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FOUCAULT, Michel. Suplício. In: ______. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 42ª. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Cap. 1-2. p. 9-69. Tradução de Raquel Ramalhete.
SUPLÍCIO
Logo no início do primeiro capítulo de seu livro, Vigiar e punir, Foucault discorre em
detalhes sobre um exemplo de suplício realizado em Paris em 1757, que tinha o intuito de
reafirmar o poder e autoridade do Rei em detrimento de toda a sociedade. Em seguida
apresenta o regulamento redigido trinta anos depois por Léon Faucher para a “Casa dos
jovens detentos de Paris”. Com isso o autor pretende demonstrar que os exemplos, apesar de
tratarem de sancionar crimes e gêneros diferentes na sua temporalidade, são bem definidos
por seu estilo penal. O novo período (fim do século XVIII) foi marcado por reformas que para
a justiça penal eram uma nova era, como a nova teoria da lei e do crime, nova justificação
moral ou política do direito de punir, projetos e redações de códigos modernos.
A partir do fim do século XVII e início do XIX, o espetáculo punitivo passa a ser
suprimido em diversos países da Europa, com exceção à França que manteve o suplício até
1831 mas foi abolido em abril de 1848. Aos poucos a punição em forma de execução pública
deixou de ser uma cena e passou a ser visto de maneira negativa, de modo que tanto o rito
quanto os aplicadores da pena – juízes, carrascos – passaram a ser entendidos como os
verdadeiros crimes e criminosos e desapareceu o corpo como alvo principal de repressão
penal.
O “saber” e controle do corpo nada mais são que a tecnologia política do corpo, que
traz em si mecanismos e efeitos, sejam eles definidos em uma instituição ou no aparelho do
Estado, o que o autor vem a chamar de “microfísica do poder”, que tem em si uma estratégia
de dominação. O poder produz saber, e os dois estão diretamente ligados e não há poder sem
se estabelecer um campo de saber, nem mesmo saber que não suponha nem constitua
simultaneamente relações de poder. É o poder-saber que determina as formas e os campos
possíveis do conhecimento. “O corpo político se trata de um conjunto de elementos materiais
e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio
para as relações de poder e saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo
deles objetos de saber.” (FOUCAULT, 2014. p. 31). O autor entende que a construção do
conhecimento é também produto de um processo de dominação em que não é possível separar
as técnicas de dominação da construção da verdade.
Trata-se das técnicas punitivas na história do corpo político – seja através de suplícios
ou penas impostas à alma, onde as práticas penais fazem parte da anatomia política e não
consequência das teorias jurídicas. A história da microfísica do poder punitivo é uma
genealogia da “alma” moderna. Ou seja, a cada tipo de poder se produz um saber, que é
utilizado para se garantir o poder através de discursos científicos, e assim, ciclicamente. A
alma, bem por direito, é também a prisão do corpo, já que é em si mesma objeto de domínio
pelo poder do corpo, assim sendo, as punições e a prisão se originam de uma tecnologia
política do corpo. Por fim, o autor afirma que se a despeito do tema, se pode fazer a história
do presente baseado no passado.
Mas para o suplício ter sua eficácia garantida, a execução da pena ocorria em espaço
público, com a limitação da morte. O que era um problema, tendo em vista que o corpo seria
destruído e as pessoas, antes de morrer, poderiam desafiar a autoridade do rei, uma vez que a
autoridade do Rei cessava com a morte do súdito. Por isso existia a presença de um padre ou
confessor para fazer um ritual em que a morte não significava a perda de poder do Rei, mas
servia para confirmar uma passagem do poder do rei para o poder de Deus, que julgaria o
sujeito de acordo com o que o rei havia julgado, motivo pelo qual havia um sacerdote para
confirmar a sentença, para demonstrar que o poder do rei não poderia ser desafiado pois tinha
força de poder divino e não deveria sair impune.
Já com a disciplina a pena deixa de ser um espetáculo para ser, ou parecer ser, algo
sutil, desaparecer aos olhos de quem está de fora, e algo a ser introjetado na própria
personalidade daquele que passa pelo sistema, a fim de tornar seu corpo dócil, com alta
capacidade de produção e com baixo poder político, uma vez que as pessoas são
individualmente ameaçadas com a prisão e de modo que ela é a garantia última de que o
trabalhador seguirá as normas impostas para evitar a pena, passando assim a ser mais dócil
para o sistema.
O suplício então faz parte da estrutura do poder punitivo, que produzia a verdade
através do sofrimento, da dor, da mutilação de corpos, através de um ritual organizado para a
marcação da vítima e a demonstração máxima do poder que pune, e é nesses excessos que se
investe a economia do poder. Sendo que a verdade é o que será definido pelo poder, é uma
verdade imposta e não se dá pelo esclarecimento. A verdade é a versão do fatos que ganha
pela estrutura de poder. Houve então uma economia e gradação dos crimes e penas, já que o
procedimento de inquisição consistia em submeter o réu à tortura para levar a verdade
construída pelo poder. O procedimento não era apenas de imposição de poder mas de busca
pela verdade. A manifestação da verdade na execução pública das penas no século XVIII
possui vários aspectos, como deixar o culpado responsável de sua própria condenação;
estabelecer o suplício como momento da verdade; reproduzir na execução do culpado as
características do crime; e trazer ao ritual o caráter de julgamento dos homens com os de
Deus.
Desta forma, fica demonstrado na primeira parte do livro Vigiar e punir, Suplício, que
Michel Foucault busca delinear a ideia principal de sua teoria, que é microfísica do poder, a
busca pela verdade admitida através do poder, a docilidade dos corpos por meio do poder-
saber como instrumento político de submissão, individualização e marcação do sujeito
demonstrando que o processo punitivo, apesar de ter em muito mudado sua estrutura –
punição de corpos, para estereotipação e marginalização de sujeitos - nunca deixou de ser uma
maneira de tentar controlar e submeter os sujeitos através de instituições e do Estado.