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Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


História – Introdução aos Estudos Históricos
Prof. Dr. Paulo Pinheiro Machado
Aluna: Paula Tavares

FOUCAULT, Michel. Suplício. In: ______. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 42ª. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Cap. 1-2. p. 9-69. Tradução de Raquel Ramalhete.

Notas sobre o autor:


Michel Foucault, filósofo francês, nasceu em Poitiers, no dia 15 de outubro de 1926 e
faleceu em 26 de junho de 1984 em Paris, com 57 anos. Formado em Filosofia e
Psicopatologia, sua fama vem principalmente do livro “As palavras e as coisas” (1966),
ensaio de uma epistemologia das ciências sociais. Também ficou conhecido por obras como
“Doença mental e psicologia” (1954), “História da loucura” (1961), “Nascimento da clínica”
(1963), “Vigiar e punir” (1975), “A história da sexualidade” (1976) - no qual ele desenvolveu
métodos arqueológicos e genealógicos que enfatizavam o papel que o poder desempenha na
sociedade - e publicações como “A arqueologia do saber” (1969) e a aula inaugural no
Collège de France, “A ordem do discurso” (1971). Como titular da Cadeira de Sistemas de
Pensamento no Collège de France, Foucault desenvolveu uma investigação sobre as estruturas
das instituições judiciais e penitenciárias na época moderna. Versou em suas teorias a forma
com que as relação entre poder e conhecimento são usados com o intuito de controle social
por meio de instituições totais.

SUPLÍCIO

CAPÍTULO I – O corpo dos condenados

Logo no início do primeiro capítulo de seu livro, Vigiar e punir, Foucault discorre em
detalhes sobre um exemplo de suplício realizado em Paris em 1757, que tinha o intuito de
reafirmar o poder e autoridade do Rei em detrimento de toda a sociedade. Em seguida
apresenta o regulamento redigido trinta anos depois por Léon Faucher para a “Casa dos
jovens detentos de Paris”. Com isso o autor pretende demonstrar que os exemplos, apesar de
tratarem de sancionar crimes e gêneros diferentes na sua temporalidade, são bem definidos
por seu estilo penal. O novo período (fim do século XVIII) foi marcado por reformas que para
a justiça penal eram uma nova era, como a nova teoria da lei e do crime, nova justificação
moral ou política do direito de punir, projetos e redações de códigos modernos.

A partir do fim do século XVII e início do XIX, o espetáculo punitivo passa a ser
suprimido em diversos países da Europa, com exceção à França que manteve o suplício até
1831 mas foi abolido em abril de 1848. Aos poucos a punição em forma de execução pública
deixou de ser uma cena e passou a ser visto de maneira negativa, de modo que tanto o rito
quanto os aplicadores da pena – juízes, carrascos – passaram a ser entendidos como os
verdadeiros crimes e criminosos e desapareceu o corpo como alvo principal de repressão
penal.

A função da pena passou a ser – pelo menos teoricamente - de procurar reeducar e


corrigir o criminoso de forma que o magistrado não é mais visto como o castigador e o
domínio sobre o corpo do supliciado se extingue para dar lugar a penas como a prisão,
reclusão, trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação e
multa. Ainda assim, tais castigos não eram comparáveis ao suplício, mas vistos como forma
de privar o indivíduo da sua liberdade, que era tanto um direito, quanto um bem. A nova
forma de penalidade visa então a coagir, privar obrigar e interditar não sendo mais a dor física
passível de pena. Uma nova moral própria do ato de punir é estabelecida, a execução se dava
de maneira que a morte não era prolongada pois importava a supressão do espetáculo e a
anulação da dor. Antes disso, havia sido utilizada a guilhotina, a Inglaterra foi o País mais
reacionário ao cancelamento dos suplícios, e por muito tempo a França manteve, ainda que
em sigilo, a prática da tortura em seu sistema penal.

De acordo com o autor, no decorrer dos últimos séculos houve um afrouxamento da


severidade penal, o que durante muito tempo foi visto como se fosse um fenômeno que
buscava menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e “humanidade”; o que na realidade
se resume em uma mudança de objetivo na relação entre pena e acusado. Não mais o corpo
que é afetado com o castigo, mas sim a alma. Chama-se de crimes e delitos os objetos
julgados definidos pelo código. Entretanto, mais do que isso, diz o autor:

“julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as


enfermidades, as inadaptações, os efeitos do meio ambiente ou
de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas,
as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo, as
perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e
desejos.” (FOUCAULT, 2014. p. 22).
A partir de então são julgadas as “anomalias psíquicas”, os “pervertidos” e os
“inadaptados”; o crime é sancionado podendo abreviar ou prolongar a pena conforme o
comportamento do condenado, e não se destinam apenas a sancionar a infração, mas sim a
controlar o indivíduo, neutralizar sua periculosidade, modificar suas disposições. Através do
laudo psiquiátrico também se avalia o que os indivíduos são, serão e o que possam ser. Mudou
também a forma com que a questão da loucura evoluiu na prática penal. Ademais,
diferentemente do que se definia na Idade Média por julgar – que estabelecia a verdade de um
crime determinando seu autor e aplicando-lhe a sanção penal - o julgamento passou a ser feito
a partir de um conjunto de apreciações, diagnósticos, prognósticos, normatividades que dizem
respeito ao indivíduo criminoso inserido no sistema do juízo penal.

“E a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um


julgamento de culpa, uma decisão legal que sanciona; ela
implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição
técnica para uma normalização possível. O juiz de nossos dias –
magistrado ou jurado – faz outra coisa, bem diferente de
“julgar”. E ele não julga mais sozinho. Ao longo do processo
penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de
instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos se
multiplicaram em torno do julgamento principal: peritos
psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da aplicação da pena,
educadores, funcionários da administração penitenciária
fracionam o poder legal de punir.” (FOUCAULT, 2014. p. 25)

Segundo o autor, a produção do sistema penal se dá pelo final da tortura e suplício


como forma de pena, sendo substituído por penas que restringem a liberdade física, de
direitos, e da própria existência do condenado. Além disso, os juízes desenvolvem formas de
poder para estudar a delinquência, já que o louco não poderia ser tratado como pessoa
comum, seria então inimputável e tratado como tal, por estruturas de poder ramificados.

O objetivo do livro, definido por Foucault é de traçar uma genealogia do atual


complexo científico-judiciário, onde o poder de punir se apoia, e estudar a tecnologia política
do corpo onde pode-se entender uma história comum entre as relações de poder e de objeto,
para isso estabelece quatro regras para seu estudo. Sendo elas, basicamente: 1) tomar a
punição como uma função social complexa; 2) analisar os métodos punitivos como técnicas e
adotar a perspectiva da tática política com relação aos castigos; 3) tratar a tecnologia do poder
como princípio da humanização da penalidade e do conhecimento do homem; 4) verificar se o
corpo é investido pelas relações do poder, ao ser inserido na prática judiciária do saber
“científico”.
O filósofo então traz a concepção do corpo como alvo principal dos sistemas
punitivos, tendo em vista que apesar de mesmo sem utilizar castigos violentos ou sangrentos,
ainda é sobre o corpo que se trata – “do corpo e suas forças, da utilidade e da docilidade delas,
de sua repartição e submissão.” (FOUCAULT, 2014. p. 29). A história do corpo se encontra
diretamente ligada ao campo político e as relações de poder sobre ele, que o marcam,
supliciam, sujeitam, obrigam, dominam.

O “saber” e controle do corpo nada mais são que a tecnologia política do corpo, que
traz em si mecanismos e efeitos, sejam eles definidos em uma instituição ou no aparelho do
Estado, o que o autor vem a chamar de “microfísica do poder”, que tem em si uma estratégia
de dominação. O poder produz saber, e os dois estão diretamente ligados e não há poder sem
se estabelecer um campo de saber, nem mesmo saber que não suponha nem constitua
simultaneamente relações de poder. É o poder-saber que determina as formas e os campos
possíveis do conhecimento. “O corpo político se trata de um conjunto de elementos materiais
e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio
para as relações de poder e saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo
deles objetos de saber.” (FOUCAULT, 2014. p. 31). O autor entende que a construção do
conhecimento é também produto de um processo de dominação em que não é possível separar
as técnicas de dominação da construção da verdade.

Trata-se das técnicas punitivas na história do corpo político – seja através de suplícios
ou penas impostas à alma, onde as práticas penais fazem parte da anatomia política e não
consequência das teorias jurídicas. A história da microfísica do poder punitivo é uma
genealogia da “alma” moderna. Ou seja, a cada tipo de poder se produz um saber, que é
utilizado para se garantir o poder através de discursos científicos, e assim, ciclicamente. A
alma, bem por direito, é também a prisão do corpo, já que é em si mesma objeto de domínio
pelo poder do corpo, assim sendo, as punições e a prisão se originam de uma tecnologia
política do corpo. Por fim, o autor afirma que se a despeito do tema, se pode fazer a história
do presente baseado no passado.

CAPÍTULO II – Ostentação dos suplícios

Em seu segundo capítulo, Foucault demonstra que as formas de suplício exemplificam


que havia uma luta de poder entre o soberano e o condenado, de forma que a soberania do Rei
teria caráter divino e o crime era uma ofensa direta ao soberano, motivo pelo qual ele deveria
se vingar. Identifica assim que no regime monárquico antigo, a lei e ordem eram providas pelo
Rei, em contrapartida, quem pratica algum crime na modernidade contemporânea está
cometendo um crime contra a sociedade.

O autor está interessado em entender as técnicas de poder no regime


prisional/criminal, a estrutura de poder e os procedimentos no antigo regime – época
compreendida entre os séculos XVII e XVIII – quando o sistema legal e de penas era ligado
aos castigos corporais e a exposição pública da dor, que juntamente com a exposição era a
forma que o poder real reafirmava sua autoridade. Discorre a respeito da gradação das penas,
produzidas observando o grau de provas, indícios e analisa questões relativas à confissão, que
compara com o funcionamento do interrogatório, já que cabe ao culpado anunciar a verdade
do crime que cometeu.

Mas para o suplício ter sua eficácia garantida, a execução da pena ocorria em espaço
público, com a limitação da morte. O que era um problema, tendo em vista que o corpo seria
destruído e as pessoas, antes de morrer, poderiam desafiar a autoridade do rei, uma vez que a
autoridade do Rei cessava com a morte do súdito. Por isso existia a presença de um padre ou
confessor para fazer um ritual em que a morte não significava a perda de poder do Rei, mas
servia para confirmar uma passagem do poder do rei para o poder de Deus, que julgaria o
sujeito de acordo com o que o rei havia julgado, motivo pelo qual havia um sacerdote para
confirmar a sentença, para demonstrar que o poder do rei não poderia ser desafiado pois tinha
força de poder divino e não deveria sair impune.

Assim se confirmava a lógica da soberania, já que o condenado não se revoltava, tendo


em vista que se revoltar contra o soberano era se revoltar também contra Deus. As punições
não tinham caráter disciplinar, mas tinham caráter de lição para reafirmar o poder do rei, que
se garantia por meio do espetáculo, uma hora que não se garantia pela eficiência.

Já com a disciplina a pena deixa de ser um espetáculo para ser, ou parecer ser, algo
sutil, desaparecer aos olhos de quem está de fora, e algo a ser introjetado na própria
personalidade daquele que passa pelo sistema, a fim de tornar seu corpo dócil, com alta
capacidade de produção e com baixo poder político, uma vez que as pessoas são
individualmente ameaçadas com a prisão e de modo que ela é a garantia última de que o
trabalhador seguirá as normas impostas para evitar a pena, passando assim a ser mais dócil
para o sistema.

O suplício então faz parte da estrutura do poder punitivo, que produzia a verdade
através do sofrimento, da dor, da mutilação de corpos, através de um ritual organizado para a
marcação da vítima e a demonstração máxima do poder que pune, e é nesses excessos que se
investe a economia do poder. Sendo que a verdade é o que será definido pelo poder, é uma
verdade imposta e não se dá pelo esclarecimento. A verdade é a versão do fatos que ganha
pela estrutura de poder. Houve então uma economia e gradação dos crimes e penas, já que o
procedimento de inquisição consistia em submeter o réu à tortura para levar a verdade
construída pelo poder. O procedimento não era apenas de imposição de poder mas de busca
pela verdade. A manifestação da verdade na execução pública das penas no século XVIII
possui vários aspectos, como deixar o culpado responsável de sua própria condenação;
estabelecer o suplício como momento da verdade; reproduzir na execução do culpado as
características do crime; e trazer ao ritual o caráter de julgamento dos homens com os de
Deus.

Desta forma, fica demonstrado na primeira parte do livro Vigiar e punir, Suplício, que
Michel Foucault busca delinear a ideia principal de sua teoria, que é microfísica do poder, a
busca pela verdade admitida através do poder, a docilidade dos corpos por meio do poder-
saber como instrumento político de submissão, individualização e marcação do sujeito
demonstrando que o processo punitivo, apesar de ter em muito mudado sua estrutura –
punição de corpos, para estereotipação e marginalização de sujeitos - nunca deixou de ser uma
maneira de tentar controlar e submeter os sujeitos através de instituições e do Estado.

Paula Tavares, 06.06.2019.

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