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Foucault e o controle da tolerância muda

Autor: Marcos Antônio Duarte Silva


Doutorando em Ciência Criminal; Mestre em Filosofia do
Direito e do Estado; Especialista em Filosofia
Contemporânea, Especialista em Direito Penal e
Processo Penal; Licenciatura em Filosofia; Bacharel em
Direito, Graduado em Teologia e Professor Universitário.

RESUMO: Foucault há tempos tem despertado atenção dos estudiosos por sua
forma engenhosa de enxergar o mundo, descrevendo após suas viagens,
estudos e pesquisas seu pensamento em várias áreas do conhecimento
humano. Merecendo destaque sua contribuição sobre a forma como se
desenvolveu o Estado, tratando também sobre o Direito, Filosofia e uma análise
apurada da sociedade e seus problemas ao longo dos séculos. Em sua forma
peculiar de enxergar o tempo, o mundo, os povos e os relacionamentos
interpessoais, expunha com máxima clareza em suas aulas, conferências, de
maneira única possibilidades para pacificação dos conflitos existentes nestes
vários seguimentos. A proposta do desse artigo é demonstrar através do
pensamento de Michel Foucault, suas reflexões sobre o poder de disciplina na
sociedade e como isso tem sido usado pelo Estado como uma ferramenta de
controle.
Palavras-Chaves: Filosofia. Sociologia. Política, Controle. Discurso.

Sumário: 1. O Controle; 2. A pesquisa dos “loucos”; 3. O sistema de exclusão 4.


Os condenados; 5. O liberalismo; 6. O discurso do poder e sua ordem;
Considerações finais.

Introdução

O Estado em nenhum momento da história tem se mostrado consolidado a tantas


crises como nestas últimas décadas. Mesmo diante destes fatos, percebe-se
uma discreta posição da população mundial, sem as grandes manifestações que
em épocas não tão distantes geravam mobilizações, passeatas, inclusive em
vários casos, revoluções aqui e acolá.

Neste sentido o que de mais significativo ocorreu nestas últimas décadas, depois
da queda do Muro de Berlim, a chamada queda da “cortina de ferro”, o
inesquecível 11 de setembro de 2001, tem sido se assim pode se chamar, a
revolução no mundo árabe.

Mais mesmo, estas manifestações, têm seguido um rito, uma espécie de


doxologia em sua apresentação e acontecimentos envolvendo a população, não
alterando em sua essência o modelo do Estado árabe, mais o líder e sua
convivência com o mundo ocidental. Há claramente uma nova ordem, onde no
cenário ainda não todo pintado, uma indisposição para os mandos ocidentais
exagerados, numa tendência clara de novos líderes que não tenha tanta
proximidade com uma cultura tão diferente do oriente - médio.

Estes movimentos atuais, usados como pano de fundo para a linha de


pensamento de Michel Foucault corrobora para sustentação de seu postulado
de formas de controle, ou, de líderes fortes que se empenhem em criar uma
forma diferenciada de Estado.

Através da história traçada pelo ensinamento foucaultiano, se poderá divisar, a


disciplina, como forma de atingir o grande objetivo de um governo: o controle
absoluto da população.

1. O controle

Na esteira deste observador histórico, atento aos menores ruídos e movimentos


aparentemente despretensiosos é onde nasce uma pesquisa talhada pela
curvatura de sua observação, a forma como o Estado moderno promove o
controle de tolerância muda.

Na leitura proporcionada por Michel Foucault à visita a um mundo onde o poder,


controle e disciplina são evidentes e perturbadores, o que pode afinal este
pensador a princípio estar nos falando? Será que ele era apenas contrário a
posição posta de manutenção do Estado, ou isso é uma forma de atrair a atenção
para um problema ainda maior?

Ao percorrer a leitura e entendimento foucaultiano vai se percebendo que sua


manifestação a estas ideias que discursavam os depositários do poder,
afirmando serem suas tomadas de decisões ao benefício do povo, tem em seu
bojo e cerne um viés muito mais profundo e delicado. Nesta pesquisa levada a
efeito, o pirotécnico se vai adentrando no cérebro onde cada passo dado
demonstra total conhecimento apurado do que se está buscando a o porquê
sobre o controle estatal. Não se trata apenas de uma forma de manter a ordem
em determinado momento, época ou período, mas de um controle onde se
alcançasse além da fronteira do já conhecido, uma propositura de uma premissa
estabelecendo o norte de quem estaria e como se faria este controle.

2. A pesquisa dos “loucos”


Foucault começa sua pesquisa neste campo de controle nos hospitais, hoje
chamado psiquiátricos, mas que em sua época também se chamava “instituição
de saúde”. Isso ocorre no século XVIII, encontramos no Livro Resumo dos
Cursos do Collège de France a seguinte citação: “Há, sem dúvida, uma
correlação histórica entre dois fatos: antes do século XVIII, a loucura não era
sistematicamente internada... podia viver no meio delas, e não tinha que ser
separada, a não ser quando tomava formas extremas ou perigosas.”(1997 p.47)
(negritos nossos)

Ainda observando a época, o próprio texto vertido comenta:

“Compreende-se, nessas condições, que o lugar privilegiado em que a


loucura podia e devia explodir na verdade não podia ser o espaço artificial do
hospital. Os lugares terapêuticos reconhecidos eram, em primeiro lugar, a
natureza, já que ela era a forma visível da verdade; tinha em si mesma o
poder de dissipar o erro, de fazer desaparecer as quimeras”. (1997 p.47)
(negritos nossos).

Ora, se o hospital era considerado “um espaço artificial”, assim dito pelos
próprios médicos da época, quando foi que ocorreu a mudança para enxergar
nessas instituições as soluções dos problemas? E por que, de uma forma bem
rígida passaram a tratar indiscriminadamente muitos problemas como vadiagem,
homossexualismo, prostituição, desemprego entre outros não relacionados à
“loucura”, nesses “espaços artificiais”?

Pode-se se dizer que a partir desta observação surgem os primeiros fragmentos,


como forma de controle, que se instalariam na sociedade e avançariam para
outras dimensões ainda maiores com intuito de domínio seguro da liberdade
individual. Atravessando limites jamais vistos ou sonhados, proporcionando aos
detentores do poder um controle de tal monta podendo assim ser usado com a
característica cínica de estar promovendo um bem à população, em um discurso
atraente e entendido como o Estado atendendo aos seus entes.

3. O sistema de exclusão

Adentrando no universo interno desses hospitais, vejamos o que se era oferecido


e comparemos os seus métodos.

Na obra já citada se reproduz o seguinte comentário importante:

[...] produzirá a luz do dia seu mal pela resistência que oporá à vontade reta
ao médico; por outro lado, a luta que se estabelece, a partir daí, se for bem
conduzida, deverá a vitória da vontade reta, submissão, à renúncia da
vontade perturbadora. Um processo, portanto, de oposição, de luta e de
dominação. (1997 p.49)

Luta dominação, vontade reta, vitória da vontade? Salta aos olhos que não está
mais se falando de tratamento com objetivo de uma possível cura, ou
descobertas para tal, mas sim de controlar a vontade para conseguir uma
dominação. É vital neste processo de dominar, de controlar, adentrar dentro da
capacidade mental de disciplina através do controle, para que mesmo àqueles
que fora destes estabelecimentos chamados de Instituições de Saúde pudessem
ser dominados e manobrados através de um poder dominante. O que antes era
um sonho distante, o controle da vontade, aparece de forma possível e viável
neste pseudotratamento ofertado pelo Estado.

Numa outra obra ainda tratando do mesmo assunto Foucault reproduz o


seguinte:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o
poder. (2009: pag.10)

Neste diapasão vê-se que o discurso de manter um “hospício” e ao mesmo


tempo o poder é bem razoável, prudente e até porque não dizer, seguro para as
demais pessoas que não conseguiriam manter o convívio com estes que saiam
da linha imaginada e apenas isto, imaginada do normal, para a “loucura”.

O Estado em sua preocupação maior estava presente para “minorar” os efeitos


destes “loucos” na sociedade criando instituições que os pudessem manter a
distância dos demais cidadãos.
Só este relato já seria assustador de se analisar, mas Foucault aprofunda esta
questão ao afirmar no mesmo livro:

Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: não, mas uma


separação e uma rejeição. Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta
Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como os dos
outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja
acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na
justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato... (2009 p.10)
(destaque nosso)

Neste momento chega-se a um ponto por demais perturbador, pois vejamos, se


uma pessoa era considerada louca perdia todas as condições de vida social, de
manter-se como um cidadão capaz de cumprir seus atos civis, de mesmo vendo
um crime não poder testemunhar, e sua palavra reconhecida como uma não
verdade, qual seria a partir daquele momento a condição desta pessoa?
Continuaria sendo um cidadão? Ou seria apenas um “louco”, internado, sem
nenhuma condição de participar na vida social?

Num salto, Foucault demonstra a raiz deste problema:

[...]penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o


sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo,
em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber
sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da
lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um
discurso de verdade. (2009, p.18,19)

Assusta o fato que para haver sustentação na base legal tenha-se que buscar
apoio curvado a uma forma de segregação tão evidente, escancarada e torpe
como esta, os “loucos”.

É possível pensar a partir desta afirmativa todo um sistema de Estado voltado à


demonstração de seu poder a qualquer custo sem pensar em nenhum momento
na pessoa humana e seus interesses, ainda para melhor entendimento cita-se:
“Dos três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra
proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade”. (2009, p.19)

Sistema de exclusão! Assim a sociedade vem caminhando tendo como início o


sistema psiquiátrico voltando às primeiras experiências de domínio, controle,
restrição, submissão. Declarando pessoas em estado de “loucura”, para total e
irrestrita desconsideração do que fala da sua forma de agir, do que poderiam
pensar e, por fim, estarem restritas para que a sociedade não fosse contaminada
com suas ideias, sendo para tanto, praticado o discurso do medo, do pavor, da
violência, uma vez falado que esses “loucos” eram perigosos e violentos.

Michel Foucault aponta a finalidade do discurso de forma retumbante:

O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de


dominação, mas aquilo que se luta, o poder que queremos nos apoderar.
(2009, p.10)

4. Os “condenados”

Como se pode ver, as instituições chamadas de “instituições de saúde”


começaram por proporcionar controle, disciplina e sujeição, com um aspecto por
demais importante, não havia reclamações, nem manifestações e muito menos
indisposições. Ora, o sonho do poder irrestrito começa se desenhar ali, e velhas
e novas ideias aparecerem como a ampliação deste modelo a outros substratos
da sociedade, com o mesmo discurso de manutenção da segurança, importando
a população e seu bem estar.

Foucault não fica alheio a este movimento e percebe que há algo aí podendo
estar disponível para um construído de forma a atingir vários tecidos sociais.

Com isto em mente, passa a examinar as instituições prisionais e seu modelo de


aplicação de controle sobre os condenados. Falando sobre isto é dito:

No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes


fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. (2008, p.12)

Havia, até antes desta mudança, um verdadeiro palco de suplício, confissões


públicas arrancadas à base da violência descomunal, o tratamento carcerário
como uma demonstração de uma subespécie residente nestes aparatos de
segregação social. Uma vez que o objetivo era apenas retirá-los do convívio
social para transmitir uma sensação de que o Estado estava mantendo a ordem
e a segurança, por fim, cumprindo seu papel de mantenedor.

Destarte, tal afastamento da punição física caminha-se para a questão do tempo,


não retirando do corpo o suplício, mas punindo com o tempo a cumprir nessas
prisões, onde “o corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de
intermediário...” (2008, p.14)
“Instrumento” para uma disciplina rígida no discurso do poder, demonstrar a
importância da chamada “reabilitação”, assim, alcançada todos os estágios
desse poder, disciplinar; estar em condições de voltar à sociedade. Outra vez
um discurso rico em humanização, respeito e até “dignidade”.

Só que a disciplina não tem o condão de reabilitar, ela assume a função de levar
a um condicionamento, ausente de compreensão, de raciocínio e, por fim, um
questionamento, ao sair do ambiente disciplinador, como poderia se manter
disciplinado?

A disciplina tem por finalidade o controle da vontade. Desta forma, era quase
iminente à volta ao cárcere, uma vez que de volta à sociedade, sem aquele ritmo
disciplinador, em pouco tempo haveria maior probabilidade de volta à prática do
delito.

Assim, Foucault encontrou o porquê desse método não ter como funcionar fora
da prisão:

O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar;


um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder,
e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles
sobre quem se aplicam. (2008, p.143)

Mas se esta forma é apenas possível dentro da prisão, com pouca chance de
reabilitação, qual seria o propósito de manter uma instituição criminal que tivesse
como resposta o retorno do egresso? Haveria motivo para gastos altos num
modelo que, em sua forma primal, não resolveria o grande problema ali imposto?
Ou, ainda, estas prisões servem para algum propósito governamental?

Ao pensar sobre as sobrepostas digressões, percebe-se a importância do


discurso e sua forma de apresentar o problema de maneira cândida, até mesmo
como uma solução imediata, rápida e segura para o problema social. Quem,
numa população temerosa pela violência, iria contra tal discurso? O discurso
assume um papel de tamanha relevância na sociedade, manobrando, indicando
meios, controlando os ânimos, deixando à mercê todos os integrantes de uma
sociedade, até mesmo aqueles em seu papel de intelectuais, os formadores de
opinião, ficam declinados a exporem qualquer posição contrária.

No livro A ordem do discurso é dito: “o discurso nada mais é do que um jogo”. E


como jogo ele assume a condição de estratégia de pensamento entre outros
artifícios. Nesses três elementos “de escritura, no primeiro caso; de leitura, no
segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura jamais põem em jogo
senão os signos” é possível perceber que num discurso que joga com as
emoções, com sentimentos, com um momento de pesar nacional, com uma
crise, com um acontecimento, certamente haverá quem se apegue a esses
aspectos sem ao menos perceber se tratar de um jogo, muito bem arquitetado.

Nesta arquitetura do discurso, a disposição desse jogo encontra-se nas


instituições onde o próprio Foucault assim expõe: “O mais das vezes, apesar da
coerência de seus resultados, ela não passa de uma instrumentalização
multiforme. Além disso, seria impossível localizá-la, quer num tipo definido de
instituição, quer num aparelho do Estado. Estes recorrem a ela; utilizam-na,
valorizam-na ou impõe algumas de suas maneiras de agir. Mas ela mesma, em
seus mecanismos efeitos, se situa num nível completamente diferente. Trata-se
de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos
e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses
grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas
forças”. (2008, p.26) (grifos nossos).

Isto posto, fica evidente a intenção de não demonstrar claramente haver um


mecanismo a serviço das pretensões do Estado, ora através da instituição, ora
através do próprio aparelho instrumental do Estado. Assim, o discurso
permanece aparentemente com status de importância da “condição humana”
evidenciando a contraprestação que o Estado tem assumido a duros custos e
com muito esforço para manter a sociedade em pleno funcionamento. No
momento em que se percebe a necessidade de apresentar um relatório ou
demonstrativo de como se está avançando na direção de tornar a sociedade
mais humanizada, vem o grande discurso coberto de emoção, com palavras de
efeito e frases bem construídas, levando quem assiste à comoção ao ver
tamanho empenho do Governo.

Nesta questão, já na época do Foucault, os discursos direcionados, emotivos,


surpreendentes funcionavam para dissipar qualquer possibilidade de se olhar ao
horizonte e ver apenas uma forma de contenção da população em se alienar
com promessas, relatórios, e pseudo-medidas efetivas para combater qualquer
coisa que servisse de impedimento para o alcance do grande objetivo exposto
pelo governo: cuidar dos seus cidadãos de maneira exemplar, eficiente e
modelar. O horizonte era simplesmente posto o mais distante possível, para
ninguém enxergar a verdadeira condição das coisas não ditas, mas camufladas
no discurso. Ganhava-se tempo, disposição do cidadão para permanecer
trabalhando, cumprindo disciplinarmente sua função social, mesmo está
cobrando o custo maior da não revolta, da não greve, tornando muito difícil a
paralisação, pois enfim, o Estado estava cuidando dos seus cidadãos.

5. O liberalismo

Em meio a este cuidado apresentado pela figura do Estado, para que


trabalhadores tivessem facilidade na mão de obra e suas expectativas sempre
postas ao lado do benfeitor aparelho estatal, surge a Primeira Revolução
Industrial. Como diz Paul Singer:

[...] marcada pela aplicação da energia do vapor à indústria e aos transportes


e pela invenção das máquinas-ferramentas, máquinas capazes de empunhar
e movimentar ferramentas com mais habilidade, precisão e força do que o
agente humano. (2010, p.26, 27).

Rapidamente ocorreu um maior número de mercadorias à venda, surgiu deste


acontecimento um quase desastre econômico devido ao excesso de
mercadorias e falta de pessoas para a consumirem, gerando a partir daí a
necessidade de mudanças no sistema de compras.

Nesse auge da revolução industrial surge para conter a questão de oferta e


demanda, a fascinante e promissora “lei da oferta e da procura”, passando a
hipnotizar todo o tecido social, alcançando em sua primeira mostra uma
propaganda atrativa às classes de trabalhadores menos favorecidas, que agora
poderiam adquirir bens e serviços, através da “sensibilidade” das disputas de
mercado, desta maneira, surgiram formas, ainda que rudimentares, de compras
a crédito: compre agora e pague só quando receber.

O Prof. Márcio Pugliesi em sua obra Teoria do Direito faz uma análise:

E se o princípio de realidade não pode ser eliminado, pois comprometeria a


subsistência da sociedade, transformou-se, com a evolução da história
humana, num princípio de rendimento, que não é um a priori da existência
social, mas defluindo da dominação capitalista exacerba os mecanismos de
controle e repressão (a sobre-pressão) a fim de manter a orientação
dominante da sociedade capitalista: buscar o lucro à mercê do crescimento
econômico estribado no progresso tecno-industrial. (2009, p.10).
Nesta análise feita tais acontecimentos vão aparecendo com a vultosa expulsão
no campo dos campesinatos fluindo em massa para os centros comerciais e
industriais, mas numa visão de consumo do que de trabalho melhor. Abandonam
suas propriedades e uma vida com qualidade para se espremerem em volta das
indústrias e comércios incentivados pela ideia capitalista do sonho de posse, de
conquista, de consumo, no qual atraem tantos quantos possíveis para este
êxodo.

Diz Paul Singer na mesma obra:

O chamado ‘o movimento das cercas’ ou cercamentos corresponde a um


processo histórico de transição, ou seja, de uma agricultura até então
comunitária - feudal para uma agricultura capitalista, fruto de uma
mentalidade crescentemente empresarial e cuja produção se organiza para
abastecer o mercado. (2012, p.27)

Com acurada observação percebe-se a mão, agora invisível, do poder


dominante, controlando, disciplinando e regulamentando até o estilo de vida, o
trabalho, a moradia, como, onde e o que comprar a forma e quanto.

A partir deste momento, tudo muda na organização social, se é que ainda se


pode chamar de social, ou melhor, capitalista, deflui de forma tão abrangente,
tão abrasiva, não sendo possível escapar.

Mesmo com movimentos surgindo, pensadores como Karl Marx, tangenciando,


demarcando a transformação, apontando os problemas que derivariam deste
novo modelo, mesmo com seu discurso poderoso, fazendo uma proposta
alternativa, ao menos para ser pensada, havia um Estado ávido em não
comprometer sua máquina de produção.

Há uma verdadeira alienação com viés da proteção da Instituição Estado, e sua


defesa passa a ser quase que uma histeria coletiva, cegando aqueles que
poderiam produzir qualquer mudança na transformação.

No fim do século XIX, as invenções tomam uma forma jamais vista, surge à
energia elétrica, o motor a explosão, e mais avanços na química e siderurgia,
construindo assim a Segunda Revolução Industrial. Sinalizando que o
capitalismo havia chegado sem pressa de sair do cenário mundial.

Fazendo eco a esta nova ordem Foucault diz:


Agora, o interesse a cujo princípio a razão governamental deve obedecer são
interesses, é um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a
utilidade social e o benefício econômico, entre o jogo complexo entre direitos
fundamentais e independência dos governados. O governo, em todo caso o
governo nessa nova razão governamental, é algo que manipula interesses.
(2008, p.61)

Entenda-se como manipulação o interesse de defender sua posição de


“governamentalidade”, aparece este jogo complexo misturando os interesses
individuais e coletivos, uma estratégia bem montada e de difícil compreensão
média, como isso a instalação da utilidade social dá uma demonstração de
objetivo de alcançar o povo e de preocupação centrada na sociedade e,
acrescentando a isto o benefício econômico, encontra sua razão e estimula a
manutenção do Estado e Governo.

Não seria demais entender que para Foucault, poder é uma forma variável e
também instável do jogo a partir de forças definidoras das relações sociais,
participando de cada momento histórico concreto, usando a prática de discursos
específicos, com isto fica claro e se pode atingir o poder no campo da prática do
discurso.

6. O discurso do poder e sua ordem

O discurso busca um objetivo sempre. Ora trazer pessoas para a maneira de


pensar, ora, para um movimento a ser seguido, ora para massificar significados.

Em Foucault, a ordem do discurso encontra sua força nos movimentos políticos,


uma vez serem estes uma demonstração prática de como se pode inverter,
racionalizar e diminuir determinadas situações, para se alcançar determinado
fim. O pensamento Foucaultiano sobre este tema se expõe assim: “O discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo que se luta, o poder que queremos nos apoderar”.

Essa frase expõe de maneira clara o desejo de quem predica com objetivo a
alcançar uma função dentro da sociedade, usando de todos os meios discursivos
para angariar o seu desejo final de poder. Para isto, usará a palavra como meio,
não se importando com os efeitos causados na mente dos ouvintes mais tão
somente com seu propósito maior.
Em sua obra Teoria do Direito, o Dr. Márcio Pugliesi, trata de assunto
correspondente ao trazer a lume as funções da linguagem, falando
especificamente sobre função injuntiva, estreitando o assunto ora em relevo:

A função injuntiva (conativa) tende a suscitar uma determinada ação ou


resposta do receptor que é, então, o referente das mensagens. Pode tratar-
se de uma ordem (imperativo) ou de um pedido (apelativo). A forma
interrogativa também se pode considerar um caso particular da injunção, uma
vez que se apela ao interlocutor que este dê uma resposta à pergunta emitida
(por vezes, incluso, resposta de natureza física. P. ex.: ‘Você poderia me dar
licença? ’; ‘Você seria capaz de finalizar esta tarefa? ’ etc.). (2009: pag.29)

Dentro da linha apresentada pelo iminente professor Pugliesi, esta tem sido
claramente a linguagem usada nos discursos.

Observando deste modo, percebe-se que a intenção ao discursar é levar os


ouvintes a uma ação, estabelecida no bojo do discurso com a séria intenção de
provocar uma reação imperativa daquele que escuta para realizar, fazer ou
decidir a este ou aquele favor.

Foucault não estava então errado ao perceber o poder de alcance de um


discurso e como poderia mobilizar as massas em momentos de comoção a
sentimental e emotivamente decidir assuntos que necessitariam de mais tempo
para pensar, considerando o efeito da decisão a ser tomada.

A impressão percebida é que o discurso produzido e levado a invadir o coração


dos ouvintes em sua forma irrazoável necessitava por força do momento, uma
decisão rápida, apressada sem pensar muito, para produzir o efeito desejado.

Olhando para este aspecto o discurso assume moldes diferentes daquele


apresentado pelo o orador.

Há a clara intenção de levar a ação de forma impensada para favorecer uma


ideia, que uma vez não tendo espaço para a reflexão pode não ser a melhor a
ser tomada.

Cumpre dizer, ser em síntese este o pensamento de Foucault, a promoção do


discurso com intenções no mínimo obscuras para mobilização da massa.

Corroborando com esta máxima veja o que ele mesmo diz:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente sua ligação com o desejo e com o
poder. (2009, p.10)
O controle exercido pelo discurso bem feito, realizado com propósitos e no
momento de maior clamor popular, como é dito não é “aparentemente bem
pouca coisa”, pois, pode mudar a ordem de uma sociedade, a história, um povo.

Sem dúvida o discurso assume a ordem e forma de um poder controlador mudo,


exatamente por levar as pessoas à ação, sem ao menos ter espaço para
raciocinar sobre o que está embutido, muitas das vezes escondido em suas
frases de efeitos muito bem calculadas, uma anedota que leva o público que
escuta a gargalhada, mais que no fundo, todas estas alocuções foram
previamente analisadas, e dispostas para causar os efeitos desejados.

E em se tratando de discurso propriamente político, verga-se maior artimanhas,


pois, tem a função de responder questões que uma vez formuladas poderiam e
muito trazer embaraço. Esconde situações negativas quanto à pessoa
proponente de mandato público, camufla as verdadeiras intenções no
pronunciamento e, ainda, normalmente tem a função de obstaculizar a oposição.

Considerações finais

Foucault em sua ânsia de promover uma discussão em torno destes temas


expostos passou a exercer grande influência através de seus cursos, palestras
e a produção escrita.

Suas pesquisas levada a efeito há quase seis décadas tem despertado o debate
em torno de suas ideias de Governo, Estado, Direito, Escola, Instituições de
Saúde Mental, provocando um torvelinho de reações produzindo efeitos como
na questão dos sanatórios e suas mudanças tão necessárias. Outrossim, seus
escritos tem despertado a atenção de estudiosos tamanha sua acuidade em
tratar dos mais diversos temas.

Um pensador bem além de seu tempo deixou-nos a riqueza de suas pesquisas,


seus livros e uma farta fome de mudar a sociedade fazendo-a mais adequada a
todos os seres humanos.

Ao perquirir sobre o controle exercido pelo Estado, não estava de forma alguma
desconsiderando a necessidade de cuidado, segurança e manutenção da ordem
pública. Seu questionamento vai à direção no uso feito deste controle, por quem
assume a função de controlador. Neste ponto, a questão torna-se por demais
portentosas, uma vez ser ela detentora de direitos alcançados e inalienáveis,
como o direito a privacidade e intimidade, que se não bem definido até onde este
controle pode exercer seu poder, certamente ultrapassará estas garantias
conquistadas.

Neste aspecto as múltiplas formas apresentadas por Michel Foucault provocam


a mente humana a imaginar, se esse controle pode ser enfim controlado?

Aqui exatamente tem sido o ponto de divergência, pois, “quod custodiet


custodos” (“quem vigiará quem vigia”), Juvenal em suas Sátiras (Sátira VI, linhas
347-8). Neste diapasão as digressões foucaultianas não são exageradas, uma
vez ser esta uma necessidade real, haver um controle de quem controla, uma
vez não tendo há possibilidade infinita para agir e fazer o que bem entender.

Como tem se demonstrando o cenário mundial? Aceitando esta necessidade de


controle bifocal, ou simplesmente, sendo o agente soberano no controle? Nesta
questão a de se dizer possuir soberania, a despeito dos direitos é um risco para
manutenção e regulação da pacificação no trato social. Até porque, onde se
sobressaí direito, terá sempre que possuir a companhia dos deveres. Caso
contrário, se selará a miopia entre o povo.

Michel Foucault não traz uma à solução e não é esse o papel de um pensador.
Ao apresentar os problemas decorrentes da aceitação tácita deste tipo de
controle, se busca chamar a atenção para os perigos existentes. Sua pretensão
é apoiar um debate, ideias que surjam com o advento dessas situações.

E qual deve ser o papel daqueles que vivem este controle? Quem sabe esta é a
pergunta importante a ser feita no momento em que o Direito a intimidade e
privacidade estão em xeque-mate. Poderemos conviver ad perpetuam sob este
controle? A dificuldade está posta.

Referências Bibliográficas
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