exemplo dado pela história do índio Galdino. Ou pelo genocídio americano que
foi a Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870, quando o Brasil, a Argentina e o
Uruguai dizimaram algo como 90% da população paraguaia masculina acima
de 20 anos. Sendo que 70% dos combates contra o Paraguai foram feitos por
mãos brasileiras. A derrota transformou o Paraguai de uma nação rica numa
das mais atrasadas da América do Sul devido à diminuição da sua população,
à perda de quase 40% de seu território, à ocupação militar por quase dez anos
e o pagamento de uma pesada indenização de guerra, que no caso do Brasil
se estendeu até a Segunda Guerra Mundial (CHIAVENATO, 1979).

Esse processo de coisificação do ser humano, sob a tutela da


conceituação marxista, é chamado de reificação, isto é, o processo pelo qual o
ser humano é percebido como coisa. No lado inverso da moeda está o
processo de fetichismo, ou seja, o processo pelo qual o que é coisa é
percebido como humano. Para o Marxismo, esses processos são produtos e
produtores do capitalismo. Inseparáveis. No fetichismo, a mercadoria ganha um
valor especial, quase místico, muito além da sua real utilidade. E a felicidade
está condicionada ao ato de consumir. Através da propaganda, é criada e
recriada constantemente uma conexão entre o ter e o ser. Consumir passa a
ser um ideal de vida. Esse processo deixa marcas profundas não só nas
pessoas que se tornam compulsivas por comprar, mas também no planeta. O
consumismo está, de um lado, exaurindo todos os recursos do planeta e de
outro lado, enchendo o planeta de lixo.

Marx cunhou o conceito de fetiche na obra “O capital” (MARX,


1985), mais precisamente na seção intitulada “O fetichismo da mercadoria: seu
segredo”, situada no primeiro capítulo denominado de “A Mercadoria” que, por
sua vez, faz parte do primeiro livro intitulado “O Processo de Produção do
Capital”. Nesse capítulo, Marx analisa o conceito de “mercadoria” para em
seguida se ocupar do “fetichismo da mercadoria”. Marx inicia sua análise da
seguinte forma: “À primeira vista, a mercadoria parece ser coisa trivial,
135

imediatamente compreensível. Analisando-a, vê-se que ela é algo muito


estranho, cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas” (Ibid., p. 79).
Depois, refere-se ao fetiche do seguinte modo:

Há uma relação física entre as coisas físicas. Mas, a forma


mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho,
a qual caracteriza essa forma, nada tem a ver com a natureza
física desses produtos nem com as relações materiais dela
decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os
homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região
nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano
parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que
mantem relações entre si e com os seres humanos. É o que
ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das
mercadorias. Chamo isto de fetichismo, que está sempre
grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como
mercadorias (Ibid., p. 81).

A Revolução Industrial, como mola propulsora do modo de


produção capitalista no século XIX, dividiu o trabalho em partes para aumentar
a rapidez produtiva. Já antes, na acumulação primitiva isso acontecia. Mas, a
Revolução industrial potencializou esse processo. Cada trabalhador, que antes,
como artesão, fazia o trabalho sozinho, faz agora apenas um pedaço da
produção na chamada “linha de montagem” e só conhece o que faz. Nesse
processo, o homem que antes conhecia o todo da produção agora se acha
alienado desse “todo produtivo”, está alheio a ele, pois só conhece a parte
exata que lhe cabe na divisão do trabalho. Em seguida, esse homem alienado
do processo de trabalho vai se alienar também da mercadoria. Ele não vê mais
nela o trabalho e nem os trabalhadores que a produziram. Vê somente uma
mercadoria maravilhosa, embora no mais das vezes supérflua e descartável,
porque é feita para ter vida útil curta e de fato não é necessária. Mas, uma
mercadoria, que, embora supérflua, passa a ser vista como imprescindível,
algo maravilhoso, pois é isso que lhe diz a poderosa máquina de propaganda e
convencimento da mídia.

Esse é o fetiche da mercadoria de que Marx nos fala, o feitiço,


quase religioso, que a mercadoria teve e ainda tem sobre as pessoas. Mas,
veja bem, o fetiche da mercadoria não é um fenômeno autônomo, livre e
independente do ser humano, ele é produzido e utilizado pelo homem há muito
136

tempo como uma das engrenagens fundamentais do modo de produção


capitalista. Sua função é preparar o caminho para a venda. Quanto mais
alienada a pessoa, mais refém será do fetiche da mercadoria e
consequentemente mais tenderá à compra dos produtos fetichizados da
indústria. Eis aí, talvez, a razão pela qual a escola pública em nosso país tem
tido os péssimos resultados que as avaliações têm demonstrado. Alienação e
educação por aqui caminham juntas: duas irmãs de mãos dadas que seguem
para a escola. E como reverberam os secretários de educação, em uníssono,
em sua resposta negativa sempre que a categoria dos trabalhares em
educação lhe solicita a devida reposição salarial: “os números são irrefutáveis”.

Um povo esclarecido é mais difícil de alienar. Quanto mais


esclarecida a pessoa for, maior a possibilidade de emancipação. Portanto, a
tacanha e paupérrima situação da escola pública no Brasil não é algo do qual
se possa dizer: isso não deu certo. É um projeto, obviamente não de uma
pessoa, talvez não de um determinado grupo de pessoas, mas de uma
hegemonia social, de um sistema poderoso de dominação, de um poder
dominante quase invisível, mas que representa material e objetivamente uma
determinada classe social: a burguesia. É um projeto que foi e está sendo
profundamente exitoso. Bem-sucedido ao máximo. Porque aporta na educação
escolar para além da consciência dos pais de alunos, dos educadores e dos
alunos. E por que, historicamente, tem se preocupado, especialmente na
sociedade brasileira, em domesticar as crianças para que sejam futuros
trabalhadores comportados, subservientes e consumidores ávidos e
obedientes. Seres humanos coisificados e coisificadores. Eis a principal função
da nossa escola pública.

São tantos os prejuízos que o capitalismo e suas engrenagens


maquiavélicas acometem às pessoas em sociedade que é lícito perguntar: por
que os homens fazem isso? Provavelmente porque está incapacitado de se
colocar no lugar do outro. Mas o que retirou do homem tal capacidade? Ou
teríamos já nascido amputados de empatia? Em “O Mal-Estar na Civilização”,
Freud assinalou o caráter contraditório da civilização (FREUD, 2006). Se a
história da civilização é a história da repressão do ser humano, então teríamos
137

falhado em assegurar nossa própria satisfação, nossa própria felicidade. A


maldade, ou nas palavras de Theodore Adorno, a “barbárie”, não é somente a
filha bastarda do capitalismo tardio, que acomete a civilização de tempos em
tempos. É um fenômeno permanente e basilar do próprio processo civilizatório.
Na conferência radiofônica de 1965, “Educação após Auschwitz”, Adorno
retoma as reflexões que trouxe em seu livro “Dialética do Esclarecimento”, de
1944, e em seu livro “Mínima Moralia”, de 1947, citando Freud, para quem “a
civilização produz a anticivilização e a reforça progressivamente” (ADORNO,
1986, p. 33). E cita Benjamin, que na tese sete sobre a história, assim tinha se
expressado: “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também
um monumento de barbárie” (Ibid., p. 34).

As pulsões do princípio de prazer querem se satisfazer, mas muitas


delas não podem porque são inconciliáveis com as regras e normas do
convívio social. Então, são reprimidas e mantidas no inconsciente, impedidas
de se realizar e sequer de serem lembradas. Dessas energias reprimidas se
constrói toda a cultura e toda a civilização. A sublimação é o processo no qual
as energias dessas pulsões reprimidas são utilizadas para a construção da
cultura e da civilização: para o trabalho, para as artes, para a ciência e o
estudo. Contudo, em “O mal-estar da civilização”, Freud nos adverte que a
repressão das pulsões não passa imune ao sofrimento emocional de não ter
seu intento inicial satisfeito, podendo até, certa parte dessas pulsões
reprimidas, ser bastante destrutiva (FREUD, 2006). A maldade, em toda a
vastidão de nomes que possui (traição, perseguição, hipocrisia, atentado,
fofoca, tirania, preconceito, opressão, assassínio) nada mais é que a expressão
da vida anulada por expectativas frustradas. Acerca da confecção da maldade,
Sigmund Freud, em 1926, numa rara entrevista, concedida ao “Journal of
Psychology”, que, todavia, só foi publicada em 1957, faz a seguinte
consideração:

Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana,


porque são tão mais simples. Não sofrem de uma
personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta
da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização
demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e
psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a
maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do
138

homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As


mais desagradáveis características do homem são geradas por
esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o
resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura.
Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de
um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu
desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freud
pensativamente) lembram-nos os heróis da Antiguidade. Talvez
seja essa a razão por que inconscientemente damos aos
nossos cães nomes de heróis antigos como Aquiles e Heitor.
(ALTMAN, 2004, p. 107).

Se alguém está triste chora; se está alegre, sorri; se está zangado,


agride; se está com medo, foge. Mas quando as emoções são inconciliáveis
com as regras sociais de conduta, elas são impedidas de se realizar e ficam
armazenadas secretamente, podendo ser sublimadas na cultura ou
descarregadas, inconscientemente, a qualquer momento, sob a forma de
atitudes irracionais, geralmente destrutivas, como é o caso da maldade. Dito de
outro modo, quando os impulsos de prazer são reprimidos, há fogo na lareira,
mas a chaminé está obstruída: o fogo não se apaga, então, a fumaça invade e
inunda a sala, espalhando-se pela casa toda para, finalmente, vasar por uma
janela dos fundos, que se encontra entreaberta. A maldade é a fumaça saindo
pelo lugar errado.

Nossa ciência nunca foi tão promissora como agora. Nunca


produzimos tanto e nem jogamos tanto fora. Também nunca deixamos tantos
fora da partilha. A fome e a miséria proliferam hoje prodigiosamente ao lado de
guerras sangrentas, atentados terroristas e as mais variadas formas de
injustiças sociais. As filosofias, as pedagogias, as religiões, as descobertas
freudianas, os ensinamentos marxistas, as revoluções comunistas, todas essas
grandes tentativas de libertar o ser humano de seu flagelo mostraram-se
ineficazes. A tarefa de erradicar da humanidade a opressão do homem pelo
homem ainda está por fazer. Cabe, então, a seguinte pergunta: até quando os
seres humanos em sociedade serão capazes de conter sua inclinação para a
maldade, antes que a destrutividade, ampliada e potencializada pelos avanços
tecnológicos – e a utilização da bomba atômica é referendo de nosso temor –
possa levar a humanidade e a própria vida no planeta à extinção? Há motivos
para ficarmos céticos. Entretanto, para usar uma frase de um antigo conhecido,
139

que de tanto tê-la por perto já se faz um pouco minha, a vida é uma grávida de
possibilidades.

Capítulo 7 – Sísifo professor

Se alguém quiser reduzir o homem a


nada, basta dar ao seu trabalho o
caráter de inutilidade.

(Feodor Dostoievski)

Sísifo fora condenado pelos deuses do Olimpo a arrastar uma


imensa rocha morro acima, que sempre despencava tão logo ele chegava ao
cume. Sísifo era filho de Éolo, deus dos ventos, e descendente direto de
Prometeu, de quem herdara sua ardilosidade. Prometeu, cujo nome, em grego,
significa “premeditação”, furtou o fogo dos deuses e por isso foi condenado a
ser acorrentado ao alto de uma montanha, durante 30 mil anos, tempo esse em
que ele seria diariamente bicado por uma águia, que lhe destruiria o fígado.
Como Prometeu era imortal, seu órgão se regenerava constantemente, e seu
martírio se reiniciava a cada dia.

Considerado o maior embusteiro do mundo, Sísifo chegou a


reivindicar para si a paternidade do grande herói Ulisses, retirando essa honra
de Laertes. Tal qual seu ilustre antepassado, Sísifo não tinha pudor algum de
se meter nos assuntos dos deuses, chegando a denunciar os adultérios de
Zeus à sua esposa Hera e a acorrentar ardilosamente a própria morte. Um dia,
porém, sua vida chegou ao fim, como é natural a todos os mortais. Zeus
resolveu, então, puni-lo pelas suas afrontas. No Tártaro, mundo subterrâneo
onde ficam as almas dos mortos, Sísifo foi condenado a rolar uma enorme
pedra até o alto do monte Cáucaso. Tão logo chega ao seu ponto mais
140

elevado, a pedra despenca, obrigando Sísifo a recomeçar o fatigante trabalho,


que há de se repetir eternamente.

O mito de Sísifo, o herói do absurdo, tal como foi aclamado por


Camus (2007, p. 138), descreve o desespero diante do suplício eterno e
indizível de realizar uma tarefa sem sentido, que nunca pode ser concluída.
Desafiar o poder dos deuses é uma ação que não pode ficar sem castigo.
Assim como não cabe ao professor desafiar o poder do diretor e ao aluno
desafiar o poder do professor. E, fora da escola, não cabe ao pobre desafiar o
poder do rico. Os Sísifos que assim procederem devem ser punidos
exemplarmente. Afinal, o ato de desafiar os “imortais” corresponde à expressão
do desejo e pretensão de se igualar ao poder dos poderosos.

Com o tempo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser


chamada de “Trabalho de Sísifo”. Hoje, quando me debruço sobre minhas
memórias e evoco o mito de Sísifo para ilustrar o trabalho que vi sendo
desenvolvido na escola pública, é que posso perceber que este tipo de tarefa
não me era estranha. Quando estive no Serviço Militar Obrigatório fui pego,
junto com mais três companheiros de caserna, fardado, na frente do quartel,
“dando uma cantada” numa menina que por ali passava. A menina nos
respondeu com um sonoro palavrão. O sargento mais rigoroso do quartel
estava atrás de nós. O que nos valeu, como castigo, a tarefa de cavar uma
trincheira de 1,5 m de largura, 1,5 m de fundura e 15 m de comprimento.
Cavamos numa manhã de sábado. Seis horas de trabalho duro. O sargento
disse que não estava bom, que o buraco estava torto, desengonçado, “coisa de
mocorongo”, como era seu costume falar. Tivemos de tapar e fazer tudo de
novo. No domingo estávamos lá novamente, com pá, enxadão, picareta, nível,
prumo e linha de pedreiro. E no final de semana seguinte também. Cada
punhadinho de terra que caia a gente catava e colava cuidadosamente na
parede. Ficou uma trincheira linda. Um dos buracos mais belos que eu já vi.
Retinho, liso, alinhado, no prumo! Levamos dois finais de semana para terminar
o serviço. Quando terminamos, no fim do dia, estávamos exaustos. O sargento
veio avaliar e disse: “Ah, esta sim é uma bonita trincheira. Agora podem
tapar!...”.
141

Os mitos, na Antiguidade, eram considerados pelos antigos gregos


como a linguagem que os deuses usavam para nos ensinar a arte de viver e de
amar. Mas, o que Zeus quis ensinar aos homens punindo Sísifo com o
descomunal trabalho inútil de empurrar eternamente uma pedra morro acima?
E o que o tal sargento quis ensinar a mim e aos meus colegas milicos com a
tarefa inútil que nos deu? Afinal, o que a escola pública tem ensinado aos
tantos profissionais da educação que um dia ingressaram no magistério
munidos de suas esperanças numa escola pública que fosse capaz de
promover uma sobrevivência digna para todos? Consideraria Sísifo a
possibilidade de se libertar de seu infortúnio, de mudar a rotina absurda de
dias, anos e séculos preso a uma tarefa penosamente inútil? Preso, no entanto,
à mercê dos deuses, condenado a cumprir esta finalidade absurda, nada pôde
ele mudar.

Sísifo prossegue no seu tormento, dia após dia, mês após mês,
ano após ano, eternamente. Para o ser humano, todavia, existe a possibilidade
de modificar sua rotina absurda, de lançar para longe o rochedo das suas
misérias, o flagelo por desafiar o sistema. Qual professor não sonhou um dia,
ainda que embalado pelas repetitivas ladainhas das reuniões pedagógicas de
início de ano, em poder cutucar o sistema e levar seu aluno a se libertar dos
grilhões sociais e econômicos que o aprisionam? Esta pergunta vem dos restos
de esperança que ainda tenho comigo. Todavia, sinceramente, tenho medo de
ouvir a resposta para ela. Seja como for, é sedutora a ideia de empunhar o
cetro sagrado da educação transformadora. O castigo, porém, para os que se
arvoram a fazê-lo é repetir os dias, os anos e as rotinas escolares sem
variação alguma. E sem grandes resultados. A pedra de Sísifo tem, na escola,
outros nomes, mas é algo tão tedioso e inútil quanto o trabalho de Sísifo. A
tarefa de erguê-la todos os dias, anos a fio, para vê-la ir ao chão ao final do dia.

Quando ingressei na carreira de professor o fiz pensando em poder


ajudar as novas gerações a construir um mundo melhor, subsidiando o aluno
com os meios necessários ao entendimento dos problemas de sua realidade
social e com os elementos para sua transformação. Ledo engano. O Brasil é
um país com uma vergonhosa educação pública. E eu aprendi, finalmente, que
142

sou muito pequeno diante dos poderes sociais hegemônicos. Metaforizei como
professor o mito grego de Sísifo, empurrando minhas convicções e idealismos
em meu penoso, inútil e rotineiro trabalho pedagógico rumo à famigerada
educação libertadora, que jamais vi ser concluída. Nem por mim, nem por
colega algum, em que pese o fato de ter conhecido outros professores Sísifos,
como eu. Continuamos sendo um país rico com um povo pobre e uma
educação miserável.

E não seria o papel de Sísifo que, não todos, mas os professores


idealistas estão hoje a desempenhar na escola pública em nosso país? Quem
de nós, educadores, que um dia sonhamos em ver nosso aluno crítico e
autônomo, pode dizer verdadeiramente que não esteve rolando pedra morro
acima por anos a fio? Temos de nos contentar se com nossos conselhos
salvamos um ou outro do mundo das drogas ou da marginalidade. Não
estamos, por acaso, exercendo uma função rotineira, vazia e sem sentido? Não
tivemos de abandonar o sonho de vê-los ler criticamente o mundo onde
existem para ao menos sonhar que consigam ler o que escrevem? Não
estamos, dia após dia, ano após ano, por toda uma vida, insistindo num caso
sem solução? Quantas pessoas dentro da escola não se acham num martírio
sem fim? Quantos não se dilaceram tentando encontrar um conserto para a
educação escolar sem nada conseguir? Quantos professores contraíram
problemas emocionais sérios no exercício difícil da profissão? E quantos
desses professores com problemas emocionais sérios estão hoje educando
nossos filhos?

Esse é mais um livro de perguntas do que de respostas, embora


possa parecer à primeira vista que seja o contrário. Então, vale perguntar:
como viver uma vida toda dedicada a uma profissão inútil e destrutiva, como
tem sido a profissão de professor da escola pública nesse país? Muitos
desistem da profissão antes dela lhes roubar a saúde. Quem fica desiste de
procurar e acaba se dedicando mecanicamente à profissão, tendo como único
foco seu minguado salário ao fim de cada mês. E eu não os culpo. São
humanos, não são deuses. E precisam salvaguardar a saúde que lhes resta
para tentar bem educar seus filhos. Mas, o fato de eu não os culpar não muda
143

a situação desastrosa da educação pública brasileira. Em 2011 tínhamos 600


mil crianças em idade escolar fora da escola e estávamos no estarrecedor 88º
lugar num ranking em educação da UNESCO (PINHO, 2011), medido entre
127 países.

De fato, a nossa escola pública ultrapassou, há muito tempo, o


nível do absurdo, pois enveredou pelos caminhos do ridículo e da degradação.
Como é o caso da confecção de brinquedos “alternativos” feitos com lixo
reciclável para crianças pobres de escolas pobres (públicas). Em que pese a
decantada importância ecológica de se ensinar a criança a brincar reciclando o
lixo, é fato que não são as crianças pobres ou seus pais os grandes
responsáveis pela poluição. São as indústrias. Obviamente, a reciclagem ajuda
a reduzir o lixo. E, nesse sentido, uma educação para a reciclagem é sempre
bem-vinda. Desde que não se ensine nessas oficinas de confecção de
brinquedos com lixo reciclável que a poluição do planeta é fruto da não
reciclagem do lixo de nossas casas. Ou que com a reciclagem do lixo de
nossas casas iremos salvar o planeta. Como pude verificar, por diversas vezes,
em diversos cursos ministrados por professores “bem intencionados”. E desde
que não se submeta a ludicidade e a educação de nossas crianças
unilateralmente ao lixo. A coisa funciona assim: sem dinheiro para a compra de
bolas e de outros materiais para as aulas de educação física, por exemplo,
resta inventar brinquedos reciclados do lixo, com custo zero. Pobre criança
brasileira! Além de viver uma realidade difícil, repleta de dificuldades
econômicas, ainda tem de aprender na escola que o lixo (dos que têm mais do
que ele) será o seu brinquedo.

Como educador, sensível ao risco da degradação ambiental que


sofre o planeta e seus recursos naturais, posso admitir a utilização do lixo
reciclável na educação escolar. Mas, se, sob uma ética ambientalista devemos
levar o lixo reciclável para a construção de brinquedos na escola pública, então
que isso se faça também nas escolas particulares! Para além de um
romantismo pueril que por vezes invade as questões ambientais, a verdade
deve ser ensinada na escola pública; os grandes responsáveis pela poluição do
planeta são os ricos, donos das indústrias. A reciclagem do lixo das nossas
144

casas é correta, mas é absolutamente irrelevante se as indústrias não fizerem


sua parte. O lixo que vem de nossas casas é apenas uma pequena e diminuta
parcela de todo o lixo que vem causando a poluição do planeta. Para cada
saco de lixo que deixamos na lixeira em frente de casa, 70 sacos de lixo são
criados anteriormente pelas indústrias. Desse modo, ainda que pudéssemos
reciclar 100% do lixo das nossas casas, não chegaríamos ao cerne da questão.
Uma educação ambientalista verdadeira ensinaria nossas crianças a
questionar o consumismo que vem exaurindo os recursos do planeta e
poluindo a natureza, o campo e as cidades. Mas, fica mais fácil responsabilizar
o pobre pela sujeira do que responsabilizar o rico pelo que ele faz em sua
insaciável ânsia de sempre produzir mais para vender mais e conseguir mais
dinheiro e posses.

Quando se reduz a educação escolar de um povo à


impossibilidade de se bem educar e se enxerga isso com conformismo e
resignação, nada mais parece fazer sentido. Se resignar diante da absurda
situação da escola pública nacional é o mesmo que se resignar diante da
contradição entre o ímpeto humano de querer construir e a insensatez
destrutiva da sociedade atual. Hobsbawm aproxima-se de Schopenhauer ao
afirmar que o homem não tem do que se orgulhar: para a maior parte da
humanidade, o mundo é um pecado, a vida é trabalhar e a morte é a redenção.
Ironia a mais: nunca fomos tantos, vivemos tanto e em tantos lugares do
planeta produzindo as tantas riquezas a mais que obviamente serão usurpadas
de nossas mãos (HOBSBAWN, 1995).

Como Sísifo, na escola pública brasileira, os professores estão


condenados a empurrar eternamente, montanha acima, um fardo
insuportavelmente pesado que, tão logo chega ao cume, resvala de volta ao
ponto de partida. E a recomeçar o mesmo labor sempre, sem que quase nada
tenham de fato construído que valha a pena. Em que pese a dificuldade em se
conceituar o que venha a ser na escola a tarefa de bem educar, em cada ciclo
particular desse esforço inútil que é a decantada tarefa escolar de “bem
educar”, não falta quem nos assegure que estamos quase ao final das nossas
penas, que estamos fazendo a diferença, que estamos mudando a vida dos
145

desafortunados. Porém, em nosso íntimo, acabamos por reconhecer a


inutilidade dos nossos sacrifícios.

Entramos na escola apaixonados, munidos da convicção de que


poderíamos levar nossos alunos à leitura do mundo em que vivem, para
transformá-lo. Mas, depois de alguns anos, começamos a aceitar uma nova
utopia: ficarmos felizes se ao menos conseguirmos entrega-los ao ensino
médio capazes de ler ao menos a redação que escrevem. Isso pode parecer
uma piada, mas, infelizmente, não é. Piada é aquilo em que se tornou a escola
pública. Certa vez, depois de ter ministrado o conteúdo “História da Educação
Física” aos alunos de uma turma de ensino médio, perguntei a uma aluna: “em
que país nasceu a Revolução Francesa?” A menina ficou confusa e atônita,
sem conseguir me dar resposta alguma, quando um aluno ao lado disse a ela:
“foi na Inglaterra, sua burra!”. Se fosse uma piada do aluno seria ao menos
engraçada. Infelizmente, não foi. Obviamente, o aluno confundira o país de
origem da Revolução Francesa com o da Revolução Industrial. Mas, pelo amor
de Deus, como algo francês pode nascer em outro lugar que não na França?!

Quando acreditamos na possibilidade de ver as políticas públicas


se voltarem à construção e efetivação de um projeto sério de transformação do
sistema público de ensino nacional, pensamos numa escola finalmente liberta,
que vingaria Sísifo e não mais veria seu trabalho despencar dia após dia qual
pedra que retorna sempre ao ponto de partida. Contudo, na escola aprendi que
de nada adianta esperar. Ou ainda, num sentido oposto, que de nada adianta
se entrincheirar em críticas ao governo, desafiando “o poder dos deuses”.
Como tantas vezes eu o fiz em discursos acalorados aos tantos colegas
desinteressados nas salas dos professores das escolas por onde passei. Esta
é uma ação que não pode passar incólume, pois aquele que desafia tem de ser
punido. E punido exemplarmente. Afinal, o ato de desafiar as políticas públicas
para a educação, para que façam o seu papel, corresponde à pretensão de
desafiar os “imortais”. Lutar por uma escola pública de qualidade corresponde à
querer igualdade entre ricos e pobres, libertando o povo – pela educação – de
sua condição de subserviência em relação aos poderosos. Com o tempo
aprendi que, todavia, essa tarefa corresponde à tarefa de fazer rolar uma pedra
146

enorme até o cume de uma montanha num esforço inútil, como penalidade
imposta aos que desafiam o poder dos “deuses”.

Obviamente, nem só de Sísifo vivem os mitos gregos. Na verdade,


eles estão repletos de contos sobre os deuses e sobre as batalhas épicas dos
grandes heróis da Antiguidade, como a de Ulisses em seu retorno de Tróia,
revelando, os meandros multifacetados da condição humana. Eles nos ajudam
a entender as contradições das relações humanas, pois os deuses possuíam
todos os nossos sentimentos. Mas, sobretudo, nos revelam o quão severa
pode ser a punição dos deuses ao serem desafiados. Mársias, por exemplo,
era um sátiro que, tendo encontrado a flauta de Atena, resolveu desafiar Apolo
a um concurso de música, sendo que o vencedor poderia fazer o que quisesse
com o derrotado. Após cada um ter executado sua melodia, foram
considerados equivalentes. Então, Apolo decretou que ambos deveriam tocar e
cantar ao mesmo tempo. Mársias não conseguiu equiparar-se a Apolo nessa
tarefa. Apolo foi considerado vencedor e como punição esfolou Mársias vivo e
pregou sua pele em um pinheiro para que todos pudessem ver o que acontece
a quem desafia os deuses.

Na escola, os professores diferentes sempre foram bem quistos


pelos alunos. Mas, quase nunca pelos seus colegas, pelos diretores e
secretarias municipais e estaduais de ensino. Em que pesem os discursos em
contrário. Aqueles professores diferentes, ousados, arrojados, libertários,
geralmente os mais jovens, não hesitam em dar uma aula divertida sem dar
espetáculo. São empáticos e altruístas e conseguem ensinar seus conteúdos
de modo interessante e democrático. Eles se colocam em pé de igualdade com
o aluno e se preocupam em conscientizar os alunos para que eles não sejam
depois enganados e explorados pelo mundo do trabalho. Esses professores
transformam-se em Sísifos e Mársias da profissão. Toda regra tem suas
exceções, mas, via de regra, eles são repudiados pelos colegas que os
enxergam como um perigo: “imagina se os alunos começam a exigir que todos
os professores ajam assim”.

Nas salas de aulas não é raro se ouvir professores falando alto,


muito alto, gritando. Sempre me perguntei: serão esses gritos apenas para
147

coibir os excessos dos alunos insubordinados ou seriam ainda brados de


desespero pelo desprezo do poder público com o ensino? Não seriam esses
gritos a lamúria de quem assumiu a vida de educador e vê-se impedido de sê-
lo pela falta lastimável de condições? Esses gritos não seriam lamentos contra
a tristeza por uma vida anulada por seus sonhos desfeitos? Afinal, o que resta
a esses pobres educadores do que o lamento? Não se transformaram em
Sísifos empurradores de pedras ou Mársias esfolados vivos, mas sofrem de
igual modo. Porque, como bem nos lembra Reich, em O assassinato de Cristo,
“não há nada mais destrutivo do que a Vida anulada e contrariada por

esperanças frustradas” (REICH, 1991, p. 9).

Um outro mito grego nos conta que Prometeu (aquele que vê


antes) e seu irmão Epimeteu (aquele que vê depois) criaram os animais e os
homens. Deram a cada animal um poder, como voar, caçar, coragem, garras,
dentes afiados. Por ser o último a ser feito, o homem ficara sem nada.
Prometeu, então, deu um pouco de cada animal para o homem. Mas, resolveu
desafortunadamente roubar o fogo do Olimpo e dá-lo ao homem. O fogo
representava a inteligência para construir a civilização, onde surge a política,
como resposta à demanda dos homens pela vida em coletividade nas cidades,
povos e nações. Tendo o ser humano ficado inteligente, Prometeu pôde
ensina-lo a domesticar animais, a fazer remédios, a construir barcos, a
escrever, a cantar, a interpretar sonhos e a buscar riquezas minerais. Porém,
Zeus se enfureceu com o roubo do fogo dos deuses decidiu, então, vingar-se
de Prometeu e dos homens. Zeus acorrentou Prometeu a um monte e lhe
impôs uma sina terrível como castigo, segundo a qual uma ave de rapina
devoraria seu fígado durante o dia e, à noite, o fígado cresceria novamente
para que no outro dia pudesse ser outra vez devorado, e assim por toda
eternidade. E para se vingar dos homens, Zeus ordenou que o Deus das Artes,
Hefesto, fizesse uma mulher de argila, que fosse parecida com as deusas.
Hefesto fez uma estátua linda e a deusa Atena lhe deu o sopro de vida,
enquanto a deusa Afrodite lhe deu beleza, o deus Apolo lhe deu uma voz
suave e Hermes lhe deu persuasão. Assim foi feita a mulher, que recebeu o
nome de Pandora, aquela que tem todos os dons.
148

Pandora foi dada, então, como presente a Epimeteu, como


estratégia de vingança. Tendo, porém, sido alertado por Prometeu, Epimeteu
recusou respeitosamente o presente. Porém, por “ver sempre depois”, agiu de
forma precipitada e ficou encantado com a bela Pandora e com ela se casou.
Ela chegou trazendo uma caixa fechada (que não era bem uma caixa, mas um
jarro), como presente de casamento dos deuses para Epimeteu. Lembrando-se
do aviso do irmão, Epimeteu pediu para Pandora não abrir caixa, mas, tomada
pela curiosidade, ela não resistiu e abrindo a caixa na frente de seu marido
liberou todos os males que até hoje afligem a humanidade, como a velhice, a
inveja, os desentendimentos, as guerras e as doenças. Ela ainda tentou fechar
a caixa, mas só conseguiu prender nela a esperança.

Na Grécia trágica, a esperança é o último dos “males” escondidos


na caixa de Pandora. Mas, como a esperança pode ser um mal? Em “Humano,
Demasiado Humano”, Nietzsche (2008) assim traduz as motivações trágicas
presentes no sentimento de afirmar e amar o destino por meio da esperança:

Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem


pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem
a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na
verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens
(p. 71).

Se pudermos associar a história de Pandora com a escola pública


brasileira, podemos vislumbrar em seu interior um número muito grande de
professores que, por mais que sofram, não rejeitam a escola e continuam a se
deixar torturar, com sua esperança de as coisas hão de melhorar. No mundo
trágico da Grécia Antiga, a esperança é um dos males que nos faz sofrer. Mas,
como viver sem esperança? Eis a tragédia numa de suas expressões máximas.
Se, por um lado, sem esperança somos seres desmotivados, por outro, “ter
esperança” é uma profunda ilusão com relação ao futuro. A esperança é uma
forma de tortura justamente porque não há nenhuma esperança. É um engodo.
Como dizia o oráculo de Delfos: somos mortais.

Num contraponto às tragédias gregas – e paradoxalmente


recorrendo à esperança – há sempre a ideia de que o suplício um dia acabe,
que o homem faça uso de sua inteligência para não ficar nas mãos do destino,
149

das intempéries e dos outros homens. Como têm feito muitos professores que
abandonam a carreira tão logo percebem que a escola pública, escondida sob
o véu das aparências, é um lugar onde se perpetuam tentativas frustradas de
solucionar problemas que sempre se mostram insolúveis. Os professores que
deixaram a profissão são aqueles que descobriram que foram logrados por um
sistema que os aprisiona como Prometeus à mercê de abutres. Ou como
Sísifos em seus labores sem nexo. Ou como Mársias, castigados por
desafiarem o sistema. E nisso, nosso sistema público de educação
ultrapassou, há muito, o nível do absurdo. Mas, parece que poucos se
apercebem. Ou concordam. Ou mesmo se dispõe a comentar algo sobre o
assunto, tido como quase inabordável dentro da escola. Enquanto outros
professores que ainda resistem acreditando que podem realizar “um bom
trabalho” (meu Deus, espero que alguém um dia me esclareça racionalmente o
isso significa dentro da escola pública) dizem: “o que é isso? É só fazer o seu
trabalho que tudo se resolve!”. Mas, que trabalho é esse? Qual a função de
ensinar na escola pública? Ou já esquecemos os motivos históricos que
levaram à sua criação? Ou não nos demos conta ainda de que a educação
transformadora preconizada pelos estudos de autores como Vygotsky, Luria,
Pistrak, Anton Makarenko, Leontiev, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Gaudêncio
Frigotto, Pablo Gentilli, Saviani e Gasparin nunca aconteceu de fato na escola?

Alguns professores chegam ao cumulo de transformar, em


desespero, suas aulas em verdadeiros shows business pedagógicos. E, sob a
égide da indústria cultural, concedem à geração pós-moderna de jovens
hedonistas exacerbados os conteúdos escolares sob a forma de espetáculo.
Outros, escravos do livro didático, se limitam a escrever no quadro negro:
“leitura: pág. 30 a 34. Exercícios: pág. 35”. E, depois de feita a chamada,
consideram aula dada, como tantas vezes tive a oportunidade de ver escrito no
quadro negro e depois conferir com meus alunos como tinha sido a aula antes
da minha.

O rei Salomão disse que respondêssemos aos loucos conforme


sua loucura. E Nietzsche certa vez escreveu, sarcasticamente: O professor
constitui um mal necessário. Afinal, é inevitável que os intermediários
150

desvirtuem, quase sem querer, o alimento que transmitem. E eu fico a me


perguntar: nesse mundo pós-moderno, após a mentira ter se transformado em
verdade relativa e a imbecilidade ter se travestido de didática e pedagógica, o
que mais poderá ser inventado para disfarçar a tragédia da nossa pobre escola
pública?

Capítulo 9 – Educação Física é isso mesmo?

Sou um homem de causas. Vivi sempre


pregando, lutando, como um cruzado,
pelas causas que comovem. Elas são
muitas, demais: a salvação dos índios, a
escolarização das crianças, a reforma
agrária, o socialismo em liberdade, a
universidade necessária. Na verdade,
somei mais fracassos que vitórias em
minhas lutas, mas isso não importa.
Horrível seria ter ficado ao lado dos que
venceram nessas batalhas.

(Darcy Ribeiro)

— Pai, Educação Física é isso mesmo?

Esta foi a pergunta com que Giovana, uma das minhas filhas, me
surpreendeu há alguns anos. Ela tinha, na época, dez anos de idade e
estudava na extinta 5ª série, atual 6º ano do ensino fundamental. E estudava
no maior e, considerado por muitos, o melhor colégio público da cidade de
Maringá.

— Como assim, minha filha, Educação Física é isso mesmo?, disse


eu.

A resposta que veio a seguir é que realmente foi surpreendente:


151

— O professor chega à quadra e dá uma bola de vôlei para as


meninas e uma bola de futsal para os meninos. E depois fica sentado
conversando com quem não quer fazer aula. Isso quando ele fica na quadra,
porque na maioria das vezes ele sai e ninguém sabe aonde ele vai.

Tomado de surpresa eu, que também lecionava naquele colégio,


disse a ela:

— Não é possível, minha filha, eu conheço esse professor, você


deve estar exagerando.

No dia seguinte eu estava sem aula e me dirigia até a sala de


Educação Física daquele colégio, onde trabalhei por quinze anos. Foi quando
Giovana e mais duas ou três amiguinhas me seguiram. Quando eu lá cheguei
encontrei o professor de Educação Física de minha filha sentado, digitando
alguma coisa no comutador. Logo atrás de mim chegaram minha filha com as
amiguinhas e ela disse ao seu professor:

— Professor, o senhor não vai dar aula, não?

E o professor, desconcertado com a minha presença, respondeu:

— Mas eu estou dando aula.

Ao que minha filha retrucou:

— Mas, como, se o senhor está aqui e a gente está lá na quadra?

Há que se dizer que a quadra ficava bem longe da sala onde


estávamos. O tal professor, então respondeu à pergunta inquisitiva de Giovana:

— Sim, mas eu não dei uma bola de futsal para os meninos e uma
bola de vôlei para as meninas?

Ao que Giovana respondeu prontamente:

— É, mas você não disse o que é pra gente fazer.

— Ué, é pra vocês darem toque.


152

Esse argumento do professor veio já com a voz nervosa e um tanto


tremula. Mas, Giovana, não se deu por vencida e arremeteu com essa:

— Mas, professor, como a gente vai dar toque se você ainda não
ensinou isso pra gente?

E esta foi a resposta última do professor:

— Ta bom, ta bom, vamos lá.

E saiu o professor com suas alunas para a quadra sem me dizerem


única palavra, como se eu não estivesse ali. Mas, eu estava. Eu que estava ali
assistindo aquela cena tragicômica e saí da sala, perplexo. Resolvido a
reclamar para a pedagoga - não como professor, mas como pai de aluna - fui
em direção à sala do corpo pedagógico do colégio. Encontrei pelo caminho
outro professor de Educação Física que me cumprimentou. Mas, eu estava tão
atônito que não respondi. Os pensamentos indo e vindo à minha cabeça. Eu
tentava digerir adequadamente aquela cena. Nem ouvi o cumprimento. Então
ele disse:

— Ei, acorda, você parece que está no mundo da lua? Aconteceu


alguma coisa?

Foi então que eu parei, me desculpei com ele e disse a ele o que
tinha acontecido. Estávamos no pátio do colégio e ele me convidou para
sentar:

— Não é possível, vamos sentar naquele banco que eu quero que


você me conte certinho essa história.

Então, nós nos sentamos e eu comecei a contar novamente pra ele


o ocorrido. Foi quando chegaram uns cinco alunos dele, na mesma faixa etária
de minha filha e lhe perguntaram:

— Professor, o senhor não vai dar aula não, é?

E esta foi a resposta desse professor, como uma espécie de dèjá


vu:
153

— Ta bom, ta bom, vamos pra quadra.

O professor se levantou e seguiu com seus alunos sem ao menos


se despedir. Impensável uma satisfação. E hoje eu me indago: “O que será que
aqueles professores pensavam e diziam ao meu respeito?”. O fato é que eu saí
dali realmente indignado e fui até a pedagoga e relatei o ocorrido dizendo que
não só como professor, mas, especialmente, como pai de aluna eu queria que
alguma coisa fosse feita. Era uma pedagoga severa militante de esquerda,
então pensei que ela iria fazer algo contundente sobre o caso. Mas, ela se
limitou a fazer o seguinte comentário:

— Olha, professor, eu vou conversar com ele, mas eu duvido que


vá adiantar. Ele não vai mudar o jeito dele dar aula, assim como ele não iria
querer que o senhor mudasse o seu.

Fiquei realmente ofendido e disse:

— Como assim, mudar o jeito dele dar aula? Ele não estava dando
aula. Estava matando aula.

E a pedagoga, já em tom conciliador respondeu:

— Pois é, professor, a gente sabe que essas coisas acontecem,


mas não podemos fazer nada além de falar com ele.

Então, insatisfeito com as ponderações da pedagoga, fui até o


diretor e expus o fato. Ele me disse que iria falar com o tal professor.
Estávamos no final do primeiro trimestre letivo e eu continuei perguntando
sempre à minha filha como estavam caminhando suas aulas. E pelo relato
dela, o professor continuava do mesmo jeito. Não mudara nada em seu triste e
lamentável comportamento. E não adiantou nada eu voltar a reclamar diversas
vezes à pedagoga e ao diretor. Chegamos ao fim do ano letivo e o professor
manteve inabalada sua conduta.

Este lamentável episódio inaugurou em mim um multifacetado


sentimento de frustração, repulsa e impotência diante da descomunal
irresponsabilidade e da mais sórdida e desavergonhada negligencia por parte
de membros de uma categoria que para mim até então era sagrada. Serviu
154

para me abrir os olhos para uma desconfiança que eu vinha tendo já há algum
tempo: uma das responsabilidades pelo caos da educação era a presença farta
de professores relapsos e acomodados na escola. Muitos deles, workholics. A
tão sacralizada profissão de educador, capaz de livrar as pessoas dos males
com que a ignorância as aflige, afinal não era tão sagrada assim.

Há que se dizer que esta não era uma prerrogativa da Educação


Física. Em pouco tempo pude perceber que em cada disciplina escolar, cada
uma a seu modo, estava absolutamente presente a apatia e o descaso dos
professores para com o ensino. Na esteira de uma educação escolar
danificada, a Educação Física é somente mais uma disciplina entre outras
tantas. Em tempos pós-modernos, terrível círculo vicioso em que toda a vida
social se estagna em torno da incerteza e da provisoriedade, também o corpo
se encontra refém na escola de uma educação que não cumpre seus
desígnios. Eis a base de um cotidiano pedagógico gravitado num sistema
social opressor e dual que tem por objetivo se aproveitar de uma escola pública
de péssima qualidade para tirar proveito de um povo sem instrução.

Que o Brasil é um país desigual, todos sabemos. Porém, para que


não haja dúvidas é sempre bom e coerente recorrer ao testemunho dos
números. Porque, como dizem os tecnocratas dos governos sempre que os
sindicatos dos servidores pedem reposição salarial, “os números são
irrefutáveis”. Segundo dados das declarações de imposto de renda divulgados
pela Receita Federal, uma pequena elite - que corresponde a 0,3% dos
declarantes de IR - concentrou, em 2013, 14% da renda total e 21,7% da
riqueza, totalizando rendimentos de R$ 298 bilhões e patrimônio de R$ 1,2
trilhão. O que equivale a uma renda média individual anual de R$ 4,17 milhões
e uma riqueza média de R$ 17 milhões por pessoa (REDE GLOBO. G1b,
2015). O que nem todos sabem – ou pelo menos não querem saber – é que a
escola pública tem desempenhado um importante papel na manutenção desta
desigualdade.

Recorramos mais uma vez ao exemplo da Educação Física. A


competição, metonímia funcional do capitalismo, presente em todas as
disciplinas escolares, na Educação Física se exacerba, estabelecendo um
155

paradigma competitivo para a Educação Física. Com efeito, nela, a


corporalidade encontra-se subsumida a uma única perspectiva da cultura
corporal: a esportivização. Nas palavras de Medina (1990, p. 66),

O corpo é apropriado pela cultura. Vai sendo cada vez mais


um suporte de signos sociais. É modelado como projeção do
social. As instituições assumem seu papel. Como dizem, é
necessário a preparação (do corpo) para o convívio em
sociedade. É preciso aprender as regras sociais. Começa a
divisão. O corpo da criança vai sendo violado por um conjunto
de regras sócio-econômicas que sufoca, domestica, oprime,
reprime, “educa”.

No bojo destas considerações, Rogério Cruz de Oliveira, em sua


dissertação de mestrado pela Faculdade de Educação Física da UNICAMP
(Universidade Estadual de Campinas), intitulada “Educação Física, Escola e
Cultura: o Enredo das Diferenças”, assim descreve uma aula de Educação
Física observada por ocasião de sua pesquisa:

As aulas de EF obedeciam a uma rotina bastante conhecida.


Apesar das aulas serem mistas, a professora dividia a turma
por sexo. Segundo ela, era mais fácil trabalhar com grupos
homogêneos, pois, tanto os meninos quanto as meninas,
sentiam-se mais à vontade. [...] Também reportou-se ao
aspecto dos meninos serem mais fortes que as meninas,
havendo a possibilidade destas se machucarem. [...] Ao dividir
a turma, após um alongamento inicial, a professora ficava com
um grupo na quadra coberta, para a aula de voleibol, e
mandava o outro grupo para a quadra externa jogar futebol.
Ao soar o sino da Escola, que sinalizava o término da aula,
havia a inversão dos grupos. [...] Curioso notar que apesar do
futebol ter sido contemplado como conteúdo único de um
bimestre, ainda se encontrava presente nas aulas de todo ano
letivo. No entanto, a atenção e intervenção da professora
ficavam restritas ao voleibol, deixando o “jogo” de futebol
transcorrer como mera atividade recreativa, ou de espera.
Questionada sobre o porquê da ênfase no futebol, a
professora disse que se tratava de uma “paixão dos alunos” e
que reclamariam se não o praticassem. “Eles só querem saber
de futebol” (professora). E, realmente, a prática do futebol nas
aulas da 8ª B aconteciam num clima contagiante. Já nas aulas
de voleibol, cujo clima não era tão contagiante, a professora
priorizava o jogo em si, dizendo que, em outras turmas, até
trabalhava os fundamentos desse esporte, como, por exemplo,
o saque, o toque, a manchete etc., mas na 8ª B, por se tratar
de uma turma “difícil”, não o fazia. “Eles reclamariam!”
(professora). Conforme já comentado anteriormente, a
professora dividia a classe em dois times e iniciava o jogo,
ficando à beira da quadra passando instruções e marcando os
156

pontos. Havia certa flexibilidade com as regras do voleibol de


competição, no entanto, este era o modelo. (CRUZ DE
OLIVEIRA, 2006, p. 48-49)

Como considera Bracht (1999, p. 23), “[...] o esporte se impôs à


Educação Física como conteúdo e como sentido da própria Educação Física”.
Neste sentido, urge romper com as referências de naturalização desta prática
como o locus de uma já consagrada prática hegemônica desportiva, valorativa
do desempenho e depreciativa dos demais componentes da cultura corporal de
movimento.

Entrincheirada lastimosamente na rotina competitivista, a


Educação Física torna-se depositária dos valores de uma sociedade obediente
unilateralmente à lógica da indústria, onde a leveza do mover-se, a harmonia, a
beleza e a graça têm sobrevivido apenas no campo da retórica. Nessa
perspectiva a ação pedagógica encontra-se quase que totalmente sufocada por
uma “biopsicologização” emprestada do pensamento neo-escolanovista que
define a forma de participação dos alunos durante a aula pela motivação
aninhada numa prática do “faz o que quer” e do “faz quem quer”. No arcabouço
destas reflexões, ainda referindo-se à aula observada, Cruz de Oliveira (2006,
p. 50-51) relata que:

Algumas meninas refugiavam-se à sombra de uma árvore,


localizada ao lado da quadra sem cobertura, e outras meninas
e alguns poucos meninos sentavam-se à beira da quadra,
raramente participando da aula, fosse o voleibol ou o futebol. A
maioria dos meninos participava do futebol, mas tinha muita
resistência quanto às aulas de voleibol. Curioso é que os que
menos participavam eram os mesmos que se aglomeravam no
portão à espera da professora. Minutos antes, escorados no
portão, pareciam ansiosos pelo início da aula, no entanto, ao
cruzarem o limite entre a quadra e o pátio, logo corriam para
seus refúgios. Com certeza havia um motivo para que esses
alunos não participassem da aula, mas que naquele momento
inicial de minha pesquisa de campo eu ainda não tinha
condições de compreender. Notava que a professora tinha
dificuldade em fazer com que os alunos participassem da aula.
No entanto, ela dispunha de várias estratégias que buscavam
permitir maior envolvimento dos mesmos. Numa ocasião, a
professora até chegou a pegar no braço de um “marmanjo”
dirigindo-o para a quadra, pedindo carinhosamente que ele
fizesse a aula. Em outras ocasiões, apegava-se ao argumento
da nota. Num certo dia, a professora afirmou para uma aluna
que se ela não fizesse aula, como até então, seria reprovada.
157

Esta, com ares de desprezo, retrucou baixinho: “Não vou


reprovar...”, demonstrando que, para ela, as aulas de EF não
tinham a menor importância e nem possibilidade de reprová-la.
[...] Com o passar do tempo comecei a perceber que o fato da
não participação na aula dava-se, principalmente, pela
vergonha da exposição. Meninas e meninos tinham vergonha
de fazer a aula, fosse por características físicas - que pelas
próprias transformações morfofuncionais da adolescência
começavam a ficar evidentes - ou por auto-avaliação de que
não “levavam jeito” para o esporte.

Segundo o autor (CRUZ DE OLIVEIRA, 2006), há, entre os


professores da disciplina, quem se acomode no discurso de que é difícil mudar,
alegando que os alunos não permitem esta mudança. Em sentido contrário,
posiciono-me argumentando que o professor deveria estar ciente de sua
condição na formação dos valores educativos de seus alunos. A acomodação e
a falta de comprometimento com as obrigações do fazer educativo interrogam a
significância da própria Educação Física no interior da escola. Donde se ergue
a necessidade de alargar os âmbitos desta disciplina, devolvendo ao professor
as regiões altas de sua condição de educador. Para que possa avistar as
teorias construídas a partir das grandes experiências da humanidade, que a
pós-modernidade se incumbiu de esquecer. De conformidade, o Coletivo de
Autores traz a seguinte consideração:

Todo educador deve ter definido o seu projeto político-


pedagógico. Essa definição orienta sua prática no nível da sala
de aula: a relação que estabelece com os seus alunos, o
conteúdo que seleciona para ensinar e como o trata científica e
metodologicamente, bem como os valores e a lógica que
desenvolve nos alunos. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, P.
26)

Sempre me postei veementemente contrário aos discursos do


governo – ou de quem quer que fosse - pautados na responsabilização do
professor pela precariedade do nosso ensino público. Obviamente, ainda
acredito que somente uma suplementação orçamentaria grandiosa para a
educação seria capaz de retirar a escola pública de nosso país do atoleiro
pedagógico em que ela se encontra. Eu não acredito que sejam os professores
os “vilões” que não permitem os avanços esperados para a escola pública. Em
que pese o fato de que os depressivos e seu ausentismo da escola; e os
workaholics e seu trabalho mecânico e viciado - e ainda os negligentes que
158

sobram - possuem sua cota de responsabilidade. Eu não faço deles os vilões


unilaterais da escola. Entretanto, não deixo de perceber na escola pública a
presença de um grande número de professores indolentes, incompetentes e
desinteressados. Mas, que fique bem claro que esses tipos profissionais são o
produto do sistema e não os seus produtores. Um sistema de dominação que
aporta, para além de suas consciências, numa arapuca onde muitos deles
podem achar que são livres e felizes dentro de suas prisões.

Estes professores não faltam às aulas. E eu me pergunto: será que


não seria melhor que faltassem? O preenchimento dos livros de chamada dos
workaholics é impecável. E eles sempre entregam seus PTDs (Planos de
Trabalho Docente) no prazo. PTDs iguaizinhos, como que gêmeos. Como se
dá esse milagre da multiplicação dos PTDs? Alguém sabe? Mas, também há
os negligentes, que não fazem a chamada na aula, o a fazem de quinze em
quinze dias. O fato é que as faltas e presenças registradas por esses
professores quase nunca correspondem à realidade. E seus livros de chamada
sempre estão borrados, o que levava a pedagoga, vez ou outra, a solicitar que
o livro seja refeito. Especialmente se for uma pedagoga workaholics. Nesse
caso, me lembro ainda hoje, diziam todos os professores workaholics em
uníssono “é um documento importante da escola”. E eu diria; e arcaico.

Na escola todos sabem de tudo o que acontece. Especialmente a


direção e o corpo pedagógico. Mas, todos fazem de conta que ninguém sabe
de nada. E, assim, os professores negligentes e sua indolência, muitas vezes,
passam incógnitos. Ninguém se importa com isso. Salvo os workaholics. Tudo
o que a direção das escolas e o corpo pedagógico querem – especialmente se
forem do tipo workaholic - são professores que não deem problemas. Eis o
sonho de todo diretor e pedagogo workaholic: professores que não criem
novidades, que não saiam dos trilhos e cujas aulas passem invisíveis perante
eles, os pais e os alunos. Com os alunos são sisudos, autoritários e
disciplinadores. Pretendem que o aluno acate a sua autoridade passivamente.
A este aluno premiam e aos que não se submetem, castigam. Querem a ordem
a qualquer custo, mas geram não só alunos excessivamente tímidos, mas
também os extremamente ‘indisciplinados’, os inconformados de sempre.
Mantém sempre uma “distância de segurança” em relação aos alunos. Suas
159

aulas são monótonas e sérias demais. E o tédio, o medo e a resignação são os


predadores vorazes dos alunos dentro dessas jaulas. Mas, devo admitir que ao
menos esses professores ministram suas aulas.

Tudo o que os diretores e os pedagogos do tipo viciado em


trabalho querem dos professores é que eles estejam sempre presentes às suas
“obrigações” trabalhistas. Sempre presentes, ainda que doentes, são
professores rígidos e inflexíveis em sua forma de lecionar. E costumam não se
dar conta de que são viciados em trabalho. Agem com naturalidade e são bem
aceitos pelo mundo do trabalho, já que não causam danos muito grandes à
direção da escola, especialmente quando também são adeptos de conduta
“tradicionais” e viciados em trabalho. Os sempre presentes adoradores da
prática e refutadores da teoria, mesmo que não saibam o que fazem em seu
trabalho, os workaholics de sempre, com sua didática conservadora, sua
postura sisuda e sua pedagogia autoritária, são recebidos como heróis da
educação pelos diretores e pedagogos “trabalholatras”.

Outro tipo de professor muito bem-vindo ao mundo encantado dos


professores diretores e pedagogos é, pasme você leitor, o professor relapso e
negligente. Embora ninguém admita isso. A eles é concedido o direito de não
lecionarem direito, desde que não faltem ao trabalho. Este tipo de professor
não se importa se os alunos aprendem ou não. “O mundo continuará seguindo
seu curso independente de nós”, eis sua bandeira. Acreditam que a culpa da
indisciplina dos alunos é sempre da família. São brincalhões e irreverentes.
Verdadeiros adultos infantilizados em sua insistente irresponsabilidade. Este
tipo de professor é, em minha opinião, e na opinião de minha filha Giovana, o
mais preocupante de todos. Justamente porque ensinam às crianças. Mas,
estranhamente, são bastante respeitados pelos colegas de trabalho. Qual o
motivo?

Há argumentos convincentes para a manutenção das crianças sob


um controle restrito na sala de aula. “Elas ficam mais fáceis de ensinar”, diriam
uns. O que agrada os pais. “A sociedade sente-se mais descansada, pois
parece que assim fica mais segura e previsível a tarefa de ensinar às crianças”,
diriam outros. Mas, na verdade, a educação autoritária existe para que este
160

sistema de consumo tenha êxito. As pessoas precisam ser adaptadas às


necessidades da indústria. A indústria cultural se nutre de seres humanos
cooperativos. Seres humanos que se sintam livres e felizes dentro de suas
prisões. Referindo-se à forma de organização do sistema de
produção/consumo inerente à sociedade industrial, Fromm (apud NEILL, 1984,
p. XVIII-XIX) considera que:

O trabalhador individual torna-se apenas um parafuso em tal


máquina. Nessa organização de produção o indivíduo é
dirigido e manipulado. Na esfera do consumo, (na qual se tem
a impressão de que o indivíduo expressa livre escolha),
também ele é dirigido e manipulado. Se no consumo de
comida, de roupas, de bebidas, de cigarros, de propagandas
de rádio e televisão, um poderoso aparelho de sugestão
trabalha com dois propósitos: aumentar constantemente o
apetite individual para novas comodidades, e, segundo lugar,
dirigir tal apetite aos canais mais proveitosos para a indústria.
O homem é transformado no consumidor, no eterno pimpolho
da mama, cujo único desejo é consumir, cada vez mais,
“melhores” coisas. Nosso sistema econômico precisa criar
homens que se adaptem às suas necessidades, homens que
cooperem harmoniosamente, homens que desejem consumir
cada vez mais. Nosso sistema precisa criar homens cujos
gostos sejam padronizados, homens que possam ser
influenciados com facilidade, homens cujas necessidades
possam ser conhecidas com antecipação. Nosso sistema
precisa de homens que se sintam livres e independentes, mas
que, apesar disso, estejam dispostos a fazer o que deles se
espera [...], que possam ser guiados sem o emprego da força.

A criação de uma sociedade de consumidores cujo consentimento


é obtido para além de sua consciência, uma sociedade de seres humanos
liderados sem líderes, de escravos felizes, vitimados por uma manipulação
dissimulada que preconiza o individualismo e a avareza em substituição ao
sentimento de coletivismo, de pertencimento e partilha. É a sociedade do
“quero tudo pra mim”, onde se o meu objetivo é “ter” eu “sou” tanto mais quanto
mais “tiver”. Diante desta nova ética do convívio social o outro é percebido
como um oponente a quem devo iludir. Não existe limite para o desejo de
querer ter. O indivíduo é orientado para sentir inveja daqueles que têm mais. E
eu receio que também daqueles que têm menos. Ao mesmo tempo, se vê
obrigado a reprimir estes sentimentos para poder revelar-se aos outros como
um ser humano comedido, atencioso, racional, sincero e amável.
161

A escola é o reflexo do mundo onde existe. Um mundo onde a


capacidade dos indivíduos exercerem reflexão crítica sobre a realidade se
rareou. Um mundo que promete sem jamais cumprir o que prometeu,
transformando nossas crianças e jovens – e tantos adultos infantilizados – em
hedonistas frustrados e, por isso mesmo, enfezados. Talvez, fosse tarefa da
escola ensinar às crianças - através de exercícios cuidadosamente construídos
- como aguçar suas sensações e mentes e assim distinguir entre desejos
instintivos de amor e prazer e aqueles elaborados como subproduto da
frustração por esperanças não realizadas e transformadas em impulsos
destrutivos, de ódio e rancor. Mas, como fazer isso se nem ao menos os
professores sabem entender seus próprios sentimentos? Como podemos
estabelecer um contato satisfatório com o outro se, nas condições ditadas pela
sociedade atual, de opressão econômica, de renúncia aos prazeres da vida, de
corrupção dos sentidos, perdemos o contato com nós mesmos? E mais, como
esperar da escola uma educação verdadeiramente emancipatória se a
educação escolar se encontra lastimosamente dividida entre a pedagogia
tradicional, coercitiva, e a irresponsabilidade afrontosa dos professores
indolentes?

Nas escolas públicas brasileiras há, de fato, uma educação, mas


uma educação bastante estragada. Em 2013, voltava eu ao trabalho depois de
três meses de licença médica. Como uma espécie de retaliação – expediente
bastante usado para coibir professores de se licenciarem para tratamento
médico - mandaram-me para uma escola a 50 km de distância da minha casa.
Cheguei no dia do conselho de classe, sem conhecer ninguém, nem alunos,
nem professores. Deram-me uns livros de chamada para que eu informasse as
notas dos alunos. Iniciamos o Conselho de Classe por uma turma do 9º ano.
Então, assisti uma colega indignada dizer: “Este aluno está no 9º ano e não
sabe a tabuada do dois!” E outra retrucar em seguida: “nesta turma, a maioria
mal sabe ler e escrever”. E uma terceira: “Tenho aluno no ensino médio que
também não sabe. Aliás, eles mal sabem escrever o próprio nome.” Então,
resolvi me meter na conversa e perguntei às professoras: “Esses alunos devem
ter vindo de uma escola muito ruim, não é mesmo?!...” Ao que fui interrompido
pela afirmação de uma delas: “Que nada, esses ‘miseráveis’ estão aqui
162

enchendo o saco da gente há cinco ou seis anos, professor”. Aproveitei a


oportunidade e argui: “Mas, afinal, quem foram os miseráveis que aprovaram
esses miseráveis para que eles estivessem no 9º ano sem saber a tabuada do
dois?” O silêncio sepulcral que se seguiu sintomatizava a existência de um
território proibido entre os professores. Território este que eu havia
transgredido: a discussão sobre a qualidade do trabalho docente. Lembremos
que no que concerne às coisas do pobre e bom professor da educação pública
brasileira, é sempre bom e piedoso calar. Eu não me calei e deveria pagar por
isso! Como de fato paguei. Aliás, venho pagando por uma vida toda dedicada
ao magistério.

Capítulo 10 – Para que serve a escola?

Nada é mais adequado que o exame


para inspirar o reconhecimento dos
vereditos escolares e das hierarquias
sociais que eles legitimam.

(Pierre Bourdieu)

Iniciamos este capítulo recorrendo a Celso Vasconcellos, em sua


“Lógica do absurdo: teses sobre a avaliação pervertida ou a avaliação da
perversão”:

- No princípio era o caos. Um dia o professor descobriu que


podia mandar o aluno para fora da sala de aula, que a
instituição cuidava de ameaça-lo com a expulsão. Mais tarde
um pouco descobriu que tinha em mãos uma arma mais
poderosa: a nota. Começa a usá-la, então, para conseguir a
163

ordem no caos. O caos se fez cosmos, o maldito cosmo da


nota. [...]

- As classes populares queriam escola e o governo deu. Agora,


são reprovadas e se evadem, porque “não têm condições” de
acompanhar o “nível” do ensino. Tem sua lógica o aluno evadir-
se da escola, na medida em que sente que não adianta
continuar, uma vez que, tendo sido rotulado, estabeleceu-se
sobre ele uma “profecia auto-realizante” de fracasso... [...]

- A escola tem desempenhado bem seu papel, pois recebe


crianças curiosas, vivas, alegres e em poucos anos consegue
deixa-las indiferentes, obedientes, desgostosas, passivas.
Onde já se viu ter alunos fazendo aquelas desagradáveis
perguntas: “Qual o sentido do que estou aprendendo? Para
que serve isto? Qual a importância disso para meu futuro?
(VASCONCELLOS,1994:pág 15 a 17).

Como já disse anteriormente, esse é um livro mais de perguntas do


que de respostas, então vamos a mais uma pergunta: para que serve a escola?
De a escola ser necessária ninguém duvida, certo? Errado. Há quem defenda a
chamada educação domiciliar, em que famílias optam por ensinar seus filhos
na própria casa e não na escola. Mais conhecida em países abastados, como
os Estados Unidos, a educação domiciliar (“homeschooling”) vem ganhando
vulto entre famílias brasileiras que optam por ensinar seus filhos em casa ao
invés de enviá-los para as escolas. Em que pese a alegação em contrário, ou
seja, de que a legislação federal brasileira não admite essa prática de ensino,
pois a matrícula em instituições escolares, por força de lei, deve ser
compulsória. Retirar a criança da escola seria, portanto, ilegal. Além do que
alguns educadores argumentam que essa prática colocaria as crianças em
uma espécie de ilha, numa redoma de cristal, distante da realidade em que
existe.

Os favoráveis ao ensino domiciliar têm se organizado por meio de


associações, como a Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar) e
recorrido aos documentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos
para exigir a primazia dos pais na escolha da educação dos filhos. Segundo a
Declaração dos Direitos Humanos (ONU, 1948), em seu artigo 26:

1. Todas as pessoas têm direito à educação. A educação deve


ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar
fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino
164

técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos


estudos superiores deve estar aberto a todos em plena
igualdade, em função do seu mérito.

2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade


humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais. Esta deve promover compreensão, tolerância e
amizade entre as nações, grupos religiosos ou raciais, e deve
promover as atividades das Nações Unidas para a manutenção
da paz.

3. Os pais têm o direito primário de escolher o tipo de


educação que deve de ser dada aos filhos.

A Declaração dos Direitos Humanos é bem clara: “Os pais têm o


direito primário de escolher o tipo de educação que deve de ser dada aos
filhos”. E, afinal, diante dos paupérrimos resultados da educação escola,
especialmente da escola pública, não é difícil entender quais seriam os
argumentos dos pais ao escolherem pela educação domiciliar, rejeitando a
instituição escolar como espaço de formação para seus filhos. Acresce-se ao
debate a seguinte questão: o ensino em casa seria capaz de promover uma
educação que cumpra os objetivos constitucionais para a educação como o
pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da
cidadania? E mais: se formos exigir esse papel da educação domiciliar,
deveríamos exigir o mesmo da educação escolar, mas será que a escola tem

realmente cumprido esse papel?

Tanto quanto um direito do cidadão, a educação é definida, em


nosso ordenamento jurídico, como dever do Estado. Segundo o art. 6 de nossa
Constituição Federal de 1988:

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o


trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015).

Segundo o seu art. 205:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,


será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
165

para o exercício da cidadania e sua qualificação para o


trabalho.

A lei 5692, de 1971, já dizia que a escola deve educar para o


exercício consciente da cidadania. Mas, afinal, que educação, que consciência
e que cidadania eram essas em plena ditadura militar? E que educação é essa
a que se refere a Constituição de 1988, segundo a qual todos têm direito à
educação, se 8,3% da população brasileira é analfabeta, segundo dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), realizada pelo IBGE em
2014?

Na prática essas leis não passam de um mero delírio, um engodo


retórico, uma fanfarronice que brinda à tolice do povo mais desavisado.
Devemos nos precaver contra as armadilhas que nos pregam as leis para que
não adotemos para nós as mentiras que nos são passadas pelo poder
dominante como se fossem verdades. Percepções dessa mesma natureza
levaram Victor Hugo à seguinte assertiva: “Essa luta entre o fato e o direito
trava-se desde a origem das sociedades. Terminar o duelo, amalgamar a ideia
pura com a realidade humana, fazer o direito penetrar nos acontecimentos, e
vice-versa, eis a missão dos sábios” (HUGO, 2002, p. 235).

Contudo, amalgamar a ideia pura com a realidade humana, em


tempos pós-modernos, não é tarefa das mais fáceis. Na pós-modernidade,
muitos tentam obstinadamente empurrar-nos a ideia da realidade e dos fatos
passados serem relativos. Importa dizer, entretanto, que poucos relativistas
estão à altura de suas convicções quando se trata de responder se a ditadura
militar no Brasil de fato ocorreu. Ou se ela foi justa. Ou se foi igualitária. Ou se
naquele período a educação escolar realmente preparava o aluno para o
exercício consciente da cidadania. A ideia de que as leis possam preparar para
a educação escolar um terreno fértil para a justiça e igualdade está registrada
nos epitáfios da história, desde muito antes da lei 5692, de 1971, como
natimorta. De fato, como bem nos diz Victor Hugo: “Essa luta entre o fato e o
direito trava-se desde a origem das sociedades” (ibid. 2002, p. 235).

Sabidamente, durante a ditadura militar brasileira, as restrições à


liberdade e à participação política reduziram a capacidade de se atuar na
166

esfera pública e empobreceram a circulação de ideias no país. Benefícios


mesmo só tiveram os ricos, que engordaram a sua já opulenta riqueza,
enquanto a maioria da população sofria com os preços altos, a enxurrada de
impostos e a estagnação escolar do país. Se compararmos o Brasil de antes
do golpe de 1964 com a China, por exemplo, veremos que os chineses sofriam
com uma economia arruinada, uma tecnologia obsoleta e uma população muito
pobre. O Brasil da época era muito mais desenvolvido nesses setores. A China
investiu na educação e em 2011, quando as autoridades do Brasil
comemoravam a prisão de um chefe do tráfico, o “Nem da Rocinha”, a CNSA
(Agencia Espacial Chinesa) colocava em órbita uma estação espacial, a
“Tiangong” (Palácio Celeste).

Sobre os escombros da ditadura militar se arrastou a história da


escola pública brasileira, que ostentou em 2011 o trágico posto de 88º lugar em
educação escolar num ranking medido pela ONU entre 127 países. Retrato de
um país onde se agudizam as diferenças entre ricos e pobres e onde a miséria
se espalha viralmente. Oportuno, antes de qualquer outra coisa, esclarecer o
significado daquilo que se convencionou chamar de miserável, ou seja, toda
pessoa que vive na pobreza extrema com renda de até R$ 70,00 mensais. O
Brasil tem atualmente cerca de 16 milhões de pessoas vivendo nessa situação,
de acordo com os dados do último censo divulgado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).

Para os pobres uma educação pobre. No Brasil, a escola pública


e a pobreza caminham juntas. E as leis para a educação se mostraram
impotentes para garantir o princípio da igualdade na educação escolar. A
notável incapacidade e o afrontoso desinteresse do Estado de fazer valer as
leis em defesa da escola pública denunciam o tipo de sociedade onde vivemos,
onde vicejam a desigualdade e a injustiça, que parecem acontecer de forma
endêmica entre nós. No rumo destas ponderações, o estudo dos fatos
históricos, no afã de buscar entendimento sobre os acontecimentos presentes,
nos proporciona bem mais segurança do que as leis, cuja função, quando se
aplica à defesa dos interesses do povo oprimido parece ser meramente
retórica.
167

Em 08 de maio de 2002, o IBGE divulgou um relatório com dados


sobre os indicadores sociais do Censo Demográfico de 2000, onde se
verificava a persistência ou o agravamento de muitos problemas relacionados à
pobreza. Sobre este episódio, Algebaile (2004, p. 14) nos traz a seguinte
informação:

Em meio aos debates suscitados pela divulgação do relatório, o


então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,
entrevistado por diversas emissoras e questionado a respeito
dos dados e das análises não favoráveis ao governo federal,
daria a seguinte resposta: “Não vamos ser pessimistas nem
otimistas. Vamos ser realistas: nós diminuímos a pobreza no
Brasil. E ponto! [...] Nós ampliamos o acesso à escola e o
acesso à comida na escola”. Essa vinculação tão direta entre
redução da pobreza e acesso à escola expunha um aspecto
que penso ser central na configuração da escola pública
elementar no Brasil. A utilização dessa escola como uma
espécie de posto de realização de ações assistenciais, de
caráter compensatório, englobando programas governamentais
e ações “voluntárias”.

Será uma ilusão pueril acreditarmos na possibilidade de


construirmos outra escola pública distanciada da lógica da divisão de classes
na qual a merenda ainda é uma prerrogativa de absoluta relevância? Serão
realmente vãs as esperanças de tantos pais e educadores depositadas numa
escola pública que se coloque como promotora de uma sobrevivência digna
para todos, como elemento indispensável ao resgate da sensibilidade humana
e à formação das consciências? Será uma utopia estéril lutarmos em prol de
mundo melhor, igualitário, solidário, fraterno e justo para nossos filhos e
alunos? Vejamos o que o relato da história pode nos dizer sobre essas
questões.

Quando Tancredo Neves, lançando-se candidato à Presidência


da República pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro, de oposição,
venceu as eleições indiretas em 15 de janeiro de 1985, estávamos diante do
fim de mais de vinte anos de ditadura militar no Brasil. Com o final da ditadura
militar, os movimentos populares colocaram para os setores progressistas da
sociedade o desafio de criar projetos para a democratização do país. Na
educação, o debate político pôs em confronto duas grandes concepções de
matriz socialista: a noção da escola como “aparelho ideológico de Estado”,
168

proposta especialmente por Louis Althusser e Pierre Bourdieu; e a ideia de


uma “crítica social dos conteúdos”, baseadas nas reflexões de Antonio
Gramsci.

Para Louis Althusser (1974), a escola é um aparelho ideológico


do Estado burguês, pois forma as forças produtivas para o mercado de trabalho
e, nessa medida, garante a manutenção das relações de dominação requeridas
pelo modo de produção capitalista. Portanto, a escola é de enorme valia para o
Estado, que representa os interesses da classe social dominante. Ela fornece
as condições necessárias para a dominação de uma classe sobre a outra por
meio de um discurso ideológico que aliena o aluno e perpetua, em última
análise, as relações de produção capitalistas baseadas na exploração dos ricos
sobre os pobres. A reprodução é tida por Althusser como elemento principal

que irá manter uma determinada ordem social. Esse tema é tratado por
Althusser logo de início, na primeira página da sua principal obra, “Ideologia e
Aparelhos Ideológicos do Estado”:

Como Marx dizia, até uma criança sabe que se uma formação
social não reproduz as condições da produção ao mesmo
tempo em que produz não conseguirá sobreviver um ano que
seja. A condição última da produção é, portanto a reprodução
das condições da produção (ALTHUSSER, 1985, p. 09).

O poder social hegemônico da classe dominante, com o objetivo


de manter o Estado em seu poder, controla e manipula ideologicamente as
pessoas através do poder simbólico, que se refere, de um lado, ao poder
repressivo, ou seja, aquele concedido pelo Estado, especialmente, ao exército,
à polícia e ao poder judiciário e, de outro lado, ao poder de persuasão, que se
refere ao poder concedido pelo Estado, especialmente, à mídia, à igreja e à
escola (ALTHUSSER, 1985, p. 09-10). O poder de persuasão implanta no
indivíduo a ideologia da classe dominante. No que diz respeito à escola, nos
permite refletir sobre aquilo que Bourdieu chamou de sistemas simbólicos, isto
é, um “poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles
que não querem saber que lhe estão sujeitando” (BOURDIEU, 1989, p. 7-8).
Literalmente:
169

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela


enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o
mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite
obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como
arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos
“sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force”,
mas que se define numa relação determinada – e por meio
desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão
sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em
que se produz e se reproduz a crença (BOURDIEU, 1989, p.
14).

Pierre Bourdieu considera que a escola é produtora de


desigualdades sociais e contribui para a reprodução da sociedade onde existe
na medida em que [...] “o desejo razoável de ascensão através da escola não
pode existir enquanto as chances objetivas forem ínfimas” (Bourdieu, 1998, p.
48). Ela não acaba com as desigualdades sociais entre ricos e pobres, mas
reforça-as na medida em que reproduz as relações de poder em seu interior. A
reprodução das relações sociais pela escola, de acordo com Bourdieu,
acontece através da chamada “violência simbólica” pela qual a ideologia da
classe dominante é repassada para os alunos da classe dominada, ainda que
eles não queiram ou não se apercebam disso.

Tomemos de empréstimo o exemplo da Educação Física


transformada na escola, salvo raras exceções, numa prática hegemônica do
esporte, isto é numa prática somente do esporte. Ao ensinar somente o
esporte, em detrimento de seus demais conteúdos estruturantes (dança,
ginástica, jogo e luta), a Educação Física ensina o aluno a ser competitivo e
individualista, ficando alheio aos apelos de solidariedade e comunhão que
inspiram a vida em coletividade. Para tanto, ensina, antes, o aluno a entender
como justa, natural e aceitável a sociedade capitalista, de vencidos
desprezados (pobres) e vencedores cultuados (ricos). O aluno que aprende na
quadra que na competição esportiva vence o jogo o mais esforçado entenderá
que também vence na vida o mais esforçado, o mais hábil, o mais interessado
e qualificado. Como considera Valter Bracht:

No esporte, desenvolvem-se ideias ou valores que levam ao


conformismo, como é o respeito incondicional a regras, porque
170

o comportamento não conformado no esporte não leva a


modificações do esporte, mas, sim, à exclusão dele. No
esporte coloca-se em destaque a ideia de que todos têm a
oportunidade de vencer (vencer no esporte = vencer na vida),
através do esforço pessoal e individual, bastando para isso
que se esforce e que tenha talento (como Pelé, Zico, Bernard
e outros), o que, em última análise, justifica e explica as
diferenças sociais, negando toda e qualquer determinação
social (Bracht, 1992, p. 62-63).

A escola esquece, contudo, de dizer ao aluno que na competição


social as oportunidades não são iguais para todos. Nas palavras de Linhares e
Mesquida:

[...] o burguês, possuidor dos meios de produção, além de


possuidor dos meios de reprodução de sua condição de vida e
status e da condição de vida e status do operário, adquire o
que Marx chamou de mais-valia, o excedente, o lucro. Já o
operário não tem como produzir, nem reproduzir o lucro, uma
vez que não possui os meios de produção, condição
indispensável no mundo capitalista moderno. Com isto o
capitalismo força ou promove a separação da força de trabalho
dos meios de produção, algo extremamente importante para a
classe dominante (2007, p. 1495).

Na competição social, o filho do rico sai na frente: não tem que


trabalhar ou estudar à noite, faz cursos que aumentam seu preparo cultural,
estuda em colégios caros e se prepara em cursos pré-vestibulares para os
cursos universitários que os encaminharão para as profissões mais rentáveis.
Nessa mesma medida, o sociólogo brasileiro Sérgio Miceli, organizador e
selecionador do material de Bourdieu no livro “A economia das trocas
simbólicas”, na introdução do referido livro, se manifesta dessa maneira sobre
a função da escola:

[...] a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu


respeito constitui uma função lógica necessária que permite à
cultura dominante numa dada formação social cumprir sua
função político-ideológica de legitimar e sancionar um
determinado regime de dominação (MICELI, 2001, p. XVI).

Recorrendo aos termos em que se expressa Bourdieu:

Se considerarmos seriamente as desigualdades socialmente


condicionadas diante da escola e da cultura, somos obrigados
a concluir que a equidade formal à qual obedece todo o
sistema escolar é injusta de fato, e que, em toda sociedade
onde se proclama ideais democráticos, ela protege melhor os
171

privilégios do que a transmissão aberta dos privilégios


(BOURDIEU, 1998 p.53).

Cumpre ressaltar, ainda, que Pierre Bourdieu, no afã de


desvendar o processo pelo qual a classe que domina a sociedade
economicamente e politicamente considera que a cultura, a que denomina
“sistema simbólico”, é arbitrária, uma vez que não encontra apoio numa
realidade, digamos, “natural”. O sistema simbólico (cultura) é, pois, uma
construção social arbitrária e sua manutenção e reprodução é imprescindível à
continuidade do modo de ser da sociedade onde existe. A manutenção e,
consequentemente, reprodução do sistema simbólico acontece através da
adoção desse sistema simbólico por todos os membros da sociedade. A
imposição dissimulada do sistema simbólico à maioria da população
(dominados) pela minoria (dominantes) é chamada por Bourdieu de “violência
simbólica”. Essa imposição acontece para além da percepção da classe
dominada, havendo uma interiorização da cultura dominante na população
dominada. O povo oprimido não se opõe ao seu opressor já que não se
percebe como vítima deste processo: ao contrário, o oprimido considera a
situação “natural”, justa e inevitável, quando não é nem natural, nem justa e
nem inevitável. Literalmente, Bourdieu considera a “violência simbólica” como
uma:

[...] violência suave, insensível, invisível às suas próprias


vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente
simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais
precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em
última instância, do sentimento (BOURDIEU, 2003, p. 7-8).

Dessa forma:

[...] em termos de dominação simbólica, a resistência é muito


mais difícil, pois é algo que se absorve como o ar, algo pelo
qual o sujeito não se sente pressionado; está em toda parte e
em lugar nenhum, e é muito difícil escapar dela (BOURDIEU;
EAGLETON, 2007, p. 270).

Em companhia de Passeron, Bourdieu também desenvolveu o


conceito de “teoria da reprodução”. Esta teoria está baseada no conceito de
violência simbólica. Para os autores, toda ação pedagógica é uma violência
simbólica, porque implica na imposição de um poder arbitrário do professor,
172

detentor do conhecimento, sobre o aluno, que vai receber esse conhecimento.


O que os autores denominam “poder arbitrário” consiste numa forma de
dominação baseada na divisão da sociedade em classes sociais antagônicas: a
classe dos donos dos meios de produção (os ricos) e a classe dos
trabalhadores, ou forças produtivas (os pobres). O poder arbitrário constitui-se
no entendimento de que a cultura da classe dominante (os ricos) seja uma
cultura superior. É arbitrário justamente porque a preponderância dessa cultura
não pode ser deduzida de nenhum princípio universal, físico, biológico ou
espiritual, não podendo ser justificada por nenhuma relação interna à “natureza
das coisas” ou por uma “natureza humana”. Essa preponderância, então, não é
natural, é construída pelos homens em suas relações sociais e obedece a um
processo de imposição da classe dominante sobre a classe dominada, ainda
que seja sem a sua percepção. E, justamente porque o dominado não se
percebe enquanto vítima desse processo, não se opõe ao seu opressor, ao
contrário, considera a situação como inevitável, justa, natural e aceitável. Mas
se e quando algum dominado se rebela contra seu dominador se diz que é uma
anomalia, um marginal, um “aluno indisciplinado”.

Poder-se-ia fazer um contraponto ao pensamento de Bourdieu


afirmando que se a cultura da classe dominante não tem fundamento para a
classe dominada, nem por isso deixa de ser uma cultura útil, porque toda
cultura é útil. A réplica a esse contraponto seria a seguinte: sim, é claro, toda a
cultura, todo conhecimento é algo bem vindo. Assim como o poder e a
autoridade são necessidades e não malefícios. Todavia, a autoridade, por
exemplo, deixa de ser autoridade para tornar-se autoritarismo na medida em
que não satisfaz ou não corresponde às necessidades das pessoas às quais se
aplica. Assim também acontece com a cultura, a informação e o conhecimento
que deixam de ser necessárias e interessantes para a classe dominada se
carregadas da ideologia da classe dominante.

Os professores da escola pública não são, em sua grande


maioria, membros da classe dominante, mas introjetam os valores da classe
dominante e os regurgitam sobre seus alunos. Diria Bertold Brecht em “Se os
tubarões fossem gente” que os professores seriam os peixes médios que
173

recebem dos peixes maiores o direito de devorar os peixinhos menores. A


violência simbólica é essa coerção que acontece pela sujeição que o dominado

não pode deixar de conceder ao dominante. Ela é fartamente documentada na


escola pública pela aspereza verbal do professor quando se dirige ao aluno
com a intenção de repreendê-lo e recoloca-lo nos eixos. Quantos berros de
professores do ensino fundamental, especialmente dos primeiros anos da
escolaridade, puderam presenciar os meus ouvidos?! Especialmente nos anos
em que lecionei no sistema municipal de ensino, que hoje vai do primeiro ao
quinto ano. As salas de aula pelas quais eu passava, uma a uma, me pareciam
fabricas de loucos. La dentro, diante dos gritos e da postura colérica de alguma
professora os meninos e meninas de seis, sete, oito ou nove anos de idade se
calavam resignadamente. O aluno que se resigna à autoridade arbitrária do
professor é aquela criança que se senta “educadamente” a uma carteira
monótona na escola, que lhe restringe severamente a movimentação e a
comunicação. Este aluno será o futuro trabalhador resignado diante de um
patrão, de quem receberá altas broncas e baixos salários.

Dessa crítica à escola e seu papel como reprodutor do sistema


capitalista se ocupou a esquerda brasileira durante a ditadura militar. Dir-nos-ia
Marx que cada sociedade, em momentos históricos específicos e
determinados, produz suas próprias necessidades e junto delas os meios e
elementos que irão satisfazê-las. Assim, temos, ao longo do tempo, diferentes
sociedades produzindo diferentes teorias sobre a educação escolar. Dito em
outras palavras, a escola – como tudo mais - é o reflexo do tempo e do espaço
onde existe. Obviamente, as ideias de Althusser e Bourdieu não encorajavam a
construção de uma pedagogia socialista que visse na escola um local para a
transformação social. Então, a partir da abertura política da década de 1980, as
ideias de pensadores como Althusser e Bourdieu passaram a ser desprezadas
e outra teoria de cunho marxista para a escola surgiu, com base nas reflexões
do italiano Antonio Gramsci (PEREIA, 2009, p. 31).

Bem que se diga que no espaço da educação escolar, a


apropriação do pensamento de Gramsci, como não poderia deixar de ser, foi
acompanhada das reflexões vagamente enunciadas por Marx sob a
174

denominação de “escola politécnica”. Tamanha foi a apropriação do


pensamento gramsciano para a educação que o termo escola politécnica aos
poucos se confundiu com o conceito de escola unitária, de Gramsci. Todavia,
antes de tudo, é importante ressaltar que Marx não elaborou uma teoria da
educação escolar. Ele não se dedicou a esse tema como o fizeram Rousseau,
Durkheim, Vigotsky, Makarenko, Althusser, Bourdieu, dentre outros. Embora
muitos pensadores sobre a educação escolar tenham se utilizado do
pensamento marxista, de diferentes formas. De conformidade, segundo Dore
(2006, p. 340):

Marx [...] não chegou propriamente a elaborar e a defender


uma proposta escolar. Ele sustentou princípios gerais para
orientar a educação dos trabalhadores, que abrangiam a
educação intelectual, a instrução politécnica ou tecnológica e a
educação física (a ginástica).

Destarte - e obedecendo aos condicionantes do espaço e do


tempo onde se localizam -, as diferentes obras de viés marxista sobre a
educação, ainda que tenham seguido por caminhos diversos, constituem todas
elas, uma rigorosa crítica à concepção burguesa de ser humano, de mundo e
de educação. Em que pese a matriz comum marxista das perspectivas
pedagógicas críticas para a educação escolar, se antes da abertura política
que ensejou o fim da ditadura militar no país os educadores buscaram respaldo
nas concepções de Althusser e Bourdieu, com o fim da ditadura o objetivo não
era mais atacar a escola pública e seu papel de reprodutora da ordem social
vigente, mas defender uma escola pública, gratuita e transformadora. Uma
educação escolar que pudesse subsidiar o educando com os elementos
imprescindíveis ao entendimento, enfrentamento e transformação da realidade
onde ele se encontra inserido com vistas à sua emancipação social e humana.
Esta perspectiva pode ser vista nos escritos de diversos autores, como por
exemplo, Paulo Freire, criador da chamada “Pedagogia do Oprimido”, quando
ele diz que:

[...] é preciso que a educação esteja - em seu conteúdo, em


seus programas e em seus métodos - adaptada ao fim que se
persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se
como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros
homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história
175

[...] uma educação que liberte, que não adapte, domestique ou


subjugue (FREIRE, 2006, p. 45).

Recorrendo mais uma vez às palavras de Freire:

Você, eu, um sem-número de educadores sabemos todos que


a educação não é a chave das transformações do mundo, mas
sabemos também que as mudanças do mundo são um
quefazer educativo em si mesmas. Sabem os que a educação
não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside
exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a
serviço de nossos sonhos (FREIRE, 1991, p. 126).

Para Moacir Gadotti, "A educação, não é certamente a alavanca


da transformação social. Porém, se ela não pode fazer sozinha a
transformação [...] esta não se consolidará sem ela" (GADOTTI, 1980, p.63).
De conformidade, Saviani (1989, p.66), nos traz a seguinte reflexão: [...] “se os
membros das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles
não podem fazer valer seus interesses, porque ficam desarmados contra os
dominadores, que se servem desses conteúdos culturais para legitimar e
consolidar sua dominação. Em suma, o dominado não se liberta se não vier a
dominar aquilo que os dominantes dominam”, isto é, o conhecimento.

Se pudermos aceitar as premissas do filósofo italiano Antônio


Gramsci, segundo a qual a maior parte das instituições culturais -
especialmente a escola - transmite uma concepção de mundo que possibilita a
hegemonia da classe social dominante sobre as demais classes sociais, então,
deveríamos ter uma escola que efetivasse na prática um ensino autônomo em
relação à ideologia dominante e profundamente compromissado com a
transformação da sociedade. Gramsci defendeu uma escola essencialmente
humanista, a que chamou “escola unitária”, com atividades culturais formativas,
onde a educação para o mundo do trabalho não fosse um objetivo em si, mas
sim a consequência de uma educação para a autonomia e liberdade. Para ele:
“A tendência democrática da escola não pode consistir apenas em que um
operário manual se torne qualificado, mas em que cada cidadão possa se
tornar governante”, pois:

Na escola atual, em função da crise profunda da tradição


cultural e da concepção da vida e do homem, verifica-se um
processo de progressiva degenerescência: as escolas de tipo
176

profissional, isto é, preocupadas em satisfazer interesses


práticos imediatos, predominam sobre a escola formativa,
imediatamente desinteressada. O aspecto mais paradoxal
reside em que este novo tipo de escola aparece e é louvado
como democrático, quando na realidade, não só é destinado o
a perpetuar as diferenças sociais, como ainda a cristalizá-las
em formas chinesas (GRAMSCI, 2001, p. 49).

Os seguidores das ideias de Gramsci aqui no Brasil defenderam - e


ainda defendem - a ideia de uma educação voltada para a transformação da
sociedade numa sociedade igualitária e justa, portanto diferente da atual.
Conforme nos diz Frigotto (1998, p. 26):

Um pressuposto fundamental, quando nos propomos ao debate


teórico, entendemos deva ser que as nossas escolhas teóricas
não se justificam nelas mesmas. Por trás das disputas teóricas
que se travam no espaço acadêmico, situa-se um embate mais
fundamental, de caráter ético-político, que diz respeito ao papel
da teoria na compreensão e transformação do modo social
mediante o qual os seres humanos produzem sua existência,
neste fim de século, ainda sob a égide de uma sociedade
classista, vale dizer, estruturada na extração combinada de
mais-valia absoluta, relativa e extra. As escolhas teóricas,
deste sentido, não são nem neutras e nem arbitrárias –
tenhamos ou não consciência disto. Em nenhum plano,
mormente o ético, se justifica teorizar por teorizar ou pesquisar
por diletantismo.

Não é fácil, à primeira vista, recusar aplausos às propostas das


perspectivas pedagógicas ditas “marxistas”, de inspiração gramsciana, que
preconizavam a compreensão e transformação de nossa sociedade numa outra
sociedade distanciada da opressão. Contudo, não se pode aplaudir uma
alegoria como se fosse verdade, em que pesem as sempre boas intenções de
seus mentores intelectuais, seus esforços e o suas lutas em prol dos oprimidos.
O fato é que suas formas pedagógicas, em mais de trinta anos de existência,
não conseguiram acabar com a revogação social da dignidade humana, da
igualdade, da justiça e da felicidade para todos.

Mas, por que as análises desses eminentes pensadores e suas


propostas pedagógicas para uma nova escola que viria como libertadora do ser
humano, tão lógicas e racionais, não puderam se realizar na prática escolar?
Afinal, se existem já propostas pedagógicas que se destinam à alocação da
educação escolar à transformação social, por que a sociedade não muda? Dito
177

em outras palavras, por que, desde a década de 1980, quando surgiram,


nenhuma forma pedagógica crítica e transformadora logrou seu intento:
transformar a sociedade num local onde não houvesse lugar para a exploração
do homem pelo homem? Ainda, em outros termos, por que a escola e os
professores não rompem com o sistema?

Os professores mais antigos, idealistas, ingressaram na profissão


numa época em que ainda se podia esperar da educação escolar um projeto
de transformação social. Na escola, esses sonhadores se tornaram Prometeus
condenados à síndrome de burnout e acorrentados à sua própria montanha de
desilusões, com as vísceras expostas aos abutres impiedosos da exaustão
emocional. Outros são Mársias esfolados vivos como castigo por terem
desafiado o jugo do sistema. Castigados por buscarem essa escola pública e
esse país tão sonhado, por afrontarem os deuses poderosos, os detentores do
poder hegemônico e seus lacaios, os governantes. Hoje, esses professores
são também como Sísifos numa escola que luta para minimamente alfabetizar
alunos que terminam o ensino médio donos de uma desortografia agramatical
que parece emergir da Idade Média. O que nos autoriza a todos, pais,
professores e alunos, a fazermos as perguntas de sempre, que ninguém
responde: mas, afinal, para que se educa hoje? Qual é mesmo a função da
escola? Para que a escola serve?

Em um dos primeiros cursos de capacitação de que participei (no


início dos anos 1990) uma professora universitária foi enviada pela Secretaria
de Estado da Educação do governo do Paraná para a escola onde eu
lecionava para ministrar um curso sobre a pedagogia histórico-crítica. No
momento em que dialogávamos perguntei a ela: “professora, se o nosso
governo representa a classe dominante e consequentemente o próprio sistema
capitalista, então como ele pode disponibilizar cursos que capacitam os
professores a entender o sistema capitalista e destruí-lo?” A professora,
notadamente surpresa, como se jamais tivesse pensado que alguém fosse
perguntar sobre isso a ela, argumentou: “esses cursos não são dádivas, são
uma conquista das lutas da categoria”.
178

Hoje, depois de ter feito dezenas desses cursos na escola, vejo


que eles não são e nem jamais foram conquistas das lutas da categoria dos
educadores da escola pública. Eles são dádivas mesmo. E dádivas que
funcionam como uma alegoria da caverna, de Platão. Uma válvula de escape
do sistema, que nos permite acreditar que de dentro escolas os professores
estão promovendo a transformação da sociedade, quando na realidade os
professores não estão transformando absolutamente nada. A não ser a si
mesmos em escravos felizes. É lamentável perceber a quantidade de mentiras
e artimanhas de que os tiranos têm se valido, historicamente, para a
consolidação de sua opressão vil e torpe sobre a grande maioria da população.
E, dentre a população, tantos professores bem intencionados. Contudo, muito
mais lamentável ainda é perceber como os dominantes sempre encontraram o
professor bem disposto a entrar em suas armadilhas, mesmo quando esses
tiranos mal sabiam como armá-las.

Em “A alegoria da caverna”, uma conhecida parábola inclusa na


obra intitulada “A República” (livro VII), Platão se reporta a uma caverna onde
pessoas crescem acorrentadas, de modo que ficam de costas para a entrada,
vendo apenas a parede do fundo da caverna. Atrás dessas pessoas há um
caminho com uma parede baixa que se ergue ao longo desse caminho, como
um anteparo que os animadores de marionetes usam para esconder-se
enquanto exibem seus bonecos. E atrás desse caminho há uma grande
fogueira. Entre a parede baixa e a fogueira passam outras pessoas carregando
objetos sobre a cabeça. As sombras desses objetos são projetadas na parede
do fundo da caverna. Impedidas de ver outra coisa senão essas sombras da
realidade, as pessoas acorrentadas acabam entendendo as sombras que
observam como se fosse a própria realidade. Como num teatro de sombras,
entendem os objetos carregados pelas pessoas como seres animados. E
adotam fantasias como realidade. Um dia um dos prisioneiros se liberta e fora
da caverna, primeiro estarrecido e depois maravilhado, conhece a realidade.
Tempos depois, retorna à caverna para esclarecer aos prisioneiros da caverna
sobre o mundo real. Mas, acaba sendo visto como um louco, e por isso, é
hostilizado e, finalmente, assassinado.
179

Assim aconteceu com Sócrates: ao tentar mostrar a verdade ao


povo morreu vítima da relutância da maioria das pessoas em aceitar a
realidade tal como ela é. Assim aconteceu com Sísifo, Mársias e Prometeu,
que ousaram desafiar o poder dos deuses. Assim também acontece hoje com
quem se arvora a contar a verdade sobre a escola pública e suas pedagogias
críticas e transformadoras. Aquele que ousar questionar a alegoria será
hostilizado pelas massas, pois elas se encontram sob o domínio da alienação.

Na escola os chamados professores tradicionais, bem como os


chamados professores críticos se unirão em força para aniquila-lo. Visto que
sobre a pobre escola pública e sobre o bom e sofrido professor é sempre
aconselhável ficarmos todos quietos. Aos que desrespeitarem essa regra, no
fim do caminho, como quimera prodigiosa, a síndrome de burnout os espera,
faminta. Mas, somente aos que um dia tiveram coragem de amar a educação
e, depois, como destino inexorável, se desesperaram diante da perda de sua
amada. Eis o desfecho em resposta aos tantos estímulos estressores ocorridos
numa situação de trabalho absolutamente insustentável. Os demais
professores, workaholics imunes aos ventos e tempestades que sopram quase
onipotentes da síndrome de burnout, já foram devorados antes pelos vermes
asquerosos de sua própria alienação, ignorância e mediocridade educacional.

“Conheça a ti mesmo”. Estas palavras, ditas por Sócrates a mais


de dois séculos e meio, ecoam do passado como a querer nos mostrar o
caminho. Constituem o cerne de todo o conhecimento. Contudo, como sempre
foi, o ser humano continua sem querer se conhecer. É o medo da verdade, que
se transforma em mito, que se transforma em ideologia de salvação, como uma
crença de que a escola pública possa um dia se negar a ser a porta-voz do
poder hegemônico. E se constituir num lócus privilegiado da produção das
consciências críticas que alavancarão a distribuição equânime dos benefícios
da civilização entre todos. E, assim, vamos fazendo a nossa parte na
manutenção de um sistema de controle, poder e vigilância que aporta, para
além de qualquer teima em contrário, nas formas conservadoras de se educar,
em que pesem as vestes de progressistas. Um sistema que já na época de
Sócrates e Platão iludia, persuadia e manipulava as pessoas, acorrentadas à
180

condição de ignorância no fundo de suas próprias cavernas. Pessoas


condenadas a se manter em tal situação e hostis a qualquer tentativa de
liberta-las.

Por trás dos seres acorrentados na caverna de Platão, algumas


pessoas se moviam com objetos à cabeça e se utilizavam da projeção das
suas sombras para enganar as pessoas. Essas pessoas, cujas sombras eram
projetadas na parede, aludiam aos membros do governo ateniense
(representantes do poder dominante) e aos sofistas. Esses sofistas eram os
sábios ambiciosos da época de Sócrates. Esses sofistas são os antepassados
dos nossos sábios ambiciosos atuais - se me concedem perdão os colegas da
academia que, entrincheirados em suas escrivaninhas universitárias,
reverberam ditames pedagógicos para a escola pública como apanágios para
os males de que a sociedade urge se curar. Deles, inclusive!

Capítulo 11 – A hipocrisia escolar

À minha volta, reprovava-se a mentira,


mas fugia-se cuidadosamente da
verdade.

(Simone De Beauvoir)

É deveras estranha e curiosa a esquizofrenia profissional de


grande parte de nossos professores: trabalham na escola pública, mas
matriculam seus filhos na escola privada. Dito estas palavras - e como a
hipocrisia sempre precisa de alguém para expiar seus pecados -, preparo-me
para ser execrado. Provavelmente, alguns colegas que já me aplaudiram no
exercício da profissão vão agora me atiçar os cães, pois os estou deixando nus
181

publicamente. Ou, como diriam os portugueses, “estou lhes descobrindo as


vergonhas”. Que seja.

Certa vez recitei aos meus alunos - de uma sétima série do então
primeiro grau de ensino - um pedaço de uma poesia de Castro Alves, intitulada
"Navio Negreiro", onde o poeta chorou em versos o infortúnio de milhões de
negros, arrancados do chão africano, e trazidos em “navios negreiros”, feito
bichos, para o inferno como escravos no Brasil. Eis o pedaço que declamei:
"Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucura… se
é verdade/Tanto horror perante os céus?!". Eu estava ministrando uma aula de
história da capoeira, na disciplina de Educação Física, e, portanto, o conteúdo
do poema era interessante, pois que interseccionava com essa forma cultural
afro-brasileira, que é a capoeira. No dia seguinte fui surpreendido por um pai
de aluno que, se dizendo evangélico, reclamava ao diretor da escola que eu
teria chamado Deus de “desgraçado”. E que teria proferido um palavrão:
"miseráveis". Pior que isso, o diretor, imune às minhas ponderações, acatou a
reclamação do pai e me deu uma advertência formal. E ainda me proibiu de
continuar trabalhando com capoeira na escola, visto que esta seria uma forma
cultural de negros desordeiros capaz de incentivar "desordens" nos alunos. A
Capoeira, nascida da resistência do negro contra circunstancias profundamente
opressoras da escravidão, fora transformada naquele momento por aquele
diretor numa atividade repugnante porque trazia consigo os signos herdados
das lutas contra os tantos meios de suplício do cativeiro. Nesse processo, as
desigualdades foram instantaneamente minimizadas à condição de meras
diferenças.

Há uma significativa parcela de professores mentalmente


indolentes, vaidosos, conservadores, acomodados, ensimesmados e mimados
que parecem pensar em si mesmos como acima do bem e do mal. Imunes aos
ventos e tempestades que sopram das críticas que se façam sobre seu
santificado ofício, por mais verossímeis que sejam. Instituiu-se mesmo entre
eles o mito do “bom professor”, conhecedor de todas as respostas, sempre
calmo, equilibrado, companheiro, sem preconceitos ou predileções, que jamais
perde a compostura, não demonstra emoções fortes e motiva o aprendizado
182

prazeroso do aluno. Esse mito se consolidou não somente no ambiente


escolar, mas nos discursos de diferentes locais sociais, como a família, a
igreja e a mídia. Todavia, os estudos do psicólogo e educador estadunidense
Thomas Gordon, que se dedicou, entre outras coisas, aos estudos sobre a
resolução de conflitos nos relacionamentos, tema tão recorrente entre
professor e aluno, destaca que mitos como esse “[...] exigem dos professores a
negação da sua condição humana, o que só pode ser feito por meio de um
complexo desempenho teatral e de autoengano” (GORDON, apud PEREIRA,
2009a, p. 15).

No contrapeso da hipocrisia escolar está o sofrimento docente.


Este sim tão verdadeiro como um tapa na cara. Na contramão do mito do “bom
professor”, do professor que controla tudo, que não se engana, que não tem
alunos prediletos, que sabe tudo, se encontra a angústia de quem precisa ser
sempre o melhor, de quem se sente secretamente culpado pelo fracasso
escolar e frustrado na tarefa de estabelecer relacionamentos empáticos com
seus alunos, facilitadores do aprendizado. Soma-se a isso a exaustão causada
pela necessidade de contrapor os baixos salários com longas jornadas de
trabalho, lecionando em mais de uma escola. É assim que os professores
garantem que seu salário possa pagar as contas: trabalham em três períodos
em três, quatro ou cinco escolas. Como alguém pode ser educador e se sentir
satisfeito nestas condições? Como pode ser um “bom professor”? Na verdade
não pode. Contudo, ressoa forte e retumbante da escola, quase em uníssono:
“apesar dos pesares somos todos bons professores”. Eu vos digo que são no
máximo workaholics ou Sísifos empurradores de pedras.

Do século XVI, nos vem lembrar o filósofo moralista francês La


Rochefoucauld: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.”
Para Rochefoucauld, todas as qualidades da elite – suas falsas virtudes — são
movidas pelo egoísmo e pela hipocrisia. E quem serão os professores dentro
da sala de aula convencional senão esta elite, os donos do poder, a autoridade
máxima? Conta-se que o cantor Tim Maia teria dito: “O Brasil é um país onde o
cafetão tem ciúmes, a prostituta se apaixona, o traficante é viciado e o pobre é
de direita”. A veracidade deste episódio não é de fato o que mais importa. O
183

importante é que a partir desta afirmação descortinou-se o termo “pobre de


direita”, a mais bizarra e paradoxal criação do capitalismo brasileiro. No Brasil,
há sempre um adensado punhado de pobres, exemplares na hipocrisia,
tentando racionalizar o não racionalizável, encontrando para a sua cedência à
classe dos ricos - e à política de direita em tempos eleitoreiros - as mais
espúrias e dissimuladas justificativas. Na escola, são eles os professores que,
alicerçados na mais execrável hipocrisia, se postam contra as greves,
perseguem seus alunos, elogiam e votam em políticos de direita e, finalizando
seu tragicômico teatro de fanfarronices, trabalham na escola pública e
matriculam seus rebentos na escola privada. Há uma legião interminável de
professores de direita, pobres em sua maioria, mas conservadores e
reacionários, tecendo loas aos políticos direitistas e à continuidade dos
fundamentos deste sistema social e econômico insano e cruel.

Considero apavorante a percepção de que a humanidade tem


hoje as condições objetivas para erradicar da face da terra a fome e a miséria,
mas que, entretanto, opta por perpetuar um paradigma social construído sobre
a desigualdade econômica e a injustiça. Em toda a parte parece que a tirania
prospera e a hipocrisia e a mediocridade lhe servem de escudo. O miserável
sofre, é espezinhado pelo patrão, sua rotina é composta de altas broncas e
baixos salários, vez ou outra é humilhado, mas não deixa de adorar seus
opressores e de vangloriar seu patrão e seu líder político de direita. Isso
acontece não somente nas lojas, fábricas e indústrias. Na escola, aqueles que
deveriam se distinguir como realizadores de uma educação crítica e
transformadora da sociedade são, no mais das vezes, também os que abraçam
a mediocridade da defesa da classe dominante. Senão com discursos, ao
menos com atitudes. É como se houvesse na escola pública uma coletiva e
perpétua síndrome de Estocolmo. A turba de autoproclamados “educadores”
parece estar infinitamente mais preocupada com os aplausos que há muito não
recebe de sua plateia do que com os resultados objetivos daquilo que faz ou
deixa de fazer em seu “sacrossanto” ofício de ensinar. E o pior professor
reacionário é aquele que já foi progressista. Conheci muitos deles.
184

Neste páreo onde os hipócritas estão na frente, parece sempre


haver um idealista correndo por fora. O senador Cristovam Buarque (PDT-DF)
elaborou em 2007 um projeto de lei (PL 480/2007) que estabelece que todo
político eleito no Brasil, em âmbitos federal, estadual ou municipal, matricule
obrigatoriamente seus filhos na rede pública de ensino. Evidentemente, este
projeto, se fosse aprovado, teria grande impacto na qualidade do ensino. Vou
explicar: sentindo na carne os problemas reconhecidos da educação pública
neste país, os políticos brasileiros, que até agora se protegem da má qualidade
do ensino público usando o setor privado, se veriam obrigados a investir mais
na educação. E quiçá não só na educação, mas na qualidade de outros
serviços públicos. O projeto foi alvo de zombarias as mais excêntricas e
finalmente foi engavetado. Mas, a história não parou por aí, durante o XXX
ENEPe (Encontro Nacional de Estudantes de Pedagogia), na Universidade de
Brasília, uma estudante do Rio de Janeiro fez a seguinte pergunta ao senador:

— Professor Cristovam, o senhor matricularia seu filho numa


escola pública, sendo ou não obrigado a isso?

Ao que o senador respondeu:

— Não, mas isso não invalida meu projeto. Felizmente meus filhos
e netos já estudaram e o meu projeto não é para que todas as pessoas
matriculem seus filhos em escolas públicas. É, sim, para aqueles que são
parlamentares, justamente para que cuidem melhor de nossa educação. Mas,
se não quiser matricular, tudo bem, basta deixar de ser parlamentar.

Sua resposta testemunha e documenta a falácia de seu argumento


em defesa da educação. E desconsidera não só a sua história pessoal de lutas
humanitárias, sem as quais não teria chegado ao senado, mas ainda, e
especialmente, as esperanças nele depositadas pelos tantos que um dia
ousaram acreditar na possibilidade de uma escola pública de qualidade.
Infelizmente, sua fala se insere no conluio de hipocrisias que perambulam mal
intencionadas e despreocupadamente pelos bastidores das relações de poder
que a condição de político eleito pelo povo lhe confere.
185

Os hipócritas que me perdoem, mas sua máscara um dia vem ao


chão. Atitudes como esta do senador Cristovam Buarque não podem ser
consideradas como um erro de percurso ou uma desastrosa anomalia. O
senador tem denunciado em seus discursos a existência de uma escola pública
e ruim para os pobres e miseráveis e uma escola particular e boa para a classe
média alta e para os ricos. Contudo, o que deveria ser denunciado não é a
existência de escola de rico e escola de pobre, mas a desfaçatez de nossos
professores que, tal como nossos políticos de esquerda, costumeiramente
desconversam sobre as diferenças entre a escola pública e a privada. São
esses professores que ministram as aulas em nossas escolas. E são esses
“políticos de esquerda” que fazem as leis que regem os destinos da nossa
escola pública.

A coerência parece ser mesmo um privilégio dos animais, fiéis, por


instinto, à sua identidade. Aos homens, muitas vezes, resta entregar-se à
destemperada composição entre conveniência e hipocrisia. Haverá sempre
alguém a defender com todas as forças o direito sacro santificado do professor
da escola pública matricular seu filho nestas escolas particulares, não
contaminadas pela presença nefasta das classes subalternas. Não se acha
com a mesma facilidade quem concorde que, num país que ocupa os últimos
lugares nos rankings mundiais da educação, o empowerment dessas “ilhas de
pureza pedagógica” reflete o abismo intransponível entre ricos e pobres neste
país. Enquanto isso, os resultados dos números sobre a educação escancaram
ano após ano uma triste realidade onde o Brasil se mostra como uma espécie
de apartheid educacional. Como considera Bourdieu:

Se considerarmos seriamente as desigualdades socialmente


condicionadas diante da escola e da cultura, somos obrigados
a concluir que a equidade formal à qual obedece todo o
sistema escolar é injusta de fato, e que, em toda sociedade
onde se proclama ideais democráticos, ela protege melhor os
privilégios do que a transmissão aberta dos privilégios
(BOURDIEU, 1998 p.53).

E, mais adiante:

Ao atribuir aos indivíduos esperanças de vida escolar


estritamente dimensionadas por sua posição na hierarquia
social, e operando uma seleção que - sob as aparências da
186

equidade formal - sanciona e consagra as desigualdades reais,


a escola contribui para perpetuar as desigualdades, ao mesmo
tempo em que as legitima (p. 58). 

Nossas escolas privadas são ilhas de pureza bem elitistas,


aquarteladas sob a égide da falaciosa democracia burguesa. Sabidamente, não
pode haver equidade entre escolas públicas e particulares numa sociedade
onde não há equidade social e econômica entre todas as pessoas. Entre nós,
os disparates na ordem escolar são o reflexo dos disparates na sociedade
como um todo. Por exemplo, o ideb (índice de desenvolvimento da educação
básica) do ensino médio das escolas públicas, em 2015, foi de 3,5. Enquanto
que, no mesmo período, o ideb do ensino médio das escolas privadas foi de
5,3. O ideb comparado das escolas públicas e privadas nos revela os números
ruins não só da escola pública, mas também da escola particular, melhor do
que a pública, mas aquém do esperado. Sem embargo, documentam a
diferença considerável que há entre os resultados apresentados pelas escolas
particulares e públicas. Resultados que não só demonstram que a equidade
formal, a que deveria obedecer todo o sistema escolar, inexiste de fato neste
país. Assim como evidenciam as relações de dominação que ecoam da

sociedade por todo o sistema educacional.

Há uma dualidade perversa no ensino formal: uma escola do


conhecimento para os ricos e como uma escola do acolhimento social para os
pobres. Essa dualidade, que obviamente reproduz as desigualdades sociais,
tem suas raízes nas políticas neoliberais obedientes aos acordos internacionais
em torno do movimento chamado Educação para Todos, cujo marco foi a
Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, na
Tailândia, em 1990. A Conferência de Jomtien produziu um documento
histórico denominado Declaração Mundial da Conferência de Jomtien,
convocada, organizada e patrocinada pelo Banco Mundial, pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pelo Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF) e pela Organização das Nações Unidas para
a Educação e Cultura (UNESCO), com a participação de mais de 150 países.
Ela foi a primeira de outras conferências sobre a educação mundial que se
realizaram posteriormente, tais como o Encontro Mundial de Cúpula pela
187

Criança em Nova York (1990), a Reunião de Nova Delhi (1993), a de


Salamanca (1994), a Conferência de Kingston, Jamaica (1996) e o Marco de
Ação de Dakar (2000). Sintomaticamente, todas foram convocadas,
organizadas e patrocinadas pelo Banco Mundial.

Estas duas décadas e meia da Declaração de Jomtien, selaram o


declínio da escola pública brasileira. A divulgação do MEC, em 2001, de que o
Brasil havia universalizado o ensino fundamental, com o índice de ingresso e
permanência de 96,3% das crianças em idade escolar parece acenar
irrefutavelmente para uma condição exitosa da educação escolar em nosso
país. E a universalização do ensino fundamental estava de acordo inclusive
com a nossa Constituição Federal de 1988, segundo a qual, a educação no
Brasil é um direito de todos e um dever do Estado e da família (BRASIL, 2002,
Art. 205), sendo a oferta pública organizada através do “regime de
colaboração” entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (BRASIL,
2002, Art. 211) e o ensino livre à iniciativa privada (Art. 209). E em seu Art. 208,
VII, § 1º, a Constituição garante o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como
um direito público subjetivo sendo o Poder Público responsabilizado pelo não
oferecimento ou oferta irregular (BRASIL, 2002). Contudo, a educação para
todos não foi acompanhada de uma suplementação orçamentária para a escola
pública que pudesse viabilizar uma educação escolar de qualidade. Portanto,
“Trata-se na verdade, da grande farsa educacional que consiste em separar
conceitos como qualidade e quantidade, que são dialeticamente
independentes, para mistificar a realidade de nosso pseudo-ensino (PARO,
2001, p. 56).

No Brasil, o primeiro documento oficial resultante dessas


conferências mundiais sobre educação foi o Plano Decenal de Educação para
Todos, vigorante de 1993 a 2003, elaborado no Governo Itamar Franco. Seu
conteúdo ecoou nas diretrizes para a educação do Governo FHC (1995-1998;
1999-2002) e do Governo Lula (2003-2006; 2007-2010). Especialmente no que
se refere à universalização do acesso à educação escolar. No bojo da
perspectiva neoliberal para a educação, estiveram presentes também a o
ensino à distância, o aumento significativo do número de escolas particulares e
188

o sistema nacional de avaliação, dentre outros. Entretanto, pouco se fez no


sentido de garantir uma boa qualidade do ensino oferecido.

Na verdade, há um deslocamento no discurso oficial, que


busca assimilar o formal ao real e usa as estatísticas de
aprovação para representar frente a população um conteúdo
do qual elas são uma apropriação muito precária: a qualidade
do processo ensino-aprendizagem (CARVALHO, 200: 249).

Obviamente, a universalização do acesso de nossas crianças à


educação escolar seria de grande valia para a sociedade, especialmente para
as pessoas mais pobres, se a quantidade de alunos se fizesse acompanhar da
qualidade do ensino. Mas, a universalização da educação fundamental nada
mais foi que o aumento considerável de escolas, alunos e professores sem
aumento proporcional de investimentos na educação. E não há qualidade real
que não se faça acompanhar de dinheiro. Os ricos desse país, acomodados
em seus luxuosos iates e confortáveis mansões sabem bem ao que estou me
referindo. O resultado inexorável foi a diminuição da qualidade do ensino
ofertado pela escola pública sob a alegação de que não era possível se
sustentar a ampliação do sistema escolar com bons salários e escolas bem
equipadas. Desse modo, os prováveis talentosos professores acabaram
optando por outras carreiras. Muitas vocações foram caladas. O bom mocismo
da universalização da educação escolar fundamental foi um discurso hipócrita
que prometeu colocar a educação do povo no centro das prioridades, sem
jamais se preocupar em cumprir sua promessa. Aliás, a escola pública,
infelizmente, está longe de alcançar algum status de prioridade no orçamento
para as políticas públicas brasileiras.

O Censo Escolar de 2015 mostra que o Brasil tem, ao todo, 49,8


milhões de estudantes. E que o sistema particular de ensino concentra 18,3%
das matrículas. O que significa dizer que em cada 10 alunos matriculados nos
ensinos fundamental e médio, 8 estão na escola pública. São mais de 80% do
total de estudantes que não terão muitas oportunidades na vida. Contudo,
também as escolas particulares “não andam bem das pernas”. Muitas estão
capengando. Isso porque entre nossas escolas particulares, evidentemente, há
as mais caras para os ricos e as menos caras para a classe média. As mais
ricas se convertem em verdadeiras ilhas de pureza pedagógica e moral, muitas
189

delas de caráter confessional, onde vocifera o conservadorismo. Vão para


estas escolas os filhos da classe alta e da classe média alta. De lá sairão os
donos do poder. Disto subtraído aqueles filhos da burguesia que estudam em
escolas na Europa ou nos Estados Unidos.

As freirinhas acauteladas que costumeiramente ocupam o cargo


de direção em algumas dessas ilhas brasileiras de pureza pedagógica,
geralmente as mais caras, assemelham-se, em seus cuidados, aos
interrogadores do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação -
Centro de Operações de Defesa Interna), o órgão de inteligência do Exército
Brasileiro durante a ditadura militar. O interrogatório aos pais de filhos
candidatos a essas imaculadas ilhas educacionais é minucioso e austero.
Principalmente se por algum milagre do destino ele possa ser oriundo da
classe média. Essas escolas não podem ser maculadas socialmente pela
presença sinistra da gentalha do povo com seus vícios de comportamento e
pouca civilidade. Muitos funcionários de bancos públicos, muitos magistrados
dos tribunais públicos, muitos médicos dos hospitais públicos e muitos
professores da escola pública correm a elas desejosos de que admitam seus
rebentos como alunos. E prestam sua reverencia e suas homenagens a estas
“imaculadas escolas” e às suas “santas diretoras”, que se arvoram a ser Deus
no afã de separar os salvos dos condenados. E não seria preciso. Obviamente,
a condição econômica já se incumbe prodigiosamente da tarefa de separar os
salvos dos condenados nesse país. E, também, obviamente, os socialmente
condenados irão dar com os burros n’água nas indigentes masmorras da pobre
escola pública.

Nesse nosso agigantado sistema público de ensino, todo e


qualquer número impressiona pelo tamanho: por exemplo, a educação de
jovens e adultos (EJA) registra 2,5 milhões de alunos matriculados no ensino
fundamental e mais de 1 milhão de matrículas no ensino médio. Temos no país
quase 200 mil escolas e 2,2 milhões de professores. E nossas escolas públicas
atendem mais de 45 milhões de alunos no ensino regular fundamental e médio.
Temos mais professores no Brasil do que a população de alguns países como
Chipre, Malta, Luxemburgo e Catar. Mas, nenhum indicador é tão
190

impressionante como o dos insucessos da escola pública. Mais de 12 milhões


de alunos da escola pública possui notas ruins em matemática, interpretação
de texto e/ou ciências, segundo relatório da OCDE (Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgado em 10/02/2016. De
acordo com o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), que
realizou a pesquisa para a OCDE, o Brasil ficou em 58º lugar entre os 64
países que participaram da pesquisa. Além disso, temos 14 milhões de
analfabetos absolutos e um pouco mais de 35 milhões de analfabetos
funcionais.

Aqueles alunos situados entre os 20% mais ricos da população,


ao fim de 20 anos de escola, colégio e faculdade terão gastado com sua
formação escolar aproximadamente R$250.000,00. Isso significa cerca de
R$1.000,00 por mês. Nesta conta está inserido aquele dinheiro que o pai do
aluno retira do próprio bolso para pagar as mensalidades e a contribuição que
o governo faz com deduções de impostos. Agora, se você fizer parte dos outros
80% da população estudantil, sua educação receberá um investimento de tão
somente R$116,00 por mês. Esse é o total gasto pelo país por aluno para
manter as escolas públicas. No fim das contas, a competição no vestibular
entre os alunos oriundos de escolas públicas e os alunos oriundos de escolas
privadas não é nem um pouco justa. Os filhos das classes média alta e rica
acabam preenchendo as vagas dos cursos universitários que preparam para as
profissões mais rentáveis, como medicina ou engenharia. Aos filhos da classe
média baixa e pobre que conseguem chegar ao ensino superior restam os
cursos que prepararam para as profissões menos rentáveis economicamente e
cuja aprovação não é tão difícil. É o caso dos cursos do magistério, como
história, matemática ou geografia.

Da Grécia de dois milênios e meio atrás Pitágoras nos lança um


alerta: "Eduquem as crianças e não será preciso castigar os adultos." Em que
pesem as ponderações da filosofia, a ação de educar não vingou. Em nossas
escolas, a Maiêutica Socrática, está morta, velada e sepultada. Em agravo
desta triste situação, custa mais aos cofres públicos manter um preso na
cadeia do que um aluno na escola pública. Tendo por base o ano de 2011,
191

enquanto o governo investiu mais de R$ 40 mil por ano em cada preso nos
presídios federais, gastou cerca de R$ 15 mil com cada aluno do ensino
superior, isto é, cerca de um terço do valor gasto com prisioneiros. Se
considerarmos o valor gasto com detentos de presídios estaduais, chegaremos
à cifra de R$ 21 mil gasto ao ano com cada detento, enquanto se gastou
apenas R$ 2,3 mil por aluno ao ano.

Como se tudo isso não fosse por demais suficiente, percebe-se


facilmente que o sistema público de ensino brasileiro está de fato montado
apostando no fracasso de seu aluno. De acordo com a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio (Pnad) de 2013, realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), caso todos os alunos do 9º ano fossem
aprovados para a série subsequente não teríamos escola para todo o mundo.
Contudo, somente 71,7% dos nossos alunos com até 16 anos ingressam no
ensino médio. E apenas 54,3% dos jovens brasileiros que ingressaram um dia
na escola, um pouco mais da metade, terminam o ensino médio até os 19 anos
de idade. E dos que concluem o ensino médio, apenas cerca da metade
ingressa no ensino superior. Além disso, nenhum estado conseguiu até hoje
incluir todas as crianças de 6 a 14 anos na escola. 3% do total de crianças e
jovens brasileiros em idade escolar estão fora da escola. O que equivale a
dizer que temos quase um milhão de brasileirinhos que ainda não têm
garantido um de seus direitos constitucionais mais básicos, o de estudar. Se a
esse grupo forem incorporados as crianças de 4 e 5 anos e os jovens de 15 a
17 (que a partir de 2016 passaram a fazer parte da faixa etária de escolaridade
obrigatória), o número de crianças e jovens brasileiros sem escola aumenta
para 3,8 milhões, ou seja, 8% do total.

Nesse mar de paradoxos, hipocrisias e mediocridades, emerge


mais um dado que importa relatar. No Brasil, os filho dos pobres estudam a
vida toda em escolas públicas e, quando conseguem, concluem seus estudos
em faculdades pagas. E os filhos dos ricos estudam a vida toda em escolas
particulares e fazem seu curso superior em universidades gratuitas. Claro que
nem todos os filhos dos pobres conseguem chegar ao ensino superior, mas a
grande maioria dos poucos que conseguem irá estudar em escolas
192

particulares. Ocorre que aqui entre nós as instituições públicas de ensino


superior são bem melhores que as privadas. Especialmente porque nas
escolas públicas de ensino superior a necessária indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão de fato acontece. Diferente daquilo que ocorre nas
particulares, onde a ênfase comumente recai no caráter do ensino em
detrimento da pesquisa e da extensão, subsumidos, neste tipo de instituição, a
um mínimo legalmente obrigatório. Nas escolas públicas sobram para os filhos
dos pobres os cursos de magistério, para os futuros professores. Afinal, que
filho da burguesia iria querer, em sã consciência, enveredar profissionalmente
pelos tortuosos e escabrosos caminhos do magistério nesse país?

O tiro parece ter saído pela culatra. Estudantes e educadores


progressistas defenderam, historicamente, a existência de uma universidade
pública, gratuita e de qualidade. Suas lutas surtiram resultado. O interesse era
democratizar a todos o acesso a um bom ensino superior. Todavia, quando
finalmente conseguiram a tal escola superior de qualidade - pública e gratuita -
estas escolas passaram a ser uma prerrogativa dos alunos ricos. Não há vagas
para todos e os concursos vestibulares selecionam apenas os melhores.
Ocorre que, paradoxalmente, o aluno que tem maiores chances de passar pelo
vestibular da escola pública é justamente aquele que frequentou a escola
privada. Os filhos dos ricos se prepararam bem nas escolas particulares para
conseguir ingressar no ensino superior público e gratuito. É como se, no
capitalismo, a educação de qualidade para o pobre fosse uma anomalia que a
meritocracia dos vestibulares se incumbe de consertar.

Houve época em que até mesmo o ensino público fundamental e


médio foi elitizado em nosso país. Somente frequentavam a escola os filhos
das classes mais abastadas. Depois, o ensino público se universalizou e com a
universalização a escola foi sucateada. Quando finalmente puderam ter acesso
à educação escolar, essa não foi de qualidade. E, então, surgiram as escolas
particulares para satisfazer a demanda dos filhos dos ricos e da classe média
por um ensino melhorado. A universalização do ensino representaria um
grande avanço se esse processo se fizesse acompanhar da qualidade
necessária. Ou se pelo menos mantivesse a qualidade que já tinha. Mas, não
193

foi o caso. E, então, a elite retirou os filhos da escola pública, que, sobretudo
nas periferias das grandes cidades, virou uma escola de segregados. Ora,
sabidamente, os filhos dos pobres não possuem muitas oportunidades
educativas além da escola. Não frequentam outros repertórios do
conhecimento, tais como as aulas de dança, judô, música ou línguas
estrangeiras. E quando os pobres encontram algum projeto público e gratuito
para matricular seus rebentos, esses projetos não possuem a mesma
qualidade que os particulares. A óbvia conclusão, confirmada por todos os
testes de avaliação, é que o ensino escolar público brasileiro está longe de
garantir uma aprendizagem satisfatória para os filhos dos pobres.

Há sim no Brasil uma escola para as classes média e rica (a


particular) e outra para os pobres e miseráveis (a pública). E a diferença de
qualidade entre elas é gritante. Quando falamos sobre a pratica do esporte na
escola particular é sempre para que os filhos das classes média e rica
desenvolvam uma aptidão. Na escola pública, a prática do esporte tem sempre
a preocupação de ocupar o tempo dos jovens pobres para que eles não se
envolvam com o crime. E mesmo no interior da escola pública existe
segregação. Há sempre umas escolas públicas mais abastadas e outras mais
humildes; e em cada escola há uns alunos mais e outros menos abastados.
Consequentemente, há sempre uns alunos da escola pública que aprendem
mais e outros que aprendem menos. Evidentemente, estou aqui me referindo à
regra e não à exceção. Claro que podem existir alunos pobres que consigam
um bom desempenho na escola. Porquanto, existam sempre uns alunos com
melhores e outros com piores oportunidades. Mas, são casos muito raros.
Constituem a exceção e não a regra. A educação no Brasil é a cara do país:
feita de contradições e hipocrisias.

Muitos estudiosos da educação brasileira, como o professor


Dermeval Saviani, há décadas vêm denunciando o caráter assistencialista e
merendeiro da escola pública. A escola pública, que deveria se distinguir como
o lócus privilegiado da transmissão crítica e transformadora dos conhecimentos
que a humanidade foi capaz de produzir, tem sua importância convertida à de
refeitório para os filhos da pobreza. Nela, muitas crianças pobres terão na
194

merenda a única refeição do dia. Contradições como essa deveriam ser


entendidas, criticadas, denunciadas e superadas. Todavia, ao invés disso,
opta-se por tapar o sol com a peneira. “É assim mesmo e não podemos fazer
nada”, dizem muitos professores. “Aliás, erguemos as mãos aos céus e
agradecemos por termos a merenda para alimentar essas pobres crianças”,
completam outros tantos. Poucos são aqueles professores que condenam a
escola pública como local onde a merenda adquire status de absoluta
importância. E dentre esses, raros são os que entendem que toda e qualquer
criança deveria ter condições de realizar suas principais refeições em casa e
não na escola. Como acontece com os alunos das escolas particulares. E mais
raros ainda são aqueles professores que enxergam no sistema capitalista a
razão para este disparate e ensinam seus alunos sobre a necessidade de
superar este modelo de sociedade.

Ao invés de revelarem aos seus alunos a forma organizacional da


sociedade de desigualdades onde eles vivem e orientá-los sobre como
transformá-la, em geral, os professores tentam esconde-la. Como se isso fosse
possível. Usam de mil estratagemas para disfarçar as diferenças sociais e
econômicas entre os alunos. Muitos diretores escolares justificam o uso de
uniforme pelos alunos dizendo: “se não fosse o uniforme haveria um desfile de
moda e os mais pobres ficariam humilhados pela ostentação dos mais ricos”.
Somos todos muito diferentes sim, na sexualidade, na etnia, na cor da pele,
nas condições culturais, nas questões de gênero, na religiosidade e, sobretudo,
na questão econômica. Esconder esta realidade, sobretudo no que se refere às
injustiças sociais e as desigualdades econômicas, somente colabora para a
perpetuação de uma situação insustentável onde prolifera a exploração do
homem pelo homem. Sei da vontade de muitos professores de que tudo dê
certo. Mas, não é assim que se faz. Dissimular as diferenças não irá atenuá-
las. A hipocrisia e a dissimulação nunca foram e jamais serão os melhores
caminhos para nada. Muito menos para educação de nossos alunos da escola
pública.

Bem diferente do que acontece nas escolas públicas, todos os


anos passam pelas portas das escolas particulares de ensino fundamental e
195

médio somente os “melhores”. Ou pelo menos os que, guiados pelas mãos do


dinheiro que paga o custo que a qualidade de vida possui, se tornarão os
melhores. Muitos deles, filhos de professores da escola pública. Esta é uma
inconveniente realidade que relega o melhor estudo para quem tem maior
poder aquisitivo. Quem tem melhor estudo acaba ocupando as melhores e
mais rentáveis profissões, com melhores salários. O que mantém a
composição atávica da classe social hegemônica. Mas, não se comenta sobre
isso entre as paredes das salas dos professores nas escolas públicas. A
impressão que tenho é que a única tarefa realizada pela escola pública e seus
professores, no tocante à superação das desigualdades sociais e econômicas,
é a obrigatoriedade hipócrita do uso do uniforme pelo aluno. Para obrigar o
aluno a usar o uniforme, herança maldita dos nossos 20 anos em que as regras
eram ditadas pela caserna, a desculpa é sempre a mesma: “se os alunos não
usarem uniforme, haverá um desfile de modas”. Ou: “as roupas caras dos mais
abastados humilharão as vestes humildes dos mais pobres”.

Pronto. Criamos na escola pública uma realidade de faz de conta.


Ou seja, faz de conta que o aluno pobre não se sente humilhado o dia todo por
morar mal, comer mal, ter um serviço público de saúde catastrófico e não ter
acesso a lazer. Faz de conta que na escola são todos iguais, nela o mundo se
converte em perfeito! Fantasiosamente maravilhoso. Para usar um termo
bastante usado atualmente pelos alunos: “só que não!” Os que têm dinheiro
para custear seu acesso a outras modalidades de aquisição de conhecimentos
no período de contra turno escolar, obviamente conseguirão agregar valor ao
que aprendem em sala de aula. O que por si só já diferencia os mais ricos dos
mais pobres, mesmo dentro das salas de aula nas escolas públicas. Contudo, o
fim do uso da escola como refeitório de filho de pobre ou a erradicação do uso
dos uniformes é um tabu que nem ao menos se discute. O professor que
perceber e criticar a perversidade da escola merendeira e a hipocrisia do uso
do uniforme - e se propor a trazer à baila essa discussão - será alvo de
zombarias e acusações por parte de seus colegas.

Já ouvi de professores a justificativa do uso do uniforme como


forma de diferenciar os alunos dos não alunos. Sobretudo, em seu percurso de
196

casa até a escola e vice versa. Mais uma vez esquecem os advogados do
uniforme escolar que as imensas mochilas que carregam os tais alunos e suas
sofridas colunas vertebrais já os definem como alunos. Deveríamos lutar por
uma educação que se poste contra as diferenças econômicas e de
oportunidades. Mas, se disfarçamos as diferenças, contra o que lutaremos na
escola pública, afinal? Contra o analfabetismo, dirão uns, contra a indisciplina
dirão outros. Certamente, não contra a existência de um mundo onde
proliferam desigualdades. Provavelmente, contra a indisciplina dos
esfomeados, dos miseráveis e desvalidos. Contra o comportamento subversivo
dos alunos que relutam diante da subserviência, do conformismo e da
obediência compulsória.

Capítulo 12 – Na escola, o verbo luto é substantivo

Quem trabalha e mata a fome,


Não come o pão de ninguém.
Quem ganha mais do que come,
Sempre come o pão de alguém.
Quem não luta pelo que come,
Merece o salário que tem.

(estilizada a partir da poesia de Antônio


Aleixo)

A questão do uso do uniforme é somente mais uma entre as


tantas questões que testemunham o universo vasto de hipocrisias que tem
celebrado o cotidiano miserável da educação pública brasileira. Uma miséria
que não é só econômica, mas, principalmente, de consciências. Hipócritas!
Senão todos, ao menos a maioria dos nossos professores da escola pública.
Professores que se insurgem contra os baixos salários e vociferam contra o
sistema, mas não aderem ao chamamento para uma greve da categoria. E,
197

quando aderem, sob o peso da primeira ameaça do patrão, retornam correndo


ao trabalho, com o rabo entre as pernas.

Professores que bradam alto a sua revolta e indignação contra os


baixos salários, a desvalorização profissional, a estrutura física inadequada da
escola, a carga horária excessiva, as turmas lotadas, a ausência da família no
apoio e acompanhamento dos educandos e falta de limites dos alunos. São os
mesmos professores que perseguem sem dó nem piedade os alunos que mais
precisam de seu apoio. E fazem de sua sala de aula uma trincheira de guerra
onde o aluno “difícil” é o inimigo. Mas, não se perguntam jamais quais os
motivos da insubordinação do aluno. Não percebem que o aluno se
insubordina, no mais das vezes, contra a hipocrisia de uma escola que não
consegue satisfazer suas necessidades; uma escola que se propõe a qualificar
o aluno à leitura crítica e transformadora do mundo onde vive, mas nem ao
menos consegue prepara-lo para ler adequadamente aquilo que escreve. Não
se dão conta de que a “delinquência” do aluno é provocada pelas condições
precárias de uma sociedade que usa a escola como aparelho ideológico do
Estado. Uma escola que não objetiva preparar o aluno para uma vida digna,
autônoma e libertária, mas para submetê-lo, obedientemente, às regras do
mundo capitalista, onde receberá (como trabalhador) altas broncas e baixos
salários.

Na escola pública, o reflexo da sociedade atual, pós-moderna,


cumpre-se com a reunião dos mais típicos paradoxos desta época. A escola,
como aparelho ideológico do Estado, assume bem a função de perpetrar o
engodo de um mundo caracterizado pelo drama e infortúnio destinado à
maioria absoluta da população, embora diga fazer exatamente o oposto. Na
escola, o aluno não desfruta do privilégio do conhecimento crítico e
transformador e sua consciência depressa se cansa de tantos enganos. Os
alunos não encontram razões para aprender. A escola não os capacita a
entender o mundo onde vivem. Nem lhes prepara para uma vida melhor. A
escola lhes molda para que assumam seu lugar de servos dóceis no mundo do
trabalho. Ainda cedo, muitos desistem de estudar. Outros permanecem e se
transformam nos alunos ditos “indisciplinados”. Mas, há sempre uma maioria
198

resignada. Assim, a escola pública se há convertida numa espécie de hospício


e centro de docilização para indigentes. Como o professor pode validar sua
decantada função educativa, crítica e transformadora frente à forma da escola
ser e estar na pós-modernidade? Não pode. Não faz. Embora diga que faz.
Mais do que nunca vale recorrer à máxima do velho e bom Marx: “O caminho
do inferno está pavimentado de boas intenções".

A maioria dos professores que conheci se queixa do fato da


docência ser uma profissão não valorizada. E, de fato, a profissão não é
valorizada. Os parcos salários da categoria documentam esta assertiva. Além
de intensificar a precariedade do ensino, a desvalorização da categoria tem
adoecido o corpo docente brasileiro, num processo onde o empobrecimento
cultural da nação torna-se um efeito colateral inexorável. São esses
professores desvalorizados os mesmos que mantêm seus rebentos nos feudos
privados da educação escolar. Os que se recusam a aderir às greves, mas que
não se recusam jamais a receber os benefícios salariais conquistados numa
greve. Nunca encontrei um professor fura-greve que recusasse as conquistas
de uma greve. E mesmo aqueles idealistas sinceros, que aderem a uma greve
porque acreditam na luta pelos direitos dos trabalhadores, não são capazes de
sustentar uma greve por muito tempo. Eles costumeiramente retornam ao
trabalho com o mínimo de suas reivindicações atendidas. Às vezes
praticamente sem nada, como foi o caso da greve de 2015 no estado do
Paraná. Uma vergonha. Então, penso ser o caso de se perguntar por que será
que a profissão de professor se encontra tão desvalorizada?

Como estou aposentado, não pude ver na escola o modo com


que os professores, ao retornarem da greve de 2015, informaram aos seus
alunos que a categoria foi recebida pela polícia em Curitiba com bombas
atiradas de helicóptero, apanhou de cassetete, levou tiros de balas de
borracha, spray de pimenta, mordida de cachorro, perdeu oito bilhões de seu
fundo de previdência (que foram confiscados pelo governador para pagar as
dívidas de sua incompetência administrativa), não teve quase nenhuma de
suas reivindicações atendidas e comemorou aos risos e abraços o fim da greve
com um acordo vergonhoso com o governador. Como terão conversado sobre
199

isso com seus alunos? Como justificaram sua atitude aos tantos alunos que os
apoiaram? Como disseram à escola que nossos aposentados agora terão de
pagar a previdência? Não sei como esses professores conseguiram informar
suas famílias e amigos que a categoria em greve pediu 13% de reajuste
salarial, o governo negou, então a categoria abaixou seu pleito para 8%, o
governo ofereceu 5%, a categoria não aceitou e, então, o governo disse que
concederia somente 3,45% a ser pago no fim do ano. E o resto até 2018. E a
categoria aceitou! Justamente num momento em que tínhamos a opinião
pública toda a nosso favor.

A greve de 2015 foi marcada não pela luta por mais direitos e
avanços na carreira, mas pela resistência diante da intenção do executivo
estadual de destruir o plano de carreira, implantado ao longo de anos, com
muita luta da categoria. Houve um acirramento dos ânimos entre governo do
estado e a categoria, ladeada por uma escalada de tensão. A greve aconteceu,
num primeiro momento, no mês de fevereiro, depois foi seguida por um breve
período de retorno aos trabalhos e novamente uma paralisação do movimento
grevista. De acordo com Bozza e Souza (2015, p. 175):

A greve dos professores e funcionários da rede pública de


ensino do estado do Paraná em 2015 durou 46 dias, uma das
maiores da história do estado. Ela teve início no dia 25 de abril
e foi encerrada em 09 de junho, em assembleia com cerca de
10 mil servidores realizada no estádio Vila Capanema, em
Curitiba. As aulas de quase um milhão de estudantes foram
retomadas no dia 10 de junho em meio a uma grave crise
política e financeira no estado. Os servidores aceitaram a
última proposta do governo de reajuste salarial de 3,45% a ser
pago no mês de outubro, correspondente a inflação de maio de
2014, quando foi executado o último reajuste do salário –
vencimento da data-base da categoria –, e dezembro de 2014.
Em janeiro, os servidores devem receber novo reajuste. O
acordo prevê avanços para a categoria até 2018. A APP,
Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná,
entidade representante da categoria, exigia um reajuste salarial
de 8,17%. Era possível observar professores acampados em
frente à Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) durante a
greve, que mobilizou servidores de várias cidades do estado.
Em meio ao período sem aulas, houve a ameaça do governo
de desconto do salário dos grevistas, caso não voltassem
imediatamente às atividades, mas o acirramento das
discussões levou a mudança de ideia e da não obrigação de os
diretores lançarem as faltas durante o tempo em que as
escolas ficaram fechadas. Na negociação que pôs fim à greve,
200

o governo se comprometeu a não descontar os meses de maio


e junho em troca das aulas serem repostas aliada a
compensação da carga horária de funcionários. Em fevereiro,
uma paralisação já havia atrasado o início do calendário letivo
em 29 dias. Uma pesquisa divulgada pelo jornal Gazeta do
Povo com dados do Instituto Paraná Pesquisas mostrava que
90% da população apoiava a greve e sabia citar os motivos
que levaram à paralisação.

Mas, afinal, como os professores relataram a seus alunos o fim da


greve? Será que os professores maquiaram a verdade dita aos seus alunos
com uma mentirazinha disfarçada de realidade, no melhor estilo pós-moderno,
que está na moda. Afinal, tudo parece ser relativo nesse mundo atual. Na
verdade, esse relativismo se presta para enganar inocente útil com uma
verdade relativa, onde toda atitude aparece como relevante, tal como: "Nós
vamos voltar ao trabalho de cabeça erguida”. Esta frase foi dita pelo presidente
da APP-sindicato, Hermes Leão. Parece que nem ele mesmo acreditava no
que estava dizendo. Mas, tem outras, como: “retornamos para a sala de aula
para lá armarmos nossa barricada contra o governo”. Ou ainda: “Lutaremos
agora no chão da escola”. Ou inda: “Eu to na luta!”. E mais essa: “A luta agora
será de conscientização”. Ouvi muito estas duas últimas. Só não entendo uma
coisa: a luta de conscientização do aluno na escola só começará agora? O que
ensinaram os professores todo esse tempo? O que fizeram eles com os
conteúdos aprendidos nos cursos de capacitação em “pedagogia histórico
crítica”? Esta última é a pergunta que não quer calar.

A verdade é que além de apanharmos na greve de 2015, o


desfecho tragicômico dela nos roubou a dignidade enquanto categoria, o
respeito, a vergonha na cara e principalmente nosso poder político de
barganha com o governo para próximas reivindicações. Tanto é que, em fins de
2016, se esboçou uma greve da categoria diante da negativa anunciada pelo
governador em pagar o reajuste salarial na data base da categoria em janeiro
de 2017. Contudo, essa foi uma greve natimorta, que obteve apenas 20% de
adesão da categoria. Enquanto isso, os alunos ocupavam as escolas como
protesto contra a reforma do ensino médio anunciada pelo governo federal.
Uma reforma que vai retirar da grade curricular disciplinas importantes como
filosofia e sociologia. E os professores, ao invés de concederem apoio ao
201

movimento estudantil, exigiam que os alunos desocupassem as escolas para


que pudessem retornar ao trabalho. Os professores rasgaram as bandeiras
defendidas pelo movimento estudantil. Bandeiras que eles mesmos, os
professores, deveriam estar empunhando, pois dizem que defendem a escola
pública de qualidade. Entretanto, os “educadores”, além de não reconhecerem
essa bandeira como sua ainda a jogaram no chão e a espezinharam.
Especialmente aqueles professores que depois em sala de aula perseguiram
os alunos que ocuparam a escola com deboches e humilhações.

O episódio da greve dos professores e funcionários das escolas


públicas do estado do Paraná em 2015, além de ter sido um fiasco, foi um
verdadeiro baile de máscaras. Nas manifestações, difícil saber quem era quem,
o que cada um estava defendendo em seu íntimo. E, principalmente, o que
comemoraram tanto os cerca de 10 mil servidores que se reuniram em uma
assembleia na Vila Capanema e decidiram pelo fim da greve e pelo retorno
humilhante ao trabalho na escola. Na última assembleia daquela greve, os
professores e funcionários das escolas públicas aplaudiram entusiasmados,
eufóricos e sorridentes a decisão, como se fosse uma grande vitória. E
voltaram à sala de aula com muitas perdas e um sorriso na cara como quem
diz “eu venci”. Uma acovardada postura política, já crônica e renitente, na qual
a maioria dos “educadores” da escola pública do Paraná insiste em se
aquartelar. Como o fizeram na greve de 2001, durante o governo Jaime Lerner.

Em 2001 eu trabalhava como professor na UEM (Universidade


Estadual de Maringá) e no colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, também em
Maringá. Estavam em greve as instituições estaduais de ensino superior e as
escolas estaduais de ensino fundamental e médio. Em poucos dias de greve,
as escolas estaduais decidiram retornar ao trabalho. E retornaram quase sem
nenhum ganho, enquanto a UEM e várias outras instituições de ensino superior
continuaram em greve por mais seis meses. Foram 170 dias de greve, a maior
paralização da história do país. Como resultado, as faculdades e universidades
estaduais conseguiram que fossem satisfeitas a grande maioria de suas
exigências. E as escolas não conseguiram quase nada. Estávamos no governo
Jaime Lerner. O tal governador não cedia aos apelos dos grevistas. Somente
202

depois de quase seis meses de paralisação, Lerner atendeu parcialmente as


reivindicações. Vale dizer que a greve só aconteceu porque durante todo o
mandato, Lerner manteve uma política que sacrificou a educação. Ele deixou o
governo no final de 2002. Vieram os anos do governo Roberto Requião. Nesse
período, se os investimentos não foram suficientes, ao menos, foram bastaram
para evitar qualquer ameaça de paralisação.

Há quem diga que o governo Requião foi o melhor para os


professores. Após dois mandatos de Requião, Beto Richa, genro de Lerner, foi
eleito, em 2010. Inclusive com o apoio de muitos professores e sua visão
política absolutamente caolha sobre a realidade. Catorze anos depois que as
escolas públicas estaduais do Paraná abandonaram a greve conjunta com os
trabalhadores do ensino superior e terminaram uma greve praticamente
natimorta, retornando às aulas “com o rabo entre as pernas”, a história se
repetiu. Os fatos tragicômicos destas duas greves da escola pública do Paraná
- a de 2001 e a de 2015 - me remetem à análise debochada de Marx sobre a
Segunda República Francesa. No primeiro parágrafo de ‘O 18 Brumário de Luis
Bonaparte’, Karl Marx lembra que Hegel disse que os fatos e personagens de
grande importância da história se repetem, “a primeira vez como tragédia, a
segunda como farsa”. Karl Marx se refere ao golpe de Estado dado por Luis
Bonaparte, sobrinho de Napoleão, anos depois de seu tio ter transformado a
França em um império. O golpe de Napoleão Bonaparte foi a tragédia. A
repetição do golpe, por Luis Bonaparte, foi a farsa. Vi a greve de 2001
acontecer como farsa e a greve de 2015 acontecer como tragédia. Se na
França tio e sobrinho se sucederam nos acontecimentos, por aqui tivemos
sogro e genro.

Digo, contudo, que é inegável a garra de um bom número de


professores que durante as greves vão à frente da batalha, como o fizeram os
que enfrentaram as bombas de gás lacrimogênio e as balas de borracha dos
policiais em Curitiba no dia 29 de abril de 2015. Mais de 240 pessoas ficaram
feridas na ocasião quando cerca de mil e seiscentos policiais, convocados pelo
governador Alberto Richa (PSDB), atacaram os manifestantes para impedir sua
entrada na Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) onde seria votado o
203

pacote de mudanças contra as quais a greve se insurgia. Foram disparadas


contra os professores desarmados exatamente 2.323 balas de borracha e
1.413 bombas de efeito moral. Uma bomba foi disparada a cada 24 segundos
num triste episódio da história do Paraná que ficou conhecido como “massacre
dos professores”. Ironia do destino, o acontecido se deu justamente na Praça
Nossa Senhora de Salete, também chamada de “Praça de Civilidade”. E eu fico
me perguntando, o que diria a santa sobre o ocorrido na praça que recebe o
seu nome?

No momento do ataque dos policiais estava em votação o PL


024/2015, um projeto de lei que envolve cortes de benefícios do funcionalismo
público, alterações na previdência social dos educadores e reestruturava os
fundos previdenciários do Estado. Por meio dela, o governo pretendia migrar os
pagamentos de 33.556 beneficiários com 73 anos ou mais de aposentadoria do
Fundo Financeiro, que é arcado com pelo Tesouro estadual, para o Fundo
Previdenciário, constituído pelas contribuições dos trabalhadores da ativa. Dito
de outro modo, o governo estadual deixaria de se responsabilizar sozinho pelo
pagamento das aposentadorias e repassaria parte da conta para os próprios
servidores da ativa. O Fundo Previdenciário possuía R$ 8 bilhões e tinha, antes
da mudança, capacidade para pagar os servidores por até 57 anos. A partir de
agora, a capacidade do Fundo Previdenciário será de até 29 anos. Na prática,
isso significa um confisco da poupança da Previdência do Estado para que o
governo possa pagar suas contas.

O entrave entre professores e governo do estado, capitaneado


pelo governador Beto Richa, resultou na mais grave repressão contra os
docentes do estado. Tivemos mais de 200 professores e trabalhadores na
educação feridos. As cenas daquele fatídico dia 29 de abril de 2015 fazem
lembrar uma operação de guerra. As fotos documentam muitos professores e
funcionários ensanguentados com marcas de bala no rosto e no resto do corpo.
Ao final, a proposta foi aprovada com 31 votos contra 20 e no dia seguinte, 30
de abril, a lei foi sancionada, significando uma dura derrota dos trabalhos da
educação pública perante o governo de Richa.
204

Como se esta derrota não bastasse, a Justiça Militar do Paraná


arquivou a denúncia oferecida pelo Ministério Público do Estado sobre a
truculência da operação policial e a responsabilidade do governo. Segundo o
veredito do juiz Misael Duarte Pimenta Neto, que analisou o caso, a polícia
“teve êxito” nos acontecimentos em que os líderes dos protestos agiram como
“facções radicais”. Portanto, não houve excesso. Então, o juiz Davi Pinto de
Almeida, da Vara da Justiça Militar do Paraná, determinou, em 23 de março de
2016, o arquivamento do inquérito militar contra os policiais envolvidos na ação
contra os profissionais da educação pública estadual na chamada “Operação
Centro Cívico”. Para ele, os militares que atuaram na operação cumpriram sua
missão de garantir a proteção ao patrimônio público e a segurança para que os
deputados estaduais realizassem a sessão. Portanto, em sua avaliação, não
houve dolo e nem excessos na conduta dos policiais. Como assim não houve
excessos se 248 pessoas desarmadas foram feridas pela polícia que usou
cassetetes, balas de borracha, spray de pimenta e bombas de efeito moral,
atiradas até com helicópteros?!

Justamente quando estávamos com a opinião pública toda a


nosso favor, professores e servidores da rede estadual de ensino do Paraná
decidiram encerrar a greve que já duravam 49 dias letivos. E os defensores do
fim da greve ainda disseram em uníssono que foram “até onde deu pra ir”. A
decisão foi tomada por uma assembleia, numa terça feira, dia 09 de junho de
2015. A assembleia reuniu cerca de 10 mil trabalhadores no Estádio da Vila
Capanema. “Pela educação pública, em respeito aos nossos estudantes,
dizemos aos paranaenses que a greve está encerrada. A luta continua no chão
de nossas escolas”, anunciou o sindicato em uma rede social. Todavia, existe
momentos nos quais não é possível simplesmente tapar o sol com a peneira
com o cômodo e hipócrita discurso de vitória de quem, na verdade, saiu
absolutamente derrotado da greve. O “pela educação pública” é outro discurso
hipócrita de quem só entra numa greve por conta dos salários. E, afinal, que
respeito é esse aos estudantes? Os enigmáticos defensores do fim da greve na
assembleia comemoraram com gritos e gargalhadas a vitória que tiveram em
sua proposta. Como num teatro fantástico e paradoxal, pareceu que os gritos
de vitória calados na garganta daqueles professores não podiam mais esperar
205

e se estatelaram boca afora entre risos e abraços catárticos, mesmo na


derrota. Comemoraram a sua derrota como se tivessem ganhado na loteria. E
eu me indago como esses indecifráveis professores pagarão, sem a devida
reposição salarial, a manutenção dos filhos nas escolas particulares?

Entre os professores que estavam na assembleia ouviam-se falas


inusitadas: “a greve não é o principal instrumento de luta, existem outras
formas”; “temos que acabar com a greve, os professores já estão cansados”.
Outros, ainda, começaram a ver “grandes vitórias”, como se estivessem tendo
algum tipo de delírio, ilusão coletiva ou alucinação. Mas, pior foi a vergonha de
ter que assumir, enquanto categoria, que estávamos saindo da greve, mas que
a luta continuaria na escola. Que luta é essa que nunca aconteceu? Pelo
menos não entre a maioria dos professores. Sem embargo, se procurarmos
bem, encontraremos esse tal engajamento do professor na luta contra a
exploração do homem pelo homem bem escondidinha nos empoeirados Planos
de Trabalho Docente (PTDs). Ou nos Projetos Político Pedagógicos (PPPs)
das escolas. E nos livros didáticos, repletos de apontamentos libertários e
pedagogicamente transformadores. Contudo, num universo onde 55% dos
professores brasileiros dizem possuir pouco contato com a leitura, para que
servem os PTDs, os PPPs e os livros didáticos? Já tive a oportunidade de ouvir
de uma professora de língua portuguesa na sala dos professores: “eu não
gosto de ler”. Fiquei sem reação. O que eu diria àquela criatura abominável?

Quantos de nossos professores saberão dizer quais são os


fundamentos da sociedade onde vivem? Quem sabe o que é mais valia, mais
valia relativa, reificação, indústria cultural, pós-modernidade, neoliberalismo? E
quem entende realmente o que as pedagogias do neoconstrutivismo e sua
proposta do “aprender a aprender” têm a ver com tudo isso? A grande maioria
dos professores não sabe nem ao menos a diferença entre idealismo,
positivismo e materialismo... E se não sabem, como podem ensinar a seus
alunos? Não podem. Não ensinam. Como poderíamos ver um desfecho
diferente para uma greve da categoria? Não podemos. E, então, podemos
pensar na educação escolar como mola propulsora de uma sociedade juta e
igualitária? Os professores acaso podem ensinar aquilo que não sabem? O
206

sonho parece cada vez mais distante. Quando poderemos ver nascer uma
sociedade onde os seres humanos não sejam minimizados à condição de
compradores de produtos efêmeros como se fossem essenciais? Será que
podemos sonhar ainda com uma escola que liberte os seus alunos de sua
condição de escravos felizes ou geradores das riquezas que serão
expropriadas pela classe dominante?

Uma pesquisa da Organização para a Cooperação e


Desenvolvimento Económico ou Econômico (OCDE) apontou que os
professores perdem, em média, 20% de suas aulas lidando com bagunça dos
alunos em sala de aula. Resultado: temos 15 milhões de analfabetos com
menos de 15 anos de idade; 95% dos alunos que concluem o ensino médio
não possuem conhecimentos adequados em matemática: quase 40% dos
universitários são analfabetos funcionais; 78,5% dos estudantes brasileiros
concluem o ensino médio sem conhecimentos básicos em língua portuguesa.
Além do que os resultados do índice de desenvolvimento da educação (ideb)
mostram que nossa escola vem reprovando de ano há muito tempo. O Ideb do
Ensino Médio não alcançou a meta e mantém o índice de 2011. O objetivo era
que chegasse a 4,3; mas o Ideb continua na casa dos 3,7. O grande fiasco é
que essa crise na educação escolar ocorre em meio a um rico contexto de
avanços tecnológicos e novas descobertas científicas (genoma humano,
nanotecnologia, desenvolvimento da informática). Em outros termos, enfiamos
mais de 42 milhões de crianças e adolescentes nas escolas públicas, mas
ensinamos muito pouco do que há para ser ensinado. E de forma bastante
entediante. A escola – no mais das vezes – se converteu no lugar onde
professores pouco interessados ensinam assuntos pouco interessantes a
alunos desinteressados. Não é difícil entender por que o aluno prefere
bagunçar a se comportar e aprender aquilo que o professor diz que ensina.

Os péssimos salários daqueles que trabalham na educação e a


crescente precarização material da escola pública poderiam ser minimizados
com uma greve que não abandonasse o campo no meio do jogo. Estou à
espera que uma greve desta venha a acontecer. Contudo, entre os professores
parece haver um esquecimento das demais reinvindicações tão logo são
207

satisfeitas algumas de suas reivindicações salariais. Satisfeitas algumas


poucas e modestas reivindicações salariais, eles retornam ao seu pauperizado
local de trabalho como se tudo estivesse resolvido. Ouso reafirmar que os
péssimos salários dos professores são os responsáveis pelo esvaziamento da
profissão daqueles profissionais mais talentosos. O lugar celebratório da
medonha tragédia em que a escola pública estrebucha e agoniza é a presença
preponderante de professores digamos “não tão talentosos”, aliada à enorme
escassez de recursos materiais adequados.

Sem embargo, a situação trágica da educação pública em nosso


país, testemunhado pelos altos índices de evasão, repetência, analfabetismo e
aprendizagem incompleta, não é um acidente de percurso, uma anomalia ou
irregularidade. É fruto de um processo meticulosamente pensado e arquitetado
pela classe dominante. Isso me parece até mesmo óbvio e incontestável. Uma
escola que esclarecesse o povo estaria totalmente desprovida de sentido numa
sociedade de classes, portanto, baseada na exploração da maioria pela
minoria. Ora, no mundo capitalista o governo é o Sancho Pança da classe
dominante. Seu fiel escudeiro. E é este governo que produz e coloca em
prática as chamadas políticas públicas, onde se inserem aquelas destinadas à
escola. Portanto, a escola não pode esclarecer o aluno. Um aluno esclarecido
seria altamente subversivo e revolucionário. A função social da escola pública
corre no sentido contrário. Sua preocupação é formar pessoas alienadas e
resignadas. Situação em que já se encontra a grande maioria dos professores.
Embora não diga isso, a qualificação que oferece é somente para que o aluno
possa se converter em mão de obra braçal barata e conformada. Jamais uma
formação intelectual, crítica e esclarecida.

De acordo com Kant, esclarecimento é a saída do homem de sua


menoridade. Menoridade esta que é a incapacidade de fazer uso do
entendimento sem a direção de outro indivíduo. Mas, se os professores ainda
não abandonaram sua menoridade intelectual - e sua adesão irrisória às greves
documenta isso -, como podem auxiliar seus alunos a fazê-lo? Se o
capitalismo pudesse abrir sua boca funesta e dizer algo sobre a escola pública
brasileira, certamente diria algo como: “a escola pública miserável que temos
208

vai muito bem, obrigado.” E, de fato, em alguns momentos tem dito isso. O
presidente Fernando Henrique Cardoso durante a cerimônia de entrega do
prêmio nacional do Finep de inovação tecnológica fez a seguinte afirmação:
"Se a pessoa não consegue produzir, coitado, vai ser professor. Então fica a
angústia: se ele vai ter um nome na praça ou se ele vai dar aula a vida inteira e
repetir o que os outros fazem”.

Em 2011, ao se pronunciar contra professores grevistas, Cid


Gomes, então presidente do Ceará, disse: "Quem quer dar aula faz isso por
gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e vai para o
ensino privado. Eles pagam mais, não?" O deputado Nelson Marquezelli (PTB-
SP), em dezembro de 2016, ao defender a proposta de emenda à Constituição
que limita os gastos públicos disse: “Tem que gastar o que tem. O contribuinte
brasileiro não aguenta mais pagar […]. Tem de cortar universidade, tem de
cortar. O governo vai se preocupar com o ensino fundamental. Quem puder
pagar vai ter de pagar. Meus filhos vão pagar”. Os manifestantes insistiram: “e
quem não tem dinheiro para pagar uma faculdade?” Ao que o deputado
retrucou: “Quem não tem não faz universidade. Não tem dinheiro não faz. Vai
estudar na USP, que é de graça. Vai estudar na USP”. O ministro da educação,
Mendonça Filho, do governo Temer, em julho de 2016, referindo-se ao
programa Ciência sem Fronteiras, que concedia aos pobres uma bolsa de
estudo para a graduação, fez a seguinte declaração: "Nem Finlândia, Suécia
ou Dinamarca, que são países riquíssimos e muito bem resolvidos na questão
de equidade, ofertariam um programa tão generoso como esse.” [...] "É um
programa caríssimo". O programa foi extinto pelo governo Temer.

Segundo a pesquisadora Otaíza de Oliveira Romanelli (2002), a


escola pública brasileira sempre foi orientada para a pauperização da
qualidade do ensino. Além de não oferecer vagas suficientes para suprir a
demanda efetiva, uma parte significativa daquelas crianças que conseguem
adentrar à escola acaba se evadindo dela. Dos que permanecem na escola,
uma parte considerável é excluída do aprendizado. Melhores salários e
melhores recursos materiais nas escolas atrairiam professores mais talentosos.
Obviamente, isso não nunca irá acontecer. A situação caótica da escola pública
209

será a mãe bastarda dessa nova sociedade onde uma a cada três pessoas
sabe ler, mas não é capaz de entender o sentido do que lê. O analfabetismo
funcional é o solo mais fértil para que pobres elejam políticos
intransigentemente comprometidos com os interesses dos ricos. Num mundo
onde muitos não sabem ler aquilo que escrevem, então, como poderão ler
criticamente a realidade social onde vivem?

Não podemos, disso estou convencido, jogar todos os professores


na vala comum do ostracismo político, da ignorância e da desfaçatez.
Felizmente, a hipocrisia e a mediocridade não são unanimes entre os
educadores. Muitos militantes valorosos tentaram reverter o desfecho
inapropriado que teve a greve de 2015. Mas, não foi possível lutar contra a
condução dada pela diretoria estadual da APP-sindicato e dos sempre
presentes - e em bom número - professores e funcionários conservadores. Isso
sem falar dos sempre equivocados componentes do bloco das “Maria vai com
as outras”. E dos eternos amedrontados. Ainda não sei medo de que. Juntos,
eles formam uma legião de fura greves. Enfim, perdemos. E já havíamos
perdido antes também, quando, na sucedânea infinda de fiascos dessa fatídica
greve, uma grande manifestação de professores foi convocada para se
concentrar em frente da Assembleia e do Palácio Iguaçu no dia 29 de maio de
2015, para protestar contra a agressão sofrida pelos professores pela Polícia
Militar um mês antes. Ocorre que a direção da APP-sindicato chegou a
anunciar que seria a “marcha dos 100 mil”, numa alusão óbvia à histórica
“Passeata dos Cem Mil” no Rio de Janeiro em 1968. Contudo, no auge da
manifestação, por volta das 11h30min, apurou-se a presença de cerca de mil
pessoas no Centro Cívico. A quantidade de manifestantes foi exatamente 10%
daquela prevista pela direção da APP-sindicato. Foi, deveras, um ano perdido,
sob o ponto de vista da luta sindical da categoria dos trabalhadores das
escolas públicas do estado do Paraná. E de ganhos fantásticos, sob o ponto de
vista patronal.

A greve da escola pública paranaense de 2015 acabou sem


alcançar os propósitos almejados. Saíram vitoriosos o governo, a grande mídia
e os fura greves. Saíram derrotados os professores e funcionários lutadores
210

que defenderam a greve e a escola pública de qualidade até seu último


suspiro. Uns poucos desmilinguidos, infelizmente. Em suma, saiu derrotada a
luta direta dos trabalhadores contra o capital, conquanto saíram-se vitoriosas a
“democracia” e a “liberdade” burguesas, cuja tônica contenta-se em aguardar o
que farão os nossos “iluminados representantes” no poder. Característica
lamentável dos tempos atuais, onde não há uma consciência majoritária que
lute pela introdução do elemento dignidade em nossa educação escolar. O
conformismo, embora não atávico, é uma verdadeira mancha que trazemos
desde a colônia. Essa falta de consciência está destemperando a alma do
profissional da educação e há de finalmente desumanizá-lo por completo.

Garantir um aprendizado motivador e de qualidade para TODOS


os nossos alunos, onde os conteúdos historicamente produzidos pela
humanidade sejam realmente democratizados, seria uma boa condição para
diminuirmos drasticamente as desigualdades sociais, combatendo a evasão e a
repetência nos sistemas de ensino e oportunizando aos nossos jovens que
completam o ensino médio emprego, autonomia crítica e renda. E não estou
discutindo agora nem igualdade e nem justiça sociais. Falo de empregabilidade
no interior da sociedade capitalista. Uma greve forte e combativa poderia
reivindicar tudo isso, desde melhores salários até melhores instalações para a
escola. São pleitos capitalistas, não socialistas. Mas, nem isso fazem os
professores. Os resultados vexatórios das nossas greves demonstram que nem
os salários têm motivado os professores a continuar numa greve até que todas
suas reinvindicações sejam concedidas. Como podem ensinar os alunos a
transformar a realidade onde vivem se nem eles, professores, sabem fazê-lo?
Não podem. E não ensinam. Com o tempo aprendi que os discursos
pedagógicos libertários e transformadores são apenas discursos. Mera retórica
sofista de hipócritas da educação escolar. Na realidade prática, a teoria tem
sido bem diferente. Na escola pública o verbo lutar se transformou em
substantivo.
211

Capítulo 13 – Escola: castelo da liberdade ou baluarte da tirania?

Foi em nome da liberdade, igualdade e


fraternidade que todas as infâmias se
praticaram. Era para emancipar o
mundo que Napoleão guiava um milhão
de matadores; é para fazer a felicidade
das respectivas pátrias queridas que os
capitalistas constituem as vastas
propriedades... organizam os poderosos
monopólios que sob nova forma
restabeleceram a escravatura antiga.

(Elisée Reclus)

A escola pública ficou irremediavelmente marcada na história da


minha vida. Passei três décadas tentando convencer meus colegas professores
sobre a necessária luta contra os elos coercitivos da sociedade capitalista.
Mas, infelizmente, na escola pública, no mais das vezes, impera a desfaçatez,
a alienação, a picardia, o medo e a indolência. Diante do imprescindível
engajamento do professor num ensino comprometido com a luta pela
transformação social o que se vê é o comodismo. Enquanto isso, nos gabinetes
do governo, aqueles que dirigem à distância os destinos da educação pública
se regozijam. E parecem mesmo agradecidos, como os predadores hão de ser
agradecidos às suas presas que se deixam abater.

A escola pública tem sido o lugar onde, não raro, professores


pouco interessados, em obediência ao que o poder hegemônico deles espera,

dirigem os rumos da mediocridade na educação. E quando os medíocres se


juntam em nome de algum ideal acontecem absurdos verdadeiramente
fantásticos e profundamente lamentáveis. Não tenho muita esperança,
portanto, de que o que estou escrevendo encontre o devido acolhimento por
parte de um número considerável de colegas: os que sentem a dor do aluno da
escola pública, como se fora sua própria dor. A dor do aluno desvalido,
destituído de quase tudo, ultrajado e humilhado por um sistema econômico
nefasto e perverso. Certamente, muito poucos serão aqueles mais indignados
212

que farão coro às minhas palavras e se levantarão contra a escravidão perante


o capital e a degradação social e humana diante dos interesses tiranos e

egoístas que se infiltram, desde sempre, de forma viral na escola pública.

Por 26 longos e árduos anos observei aquilo que os professores


são capazes de fazer a si mesmos, aos seus colegas e aos seus alunos. Na
escola, vi e convivi com o sofrimento de muitas pessoas. Eu estava entre eles.
Vi suas revoltas, suas lutas inglórias, seu acanhamento, sua covardia, sua
mentira. Vi como se orgulharam de seus grandes pedagogos, mas não de si
mesmos. Noutras vezes vi o contrário, como se orgulham de si mesmos sem
um mínimo de referencial teórico para suas práticas pedagógicas tristemente
equivocadas. Vi as homenagens e reverencias que os professores concederam
a seus algozes no poder e o modo como perseguiram os justos e os idealistas.
E como massacraram a curiosidade, a imaginação, a crítica, a comunicação e
o movimento corporal em seus alunos. Vi colegas gentis, atenciosos e
comedidos chegarem ao poder como diretores de escolas e logo se
transformarem em tiranos cruéis e sádicos, ainda piores do que os
governantes, a quem representaram dignamente na escola. Quem poderia
prever que aqueles que teriam nas mãos a missão sagrada de proteger a
educação pública seriam os mesmos que iriam, silenciosamente, se ocupar, de
um lado, de garantir norte à educação domesticadora dos alunos? E quem diria
que eles se incumbiriam da difamação e da perseguição covarde daqueles
colegas desviados dos trágicos rumos tomados pela escola pública?

As circunstancias me mostraram a necessidade de revelar os


bastidores hipócritas da escola pública e sua secularizada e desastrosa tarefa
de reproduzir o sistema onde existe, ainda que diga fazer exatamente o
contrário. Sua impertinente insistência em transformar crianças saudáveis em
adultos obedientes, emocionalmente mutilados e moralmente insanos. Outros,
revoltados, os tantos ditos alunos “indisciplinados”, cegos, perdidos, sem saber
contra quem dirigir a sua revolta. Verdadeiros rebeldes sem causa, que em
outras circunstancias poderiam bem dirigir suas energias em prol da
transformação da sociedade num lugar digno para todos. Os professores
poderiam se aproximar deles como amigos e conquista-los para a luta social.
213

Mas, optam por se tornar seus inimigos. Professores desejosos da obediência,


sua e do aluno, ajustados, portanto, a um sistema que preza, para além de
suas consciências danificadas, a injustiça e a desigualdade. Esses são os
nossos queridos professores.

A escola pública existe num sistema bem entrincheirado e seguro,


que envenena lenta e capciosamente o educador honesto e idealista e o alicia
de forma secreta e ignorada a servir em suas fileiras. Um sistema que
persegue, destrói e torna inexplorada a riqueza libertária sonhada por tantos
educadores e alunos, que em outras circunstancias estariam dispostos à
mudança verdadeira. O caso do pedagogo Francisco Ferrer y Guàrdia é
sintomático da forma com que nosso sistema social tem tratado aqueles que se
rebelam contra ele. No dia 13 de outubro de 1909, Ferrer y Guàrdia foi fuzilado
nos fossos da fortaleza de Montjuïc, em Barcelona. Ele, talvez, tenha sido o
único educador condenado à morte e fuzilado por conta de sua prática
pedagógica libertária. Sem embargo, não o único a ser perseguido. A acusação
feita contra ele foi a de incitar as revoltas populares em Barcelona, conhecidas
como "Semana Trágica", quando protestos violentos contra a guerra no
Marrocos culminaram na queima de igrejas e conventos. Contudo, não é difícil
concluir que a criação de sua Escuela Moderna de Barcelona, em 1901, havia
provocado os conservadores além do que eles podiam suportar. Sua
pedagogia se insere entre aquelas experiências escolares desenvolvidas
segundo a concepção de que é a coletividade, não o indivíduo, a grande
mestra.

Ferrer y Guàrdia acreditava que o futuro é construído pela escola:


será um futuro de dominação e exploração se educarmos segundo os
princípios da dominação e da exploração; mas, poderá ser um futuro de
liberdade, se tivermos a coragem de educar contra os princípios da sociedade
onde vivemos. Ele se postou firmemente contra a monopolização do
conhecimento por interesses excludentes, sejam eles religiosos ou na forma
laica do Estado burguês. Para ele:

O futuro há de brotar da escola. Tudo que for edificado sobre


outra base está construído sobre areia. Mas, por desgraça, a
214

escola pode tanto servir de cimento para os baluartes da tirania


quanto para os castelos da liberdade. Deste ponto de partida
podemos arrancar tanto a barbárie quanto a civilização
(FERRER Y GUÀRDIA, 1912, p. 22).

Ferrer y Guàrdia, já no final do século XIX e início do século XX,


tratava a educação como uma questão política. Os princípios de sua “Escola
Moderna” pretendiam combater os dogmas religiosos na educação, as
desigualdades sociais, os preconceitos e a visão militarista. Também
considerava necessário educar as mulheres da mesma forma que os homens,
numa época em que ninguém cogitava isso. Para ele, a educação escolar
deveria se opor à pedagogia tradicional, transmitindo democraticamente os
conhecimentos científicos produzidos pela humanidade de modo que as
pessoas pudessem se preparar para uma sociedade equitativa. Além disso,
propunha abrir a escola aos domingos, oferecendo não só aulas de história
geral, ciências e artes, mas um espaço aberto para que a comunidade pudesse
discutir as lutas pelo progresso. Essas aulas poderiam ser frequentadas pelas
famílias dos alunos (FERRER Y GUÀRDIA, 1912).

Ferrer y Guàrdia chamava a atenção para os perigos da mentira


da escola pública, no que se refere à sua promessa de formar indivíduos
críticos e livres. Desmascarava as verdadeiras intenções da classe dominante,
que jamais pretendeu formar indivíduos autônomos, com vontades próprias e
questionadores. Ele não acreditava que a escola mantida pelo governo
pudesse criar uma forma pedagógica que revolucionasse o sistema social e
melhorasse a vida dos trabalhadores. Para ele, a escola pública tradicional
objetivava ensinar os filhos dos pobres a aceitar a estrutura social tal como ela
é. A educação escolar oficial somente permitiria melhoria de vida dentro da
classe social a que o indivíduo pertence (FERRER Y GUÀRDIA, 1912).

Francisco Ferrer y Guàrdia nasceu em 1859 num vilarejo da


Catalunha. Aos 14 anos, autodidata, estudou as ideias republicanas. Aos
poucos, ligou-se a grupos de livres pensadores e se tornou republicano,
ateu e anticlerical. Trabalhou na Companhia de Estradas de Ferro, onde
organizou uma biblioteca popular nos trens. Por essa época, ligou-se a Ruiz
Zorrilla, um líder republicano. Com o fracasso de uma insurreição
215

republicana, exilou-se em Paris onde se aproximou de pensadores e


militantes anarquistas, conhecendo o pedagogo francês Paul Robin, que fora
secretário de Karl Marx na direção da Associação Internacional dos
Trabalhadores antes de aproximar-se politicamente do anarquismo.

Na França, Ferrer y Guàrdia recebeu uma herança de uma ex-


aluna, que se encantara com suas ideias. E, então, retorna a Barcelona,
onde funda, em 08 de setembro de 1901, a sua “Escuela Moderna”, o
extremo oposto da escola em que havia estudado e que tanto abominava. O
ensino nas escolas tradicionais da época era baseado nos dogmas
católicos, com os alunos confinados entre quatro paredes, em condições
insalubres e sem higiene. A aprovação do aluno era obediente a um sistema
meritocrático que premiava os acertos e castigava as falhas. De viés, a
“Escuela Moderna” era um local amplo e arejado, com salas bonitas e
decoradas e pátios amplos para as frequentes atividades ao ar livre. Além
disso, eram também frequentes as aulas de campo, com visitas às fábricas
e passeios pela praia e demais lugares pitorescos do local. Os livros que
seriam utilizados em sua escola eram produzidos em uma editora própria, a
“La Editorial”, pois Ferrer y Guàrdia acreditava que os livros disponíveis
eram inadequados ao seu projeto pedagógico.

O conhecimento é de todos e socialmente se deve a todo o


mundo. Por-lhe preço, reserva-lo como monopólio dos
poderosos, desejar uma sistemática ignorância aos humildes e,
o que é pior, dar-lhes uma verdade dogmática e oficial em
contradição com a ciência para que aceitem sem protestar seu
ínfimo e deplorável estado, [...] é uma indignidade intolerável,
e, por minha parte, julgo que o mais eficaz protesto e a mais
positiva ação revolucionária consiste em dar aos oprimidos,
aos deserdados, e a quantos sintam impulsos justiceiros, esse
conhecimento sobre o que os oprime, determinante das
energias suficientes para a grande obra da regeneração da
sociedade (FERRER Y GUÀRDIA, 1912, p. 60).

Obviamente, sua forma pedagógica foi tida como uma grande


ameaça ao sistema social dominante em sua época. E o seria hoje também.
Este educador bem intencionado foi, finalmente, preso, condenado e fuzilado
como instigador da revolta entre a juventude. Sua existência foi banida dos
livros de história. Como foi banida dos livros a experiência de educação
216

libertária de Vera Schmidt na Rússia soviética. Assim como pouco fala a


história oficial sobre as ideias revolucionárias do psicólogo Wilhelm Reich,
preso e assassinado na cadeia pela CIA, nos EUA. Ou do trajeto político e
revolucionário de Che Guevara, também preso e assassinado pela CIA, na
Bolívia. Ou das ideias de Jose Martin, líder revolucionário cubano. As páginas
esquecidas da história estão abarrotadas de lutadores idealistas que a história
oficial se incumbiu competentemente de esquecer.

Paul Robin, amigo e colaborador das ideias pedagógicas


desenvolvidas por Ferre y Guàrdia, é tido como o primeiro pedagogo libertário
por ser o primeiro educador a materializar as teorias educacionais baseadas
nos princípios formulados por Pierre-Joseph Proudhon. Ele sistematizou o seu
conceito de “educação integral” baseado na ideia de que três práticas habituais
das escolas, muito nocivas, deveriam ser suprimidas: a disciplina, os
programas e as classificações.

A disciplina deverá ser suprimida, pois causa dispersão e


mentira entre os alunos. Os programas deveriam ter o mesmo
destino, porque anulam a originalidade, a iniciativa e a
responsabilidade das crianças. Por fim a escola deverá deixar
de ser fonte de comportamentos baseados na rivalidade, na
inveja, e no rancor, e, para tanto, deverão ser abolidas as
classificações destinadas a distinguir os alunos entre si
(LUIZETTO, 1987, p. 49).

É preciso que não se confunda o termo "educação integral"


utilizado pelas políticas públicas educacionais brasileiras para se referir à
permanência do aluno no interior da escola em "tempo integral" com a
formação integral dos alunos idealizada por Robin. Seria oportuna uma reflexão
sobre as relações entre o tempo de permanência do aluno na escola e a
qualidade do trabalho educativo que se realiza dentro dela. Bem como seria
oportuna uma reflexão sobre a função que a ampliação do tempo de
permanência do aluno na escola ocupa na ampliação da exploração de mão de
obra da classe dominada, que agora, sob tutela da bandeira da Revolução
Sexual, exige o ingresso também da mulher no mundo do trabalho.

Talvez, um propósito adequado para aqueles que se debruçam


sobre o estudo das possibilidades de se edificar uma pedagogia libertária
217

seja, enfim, problematizar os sentidos e significados de se edificar uma


escola em "tempo integral" com a formação integral dos alunos . Para que
possam ter o maior contado possível com as ideias libertárias, distante dos
elos coercitivos da sociedade onde existe. E, no afã desta tarefa, me parece
indiscutível a relevância do estudo destas formas pedagógicas que
emergem dos séculos XIX e XX marcadas pela defesa intransigente da
autonomia do aluno, tal como nos moldes pensados, dentre outros, por
Ferrer e Robin. Esta tarefa, contudo, é muito ampla e não poderá ser feita
aqui. No presente trabalho nos limitaremos à análise de algumas
considerações referentes à educação libertária como material de análise
comparativa com a situação da escola pública brasileira atual, que constitui o
principal objeto deste estudo.

Tal como Ferrer y Guàrdia, a quem influenciou profundamente,


Robin e seu espírito crítico e rebelde sempre foi um incômodo para as
instituições. Expulso da Bélgica, em 1869, passou pela Suíça e se uniu a
Bakunin, sendo um dos redatores do texto do IV Congresso da AIT
(Associação Internacional dos Trabalhadores), realizado na Basiléia e que
aprovou a “educação integral” de Robin como proposta da entidade. Todavia,
nos embates entre o socialismo e o anarquismo no interior da AIT o socialismo
sagra-se vitorioso. Fiel às ideias anarquistas, Robin é expulso da AIT em
outubro de 1871, o que o leva a ingressar definitivamente no movimento
anarquista.

Paul Robin colocará em pratica suas ideias de educação libertária


ao assumir a coordenação de um Orfanato público na França, o Orfanato
Prévost de Cempuis. Em suas palavras: “Tinha perto de quarenta anos quando
tive a grande felicidade de me dedicar com entusiasmo à tarefa dos meus
sonhos” (ROBIN, 1981). Como toda ideia ou prática revolucionária, o Orfanato
de Cempuis não esteve imune à perseguição dos conservadores e reacionários
da sociedade francesa, recebendo ataques dos católicos e das autoridades
escolares. Robin dirigiu a instituição, na cidade de Cempuis, de 1880 a 1894,
data em que é destituído após uma campanha de difamação, uma das
principais, mais frequentes e menos aceitáveis armas dos mal intencionados. A
218

coeducação entre os sexos, praticada por Robin em seu “ninho de liberdade” e


tida na época como imoral e perigosa aos princípios sociais, se tornou o alvo
fácil dos críticos da educação libertária oferecida no Orfanato Prévost. E em
1894 o ministro da educação exonerou Paul Robin do cargo de coordenador do
orfanato. Como cita Lipiansky (2007), a exoneração de Robin de seu Orfanato
foi assim noticiada no Jornal “Libre Parole”: “O Sr. Robin, diretor da porcaria
municipal de Cempuis, foi exonerado ontem em pleno Conselho de ministros. É
o desmoronamento do sistema pornográfico da co-educação dos sexos”.

Após sua destituição do orfanato, Robin retornou para a Bélgica


onde lecionou pedagogia na Universidade de Bruxelas (DOMMANGET, 1974,
p. 389). Em 1896, fundou a Liga de regeneração humana, influenciada pela
chamada Teoria populacional neomalthusiana, que terá uma existência
conturbada devido a embates ideológicos de seus membros. No ano de 1895 e
de 1903 a 1905 lançou o boletim La Education Integrale. E escreveu, nesse
período, inúmeros artigos pedagógicos na Revue Generale de Bibliographie
Française. Em 1905, apoiou a criação de “La Rouche” (A Colmeia), do
pedagogo libertário Sebástien Faure. Em 1907, apoiou Ferrer y Guardia em
sua Escola Moderna de Barcelona. E participou da criação da Ligue
Internationale pour L èducation Rationnelle de L Enfance (Liga Internacional
pela Educação Racional e a Infância). Em 1908, tentou, sem sucesso, criar na
Nova Zelândia uma comunidade ideal, baseada na liberdade. Viveu seus
últimos anos de forma humilde e solitária em um meio muito modesto, mesmo
com imensas relações internacionais. E, então, doou seu corpo à ciência e
suicidou-se por envenenamento em 1912, o que segundo Antony (2011), foi
seu “último ato de autonomia que havia legitimado anteriormente em um artigo
importante, fria e cientificamente intitulado Technique du Suicide ( Antony,
2010, p.93).

Há muito, o pesado fardo das campanhas difamatórias e das


condições de trabalho cada vez mais precárias têm um efeito devastador sobre
a educação escolar. Das promessas de redenção social via educação
sobraram apenas as crescentes doenças dos professores, o aniquilamento do
ensino, os mecanismos de marginalização, exclusão e discriminação das
219

pessoas que não se enquadram nas regras ditadas por aqueles que, há
séculos, detém o poder econômico e político na sociedade capitalista.

Os poucos incautos professores que iniciam sua carreira


pretendendo ensinar seus alunos a ler criticamente o mundo onde vivem, em
pouco tempo transformam-se naqueles que se contentam em pretender que
seus alunos consigam ler ao menos aquilo que eles mesmos escrevem. Não
por acaso, os professores perfazem uma categoria de trabalhadores doentes.
De acordo com uma pesquisa nacional feita pela CNTE, 30,4% dos
entrevistados têm problemas de saúde, 22,6% estão permanentemente em
licença, 43,7% já sofreram alguma cirurgia. Em São Paulo, uma pesquisa feita
em 2010 pela Apeoesp (sindicato estadual dos professores) constatou que
48,5% sofrem de estresse, 36% têm problemas de voz, 26,6% sofrem de
depressão, 23,5% são hipertensos e mais de 40% sofrem da Síndrome de
Bournout. Todos com diagnóstico médico. E mais de 40% deles exercem outra
atividade profissional para complementar sua renda. Como um projeto de
educação de qualidade – seja lá o que este termo queira significar – pode dar
certo?

Talvez esteja no cansaço pela dura jornada e pelo pesado fardo


que carrega a razão pela qual o professor da escola pública se mostre tão
apático quando o assunto é a conscientização política de seu aluno quanto à
necessidade de transformação social. Talvez não lhe reste outra opção além
do medo de sofrer ainda mais. E este medo o tenha levado a mostrar seu
repúdio, sua indiferença e seu dissenso em relação ao socialismo, ao
comunismo, ao anarquismo, às greves e ás lutas sociais por igualdade e
justiça. É por isso que tantos dizem e fazem tantas coisas estúpidas na
educação: porque, a menos que sejam bem preparados, os professores não
fazem a menor ideia do que fazer com as teorias pedagógicas que se propõe à
transformação social. Seu foco há muito se perdeu no "êxtase da hipocrisia
escolar".

Ler, para o professor tacanho e modesto, em seu desempenho


profissional tacanho e modesto, é muito difícil. A leitura exige um hábito mental
que, paradoxalmente, desapareceu entre grande parte dos professores.
220

Demanda silêncio, isolamento e uma concentração prazerosa diante do


enigmático, do que está por vir, do novo e inesperado. É difícil, para o
professor médio, confrontar um livro maduro, inteligente e adulto.
Especialmente um livro que cutuca nossos paradigmas e depõe nossas
certezas. E, então, hoje o professor afirma sua aversão à leitura como se fosse
um privilégio, uma trivialidade. Sob a égide modista do “faz o que quer”, acaba
colocando a culpa de sua aversão à leitura no próprio livro. Ele deveria ser
motivador. Se não consigo realizar uma coisa, então a culpa é da coisa. E,
assim, forja-se um deserto árido de conhecimento onde não há mais critérios,
só opiniões. De suas mentes mofadas e acomodadas em berço esplêndido
parece ser possível ouvir o mesmo que disseram difamatoriamente os mal-
intencionados em episódio político relativamente recente: “não temos provas,
mas temos convicções”.

Explorar a consciência e a liberdade em seus alunos foi a grande


missão de Ferrer y Guàrdia e Paul Robin no final do século XIX. Expandir o
sentido do que é educar para a autonomia e do que há por trás dessa ideia.
Isso não interessa ao sistema. E nem aos tantos professores por ele já
catequizados. Nas escolas, estamos diante de um estreitamento da
consciência e da liberdade para a autônoma do educando. Ainda assim,
projetos pedagógicos libertários ecoam do passado nos ouvidos dos tantos
indignados e inconformados que, como eu resisti, ainda resistem. Seu
galardão, como foi o meu, como foi o desses pobres pedagogos libertários,
provavelmente será a doença, a morte e a estranheza dos autoritários,
estúpidos e hipócritas.

Mas, aos inconformados não resta outra opção além do repúdio e


da luta. Eu, hoje distante da mesquinhez e da hipocrisia da vida escolar, sigo
escrevendo em modestas palavras o que testemunhei na escola pública, como
contribuição aos que nela ainda lutam e à memória daqueles bravos que do
passado ainda nos fornecem inspiração. Que estas palavras não sejam
escritas em vão!
221

Capítulo 14 - Escolas ou prisões?

Eduquem as crianças, para que não


seja necessário punir os adultos.

(Pitágoras)

As palavras do grande filósofo e matemático grego parecem


ecoar, irrefutáveis, de um passado com mais de dois mil e quinhentos anos.
Contudo, ultimamente tenho me sentido pouco à vontade quando essa tal
educação, especialmente a escolar, é colocada como a prevenção, por
excelência, da criminalidade. Parece somente uma tentativa do medo dos ricos
de se prevenir contra a revanche delinquente dos pobres. Uma vez que a
escola não cumpre mesmo sua decantada função de educar para a liberdade.

Vivemos num mundo cada vez mais cheio de medo. Há medo pra
tudo: medo de lugares fechados, medo do escuro, medo de perder o emprego,
medo de ladrão, medo de morrer, medo de polícia, medo de sair de casa e
medo de ficar em casa. A não ser que essa casa fique num condomínio
fechado. E há quem tenha medo que o medo das pessoas acabe. O medo
constrói grades que cerceiam e separam. Enquanto a esperança constrói
pontes. Mas, se olharmos direito, veremos que este é um mundo cada vez
mais abarrotado de grades e escasso de pontes. Estamos em um mundo feito
de grades nas prisões, nas fábricas, nas casas e nas escolas. Grades para
proteger, para afastar os outros, proibir o contato ou impedir que escapem.
Mas, nós não fomos feitos para caber entre grades, especialmente entre
grades construídas para domesticar, docilizar e padronizar pessoas. O discurso
“politicamente correto” das grades da escola pública tem sido há muito tempo
um crime contra os seus alunos, contra a originalidade e a dignidade das
crianças pobres.
222

Não somente as escolas públicas têm se transformado em


lugares com muros altos, cercas elétricas, portões bem guardados e grades,
mas também as escolas particulares. Ocorre que no caso das escolas públicas,
os muros e grades servem para impedir que os pobres saiam e no caso das
escolas particulares, servem para impedir que os pobres entrem. A função
primordial desempenhada pelos muros das escolas particulares também pode
ser encontrada num tipo novo de clausura urbana: os chamados condomínios
fechados. A tendência cada vez maior em transformar as casas dos ricos em
guetos residenciais revela a transformação da cidade de local de encontro e
igualdade em local de confronto e antagonismo. Seguros da dita “violência
urbana”, os filhos dos ricos crescem nesses condomínios e escolas particulares
que se transformaram numa espécie de criadouro de jovens preconceituosos
contra pobres. Os muros e grades das escolas, prisões e condomínios
residenciais são estruturas erigidas em nome da competitividade e do
individualismo capitalista, que negam o diferente e enaltecem o “diferenciado”,
num mundo pós-moderno onde a única diferença que importa é o poder
econômico.

Espaços específicos de confinamento, paredes grossas e


reforçadas, isolamento do meio urbano, uso de uniformes, corredores longos
com vigilância constante, muros imponentes, sirenes, portões reforçados e
muitas grades. Esta poderia ser a descrição de uma prisão, mas também
descreve a maior parte de nossas escolas. Especialmente as públicas. A
escola pública é um ambiente parecido com uma prisão não somente em sua
estrutura física, mas também em sua vigilância constante, em seus
mecanismos disciplinares e em sua organização hierárquica. A escola pública
exerce uma pressão constante sobre os alunos para que todos prestem
atenção nos estudos, fiquem em silêncio e façam suas tarefas, em respeito às
normas da escola. Eis a parte especial de um sistema educacional que é parte
de um sistema social maior, punitivo, com função normatizadora. Normas que
se estabelecem como princípio de coesão social e ordem, para que tudo
continue do jeito que está. E que demandam um conjunto de mecanismos
coercitivos, donde se destaca a meritocracia da nota e da aprovação para a
serie subsequente. Se pudermos tomar de empréstimo as palavras de Michel
223

Foucault, veremos que a escola, servindo-se fartamente desses mecanismos,


“aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui
essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2004,
p. 126).

É um sistema disciplinar bastante antigo, iniciado na época dos


colégios clérigos medievais. Contudo, foi somente a partir do século XVIII que
foi aperfeiçoado e adaptado para servir ao exército, às prisões, às indústrias,
aos manicômios, aos asilos e, finalmente, às escolas. A disciplina escolar faz
uso de técnicas para a transformação das crianças pobres em pessoas
obedientes, capacitadas para satisfazer as demandas do capitalismo. Dentre
essas técnicas se destaca o exame (provas e trabalhos) que possibilita
classificar o aluno como bom ou problemático. Conforme cita Foucault:

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da


sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma
vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece
sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são
diferenciados e sancionados. É por isso que em todos os
dispositivos de disciplina o exame é altamente ritualizado. Nele
vêm se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a
demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No
coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição
dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que
se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de
saber assume no exame todo o seu brilho visível (FOUCAULT,
2004, p. 164-165).

No sistema capitalista contemporâneo, estamos submetidos a um


tipo de poder disciplinar que molda e normaliza condutas. É um sistema insano
que tem como instrumento principal a vigilância permanente e punitiva. Que
classifica, julga, rotula e condena. Um sistema que tem na escola pública um
importante instrumento para a transformação dos filhos da classe trabalhadora
em pessoas dóceis e úteis, para que sejam adequadamente aproveitados na
vida adulta como mão de obra obediente. Os alunos que não se adequam, que
não se submetem, são separados, carimbados e estigmatizados como
indisciplinados, dignos de um sentimento misto de piedade e repulsa. Logo
essas crianças se tornam repetentes demais e se evadem da escola, indo
compor aquele vasto exército de jovens analfabetos que no Brasil soma 14
224

milhões com 15 ou mais anos de idade. O que equivale dizer que quase 10%
da população brasileira não sabe ler ou escrever.

Aqueles alunos desviantes, os indisciplinados de sempre, aqueles


que não se submetem, serão os futuros adultos que irão desafiar a ordem
social, tipo de condição em que brota exuberantemente o banditismo
endêmico. Especialmente naqueles países pobres que, como o Brasil, sofrem
com a miséria causada pela má distribuição de renda e pela extorsão que os
ricos fazem de forma legalizada e descarada sobre os pobres. Como foi o caso
de um perdão fiscal e previdenciário, na casa de sete dezenas de bilhões de
reais, com que Temer, presidente do Brasil, presenteou municípios,
empresários e grandes produtores rurais, em maio de 2017. Temer, motivado
por tenebrosas negociatas políticas, faz o papel de um Robin Hood às avessas,
ou seja, retira do pobre para dar ao rico. Isso mesmo com seu discurso das
contas públicas quebradas como justificativa para o total aniquilamento das
políticas públicas e das conquistas trabalhistas com suas famigeradas
reformas. Este tem sido, ainda que muitos professores não queiram, não
aceitem ou não percebam isso, um dos tantos efeitos colaterais da coerção
disciplinar na escola pública no interior da sociedade de classes. Um antídoto
da burguesia contra a subversão dos pobres.

Há grades que prendem pássaros em gaiolas, leões em jaulas e


criminosos em cadeias. Do ponto de vista daqueles que as grades cerceiam, as
grades nunca são boas. Não são boas as grades das gaiolas, que existem para
que os pássaros não possam voar. Mas, sobretudo, não são boas as grades
que confinam nossas crianças nas escolas públicas, parecendo também querer
impedi-las de voar. O fato é que aquele que conclui o ensino médio ficou preso
na escola quatro horas por dia, cinco dias por semana, por no mínimo doze
anos. E ocupou um lugar restrito que lhe era destinado com severa privação de
movimento e comunicação. E onde os conteúdos lhe eram empurrados goela
abaixo, por uma pedagogia oca e inconsistente que lhes negou a
espontaneidade dos gestos e atitudes mais naturais para a sua idade.
Seguramente, o conhecimento que a humanidade foi capaz de produzir até
hoje é o grande legado de nossos antepassados para as gerações futuras.
225

Mas, na escola pública, nossas crianças não estão recebendo a vasta gama de
conhecimentos que lhe foi legado. Há um divórcio entre os interesses dos
alunos e os da escola pública, tal como ela se apresenta hoje. O que não
significa que os conteúdos escolares sejam alheios aos interesses da criança e
do jovem de hoje. Significa que a curiosidade e a imaginação, que definem tão
marcadamente a infância e a adolescência, não estão sendo devidamente
utilizadas como estratégia pedagógica para que os alunos descubram a relação
entre o conhecimento escolar e o mundo intangível que o espera.

Sem embargo, talvez fosse tarefa do educador, numa escola com


as grades arrancadas, contar histórias aos alunos sobre os conhecimentos que
lhes serão passados. Aprender fórmulas desconectadas da vida prática do
aluno pode ser bem enfadonho, como a do teorema de Pitágoras, tido como
um dos alicerces da matemática, onde “em qualquer triangulo retângulo, o
quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos
comprimentos dos catetos”. Assim, a utilização do Teorema de Pitágoras pelo
professor como via de acesso para a resolução de problemas ou para a
aprendizagem de outros conceitos tem sido acompanhada de uma grande
frustração por parte dos alunos. O que, não raramente, acaba dificultando o
trabalho do professor e, jogando o aprendizado de uma boa parte dos alunos
para um beco pedagógico sem saída. Mas, se pudéssemos mostrar ao aluno
que o teorema de Pitágoras teve uma necessidade de ser criado; se
pudéssemos ensinar este e outros conteúdos aos alunos de forma mais
contextualizada, mais integrada com outras disciplinas e com a realidade,
talvez poderíamos ter um aprendizado mais agradável, mais criativo e mais
humanizado. Esse tipo de ensino não é nem um pouco desinteressante para a
criança, muito pelo contrário, convida ela para experimentar o fascínio humano
diante da existência. É o que nos fez e o que continua nos fazendo humanos.
Todavia, os professores desconhecem isso e, baseados nos livros didáticos,
ensinam que Pitágoras foi quem descobriu a famosa relação: a2 = b2 + c2. E
pronto! O que isso diz à curiosidade da criança? Nada! Absolutamente nada.

Na escola pública que vi e vivi os alunos têm aulas sobre biologia,


língua estrangeira, química, física, história, arte, geografia, matemática,
226

educação física e língua portuguesa. Mas, não aprendem nada sobre gestão
pública ou sobre que regras de convívio social ele será obrigado a seguir na
vida adulta e nem quais direitos pode exigir. Parece que ouço, agora mesmo,
alguns colegas que do passado ainda me lançam olhares tortos e suas
resistentes ponderações às inovações: “lá vem ele de novo querendo trazer
mais serviço pra gente”. Ou ainda: “não temos tempo nem para trabalhar o
conteúdo, quanto mais para ficar inventando essas novidades”. Mas, são
justamente essas inovações que nos dão o prazer de ensinar e ver que os
alunos realmente aprenderam e nos devolvem nosso esforço sob a forma de
sorrisos de agradecimento.

Nas escolas deveríamos contar mais histórias às crianças, como


faziam nossos avós num passado já um tanto distante. Só que nas escolas
seriam histórias sobre as ciências, sobre a matemática, sobre a literatura,
sobre as artes, sobre as atividades físicas. Porque pouco poderá um dia haver
na escola algo mais instigante que desvendar a aventura humana. É preciso
somente imaginação, curiosidade e inquietude. E as brincadeiras maliciosas
que proliferam na escola entre os alunos atestam já a sua existência. Talvez,
imaginação, curiosidade e inquietude sejam ingredientes escassos entre os
professores. Porque o mundo pós-moderno se incumbiu de esfacelar isso
neles. E assim, sob a tutela do cárcere permanecem os professores numa
escola que não os encanta. E permanecem as crianças com seus sonhos
desfeitos, com sua criatividade obstruída e sua imaginação esfacelada. Sob a
tutela do cárcere estivemos todos nós, aprisionados por uma educação escolar
coercitiva, produtora de gente dócil a ser utilizada como consumista e
trabalhador obediente.

Se há diferenças funcionais entre os muros das prisões e os


muros das escolas particulares, há, por outro lado, um sem número de
semelhanças entre os muros das prisões e os muros das escolas públicas. Na
prisão os muros altos e as grades não deixam os presos escaparem, na escola
pública os muros altos e as grades não deixam os alunos escaparem; na
prisão, vez ou outra, os presos pulam o muro e fogem, na escola pública, vez
ou outra, os alunos pulam o muro e fogem; na prisão existem filas pra tudo, na
227

escola pública também; na prisão os mais fortes intimidam e humilham os mais


fracos, na escola pública também; na prisão existe a ala dos presos perigosos,
na escola pública há as turmas c e d, dos repetentes; na prisão há o preso de
confiança, na escola pública há o líder da turma; na prisão a pessoa sai por
bom comportamento, na escola pública a pessoa ganha nota por bom
comportamento; na prisão não existe liberdade, na escola pública também não;
na prisão não se pode usar telefone celular, na escola pública também não; na
prisão as celas são superlotadas, na escola pública as salas são superlotadas;
na prisão há o delegado, na escola pública o delegado se chama diretor; na
prisão, se finge que corrige, na escola pública se finge que ensina; na prisão os
presos se dividem em facções rivais, na escola pública os alunos se dividem
em grupos (as chamadas panelinhas), muitas delas rivais; na prisão há o preso
que tem dinheiro e compra drogas, na escola pública há o aluno que tem
dinheiro e compra lanche na cantina; na prisão o uso de uniforme é obrigatório,
na escola pública também; na prisão a comida é ruim, na escola pública, a
merenda é ruim; na prisão existe sirene, na escola pública também; na prisão,
o preso tem que seguir regras rígidas, na escola pública os alunos também
seguem regras rígidas; na prisão existe o carcereiro, na escola pública há o
inspetor de alunos; na prisão, a pessoa não vê a hora de sair, na escola pública
também; na prisão existe o banho de sol, na escola pública há o intervalo ou
recreio; na prisão, o mau comportamento pode aumentar a pena, na escola
pública o mau comportamento leva o aluno a repetir o ano; na prisão o lado
bom é o lado de fora, na escola pública também.

Precisamos aprender como fazer prisões que se parecem mais


com escolas e escolas que se parecem menos com prisões. Esta é uma das
ideias defendidas por Victor Maristane, aluno de ciências da computação da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Victor foi um dos ganhadores da
competição mundial A Story to Tell (Uma história para contar), cujo desafio era
contar uma história a partir de um problema social. Victor Maristane criou um
web game que desafia pessoas ao debate pouco explorado sobre as condições
de cárcere nos sistemas públicos de ensino pelo mundo todo. O jogo é bem
simples: a pessoa deve descobrir se a foto mostrada na tela do game é de uma
escola ou de uma prisão. Se o jogo é fácil, acertar não é tão fácil assim. Mas, o
228

erro se transforma num meio pedagógico de mostrar como as escolas parecem


prisões. Há no jogo alertas de erro com mensagens, como esta:

Nada grita mais “aqui isolamos pessoas do mundo real em vez


de prepará-las para ele” do que um enorme muro de concreto
com uma cerca elétrica no topo. É claro que a segurança é
importante mas uma escola que faz os alunos se sentirem
como prisioneiros cria estudantes que agem como prisioneiros.

Em uma recente entrevista, Frank Locker, um arquiteto


estadunidense, em uma entrevista para o jornal colombiano “Semana”, ao ser
inquerido sobre a semelhança entre a arquitetura prisional e a escolar,
respondeu:

[...]em algumas culturas espera-se que se tenha medo do


professor e este tipo de infraestrutura contribui para apoiar
essa filosofia pedagógica. [...] Estes salões fechados,
retangulares e isolados funcionam muito bem para esta
modalidade de aprendizagem, pouco afetiva [...]. Além disso,
está centrado no docente e não no estudante e não oferece
aos alunos as habilidades que necessitam para sobreviver no
mundo de hoje.

A escola para o povo deveria ser um lugar aberto à comunidade,


educativo e político. Um lugar que preparasse para a vida. Onde os meninos
aprendessem a lidar com as meninas e as meninas com os meninos; e todos
aprendessem a lidar com suas emoções e com a própria sexualidade. Onde
não houvesse espaço para a homofobia, o racismo ou qualquer tipo de
preconceito. Onde aos mais velhos fosse dado um tratamento respeitoso e os
professores fossem tidos como guardiões de um conhecimento que eles ainda
não possuem. Onde se aprendesse formas sustentáveis de tratar a natureza.
Um lugar que pudesse esclarecer às novas gerações que ingressam na
sociedade quais são as obrigações e direitos do cidadão brasileiro perante o
mundo onde vive.

O espaço físico da escola do povo deveria conceder ao aluno o


conforto e o bem-estar de um lar. Sua arquitetura deveria ser um motivo de
orgulho para todos. As carteiras dos alunos, deveriam ser dispostas em círculo
nas salas de aula, para que todos vissem todos como iguais. Um lugar gostoso,
bonito e atrativo, onde estudar fosse um prêmio e não um castigo. E as regras
229

de convivência escolar decididas semanalmente, quinzenalmente ou


mensalmente em assembleias de alunos, professores e funcionários. Uma
escola com métodos modernos e lousas digitalizadas, onde os novos meios
tecnológicos da comunicação estivessem disponíveis para o aprendizado de
todos. Onde o aluno não fosse impedido de sair e nem a comunidade impedida
de entrar. Onde não houvessem grades, mas portas amplas. Onde o professor
se valesse pedagogicamente da força do argumento e não do argumento da
força. Em que pese o fato de que hoje o argumento não é o da força física, mas
o da força psicológica. A escola do povo e para o povo deveria ser um lugar
onde o medo fosse substituído pelo respeito, pela liberdade e pelo afeto.

Contudo, quando o belo sonho nos devolve à realidade,


percebemos que a escola pública é um lugar caótico que serve para o encontro
de gangues, namoro e até ponto de drogas. Onde a diversão maior está em
desafiar afrontosa e debochadamente o professor em sala de aula. Um lugar
violento onde alunos, professores e servidores são obrigados a conviver com
ameaças, perseguições e abusos de todo tipo. Um verdadeiro pesadelo. Se
fizermos uma busca rápida na internet por “violência nas escolas” teremos uma
enxurrada de notícias, livros, artigos acadêmicos e vídeos exóticos de brigas,
bullyings, ameaças, perseguições e até assassinatos na escola. Entre nós
brasileiros, parece que a violência entrou de vez para o currículo das escolas
públicas, cujas instalações estão em frangalhos, os professores desvalorizados
e os alunos desmotivados. Enquanto isso, a prometida educação para a
emancipação dos desvalidos há tempos não é vista ou ouvida entre suas
grades e muros.

Há escolas públicas onde o quebra-quebra virou fatalidade: é


assim mesmo e não pode ser evitado. Nessas escolas, a direção tem de
negociar com os alunos para evitar depredações. Realizar campeonatos de
futsal, conceder uma merenda especial num dia da semana, fazer vistas
grossas para o uso e o tráfico de maconha ou comprar um aparelho de som
para que os alunos possam ouvir no intervalo músicas chulas e indecentes
escolhidas por algum líder júnior de gangue que comanda o tráfico de drogas
na escola são alguns exemplos de moeda de troca contra a depredação e o
230

roubo. E é cada vez mais polpuda a roubalheira de torneiras, tomadas,


lâmpadas e fios elétricos de escolas que – pelo quase total abandono do
governo – já estão literalmente caindo aos pedaços.

Vidraças, patentes dos banheiros, portas, telefones públicos,


paredes, quadros negros e carteiras são alvos constantes do vandalismo de
alunos que não conseguem ver nas escolas um lugar para sua emancipação,
mas para seu aprisionamento legalizado. Nessas escolas, que não são poucas,
o bullying não é somente do aluno contra o aluno, mas do aluno contra o
professor - e mesmo do professor contra o aluno. Não raro, os professores são
também alvo de ataques e perseguições veladas dos próprios colegas. Mas,
tudo isso é coberto pelas pinceladas da hipocrisia com uma camada fina de
mediocridade docente, o que impede que essas questões sejam discutidas ou
sequer lembradas.

Salvo raras exceções, há na escola pública um clima


teimosamente crônico de nervosismo e medo no ar. Frente ao vandalismo, a
melhor opção para os funcionários e professores é fazer de conta que não
aconteceu nada, caso contrário seu carro pode ser riscado, ter os pneus
furados ou até ser incendiado. Certa vez, quando chamei a atenção de um
aluno do período noturno que jogava com a colher a merenda de seu prato no
teto do pátio, ouvi a seguinte ameaça: “Ei, professor, você tem uma família
bonita, né? Cuida da sua vida, senão a gente cuida dela pra você”. Ao que se
seguiu um coro não muito alto de risos debochados e olhares sarcásticos dos
amigos do tal aluno. A ameaça desse aluno era quase a continuação de um
aviso que me fora dado anos antes por um diretor de escola: “Você tem filhos?
Eu também. É melhor não mexer com esses bandidos ou eles fazem da tua
vida um inferno”.

Como nas nossas prisões, nossa escola pública é no mais das


vezes uma panela de pressão prestes a explodir. E, como acontece nas
prisões, as escolas às vezes também explodem. Mas, o que fazer quando a
violência e o abandono da escola vira paisagem, uma situação natural? Deve-
se, minimamente, sair da “zona de conforto” e assumir que a escola pública
virou uma prisão que vigia, dociliza e pune. E que a utopia libertária não veio.
231

Alguém há de dizer que há nisso tudo uma “boa dose de exagero”. Mas, pra
quem ainda é capaz de se indignar a cada vez que se comete algum tipo de
violência, abuso ou injustiça na escola, o exagero está justamente no
conformismo e resignação da grande maioria. Como referendo, vale recorrer
aqui à célebre frase de Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito
dos maus, mas o silêncio dos bons”. E quanto silencio é possível se ouvir dos
professores quando deveriam gritar contra a tirania dos maus!

O fato de ser a escola da classe trabalhadora – e não a dos ricos -


que vem fracassando em nosso país é sintoma de uma escola pública que
serve de instrumento de dominação, reprodução e manutenção dos interesses
da classe dominante. As pessoas pobres estão abandonando a escola. As
ricas não. Coincidência ou não, a maioria esmagadora de nossos presos são
pobres. Para os raros ricos que vão presos no Brasil, a justiça reserva prisão
domiciliar ou cela especial e para os pobres superlotação carcerária. As
autoridades escolhem quem querem punir. Em 2013, um helicóptero da Limeira
Agropecuária foi apreendido com 450 quilos de cocaína. A empresa era do
então deputado estadual de Minas Gerais Gustavo Perrella, filho do senador
Zezé Perrella (PDT-MG), parente do senador Aécio Neves (PSDB-MG). Ainda
hoje o dono da droga não foi preso. Entrementes, a justiça do Rio de Janeiro
negou, em 8 de agosto de 2017 o pedido de habeas corpus feito pela defesa
de Rafael Braga, catador de material reciclável condenado a 11 anos e três
meses de prisão por portar 0,6 g de maconha e 9,3 g de cocaína durante uma
manifestação no Rio de Janeiro, em julho de 2013. Apesar e não participar do
protesto ou ser militante de alguma bandeira e mesmo sem ter cometido crime
algum, Rafael foi levado preso para a 5ª delegacia da cidade. O único crime de
Rafael Braga foi ser a carne mais barata do mercado: pobre, negro, usuário de
drogas e morador da periferia.

Rafael passou para o regime semiaberto, em 2014, conseguindo


o benefício de poder trabalhar durante o dia fora da prisão, localizada em
Niterói. Ele trabalhou, nesse período, como auxiliar de serviços gerais no
escritório de advocacia que faz a sua defesa judicial. Todavia, como prevê o
regime semiaberto, ele devia voltar para prisão todos os dias para dormir. E,
232

então, no dia 30 de outubro, ao retornar para a prisão após o expediente,


Rafael posou para uma foto ao lado do portão do presídio, em cuja fachada
havia uma pichação com a seguinte frase: “Você só olha da esquerda para a
direita, o Estado te esmaga de cima p/baixo”. E como punição, Rafael ficou 10
dias confinado na “solitária” e perdeu o regime semiaberto. Suponho que seja
pertinente lembrar as palavras de Foucault (2012), ditas em sua palestra: “A
ordem do discurso”, aula inaugural proferida no Collège de France, em 2 de
dezembro de 1970, para quem, “a disciplina é um princípio de controle da
produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que
tem a forma de uma reatualização permanente das regras.” (p. 36).

Por mais que o discurso das leis seja aparentemente bom para
todos, a constatação de que ele pune os pobres e protege os ricos é
inexorável. E nisso não há nada de espantoso. Somente há o consentimento
medroso, tacanho e resignado do povo. Diz o velho ditado: “Para os amigos, o
benefício da lei e para os inimigos, o rigor da lei”. Diz o discurso legal: “Posse
de pequena quantidade de droga não configura crime de tráfico de
entorpecente, mas uso pessoal de substância ilícita”. Mas, para Rafael Braga
esse discurso legal não vale. Embora tenha sido com esse entendimento que a
1a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás concedeu, por
unanimidade, em 24/01/2014, Habeas Corpus a um turista francês e outro
austríaco, que foram presos em flagrante com aproximadamente 85 gramas de
maconha. Concomitantemente, em 08/04/2017, o empresário Breno Fernando
Solon Borges, de Mato Grosso do Sul, foi preso carregando 130 quilos de
Maconha, uma pistola nove milímetros e 199 munições de fuzil calibre 7,62, de
uso exclusivo das forças armadas. Breno Borges é filho da presidente do
Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul, a Desembargadora Tânia
Garcia Freitas Borges. O também Desembargador, Ruy Celso Barbosa
Florecence, concedeu liberdade a Breno, alegando que a mãe se ofereceu
para ser tutora do filho que seria internado em uma clínica médica para
tratamento de supostos problemas psicológicos.

Rafael Braga é pobre, enquanto que a família Perrella, Breno


Fernando Solon Borges e os tais turistas europeus não. A vocação, cada vez
233

mais irreverente de nosso judiciário para a política de direita é capaz de


produzir uma total inversão de valores. Sintoma de uma burguesia togada,
bastante tendenciosa e conservadora, para quem 9 gramas de preconceito
econômico, social e racial, pesam mais do que quase meia tonelada de
cocaína ou 130 quilos de maconha, uma pistola nove milímetros e 199
munições de fuzil calibre 7,62, de uso exclusivo das forças armadas.

Temos a terceira maior população carcerária do planeta. O


número de presos no país chegou a 715.655. E a previsão é que teremos 1
milhão de presos até 2022. Isso porque no sistema prisional não existe êxodo,
mas na escola pública sim. Nossos presos são, em sua maioria, jovens,
negros, pobres e de baixa escolaridade, segundo o Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado em 23/06/2015 pelo Ministério
da Justiça. De acordo com o levantamento, cerca de 53% dos nossos presos
possuem ensino fundamental incompleto e dois em cada três presos são
negros, o que equivale a 67% do total. Muitos são analfabetos funcionais, sem
qualificação para o mercado de trabalho. São soldados do tráfico, cada vez
mais jovens, que exibem para outros meninos pobres tênis, telefones, bonés,
pulseiras e roupas caras adquiridas com o pagamento por uma única noite de
trabalho no tráfico, o equivalente a um mês de trabalho dos “outros”. Num país
rico, onde a desigualdade produz um exército de miseráveis, a adesão ao
crime é uma opção deveras sedutora.

Émile Durkheim parece ter sido a primeira pessoa a sugerir que a


criminalização do desviante é a resposta dada por uma sociedade
profundamente errada. O crime, para Durkheim, é sim uma conduta desviante,
mas que acontece como desafio do indivíduo à repressão normatizada da
sociedade sobre ele. Ao encontro deste entendimento, Reich (1972, p. 18)
considera que:

[...] quando os trabalhadores, passando fome, decidem fazer


greve, a sua ação resulta diretamente da situação econômica.
O mesmo se pode dizer de um esfomeado que rouba para
comer. Não há necessidade de mais explicações psicológicas
para o roubo, consequência da fome, ou para a greve
consequência da exploração. [...] Nesses casos a psicologia
reacionária costuma explicar o roubo e a greve em termos de
234

motivos supostamente irracionais, explicações essas que, em


última análise, são explicações reacionárias. Para a psicologia
social, a questão é colocada em termos opostos; o que se
pretende explicar não é por que motivo a maioria dos
esfomeados não rouba e a maioria dos explorado não faz
greve.

Dito em outros termos, não cabe entender os motivos que levam o


esfomeado a roubar, mas sim entender os motivos que o levam a não roubar, o
que pressupõe uma atitude irracional. Entretanto, os reacionários de sempre
continuam querendo enxergar como doença, uma conduta desviante,
supostamente irracional, o fato do miserável roubar.

A “pedra que quebra as janelas”, como dizem os juristas, pode


estar vindo do lado de dentro. E na maioria das vezes vem. E atinge os que
estão do lado de fora. Para o poder hegemônico, os ricos, o problema está
justamente quando os que estão do lado de fora revidam e jogam a pedra de
volta. Querem entender isso como uma atitude irracional, uma espécie de
loucura. Vale lembrar aqui Machado de Assis, que em seu notório conto “O
Alienista” nos traz uma perspectiva deveras elucidativa sobre a forma com que
a sociedade trata a loucura.

Ambientado no século XIX, o livro O Alienista nos conta como o


Dr. Simão Bacamarte, vindo da Europa, se instala na fictícia cidade de Itaguaí,
onde se dedica obstinadamente à tarefa de estudar a loucura. À época, os
loucos locais eram trancafiados em suas casas até que a morte os libertasse.
O doutor logo obtém uma licença para construir um hospício, a que chamou-se
“a Casa Verde”. Imediatamente os loucos são recolhidos e Bacamarte se põe a
estuda-los em busca de um remédio para a demência. Acreditava na loucura
como uma minúscula ilha perdida no vasto oceano da razão, mas logo
percebeu a loucura como um enorme e ameaçador continente, visto que quase
todas as pessoas possuíam algum tipo de loucura. Oito em cada dez
moradores de Itaguaí foram internados.

Quando o doutor Bacamarte confina os supostos loucos em sua


Casa Verde provoca uma rebelião popular em Itaguaí. Os rebeldes marcham
235

contra o hospício e são recebidos pelo alienista com um discurso que bem
documenta a arrogância do poder científico presente neste conto:  

— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada


com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a
ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a
administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se
exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada.
Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir
ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria
dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos, nem a
rebeldes (ASSIS, 1998, p. 302).

Depois de algumas batalhas pelo poder da cidade, com mortos e


feridos, os revoltosos sucumbem, finalmente, ao poder da autoridade científica.
O poder do doutor Bacamarte se torna absoluto: “Tudo quanto quis, deu-se-lhe”
(ASSIS, 1988, p. 312). Então, o alienista, percebendo que a maioria da
população de Itaguaí estava internada, passou a acreditar que a norma era o
desequilíbrio mental em alguma monta. Os normais seriam os desequilibrados
e somente os equilibrados seriam loucos. Para oitenta por cento das pessoas,
errar é humano. Os demais vinte por cento seriam aberrações num mundo
onde prolifera a loucura.

Machado de Assis introduz, em “O Alienista”, o imponderável, o


imprevisto. E abre a discussão, por assim dizer, sobre a própria condição
humana, visto que nos permite perceber que conceder à natureza humana
princípios destrutivos, loucos, serve apenas para acreditarmos na inexistência
de uma humanidade normal. Considerar como normal a existência de uma
sociedade desequilibrada é o mesmo que admitir para o ser humano uma
natureza má e ardilosa. Como se a maldade, na condição humana, fosse a
regra e a bondade a conduta desviante, desequilibrada. Como se a injustiça
social, a exploração do homem pelo homem e a desigualdade econômica
fossem coisas naturais, enquanto a busca por um mundo fraterno e igualitário
não passasse de mera ilusão de desequilibrados. Eis o entendimento que tem
obliterado, há muito tempo, a importância da utopia na reconstrução de uma
realidade onde haja lugar para a felicidade de todos.
236

Numa sociedade emocionalmente insana, o desviante costuma


ser execrado. Porque rompe com as normas vigentes na sociedade e adota um
comportamento estranho aos modelos de uma sociedade orientada pelas leis
do mercado. Acusado de vadio e indolente, o desviante aproxima-se de uma
legião de “heróis sem caráter”, tais como o "Macunaíma”, o herói sem nenhum
caráter, de Mário de Andrade, escrito em 1926 e publicado em 1928. Ou o
Vadinho, descrito por Jorge Amado em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, em
1966. Ou os nordestinos Pedro Malasarte e João Grilo, do livro “O Auto da
Compadecida”, escrito por Ariano Suassuna em 1955. Ou a figura do Zé
Pelintra, presente nos terreiros de Umbanda. Ou a do “bom malandro”,
eternizada no imaginário popular e nas letras dos sambas cariocas: o mestiço
boêmio que habita as favelas da primeira metade do século XX, veste chapéu
panamá branco, terno branco e camisa branca. Sempre com gravata vermelha
ou camiseta listrada horizontalmente, além do tradicional sapatos de duas
cores. E táz a inseparável navalha no bolso do paletó. Vive de pequenos
golpes, aprecia os cabarés, os terreiros de Umbanda e as rodas de samba e
capoeira. Não acredita no trabalho formal como um modo de vida, mas é
sensível, justo e sentimental, além de galante, cavalheiro e um grande amante.

Os interesses dos ricos sempre sentiram a necessidade de


combater essa “malandragem” subversiva e estabelecer um povo dócil e
disciplinado, que atendesse prontamente às expectativas de uma sociedade
orientada para o trabalho braçal de baixos salários e o consumismo de
produtos efêmeros e descartáveis como se fossem essenciais. Um tipo de
brasileiro pacato e conformado, diferente daquele que fora conduzido pelas
opressões sociais à malandragem como forma de resistência. Contudo, penso
que não há pacatez possível diante da inexorabilidade da própria miséria. Se
há, não pode situar-se noutro campo senão o da debilidade psíquica.

Somos, afinal, um povo prazenteiro? Estamos capacitados a


sofrer imunes as agruras de uma existência pautada na exploração do homem
pelo homem? O notório mal-estar dessas questões reside justamente nesta
“dialética da malandragem” onde a igualdade, a liberdade e a justiça encontram
ambiente imaginário num lugar que não existe. O cenário do alienista de
237

Itaguaí, que converte equilibrados em loucos e desequilibrados em normais é o


mesmo que converte o malandro em bandido, criminoso e fora da lei. Aquele
que se colocando fora do alcance do sistema se recusa a obedecer,
convertendo as injustiças sociais num “jogo de cintura” debochado diante da
difícil sobrevivência do pobre em terras tupiniquins. E que, inexoravelmente, há
de compor as imensas populações carcerárias que se amontoam nas prisões
brasileiras.

A cada dia, um preso é assassinado nas prisões. Só em 2016,


foram mais de 370 assassinatos. O discurso da direita transfere para o
indivíduo questões que deveriam ser tratadas no coletivo. O Estado tenta
atenuar o alto número de homicídios contra o povo pobre nas cadeias e
penitenciárias no fato presumido de que o indivíduo optou pelo crime por conta
de sua “índole perversa”. Insiste que o pobre, ao invés de se entregarem ao
crime, poderiam estudar ou arrumar um emprego. Mas, não dizem nada sobre
os ricos e os políticos que os representam no poder que desviam dinheiro dos
cofres públicos e se beneficiam economicamente em tenebrosas transações.
Nada fazem com isso além de endossar um engodo absolutamente falacioso
que omite o fato de não haver igualdade de condições entre ricos e pobres
dentro do modo de produção capitalista. E sem igualdade de condições não
pode haver igualdade de oportunidades.

Na competição social, os filhos dos ricos saem na frente. Eles


estudam em escolas caras, muito bem equipadas, enquanto que os filhos dos
trabalhadores vão estudar em escolas onde o ensino encontra-se numa
espécie de beco sem saída pedagógico. As escolas públicas não conseguem
nem ao menos preparar para o mercado de trabalho, quanto mais pôr em
prática a tão propalada educação para a libertação social. Isto é, uma
educação para o combate à dominação e opressão dos pobres pelos ricos.
Uma sonhada educação para que os marginalizados da sociedade capitalista
pudessem ser conscientizados sobre sua situação de exploração com o
objetivo de subsidia-los com os meios e elementos necessários ao
enfrentamento e superação de sua triste realidade. Contudo, as escolas para
238

os pobres são, como sempre foram, o lugar comum da docilização dos


oprimidos. Uma fábrica de inocentes úteis e escravos felizes.

O gosto pelo conhecimento é uma vocação sublime do ser


humano que abre caminhos de esperança, sonhos e realizações. Mas, essa
vocação, como tantas outras, é ironicamente decapitada logo cedo pela escola
pública. Nossas criancinhas são encarceradas nas carteiras das salas de aula
de nossas escolas como criminosas, porque é este o destino dado a crianças
pobres no Brasil. Um destino inexorável que um dia obriga os filhos dos pobres
a dar seu primeiro passo para dentro de uma instituição coercitiva e
amedrontadora. Talvez, essas crianças se assustem com os altos muros e
grades reforçadas da escola pública. Talvez, vejam neles o lugar da purgação
de pecados ainda não cometidos. E, então, percebem que os dentes do
sistema estão logo ali à sua espera. Talvez, sintam que esse passo será longo
demais, doído demais. Talvez, suas almas intuam que a escola pública irá
pouco a pouco tatuar neles os limites penosos de infâncias aniquiladas pelas
regras repressivas da escola para os pobres. Talvez, entendam mais do que os
adultos que são esses os caminhos que fabricam existências sociais fadadas à
sujeição social e à resignação. Caminhos que aprisionam crianças alegres e as
transformam em adolescentes ajustados a um sistema escabroso de
crueldade, individualismo, dominação e exploração. E, quem sabe, talvez seja
por isso que muitas delas entram na escola para seu primeiro dia de aula
carregando os olhinhos molhados e cheios de interrogação.

Capítulo 15 - A pedagogia psicanalítica

Por que motivo não pode existir uma


escola que deixe a criança
aprender aquilo que quer, quando quer
e, ao mesmo tempo, procure ensiná-la a
respeitar os direitos das outras?
239

(Orson Bean)

Durante o processo revolucionário socialista russo de 1917, uma


imensa crença popular emergiu quanto aos valores da liberdade, da justiça e
da fraternidade. A Revolução russa foi a primeira grande tentativa da
humanidade de tomar em suas mãos as rédeas de seu próprio destino. Foi
uma imensa esperança coletiva na igualdade social que seduziu uma nação
inteira.

Na Rússia czarista, pré-revolucionária, a maioria do povo era


analfabeta. Mais de cem etnias compunham a população, algumas das quais
sem escolaridade alguma. Outras nem ao menos possuíam linguagem escrita.
As poucas escolas espalhadas pelo país baseavam-se no estudo de textos
eclesiásticos e no ensino de rudimentares cálculos aritméticos. Os raros alunos
que frequentavam essas escolas mal aprendiam a ler e a escrever. Além disso,
as formas pedagógicas pré-revolucionárias orientavam-se no sentido de incutir
nos educandos valores de resignação e submissão. Como, aliás, era de
costume nos demais países da época.

Por ter se preocupado com a libertação do ser humano, a URSS


foi o berço de intensas discussões no campo pedagógico. A Revolução
socialista pretendeu empreender uma revolução cultural que transformasse os
educandos pela democratização dos conhecimentos científicos que a
humanidade fora capaz de produzir desde a revolução industrial. Então, o
socialismo soviético pretendeu se apropriar dos legados científicos e
tecnológicos do capitalismo e reparti-lo entre todo o povo. Na mesma medida,
precisava qualificar a mão de obra necessária à construção de uma economia
soviética forte. “Em pouco tempo, entre 1917 e 1918, era completada ou
começada a construção de novas escolas.” (Paltrinieri, 1975, p.124).

Para atender as demandas da nova ordem social, surgiram várias


formas pedagógicas, como a chamada “Pedagogia do Trabalho”, ou
“Pedagogia Socialista”, de Anton Makarenko. Tais pedagogias procuraram
ensinar a respeito de justiça e igualdade à luz de antigos métodos de ensino,
240

consagrados pelo capitalismo europeu, que valorizavam, sobretudo, a


disciplina e a autoridade, inclusive com a utilização de castigos corporais. Em
outros termos, pretenderam fazer uma omelete, mas não se dignaram a
quebrar a casca dos ovos. Referindo-se ao ensino na URSS, From (apud Neill,
1984, p.xvii), considera que:

Há forte tendência em se obter cada vez maior disciplina e há,


mesmo, uma campanha no sentido de que se permita aos
professores das escolas públicas a aplicação de castigos
corporais aos alunos.

De conformidade, Porter (1991, p.311), relata que “o autocontrole


físico prosseguiu intimamente ligado ao desejo de policiar os corpos alheios,
assim como de assegurar uma melhor ordem social [...] através da persuasão
da prescrição e, finalmente, da coerção física”.

Ao lado da pedagogia socialista, voltada à qualificação da mão de


obra segundo os novos padrões socialistas, surgiu a chamada “Pedagogia
Psicanalítica”, concebida pela psicanalista e pedagoga russa Vera Schmidt. A
partir de conceitos freudianos, essa pedagogia pretendeu desenvolver uma
prática educadora antiautoritária. E, na medida em que se baseou na
psicanálise, procurou desenvolver uma atitude pedagógica libertária com
relação aos impulsos oriundos do chamado “Princípio de prazer”. Nas palavras
de Schmidt (1934, p.17):

O interesse para questões educacionais, especialmente para a


educação coletiva durante a idade infantil, aumentou na
Rússia, extraordinariamente, durante os últimos
acontecimentos. Assim sucedeu que no nosso pequeno círculo
de interessados na psicanálise teve origem a ideia de fundar
uma casa de crianças que, ao lado de uma oportunidade para
observações científicas, fornecesse a possibilidade de procurar
novos caminhos e meios de educação, baseando-se nos
conhecimentos psicanalíticos.

Em 19 de agosto de 1921, um grupo de estudiosos da


psicanálise, sob a coordenação de Vera Schmidt, fundou, em Moscou, a “Casa
de Crianças”, uma instituição pré-escolar que tinha os seguintes objetivos:

a) educar alunos, de 01 a 05 anos de idade sob orientação psicanalítica;


241

b) constituir um laboratório para a verificação dos efeitos do trabalho


psicanalítico aplicado à pedagogia, numa perspectiva antiautoritária.

Para a direção da Casa de Crianças, foi eleito o professor


Ermakov, na época, o maior incentivador da psicanálise na URSS. Por ocasião
de sua fundação, a Casa de Crianças obteve recursos financeiros e materiais
do Comissariado do Povo para a Educação. assim, esteve administrativamente
subordinada, no início, ao Instituto Neurológico Soviético. Posteriormente, em
1922, quando foi criado o Instituto Estadual Psicanalítico, o Laboratório da
Casa de Crianças foi anexado à esta instituição, como organização auxiliar.

De acordo com as diretrizes psicanalíticas que nortearam os


trabalhos pedagógicos da pré-escola da Casa de Crianças e as experiências
psicanalíticas de seu Laboratório, existe na estrutura psíquica humana uma
estrutura consciente e outra reprimida, inconsciente. De acordo com os
conceitos psicanalíticos todo organismo vivo direciona suas atividades no
sentido da satisfação de suas necessidades de prazer e no sentido de evitar o
desprazer. Este fundamento da psicanálise é conhecido como “princípio de
prazer”. De acordo com FREUD (1976, P. 17-24):

Na teoria da psicanálise não hesitamos em acreditar que o


curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente
regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o
curso desses eventos é invariavelmente colocado em
movimento0 por uma tensão desagradável e que toma uma
direção tal que seu resultado final coincide com uma redução
dessa tensão, isto é, com uma evitação do desprazer ou com
uma produção de prazer. [...] Deve-se, contudo, apontar que
[...] o princípio de prazer [...], do ponto de vista da
autopreservação do organismo com relação às dificuldades do
mundo externo, é, desde o início [...] altamente perigoso. Sob a
influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio
de prazer é substituído pelo princípio de realidade. [...] O
princípio de realidade não abandona a intenção inicial de obter
prazer, mas (adota) [...] uma série de possibilidades para obter
esse prazer. [...] Não pode, porém, haver dúvida de que a
substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade
só pode ser responsabilizada por um pequeno número – e de
modo algum as mais intensas – das experiências
desagradáveis. [...] No curso das coisas, acontece repetidas
vezes que instintos individuais, ou parte de instintos, se
mostrem incompatíveis, em seus objetos ou exigências, com os
(códigos de conduta social). [...] Os primeiros são, então,
expelidos dessa unidade pelo processo de repressão, mantidos
242

em níveis inferiores de desenvolvimento psíquico e afastados,


de início, da possibilidade de satisfação. Se,
subsequentemente, alcançam êxito – como tão facilmente
acontece com os instintos sexuais reprimidos – em conseguir
chegar por caminhos indiretos à uma satisfação indireta ou
substitutiva, esse acontecimento se, em outros casos, seria
uma oportunidade de prazer, é sentida pelo ego como
desprazer. [...] Esse desprazer [...] é reconhecido como
“perigo”. [...] A “ansiedade” descreve um estado particular de se
esperar o perigo, ou preparar-se para ele, ainda que possa ser
desconhecido.

Na infância, as ações encontram-se muito mais sob a influência do


inconsciente. Ao longo de sua história de vida - e no curso de suas relações
sociais - a criança vai realizando contatos com uma série de normas e regras
do convívio social que lhes tolhem boa parte das atitudes, principalmente
daquelas associadas, historicamente, à sensualidade (prazer de todo o corpo)
e/ou à sexualidade, incompatíveis com os códigos comportamentais impressos
pela moral-repressiva da sociedade. Colocam Schmidt e Reich (s.d., p.40):

A história [...] mostra que todos os sistemas sociais, de forma


consciente ou não, utilizam a influência sobre a criança para se
enraizarem na estrutura humana. Se seguirmos este processo
[...] apercebe-mo-nos que a educação sexual é o núcleo deste
processo de influência. [...] A criança reprimida torna-se tímida,
temendo a autoridade. [...] O comportamento livre, ousado, é
substituído pela obediência e pela dependência.

Se, por um lado, o princípio de realidade é responsável por impor à


criança um pequeno número de limites que lhe garantam a autopreservação,
por outro lado, uma educação que imponha severos limites à sexualidade e/ou
à sensualidade infantis se mostra como destrutiva. Para Reich (1986, p.09)
“não há nada mais destrutivo do que a vida anulada e contrariada por
esperanças frustradas”. Enfatizando essa visão, Gaiarsa (1986b, p.19)
escreveu:

Uma análise estatística realizada pelo neuropsicólogo James


W. Prescott com 400 sociedades pré-industriais, parece
confirmar totalmente a concepção reichiana da estruturação
social: aquelas culturas que dão muito afeto físico a seus filhos,
e que não reprimem a atividade sexual de seus adolescentes
são culturas pouco inclinadas à violência, à escravidão, à
religião organizada.
243

Para a psicanálise, a sexualidade não se restringe à vida adulta ou


à área genital. A vida sexual infantil é bastante intensa. Esse conceito foi
bastante utilizado pela pedagogia psicanalítica. Segundo Schmidt (1934, p.30):

A psicanálise provou que é um erro [...] negar às crianças uma


vida social e fazer a suposição de que a sexualidade somente
ocorra na época da puberdade e da maturação dos órgãos
genitais. Ao contrário: a criança tem, desde o começo, uma
vida sexual muito rica [...] passando por uma escala de
transformações desenvolve-se dessa sexualidade infantil o
adulto normal.

Para a Psicanálise, a sexualidade está divorciada da ligação por


demais estreita com os órgãos genitais que costumeiramente assume no senso
comum. É considerada uma função corporal mais abrangente, tendo o prazer
como a sua meta e só secundariamente serve às finalidades reprodutivas e
genitais. O desenvolvimento da sexualidade, na criança, obedece uma escala
organizada de etapas denominada pela psicanálise de “Fases pré-genitais”.
Neste período, a área genital ainda não desempenha função preponderante. A
sexualidade da criança vai desde o autoerotismo até a escolha do objeto
externo de prazer. O autoerotismo permite à criança conhecer e reconhecer
seu corpo e suas possibilidades de prazer. Para Schmidt (1934, p.31), a
criança:

Simultaneamente passa a relação de diversas tendências


sexuais (impulsos parciais) com respeito ao seu objeto, por
uma escala de desenvolvimentos que levam ao autoerotismo (a
satisfação sobre diversas zonas incitadas do próprio corpo) à
escolha do objeto (união de todos os desejos sobre um objeto
alheio).

Diferentemente do adulto, a criança encontra-se, ainda, sob a


tutela do princípio de prazer, que se orienta mais distanciadamente das
exigências do princípio de realidade. Seria, pois, tarefa do educador fazer
entender à criança o significado das relações reais do mundo exterior e orientá-
las a dominar o princípio de prazer, substituindo-o, aos poucos, pelo princípio
de realidade.

Podemos facilitar a continuação desse desenvolvimento


complicado, sem estorvos, se a nossa tarefa educadora tomar
em consideração as fases da organização pré-genital que,
normalmente, se traem apenas perceptivelmente. Além disso,
244

devemos saber que cada passo feito neste caminho pode


tornar-se o começo de um estorvo no desenvolvimento, o que
torna mais necessária a nossa intervenção auxiliadora
(SCHMIDT, 1934, p.31).

De acordo com os princípios pedagógicos preconizados por Vera


Schmidt, se, de um lado, a transição do princípio de prazer para o princípio de
realidade canaliza a energia sexual para o processo de sublimação, isto é, para
a criatividade em atividades socioculturais - tais como a ciência e as artes
plásticas -, de outro lado, uma rigorosa repressão dos instintos infantis leva a
desvios comportamentais de cunho sado-masoquista (SCHMIDT, 1934). De
acordo com a autora (1934, p.31):

As tendências sexuais [...] podem ser desviadas dos seus fins


sexuais e dirigidas a sociais. [...] Esse procedimento é
chamado na psicanálise de sublimação. As mesmas
tendências, porém, podem também ser submetidas a
recalcamentos. Assim podem ser afastados [...] do seu fim e
relegados ao inconsciente; preservam, porém, a sua energia,
que [...] é recalcada a outros fins.

Por recalque se entende aqui “a transferência para o inconsciente


de afeições, imaginações, sentimentos, lembranças e desejos, quando estes se
tornam insuportáveis ao consciente do indivíduo” (Schmidt, 1934, p.07).

Orientando seus esforços no sentido a facilitar ao educando a


gradativa transferência do princípio de prazer - em seu teor absoluto - para o
princípio de realidade, o educador, segundo os princípios da pedagogia
psicanalítica, possibilitaria a realização de sublimações. Desse modo, uma
menor parte de impulsos sexuais infantis seriam recalcados, enquanto que a
maior parte seriam aproveitados para realizações culturais e sociais.

Outro importante princípio psicanalítico utilizado na pedagogia de


Schmidt diz respeito ao fato do sentimento da criança para com os pais - na
sua forma positiva ou negativa - poder ser transferido para pessoas
substituíveis, especialmente para os professores.

Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao


pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-
los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los
com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas
245

próprias famílias, e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos


o hábito de lutar com nossos pais em carne e osso. A menos
que levemos em consideração nossos quartos de crianças e
nossos lares, nosso comportamento para com os professores
seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável
(FREUD, 1996, p. 249-50).

A partir do momento em que o professor possa entender e aceitar a


existência desse processo de transferência, muito da indisciplina do aluno
poderá ser trabalhada e superada, pois:

Quando os educadores se familiarizarem com as descobertas


da psicanálise, será mais fácil se reconciliarem com certas
fases do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas, não
correrão o risco de superestimar a importância dos impulsos
instintivos socialmente imprestáveis ou perversos que surgem
nas crianças. Pelo contrário, vão se abster de qualquer
tentativa de suprimir esses impulsos pela força, quando
aprenderem que esforços desse tipo com frequência produzem
resultados não menos indesejáveis que a alternativa, tão
temida pelos educadores, de dar livre trânsito às travessuras
das crianças (FREUD, 1996, p. 191).

Vera Schmidt estava certa de que se na relação positiva para com


o professor (substituto dos pais) poderia haver grandes proveitos para o ensino
escolar, por outro lado, na sua relação negativa, a criança se mostraria hostil
ao princípio de realidade. Dependeria somente do comportamento do educador
se a relação professor-aluno se daria de forma positiva ou de forma negativa.

Se conservarmos na nossa tarefa educadora esse ponto de


vista, colheremos do comportamento e das expressões da
criança, um sem número de indicações que nos poderão
permitir entender com sucesso aquilo que se realiza nas
profundezas do seu inconsciente (SCHMIDT, 1934, p.33).

A pedagogia psicanalítica orientou-se no sentido de que o


relacionamento professor-aluno se baseasse na confiança e no afeto mútuos.
Esse foi o princípio educacional sobre o qual Vera Schmidt pretendeu construir
o êxito de seu processo de ensino-aprendizagem. Na perspectiva de Vera
Schmidt, as crianças não deviam, também, ser elogiadas, mas, sim, os seus
atos. Isto porque a criança que hoje fez um ato elogiável, amanhã poderá não
fazê-lo. Os educadores da Casa de Crianças eram orientados para serem
muito discretos e reservados com relação ao uso de carinhos e carícias no
trato com os educandos. Schmidt acreditava que as expressões ardorosas de
246

afeto e/ou de carinho seriam mais expressões de carência afetiva do educador


adulto do que propriamente necessidades da criança. Segundo Schmidt (1934,
p.43):

Expressões violentas de amor por parte dos adultos (como


beijos ardentes, expressões de amor e semelhantes) que
excitam a criança sexualmente e que humilham a sua
consciência da dignidade própria, são rigorosamente proibidas
no Laboratório da Casa de Crianças.

O amor da criança pelo professor - produzido a partir do processo


de transferência do amor pelo pai para o amor pelo professor - era trabalhado
na perspectiva de a criança a renunciar a certos impulsos do seu princípio de
prazer. Para que a criança se sentisse disposta a renunciar a um prazer
primário lhe era apresentado outro tipo de prazer, como a pintura, a música, o
jogo ou a leitura. Esse processo, na Psicanálise, recebe o nome de
sublimação. Schmidt estava convencida da necessidade de se construir uma
educação que facilitasse a sublimação, ou seja, estava certa do bem que faria
em utilizar os impulsos do princípio de prazer na construção de bens culturais.

Também era importante para a pedagogia psicanalítica que os


educandos fizessem a passagem do princípio de prazer para o princípio de
realidade, satisfatoriamente, isto é, sem hostilidades. Vera Schmidt acreditava
que se a criança visse hostilidade à sua volta, como costumeiramente vemos
apresentadas às crianças as regras do convívio social pelos professores
convencionais, ela se fecharia. E confinada em si mesma, como mecanismo de
defesa, a criança poderia tornar-se egoísta e hostilizar as normas e regras mais
elementares do convívio em sala de aula. E, depois, hostilizaria as regras de
convívio social na vida adulta. Assim, os professores da Casa de Crianças
procuravam tornar a realidade que era apresentada à criança a mais agradável
possível substituindo-lhes as vontades primitivas por uma realidade com prazer
razoável. As restrições aos instintos primitivos eram, ao invés de exigências
arbitrárias do adulto, o resultado lógico e esclarecido das condições diárias da
vida social coletiva.

A substituição das vontades primitivas por outros meios, mais


culturais, de se obter prazer, foi um importante fundamento da Pedagogia
247

Psicanalítica. Contudo, Vera Schmidt tinha bem claro que a substituição do


princípio de prazer pelo princípio de realidade só pode acontecer num pequeno
número dessas experiências. E de modo algum as mais intensas, sob pena de
serem produzidos impulsos cruéis. A maldade é fruto da não realização de
nossas necessidades de prazer. Infelizmente, nossa sociedade, de raízes
civilizatórias europeias, tem se orientado no sentido da repressão radical dos
impulsos do princípio de prazer. Precisa-se levar em conta que em pouco
tempo uma criança precisa assimilar a cultura de uma sociedade que levou
milhares de anos para se constituir e controlar seus instintos para se adaptar
socialmente. Essa tem sido a primeira tarefa da educação: fazer com que a
criança se enquadre no padrão esperado. E os professores tradicionais
cumprem bem esse papel na escola. Tomando de empréstimo uma reflexão de
Alexander Neill, pode bem ser que não seja exagero dizer que todas as
crianças de nossa civilização nascem já numa atmosfera que desaprova a vida.
Segundo Neill (p. 89):

Os advogados do horário da alimentação são, basicamente,


contra o prazer. Querem que a criança seja disciplinada na
alimentação porque a alimentação sem horário sugere prazer
orgástico ao seio. O argumento quanto à nutrição é, quase
sempre, uma racionalização; o motivo profundo é moldar a
criança numa disciplinada criatura que colocará o dever antes
do prazer.

A educação deve abster-se de soterrar as preciosas fontes de vida


que movem a criança e se restringir, escrupulosamente, a estimular no aluno
os processos pelos quais as suas energias são conduzidas ao longo de
caminhos cautelosos. Tudo o que podemos esperar a título de profilaxia do
mau comportamento do aluno em sala de aula se encontra nas mãos de uma
educação psicanaliticamente esclarecida (SCHMIDT, 1934). Dizia Schmidt
(1934 p. 45-46): “A criança não deve deixar de sujar-se por meio de uma
proibição formal por parte do educador. A criança não deve deixar de sujar-se
porque não se deve sujar, mas porque aprende lentamente que também pode
manter-se limpa”. E mais: “Conhecemos muitos casos em que o constante mau
humor de uma criança melhorou, logo que a educadora analisou a sua relação
para com ele e, conhecendo-a, modificou-a” (1934, p.51).
248

Estranhamente, embora o processo revolucionário russo de 1917


tivesse se desenvolvido a partir de ideais de libertação, fraternidade, igualdade
e justiça, no que disse respeito à moral sexual o poder bolchevique foi, antes
de tudo, conservador. Sobre a questão da sexualidade da juventude soviética,
em carta dirigida à intelectual russa Clara Zetkin, Lênin (apud Schmidt, 1934,
p.12), considera que:

[...] Até os anos de 1925, desenvolveu-se entre os estudante,


em primeiro lugar, uma libertinagem sexual de terríveis
consequências. A mocidade sem caráter, para justificar essa
libertinagem [...] considerou-a uma necessidade física, como
por exemplo, o de tomar um copo de água, falando, também,
que esse procedimento é a negação dos preconceitos
burgueses. Em maior parte se tratava de estudantes e em
menor da mocidade operária. Os camponeses nunca se
entregaram a essa libertinagem, e é exatamente no camponês
que ainda hoje forma a maior parte do povo russo. Devemos
[...] ter em mente que isso não é intenção direta do comunismo.

Assim, como os trabalhos realizados no Laboratório Casa de


Crianças se desenvolveram a partir de princípios libertários, as autoridades
governamentais se voltaram contra esses trabalhos. Escreve Schmidt (1934,
p.18):

Apesar de que o trabalho científico da Casa de Crianças se


desenvolvesse em todo o silencio, os malévolos conseguiram,
já depois de três meses, espalhar pela cidade diversos boatos
com referência às experiências. Diziam que na casa de davam
acontecimentos, os mais horrorosos; que excitávamos as
crianças sexualmente, para fazermos as nossas observações,
e mais coisas semelhantes. As repartições públicas mandaram,
então, proceder uma investigação.

As mesmas autoridades que aprovaram a Fundação do Laboratório


da Casa de Crianças, atendendo a denúncias caluniosas, ordenaram um
inquérito. O pediatra e o pedagogo da Comissão de inquérito foram a favor da
continuidade dos trabalhos. O psicólogo, entretanto, manifestou-se contra. Por
sua vez, o Comissariado do Povo para a Educação manifestou-se contrário à
Casa, declarando não poder mais sustentar a instituição por falta de verbas.
Nas palavras de Vera Schmidt (1934, p.18):

As repartições públicas mandaram, então, proceder a uma


investigação. A comissão de inquérito, composta por um
pediatra, um pedagogo, um psicólogo e um representante do
249

Comissariado do Povo para a Educação, trabalhou durante


meses, realizando conferências, conselhos e reuniões. [...] O
psicólogo [...] criticou as permanente a ação da Casa. Depois
disso o Comissariado [...] declarou que não pretendia mais
sustentar a Casa; motivou, porém, essa sua resolução com a
tradicional falta de verba.

No momento em que a Casa se preparava para fechar as portas, o


Sindicato dos Mineiros Alemães e Russos ofereceu-se para manter ideológica
e financeiramente a instituição. A partir de abril de 1922, a Casa de Crianças
passou a chamar-se “Lugar Infantil Solidariedade Internacional”, em alusão
óbvia à ajuda recebida. Contudo, outras calúnias e mais inquéritos acabaram
com o apoio dos mineiros e a pré-escola de Vera Schmidt foi obrigada a
encerrar definitivamente seus trabalhos. Segundo Schmidt (1934, p.20):

Esses fatos não impediram que na primavera de 1923, quando


faltaram para a manutenção do Laboratório os meios mais
necessários, por parte das repartições mais altas da União,
fosse posta em questão a existência do Laboratório.

É relevante percebermos que as perseguições à Pedagogia


Psicanalítica se desenvolveram com maior vigor à altura do momento em que
os princípios emancipatórios, proclamados pelo processo revolucionário de
1917, começavam a asfixiar-se ante a gradativa ascensão de Stalin ao poder.
A atitude politicamente autoritária empreendida pelo poder soviético,
principalmente a partir desse período, é sintomática da orientação das
autoridades governamentais e até mesmo dos psicólogos e de diversos
pedagogos. Por outro lado, se existiu reação popular contrária à pedagogia
schmidtiana, tal reação foi isolada, constituindo mais uma forma de exceção do
que propriamente a regra. O povo russo, em sua maioria, através de
associações e/ou sindicatos mostrou-se capaz de entender os valores de uma
pedagogia nãoautoritária. De conformidade, Reich (apud Schmidt, 1934, p.52),
afirma que:

[...] a Associação Psicanalítica Internacional teve igualmente


uma atitude [...] hostil em relação à experiência de Vera
Schmidt. Esta atitude negativa pronunciava já o
desenvolvimento posterior da psicanálise como uma teoria
antissexual. No entanto, o trabalho de Vera Schmidt era a
primeira tentativa na história da pedagogia para dar um
conteúdo prático à teoria da sexualidade infantil [...]. E, como
sempre, no curso da revolução sexual as autoridades, os
250

‘sábios’, os psicólogos e pedagogos em exercício preparavam


a [...] derrota, enquanto que os sindicalistas, sem qualquer
saber teórico mostravam, na prática, que tinham compreendido
o alcance do problema.

A repressão infantil em cada sociedade de classes - escravista,


feudalista, capitalista e/ou socialista -, ao longo do tempo, tem implantado nas
pessoas as estruturas psíquicas de que precisa para sua continuidade. Não se
trata, é claro, de somente implantar a submissão nos membros da sociedade,
mas de elaborar um processo que molda comportamentos de geração a
geração. Este processo é a educação. E o seu grande momento histórico é
quando surge o sistema público de ensino destinado à educação das massas.
Isso aconteceu quando a Europa fazia seis primeiros esboças da Revolução
Industrial.

Desde aqueles idos, a escola pública tem sido um importante


veículo da educação, reproduzindo nas crianças do povo os ideais da
sociedade onde acontece. Nas sociedades autoritárias, a escola leva as
crianças a construírem bases psíquicas necessárias à manutenção de seus
princípios reacionários.

O reconhecimento do papel da educação escolar autoritária nos


ensina que a supressão da liberdade na criança e no adolescente tem sido um
valoroso meio empregado para a consolidação da sociedade de classes
capitalista. Obviamente, a revolução soviética teria que lutar não só contra as
dificuldades econômicas, mas ainda contra o autoritarismo das relações
culturais oriundas do czarismo. Mas, não o fez. Desconheço qualquer indício
de que algum esforço possa ter sido feito pelo Estado durante a vigência da
extinta URSS (União das Republicas Socialistas Soviéticas) no sentido de
preparar as massas trabalhadoras para assumirem a administração da
sociedade. Ensinar a ler e a escrever, promover a higiene e transmitir
conhecimentos técnicos são coisas necessárias, mas nada tem a ver com
autogestão da sociedade, autonomia, liberdade ou igualdade social.

Embora Vera Schmidt tenha tentado desenvolver na URSS uma


pedagogia de orientação psicanalítica, voltada a uma organização
antiautoritária nas crianças, a Pedagogia Psicanalítica foi uma tentativa isolada.
251

As formas pedagógicas da União Soviética conservaram o teor autoritário,


característico da antiga educação da Rússia pré-revolucionária. Na antiga
Rússia czarista, o comportamento submisso e resignado havia sido pretendido
por um sistema de ensino autoritário e disciplinador. Os projetos pedagógicos
desenvolvidos a partir de 1917 - ainda que procurassem adaptar a criança à
vida coletiva perspectivada pelo socialismo - voltaram-se a tarefa de doutrinar o
educando segundo ideais socialistas, através de uma educação que, na
prática, verificou-se não menos autoritária, disciplinadora e coercitiva que as
antigas formas pedagógicas do antigo regime.

A criança oprimida por uma educação repressora manifesta sua


repressão através de uma inibição de movimento. No curso desse processo, a
criança reprimida perde sua graciosidade, torna-se introvertida e “difícil”. São
essas mesmas crianças que, mais tarde, irão compor o mundo adulto,
inevitavelmente conflituoso. Para Schmidt e Reich (s.d., p.40):

A criança reprimida torna-se tímida, cheia de apreensões,


temendo a autoridade, e desenvolve impulsos sexuais não
naturais, como as tendências sádicas. O comportamento livre,
ousado, é substituído pela obediência e dependência. A luta
contra os impulsos sexuais exige muita energia, atenção,
autodomínio; como as energias vegetativas deixam de ser
investidas no mundo exterior e na satisfação instintiva, a
criança perde o vigor motriz, a agilidade, a coragem e o sentido
do real, torna-se ‘inibida’.

A revolução cultural russa, que atacou a não escolaridade, os altos


índices de analfabetismo e a baixa tecnologia através do incentivo à pesquisa
científica e à criação inédita em solo russo de um sistema de instrução pública
coletiva, obrigatória e gratuita, criou, ainda, as pedagogias baseadas na
educação para o trabalho que procuraram ensinar a respeito de igualdade,
liberdade e justiça, à luz de antigos conceitos pedagógicos fundamentados na
disciplina, no autoritarismo e na repressão de ideias como solidariedade,
autonomia e sexualidade livre. De fato, como considera Neill (1984, p.26):

Primorosos prédios escolares são construídos para a educação


dos jovens. Mas todos os laboratórios e oficinas maravilhosos
nada fazem para ajudar John, Peter ou Ivan a vencer os
prejuízos emocionais e os males sociais nascidos da pressão
sobre eles exercida pelos pais, pelos professores.
252

Da mesma forma que a sociedade autoritária da Rússia czarista


não se transformou pela Revolução de 1917, também os seus antigos métodos
pedagógicos disciplinadores e coercitivos não cederam lugar à forma libertária
da pedagogia preconizada por Vera Schmidt. Na verdade, os traços da
repressão dos indivíduos - não só das autoridades, mas também do próprio
povo russo como um todo - manifestaram-se como um conjunto de defesas
contra os esforços libertários da Pedagogia Psicanalítica.

A pedagogia de Vera Schmidt foi a primeira tentativa na história


pedagógica de se fornecer um conteúdo prático à teoria psicanalítica. Ela
pretendia educar crianças para serem o amanhã de uma URSS fraterna, justa
e igualitária. No entanto, prevaleceram as formas pedagógicas de trabalho
mais interessadas em ensinar a submissão e a resignação diante do trabalho
compulsório. “É necessário educar para o trabalho”, eis o jargão quase
unanime entre capitalistas e comunistas. Como foi o caso da Pedagogia
Socialista, de Makarenko, também chamada “educação para o trabalho”. Assim
como têm sido tantas outras formas pedagógicas, decoradas com as cores da
liberdade pela educação, mas, em seu íntimo, consagradas ao infortúnio de
tantas criancinhas e jovens pelo mundo afora. Como nas escolas públicas
brasileiras, com suas jaulas decoradas com as teses do socialismo, mas que
têm despertado no aluno rebeldia e vandalismo, favorecendo a hegemonia da
educação autoritária, que encontra, assim, justificativa para seus argumentos
disciplinadores. Nossa escola pública está há muito tempo consagrada à
transformação de criancinhas em adultos submissos a uma relação de trabalho
onde receberão altas broncas e baixos salários.

Os apelos libertários não gozam de hegemonia nem entre os


psicanalistas. Entre nós brasileiros, o psicanalista Jurandir Freire Costa - em
sua obra intitulada “Violência e Psicanálise” – tece algumas críticas sobre os
trabalhos desenvolvidos por Vera Schmidt em seu Jardim de Infância -
Laboratório Casa de Crianças. Em sua análise, Freire Costa (1986) considera
que todo modelo pedagógico visa a adequação do indivíduo ao seu meio
social. Para este autor (1986, p.72): “A educação, todos sabem, produz
253

regimes de representação do mundo que visam obter o consenso em torno dos


interesses sociais hegemônicos, em uma dada sociedade”.

Todos sabem? Não estou bem certo disso. A perspectiva


pedagógica autorregulatória buscava a emancipação do sujeito através de uma
educação consagrada à autonomia do aluno, onde o argumento da força
encontra-se substituído pela força do argumento. Contudo, Jurandir Freire
Costa pretende considerar que as formas pedagógicas psicanalíticas visam
também à adequação do indivíduo a regras fixas de conduta social. Segundo o
autor:

A educação psicológica não foge a esta regra. Por mais que se


pretenda dar conta do que distingue os indivíduos e não do que
os une; por mais que pretenda incidir no desenvolvimento
emocional das pessoas e não em seus valores morais; sua
finalidade é a de [...] criar uma ‘norma psicológica’, fixando
certos registros e interpretação de fenômenos da esfera para
um determinado grupo social (FREIRE COSTA, 1986, p.72).

Há razão para um ceticismo saudável em relação a este ponto de


vista. Devemos dizer que a visão psicanalítica desse autor não corresponde à
pedagogia psicanalítica em geral. Em seu texto, Freire Costa considera que
nenhuma pedagogia psicanalítica pode buscar saúde psíquica para seus
educandos, ainda que seja pela prevenção da neurose. Em que pese o fato de
que a Pedagogia Psicanalítica de Schmidt não tenha conseguido demonstrar
que poderia atingir seis objetivos pedagógicos, outras experiências
pedagógicas psicanalíticas conseguiram. Como é o caso da pedagogia
psicanalítica desenvolvida por Alexander Neill em sua escola Summerhill. E de
mais cerca de 200 experiências pedagógicas exitosas que hoje se espraiam
pelo mundo afora. Mas até mesmo essa pluralidade de perspectivas
pedagógicas psicanalíticas é contestada por Freire Costa (1986, p.65), para
quem:

Reduzida à expressão mais simples, educação quer dizer


instrução psicológica segundo o que cada profissional
considera a ‘boa psicologia’ [...]. O raciocínio é simples:
existirão tantas ‘boas educações psicológicas’ quantas forem
as preferências teóricas dos responsáveis pela educação. [...]
Como é previsível, as chances de um acordo em torno da ‘boa
educação’ são, em princípio, pequenas [...] Perguntaríamos,
254

então, qual dessas correntes [...] promoveria a boa saúde


mental?

A lógica cética do autor em relação a não existência de um


horizonte pedagógico psicanalítico único parece equivocada e totalmente
desprovida de razão. Seria um empreendimento arriscado esperar que o
sucesso resida tão somente na singularidade de opiniões. Não se pode
pretender que haja consenso em todas as áreas do conhecimento. No campo
da filosofia, por exemplo, é difícil obter consenso na interpretação de uma dada
realidade entre positivistas, metafísicos e marxistas. De igual modo, não
poderíamos pretender, que houvesse unidade de esforços entre políticos
socialistas, liberais, comunistas e neoliberais. A ideia de uma “inexistência de
divergências” é fantasiosa, utópica e idealista. E só pode haver em formas
ingênuas e equivocadas de se refletir sobre o mundo e sobre as pessoas
dentro dele. Como não menos fantasioso seria supor que tais divergências
existiriam tão somente no âmbito das formas pedagógicas psicanalíticas. O
mundo está abarcado de divergências.

Vera Schmidt considerava que o indivíduo pode regular seus


limites e possibilidades, livre das rígidas repressões impostas pelo meio em
que vive. Este entendimento aproximou-se do conceito de autorregulação
elaborado por Wilhelm Reich. Ademar Ferreira dos Santos, no prefácio do livro
de Rubem Alves, intitulado: “A escola que sempre sonhei sem imaginar que
pudesse existir” considera que uma educação autorregulada pressupõe que as
normas e regras que orientam as relações societárias não são injunções
impostas do exterior,

[...] mas normas e regras próprias que decorrem da


necessidade sentida por todos de agir e interagir de uma certa
maneira, de acordo com uma ideia coletivamente apropriada e
partilhada do que deve ser o viver e o conviver numa escola
que se pretenda constituir como um ambiente amigável e
solidário de aprendizagem (SANTOS, apud ALVES, 2001).

Vera Schmidt, desenvolveu sua proposta pedagógica na Rússia


leninista, ou seja, num momento em que a perspectiva emancipatória do ser
humano era uma imensa esperança coletiva que tomava conta de todo o povo
russo. Sua forma pedagógica, de cunho psicanalítico, visava não o combate
255

terapêutico da insanidade emocional, mas, fundamentalmente, a sua


prevenção pelo combate às formas repressoras que promovem no educando,
uma rígida renúncia aos seus instintos. Acreditava que em toda a criança há
uma relação entre frustração e satisfação. Para ela, a mais adequada maneira
de educar uma criança é aquela em que ocorrem frustração e satisfação
parciais. O que tem caracterizado o ensino em nossas escolas públicas é a
presença de uma ação educacional bastante frustrante e hipócrita. Schmidt, tal
como Ferrer y Guàrdia, Paul Robin ou Alexander Neill, acreditava numa
educação libertária. Acreditava que os educandos são capazes de entrar em
contato direto com seus sentimentos e experimentá-los o mais livre e
autenticamente possível. Da liberdade resultaria a autonomia e da autonomia,
o aprendizado.

Esta foi uma forma pedagógica que se preocupou em evitar o


autoritarismo como centro da educação de crianças e jovens e permitir uma
educação para a liberdade. Foi mais uma tentativa bem intencionada, como
outras tantas. E, como tantas outras, foi perseguida e, finalmente, destruída.
Infelizmente, no dia a dia escolar, o filho do homem simples é esmagado,
diminuído e resignado, convertido em mero espectador. Na escola pública o
aluno se vê dirigido pelos mitos que forças sociais poderosas criam para ele.
Mitos que, voltando-se contra ele, o destroem e aniquilam.

Sem embargo, a vida é uma grávida de possibilidades. Muitas


formas pedagógicas libertárias também conheceram a prosperidade. Como
cantou Caetano Veloso, "alguma coisa está fora da nova ordem mundial".
Aliás, aqui mais uma lição para os professores fura greves, para os workaholics
e para os hipócritas sempre de plantão: o risco está inexoravelmente presente
numa forma pedagógica libertária. Qualquer que seja sua perspectiva:
socialista, anarquista, independente. É apenas assumindo o risco que se pode
assumir a autonomia. Somente quem assume o risco pode conseguir se
autorregular e lançar-se num horizonte amplo, de possibilidades ilimitadas, livre
das balizas irresponsáveis da educação autoritária da escola pública.

Como diria o velho e bom Reich, “amor, trabalho e


conhecimento são as fontes de nossa vida. Deveriam também governá-la”.
Assim acreditando, concluo com o poema de Ademar Ferreira dos Santos
256

(SANTOS, apud ALVES, 2001) que nos ensina de forma sensível a trilha de
uma educação autorregulada:

Não cobiço nem disputo os teus olhos


não estou sequer à espera que me deixes ver através dos teus olhos
nem sei tampouco se quero ver o que veem e do modo como veem os teus olhos
Nada do que possas ver me levará a ver e pensar contigo
se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo
Não me digas como se caminha e por onde é o caminho
deixa-me simplesmente acompanhar-te quando eu quiser
Se o caminho dos teus passos estiver iluminado
pela mais cintilante das estrelas que espreitam as noites e os dias
mesmo que tu me percas e eu te perca
algures na caminhada certamente nos reencontraremos
Não me expliques como deverei ser
quando um dia as circunstâncias quiserem que eu me encontre
no espaço e no tempo de condições que tu entendes e dominas
Semeia-te como és e oferece-te simplesmente à colheita de todas as horas
Não me prendas as mãos
não faças delas instrumento dócil de inspirações que ainda não vivi
deixa-me arriscar o molde talvez incerto
deixa-me arriscar o barro talvez impróprio na oficina onde ganham
forma e paixão todos os sonhos que antecipam o futuro
E não me obrigues a ler os livros que eu ainda não adivinhei
nem queiras que eu saiba o que ainda não sou capaz de interrogar
Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da descoberta
e com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos
ajuda-me serenamente a ler e a escrever a minha própria vida.

Capítulo 16 – Meu primeiro ano na escola

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


257

Monstro de escuridão e rutilância,


Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

(Trecho de “Psicologia de um Vencido” -


Augusto dos Anjos)

Aproximei a cadeira da janela e enquanto tentava adivinhar se iria


chover ou não, meus olhos me trouxeram, através do fumê da vidraça, umas
migalhas do passado. Me veio, numas reminiscências longínquas, a imagem
de Dona Nair, minha primeira professora. Uma criatura medonha que, tão logo
adentrava à sala de aula, parecia me procurar com os olhos escondidos por
detrás de uns óculos grandes, pendurados no rosto magro e manchado pelo
vitiligo. Senti um arrepio instantâneo. Mas, ao menos aquela lembrança me
inspirou a escrever minhas memórias da escola pública.

Os alunos, quietos, engolfados em suas carteiras, levantavam-se


prontamente para saudar a entrada da professora ou de qualquer outra
“autoridade”. Estávamos em plena ditadura militar. E na pequena escola de
primeiro grau também sofria-se as agruras das obrigações provocadas por um
regime ditatorial. As professoras aplicavam, com rigor, um ensino rígido que
comungava com os ditames dos milicos no poder. Era o ano de 1972 e o país
estava sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici. Ele fez o “milagre
econômico brasileiro”: maquinizou a agricultura com dinheiro estrangeiro
emprestado e expulsou para a cidade vultuosas quantias de pequenos
trabalhadores rurais. E apaziguou os revoltosos nos quartéis ao permitir que
grupos paramilitares da direita radical empregassem o uso da repressão militar
sistemática contra todos os opositores da ditadura.

A ditadura militar promoveu uma expansão da educação escolar,


mas cortou as verbas destinadas para educação. O que, aos poucos, delineou
os contornos da situação atual da escola pública. O ensino agora deveria servir
primordialmente para preparar trabalhadores para o mercado. A expansão da
educação escolar aconteceu de forma conservadora, assentada na
precarização da escola pública, no surgimento e consolidação das escolas
258

particulares, na orientação da educação pública para o trabalho e, mais


recentemente, no fortalecimento da educação à distância. A euforia pedagógica
humanista que fervilhava entre os professores brasileiros no período anterior
1964 foi substituída por uma postura pedagógica acrítica e autoritária, de cunho
profissionalizante. Os professores com ideias e condutas tidas como
subversivas aos alegados “interesses nacionais” foram violentamente
perseguidos, presos, torturados e assassinados pelos militares. O governo
milico atingiu, logo de início, estes três grandes educadores: Paulo Freire,
Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Paulo Freire e Darcy Ribeiro foram
perseguidos, presos e exilados e Anísio Teixeira foi encontrado morto num
fosso de elevador.

Calados os professores “rebeldes”, faltava fazer eclodir nos que


ficaram na escola os valores da ditadura. Os professores conservadores
saíram do armário e os professores progressistas e rebeldes abandonaram
suas bandeiras e juntaram-se a eles. A escola vivenciou uma exacerbação do
pensamento conservador e autoritário como nunca se vira antes em terras
tupiniquins. Evidentemente, o futuro da humanidade depende, em grande
monta, de uma educação contra a barbárie e o fascismo. Esses rompantes
conservadores já aconteceram inúmeras vezes na história da humanidade e
mostram hoje renovado vigor. Contudo, os educadores têm demonstrado que
não desejam assumir essa responsabilidade e permanecem fugindo e se
esquivando. Sobre isso, já alertava Wilhelm Reich: “Você já se teria livrado dos
seus opressores há muito tempo se não tivesse aprovado a opressão, e lhe
dado tantas vezes apoio direto” (REICH, 2007, p.20).

É triste concordar com uma frase que parece retirada de uma


cartilha do fascismo, mas, ao que parece, o ser humano não está preparado
para a autonomia. Via de regra, é o professor, digno representante da
sociedade em que vive, a preferir uma vida de sujeição a assumir sua própria
autonomia e independência. Etienne de La Boétie (1982, p. 30), em seu
“Discurso sobre a Servidão Voluntária”, publicado logo após sua morte, em
1563, já percebera a notável disposição das pessoas para a sujeição a um
259

senhor. E a disposição voluntariosa das multidões de trabalhadores para a vida


servil e resignada diante de apenas uns poucos opressores:

Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que se


deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de
homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não
obrigados por uma força maior, mas de algum modo [...]
encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem
não devem temer o poderio pois ele é só [...]. (LA BOÉTIE,
1982, p. 12).

La Boétie (1982) nos mostra que se o povo não se sente


ameaçado pelo opressor, mas por aqueles que tentam libertá-lo de seu jugo:

O povo gosta de acusar dos males que sofre não o tirano, mas
os que o aconselham: os povos, as nações, toda a gente,
incluindo os camponeses e os lavradores, todos sabem os
nomes deles e os respectivos vícios; sobre eles lançam mil
ultrajes, mil vilanias, mil maldições. Todas as suas orações e
votos são contra eles. Todas as desgraças, todas as pestes,
todas as fomes lhes são atribuídas e, se às vezes,
exteriormente, lhes tributam algum respeito, não deixam de
amaldiçoá-lo no mais fundo do coração, têm por eles um horror
maior do que têm aos animais ferozes (p.30).

A sociedade não está dividida entre ricos/opressores/capitalistas e


pobres/oprimidos/socialistas. Obviamente, os ricos são capitalistas opressores
dos trabalhadores pobres. Contudo, o fato de ser pobre não faz com que a
pessoa comungue dos ideais socialistas de empatia, solidariedade, coletivismo,
cooperação e alteridade. Sem embargo, existem pobres cobiçosos,
gananciosos, individualistas e tiranos. No mais das vezes, o pobre é um rico
capitalista/individualista que não deu certo. Se por um milagre ou outro um
pobre fica rico ele não promove a anistia social e econômica dos desvalidos,
mas passa a explorá-los. Há alguma coisa no interior das sociedades humanas
impedindo que aconteça uma revolução autêntica, a comandar os pobres na
sublevação não apenas contra os ricos, mas, especialmente, contra a
exploração do homem pelo homem, o individualismo, a desigualdade, a
injustiça, a competição social e a predisposição á barbárie.

O que se viu nas tantas revoluções socialistas que fizeram história


pelo mundo afora foi um movimento igualitário e coletivista refreado e
transformado em golpe contra o povo pelo princípio universal da força; o
260

desfecho infeliz da revolta do povo contra sua opressão social. Assim


aconteceu na Alemanha nazista, quando o povo acolheu e promoveu um dos
maiores tiranos da humanidade a seu líder. Assim aconteceu por aqui quando
o ditador Getúlio Vargas, que governou o Brasil como ditador de 1930 a 1945,
retornou ao poder, em eleição direta, em 1951, como se disse na época: “Nos
braços do povo”. Getúlio apoiou Hitler, perseguiu e assassinou milhares de
dissidentes e proibiu sindicatos e greves trabalhistas para facilitar seu controle
sobre ao povo, a tônica de mudar para deixar como está. A tônica histórica da
política brasileira de mudar para deixar como está.

A ditadura militar de Vargas serviu de inspiração à ditadura militar


de 1964 a 1985. E esta última foi a incubadora onde foi gestado muito do
comportamento conservador dos nossos professores conservadores. Em que
pesem os discursos progressistas dos PPPs (Projetos Político Pedagógicos) e
PTDs (Planos de Trabalho Docente), os professores conservadores constituem
ainda hoje maioria absoluta entre os ditos "educadores". Professores que
defendem os receituários do mercado para a solução dos problemas da
administração pública e, assim, reforçam em seus alunos o consentimento
diante das estruturas do Estado resistentes à transformação social.
Professores cuja categoria tem se mantido unida na votação contrária às
greves e nas eleições de governantes conservadores, como é o caso do
governador Beto Richa, no Paraná. Categoria essa que ainda se julga no
direito de encher-se de indignação quando seus direitos trabalhistas são
aviltados por aquele que ela ajudou a colocar no poder. Mas, por que a
indignação quando acontece o esperado? Somente uma análise dos bastidores
da vida emocional do professor poderia nos dizer as razões que levam os
professores da escola pública a comungarem com os ideais conservadores e
classistas da sociedade capitalista. Mas, esse é assunto para uma outra
escrita.

Tido como um país “mal-educado”, com índices vertiginosos de


analfabetismo, o Brasil das décadas de 1950 e 1960 assistiu a um intenso
debate sobre a educação brasileira que resultou na formulação de propostas
progressistas para uma escola mais democrática e popular. Uma escola que
261

pudesse colaborar com a superação das desigualdades sociais. Havia uma


efervescência política e pedagógica no período anterior ao golpe de 1964.
João Goulart, o Jango, assumira a presidência em 1963, iniciando uma gestão
política que tinha na pauta a reforma agrária, o combate ao analfabetismo e o
direito do analfabeto poder votar. Muitos educadores pensavam em formas de
capacitar os alunos para entender, enfrentar e superar a realidade injusta e
desigual onde viviam. A sociedade brasileira fervilhava com projetos
educacionais humanistas e inovadores que, com o golpe de 1964, foram
devastados pela ditadura. Essas inovações aterrorizaram os conservadores. E
em 19 de março de 1964, a direita organizou uma manifestação chamada
“Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Termo contraditório, como tudo
o mais no capitalismo. Milhares de militares, religiosos, burgueses e pobres
conservadores foram às ruas, assentando os alicerces para os 21 anos de
repressão da ditadura militar que viriam a seguir.

Em 30 de outubro de 1969, o general Emílio Garrastazu Médici foi


escolhido por uma junta militar para a presidência. Com mãos de ferro, Médici
conduziu a presidência do Brasil por cinco terríveis anos que ficaram
conhecidos como os “anos de chumbo”. A censura conheceu vigor estrondoso.
E centenas de pessoas foram presas, torturadas, assassinadas ou exiladas. A
guerrilha rural do Araguaia foi fortemente combatida. Em 1974, somente 20 dos
80 militantes da guerrilha do Araguaia ainda estavam vivos. Sobre este
fantástico pano de fundo o governo militar encenou seu chamado “milagre
econômico”. O PIB nacional crescia quase 12% ao ano. Entrementes, a
inflação chegava aos 18%. O “milagre” fora consequência dos investimentos
internos custeados por empréstimos junto a bancos internacionais,
especialmente os estadunidenses. Grandes obras de infraestrutura foram
realizadas, como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica. Esta última,
por exemplo, foi uma euforia bilionária que levaria “homens sem terra a uma
terra sem homens”, mas que se converteu num fiasco monumental que ligou
coisa nenhuma a nenhum lugar.

Entrementes, na agricultura o milagre econômico brasileiro se fez


valer através de um processo de modernização agrícola, baseado na
262

mecanização dos grandes latifúndios através de subsídios do governo. A


introdução da máquina nas grandes propriedades rurais aumentou, uniformizou
e otimizou a produção. Os pequenos proprietários, que possuíam uma
agricultura de subsistência, não conseguiram competir no mercado. Os
produtos dos grandes fazendeiros tinham melhores predicados. Então os
pequenos proprietários, depois de terem resistido o quanto puderam,
acabavam vendendo suas terras para quem quisesse pelo preço que dessem.
E as pequenas propriedades foram aos poucos sendo engolidas pelas grandes
fazendas. E os antigos pequenos proprietários rurais migraram para as
cidades, onde compuseram um exército de mão de obra braçal barata,
desempregada e desqualificada. A outrora qualidade de vida da roça deixou de
existir e cedeu seu lugar, na periferia dos grandes centros urbanos, para a
miséria, a fome, o tráfico, o crime e a desesperança.

Um dos principais subprodutos do famigerado milagre econômico


brasileiro foi a concentração de renda entre os ricos do país. Em 1972, 39,8%
da renda nacional estava na mão de 1% da população. Em 1960, essa
concentração era de 28,3%. O regime se afirmava sob a máxima de fazer o
bolo crescer para que depois ele fosse dividido. Mas tal divisão não foi feita
jamais. Médici não fez um milagre econômico para todos, mas atendeu as
necessidades mais extravagantes da elite econômica brasileira, mancomunada
com o governo estadunidense. O capitalismo por aqui mostrou sua face mais
medonha, cavoucando um abismo quase intransponível entre ricos e pobres.
Em quase nenhum espaço do globo tantos tiveram tão pouco enquanto tão
poucos tiveram tanto. O tal milagre econômico concentrou a riqueza nas mãos
de uns poucos enquanto a maioria absoluta definhava na miséria. A gente
pobre e quase escrava, confinada em seus barracos nas favelas e subúrbios,
assistia seus dramas com a resignação de quem assiste da janela de um
ônibus a paisagem passar. Enquanto uma diminuta classe média, mergulhada
no lamaçal de uma ostentação fraudulenta e hipócrita, lutava
desesperadamente – e ainda luta - por uma ascensão social praticamente
irrealizável.
263

Na escola, a repressão deitou sua mão pesada sobre os


educadores nos ensinos fundamental, médio e superior. Perseguições,
escutas, cassações, expulsões, desaparecimentos, prisões, torturas,
assassinatos e exílios fizeram uma devastação entre aqueles educadores que
tinham ideias de esquerda. As verbas para a escola pública diminuíram
significativamente. Surgiram as escolas particulares, enquanto o ensino público
tornava-se profissionalizante. A escola pública nem sequer disfarçou sua lida
na fabricação de trabalhadores úteis e obedientes. Salvo pela lei 5692, de
1971, segundo a qual, a escola deveria educar para o exercício consciente da
cidadania. Neste comenos, uma pergunta contumaz se faz ainda pertinente:
afinal de contas, que educação, que consciência e que cidadania eram essas
em plena ditadura militar?

“Brasil, ame-o ou deixe-o”, “Pra Frente Brasil” e “Ninguém segura


este país” foram adotados pelos milicos no poder. Mas, o tal “milagre
econômico” havia sido fabricado as custas de empréstimos junto aos
banqueiros estadunidenses, a juros impagáveis, que de tal insanidade,
beiravam o despudor. Como sempre acontece, a crise lá de fora alcança –
cedo ou tarde – o Brasil. Em 1973, A Crise do Petróleo freou o “milagre
econômico” conduzido pela caserna. A exportação dos produtos minerais,
industriais e, principalmente, agrícolas, diminuíram. E consequente a qualidade
de vida da população. Ao invés de enfrentar a crise dividindo o ônus entre
todos, os militares preferiram, como era de se esperar, fazer com que os
trabalhadores arcassem com os prejuízos, enquanto a burguesia rural,
financeira e industrial era mantida a salvo por medidas protecionistas. Tal como
acontece hoje.

A educação é um campo onde a prática pedagógica e a política,


inevitavelmente, se fundem. Amiúde, numa sociedade marcada pela exclusão
social e econômica da maioria da população, a educação pública somente
poderia estar atrelada à manutenção do status ontológico dessa sociedade.
Sem embargo, a escola pública, foi e tem sido, um aparelho ideológico do
Estado. Durante a ditadura, a escola para os pobres se configurou numa
sombra caricata do que diziam as sempre bem intencionadas políticas públicas
264

dos governantes. E, de lá para cá, a tal pedagogia libertadora, crítica e de


transformação social confinou-se, em que pesem as sempre boas intenções de
seus ilustres idealizadores, nas páginas esquecidas e bem empoeiradas dos
Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, dos Planos de Trabalho Docente
dos professores e dos projetos governamentais para a escola pública.

Numa espécie de “New Deal” brasileiro, o “milagre econômico


brasileiro” foi o filho bastardo da ditadura militar que nasceu doente terminal.
Viveu o quanto pôde e já moribundo tentou se erguer sobre as costas dos
desvalidos da nação. Porque nem seus pais, os ricos e os militares, nem seus
padrinhos, os banqueiros estadunidenses, reconheceram a responsabilidade
pelo rebento bestial. Seu funeral assistiu o amontoamento de massas humanas
díspares nas periferias urbanas e nas favelas, como efeito colateral da
chamada “revolução agrícola”. Uma revolução feita às custas de uma política
de incentivos fiscais (doações de dinheiro) da Sudene (Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste) e da Sudam (Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia), para capitalistas urbanos tornarem-se
gigantescos proprietários de terra no Brasil, com áreas tão grandes que jamais
foram registradas na história da humanidade. Foi como se Robin Hood, por
aqui, tivesse enlouquecido e feito tudo às avessas: roubou dos pobres para dar
aos ricos.

Na década de 1970, a maquinação do campo expulsara o


camponês para os centros urbanos. O que implicou numa urbanização radical
da vida social brasileira, transformando o antigo camponês em mão de obra
braçal barata na cidade. Os filhos de toda essa massa humana disforme, vinda
de norte a sul do país para as grandes capitais, em especial São Paulo e Rio
de Janeiro, precisava de estudo. Não porque o ex-camponês pretendesse que
seu filho estudasse, ele mesmo não estudara. Mas, porque o mercado de
trabalho precisava de seus filhos tivessem os conhecimentos aumentados e a
autonomia diminuída. E a escola faria essa tarefa. Assim, domesticado e
capacitado para o trabalho, poderia ser melhor explorado nas engrenagens
sociais do sistema. Tão logo essas crianças pobres adentraram à escola
265

pública, surgiram escolas particulares subsidiadas pelo governo para receber


os filhos dos ricos, com uma outra perspectiva educacional.

A dificuldade que os professores possuem de lidar com a


aprendizagem de forma democrática, a intolerância à diversidade, a cisma com
o mais pobre, o surgimento e fortalecimento da educação particular e até
mesmo a arquitetura prisional dos prédios escolares são heranças hoje da
ditadura militar. Lembro-me do retrato do general Garrastazu Médici no
corredor da escola, de uma grande bandeira nacional à esquerda do quadro
negro na sala de aula, das canções de exaltação ao regime, das aulas de
Educação Moral e Cívica, dadas por um juiz de direito, cujo maior orgulho
parecia ser o de ter servido o serviço militar. Lembro-me do semblante austero
e inflexível de Dona Débora, a diretora baixinha, gordinha e de fala baixa.
Nunca vi um riso por detrás daqueles grandes óculos escuros. Na maioria das
aulas de Educação Física, aprendíamos a fazer ordem unida, como se nosso
futuro inexorável fosse a caserna. E em Educação Artística, aprendíamos
jogral, ou seja, a declamação de poemas onde grupos de três ou mais alunos
se revezavam nas falas de poemas nacionalistas, como a “canção do exílio”,
de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves,
que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá [...] Não permita Deus que eu morra,
Sem que volte para lá”.

Como inventário das minhas piores dores e melancolias, as


lembranças dos meus primeiros anos como aluno da escola pública parecem
arrancadas da “Psicologia de um Vencido”, de Augusto dos Anjos. Anos
tenebrosos foram aqueles. E dentre eles, o primeiro ano foi, sem dúvida, o pior.
Pudesse eu ter contado aqui todo o resto da minha história de vida, não teria o
sofrimento emocional daquele ano terrível de 1972. Ainda que eu tenha tido
uma vida bastante povoada por experiências depressivas, transtornos
alimentares, obesidade mórbida e quatro falências conjugais. E mesmo uma
tentativa de suicídio. Faltou-me, todavia, a coragem que não faltou ao meu
sogro ao amarrar um corda no pescoço e dar o passo derradeiro.

No interior das escolas, dentro de cada sala de aula, as leis da


ditadura ganhavam vigor. Regras rígidas, obediência e professores
266

extremamente autoritários e punitivos compunham um cardápio pedagógico


onde a ditadura fazia suas mais fecundas incursões. Não havia como escapar
da repressão. Os alunos tinham de se reunir em uma espécie de ordem unida
no pátio quando tocava o sinal, em filas separadas por sexo, com os alunos
alinhados do mais baixo ao mais alto. Todos devidamente uniformizados. Um
deles cuidava e dedurava quem não fizesse a coisa certa. E, então, a bandeira
nacional era hasteada e cantávamos o hino nacional com a diretora e os
professores perfilados à nossa frente em uma espécie de palco, que mais
lembrava um enorme altar. Depois, na sala de aula, rezávamos o pai-nosso.

A estrutura e funcionamento da educação formal foi radicalmente


alterada pelo regime militar. O modelo anterior, vigorante desde 1939, dividia o
ensino em pré-primário (maternal e jardim de infância); primário com duração
de quatro anos; e médio com sete ou oito anos divididos em quatro anos para o
ginasial e quatro anos para o colegial. E os gastos públicos com educação
diminuíram. Durante o governo de João Goulart, o Congresso Nacional previa
que a União tinha que investir ao menos 12% do PIB (Produto Interno Bruto)
em educação. E obrigava estados e municípios a alocarem 20% do seu
orçamento na área. Em 1967, uma nova Constituição, aprovada pelo regime
militar, desobrigou a União e os estados a investirem esses valores em
educação. Já em 1970, o percentual de investimentos em educação foi de
7,6% do PIB, caindo para 4,31% em 1975 e 5% em 1978. Ao lado da
diminuição do orçamento para a educação escolar, o governo implementou
uma política de expansão da educação. O aumento da oferta, acompanhado de
uma diminuição severa no orçamento, serviu para danificar irremediavelmente
a educação escolar e reforçar as desigualdades não só dentro da escola, mas
especialmente fora dela. Embora significativos contingentes populacionais
puderam ter acesso à escolaridade, a educação pública ofertada pela escola
pública começou a ser de baixíssima qualidade. Com parcos investimentos do
governo, os salários e as condições de trabalho dos professores sofreram um
crescente processo de deterioração, fazendo com que os mais talentosos
trocassem a profissão por outras mais dignas e rentáveis.
267

A precarização da qualidade de ensino da escola pública


desembocou na abertura do ensino escolar para a iniciativa privada e no seu
amparo pelo poder público. A Constituição de 1967, em seu artigo 168, dizia
que: “Sempre que possível, o Poder Público substituirá o regime de gratuidade
pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior reembolso no caso
de ensino de grau superior”. Assim, estava criada a lógica vil que segrega os
filhos dos ricos dos filhos dos pobres. Houve, a partir daí uma educação de
qualidade para os ricos, com maiores chances de chegar ao ensino superior,
enquanto aos filhos dos pobres coube uma educação pública ruim, que
praticamente impossibilitou sua entrada nos cursos universitários,
especialmente aqueles que preparam para os postos de trabalho mais
rentáveis, como medicina e agronomia.

Naqueles penosos anos da ditadura militar, todo professor


aprovado em concurso público precisava apresentar um “nada consta” do Dops
(Departamento de Ordem Política e Social), que foi o órgão histórico da
repressão e o principal centro de tortura e assassinato aos membros dos
movimentos de contestação durante a ditadura. As salas de aula possuíam
escuta e o professor tido como politizado era sumariamente demitido. E muitas
vezes preso, torturado e morto. Pelas salas e corredores do Dops transitou
muita gente da CIA (Central Intelligence Agency), uma das agências do serviço
secreto de espionagem dos EUA. Muitos registros dão conta da intromissão
estadunidense na vida política brasileira desde a década de 1940, entretanto o
ponto mais elevado desta intromissão aconteceu mesmo durante a ditadura
militar de 1964 a 1985, quando agentes da CIA chegaram a treinar brasileiros
abastados economicamente e seus puxa-sacos, os chamados “pobres de
direita” contra o inimigo de esquerda.

Nessa consternada atmosfera, onde a educação escolar era


vigiada e intimidada, surgiam professores conservadores, autoritários e
disciplinadores, absolutamente sintonizados com a rigidez e a repressão
ditadas pela caserna. O ensino, no mais das vezes, estava assentado numa
base positivista onde o professor era tido como aquele que detém o
conhecimento e, através de uma pedagogia fundamentada na decoreba,
268

ensinava o aluno, que nada sabe. Por sua vez, as avaliações visavam
descobrir se o aluno se apropriara da “verdade” dita pelo professor. O
pensamento crítico, criativo e questionador estava banido. Afinal, para que
precisariam disso esses futuros trabalhadores braçais? Assim como também
estavam banidas a criatividade, a imaginação, a liberdade de comunicação e
de movimentação dentro da sala de aula. Os castigos físicos concedidos aos
alunos pelos professores, sob a forma de reguadas, puxões de orelha e
beliscões, dividiam lugar com a humilhação dos alunos fracos ou
indisciplinados. Não havia espaço para que os talentos pudessem aflorar. A
tarefa da escola pública, na verdade, era a de mitiga-los a um quase nada.

Metonímia da sociedade capitalista brasileira, a escola pública


idealizada pela ditadura militar – de cujos auspícios somos herdeiros hoje –
possui uma classe dominante: os professores e administradores; e uma classe
dominada: os alunos. Estes últimos, tal como acontece com os pobres fora da
escola, possuem tão somente o monopólio da ignorância e dos deveres.
Havendo entre os professores uma certa adoração pânica, quase ritualística,
em torno da disciplina e um contagioso assombro em torno do fracasso escolar
que teima em cravar suas unhas nas entranhas da escola. Entre professores e
alunos vê-se mesmo um terreno árido onde os contatos fraternos estão
proibidos. Há uma certa decência docente melindrosa que não vê com bons
olhos a mistura entre alunos e professores. Ainda que não diga ou que não
reconheça isso, o conservadorismo é um traço indelével da escola pública
brasileira.

Fui matriculado na primeira série do primeiro grau da escola


pública, aos seis anos de idade, em 1972. Um ano após o governo militar
instituir a Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus, que tornou a educação
tecnologicamente orientada para o ensino profissionalizante. A escola pública
se transformara numa fábrica de trabalhadores úteis e obedientes. Aos seis
anos de idade eu já havia sido semialfabetizado por minha tia que morava
comigo e era professora. Também tinha aprendido alguns números e contas
simples. Basicamente, o que teria de aprender no meu primeiro ano escolar. E,
então, fui matriculado na escola. Lembro-me ainda hoje como esperei ansioso
269

pelo meu primeiro dia de aula, como quem iria ganhar um maravilhoso
presente. Estava radiante com meus olhos pidonchos cheios de esperança.
Queria ver a vida que eu ainda não tinha visto. E vi. Não o que eu queria ver,
mas vi!

Os métodos clássicos de tortura escolar como a palmatória e o


ajoelhar no milho já haviam sido abolidos. Mas não haverá sofrimento maior
para uma criança forçada a não mover-se, a não comunicar-se, a obedecer
cegamente ordens que ela não consegue entender. Se bem que minha
professora era bastante criativa e inventava caminhos alternativos e bastante
inusitados de coerção e tortura física. Lembro que eu tinha o gosto pelo
desenho. Era um garotinho bastante criativo. E minha professora me batia
muito por isso. A visão culposa do aluno conduzia aquela professora ao uso
contínuo do castigo como via de correção. A escola pública deitou cedo em
mim seu punho impositivo. Nela, ao cabo de poucos dias de aula, posto que já
não haviam mais senão cinzas de minha ilusória paixão pela escola, tive asco
ao descobrir suas garras sempre dispostas a me ferir. Logo nos primeiros dias,
as aulas me pareceram terríveis. Fui obrigado a reaprender tudo o que eu já
tinha aprendido em casa. “Já sei fazer isso”, dizia eu à professora. E ouvia
sempre um sonoro: “Cale a boca e faça o que eu estou mandando!”. A
represália da professora vinha sempre acompanhada de um beliscão ou outro
safanão qualquer. Nas primeiras aulas daquele meu primeiro ano letivo eu
terminava sempre as tarefas antes de todos. E, então, virava a página do
caderno e fazia desenhos enquanto os outros alunos ainda faziam suas
tarefas. A professora ficava indignada e me batia. Eu não entendia por que ela
ficava tão brava. Até hoje não entendi.

Aos seis anos de idade eu era uma criança tímida, criativa,


sensível e bem educada. Contudo, isso não bastou para que a tal professora
não desenvolvesse um obstinado ódio contra mim. Todos os dias,
compulsivamente, me tacava giz e apagador. E, para meu desespero, tinha
uma das melhores pontarias que eu já vi. Rotineiramente, essa criatura
abominável me batia com uma régua grande de madeira, me dava croques na
cabeça, me puxava o cabelo e a orelha, me dava beliscões no braço e tapa na
270

cabeça ou na nuca, gritava comigo, me pegava com força pelo braço e saia me
arrastando pela sala até o quadro negro onde me humilhava perante os alunos:
“olhem aqui, o Gian pensa que é um artista!”. Ao que se seguia um sonoro coro
de gargalhadas das demais crianças. Ela me chamava de imprestável, burro,
idiota, malcriado, ordinário, sem vergonha, preguiçoso, vagabundo e coisas do
tipo. Enfim, o que lhe viesse à boca. Só lhe faltavam palavrões, afinal, a tal
professora era evangélica. Uma típica pessoa de Deus. E, portanto, não falava
palavrões. Acho que foi assim que eu fui apresentado condignamente para a
hipocrisia do mundo adulto.

Se o seu comportamento absurdamente destemperado primava


pela falsidade, sua falta de beleza era para mim bastante verdadeira. Tinha
diversas manchas brancas pelo rosto e pelos braços devido ao vitiligo. Usava
óculos “fundo de garrafa”, tinha a boca chupada para dentro, sem lábios
aparentes, e buço. Ela não tinha nádegas. Ao menos parecia não ter. Era reta
e muito magra. Jamais percebi seios naquele vestido comprido que ia até
quase até os pés daquela criatura. E havia sempre um guarda pó branco por
cima do vestido de cujos bolsos brotavam sempre um ou outro toco de giz que
ela não hesitava em atirar-me na cabeça. Tinha o cabelo amarrado atrás, em
rabo de cavalo que ia até abaixo da cintura. Um pedaço de canelas cabeludas
se deixavam ver entre as meias e o começo do vestido. Pra mim era a visão do
inferno. Uma bruxa. Ou um demônio feio e torturador pra quem eu devia
sempre retornar dia após dia. O que delineou em mim os primeiros contornos
conceituais que separam o feio e o belo. Mister dizer que não pretendo aqui
fomentar uma discussão acerca do que é ou do que deixa de ser a beleza.
Contudo, não posso deixar de mencionar o vínculo indivisível que creio haver
sempre entre verdade, bondade e beleza. E, neste particular, aquela
professora era muito feia!

Certa vez, já quase no final do ano, me puxou a orelha de tal


forma que ela rasgou, descolou um pedaço pela parte inferior, de onde estava
grudada na cabeça. Lembro que não chorei. Entretanto, não me lembro dos
motivos de eu não ter chorado. Doeu muito, ardia. Quando cheguei à minha
casa com a camisa suja de sangue, minha tia perguntou o que era aquilo e eu
271

falei. No dia seguinte, pela manhã, minha tia, também professora, foi até a
escola reclamar. Estava bastante zangada. Contudo, no dia seguinte, após a
reunião com minha tia, a mesma professora ainda estava lá, na sala de aula à
minha espera depois do recreio. E foi até a minha carteira, se aproximou bem
do meu rosto e disse em voz bem alta: “eu puxei a sua orelha, Gian, eu bati em
você?” Fiquei com tanto medo que naquele momento respondi: “não!” E me
convenci por alguns instantes que ela não tinha feito nada daquilo. Que eu
tinha inventado, porque eu era algum tipo de criaturazinha maldosa disposta a
prejudicar os outros com minhas mentiras. Até que ela disse: “eu puxei sim,
mas sabe por quê? Porque você não faz nada! Você não vale nada! É
preguiçoso demais e nunca vai ser ninguém na vida”.

Naquela parte do ano eu já tinha me fechado, me enclausurado


em mim mesmo o suficiente para esquecer tudo o que minha tia havia me
ensinado. A professora foi trocada e eu não consigo recordar da substituta.
Mas, não me lembro de ter apanhado mais. Contudo, sei que reprovei aquele
primeiro ano escolar. Aquele que foi, provavelmente, o pior ano de toda minha
vida. E inaugurou uma sucedânea de acontecimentos escolares malfazejos e
tenebrosos que iria interferir significativa e negativamente em minha vida
pessoal. Eu, que era magro, comecei a descontar na comida minhas
frustrações e, aos poucos, fui engordando até chegar à obesidade mórbida que
tenho hoje. Quando, finalmente, concluí o antigo segundo grau, atual ensino
médio, optei malditamente por um curso de graduação que me reconduziria à
escola. Minha experiência como professor foi uma substituta assaz competente
na continuidade do sofrimento psíquico que me conduziu à depressão,
estresse, pânico e, finalmente, ao abandono da sala de aula pela
aposentadoria por invalidez. Saí da escola da mesma forma que entrei, pela via
da dor e do sofrimento. Sempre acompanhado de uma dificuldade acentuada
em vivenciar meus sentimentos e sua correspondente compensatória da
ingestão constante e voraz de alimentos.

Desde que posso me lembrar, sempre gostei muito de desenhar e


pintar. Mas, jamais consegui me profissionalizar ou me dedicar à arte
adequadamente. Hoje consigo pintar toscos retratos a óleo sobre tela. Quem
272

sabe o que a arte seria na minha vida se não fosse aquele encontro terrível que
tive na escola com aquela criatura tenebrosa que ousava se chamar de
professora. Poderia ter sido um artista bem sucedido? Se a escola não tivesse
rechaçado violentamente minha aptidão artística, minha criatividade, o que
poderia ter sido eu? A escola deveria valorizar a imaginação criativa da criança,
como um sonho, um brinquedo, que deve ser preservado, pois se é sonho, é
coisa delicada, vem do coração. Mas, a escola assassinou isso em mim. Assim
como deve ter assassinado outros tantos talentos em tantas outras crianças.
Naquela mesma escola. E em tantas outras escolas por esse Brasil afora. Por
esse mundo afora.

Hoje olho para trás e fico me perguntando: “quem poderá pagar por
isso?”. Ou mesmo: “existe algo que pague isso?” E qual seria mesmo a
indenização por uma vida toda perdida, torturada, um futuro anulado, um dom
acorrentado, um sonho de criança desfeito em tenra idade, uma existência
frustrada e sofrida? A escola assassinou um pedaço meu, boa parte de minha
autoestima, de minha autonomia e de minha criatividade. Os outros alunos,
percebendo minha timidez acentuada, me perseguiam e me batiam sem motivo
algum. Como costumeiramente alguns alunos fazem com os “diferentes”. Fui
um dos alvos prediletos de bullying, antes mesmo que esse termo tivesse sido
introduzido em terras tupiniquins.

Um dia, no recreio, um aluno chegou até onde eu estava e me


disse “Gian, o Carlos está te chamando lá atrás da escola”. Acho que minha
dificuldade em me relacionar com as outras crianças só era superada pela
minha vontade de me relacionar com elas. E, então, eu fui, pensando em
conseguir um amigo. Chegando lá, encontrei três alunos que, sem me dizer
nada me cercaram e começaram a rir, a me chutar e a me esmurrar. Quando
eu me virava pra revidar um chute ou soco, outro vinha pelas costas e me
batia. Até que sem forças pra suportar mais apanhar, cai no chão depois de
levar um chute nas costas e comecei a chorar. Os meninos saíram correndo.
Eram da minha sala. E me bateram sem motivo algum. Eu tinha uns nove anos
de idade, mas lembro da cena ainda hoje, da cara e dos nomes completos de
cada um deles: Roberto Maxionillo de Oliveira, Edson de Aguiar Phillot e Carlos
273

de Oliveira Cunha. Lembro-me também dos rostos de cada um deles. Não me


lembro mais das dores dos chutes e murros, mas me recordo muito bem, como
se fosse hoje, da dor causada pela humilhação e pela vergonha de estar
apanhando sem motivo algum. Ou melhor, por eu ser tímido, diferente.

Apanhar sem motivo ficou sendo a minha sina. O menino diferente


da escola, tímido, balofo, era o saco de pancadas preferido de todo mundo. Um
dia, indo para a escola, um menino para mim desconhecido até então veio
correndo por trás de mim e me atirou com força um tijolo nas costas e saiu
correndo. Eu caí no chão e me sujei. Voltei pra casa chorando e apanhei por
ter sujado minha roupa. Tive de ir para a escola assim mesmo, com as costas
machucadas, com as mãos e os joelhos ralados pelo tombo e com um
sentimento calado de indignação e revolta.

É provável que se aquela professora não tivesse me tratado de


forma tão vil e desprezível por todo um ano letivo eu não precisasse passar por
esses tristes episódios também. Mas, passei. Dona Nair, eis um nome que eu
nunca vou esquecer! Como não consigo psicanalisar a mim mesmo, fico com a
sabedoria de Caetano Veloso: “Deus é um cara gozador, adora brincadeira,
pois, pra me jogar no lixo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado
me botar cabreiro, na barriga da miséria, nasci brasileiro”. Ironia a mais do
destino: além de ser brasileiro (que me perdoem os nacionalistas extremados),
me tornei professor e lecionei por um quarto de século dentro do mesmo
sistema público de ensino que tanto me tiranizou quando criança.

Infelizmente, a minha não é a única história triste de criança


maltratada na escola. Acredito que nenhuma criança deveria ser espancada,
humilhada ou insultada. Ainda mais por um educador e durante um ano todo.
Ser criança não deveria doer. Mas, para um grande número de crianças
pobres, dói. Ao longo da história da humanidade muitas crianças têm recebido
maus tratos por parte dos adultos. O que reflete a dificuldade das sociedades
em entender que o poder que possuem sobre os mais frágeis deveria servir
para proteger e preparar. E não seria esse também o papel da educação
escolar? Contudo, da mesma forma que acontece fora da escola, dentro dela o
poder sempre proporcionou a eclosão das piores características humanas.
274

A escola deveria enxergar o aluno como sujeito no processo


educacional e, assim, produzir relações harmônicas de modo a preservar as
diferenças entre professor e aluno sem, contudo, transformá-las em
desigualdades. Hannah Arendt, diz que "a essência da educação é a
natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo" (ARENDT, 2005, p.
223). E realmente deveria ser. Para os humanos, nascer não significa
simplesmente aparecer no mundo, mas se confunde com o ser no modo, o
iniciar, a novidade. Mas, se estamos falando da educação escolar pública, a
essência da educação representou em minha vida, ainda em tenra idade, a
morte de uma aptidão para as artes plásticas. E creio com pesar que ela venha
assassinando muitos talentos na vida de muitas pessoas. Na escola pública
que vi e vivi esse ato de educar, que deveria ser natalidade, tem sido, no mais
das vezes, infanticida.

Nossas crianças nascem com um grande talento para a criação. E


a escola pública arranca isso delas impiedosa e irresponsavelmente. O escritor,
palestrante e consultor internacional em educação para o governo da
Inglaterra, Ken Robinson, acredita que a criatividade é tão importante para uma
criança quanto a alfabetização. Em uma palestra ele relatou o seguinte caso:

Havia uma garotinha de seis anos que estava desenhando lá


no fundo da sala. A professora contou que essa garotinha
quase não prestava atenção nas aulas. Mas, essa aula de
desenho a interessou. A professora fascinada foi então à
garotinha e perguntou: ‘o que você está desenhando?’ E a
garotinha respondeu: ‘Estou desenhando um retrato de Deus’.
E a professora retrucou: Mas, ninguém sabe como é Deus!’ Ao
que a garotinha respondeu: ‘Daqui a pouco saberão’.

A propósito, achei entre os meus papéis da escola uma história de


Helena Buckley, que li há bastante tempo:

Era uma vez um menininho bastante pequeno que contrastava


com a escola bastante grande. Uma manhã, a professora
disse: “Hoje nós iremos fazer um desenho”. "Que bom!" -
pensou o menininho. Ele gostava de desenhar leões, tigres,
galinhas, vacas, trens e barcos... Pegou a sua caixa de lápis de
cor e começou a desenhar. A professora então disse:
“Esperem, ainda não é hora de começar!” Ela esperou até que
todos estivessem prontos. “Agora, disse a professora, nós
275

iremos desenhar flores”. E o menininho começou a desenhar


bonitas flores com seus lápis rosa, laranja e azul. A professora
disse: “Esperem! Vou mostrar como fazer”. E a flor era
vermelha com caule verde. “Assim”, disse a professora, “agora
vocês podem começar”. O menininho olhou para a flor da
professora, então olhou para a sua flor. Gostou mais da sua
flor, mas não podia dizer isso... Virou o papel e desenhou uma
flor igual a da professora. Era vermelha com caule verde. Num
outro dia, quando o menininho estava em aula ao ar livre, a
professora disse: “Hoje nós iremos fazer alguma coisa com o
barro”. “Que bom!" Pensou o menininho. Ele gostava de
trabalhar com barro. Podia fazer com ele todos os tipos de
coisas: elefantes, camundongos, carros e caminhões.
Começou a juntar e amassar a sua bola de barro. Então, a
professora disse: “Esperem! Não é hora de começar!” Ela
esperou até que todos estivessem prontos. “Agora, disse a
professora, nós iremos fazer um prato”. "Que bom!" - pensou o
menininho. Ele gostava de fazer pratos de todas as formas e
tamanhos. A professora disse: “Esperem! Vou mostrar como se
faz. Assim, agora vocês podem começar”. E o prato era um
prato fundo. O menininho olhou para o prato da professora,
olhou para o próprio prato e gostou mais do seu, mas ele não
podia dizer isso. Amassou seu barro numa grande bola
novamente e fez um prato fundo, igual ao da professora. E
muito cedo o menininho aprendeu a esperar e a olhar e a fazer
as coisas exatamente como a professora. E muito cedo ele não
fazia mais coisas por si próprio. Então aconteceu que o
menininho teve que mudar de escola. Essa escola era ainda
maior que a primeira. Um dia a professora disse: “Hoje nós
vamos fazer um desenho”. "Que bom!", pensou o menininho e
esperou que a professora dissesse o que fazer. Ela não disse.
Apenas andava pela sala. Então veio até o menininho e disse:
“Você não quer desenhar?” “Sim, e o que é que nós vamos
fazer?” “Eu não sei, até que você o faça”. “Como eu posso
fazê-lo?” “Da maneira que você gostar”. “E de que cor?” “Se
todo mundo fizer o mesmo desenho e usar as mesmas cores,
como eu posso saber o que cada um gosta de desenhar?” “Eu
não sei...” E então o menininho começou a desenhar uma flor
vermelha com o caule verde...

Quem não puder conhecer a liberdade em sua nunca irá ter uma
ideia criativa e original. Jamais irá se tornar uma pessoa autentica e livre.
Quando ficam adultas, nossas crianças já perderam muito de sua capacidade
criativa. E se tornaram pessoas mecânicas, inseguras, frustradas e
amarguradas. Em seu decantado papel de recepcionar e preparar aqueles que
nascem para que vivam felizes neste mundo, a escola pública brasileira tem
sido irresponsavelmente catastrófica.
276

Salvo raras exceções, a escola que vi e vivi por quase toda a


minha vida tem sido o lugar onde professores tradicionais ensinam assuntos
pouco interessantes, de modo desinteressante a crianças desinteressadas.
Assim, a criança que aprende se movendo, brincando e se comunicando
corporalmente com o mundo à sua volta, a partir dos seis anos de vida se vê
obrigada a ocupar uma carteira monótona durante quatro horas diárias, com
severa restrição de movimento e de comunicação. Do conflito entre as
exigências da escola e as necessidades da criança pode ser que nasça grande
parte das dificuldades atuais de se “ensinar”.

“Quando olho uma criança ela me inspira dois sentimentos, ternura


pelo que ela é, e respeito pelo que pode vir a ser”. Piaget disse isso em 1969.
Em que pesem as devidas ressalvas ideológicas que tenho em relação à teoria
piagetiana para a educação, acredito que não devemos jogar fora a criança
com a água do banho, como bem nos lembra Adorno em sua obra Mínima
Morália. Jean Piaget foi uma pessoa apaixonada pela criança. Um dos maiores
estudiosos da inteligência infantil. E concebia a criança como um ser dinâmico
e criativo, que a todo o momento interage com a realidade ao seu redor. Para
ele, o principal objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas
novas e não simplesmente repetir o que os outros fazem. Contudo, devo,
infelizmente, concordar mais uma vez com a afirmação do ex-ministro da
educação Carlos Alberto Gomes Chiarelli: no Brasil "os professores fingem que
ensinam, os alunos fingem que aprendem e o governo finge que controla".

Uma pesquisa recente demonstra que 4% dos universitários


brasileiros são semialfabetizados, e escandalosos 38% não são plenamente
alfabetizados. É a tragédia da escola pública fundamental e média se
arrastando a olhos vistos para o ensino superior. Ora, para onde vão esses
universitários que não foram plenamente alfabetizados quando se formam?
Boa parte deles é malditamente devolvida à escola na condição de
professores. Há, na escola pública, não só entre os alunos, uma desortografia
agramatical que parece pretender reconduzir o conhecimento à condição
medieval do segredo. Presenciei, no segundo semestre de 2013, na sala dos
professores da escola onde lecionava, um diálogo entre a diretora da escola e
277

um professor, onde, em poucos minutos o professor utilizou os seguintes


termos: “eu tavu”; “eu di”; “si sentei”; “ponhei”... Dos que eu me lembro. Era um
“queridinho” da diretora porque dava notas altas aos alunos (como poderia ele
dar nota baixa?!), colaborando para a ampliação do número de alunos
aprovados e, consequentemente, melhorando as estatísticas da escola. Uma
escola “para inglês ver”. Como se a realidade da educação escolar fosse feita
só de números.

Conversando com colegas daquela escola, fiquei sabendo que


existe o costume, entre alguns diretores, de adulterar inclusive as notas do
conselho de classe de fim de ano, aprovando um número maior de alunos e
melhorando o ranking da escola. Não consigo ficar alheio a isso. Nem consigo
esquecer. Essa é uma situação que me deixa profundamente angustiado.
Desesperado. Humilhado. Desrespeitado. Impotente. Nos meus últimos meses
como professor, me dava vontade de chorar. De bater em alguém, em algum
responsável. De sumir. De desistir de tudo. E de todos.

Apostei tudo na minha profissão: fiz dezenas de cursos ligados ao


magistério; me pós-graduei em história e sociedade; fiz uma espécie de
mestrado para professores, o PDE (turma de 2007); ministrei cursos de dança,
de capoeira e de judô nas escolas; também ministrei gratuitamente diversos
cursos aos professores da minha área, atendendo convite dos núcleos
regionais de ensino de Maringá e de Paranaguá. Dediquei-me intensamente a
uma profissão que agora me parece sem sentido, vazia, de faz de conta. Em
troca já levei tapa na cara, de aluno; já fui ameaçado fisicamente; já fui
chamado pra briga por aluno e por diretor de escola; já fui alvo de preconceito
e perseguição por diretor de escola; já fui humilhado publicamente por alunos,
pais de alunos e por diretores; já fui xingado; já fui ameaçado de morte; já
chorei em sala de aula sem conseguir parar; já urinei em sala de aula durante
um surto de pânico; já faltei à aula por não conseguir enfrentar o dia seguinte;
já morri de vergonha e de medo e no dia seguinte tive de renascer pra
enfrentar tudo de novo. Hoje sinto que entreguei a fatia mais doce da minha
vida, meus melhores anos, minha juventude e minha alma a um trabalho
278

hipócrita, sem garantias, sem direitos, com 100% de precariedade e com 0%


de respeito.

Enquanto a escola padece, o poder público alardeia a criação de


programas para uma melhoria da qualidade da educação escolar que nunca
chegam. Em seu lugar chegam cursos de dança, xadrez e teatro como um
apanágio para as mazelas da educação. Soluções baratas para uma educação
miserável. Até que outros modismos venham em sua substituição, como já foi o
caso dos projetos de utilização de lixo para a confecção e utilização
pedagógica de “brinquedos reciclados”. Isso tudo acontece porque para as
pessoas do Estado que fazem as políticas públicas para a educação, o molho
parece importar mais do que o peixe. Como oráculos da educação, o pessoa
do governo faz suas previsões para a escola entrincheirados por detrás de
suas escrivaninhas. Elaboram um sem número de projetos sem saber aquilo
que efetivamente acontece dentro da sala de aula. Não pode dar certo, como
realmente não tem dado. Além do que, os projetos que elaboram para a escola
pública são soluções baratas para uma gente barata.

Recentemente, num acalorado debate com um velho amigo,


mestre de capoeira angola, ele afirmou que a educação escolar é um ato de
violência e de violação da liberdade da pessoa que, nesse processo se torna
dócil, obediente e bem comportada. Concordo com ele. A escola possui um
violento, poderoso e gradativo processo de refreamento, controle e ocultação
das vontades do indivíduo, bem ao gosto de um sistema social de controle e
dominação. Sistema que está funcionando adequadamente. Não há nenhuma
peça fora do lugar. Nem mesmo a escola. A gente é que não entende. Que não
se dá conta disso. Porque desconhece os fundamentos do próprio mundo onde
vive.

No Brasil atual, como herança maldita dos 20 anos de caserna que


tivemos por aqui, a escola pública, depois de alfabetizar seu aluno e ensinar-
lhe rudimentos de aritmética, não serve mais para nada. Sob a ótica capitalista,
tendo qualificado minimamente esse aluno para o mercado de trabalho, a
escola não serve mais para absolutamente nada. E, no mais das vezes, é
somente isso que ela faz.
279

As pedagogias transformadoras, que pretendiam outra função para


a escola, não foram capazes de cumprir suas promessas. Tampouco o foram
as pedagogias crítico-reprodutivistas, num linguajar de Saviani. Também elas
não conseguiram concretizar o que planejaram para a escola: “preparar o aluno
para o exercício crítico e transformador de sua realidade”. Parafraseando as
palavras infelizes de uma colega: “Esses miseráveis estão no ensino médio
sem saber ler aquilo que escrevem.” Mas, afinal, uma pergunta que não
consigo deixar de fazer: quem são os miseráveis que aprovam esses
miseráveis para que eles estejam no ensino médio sem saber ler aquilo que
escrevem?! Nós professores, estamos transformados, há muito tempo, numa
peça fundamental da engrenagem desse sistema que aporta, apara além de
nossas consciências reificadas, na mercantilização da escola pública, isto é, na
transformação da escola dos pobres numa fábrica de trabalhadores resignados
e obedientes, a serviço do mercado. Uma escola muito bem adaptada a esse
imenso e sufocante mundo atual, onde as pessoas estão em contínuo estado
aligeirado de pressão e urgência, envoltas em sensações vazias, em estados
depressivos e de irritabilidade.

É bem verdade que a sociedade atual está em crise. Consumimos


mais do que podemos. Exaurimos as forças do planeta com nossas indústrias
bestiais. Ampliamos as áreas em que vivemos no planeta, derrubado as
florestas, pescado e caçando excessivamente e arrasado áreas inteiras com
poluição. E qual o resultado disso?  21 mil espécies e subespécies de animais
foram extintas. 75% das zonas de pesca do planeta estão sendo exploradas ao
máximo ou além da sua capacidade. Desapareceram 80% das florestas
originais. Só na Amazônia, perdemos 2.000 árvores por minuto. O equivalente
a um campo de futebol por minuto! E agora, nós mesmos estamos ameaços de
extinção. As promessas de redenção da humanidade pelo esparrame mundial
dos novos meios de comunicação não se efetivaram na pratica.

Como caixa de ressonância do local onde existe, a escola está em


crise juntamente com a sociedade. Não saímos totalmente das asas da
modernidade e nem estamos integralmente em outra era. A passagem de uma
sociedade industrial para uma sociedade da informação tem gerado conflitos.
280

Mas, a bem da verdade, a sociedade capitalista, desde o seu surgimento,


sempre teve recheada de conflitos de todo tipo. Por que haveria de ser
diferente agora? Como podemos ver por todos os lados, este é um sistema em
crise. Estamos no limite. Desde o clima em mudança até o decréscimo da
felicidade, o modo de produção capitalista não está funcionando mais.
Deveríamos viver num mundo que visse o outro como expressão de toda a
humanidade. Que preparasse as pessoas para se indignar com reformas
políticas que condenam idosos pobres à morte antecipada, cancelam os
direitos trabalhistas e abrem mão da tão sonhada melhoria da qualidade na
educação.

Em seu enredo intrincado de conflitos, o que devemos conservar


deste sistema? E na educação escolar, devemos conservar algo? E que
modismos devemos evitar dentro e fora da escola? Afinal, para que mesmo
serve o modismo? E, dentre tantas questões, para que precisamos da escola?
Essas perguntas aguardam melhor problematização. Por enquanto, o debate
está aberto. Afinal, a vida é uma grávida de possibilidades.

Para não concluir

Com franqueza, estava arrependido de


ter vindo. Agora que ficava preso, ardia
por andar lá fora, e recapitulava o
campo e o morro, pensava nos outros
meninos vadios, o Chico Telha, o
Américo, o Carlos das Escadinhas, a
fina flor do bairro e do gênero humano.
Para cúmulo de desespero, vi através
das vidraças da escola, no claro azul do
céu, por cima do morro do
Livramento, um papagaio de papel, alto
e largo, preso de uma corda imensa,
que bojava no ar, uma cousa soberba. E
eu na escola, sentado, pernas unidas,
com o livro de leitura e a gramática nos
joelhos.
281

— Fui um bobo em vir, disse eu ao


Raimundo.

(ASSIS, 1994, p. 32)

O menino Pilar, de Machado de Assis, se arrepende de ter ido à


escola e se lastima da liberdade lúdica perdida lá fora. Tudo na escola lhe
sugeria uma prisão: o horário rígido, a organização cerceadora da sala de aula,
os professores excessivamente severos, as regras inflexíveis, os livros
tediosos.

Do Brasil Império até hoje a escola mudou muito, mas continua


sendo uma causticante prisão. É o que procurei demonstrar neste livro, meio
memória e meio pesquisa bibliográfica. Aqui, abri as páginas empoeiradas e
muito esquecidas da escola pública para contar alguns episódios bastante
amargos e causticantes que tive por infelicidade testemunhar. Tentei trazer ao
leitor um naco de minha trajetória como um professor que entrou em depressão
profunda por não conseguir se adaptar ao projeto cruel e hipócrita pensado
pela elite brasileira para a escola pública nacional.

Na escola, logo percebi que minha ideia de uma educação escolar


voltada à redenção dos desvalidos não era mais que o sonho idealista de um
tolo que levantou armas contra os seus próprios moinhos de vento, quando
quase ninguém mais o fazia. As pedagogias críticas e transformadoras há
muito haviam sido banidas das salas de aula para os PPPs (Projetos político
Pedagógicos) e os PTDs (Planos de Trabalho Docente). Movi contra moinhos
de vento batalhas obstinadas, memoráveis e solitárias. Nem ao menos um
Sancho Pança tive ao meu lado. Esse foi o início de uma profunda crise que
me levou a questionar minha escolha profissional e minha própria identidade.
Mas, não quis apenas contar uma história, e então procurei na literatura da
área uma explicação para a função social da escola pública.

Termino a escrita destas páginas no lugar onde o comecei: na sala


de aula de uma escola pública. Não mais como professor. Tampouco como
aluno. Mas, do alto de minhas memórias de aposentado, de onde posso
282

avistar, com uma devida distância de segurança, todos esses anos em que fui
aluno e professor da escola pública do estado do Paraná. E mergulhei
profundamente no drama humano que costumeiramente acomete as pessoas
confinadas em condições adversas. Aposentado desde 6 de fevereiro de 2015,
jamais consegui varrer do pensamento os tormentos daqueles anos difíceis,
embora tenha pregado boas peças na loucura que mais de uma vez tentou me
fazer seu refém.

Não tive a intenção aqui de balizar caminhos para a tão decantada


educação libertadora. Despojei-me há algum tempo de meus moinhos de
vento. Pude ver na escola pública que as tantas verdades fictícias das tantas
pedagogias transformadoras não causam medo algum no poder hegemônico.
Ao contrário, as pedagogias críticas e transformadoras são, ironicamente,
aliadas da manutenção da ordem capitalista. Daí se explicam os cursos de
capacitação em pedagogias críticas e libertadoras organizadas,
paradoxalmente, pelo Estado, digno representante da classe dominante. Ainda
que, certamente, nem seus idealizadores, nem o poder hegemônico possam
concordar oficialmente com isso. Porque divulgam formas de educar engajadas
na libertação da classe trabalhadora. Libertação que nunca chega. Jamais
chegou.

Com efeito, o Brasil continua sendo um país onde o povo pobre e


trabalhador vota em seus algozes e defende os interesses dos ricos contra os
seus próprios interesses. As bandeiras das pedagógicas críticas não
conseguiram ao menos levar o aluno a ler criticamente a realidade onde existe.
Quanto mais transforma-la. Professores, conservadores ou não, ficam felizes
hoje se ao menos conseguem que seus alunos, ao fim do ensino médio,
consigam ler adequadamente aquilo que escrevem. Somente os mais
obstinados conservadores erguem seus punhos contra as pedagogias críticas e
transformadoras. Mas, esta é uma questão para a psiquiatria.

Óbviamente, os sempre disponíveis gerenciadores da vida alheia


me aconselharam a me calar, sobretudo porque sobre certas coisas, como diz
a sabedoria dos hipócritas, só se permanece filósofo mantendo o silêncio.
Como de costume, escolhi rota alternativa e escrevi aqui um pouco daquilo que
283

conheci como aluno - e depois professor - do sistema público de ensino do


estado do Paraná. Porque a história do mais contundente dos erros é, antes de
tudo, a história do erro de quem não diz ter errado. E, nesse particular, a
história da escola, embora não diga, tem muito a dizer a todos nós.

Encerro essa escrita na esperança de que tenha conseguido evitar


o tom prescritivo e subjetivo, tão recorrente entre os professores. Afinal, “quem
conta um conto, aumenta um ponto”, já dizia o velho ditado. Assim, espero, ao
menos, ter podido escapar dos chamados procedimentos autoconfirmadores,
que indicam e determinam caminhos, elucidando “todas as dúvidas”. Meu
objetivo com este livro não é fornecer rumos e respostas, mas refletir sobre o
que estamos fazendo a partir da perplexidade diante dos parcos resultados da
escola pública no Brasil atual. Sem embargo, se os relatos e as discussões que
aqui levantei puderem contribuir para a reflexão, o reconhecimento, o
enfrentamento e a superação das tortuosas ciladas que a vida contemporânea
- e a escola pública em seu interior - têm preparado para os pequenos
brasileirinhos que ano a ano engrossam as filas das salas de aula, terei
alcançado meu objetivo. Nós precisamos, nossos filhos merecem e nossos
netos, certamente, agradeceriam...

Os professores da escola pública, via de regra, perfazem uma


categoria conservadora, ainda que não queiram, não aceitem ou não se deem
conta disso. Os professores libertários de sempre estão lá, mas quase
incógnitos. Praticamente sem credibilidade profissional, funcionam como uma
espécie de educador exótico. Muitos deles, depois de algum tempo dizem que
estão esgotados psicologicamente e tornam-se assíduos frequentadores de
clinicas psicológicas e psiquiátricas. O que explica a maioridade absoluta de
professores que, apesar das adversidades da escola pública, se dizem
realizados em sua profissão. Eles estão adequados ao sistema e sabem que a
escola, para além de sua função de reproduzir o sistema capitalista, não vai a
lugar algum.

O objetivo fundamental da escola pública não é nem nunca foi a


elaboração de meios que facilitem o aprendizado. A não ser aqueles
estritamente exigidos pelo mercado de trabalho. Tampouco foi algum dia uma
284

ponte para a redenção dos oprimidos. Também não é um lugar onde os


profissionais consigam bons salários ou reconhecimento. A escola pública é um
local muito bom para o desperdício da vida dos alunos e dos professores. Para
aqueles professores que um dia ingressaram idealistas na profissão, a escola
pública é muito frustrante. A renúncia do professor ao seu papel de educador
implica numa renuncia também à sua satisfação profissional. Eis a porta de
entrada para o desgaste na profissão. Dentre os que não se frustram e ficam
doentes, há sempre os workaholics. Eles estão, por assim dizer, no lado oposto
da moeda da síndrome da síndrome de burnout, que retira tantos professores
das salas de aula. Mas, nem por isso estão menos doentes. O professor
workaholic encontra no trabalho na escola uma forma de fugir dos seus
próprios problemas. Gerenciar os problemas dos alunos é um ótimo antídoto
para a derrota em resolver os próprios problemas.

Os viciados em trabalho não encontram satisfação em sua vida


pessoal, possuem poucos amigos e dificuldade de se relacionar com os
familiares. Para não terem de enfrentar suas dificuldades, transferem para o
trabalho a responsabilidade de garantir a gratificação que não encontram em
sua vida pessoal, tornando-se obcecados pelo trabalho. Obviamente, o mundo
capitalista vê com bons olhos o viciado em trabalho e quer tirar vantagens dele.
E não se importa se o workaholic acaba negligenciando todos os outros
aspectos da sua vida particular. E até os usa como exemplo para condenar
quem se ausenta da escola por depressão, síndrome do pânico ou síndrome
de burnout.

A lógica do capitalismo atual precisa de pessoas automatizadas,


que cooperem no trabalho e que consumam o que o mercado produz. Precisa
de pessoas que recebam, resignadas, altas broncas e baixos salários. Pessoas
cujos gostos possam ser conhecidos com antecipação. E sem que eles
percebam, para que possam se iludir com a falsa sensação de liberdade sobre
a escolha das mercadorias que consomem. Há uma poderosa engrenagem
social que produz gostos, altera preferencias, molda comportamentos e induz
incautos à subserviência voluntária. Os jovens usam a cueca saindo pra fora da
calça e se julgam a última bolacha do pacote porque têm um alargador na
285

orelha, o cabelo cortado tipo moicano e pintado de rosa choque ou amarelo


ouro. Se orgulham porque fumam maconha, traficam na escola e usam um
piercing na sobrancelha, no nariz, na língua, no lábio e sabe Deus mais onde.
As garotas trocaram a autenticidade por sorrisos falsos, roupas sensuais e
fotos selfie que viralizam nas redes sociais. Saias tão curtas que imitam um
cinturão. Blusas tão apertadas que parecem colocadas a vácuo. Calças com a
cintura tão baixa que o cós mal cobre a pornografia. Querem estar sempre na
maldita moda e sem que percebam alimentam uma indústria do vestuário que
visa somente o dinheiro. Os shoppings centers, verdadeiras mecas do
consumismo, se transformaram em locais de encontro para os filhos dos ricos.
Enquanto a escola pública virou o ponto de encontro para os filhos dos pobres.
E temo que não somente para os alunos.

Há motivos para ficarmos céticos. Grandes tentativas de libertar o


ser humano de seu flagelo foram construídas pelo tempo afora. Tantas
pedagogias, filosofias, ciências médicas, religiões, psicologias. Tivemos até
uma experiência comunista na Rússia, como a grande tentativa da humanidade
em tomar nas suas mãos as rédeas de seus próprios destinos. Todas essas
coisas mostraram-se ineficazes. A tarefa de erradicar da face da terra a
opressão do homem pelo homem ainda está por fazer. A capacidade humana
para a destruição está ampliada e potencializada pelos avanços tecnológicos.
A utilização da bomba atômica é um bom referendo desse temor. Cabe, então,
perguntarmos: até quando os seres humanos serão incapazes de conter sua
inclinação social para a maldade? Seremos capazes de escapar da aniquilação
total ou conseguiremos encontrar um caminho de paz, justiça e igualdade?
Qual o papel que a educação de nossas crianças deveria desempenhar nesse
sentido?

Estamos caminhando a passos largos para a barbárie! As


instituições escolares públicas poderiam se converter em centros de excelência
para o preparo das futuras gerações para uma convivência pacifica e empática.
Mas, não o fazem! Precisaríamos nos concentrar na tarefa de preparar um
futuro melhor para todos. E na tarefa de preparar todas as pessoas para que
sejam melhores para o futuro. Mas, no fundo, as escolas nada fazem além de
286

obedecer os ditames individualistas do capital. Mal sabem os educadores que o


nosso modo de vida anda sobre uma corda bamba prestes a arrebentar. Eles
nem ao menos conhecem os fundamentos políticos da sociedade onde vivem.
Ou dos próprios afazeres pedagógicos na escola. Às vezes queria eu também
não tê-los conhecido. Não teria me posto a alertar meus colegas sobre as
fanfarronices eternas da escola pública e depois a denunciar a inocuidade de
suas propostas pedagógicas de redenção do oprimido. E não teria, certamente,
tido os calafrios e angústias decorrentes da profunda certeza solitária de que
há algo de muito errado na escola pública.

É já secularizada e popularmente aceita a tradição de nossas


escolas de cercear drasticamente a liberdade, a movimentação e a
comunicação de nossas crianças. Mesmo que as tantas pedagogias tenham
pleno conhecimento que a infância se encontra inexoravelmente associada ao
movimento e à comunicação. Tributário do sistema prussiano de educação
escolar, seguidor de padrões militares desde a Prússia do século XVIII, as
escolas são presídios, fábricas de gente dócil e servil, com portões, grades,
horários rígidos, fardamento obrigatório, sirenes, intervalos e muros altos. A
escola pública é o serviçal indelével do sistema autoritário onde existe, uma
fábrica de gente domesticada, disposta a servir o sistema, onde qualquer
metodologia que busque por algo diferente é proibida, rechaçada, perseguida e
exterminada. Nelas, os professores - ainda que não queiram, não concordem
ou não se deem conta disso - cerceiam a vida, rasgam as mentes de seus
alunos e as juntam novamente em formas novas escolhidas pelo sistema. E
depois se perguntam por que a humanidade mata, estupra, persegue, oprime,
faz guerras e genocídios? Por que existe o fascismo, a exploração do homem
pelo homem, escravos felizes, o tal pobre de direita?...

Em “Humano demasiado humano” Nietzsche escreveu que “o


professor é um mal necessário”. Eu passei quase meio século de vida a engolir
sapos na escola, tentando não ser esse mal necessário. Mais prudente que eu,
após dez anos como professor, Nietzsche abandonou o magistério e passou a
viver como pensador autônomo. Se a escola tivesse uma boca, que não se
resumisse a engolir os sonhos e esperanças dos alunos e pudesse dialogar
287

comigo, eu lhe perguntaria: por quê?! Nesse mundo pós-moderno, após a


mentira ter se transformado em verdade relativa, o que mais poderá ser
inventado para disfarçar a tragédia da sociedade e de nossa pobre e trágica
escola pública, que segue em seu desvario como uma nau à deriva?

Esta, entre outras questões aqui tratadas, se inserem no perigoso


terreno do livre pensar, que não se serve de balizas protetoras, mas que é o
único terreno digno de se percorrer. Pois, possibilita o aprofundamento de
reflexões capazes de elucidar o caminho que leva à redescoberta da
sensibilidade e à imersão reflexiva numa perspectiva de educação para a real
libertação humana. No fim das contas, esse é muito mais um livro de perguntas
do que de respostas.

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