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O nascimento das prisões como nós conhecemos hoje foi um longo processo que
envolve diversas questões, dentre elas a passagens dos castigos físicos e punições de
flagelo do corpo para uma punição pautada no aprisionamento como forma de coibir
futuros delitos. O fato é que a prisão em sua constituição inicial foi local de punição e não
ressocialização. Manter o individuo longe da sociedade e em certos padrões de restrição
foi o modo como a sociedade no final do século XVIII e início do XIX encontrou de
castigar os indivíduos que de alguma forma romperam com a ordem social, tornando-se
assim, indesejáveis. Foucault (2014) coloca a passagem das punições físicas para o
aprisionamento, trazendo uma nova percepção a respeito do ordenamento jurídico e das
novas práticas de se fazer justiça.
Contudo, essa nova forma de lidar com o criminoso não significa deixar de impor
ao corpo os suplícios do castigo. De outra forma, esse corpo será alvo da punição e
representará o castigo inerente aqueles que corrompem a ordem.
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O termo “instituições totais” é aqui utilizado na perspectiva apontada por Erving Goffman em sua obra
“Manicômios, prisões e conventos”, buscando entender as similaridades do ambiente prisional e da
instituição psiquiátrica como forma de controle e aprisionamento.
desmoralizadora de uma sentença indefinida ou de sentença muito
longa. (GOFFMAN, 2013, p. 64)
Diante das mudanças das relações humanas a respeito do direito, da vida e das
práticas sociais é de se supor que estejamos evoluindo para tempos de maior compreensão
e fortalecimento das igualdades. Contudo, em discordância com o que muito evoluímos
em termos de direitos humanos, ainda vivenciamos situações que nos chocam pela quebra
de tantas lutas de cunho libertador ocorridas nos últimos séculos. Longe do que
poderíamos imaginar, continuamos a perceber a influência de práticas conservadoras e
violentas presentes nas nossas instituições modernas.
Após o holocausto ocorrido na Segunda Guerra Mundial, vivenciamos a criação
de medidas que viriam a surgir como mecanismos de defesa em prol da vida humana.
Dentro desse cenário a criação da Declaração Internacional dos Direitos Humanos em
1948 e sua adoção pela ONU (Organização das Nações Unidas), representou um
momento de união das nações na pactuação de medidas que visavam garantir os direitos
inerentes a pessoa humana em suas diversas perspectivas. A declaração é um símbolo de
mudanças na mentalidade e na forma de se relacionar que representa atualmente o grande
ideal de melhoria e princípios humanitários, que mesmo não obrigando governos
legalmente, influenciou a criação de diversas constituições e tratados internacionais
posteriores a sua criação. “A ideia de “direitos humanos” é resultado do pensamento
filosófico dos tempos modernos, com fundamento na filosofia do racionalismo e no
iluminismo, no liberalismo e democracia, e também no socialismo. “2 Consagrando,
assim, a responsabilidade dos governos com seus pobres, minorias e com a justiça social.
No que diz respeito aos portadores de transtornos mentais, após o longo processo
de Reforma Psiquiátrica iniciado na década de 1960 ainda há muito o que se avançar nas
práticas de cuidados e inclusão. Hospitais foram fechados, fazendo perceber sua
ineficácia, e um novo modelo de atenção foi sendo desenvolvido para dar o suporte
necessário e descontruir toda uma trajetória de segregação. Contudo, em relação ao louco
criminoso, muito pouco foi efetivamente modificado, e continua sendo um dos grandes
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Compreender os Direitos Humanos. Manual de educação para os direitos humanos. 3ª edição em Língua
Inglesa: European Training and Research Centre for Human Rights and Democracy (ETC) Graz, 2012. P.
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desafios. Pois o Manicômio Judiciário representa a grande contradição de oscilar entre: “
o modelo jurídico-punitivo e o modelo psiquiátrico-terapêutico. O primeiro vê o sujeito
capaz de ser, tanto moral como penalmente, responsabilizado por suas ações. O
segundo...enquanto sujeito de seus impulsos e desejos. ” (IBRAHIM, 2014, p.64)
Foi no período imperial, em 1830 que o Código Penal pela primeira vez falou
sobre o doente mental considerado criminoso. Nesse momento, o louco criminoso vai ser
destinado para casa de familiares ou locais específicos.
Como já comentado essa instituição parece ter sido criada com o intuito de
segregar ainda mais pesadamente esse indivíduo especifico, como coloca Thomas Szasz
(1977):
À frente da saúde mental do estado, Ulysses, vai abrir caminho para a criação de
vários núcleos de saúde mental. Dentre as obras idealizadas por ele está a criação do
Manicômio Judiciário, que inicialmente funcionou provisoriamente nas dependências do
Hospital da Tamarineira. Posteriormente, sendo seu funcionamento foi transferido em
definitivo em agosto de 1953, para as dependências do Engenho Monjope, em Igarassu.
Hoje o HCTP funciona em anexo à Penitenciária Agrícola de Itamaracá.
O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Pernambuco (HCTP PE)
atualmente fica localizado na Ilha de Itamaracá, a 47km da capital, Recife. O HCTP de
Pernambuco foi inaugurado em 1982. Em 2011, o HCTP vinculava-se à Secretaria de
Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos de Pernambuco. O Hospital de
Custódia de Pernambuco era a terceira unidade em população dos HCTP’s e das Alas de
Tratamento Psiquiátrico (ATPs), o que correspondia a 11% dos Estabelecimentos de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTPs) do país e a 41% das pessoas internadas nos
estabelecimentos da Região Nordeste. A população total do HCTP-PE era de 433
indivíduos, entre os quais 203 estavam em medida de segurança e 230 em situação
temporária. No HCTP-PE, pelo menos 30% (61) dos indivíduos em medida de segurança
não deveriam estar internados por cumprirem medida de segurança com a periculosidade
cessada ou por terem sentença de desinternação, medida de segurança extinta ou
internação sem processo judicial.
Pouco se sabe dos percursos históricos de formação e consolidação do manicômio
judiciário em Pernambuco, contudo, o importante é perceber que a transformação dessa
instituição em Hospital de Custodia não modificou as bases de origem prisional e punitiva
da instituição.
Em agosto de 2017 foi realizada videoconferência com o objetivo de discutir
medidas para a desinstituucionalização do Hospital de Custodia de Pernambuco.
Articulação entre a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o Sistema Judiciário visando
ao incremento das ações territoriais e comunitárias de Saúde Mental, juntamente com o
Ministério Público de Pernambuco (MPPE) abordaram medidas básicas sobre a
empreitada desse processo.
Ainda no ano de 2017 medidas da Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres)
começaram a serem articuladas para possibilitar um processo de desinstitcionalização do
HCTP-PE. Em um processo complexo e repleto de entraves a tentativa é que os pacientes
que não consigam retornar ao lar, possam ser amparados pelo estado e acolhidos em
Residências Terapêuticas, como já é vivenciado pelos demais portadores de transtornos
mentais do país. Norma Cassimiro, gerente do HCTP na época, já apontava a dificuldade
em conseguir com que familiares recebessem esses indivíduos de volta ao lar, e colocava
a importância da saída dos mesmos do sistema institucional, como ponto decisivo no
processo de recuperação. É preciso entender as engrenagens históricas que movem as
instituições totais, para saber as ineficiências, já comprovadas. O isolamento imposto aos
criminosos portadores de transtornos mentais, de certo agrava sua condição de doentes e
torna cada vez mais distante a possibilidade de retorno ao convívio social.
A repulsa pela própria família faz com que o portador de transtorno mental acabe
se configurando como um preso perpetuo. Inimputável perante a lei, sua sentença se torna
a mais dura e perversa dentro do contexto em que está inserido. A rejeição social ao crime
é ampliada pelo medo da doença mental. Sem estrutura do estado, e sem aceitação, resta
a esses indivíduos permanecerem no HCTP, provavelmente até o final de suas vidas. Em
uma trajetória histórica marcada pelo sofrimento e pelo esquecimento.
O trabalho censitário de Debora Diniz (2011) feito no ano de 2011 mostra a face
das instituições de custodia no país, revelando que a maioria dos indivíduos em situação
de medida cautelar estão na instituição devido a morosidade do sistema de julgamento.
Boa parte ainda não havia tido, na época, a resolução de seus processos, e aguardava
parecer judicial sobre sua condição de preso portador de transtorno mental. No caso do
HCTP de Pernambuco especificamente, a situação não era diferente, constatando como a
lentidão da justiça em casos como esses, podem se configurar como uma das principais
causas da superlotação dessas instituições, comprometendo toda as logica de cuidado e
atenção.
Com capacidade para 372 usuários, o Hospital de Custodia de
Pernambuco, possuía no ano de 2011, o total de 433 internos, sendo boa
parte em condição temporária. Dos 230 indivíduos em situação
temporária no HCTP-PE, 21% (48) estavam internados para realizar
exame de sanidade mental e 70% (160) estavam com o exame de
sanidade mental e aguardavam decisão judicial para andamento
processual. A previsão do Código de Processo Penal é de que a
internação para a realização do exame de sanidade mental não
ultrapasse 45 dias, salvo se os peritos demonstrarem a necessidade de
maior prazo. Da população em situação temporária que estava
aguardando laudo de sanidade mental no HCTP-PE, a média de espera
era de sete meses, ao passo que nos demais estabelecimentos do país
era de onze meses. Dos indivíduos à espera do laudo de sanidade
mental, 31% (15) aguardavam dentro do prazo previsto pelo Código de
Processo Penal e 67% (32) aguardavam por um período superior a esse
prazo. (DINIZ, 2011)
Conclusão
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Subchefia para assuntos jurídicos.
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